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Quando os filhos não podem convidar os amigos para Estudo feito com famílias de baixos rendimentos na região de Lisboa mostra os riscos de exclusão associados à pobreza alimentar - pobreza que não é, necessariamente, passar fome. É saltar uma refeição para reforçar a do filho. Ou não aceitar convites por não os conseguir retribuir. Hoje é Dia Mundial da Alimentação Alexandra Prado Coelho obreza alimentar não significa necessaria- mente um frigorífico vazio. As dificulda- des económicas que levam famílias de baixos rendimentos a encontrar estraté- gias para garantir que continuam a conse- guir pôr comida na mesa causam stress, ansiedade, pressão psicoló- gica - e, muitas vezes, uma sensação de exclusão social. Esta pode passar por uma situação como a seguinte: um grupo de jovens de liceu decide ir a um restaurante de fast-food e uma das raparigas que os acompanha sabe, à partida, que não terá dinheiro para consumir; terá de ficar a ver os colegas comer. Ou pode passar pelos pais darem a entender aos filhos que não podem aceitar um convite para irem brincar e lanchar a casa de um amigo, porque eles não têm possibilidade de retribuir. O projecto do Instituto de Ciên- cias Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa Famílias e Alimentação em Tempos Difíceis, Portugal (2016- -2018) - coordenado por Mónica Tru- ninger e Karin Wall e que se realiza no âmbito do Conselho Europeu de Investigação, com pesquisas parale- las a acontecer na Noruega e no Rei- no Unido - seguiu 45 famílias com menores a cargo e com algum grau de privação material para perceber como lidavam com essas situações. E as histórias relatadas acima foram algumas das que os investigadores ouviram. Não é fácil que alguém diga de for- ma clara que está a cortar na alimen- tação, sobretudo quando tem filhos a cargo, explicam Mónica Truninger e Vasco Ramos, um dos investigadores. Por isso, para além das entrevistas, com os adultos e os jovens (entre os II e os 15 anos), foram realizados questionários que permitiam aferir os hábitos familiares e foi a partir do cruzamento desses dados que se che-

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Page 1: Quando os filhos - ulisboa.pt · Quando os filhos não podem convidar os ... Não poder convidar os amigos dos filhos para comer "é, para os adul-tos, ... Freixo do Meio, e Mariana

Quando os filhosnão podem convidaros amigos para

Estudo feito com famílias de baixos rendimentos na região de Lisboa mostraos riscos de exclusão associados à pobreza alimentar - pobreza que não é,

necessariamente, passar fome. É saltar uma refeição para reforçar a do filho. Ou nãoaceitar convites por não os conseguir retribuir. Hoje é Dia Mundial da Alimentação

Alexandra Prado Coelhoobreza alimentar não

significa necessaria-mente um frigoríficovazio. As dificulda-des económicas quelevam famílias debaixos rendimentosa encontrar estraté-gias para garantir quecontinuam a conse-

guir pôr comida na mesa causamstress, ansiedade, pressão psicoló-gica - e, muitas vezes, uma sensaçãode exclusão social.

Esta pode passar por uma situaçãocomo a seguinte: um grupo de jovensde liceu decide ir a um restaurante de

fast-food e uma das raparigas que os

acompanha sabe, à partida, que nãoterá dinheiro para consumir; terá deficar a ver os colegas comer. Ou podepassar pelos pais darem a entenderaos filhos que não podem aceitar umconvite para irem brincar e lanchar a

casa de um amigo, porque eles nãotêm possibilidade de retribuir.

O projecto do Instituto de Ciên-cias Sociais (ICS) da Universidadede Lisboa Famílias e Alimentaçãoem Tempos Difíceis, Portugal (2016--2018) - coordenado por Mónica Tru-ninger e Karin Wall e que se realizano âmbito do Conselho Europeu de

Investigação, com pesquisas parale-las a acontecer na Noruega e no Rei-

no Unido - seguiu 45 famílias commenores a cargo e com algum graude privação material para percebercomo lidavam com essas situações.E as histórias relatadas acima foramalgumas das que os investigadoresouviram.

Não é fácil que alguém diga de for-

ma clara que está a cortar na alimen-

tação, sobretudo quando tem filhos a

cargo, explicam Mónica Truninger e

Vasco Ramos, um dos investigadores.Por isso, para além das entrevistas,com os adultos e os jovens (entreos II e os 15 anos), foram realizadosquestionários que permitiam aferiros hábitos familiares e foi a partir docruzamento desses dados que se che-

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gou a algumas conclusões. Foram de-

tectados, por exemplo, como "umasituação frequente", casos em que"mães saltam refeições ou reduzema sua porção para dar aos filhos",afirma Vasco Ramos.

"Um claro desconforto"Uma das conclusões mais evidentesdo estudo - que, na sua totalidade,só será apresentado no início do pró-ximo ano - é que a "participação so-

cial", que passa por comer fora oupor visitar e receber amigos ou fa-miliares para uma refeição em casa,"está fortemente comprometida paraa larga maioria destas famílias".

Os adultos falam disso abertamen-te. "É uma das coisas que as pessoasmais facilmente dizem de que pres-cindiram. Num dos casos, falámoscom uma pessoa casada havia 23

anos que, nesse período, tinha co-mido fora de casa uma vez."

Mas, se foram ouvidas famíliasque vêm de uma situação de po-breza persistente, a amostra incluiutambém outras que tinham visto as

suas vidas alteradas pelos efeitos "da

austeridade, da crise, do desempre-go". Nesses casos, surgem pessoas"que tinham hábitos de comer fre-

quentemente fora e que os tinhameliminado por causa das restrições".É com estas que as estratégias de

adaptação podem revelar-se mais

complicadas de gerir.Não poder convidar os amigos dos

filhos para comer "é, para os adul-tos, a prova definitiva de que estão à

parte, que não estão integrados nos

padrões de consumo normais, o queconduz a um sentimento de exclu-são", afirma Mónica Truninger.

E se as crianças mais pequenasaceitam muitas vezes estas limita-ções com naturalidade, as mais ve-lhas sentem "um claro desconforto"numa situação em que acompanhamos amigos a um restaurante mas não

podem comer com eles. "Lembro-me", conta Vasco Ramos, "de umamiúda que dizia que mesmo que co-messe não iria gostar porque signifi-caria que os pais estavam a fazer umenorme esforço económico".

O trabalho de investigação identi-ficou também "episódios pontuaisde fome", nomeadamente criançasque chegam à escola de manhã sem

terem comido nada. Mónica Trunin-

ger aconselha, no entanto, algumaprudência na análises destas situa-

ções, assinalando a tendência parase pensar que se trata de negligênciapor parte dos pais. O que acontecefrequentemente, explicam os dois

investigadores, é que há pais com ho-rários de trabalho que os obrigam alevantar-se de madrugada e que nãoestão em casa à hora a que os filhossaem para a escola.

"Parte substancial destes adultos[em Portugal, o que contrasta com as

situações identificadas no Reino Uni-do e Noruega] estão empregados massão trabalhadores pobres, com rendi-mentos muito baixos", analisa VascoRamos. "Surgem problemas de stress

da gestão do quotidiano. As criançasquerem cereais mas só há pão comfiambre, por exemplo. As saídas decasa desfasadas criam oportunidadespara que as crianças vão para a esco-la sem comer ou comendo de forma

desadequada, com consequências no

desempenho escolar de que a esco-la se apercebe rapidamente, comoaconteceu no caso de uma raparigaque desmaiava na aula de EducaçãoFísica porque se tinha desabituadode comer de manhã."

Quase total ausência do peixeOutro aspecto que os investigadoressalientam é o de que não existe nes-tas famílias desconhecimento sobre o

que é comida saudável, apesar de, na

prática, a maioria fazer uma alimen-

tação pouco variada nos ingredientes

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- um dos exemplos mais flagrantes é

a quase total ausência do peixe nas

refeições e um uso muito frequentede carnes baratas como as de frangoe de porco.

De notar também que "a sopa é um

prato comum entre muitas famílias,constituindo frequentemente a única

refeição dos pais ao jantar, de forma

a conseguirem garantir uma refeiçãomais completa para as crianças".

Outra ideia feita é a de que nas zo-nas rurais há menos risco de pobre-za alimentar, diz Mónica Truninger.O estudo centra-se em três áreas:Lisboa (Marvila), Amadora e Sintra(próximo de Mafra). Foi nesta última

que os investigadores encontraram

algumas famílias que, não tendo umarelação anterior com o mundo rural,enfrentavam maiores dificuldades,nomeadamente na falta de redes de

apoio. "Encontrámos casos de pes-soas que vivem em zonas mais isola-

das, onde não existe uma mercearia,ou quando existem mercearias de

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bairro, vendem mais caro", descreveVasco Ramos.

Mónica Truninger recorda um caso

em que, para contornar esse proble-ma, uma senhora utilizava às vezeso serviço de entrega ao domicílio deuma grande superfície, mas tambémisso levanta algumas questões. "Ter

aquele camião estacionado em frenteà porta a entregar comida dá paraos vizinhos uma imagem de que a

pessoa vive bem. Há uma gestão de

expectativas que tem que ver com o

estereótipo de pobre."0 mesmo acontece com as pesso-

as que enchem o carrinho das com-pras numa ida ao supermercado,dando uma imagem de abundância,quando, na realidade, estão apenasa seguir "uma das estratégias deadaptação que é comprar em gran-des quantidades" quando se temum pouco mais de disponibilidadefinanceira. "Há um julgamento mo-ral muito forte sobre isso", comen-ta o investigador. "É uma violên-cia simbólica", acrescenta MónicaTruninger. Por tudo isto, "é precisocompreender esses enredos quoti-dianos" e evitar leituras simplistassobre estas questões.

Consumidores e direitosA Alimentação Segura e o Risco deExclusão estiveram em debate - coma participação de Mónica Trunin-ger - na conferência internacionalorganizada pelo BEUC - OrganizaçãoEuropeia dos Consumidores e a Deco- Associação Portuguesa para a De-fesa do Consumidor, que se realizouna sexta-feira, no Porto.

Nos vários painéis analisou-se "o

impacto desproporcional das conse-

quências ambientais negativas sobre

o comportamento de determinados

grupos de consumidores", das emis-sões poluentes às condições meteo-rológicas extremas e a insegurançaalimentar.

Tratando-se de uma iniciativa de

organizações de defesa do consumi-dor, um dos objectivos, no caso da

Deco, é perceber de que forma pode-rá trabalhar esta temática no apoioaos consumidores. No painel sobre

alimentação, além da intervenção deMónica Truninger, foi apresentadoum estudo da associação de defesado consumidor francesa UFC-QueChoisir sobre a diferença de preçosdos produtos biológicos e convencio-nais (a conclusão é que esta se devesobretudo à margem dos retalhistas),e falaram Alfredo Cunhal Sendim,produtor biológico da Herdade doFreixo do Meio, e Mariana Dias Simp-

son, da FAO - Organização das Na-

ções Unidas para a Alimentação e a

Agricultura, em Portugal.Hoje, Dia Mundial da Alimentação,

Francisco Sarmento, responsável daFAO em Portugal e junto da CPLP,estará na Assembleia da Repúblicanuma sessão com representantes devários grupos parlamentares e da so-

ciedade civil (Rede Rural Nacional,Colégio F 3da Universidade de Lis-

boa, e ReAlimentar) para discutir "a

construção do direito humano à ali-

mentação adequada em Portugal".Desde Junho que Portugal tem um

Conselho Nacional de Segurança Ali-mentar e Nutricional, que deverá,num prazo de seis meses, elaboraruma Estratégia Nacional para a Segu-

rança Alimentar. Com os grupos par-lamentares, a FAO está a trabalharpara que venha a ser criada e apro-vada uma Lei do Direito Humano à

Alimentação Adequada, algo que jáexiste noutros países, nomeadamen-te no Brasil. Por seu lado, a ComissãoNacional de Combate ao DesperdícioAlimentar organiza uma conferênciano Mercado da Ribeira, em Lisboa,para apresentar a Estratégia Nacio-nal e Plano de Acção do Combate ao

Desperdício Alimentar.

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