os dois lados da moeda · quero mostrar-lhe alguma coisa que é real, ... nada me liga à favela,...

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Este livro foi digitalizado e pré-revisado pela Cia do Livro especialmente para o Grupo Bons Amigos, que tem como objetivo atender aos deficientes visuais. A Cia do Livro desenvolve um trabalho voluntário sem fins lucrativos. Nas nossas digitalizações, fazemos apenas a pré-revisão, pois acreditamos que o trabalho de escanear é um trabalho de equipe: 1 °. Alguém compra/consegue o livro e escaneia. 2 o . Faz o mesmo chegar a quem não tem o livro e gostaria de ler. 3 o . Estes por sua vez lêem o livro e, neste processo de leitura, fazem a revisão. Assim sendo, qualquer erro ou retificação, solicitamos que envie um e-mail com a página e palavra frase, acentos, pontuação para [email protected] Lembramos que os livros (originais) passam pelo autor, editor, revisor e mesmo assim, ainda possuem erros e/ou expressões pouco usadas ou não conhecidas. Pedimos que as pessoas que não sejam deficientes visuais e tenha acesso a este livro virtual comprem o original e doem a uma biblioteca pública.

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Este livro foi digitalizado e pré-revisado pela Cia do Livro especialmente para o Grupo Bons Amigos, que tem como objetivo atender aos deficientes visuais.

A Cia do Livro desenvolve um trabalho voluntário sem fins lucrativos. Nas nossas digitalizações, fazemos apenas a pré-revisão, pois acreditamos que o

trabalho de escanear é um trabalho de equipe: 1 °. Alguém compra/consegue o livro e escaneia. 2 o . Faz o mesmo chegar a quem não tem o livro e gostaria de ler. 3 o. Estes por sua

vez lêem o livro e, neste processo de leitura, fazem a revisão. Assim sendo, qualquer erro ou retificação, solicitamos que envie um e-mail com a

página e palavra frase, acentos, pontuação para [email protected] Lembramos que os livros (originais) passam pelo autor, editor, revisor e mesmo

assim, ainda possuem erros e/ou expressões pouco usadas ou não conhecidas. Pedimos que as pessoas que não sejam deficientes visuais e tenha acesso a este

livro virtual comprem o original e doem a uma biblioteca pública.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA

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OBRAS DA AUTORA PUBLICADAS PELA BRASILIENSE

Coleção "Jovens do Mundo Todo"

A CAMINHO DO SUL AGRANDE ILUSÃO — (A Transa-Amazônica)

A MONTANHA PARTIDA — (O Mistério da Expedição) A 8a SÉRIE C AS EMPREGADAS AVENTURAS DO ESCOTEIRO BILA E A G O R A ? - * » ESTA T E R I M É NOSSA

JUSTINO, OrRETIRANTE — (Prêmio Monteiro Lobato, da Academia Brasileira de Letras — Menção Honrosa do Prêmio Internacional Hans C. Andersen — Prêmio Lions)

MARCO E 0$ ÍNDIOS DO ARAGUAIA — (Prêmio Fun­dação Educacional do Distrito Federal)

MISTÉRIO? MISTERIOSO AMOR O CASO DA ILHA O CLUBE DOS BACANAS O FILHO DO BANDEIRANTE O FILME NA BARRIGA DO PANDA O MISTÉRIO DA BONECA O MISTÉRIO DO BOTÃO NEGRO O MISTÉRIO DO ESCUDO DE O U R O OS DOIS LADOS DA MOEDA PEDRO PEDREIRO ROSA DOS VENTOS

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" J O V E N S D O M U N D O T O D O " Coleção fundada em 1960 pela Prof.* Yolanda C. Prado

ODETTE DE BARROS MOTT

OS DOIS LADOS DA MOEDA

1a ed ição 1978

7 a e d i ç ã o

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Copyright © Odette de Barros Mott

Capa: Lilian Osmo

Revisão: Elide C. Escobar

editora brasiliense s. a. 01223 - r. general jardim, 160 são paulo — brasil

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"Nosso destino! Pra onde correr? Como passarinho? Mas como viver, pra onde ir, pra onde correr? Todos nós, onde, como fazer? Nosso destino! Talvez morrer."

José Carrilho Favela do Sapo

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O CONVITE

Vamos sair juntos durante quinze dias? Não, não estou brin­cando, falo sério, você tira férias e sai por aí comigo.

Estranha o convite e naturalmente me pergunta — Onde va­mos e o porquê deste passeio?

Vou responder à primeira pergunta, onde?

Quase posso afirmar que vamos à outra face da lua, aquela que daqui da terra nunca vemos. Seu lado escuro.

Vamos às favelas, cujos barracos a princípio se escondem me­drosos nos terrenos baldios e depois, quando o proprietário dá con­ta, ela fermentada, já cresceu e se espalha e transborda.

Onde os barracos são de tábuas, latas, trapos e plásticos, não têm água, não têm luz, não têm esgoto e nem privada.

Onde, num só cômodo, dormem cinco, oito pessoas. Onde o lixo coletado da cidade é despejado perto, na continuação do terre­no, onde não há escola, armazém, o u . . .

Venha comigo ver com seus próprios olhos, assim compreende­rá meu convite.

Agora, respondo à sua segunda pergunta, por quê?

Para fazermos um programa diferente. Quero mostrar-lhe alguma coisa que é real, sim e da qual você

nunca ouviu falar. Parte de uma cidade grande do Brasil, que você talvez nem saiba que existe.

Quantos anos você tem? Treze? Há treze anos que você vive nesta cidade tremendamente progressista (vamos pensar depois, com vagar, nesta afirmação?) e não conhece quase nada do que se passa além de seu meio, seu pequeno mundo.

Façamos um levantamento em torno dessa minha afirmação, tá?

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8 ODETTE DE BARROS MOTT

Você conhece sua casa, parentes, colegas, amigos, seu bairro e, às vezes, os vizinhos.

São todos mais ou menos semelhantes, pequenas variações, uma ou outra um tanto desafinada, mas a orquestra parece ser regida pelo mesmo maestro que empunha a batuta e diz: Vamos tocar a sinfonia "A boa vida".

Quero que você saia daí de seu ambiente, venha conhecer a outra face, aqueles que lutam contra o meio adverso, inimigo, e nem sabem eles próprios que estão lutando, quando mal sobrevivem.

Nada me liga à favela, você diz. Não vejo necessidade alguma de conhecê-la. Não sou assistente social, nem dama de caridade ou enfermeiro. Nada me prende à favela, sou de outro meio.

Tudo isso eu sei, sei bem, mas gostaria que você me dissesse o que pensa da vida. Dessa vida que você vive. Ainda não parou para pensar? Está somente vivendo, aproveitando, gozando as boas coi­sas, pondo de lado ou desconhecendo as más.

Venha, vai ser muito bom para você este passeio; irá ajudá-lo a definir melhor o que é a vida, tá?

Vindo comigo, poderá tirar a prova dos nove e verificar com os próprios olhos e sentir na pele, espero e torço para que você sin­ta e participe, e sofra, porque você então será um homem ainda sal­vável, quero dizer, não desligado de todo, vivendo sua própria vidi­nha, ilha. Sentir o que se passa do outro lado.

Durante estes dias, quero apresentar-lhe alguns meninos e me­ninas de sua idade, mais ou menos, doze, treze, quatorze anos. João, por exemplo, doze anos, mora num barraco da favela. É carregador na feira, menino igual a você, um pouco menor na idade, bem me­nor no físico e mais e muito mais desenvolvido que você e seus co­legas, no conhecimento e vivência. Muitos deles não freqüentaram nem o primário, mal sabem ler nos livros, mas, usando uma frase literária, na escola da vida, são professores.

João e outras crianças que moram nesta selva de pedra, como chamam São Paulo, são iguais, mas os dias de João são diferentes, ele mora num dos barracos da favela, que nem nome tem, vamos chamar assim: do sapo. Lá tem sapo cantando no brejo quase seco.

Esse menino, como disse, é carregador na feira. Você se le­vanta às 7 horas, ele às 5, para pegar o primeiro carreto, às 7 ho­ras. Você vai para a escola de carro ou de ônibus. O pai de João era ajudante de pedreiro, ganhava o salário mínimo, veio para São Paulo tentar a sorte. Provou. Voltou para o Ceará. Lá tem meio alqueire de terra. Voltou, mas deixou a família na favela, por não ter o dinheiro necessário para levá-la consigo.

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Há algo mais a ser dito: um pequeno exemplo, mínimo! Você tem no café da manhã, pão, leite, manteiga, sei lá. Depois da esco­la, o almoço. Varia o menu, mas, a presença da comida é cons­tante.

Nesses dias em que vamos sair juntos, você, jovem ainda, qua­se menino, terá oportunidade de se encontrar, se colocar na vida desde agora, conhecendo-a como ela é. Não deixe para depois, quando moço, já dono do título de eleitor e da carteira de moto­rista.

Alguém pode protestar: ele é muito criança e nessa idade, o mundo deve ser azul.

Deveria mesmo, para todos os meninos do mundo, não é? Se não for assim, a injustiça é tremenda, o que você acha?

O hornem não é o menino crescido? Se ele não conhecer desde agora o outro lado, ele não contribuirá para mudar isso e mais tar­de será um parasita. Isso mesmo, parasita.

Ignorando esses problemas, você deixa de participar e quem não participa, faz parte da corrente cega, daqueles que, conforme Cristo falou, têm olhos e não vêem.

Sim, há muita gente que tem olhos e não vê, não quer ver, tem medo de ver.

Venha comigo sem receio, será bom para você que termina o ginásio e vai entrar no colegial. Está se preparando para viver, em ascensão, sua vida. Você estuda, faz exercícios, piscina, judô, mú­sica, ballet etc, vê televisão, se informa, enfim, quer ser uma pes­soa completa.

Então, mais uma razão para você aceitar meu convite. Amanhã cedinho, com o sol nascendo, vamos começar nossa viagem e assim conhecer o que lhe falta para ser uma pessoa integral. Uma pessoa que cresce tanto em inteligência, quanto no físico, mas que não deve e nem pode permanecer truncado, atrofiado na parte mais impor­tante do ser humano que é a participação na vida dos outros, todos os outros.

Você, sem essa visita, sem esse contato com os meninos da fa­vela e seus problemas, estará se preparando para viver a própria vidinha, mas, não a vida da humanidade.

Amanhã, segunda, começaremos. Até amanhã.

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NA FAVELA

Cinco horas. Sol claro, alegrinho. Manhã nascendo já bonita. João acordou com o barulho dos irmãos, duas meninas e dois

meninos pequenos, o menor com cinco anos, chorão e ranhento. Sempre encatarrado com bronquite.

Amontoados no único quarto, inda mais a mãe, lá cozinham. Pai? Coitado, cansou de lutar contra a miséria e resolveu voltar para seu meio alqueire no Ceará. Depois, um dia, vem buscar a fa­mília. Pelo menos no sonho e no desejo. Um dia.

João, já disse, tem doze anos, acorda com o choro do irmão caçula e a briga aos pontapés, no único colchão jogado no chão. Pedro bateu na boca de Carlos para ele parar de chorar. Enquan­to sonhava, ou foi de propósito mesmo.

— Você bateu na minha boca com o pé sujo, fedido.. . — Não bati, o pé tá limpo, cheire. E outro esfregão no rosto

do irmão.

Choro forte, sentido, de quem chora, não pela causa aparente, mas, por outras vindo. . .

Você não conhece a favela e os favelados, não é? Então não sabe a origem do choro de Carlos; não foi o esfregão na cara so­nolenta, do irmão, ou essa foi a gota d'água. E as lágrimas e os soluços, a gritaria aparentemente tão exagerados, têm seu motivo de ser. Vêm de longe.

A mãe se enche com o berreiro matinal, fica nervosa, acaba de coar o café também ela grita:

— Parem ou apanham já!

A mãe não é brincadeira, durona mesmo! Tem que trabalhar oito horas, fora o que gasta no transporte, dois ônibus. Ela e João, o mais velho, carregador na feira. Só os dois. Do Ceará, ainda nem

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 11

notícias. O resto é boca pra comer, roupa suja pra lavar, quando volta do trabalho.

Os garotos param imediatamente, não é nada agradável apa­nhar logo de manhã, deixa a mãe ir embora pro serviço, fazer a fa­xina na casa das donas, então voltam ao exercício físico preferido, soco e pontapé.

— João, o café tá coado, depois da feira, vê se dá um jeito de ajudar a carregar os caminhões e ganhar um pouco de verdura, é melhor batata, viu?

— Sim, mãe.

O menino bebe o café, não precisa, ou melhor, não deve co­mer o pão porque vai passar bem na feira. Experimenta frutas, ga­nha um ou outro biscoito. Roubar ainda não. . .

Por que ser tão pessimista? Pode ser que esse menino nunca roube, sei lá. Às vezes, um é salvo e prossegue diferente, único naquele meio. Meio sim — favela — que parece um caldo de la­boratório onde se desenvolvem todos os virus. O roubo é um deles.

João acaba de tomar seu café.

— Não esquece da batata, viu? Leva a sacola. — Não, mãe, dou um jeito. Levo sim.

O menino sai para o sol, com os olhos ainda cheios de sono, as pupilas se dilatando por causa da luminosidade da manhã. Sim, da manhã.

Tão linda, parece-me tão desperdiçada, será que alguém nota sua luminosidade?

João pisca, piscando meio cego, tonto, lava a cara, enfiando-a no balde que a mãe encheu na véspera de água, enxuga na manga da camisa, deixa o resto para o sol secar e vai ao encontro do tra­balho.

Já a rua dos bairros operários se movimenta, é a hora das bal­conistas, das tecelãs, de alguns estudantes que precisam andar a pé muitas quadras, e esse transar de lá pra cá, quer dizer esforço, luta, trabalho, vida.

Mais para lá, um morro verde, verdejante, tentador, onde João sabe existirem nas árvores, passarinhos e talvez, bem dentro, entre a galharia, uma lebre.

Passarinho tem, sabia ele, já viu nos raros domingos em que penetrou na mata, só lá no meio não, sem botas, não, seu Antônio, o garrafeiro, foi caçar e uma coral enroscou bem na perna dele. Não chegou a morder, o cano da bota era liso, ele sacudiu a perna e ela, que mordendo, cega ou mata a vítima, fugiu por entre as folhas podres. Assim contou seu Antônio, amigo de João.

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12 ODETTE DE BARROS MOTT

Enquanto caminha, João olha o chão, sempre é possível en­contrar alguma coisa, moeda, chaveiro, cigarro não , não gosta do resto dos outros. Tem nojo, certa vez viu um homem com baita fe­rida na boca. E daí ficou com esse nojo, até deixou de fumar. Nun­ca mais. Podem os outros meninos caçoar dele! Que importa, se tentar, vomita. A ferida era mesmo feia.

Caminha, o sol é um amigão, o movimento da rua alegra. A distância que separa a favela da feira é grande, andar assim na fres­ca da manhã é gostoso. Tudo parece leve, ar, corpo, cabeça. Mais tarde, ao voltar, aí sim que é duro, cansado de carregar sacolas e puxar carrinhos.

Perto da feira, sete e pouco, sente o movimento seu conhecido e acelera os passos. Se for esperto, num dia de sol assim, dá pra fa­zer quatro carretos, se dá. Também é preciso que as freguesas não fiquem conversando, todas parecem se conhecer. Ê um tal de se beijar, que não acaba mais. João se impacienta.

Logo de manhã, tem uma freguesa, mulher seca, alta, pouca prosa, paga bem. Compra pouco e rápido. Tem o Zé intrometido que quer fazer o carreto dela. Tão boa freguesa, não é das que têm amigas, que fica batendo papo à toa, ele que arranje uma igual. Tem tanta mulher fazendo compra!

Vai logo ao descer a rua, procurando, vê na esquina a cabe­ça grisalha e o rosto murcho da tal.

— Carreto? — Deu bela corrida, porque o Zé já ia se apro­ximando, o peste, descarado e filão!

— Sim, João, bom dia.

— Bom dia.

Pega o carrinho, ela não leva sacola. Ainda é cedo, os cami­nhões atravancam tudo. Perigoso, é preciso estar atento, olhar bem, um dia, a roda de um passou leve na roda do carrinho e atravessou tudo. Aquela mexida de ovos, verdura, caldo de laranja. Ainda bem que não foi com ele, coisa mais besta. Por cima de toda aque­la confusão, a dona ainda xingou, o homem do caminhão berrou e o pobre do Roberto, que fazia o carreto, bobinho, só vendo, chorou muito com medo de ir preso. Tinha culpa? Aconteceu, né, ele é mesmo bobinho, disse que levou muita pancada na cabeça em pe­queno. Idiotou o coitado.

Caminham. O movimento ainda é fraco, lá pelas nove horas é que fervilha. A freguesa é esperta e o carrinho está quase cheio. Metódica. Primeiro, percorre a seção de frutas, escolhe, olha, exa­mina os preços. Depois compra e dá o dinheiro para João pagar, confere o troco, enquanto passa para outra barraca. Desse modo, adianta o expediente. Ela explica, gosto de menino esperto e João com ela tem que se virar, senão ela pega outro carregador.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 1.3

Na seção de frutas, é gostoso trabalhar, os fruteiros oferecem sua mercadoria para as freguesas experimentarem e os carregadores entram na partilha. Nas barracas de queijo, de bolacha, às vezes, um pedaço de salsichão. Legal mesmo. Tomate também ele gosta e vai comendo. A freguesa se diverte, você passa bem, hem, João?

Eu penso, ele aproveita nas feiras pelos neutros dias de jejum. É como o dromedário, come e bebe bem, enche o bucho, antes de atravessar o deserto.

Terminadas as compras, deixam a feira, logo três quadras além, é a casa da freguesa, antes passam pela padaria. Às vezes, ganha um pãozinho doce. Essa freguesa ele não quer perder, é a mais ba­cana de todas.

Mas, nem todas são iguais, algumas bem implicantes e exigen­tes. Tem uma que leva além do carrinho, três sacolas. Peso dana­do! e ele que se vire sozinho. Um dia, deixou cair a cesta com mo­rangos. Foi uma bronca tremenda, nem gosta de pensar.

Assim, a manhã passa, com variantes. Uma freguesa precisa de carreto até o carro, outra mora longe, no fim da ladeira e o carri­nho cheio geme na subida.

Tem uma que conversa, ele até já sabe de seus filhos e marido. É uma professora que fala de livros, estudos, dá revistas velhas e roupa, de vez em quando. Na Páscoa, ele ganhou chocolates.

No final da feira, meio enjoado de experimentar frutas, com trinta cruzeiros no bolso, que ele cuida bem, tem muito esperto sol­to por ali, sacola cheia de verduras, colhidas no chão, debaixo das bancas ou fez a troca pelo serviço de ajudar a carregar os cami­nhões. João sente cansaço e fome. Fome de comer um cachorro--quente, por exemplo, que a mulher vende, mas custa três cruzeiros. Tem cebola, tomate e a salsicha nada no molho, estufada, só de pensar, a saliva sobe na boca, mas o melhor mesmo é não pensar e levar o dinheiro para casa.

O dia vai em meio. Bonito como que. A manhã ficou longe, o sol adquiriu forças, o danado, e queima sem dó. Também é fe­vereiro, verão, tempo de sol e calor.

Sol, calor, desidratação e paralisia. Tem vacina, não tem? En­tão não toma quem não quer. Assim também pensei uns tempos, mas, sei lá como me explicar, nós vamos entender melhor no de­correr desta visita — vai ser muito difícil atravessar a casca grossa do conformismo, da ignorância, da segregação em que sempre vi­veram os favelados e fazê-los compreender e aceitar a vacina. É natural que no verão, as crianças tenham paralisia, desidratação. Essas não são doenças que preferem as favelas? Até elas parecem mesmo ser faveladas, elas próprias.

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14 ODETTE DE BARROS MOTT

A mãe, antes de ir para o trabalho, deixa sempre a comida pronta. Agora a caminhada cansa, tem ladeira para subir, o barra­co fica quase no morro. Só um cômodo, mas a mãe, isso que é legal, não paga aluguel.

O sol esquenta bravo, de manhã, o danado tava mansinho, gos­toso de sentir na pele, assim torrando, não dá pé, não.

João suado, cansado, atravessa ruas, foge dos automóveis, é mestre em dribles, todo o mundo maluco, esses motoristas, não viu, não, seu, quase me pega.

Finalmente, chega a casa, logo na porta, encontra Carlos cho­rando.

— Que aconteceu? — Tou com dor de barriga, doi muito. — A mãe deixou a comida pronta? — Deixou sim, o Pedô não deixou eu comer, disse que é pra

esperar você, ele disse que bate neu. — Vem comer. As meninas devem ter ido para a escola que começou a fun­

cionar esse ano, no bairro vizinho. Se não ficaram pela estrada, pe­dindo. Elas comeram, sim, porque tem pratos sujos no chão, bem podiam ter lavado eles. Olha a panela, um mexido de feijão, caruru que dá muito no matinho, e farinha. Só, acende o fogareiro a car­vão, chama o irmão, cinco anos, loiro, cabelos despenteados, caindo na cara suja, de nariz ranhento. Desce a cobrinha e ele chupa. O peito chia, dilatado pelo esforço da respiração.

— Onde está o pestinha do Pedro? — Foi s'imbora na casa da Tatá, não deixou eu ir junto, disse

pra eu não acender o fogo, minha barriga dói. — Vai começar? Cala essa boca, espera um pouco, não vê que

tou esquentando a comida? Enquanto aquece o virado, lava algumas folhas de alface, põe

sal e comem. — Onde você vai, João? — Vou descansar, seu Antônio já passou? — Sei não; você vai puxar o carrinho? O Garoto tá doente?

Deixa eu ir? Fico obediente.

— Passou ou não passou? A mãe disse pra eu ajudar seu An­tônio, você precisa ir no médico ver esse catarro, não deixa nem a gente dormir. Puxa! Vocês dois precisam apanhar, lava os pratos, não quebra eles.

— O Pedô sumiu, ele podia ajudar.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 15

— Deixa a mãe voltar eu conto tudo pra ela, quando seu An­tônio passar, você me chama, não saia da porta, tá? Me chama, ouviu?

João deita no colchão, espicha o corpo e relaxa. Não dorme e pensa. Já tava na hora do Pedro fazer algum servicinho, é muito malandro, tira o corpo fora e vive molecando por aí, no bando, sabe lá onde. Um dia acontece uma coisa, já disse pra mãe e acontece mesmo. A turma não respeita muito, até roubar frutas da feira, roubam. Um dia viu ele pedindo esmola na estrada, quando os car­ros paravam. Perigo! A mãe não pode com ele. Já dava pé pra ajudar seu Antônio dobrar os jornais, descarregar as garrafas, um servicinho leve. Ele lá no Ceará pegava na enxada com o pai. Até que era bom, se era.

Trabalhar na feira, é bacana, exige força. As donas não gos­tam de carregadores fracos e muito pequenos. Só aquelas que pa­gam pouco.

Hoje deu um galho, como vai se arranjar, não sabe. Aquele peste do Gorila, deu pra exigir taxa, como ele falou.

— Taxa?

— É isso mesmo, um cruzeiro por carreto. Fico de olho, nin­guém escapa, ou paga ou não entra mais na feira.

— Ué, que é isso? Eu faço o carreto e você quer o dinheiro?

— Sou o mais velho, o chefe dos carregadores e você paga ou cai fora. Na boa ou no soco, tá?

— Nunca vi isso.

— Agora tá vendo, seu frouxo, de hoje em diante, é o cara aqui que manda e vocês obedeçam, s e n ã o . . .

É grande mesmo, maior que todos, já com um começo de bar­ba, aquela cabeleira a se esparramar, despenteada. Um macaco, daí seu nome — Gorila.

Depois dessa conversa, João fez seu segundo carreto. Então resolveu se informar bem sobre o assunto. Não é fácil não , dar um cruza por carreto que faz!

Essa freguesa é moça e João cria coragem. Ela conversa, faz perguntas.

— João , vocês brigavam? Vi de longe a cara brava daquele cabeludo. Cuidado, ele é bem grande.

— A senhora sabe o que é taxa?

Caminhavam para a feira.

João deitado rememora tudo. Quer depois conversar com seu Antônio, grita lá do colchão, ele ainda não passou, Carlos?

— Não, João , tou aqui esperando ele.

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16 ODETTE DE BARROS MOTT

— Taxa? Sei sim, João, taxa sobre o quê? — A gente agora tem que pagar taxa do carreto. Pára e fica à espera da resposta, testa franzida, meio surpreso

com a novidade. Um cruza por carreto, eles fazem força na subi­da, quase se arrebentam e o Gorila fica encostado nos carros, fin­gindo que guarda eles e ganha os cruzas, tá certo?

Olha o forro de madeira podre do barraco, um rato rói, roc, roc, roc, sem parar. Acaba comendo toda a trave, um dia, o teto cai. Roc, roc.

Não, João, a Prefeitura vai dar um jeito nisso, acaba com a Fa­vela do Sapo.. . E vocês vão levantar barracos na beira do rio, tá? Ou, quem sabe? vocês ganham casas, não barracos pra morar.

— Como ele falou? pergunta a freguesa. — Ele disse que ele é o chefe dos carregadores e que cada um

paga uma taxa de um cruza cada carreto, tá certo?

— Certo? Ele é o dono da feira? Esperto, isso sim, aproveita de vocês, menores. Vou falar com ele depois das compras.

Ao sair da feira, o Gorila faz sinal para João, como quem diz, depois me passa o cruza. Esfregou o polegar de encontro ao indi­cador. A freguesa viu. Foi falar com ele.

— É você que anda bancando o valente, cobrando taxa, onde se viu isso?

— Tava brincando, dona, juro que tava, ele não entendeu a brincadeira. Menino medroso, caga no dedo.

— Que jeito de falar é esse? Você precisa respeitar as pes­soas mais velhas. Vamos, João, você não pague taxa nenhuma e não deixa ninguém pagar, ouviu bem? Dou parte na polícia.

Depois outro e mais outro carreto, o dia esteve bom, feira mo­vimentada, frutas bonitas, céu azul.

No final da feira, todo o movimento desordenado, a manhã também acabando, quando vai para casa, na esquina, carrancudo, o Gorila. Paradão, encostado no muro, malandro.

— Dá cá a taxa. — Você disse pra dona que era brincadeira. — Brincadeira? Você foi dedar pra freguesa, passa a gaita —

e começa a revistar o menino. João se esquiva, vem gente e o Go­rila disfarça, finge que brinca.

João escapa, atravessa a rua, o sinal abre e ele foge, do outro lado, o Gorila espera a fileira dos carros passar.

Agora, está pensando e isso o preocupa — a boa situação vai mudar. A feira, as freguesas, aquela tão boa que lhe dá as frutas

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 17

para provar . . . medo toma conta do João . Será que o Gorila vai continuar a exigir? Que fazer? Somente há uma saída, mudar de feira. Acontece que aquela é a feira de gente rica, as donas pagam bem. Faz quatro carretos e ganha mais que seis em outro bairro. Custou tanto a arranjar um lugar, a ser aceito, aquela luta. Agora, vem o Gorila com essa. A feira do bairro mais perto da favela é mixuruca, mulher barriguda carrega as sacolas.

Tudo isso pensa — e se pagar um cruza por carreto? Quatro , cinco cruzas no final da feira — o preço de um carreto pequeno, de um cachorro-quente e guaraná, aquele merda do Gorila, só por­que é forte, grandão.

O que fazer?

E seu Antônio que não vem, o melhor é ir procurar ele, ver se tem trabalho, recolher garrafas, dobrar jornais velhos.

Lá fora, o calor abafa.

Carlos não estava mais na por ta do barraco. Onde foi o pes­te? E Pedro?

N O S U M A R É

— Filhinho, acorde, são 7 horas.

André acorda, olha a mãe, pisca o olho e se volta para dor­mir novamente.

— Vamos. — Tira as cobertas. O menino se encolhe mais:

— Puxa, mãe, deixa dormir sossegado. Nem isso a gente pode fazer?

— Pode sim, é só dormir mais cedo, não ficar grudado na te­levisão até às 11 horas.

— Você perdeu um filmão, mãe, tava bom mesmo, de detetive, tão misterioso que até no final eu não sabia quem era o ladrão. Imagine, um fino de detetive, descobriu tudo, tudinho, não deixou bandido vivo. O fino.

Enquanto conversa, se levanta, toma banho. O quarto tem ba­nheiro privativo.

A mãe põe a roupa na cama, junta os sapatos e ouve o meni­no que sai se secando, pisa no carpete do quarto onde deixa a mar­ca da água que escorre do seu corpo.

— Já avisei você para não pisar no carpete com os pés mo­lhados, enxugue-se no banheiro, André .

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18 ODETTE DE BARROS MOTT

— Ué, você veio brigando, dizendo que estou atrasado, você viu o filme de ontem? Não tava com a televisão ligada? O ladrão roubou uma jóia, imagine que esperto, escondeu ela na boneca da menina, ele era namorado da babá. Depois, teve que seqüestrar a menina, porque ela não largava a boneca. Bacana, mãe!

— Agora, vamos tomar café, não vejo nada de bacana nessa estória, roubo e seqüestro. É só isso que você vê na televisão?

— Puxa, mãe, você está nervosa, hein? Dá bronca por qual­quer coisa.

— Não , nada disso, André , é que . . . Olha, vamos descer, seu pai está nos esperando.

André desce correndo e encontra o pai que passa os olhos pe­los jornais.

— Sequestros, roubos, assaltos, mortes, guerra.

— Só isso? Ê pouco, no filme de ontem, tinha envenenamento. Aí no jornal tem? Não? En tão falta ainda, pai.

— André , é assim que você pensa, filho?

— Oi, mãe, não sou eü não , é a televisão, o jornal que o pai lê alto todas as manhãs, você n ã o ouviu? O jornal mente? Pai, o que dá mais no jornal? Lê logo.

O pai dobra o jornal.

— Bom dia, André , como passou a noite?

— Bem, pai, e você? Tudo azul? Lê o resto, tá? Preciso me instruir, você sempre diz assim.

— Também dormi bem, obrigado. Você quer saber o quê? Política?

— N ã o , pai, bangue-bangue, assalto, briga.

— Bem, o resto não tem importância, já que você não se in­teressa pela política.

Tatiana toma seu suco. Que mundo , pensa, que mundo estra­nho! Um dia mudará?

— Pai, tá na hora. Vamos , não posso chegar tarde. Ciao!

— Vou com você, hoje tenho um cliente às oito e meia. Veio de Mato Grosso, está examinando umas escrituras de terras.

— Até o almoço, mãe.

— Até logo, queridos, um bom dia para vocês.

— Você, Tatiana, tão quieta, que tem? Está doente? Vai tra­balhar cedo?

— Sim, tenho de estar às nove horas no Juizado. Vieram al­gumas assistentes do interior para conhecer nosso trabalho e vou ser cicerone.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 19

— Bem, volte alegrinha, não gosto de ver você triste. Parece que fica com poluição no rosto, deixa o céu azul aparecer nos seus olhos. Quando você está preocupada, eles escurecem. Querida, ouça o que lhe digo sempre, desligue, não participe tanto, você já tem seus problemas como dona de casa, como mãe.

Ela acompanha os dois até a porta onde se despede com beijos.

No jardim que circunda a casa de Tatiana, os pássaros vêm comer amoras. Es tão maduras .

Já sei, pensa Tatiana, já sei, ontem caiu aquele aguaceiro e talvez o índice de poluição tenha diminuído. O dia está mesmo lin­do, vontade de sair por aí passeando, sem compromissos. Talvez no sítio, lá deve estar uma gostosura e as mangas amadurecendo e ser­vindo de comida para os sabiás. Ou já passou a época das mangas?

Tatiana tem um Chevette clarinho, ama a casa, a família, os amigos, gosta da vida em si, somente o que atrapalha sua intensa alegria de viver, são os noticiários dos jornais, que o marido lê tão insensivelmente todos os dias, em voz alta, sequestros, roubos, crian­ças de permeio e . . .

Vou já dizer o que mais. Tat iana é assistente social do Juiza­do de Menores e ainda, apesar de já ter dez anos de contato com todos e tão vários problemas que envolvem as crianças abandonadas, faveladas, não se acostumou com a brutalidade, o trágico de tudo isso. Sente a desigualdade imensa entre a vida que leva, o seu dia--a-dia e aquilo que constata lá fora, no trabalho.

Enfim, que remédio? E antes de sair, dá algumas ordens à co­zinheira, à copeira, entra no carr inho e começa seu dia.

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NA FAVELA

João começa um novo dia, com grande problema pela frente. Não vai mais à feira do Sumaré, como decidiu depois de muito pensar. Precisa fugir do Gorila. O remédio é ir à feira da Vila Madalena, não tão boa, freqüência mais pobre. O pior é arranjar um jeito de entrar, de começar a fazer carretos, os carregadores já têm freguesia certa e olham com desconfiança qualquer novo pe­netra.

Há ainda outro problema, a mãe não foi trabalhar, desde on­tem, precisou ir atrás dos meninos. Pedro e Carlos não apareceram à tarde. Não voltaram nem para dormir. Sumiram sem deixar sinal.

No dia anterior, segunda, Pedro já não estava. Somente Car­los. Depois, João saiu com seu Antônio e foram buscar jornais ve­lhos numa casa. Ao voltar, não os encontrou. As meninas disseram que eles tinham ido pedir esmolas. A mãe não gosta, é perigoso. Como os pestinhas não voltassem, já eram seis horas, foi falar com seu Antônio, o garrafeiro, e não o encontrou. Foi outra vez pra cidade ou tinha ido soltar o Garoto no pasto?

Voltou pra casa, nada dos irmãos. Andou pela favela para ver se 'os encontrava antes da mãe chegar. Em todos os lugares conhe­cidos, no bar onde costumavam ver televisão, perto do ginásio no bairro próximo, os alunos compram pipocas e sorvetes e sempre dão um pouco, os dois não têm vergonha mesmo, mania essa de querer comer tudo o que vêem.

Nos barracos vizinhos, ninguém viu os meninos. Um velho dis­se que pela tardinha, três, auatro horas, eles passaram comendo um pedaço de maçã, rindo e jogando pedras e foram para o. lado do riozinho, mas, onde há água pra ser rio de verdade? Rio é 0 Tietê, lá do lado da marginal norte e João vai pensando no rio pra es­quecer os irmãos, aqueles bosticas sem-vergonhas, e onde encontra­ram as maçãs?

O sol já acabou sua tarefa e se dispõe a passar de um lado para o outro da terra. No céu, a lua, um pedaço de lua, a foice de

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 21

cortar grama, bonita, acompanhada pela estrelinha, quem sabe se eles já voltaram. Foram mais longe do que o costume. De noite, não ficam longe de casa, têm medo do escuro, fantasmas e assaltantes. Às vezes, chegam correndo, bufando, quando se atrasam. Um dia, um bêbado correu atrás deles, bem feito!

Sente fome e muito cansaço e tristeza. Essa estória de mudar de feira, não agrada muito, que fazer? Precisa conversar com seu Antônio. Ele sabe resolver muitos problemas. Era tão bom ir na feira do Sumaré.

Volta, já está muito escuro, passa por um atalho, encurta ca­minho, chega em casa, a mãe está fazendo comida, as meninas brin­cam na porta com outras crianças. Olha e não vê os irmãos.

— Onde está o Pedro?

— Ué, não tá com você? A mãe pensa que eles tá com você.

Entra no barraco sem ouvir o resto.

— Mãe, e os meninos?!

A mãe olha preocupada: — Não tá com você?

— Não, mãe, voltei da feira, depois fui com seu Antônio na Lapa. Depois voltei e não encontrei eles, fui procurar mas , nada não. Pensei que eles tivessem ido por aí, pedir.

— Pestinhas, já disse pra eles não sair daqui, a gente não é pedinte.

Assim, sem janta, foram cada um de seu lado procurar os pes­tinhas e nada. A mãe passou a noite chorando e não deixou nin­guém dormir. Depois, logo manhãzinha, foi à Delegacia e ele, en­frentar a feira desconhecida, os novos colegas, dia azarado.

De longe, sente a feira, já a sente em toda sua pele, seu chei­ro meio doce e azedo, seu zum-zum, a alegria que espalha no bair­ro. Mulheres com sacolas, carrinhos e crianças.

Fica olhando com olhar examinador, bem menor que a do Sur maré e as donas devem pagar pouco.

O dia é gostoso, uma brisa alvoroça a cabeleira revolta das ár­vores, umas perucas engraçadas, verdes e crespas. O sol não re­solveu ainda esquentar e brilha festivo.

João pára na esquina, sem coragem de passar, de entrar na barraca da feira, de chegar até sua barriga, ruidosa, colorida. Bar-rigona farta!

Vê de longe e examina os carregadores, seus desconhecidos. Nenhum amigo. Será que ali também cobram taxa? Será?!

Espera mais um pouco para criar coragem.

Enfim, resolve.

— Carregador, dona?

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22 ODETTE DE BARROS MOTT

— Essa, não , não vê que ela é minha freguesa?

— An, não sabia.

— Não pega freguesa da gente, seu fresco — diz baixo um menino já grandinho — n ã o pega que dá galho.

— Menino, quer levar minhas sacolas?

— Quero, dona, a senhora não tem carregador? Sou novo na feira.

— Que coincidência, também é a primeira vez que venho nes­ta feira, mudei ontem. Será boa a feira?

— Não sei, não , dona, a senhora deixa eu ser seu carregador?

— Venho fazer as compras cedo e gosto de menino esperto, você sabe contar bem?

— Sei, sim senhora, experimente eu, dona, sou esperto.

— Então , combinado, me espere aqui na esquina, todas as terças às sete e meia. Não se atrase, ouviu?

— Tá bem, venho cedinho, não se esqueço não.

Fez esse carreto e mais três, quando os outros carregadores es­tavam ocupados. Sempre pensando nos irmãos, teriam voltado? es­tariam perdidos? Vir de tão longe, o Ceará, toda aquela viajona de caminhão, pra se perder na favela. Antes tivessem ficado por lá, sempre havia macaxera e se na seca, nem ela tivesse, era só mudar uns tempos pra cidade, o pai trabalhava como pedreiro, a mãe la­vava umas roupinhas do hospital. Ficavam na casa da avó. Depois voltavam, quando as chuvas chegavam, para o sitiozinho. Pai foi ouvir a conversa do padrinho, recebeu a carta e foi só tempo de arrumar a roupa, uma miserinha e vir. Padrinho disse que aqui era bom, mas mentiu. Ainda bem que está pensando nisso, se falasse, ia mal, afilhado falar que padrinho mente.

Depois de terminada a feira, se oferece para carregar os cami­nhões e torna a pensar na vidinha lá no Ceará.

Que azar, não , João? Seu pai ouvir o padrinho, tão otimista a dizer que a cidade grande, a capital . . . encher a boca, escrever com letras maiúsculas, a capital. Pois é, essa é a ilusão de muitos que vêm para cá, pensando encontrar moedas douradas, pois é, João.

João volta da feira, sacola no braço, cheia de verduras reco­lhidas nos caixotes, onde os feirantes despejam o resto que não foi vendido. Agora, a distância é menor, assim como o lucro. Ganhou Cr$ 20,00 nessa feira, pagam cinco por carreto, que fazer? Ou isso ou o Gorila.

Nem vê o dia, se o céu é azul, se nos jardins, as gramas estão verdes. Ou se o movimento dos escolares, nessa hora, alegra o bair­ro. Está vendo somente seu problema, pobre João.

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Fazendo as contas, dá na mesma, mas, há alguma coisa em João que lhe diz n ã o estar certo ele trabalhar assim e ser explorado. Lá na feira da Vila Madalena , pobre , simples, ganha menos. Tá certo! O errado é ter o Gori la a exigir taxa.

Ao chegar em casa, as irmãs não estavam, mas encontra a mãe chorando e quatro vizinhas, falando alto, t rocando idéias. Os me­ninos? Nem precisa perguntar, é só olhar a cara da mãe e a exal­tação das vizinhas.

João sente cansaço, tem o rosto afogueado pela subida, o chei­ro forte vem lá de baixo, do campo de lixo. Já está acostumado, às vezes, com o calor, ele sobe mais forte, aí o fedor torna-se insupor­tável.

— Mãe, e os meninos?

— Nada, a polícia vai procurar — explica dona Janda, a vi­zinha do lado. — Acho que até vai vir repórter na favela. Tinha um lá na Delegacia que anotou o endereço daqui.

— Você não viu eles por aí?

— Bem que olhei, mãe , não vi não. Passei pela igreja, nada, pela escola, perguntei pros meninos, eles não estavam lá e ninguém viu eles.

— Pestinhas, vai ver que fizeram alguma arte e estão com medo de apanhar. Até agora sem comida, dormiram onde? Sua comida tá aí, coma, João.

Come, lava as folhas de verduras, enfim, servem de acompanha­mento para o feijão e a abóbora, a mãe chorando e as mulheres, cada uma com seu palpite, com sua opinião.

Aqui paro um pouco e vou falar sobre um assunto em que ve­nho pensando — a solidariedade simples do pobre. O doar-se qua­se sempre, part icipando, chorando junto, alegrando-se. Lá, as mu­lheres mesmo as de barracos distantes, consolam e dão palpites. Na classe média e rica há uma certa etiqueta, receio de se intrometer, de não estar certo, de não ser bem aceito. Eu penso, não seria mais humano, chorar junto? Participar da alegria do outro?

Lá estão as vizinhas, palpi tando, trocando idéias, participando. A mãe perdeu dois filhos e todas são mães.

— Será que foi atropelado?

— Deus livre, põe a boca pra lá, comadre.

— Tão por aí mesmo, molecando, escondido.

— Desde ontem?

— Ê, se perderam.

An! e a mãe chora mais e mais, o melhor é ir procurar os me-

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ninos. Vou por aí, mãe, quem sabe se acho eles escondidos nal­gum canto.

— Tá bem, filho, vê se não demora. — Santo Antônio dos Perdidos ajuda. João sai, deixa a favela e toma outra direção, aquela que ter­

mina em bairros desconhecidos, onde nunca foi, talvez os dois ti­vessem se desviado por lá.

A manhã se entregou ao dia que prossegue sua viagem. A tar­de é mansa, amena, o sol abrandou. Meninos passam velozes nos "skates", dançam de um lado para outro, vôo de pássaro, asas nos pés.

Três, quatro horas nos relógios de todas as marcas exatas e nada de João encontrar seus irmãos, aqueles pestinhas, apesar de olhar e vasculhar tudo. Nem sabe por que, até na porta de um hospital foi, mas não teve coragem de fazer perguntas, ficou por lá, olhando, quem entrava e quem saía.

Também ele, puxa, se não fosse esperto, se perderia. Bacana, São Paulo é grande mesmo, que baita cidade, começa e não tem fim. Tem. deve ter ou é começo no morrinho de sua favela, os bar­racos de latas, de madeira, de papelão, vão dando vez, um a um às casinhas de barro, de tijolos, aumentando mais e mais, até descer o morro, se juntar, crescer em ruas, em bairros, agora ajardinados, quanta gente, supermercados, carros e mais gente! Incrível mesmo, quanto automóvel, chegou a ver três na garagem de uma casa, poxa! Gente rica, deve ser auem? Ele pensa, o presidente, isso mesmo, aquele que manda no Brasil.

Mas, nada dos irmãos. Volta cansado. Vamos ver, amanhã, quarta-feira. Amanhã é outro dia. A noite cai, indecisa, de um lado a lua aparece e lá bem para

lá, ainda há sol.

NO SUMARÉ

Também aqui é novo dia e como em todas as manhãs, exceto nos domingos e feriados, dias de descanso, não há aula, que nin­guém é de ferro para trabalhar e estudar sem descanso. Máquina que é máquina, forçando, quebra!

— André, acorda, vamos filhinho, sete horas.-E ele levanta--se, sonolento, a tal televisão com seus programas atraentes, lava-se,

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veste-se e desce para o café. E de novo, já é hábito antigo, o pai a ler o jornal em voz alta. Seria mais fácil ligar o rádio e pegar o jornal falado, assim o pai não precisava ler alto e tomar seu café frio.

— Crime, sequestros, assaltos. — Puxa, mãe , quanta coisa no jornal. A gente até pensa que

é invenção dos repórteres. No colégio, em casa, a vida é tão boa, sem complicações, no jornal , pô , é só encrenca. Por quê?

Por quê? Os pais se olham. Que "por quê" difícil de ser res­pondido, porque o homem não vive bem, igual na paz e no amor, já não digo na sua possibilidade material, mas, pelo menos a diferença não ser tão grande? Vamos , responda Tatiana, que é isso, não sabe? André vai ficar sem a resposta?

— Já é tarde, André . Depois conversaremos, se o trânsito não for bom, você chega atrasado.

O dia, meio encoberto, indeciso, chove? faz frio ou calor? Isso é com o sol, o céu sujo é a poluição, os caminhões soltando fumaça negra, as fábricas sem filtros.

Também como resolver tudo? Se São Paulo é o maior centro industrial da América do Sul, o país do futuro? Bacana.

— Esquenta o carro, André , enquanto vou pingar colírio nos meus olhos que ardem desde agora cedo. A poluição deve ser tre­menda, um índice bem alto, mas São Paulo não pode parar.

Da porta, Tatiana ainda lhes joga um beijo. E contrariamente à manhã indecisa meio lá, meio cá, chove,

não chove, o sol aparece ou não , Tatiana se arruma bem, vai acom­panhar algumas assistentes vindas do interior em estudos. Elas já estavam acompanhando o trabalho no Juizado desde a segunda-feira.

Gosta do trabalho e é com prazer que força seu carrinho a lu­tar contra o trânsito, abrir caminho e realmente feliz, estaciona em frente ao Juizado, onde vai encontrar as colegas. Mais tarde, toma­rão uma viatura oficial e Tat iana mostrará algumas instituições do Juizado às assistentes sociais visitantes.

ISTO A C O N T E C E U O N T E M

( S E G U N D A - F E I R A )

Pedro e Carlos, depois que João foi com seu Antônio, comprar jornais, saíram por aí, não t inham projetos e nem imaginavam algo, o resto do dia era deles, sem limites e controles. A mãe e João tra­balhando, as meninas não contavam, se eles ganhassem um dinheiri-

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nho, levavam doces para elas e elas ficavam de boca calada.

Saíram da favela, entraram numa rua, viram um cachorro sem dono, jogaram pedras nele e quando uma que outra acertava, o po­bre gania e isso dava imensa satisfação aos moleques.

— Pontaria nele, Pedô, você errou, desta vez eu acerto, qué vê?

O cachorro na frente, eles atrás, o dia também caminhando e as ruas diferentes, tão cheias de novidades, o vira-lata devia co­nhecer todos os caminhos, ia numa corrida só.

Esqueceram-se logo dele, que se escondeu em algum beco. Ha­via uma casa vendendo máscaras, confetes e fantasias. Um mundo de casas comerciais, rádios berrando, televisões coloridas com pro­gramas infantis! Poxa! É Natal , Pedô? sei lá Caco, acho que é sim, ói aquela casa cheia de bicicletas e de bolas. Bola Pele!

Param, olham, andam, acompanham um ou outro comprador, ficam boquiabertos perto de um vendedor de cocada baiana, tão es-curinha, cheia de pedações de coco, deve estar gostosíssima; ganham um pedaço, o dente de Carlos dói, está esburacado demais e ele chora.

— Cala a boca, chorão, não vê a mulher olhando?

A mulher tem cara boa, eles pedem um dinheirinho que a gen­te tá com fome. Não tinha nada em casa p ra comer, e a mulher cheia de pacotes, fica com dó e remorso, comprara um pacote de confetes para o filho também de seis anos, e dá dois cruzeiros pra repartir, viu?

Depois outra e mais outra e a cara triste, fingida e o bolso re­cebendo as notas e moedinhas e vão num canto escondido contar quanto têm e nem sabem que já são nove cruzas pra um e onze pro outro. A gente junta e reparte, né? N ã o precisa chorar, Caco, você é c h o r ã o . . . Eu tenho mais nota e você moeda.

— Vou comer um pastel e beber garapa, como aquela vez que a gente veio, já faz tempo, com a mãe , você qué?

— Quero.

O pasteleiro serve, eles pagam, tudo azul, mesmo com uma nes­ga cinzenta do céu lá fora, mas eles n ã o viram ou se viram, não sa­bem bem o que aquilo significa, nuvens se amontoarem do outro lado e bem escuras. Depois, t rovão, corisco e uma tempestade vio­lenta de verão. Vento e a chuva caindo pesada, como água despe­jada do balde — chuá!

— Puxa, a gente molhou tudo, vamos voltar? Tava bom o pas­seio, agora acabou, vamos s ' imbora?

E voltam. Mas, onde o caminho de volta, aquele que termina na favela do Sapo?

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 27

— A chuva lá forte, é melhor a gente esperar ela passar, Cacô.

— É, Pedô, não tou vendo nada, onde a gente se esconde? Naquela porta ali, tá?

Correm ensopados, t remendo, que com a chuva e o corpo mo­lhado veio o frio.

Treme que treme, t remendo, tremelicando, dentes batendo, olhos vermelhos, castigados, tentam se esconder da chuva. Mas é tão fácil ser chuva e cair por sobre dois garotinhos que se resguardam debai­xo de uma árvore pouco repolhuda, bem pouquinho.

Depois, como veio, ela passou rápida. A água desce, enxurra­da gostosa pra receber barquinho de papel, mas, os dois somente pensam em voltar, será que o dinheiro molhou no bolso, será, sei não, Pedô, acho que o meu tá molhado, sim. Deixa ele senão ras­ga, em casa, a gente seca no chão, tá pingando, vamos voltar? Tá bem, a gente volta.

V o l t a m . . . ou pensam que voltam e cada vez mais se distanciam da favela, agora estão em direção do Sumaré, sobem a Avenida Hei­tor Penteado e de repente, Carlos recomeça a chorar, tou cansado, quero voltar, o João vai bater na gente.

— Cale a boca, peste, você veio porque quis, aquela mulher tá olhando a gente. Olha aquele cachorro lá, não é aquele que a gente judiou ele? A gente segue ele, ele deve saber o caminho da casa.

E mais uma vez, seguem o cachorro sem jogar pedras agora, que é outro, sem destino também, sem lenço, cachorro não usa lenço.

Mas, o tal pára nas latas de lixo, nos postes e segue cheiran­do o rastro de uma cachorrinha mimosa, que a dona chama pra dentro do jardim. Lá fica ele, o vira-lata, namorando a cachorrinha do portão. A mulher vê os meninos que agora choram, os dois.

Chama-os pra dentro do jardim, o sol põe a cara de novo, com má vontade, mas, a chuva parou.

Já começa a anoitecer, o dia está para terminar, foi longo e movimentado, como será a noite?

A I N D A T E R Ç A - F E I R A N A ESCOLA D E A N D R É

Na escola, André, 7. a série, enfrenta as aulas. O colégio tem fama, pela sua criatividade e liberdade com que os alunos são tra­tados.

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28 ODETTE DE BARROS MOTT

Aprendem várias matérias, todas aquelas exigidas pelo Ministé­rio da Educação, os professores são bem qualificados.

Assim, o aluno que fizer o ginásio, depois o colegial, facilmen­te irá para a Faculdade. E esse Colégio, tão caro, recompensa por­que é mesmo ótimo, os alunos são todos destinados ao estudo su­perior. Qual deles, quem irá pensar em ser técnico, massagista, car­pinteiro ou costureira?

André estuda e vai ser advogado como o pai, seu caminho já está t raçado, apesar de o Dr. Júlio dizer que dá toda liberdade ao filho. Isso é verdade, mas, acontece que desde pequenino, sempre ouviu a mesma conversa: quem vai ficar com o escritório do papai? Andrezinho, preste atenção no que falo, quando você for advogado vai e t c , ou ainda, André , vamos passar a tarde no escritório co­migo?

Um dia, faz tempo, André devia ter dez anos, gostou muito de uma gráfica que foi visitar com os colegas e a professora. Gostou muito de ver os papéis entrarem brancos nas máquinas e depois saí­rem com todas as letras impressas. Gostou do cheiro da tinta, dos meninos t rabalhando com aventais sujos e manchados.

Ele mesmo, foi o único que sujou os dedos na tinta. Todos acharam graça no seu interesse. . . Chegou em casa, entusiasmado, contando tudo o que viu, tentando expressar seus sentimentos, seu prazer, sua alegria.

— Muito bem, você gostou, filhinho? — pergunta o pai. Óti­mo, é bom nos interessarmos por tudo, para um advogado é impor­tante o conhecimento geral das coisas. Você vai ser um ótimo ad­vogado, André .

E eu, fico pensando, não seria um ótimo gráfico? Conscien­cioso, amando o trabalho e feliz? Será que ele tem possibilidade da escolha livre, não dirigida? André? Dr. André . . . Bem, como fa­zer, o que fazer? Sei lá, é necessário uma revisão e ela deve come­çar já, pelos homens, vendo e compreendendo além do círculo que os limita. Mas, eu falava da escola ótima de André , jardim, árvo­res, um ninho de tico-tico na árvore, onde o chupim botou dois ovi-nhos e agora, as avezinhas pretas ficam o dia inteiro piando e cho­rando atrás dos pais adotivos.

Todos os dias, André e outros colegas vão ver as avezinhas, le­vando migalhas de pão.

O dia é o mesmo na favela, no Sumaré, a chuva de ontem pa­rou e como é verão, agora está caindo novamente.

Boa pancada, mas logo passará, é aguaceiro de verão. André e os colegas correm, fogem da chuva, mas acontece que

os alunos puderam ter o recreio no salão de jogos e ninguém se mo­lhou, não. Até foi mais gostoso, vendo a chuva forte bater nas ja­nelas e espirrar.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 29

Como ficará a favela depois do aguaceiro? Um dia, eu sei, a água invadiu os barracos até meio metro. Um bebê que dormia no chão, enquanto a mãe foi até a venda no bairro comprar feijão, é muito duro de se contar, então, como não terá sido para a mãe quando voltou? Que sorte, não , André , a chuva caiu forte e você aí no salão de jogos com os colegas, comendo seu lanche, rindo e brincando. Assim deve ser a vida de todos os meninos, igual à sua.

TERÇA-FEIRA, C O N T A N D O A I N D A O Q U E A C O N T E C E U NA SEGUNDA, Q U A N D O O S M E N I N O S F O R A M E N C O N T R A D O S PELA M U L H E R , E N C O S T A D O S N O P O R T Ã O , C H O R A N D O .

A mulher deu café aos meninos, mandou que eles ficassem ali, por precaução trancou o por tão , entrou na sala, tirou o telefone do gancho e ligou. Ligou para o Juizado de Menores, depois de ter procurado o número na lista.

— Alô, estou telefonando porque tenho aqui no jardim de mi­nha casa dois menores, devem ter 4-5 anos, sim, perdidos, encon­trei-os chorando, dei comida e não sei o que fazer com eles, não, já perguntei, não sabem onde moram, é numa favela. Anotem meu endereço. Está bem, até logo.

Desligou, voltou ao jardim com umas revistas, fiquem quieti­nhos que já vêm buscar vocês.

— A dona deixa a gente ir s 'imbora, nóis sabe o caminho, a mãe tá esperando e bate na gente.

— Não, esperem um pouco, vocês vão se perder e é perigoso ficar na rua de noite. Dou um jeito. Não precisam ter medo.

Ela entrou e os dois recomeçaram a chorar, baixinho, um en­costado no outro. Anoitecia.

Nem meia hora levou a viatura do Juizado para chegar até a porta da casa, duas vigilantes desceram e uma delas tocou a cam­painha.

— Pedô, a mulher chamou a polícia e ela vai prender e levar nóis pra cadeia. Caco, é sim, é o carro da polícia, e agora choram alto.

A dona da casa apareceu, abriu o portão e as vigilantes, en­quanto uma agradava os meninos, a outra conversava com a senho­ra e anotava seu depoimento.

Os meninos foram levados para a viatura. Ent raram no carro ainda soluçando, a mulher ficou com pena. Carlos de medo urinou

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30 ODETTE DE BARROS MOTT

na calcinha suja, chorou mais forte e ela foi pegar um pedaço de bolo, duas maçãs e deu para os meninos.

Assim, comendo, olhando a noite acendendo as luzes e os le­treiros que eles nunca tinham visto, nunca desceram da favela à noite para a cidade, saíram de casa às 3 horas. Não é, Caco, aquele peste de cachorro, que a gente seguiu, jogou pedra nele? Parece que é, Pedô, ele tá meio descadeirado, acho que é sim. E dão risada, des­cuidados.

E, menos chorosos, luzes, cachorro, maçã, o bolo, o passeio de automóvel, se vêem de repente, na sala de triagem do Juizado.

Encolhidos, se escondendo dentro de si mesmos, acabado o bolo, olham tudo assustados, com medo até de chorar, é capaz da gente apanhar.

— Onde está dona Zinha?

— Saiu para uma sindicância. E esses dois?

— Perdidos, uma senhora recolheu-os e telefonou para cá.

— Estão molhados. Por onde andaram?

— A gente andou aí e perdeu e eu quero voltar, Pedô e an, an. Carlos desanda a chorar.

— Fugiram de casa? Vamos, fale você que é mais velho. Estão com medo agora, mas, para sair de casa, não tiveram, não é?

A assistente quer resolver o assunto, sente-se cansada, o trân­sito!

— A gente fugiu, não, foi só pedir um dinheirinho.

— Sua mãe mandou? — Não , a mãe fica brava e o João também.

— Quem é o João , é seu pai?

— Não , o pai é Joaquim, tá no Ceará. João é o irmão grande da gente que trabalha na feira. Ele manda na gente quando a mãe vai trabalhar.

— Quantos anos ele tem?

— Acho que é. . . ele é grande, assim.

— Grande? Maior do que eu? — Não , dona, ele vai na feira, é carregador, ganha dinheiro

e fruta. A assistente que procede ao inquérito se enerva. Está mesmo

se atrasando, ameaça outro toró, ela sem carro e aqueles dois ali per­didos, por que se perder assim?

Por quê? Vou explicar: A mãe foi trabalhar, não foi? Eles não têm babá, nem creche e menos ainda maternal ou jardim de infância. Pela manhã, ficam com as duas irmãs, nove, oito anos, de tarde, com o grande João, 12 anos! Então? E foi aparecer aquele cachorro sar-nento. Tão bom atirar pedras nele, ótima distração e você está ener­vada porque eles se perderam?! Paciência, é preciso encarar os fatos como eles são realmente, e não de acordo com nossos desejos do

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 31

momento. Vamos continuar.

Pedro olha tudo com medo e susto, mas calado, e Carlos chora, limpa o nariz na manga, já encatarrada e suja.

A assistente chama a servente que íaz o turno da noite. São oito horas da segunda-feira.

Ela atende ao chamado, ouve as explicações e leva os meninos para o interior da triagem e os deixa num banheiro.

— Façam xixi, e se lavem, vou buscar roupa seca pra vocês. Ela também, seca, sem uma palavra de carinho. A roupa seca deve­rá dar mais calor que ela.

Abre o chuveiro e os meninos tiram a roupa e entram debaixo da água morna e sentem arrepios de prazer.

— Pedô, é gostoso, quentinho, a gente podia ter um chuveiro em casa, a água sai espirradinha, você tá me molhando, Caco, ué, você tá molhado mesmo! Dão risada e se esquecem da vida. A água caindo e eles encolhidinhos, debaixo dela. Primeira vez que tomam banho de chuveiro.

A servente aparece com a roupa e um pano para se secarem. Estende-lhes sem uma palavra. Já começa mal a noite, com esse trabalho.

Vestem a roupa, que deu para quebrar o galho, era grande de­mais, mas aquecia.

— Pedô, minha camisa é verde do Palmeiras e a sua vermelha. A mãe vai gostar de ver a gente com esta roupa bonita, posso levar ela, dona?

A dona não responde, junta a roupinha suja e molhada com ar de nojo e os empurra para uma sala onde lhes serve leite, café e pão.

Os olhinhos de Carlos brilham de satisfação, mais do que bo­linhas de gude ao sol, pouco se importa com o gelo da servente, ele está agasalhado, quent inho e vai tomar café com leite e pão .

Estão somente — Carlos com o virado de feijão e Pedro, com os biscoitos que comeram na rua. Ah! e os pastéis, a garapa, o bolo e a maçã!

— Pronto? Já comeram?

— Já, dona, sacode Pedro a cabeça, ele é a voz dos dois.

— Agora venham. Os dois novamente assustados, prontos a se entregar ao pranto.

— Bem, chorar n ã o resolve, vocês ficam aqui hoje, vão dormir ali — e lhes mostra uma cama. — Nada de barulho e nem xixi na cama.

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N A F A V E L A

João acordou como de costume, não ouviu as brigas e os choros dos meninos, então teve consciência do acontecido. Olhou para a ponta do colchão onde eles dormem, viu as meninas espichadas, lado a lado, folgadas, devem estar gostando, o colchão só para elas, onde foram parar aqueles pestinhas, tô cansado de tanto procurar eles.

Olha o vulto da mãe que coa o café, ainda não abriu a porta pra deixar as meninas dormirem mais um pouco.

Levanta-se quer chegar cedo à feira, porque é novo lá, só tem uma freguesa certa, é preciso arranjar outras. Se não fizer uns qua­tro carretos, vai faltar dinheiro no fim do mês. Tá difícil, cada fre­guesa que vai pegar é aquela gritaria, deixa, ela é minha, depois a gente conversa se você pegar ela.

É quase a mesma coisa que .na outra, só que lá tem o Gorila pra brigar com soco e ele sempre traz uma faquinha no bolso que mostra para os menores!

— Mãe , o café?

A mãe vira para ele o rosto sulcado, passou a noite a chorar, sem saber de que lado caminhar, norte, sul? Em que bairro estão os dois, meu Deus, será. . . nem de leve quer p e n s a r . . . meu D e u s . . . o pai lá no Ceará, tão longe.

Põe o café no copo, dá pro filho, precisa grudar botão na calça dele, tá ficando homem, não pode andar assim com a braguilha meio aberta.

João abre á porta e olha o dia, puxa, vai chover outra vez, feira com chuva é azarada, quase não dá carreto, somente vai fazer compra quem tem carro.

Hoje o dia começa mal, volta para o quar to e o bafo morno e a semi-escuridão convidam a dormir, o corpo cansado da procura amolece, quer cama, que vontade de se deitar outra vez.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 33

— Mãe, vou na feira do Sumaré, falo com os colegas, com as freguesas, quem sabe se alguém viu eles.

— Tá bem, vou fazer a faxina da freguesa da rua Votuporanga, a gente tá sem dinheiro, não posso faltar boje.

A mãe manda as meninas falar no grupo com as colegas, se alguém viu eles, sumir não sumiram, não é mãe? Aqui não tem rio, no rego não tem perigo, tá seco de tudo, seu Antônio passou por lá, o lhando no mato .

— Tá bem, filho — e l impa e assoa o nariz na barra do vestido.

Sai para a garoa fina, encolhe-se, faz um pouco de frio, a manhã não é camarada, podia ter aparecido o sol, o dia nascer alegrinho. Tudo cinza, triste.

Olha as casinhas da favela, duas ou três com as portas abertas, algumas crianças ur inam por ali e outras, abaixadinhas sujam.

Ê sempre o mesmo, igual, fora o dia em que alguém chega bê­bado e alvoroça tudo. Se não sai briga feia, facada, garraiada na cabeça de um, até que é engraçado, se é. Sem polícia, porque quando ela chega, o inferno aumenta, é cacetada por todos os lados, pegue em quem pegar. Deva ou não. Esparrama tudo, acaba a torcida.

João caminha para a feira. São quatro quilômetros que já se acostumou e faz bem, hoje mais devagar, olhando atento pra ver se encontra aqueles pestinhas, puxa, se encontrar, eles vão ver que surra!

Mas, o coração amolece, eles devem ter se perdido e estar com medo, mas o Caco, tão manhoso, chorão! Coitadinho do peste! Bem feito! quem mandou desobedecer, estavam bem avisados, não é pra ir longe da favela, atravessar a estrada.

Passa da marginal para a avenida, onde as casas vão aumen­tando de beleza, bem-estar e conforto. Há ainda flores nos jardins, mas os bem-te-vis, pardais, até algum sabiá devem estar escondidos nos ninhos, a garoa passou a chuvisco forte e agora chove.

Se esconder? Já está bem molhado mesmo, o melhor é conti­nuar e continua e chega à feira, escorrendo água. Se esconde no canto de uma barraca e aí fica, escondido a esperar freguesia. Pou­cos carregadores, inda bem. Nem o Gorila, que sorte.

O movimento aumenta quase só de automóveis, os meninos cor­rem a se oferecer para guardar os carros, brigam, todos querem ganhar ao menos dois cruzeiros, mas assim mesmo faz um ou outro carreto ali na feira. Hoje está com fome, o medo abre um buraco na sua barriga, nem sabe se é fome, onde andam aqueles pestinhas? Ganha bolachas de uma freguesa, depois o trabalho de sempre, ter­minada a feira, catar frutas, verduras nos caixotes e receber alguma coisa dos feirantes em t roca de ajudar a carregar os caminhões.

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Em casa, nada, nem notícias, que fazer? Vizinhos aparecem com conselhos e avisos. Mais tarde, procura seu Antônio, ele diz que andou por aí, indagando. Nada. Leu os cabeçalhos dos jornais nas bancas. Nenhum deles falava de crianças desaparecidas.

Ia comprar garrafas vazias do outro lado da cidade, se João quisesse ir junto, ganharia seu dinheiro e aproveitariam para per­guntar se viram dois moleques, um moreno, outro clarinho, perdidos, sim senhora.

E João vai, esperança no coração, mais confiante. A chuva passou, ficou a umidade no ar a promessa de mais chuva para o norte, porque o céu está carregado.

Q U A R T A - F E I R A À T A R D E

R E P O R T A G E M N A F A V E L A

A mãe, as meninas e a vizinhança recebem os repórteres que tudo invadem, tiram retratos, mexem e remexem! Vão fazer uma re­portagem sobre as condições da favela. Que horror, comenta um deles, isto aqui é uma lixeira!

A condição da favela é pior que péssima, pessimíssima, se assim se pode falar, talvez falar não possa, é errado, mas sentir pode, não é? Viver lá, na umidade, sentindo aquele cheiro podre, com o vento que desce do morro , brincando de pegador dentro do bar raco . . . Sofrer essa miséria, ninguém proíbe, não , não há leis e nem regras contra.

— Então , dona, seus meninos sumiram desde quando? Onde foram? Roubados? A senhora bateu neles? N ã o bateu. Menino sempre depois de uma surra costuma fugir. Às vezes, eles merecem. Será que não foram atropelados?

— O que a vizinha acha? A senhora aí, quer falar? Deixa ela dizer o que pensa!

A mãe recomeça a chorar, mais forte ainda, uma vizinha bem decidida reclama: — Parem com isso, moços, mais respeito, não vê que ela está sofrendo? Os meninos estão sumidos por aí e se Deus quiser, eles voltam logo. Daqui a pouco, os dois sem-vergonhas aparecem. Alguma alma caridosa traz eles de volta. Vou rezar pro pai Nagô, vão ver.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 35

— Aqui tem poço?

— Por que o senhor pergunta?

— Podem ter caído no poço.

— Sai pra lá, azarento, eles estão acostumados com o poço desde que nasceram, tiram água dele pra mãe.

Procuram, novamente, em torno dos barracos, o repórter coloca lenço no nariz, como máscara. O ar abafado, é puro fedor de car­niça. Mais flash, se despedem. O cheiro é insuportável.

Lá ficam sem saber o que fazer, que decisão tomar as mulheres, crianças que vieram tirar retrato, sair no jornal, puxa! e a mãe cho­rando sempre. E para ela não chorar só, algumas mulheres acom­panham, assoando os narizes nas barras dos vestidos.

— Mãe, pára de chorar. É João voltando desanimado de sua busca. Na favela, a notícia dos repórteres já havia corrido e ele já fora avisado. Vou dar outra volta por aí.

— Tá bem, João , vê se encontra eles.

Seu Antônio, o garrafeiro, chegou com João. Nada de notícias, ninguém viu dois meninos perdidos. No dia seguinte, os vizinhos irão procurar, se eles até lá não aparecerem, quem sabe se eles vol­taram, diz uma vizinha pra consolar.

Mais uma vez, o dia prossegue, também na favela já choveu, as poças formadas no dia anterior, ainda perduram. Muitas crianças se enfiaram nelas, brincando de piscina, ninguém fala nada. Liber­dade total. Água entrou à vontade em muitos barracos, com pape­lão nas janelas servindo de vidraça.

T E R Ç A - F E I R A P E L A M A N H A

N A T R I A G E M

A assistente social que faz o plantão pela manhã , realmente gos­ta do seu trabalho, mas não daquela divisão. Está ali como substi­tuta a uma colega que teve neném e tirou licença.

Bem, começar a manhã com uma fila de seis pessoas: quatro chorando, de olhos vermelhos à espera que dêem uma solução rápi­da e certa para seus problemas, é meio apreensivo.

Ela procura enfrentar o dia com otimismo. Já o trânsito atra­palhou um pouco sua disposição. Péssimo.

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36 ODETTE DE BARROS MOTT

O dia — por que falarmos da manhã linda, limpa do verão que vai em meio. Por que falarmos de sua transparência se daqui a pouco a poluição vai envenenar essa limpidez? Mas, ela está presente, ainda de céu azul e sol claro. Eu notei — e pardais e flores em alguns jardins.

— Pode fazer entrar o primeiro caso.

O servente, hoje é um velho mancando de uma perna. A senho­ra daí. A dona entra e outra e outros, todos com seus problemas a respeito de filhos menores. Depois os dois, Pedro e Carlos, que estão assustados, agarrados um no outro.

— E esses dois ratos?

— É, perdidos. Encontrados ao anoitecer. Não pudemos fa­zer a sindicância ontem, já era tarde.

— Ah! E deixaram a tarefa para mim. Bem, quem começa o dia com o pé esquerdo. . . como vocês se perderam? Fa lem. . .

Nada , bocas fechadas, uma delas, a de Carlos, pronta a se abrir, num berreiro só.

— Vamos, falem e não chorem. A moça aí não fica brava e vai ajudar vocês. Nada de choro, aqui é proibido chorar.

— Como vocês se perderam?

— A gente correu atrás do cachorro, eu acertei duas pedras nele, ele latiu bravo, saiu correndo de medo, não foi, Caco? Foi, Pedô.

— E depois?

— Aí a gente pediu dinheiro, tá na roupa, a mulher que man­dou a gente tomar banho vai ficar com ele?

— Vamos, isso não interessa, e daí? Onde vocês ganharam o dinheiro?

— Na rua, uma dona boa deu pra gente, ela nem ficou brava, até deu uma bala.

— Que mais? Não sabem o nome da rua onde vocês moram?

A assistente lia a ficha que a plantonista da noite anterior havia feito.

— Nóis não sabe, não , é só levar a gente até lá que a gente vê qual é, eu também vejo, Pedô, você deixa? Deixo, sim, Cacô.

A assistente e o guarda por mais sérios, acabaram rindo da inge­nuidade dos meninos; são bobinhos demais e por intermédio deles, não saberá nada. O melhor mesmo é proceder ao levantamento ne­cessário, eles que permaneçam na triagem.

O dia prossegue, a dona aí entra e não adianta chorar, isso até atrapalha, diz o servente.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA .37

Os garotos são entregues novamente ao servente que por sua vez os deixa com uma vigilante. Vão ficar uns dias na triagem até encontrar a mãe, onde mora, enfim, a assistente do caso espera lo­calizá-la em algum lugar. Eles devem ter neste planeta, um canto, ou são lunáticos e vieram num disco voador?

AINDA Q U A R T A - F E I R A N A F A V E L A , DEPOIS Q U E O S R E P Ó R T E R E S S E F O R A M

São seis horas , o sol se escondeu bem por detrás do morro da favela, gastando inutilmente suas cores, sua beleza. Ninguém recebe esse presente. Somente, se estivesse lá seu Antônio, o garrafeira. Ele veio do sítio, de Pernambuco. Acostumado à terra, às belezas da natureza. Ele tem olhos para o verde, o dia, a manhã. E mais que os outros, sofre a tristeza da favela.

Agora, algumas meninas fazem a comida, crianças brincam e outros moradores, homens e mulheres, ainda não chegaram do tra­balho, da vadiação nas ruas, do transar sem destino.

O sol ainda apareceu depois da chuva e num tempinho que ela deixou livre, clareou toda a cidade. Não faz diferença o irmão sol, não se nega a ninguém. Distribui sua quota de calor, luz, igualmen­te, lá de cima. Se todos não recebem parcelas iguais é porque na fa­vela não tem jardim, os barracos são bem juntos uns dos outros, até um dia pegou fogo numa casa e as quatro vizinhas arderam. Foi um corre-corre danado, ninguém se queimou, só os panos e a única cama da favela toda.

Se os barracos fossem mais separados, o sol poderia brincar nos quintais e aquecê-los como faz nos bairros ricos, onde há pisci­na e gramado. O que fazer? Posso dizer? Nem eu mesma sei. Dei­xa pra lá, para ver como é que fica, não adianta quebrar a cabeça.

A mãe sai para o beco, olha a casa vizinha, procura o céu, já está escurecendo, escuro, chama as meninas, quase por costume, cha­mava Pedro e Carlos. João saiu cedo, foi à feira e à tarde, saiu com seu Antônio para ver se encontrava os meninos, ela tá meio sem esperança, nem na conversa da mãe-de-santo de dona Janda, ela acredita, eles não apareceram e já faz dois dias. Terão comido? Dor­mido onde? E a chuva que tem caído brava e vai continuar caindo. 0 Carlos, tão pequenino com bronquite asmática e a mãe limpa os olhos e funga e joga o ranho com os dedos no chão da favela e so­luça e grita, nem sabe se chamou Pedro, Carlos ou as meninas. Que vida!

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38 ODETTE DE BARROS MOTT

Elas entram correndo, é bom não abusar da mãe assim nervo­sa, estão sujas, bar ro até nos cabelos, rolaram nas poças, a mãe mandou lavar os pés na bacia e comer o virado com abóbora que ganhou um pedaço e depois dormir, que está escuro e nem vela têm. Acabou ontem. Está escuro mesmo.

João volta.

Seu Antônio chega na porta, diz boa noite e não sabe lá por­que, pergunta, nada? Pois já de antemão sente a resposta.

— Também não encontrei nenhum sinal dos dois, perguntei por aí, qnçm sabe se amanhã, a gente deve confiar.

João entra no barraco sem vontade, era hora dos meninos bri­garem, onde estão os pestinhas?

A mãe põe a comida no prato, ele come e ficam por ali sen­tados na porta, no quase escuro, sem saber o que fazer, que deci­são tomar, com a ausência presente dos meninos.

No colchão, todos se encolhem quase na posição fetal, o céu escuro, amanhã ainda chove, o solzinho da tarde foi fraco, amare­lado.

João pensa. Seu pensamento fora os meninos, gira em torne da feira. Se chover, haverá pouco carreto, mas as freguesas vão Elas têm filhos e precisam de frutas, como as crianças de lá comerr fruta, é de se admirar, laranja, banana, abacaxi, morango, todas compram, enchem os carrinhos, sacolas. Hoje uma freguesa disse: preciso encontrar morangos bons. Caros eles estão, não é época mas meu caçula anda sem apetite e se tiver moranguinhos, ele come

Sem apetite? Há gente que não gosta de comer?! E João dor­me pensando no assunto, tentando resolvê-lo, como um jogo ond< falta pedra.

Qual será? Desta vez sei, sim, é que para as crianças das fre-guesas há sempre morangos, pera, uva e na favela, nunca tem ver dura, leite, pão.

A noite faz seu percurso como sempre: segundos, minutos, ho ras, assim o homem dividiu o tempo. Madrugadinha, João acorda abre os olhos, pela fresta das tábuas, vê ainda escuro, se encolhe sonhou que comeu duas caixas de morangos, ia começar a terceira torna a dormir.

Amanhece.

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N O S U M A R É

— André.

— Oi, mãe.

— O que você vai fazer à tarde?

— Estudar, né?

— A tarde toda? Posso" acreditar nesse milagre?

— Bem, depois vou ver televisão, vem o Cláudio, caímos na piscina.

— ó t imo , hoje trabalho o dia inteiro, não posso vir almoçar. Convida o Cláudio para fazer companhia, tá?

— Papai também não vem?

— Não , ele vai ao Rio, tem uma consultoria lá, reunião no Banco, aproveita a noite e vai assistir a partida do Palmeiras contra o Flamengo. Volta amanhã cedo.

— Tá bem, mãe, convido o Cláudio, mas no jantar, você está?

— Sim, quero ver se volto cedo, lá pelas cinco horas. Apro­veito o resto da tarde e caio na piscina com vocês.

Dr. Júlio desce, já está pronto para a viagem. Pega os jornais e começa seu dia, depois de beijar a mulher e o filho.

— Vamos ver o que aconteceu ontem no mundo, neste mundo velho.

Como sempre, primeiro assaltos, segundo, guerras.

— Bem, aqui uma notícia diferente, crianças desaparecidas.

— Deixa ver?

Tatiana pega o jornal e lê.

— Poucas informações. Crianças que desapareceram. Já é o terceiro caso na periferia de S. Paulo, neste verão. Será um tarado? A polícia pensa que sim. Muito triste. A mãe deve estar sofrendo.

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40 ODETTE DE BARROS MOTT

— Ora, você se preocupa, veja esta outra notícia — e por cima dos ombros da mulher, lê, novas experiências atômicas.

— Desde segunda-feira à tarde que sumiram — continua Ta­tiana — a mãe, coitada, desesperada, pede notícias, qualquer infor­mação pode ser dada neste j o r n a l . . . — . . . também desapareceu um cocker de estimação — continua Dr. Júlio, sempre lendo por cima dos ombros da mulher — paga-se bem, imagine dois salários mínimos, o cachorro é de estimação.

Tat iana dobra o jornal, se pudesse fazer alguma coisa! As in­formações são poucas — falam mais do cachorro!

— Poxa, mãe, que bacana, você vai dar uma de detetive, hein? Vê se encontra as crianças.

— É difícil, vivem na rua, soltos, sem ninguém para cuidar e depois vem a choradeira.

— Por quê, papai, você fala assim? Eles n ã o têm mãe, pai para cuidar?

— Ter, tem, ou você pensa que todos os pais são como os seus?

— Mãe , você vai encontrar eles, vai? A mãe deve estar cho­rando.

— Ora, ora, vamos indo, vocês se preocupam, é comum me­nino da favela fugir.

— Mamãe , por que o menino da favela foge, como o papai tá dizendo? Eles não gostam da casa? do pai, da mãe?

— Vamos , André , sua mãe não pode responder agora, é mui­to complicado tudo.

Que é isso, Tatiana, você não tem tempo ou não sabe respon­der? Ele vai ficar sem explicação? Será que há? Sei lá, deve haver sim, não há efeito sem causa, lei simples da natureza. Há uma cau­sa sim que leva o menino a deixar sua casa e ela está no próprio homem, ele que pare para pensar. André , se você souber parar, se você aprender desde já a ver, julgar, talvez participe e encontrará a resposta que deve vir de dentro de cada homem e não do exte­rior. Você mesmo é quem deve encontrar o caminho. Mas agora está em cima da hora , a resposta fica para depois, para outro dia, quem sabe quando?

— Vamos , filho?

Despedem-se, até amanhã.

O beijo é mais carinhoso.

Do carro, a voz alta de André : mãe, vê se encontra os dois, tá? E manda comprar um bolo de sorvete para o jantar?

— Mando , sim, filho — e joga um beijo.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 41

Manhã bonita, sim, há sol, vento leve, um resto de flores nos jardins, apesar do verão encaminhar-se para o meio. Calor, praia, meninada queimada, surge, mais praia, piscina, e falta total de água na favela.

Mas disso, André e Dr. Júlio não sabem, um por ignorar mes­mo e o outro porque quer ignorar. Cego um, mais cego o outro que se nega a ver a realidade para dela não se julgar responsável, não participar. Há falta de água, sim, Dr. Júlio nas favelas. Na do Sapo, então, o calor está tornando trágica a situação. Dois casos de desidratação e muitos outros vão se seguir, andaram colhendo água num córrego-esgoto lá no começo do bairro.

Como é quinta-feira, todo mundo saiu à rua para fazer com­pras, supermercados, açougues, amanhã é feriado. Feriado emenda­do com sábado e domingo, que gostosura, quem é bobo de ficar em São Paulo, nesta cidade poluída? O pulmão da gente precisa de ar puro do campo e o físico de se queimar ao sol, na praia, no clube.

Todos os médicos, neurologistas, psiquiatras, psicólogos, andam preconizando a cura pelo verde. Verde, minha gente, Clorofila, Oxi­gênio, Saúde!

Como na favela do morro é meio campo, tem a matinha lá em cima, ninguém precisa viajar e realmente, nem sabem que é feriado. Também que importância tem o feriado junto ao sábado e domin­go? Sabem, sim, que a água desceu segundo seu Chico 25 cm. e já está na lama, não dando nem três latas de água por dia. Daí, a de­sidratação.

Mas, estávamos falando do André , voltemos a ele que vai de carro, conversando com o chofer, hoje tem aula de Matemática, o fino, o que não gosta é de Português.

O pai foi ao Rio participar de uma reunião e assistir ao fute­bol, pena ele não poder ir, a mãe tão presa ao trabalho. Por que não foram todos ao Rio, ver a tal partida? Se a mãe gosta tanto de futebol!

T A T I A N A , M E S M A M A N H A

Tatiana, de seu lado, desvia do trânsito, de um ônibus maluco, de um enterro e toma a direção, t ão já sua conhecida, que a leva à triagem. Ontem, vai se lembrando, foi um dia tão difícil, cheio de problemas insolúveis para sua capacidade. Tudo tão confuso, muitas vezes perde o sono e pensa e torna a pensar como seria bom viver se a vida não apresentasse tanta desigualdade. Aquela menina de

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42 ODETTE DE BARROS MOTT

treze anos, que vai ser mãe, tão miudinha, precisa ser internada, rou­pinhas para o bebê e também para ela, necessitando urgentemente, de um tratamento. Parecia sumir, tão fraca e anêmica. E crianças sempre desaparecendo, tantas, algumas nem sendo procuradas pelos pais. Ficam por lá até serem internadas. Que situação, meu Deus!

Como fazer? E o marido a dizer para ela não participar. Se pudesse socorrer todos, resolver todos os problemas. O que fez? Conseguiu com amigas, algumas roupinhas, a Magali que teve gê­meos, organizou pequeno enxoval.

Mas , isso é o certo? Também o Juizado providencia a casa maternal. E depois?

E as rugas no rosto, mostrando grave agitação? Se ouvisse o conselho do marido, de algumas amigas que vivem sem preocupa­ções, cuidando da casa e dos filhos pequenos e se envolvesse me­nos? Mas, como? Se cada poro de sua pele, em cada ramificação nervosa de seu cérebro, de seu corpo, em toda sua sensibilidade, toda ela é atingida pelo sofrimento alheio, dos desprotegidos da v i d a ! . . . Se pudesse ajudar a mocinha, ouvir os problemas das mães, tirar aquelas crianças ranhentas, sujas de lama, levá-las bem limpinhas, penteadas à escola, se pudesse.

Quantos , quase 1 0 0 % dos meninos marginais, dos favelados es­tão se viciando, por falta de assistência, de ocupação, divertimentos, alimentação, escola.

Sacode a cabeça, tentando afastar tantos pensamentos atropela­dos, envolventes, cheios de tentáculos, quase dá uma trombada, mas, nem mesmo assim, ela se vê livre deles, tão atrevidos, a vencê-la sempre com seus argumentos. Ê só dar atenção um pouco e vem a primeira pergunta: por quê? a segunda: é justo? a t e r c e i r a . . . a q u a r t a . . . etc. etc.

Hoje não tem tempo e nem disposição para ver a beleza da manhã , tão sua companheira, está com o coração fechado. Dois garotos se atracaram, dez, doze anos, e um deles ficou gravemente ferido pela pedra pontiaguda que o outro usou como arma.

Os dois, pequenos e lutaram com verdadeiro ódio, foi difícil separá-los.

Se pudesse oferecer-lhes uma atividade, natação, por exemplo, neste calor. Tanta criança sobrando sem interesse, sem um traba­lho, sem divertimento. É natural nessa cidade que descarreguem todo o conteúdo emocional que trazem em si, através de uma des­carga de violência.

A m a n h ã , . a manhã não está preocupada com nenhum proble­ma, ela somente quer ser linda e se oferece a todos que passam, parem, olhem como estou linda, mas ninguém ou quase ninguém tem tempo para olhá-la e ela passa rápida.

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O U T R A V E Z , F E I R A

Você vai me dizer e com razão: outra vez feira? É só o que você sabe dizer quando fala do João? Pois é, eu também parei, in­decisa, antes de escrever. Mas , realmente foi o que aconteceu nesta manhã de sexta-feira e não posso mudar nada, só se mentir.

Há hoje, pequena variante, ele fez somente três carretos e re­gressou cedo. N ã o suportou mais a angústia, teriam voltado os pes-tinhas? Será que a polícia encontrou eles? Os repórteres, será que não deram um jeito? Aquele gordo, de cabelos crespos, ar bom e amigo, prometeu ajudar. Quem sabe se ele já encontrou os dois?

Volta.

Caminha por outros caminhos, ruas diferentes, sempre em dire­ção ao barraco. Passa por igrejas, ginásios, supermercados, dá uma espiadinha, medroso, pergunta para os jornaleiros, eles andam em muitos lugares. Só anteontem, quero dizer, antes d e . . . na terça, eles ficaram parados aqui, não tenho certeza, parece que vi uns me­ninos, não sei se são eles.

Nada mais, cinco horas, volta desanimado e com fome, não al­moçou, a mãe nem comida fez, as meninas ganharam um prato de virado da vizinha do barraco do lado.

Sente um vazio no estômago, certa fraqueza, ar assim meio leve, no ar.

Em casa, come um pedaço de pão com café e fica sentado na porta, sem saber o que fazer, situação estranha, sente vontade de chorar, de sumir. Será. . . mas se nega a pensar, eles devem estar escondidos em algum lugar com medo de voltar. Pestinhas, vão ver que surra de vara, vão ver! A mãe tem tamancos! Eles merecem.

A tarde passa, a noite chega, quente, gostosa, a lua agora é uma bola e não mais a foice. Gordona.

Ali na favela há uma vantagem, o céu é mais bonito, mais leve, menos poluído. Por perto não há fábricas e muito menos automó­veis. As estrelas enchem o céu! Uma beleza. Seria bom você subir

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44 ODETTE DE BARROS MOTT

o morrinho nesta noite morna, sem as luzes da cidade, sentar-se na grama áspera e olhar, sentir e pensar. No seu silêncio e no verde a gente se encontra. Há realmente uma ligação entre, desculpe o termo comum, literário, uma ligação entre o homem e a mãe terra. Ele precisa voltar a senti-la perto de si. Longe do asfalto, da gasolina, do trânsito.

João, na porta, olha o céu, sente a beleza sem dar conta do que o perturba além da ausência dos meninos.

Há silêncio, nem automóveis, nem caminhões, a favela dorme. De repente, um canto, uma batucada num barraco. João sente sono e quer ficar acordado, parece-lhe que o dormir afastará os meninos, acordado há um laço forte a chamá-los: voltem.

A mãe dorme com os braços apoiados na beirada do único móvel, o fogareiro apagado. Seu sono é profundo, ali sentada no chão, e mesmo no sono, soluça de quando em vez. Deve sonhar.

Deixa ela dormir, as meninas, indiferentes ao que se passa, es­tão mais livres e soltas, já há muito também dormem no colchão, pela primeira vez, delas só.

Como não lhe resta mais nada a fazer, resolve dormir, fecha a porta e antes, olha novamente a lua, grandona, bola de futebol.

E, nem sabe bem porque, lembra-se do sitiozinho lá no Ceará.

N A T R I A G E M

Tatiana tem que ir à triagem, é seu dia de plantão. Depois do café, despede-se de André , que vai de Maverick

com o chofer. Ela toma o Chevette amigo e enfrenta o trânsito. Está mesmo péssimo, hoje.

Manhã gostosa. O fim de semana vai ser ótimo, guia pensan­do nos seus queridos: marido e filho. Como o marido, tão inte­ligente, preparado, jurista de nome, pode viver no mundo atual den­tro dessa torre de vidro? Um vidro frágil, esfumaçado de azul! Faz ver tudo azul, até a miséria dos outros. Mas , por ser vidro, por isso mesmo frágil, um dia vai se quebrar. E André? Como impe­dir que ele sofra vendo que, realmente, a miséria em aue vive a maior parte da humanidade não é azul, não. Azul era o vidro que se partiu.

Esse problema vem há muito tempo, perturbando-a, já tentou dialogar com o marido, mas sempre que aborda o assunto, ele brinca, faz-se de desentendido. Chama-a de consoladora dos aflitos, sabe, querida, essa invocação existe sim, ouvi muitas vezes minha avó in­vocar assim.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 45

Encosta o carro no lugar vago, dentro do pátio do Juizado. Agora, põe de lado sua casa, marido e filho, deve apanhar uma co­lega e as duas vão fazer a triagem de uma favela.

A colega está atrasada, dá tempo para um cafezinho e dois de­dos de prosa com a servente. É assim que consegue se evadir da torre de vidro e penetrar na vida do dia-a-dia.

— Dona Tatiana, esta noite teve um perequê danado.

— Como assim?

— As maiores resolveram brigar, aquelas duas graades que vie­ram na semana passada, a senhora sabe qual é?

— Por quê?

— Pois é, uma, aquela mais velhinha, de olhos verdes, deu um tapa na cara daquela pretinha e chamou ela de negra suja, as menores entraram no frege, foi um Deus nos acuda. Jogaram ca­deiras, rasgaram roupas, quebraram vidraças.

— Alguém se machucou?

— Chi! A pretinha quebrou o braço, outra cortou a testa, vi­dro pra todo lado! U m a baderna.

— E depois, acalmaram?

— Ué, veio a vigilante, usou força, levou as maiores para o recolhimento.

— Que pena. Sinto muito.

Eu sei, Tatiana, que você sente, realmente, e sente mais ainda por não poder fazer nada! Isso é duro de se agüentar, não é?

— Bem, vou ver o que me espera hoje. Deve ser o caso da­quela garota que sumiu, a mãe ficou de trazer um retratinho e mais informações.

Acaba de tomar o café. Olha pela janela e vê lá embaixo, na rua, homens, mulheres que passam.

É a mesma manhã gostosa lá da favela, do Sumaré, da feira — onde a diferença, então? E por quê? Sei lá!

L I N D A N O I T E N O S U M A R É

Mais uma visita à casa de André . Dr. Júlio voltou do Rio , alegre, o Palmeiras venceu, 2x0, trouxe uns presentinhos, a reunião no Banco foi ótima, conseguiu o empréstimo para o cliente, tudo O.K.!

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46 ODETTE DE BARROS MOTT

Como a noite é agradável, isso você já sabe porque até o con­videi para senti-la lá no morrinho, a família resolveu jantar no jar­dim de inverno, cheio de antúrios e palmeiras, o verde dá paz e aconchega.

— Como foi o dia? — pergunta Dr. Júlio, tomando aperitivo e comendo salgadinhos, enquanto espera a copeira servir.

— O meu foi ótimo, estudei, Cláudio veio aqui, almoçamos juntos.

— Você não almoçou, Tati? Por isso é que está abatida, já disse que você não é tão forte assim para esses excessos.

— Tomei lanche, Júlio, eu me sinto bem, é que . . .

— O que aconteceu, querida?

— Ainda não aprendi a me desligar, como você quer, fico sem­pre medindo, controlando, sentindo a diferença.

— É preciso se esforçar, proceda como eu, deixo o escritório e faço click, pronto, desligo. Nem me lembro do que se passou lá, um segundo. Aqui é meu oásis! e me esqueço do resto.

— Ê que sou mesmo sensível ao problema do menor abando­nado.

— Você viu hoje coisa muito triste, pior do que as manchetes dos jornais, que papai lê? Guerra, bomba, seqüestro?

— Sim, filho, eu lido com crianças, com menores. Menores abandonados, menores sofrendo todos os problemas desencontrados que os adultos lhes oferecem.

— Nem vale a pena falar sobre isso, vai entristecer o menino sem ser necessário.

— Não sei, querido, se isso que você afirma é certo, talvez seja melhor ele ficar conhecendo as alegrias e misérias que o homem vai encontrar na sua pequena existência.

— Qual miséria, qual nada, Tati , você é muito pessimista, cré­dula, sofre, passa necessidade, mora em favela quem quer, aquele que trabalha, come, já disse São Paulo, e ele é importante, não é?

— Isso na teoria, querido, você com diploma na parede, seu trabalho é diferente. Trabalho de gabarito, como dizem, é estranho tudo isso. Um trabalho vale mais que outro, uma profissão é mais nobre. Não aceito isso.

— Querida, você anda com certa confusão nos seus pensa­mentos.

— Me diz uma coisa, quem vai procurar o Dr. Júlio para se aconselhar com ele, o grande jurista? Quem tem bom nível de vida, não é?

— Puxa, pai, a mãe tem razão, você cobra muito.

— Hum, por que cobro tanto? Para dar conforto aos meus queridos, não é?

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 47

— Concordo, ganhar mais, estabelece mesmo essa diferença — a vida que vivemos, que conhecemos é bem diferente daquelas que vejo diariamente e acabo pensando qual das duas é a real. Vivemos envoltos em algodão, como o feto no líquido amniótico. Nada , ou quase nada conhecemos.

Estou dizendo desde o começo, a face escura da lua é desco­nhecida. Precisamos deixar a terra azul e ver o outro lado. Essa é minha opinião, mas, não é absolutamente a do Dr. Júlio. Ele prossegue.

— Você se envolve muito, querida, deixa isso pra lá, nem pa­rece que é assistente social, dá a impressão de menina recém-saída de um internato. Fale sobre o casamento de sua irmã. Somos pa­drinhos, não é? Você já fez seu longo? Bonito?

— Amanhã , trabalho meio dia e depois terei tempo à tarde para dar uma vista nas butiques.

— E você, André , vai incrementado? Ê esse o termo? Vai comprar roupa nova, não vai?

— Eu , o quê?

— Vai comprar roupa nova?

— Mãe , posso ir um dia com você no Juizado?

— Pode, sim — mas quando encara o marido, Tatiana perce­be no rosto certa reprovação, como quem diz: para que levar o me­nino? Que vantagem traz para sua educação, mostrar-lhe essas mi­sérias?

— Creio que . . . não é necessário, você pensa o mesmo, não é, Tati?

— N ã o querido, não concordo com você (e nem eu) neste assunto, conversaremos depois, com vagar. Você nos convidou para irmos ao cinema, não foi?

— Sim, querida, e está bem na hora.

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P A R A TODOS, Q U E N T E !

E D O M I N G O T A M B É M !

S U M A R É

Como é Verão

F A V E L A

Como é Verão

o cheiro forte do lixo o cheiro forte do lixo falta de água falta de água o cheiro forte do lixo o cheiro forte do lixo

piscina praia gelados piscina praia

piscina praia gelados piscina praia

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N A T R I A G E M

Carlos chora e Pedro rói a unha e pensa no cachorro, onde ele está? Onde ele foi, Caco, o quê? cachorro, seu coisa, sei não , aque­le feridento, eu quero ir pra casa, e chora alto.

— Fica quieto, senão dou um soco na sua boca.

— Chora, não , Caco, o menino é grande e bate nocê, é, mas no João ele não bate, não. O João é mais grande, esse menino pode judiar da gente, mas, do João , não.

— Quem é esse João? vocês dois calam essa boca ou apa­nham nela, tá? Vocês e o João , onde está ele?

— O João é nosso irmão, ele é carregador da feira, ele é gran­de, e sempre traz fruta e verdura, não é Pedô, é Caco, e a mãe gosta.

— Quero a mãe — e Carlos chora mais uma vez e a servente que não é doce não, também manda que ele se cale.

Mas qual, Carlos agora está com muito medo, a mãe longe, João também. Se pudesse estar no barraco, a favela é gostosa, aco­lhedora, assim pensa ele, porque esse é seu único ponto de apoio. O resto é o mundo grande e estranho, onde há meninos que querem dar um soco na sua boca.

Chora manso, as lágrimas correndo pelo rosto sujo, o nariz fun­gando, ranho não dá mais pra entrar nele e ele limpa na camisa já imunda.

Chegaram duas assistentes nervosas, resmungando contra o trân­sito, o trabalho.

— Enfrentar esse trânsito, ouvir o dia inteiro, queixas e recla­mações, choro de crianças e ainda por cima ganhar uma miséria. Estou querendo trocar o carro e o dinheiro não dá. Isso não é vida, escolhi errada a profissão. N ã o dou pra santa e nem mártir!

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50 ODETTE DE BARROS MOTT

— É, também penso igual, minha irmã é secretária e leva vida bem melhor, t rabalhando num escritório. O fino. Ar condicionado, freqüência modulada, gente decente. Você precisa ver que ambiente!

— Hoje, pelo que pressinto, o dia vai ser d u r o . . . cheio e com este calor. Calor é bom no clube de campo. Escute só para co­meço, aquele choro. Por que criança chora?

— Sei lá, nem dá para pensar, quanto mais para filosofar ou decifrar charadas. Criança chora porque é manhosa, e as da favela, são piores, umas fiteiras e fingidas, querem atenção, criam um cli­ma de sofrimento. Veja aquele menino comendo ranho, um porqui­nho, desculpe a expressão.

— Pô , só de ouvir falar, dá enjôo, onde estão as serventes, que não vêem isso?

— Sei lá, vou me trocar e começar. O melhor mesmo é en­trar de cheio, dar um pulo e mergulhar, tenho que sair mais cedo hoje.

— A minha vontade é deixar tudo, ainda dou um jeito de lar­gar o Juizado. Não fui feita para conviver com a miséria.

Desculpe-me, quem foi? Esses pequenos favelados? Eles nas­ceram para isso? Todas as crianças não nascem iguais?

— Olá, bom dia, pensei que estivesse atrasada, mas vocês ain­da batem papo, nessa folga.

— Para falar a verdade, todas estamos, mas, se não abrirmos um pouco a torneirinha das queixas, acabamos estourando.

— Que é isso? Que está acontecendo?

Enquanto conversam, trocam-se, põem um uniforme leve, rosa pálido, que não há roupa que agüente a poeira do velho prédio, e tomam a primeira xícara de café do dia, que a servente traz.

A Tami fala da irmã que é secretária, ambiente com música mo­dulada e ar condicionado. Ela detesta isto aqui e para ser franca, eu também não me sinto bem na miséria. Creio que o homem vive cercado de coisas boas que a vida oferece e que devem ser repar­tidas irmãmente. Miséria, por quê?

— Tudo muito triste e nem compreendo bem, às vezes meu marido precisa me dizer — desliga. Não consigo, levo para casa meus casos. Como posso me desligar, vendo que crianças iguais ao meu filho vivem em barracos sem água, sem cama. Como me des­ligar se o dia todo passei, vivendo o problema daquela garota que vai ser mãe? E não tem família. Veio como doméstica da Bahia, acompanhando uma patroa e agora ela foi mandada embora no oi­tavo mês de gravidez. Tudo isso me confunde.

— Ora, Tatiana, você precisa tirar umas férias. Também sin­to, tenho pena, mas, penso que se moram em favelas, se têm vida

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 51

miserável, é porque realmente não merecem outra coisa. Desleixa­dos, sem interesses, vocês já foram visitar os favelados aue se mu­daram para o Bairro Boa Esperança? Casinhas com água encana­da, luz, pequeno quintal. Enfim não são palacetes, mas, bem melhores que os barracos, sem comparação. Pois b e m r para encur­tar a estória, a sujeira é a mesma anterior, não tem ordem, as mu­lheres desinteressadas, nenhuma diferença, nenhuma melhoria. Igual.

— Ora, Tami, pense bem, o que eles podem fazer? Então você acha que somente porque foram tirados dos barracos e leva­dos para outro ambiente vão mudar de vida? São condicionados sempre, desde o útero materno, a viver essa vida de miséria, nem sabem viver de outro modo! Coitados! É tudo muito confuso, sei lá, não consigo deixar de pensar. Bem, o papo está muito bom, mas vou começar meu dia, tenho três casos para resolver e logo que cheguei, vi duas mães à minha espera. Ânimo, amigas, não te­mos freqüência modulada como sua irmã, Tami, mas temos choro sincopado à nossa espera. Tudo isso é difícil mas faz parte de nos­sa profissão.

— Vou fazer esse garoto parar de chorar já.

— Calma que o petróleo e o Brasil são nossos.

Cada uma se dirige para sua sala. Na de Tatiana, já se encon­tram duas mulheres esperando e logo a servente entra com a ter­ceira, olhos inchados e vermelhos de tanto chorar.

Tatiana cumprimenta com um sorriso, é o que pode dar de si, é como um pedido de desculpas por ter um Chevette, uma casa com jardim de inverno, um filho lindo, lindo, marido bacana, às vezes, egoísta, mas . . . ninguém é perfeito neste mundo. Suspira, se pudes­se fazer o marido mudar de idéia a respeito do que a aflige, fazê-lo compartilhar de sua visão a respeito dos direitos humanos. Mas, qual, ele cita São Paulo, trechos — "quem trabalha, come" — mas se esquece de outra lei mais importante: "são todos iguais perante o Pai" .

Bom, o melhor é começar: — Quem chegou primeiro? Ah! as fichas já estão aqui, ótimo, quem é dona Marina? A senhora? Seu filho foi preso? roubando frutas na feira? treze anos? Ele está na escola? Trabalha?

A mulher chora e tenta falar através dos soluços e Tatiana pre­cisa esperar, e ela espera porque sente pena e participa, como diz o marido e se envolve tanto que até ela mesma sente vontade de chorar, que vida, Deus!

Olha pela janela, enquanto dá tempo para a mãe se acalmar. Ainda consegue sentir num relance, a manhã terna, meiga, que há brisa agitando as folhas de uma árvore bem verde, com flores ama­relas. Ipê?

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52 ODETTE DE BARROS MOTT

— Já está melhor? Agora conte como f o i . . . conte tudo, não esconda nada.

— A dona sabe, sou sozinha, vou trabalhar, deixo os filhos em casa, seis, o mais velho é o Luiz.

— Ele trabalha, estuda?

— Trabalha, vende flanela pra l impar vidros de carro. Quan­do o carro pára no sinal vermelho, ele vai vender, um dia é atro­pelado, um perigo, dona, já disse isso pra ele, n ã o adianta, não en­controu outro serviço.

As outras duas mulheres atentas, sacodem a cabeça, elas enten­dem bem a situação.

A mulher continua: — Na escola tá, mas não vai quase nun­ca, não tem pai pra obedecer. Fi lho homem só obedece pai, depois de grandinho.

Tatiana espera, tem toda a paciência do mundo , o pai tá pre­so há seis meses, ele bebeu, bateu num polícia e foi na cadeia.

— Quem é o homem da casa?

— Ê eu, e o menino obedece mulher? Menino moço bem mais grande que eu, dona. Eu digo, não rouba, filho, mas ele fala que muita gente tem tudo, até duas bicicletas e ele rouba e não tem remorso e nem medo. Precisava de pai pra bater nele, umas boas lambadas, se vou pegar, ele escapa e ainda dá risada.

As outras duas ali no banco à espera de também elas conta­rem seus problemas, que fazer? U m a delas está com a cara inchada por causa de um dente inflamado, o filho dela rachou a cabeça de um companheiro e a outra tem uma filha que sumiu, disse que ia à escola e não voltou. Quatorze anos.

Pois é, o que fazer? Tat iana, você não sabe que é assistente social dedicada, honesta, estudou para ajudar na solução desses pro­blemas e eu, então, eu que escrevo a estória e não posso interferir? Se pudesse, dou minha palavra, faria os personagens não roubarem, irem à escola depois de terem tomado u m a farta refeição, terem sa­patos, enfim escrevia assim: Tudo azul nesta terra azul! Seria a ver­dade? Tatiana, você sofre? E eu também, sem poder intervir, por­que essa é a realidade, as mulheres ali, o lhando para você, a última esperança? O apoio?

Voltemos à nossa triagem, nesta manhã serena. Tat iana fala e as que escutam, pensam que- ela tem o poder de Deus, e isso in­quieta e angustia mais a assistente.

— Vou falar com seu filho, Luiz, não é? — e consulta a ficha.

— Ê esse menino, dona, é um mocinho sem dois dentes na frente, perdeu eles numa briga.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 53

— Está bem, vocês duas têm muita pressa?

— Que fazer, dona? Eu já perdi o dia, sou faxineira e entro às oito horas. Espero aqui até a dona poder atender.

— Eu sou uma desgraçada, dona, minha filha sumiu e eu não como e não durmo, só penso nela. Tão bonita, tá aqui um retra-tinho dela, tem olhos azuis.

Agora sim, Tat iana, você vai se envolver, se enrolar de uma v e z . . . Por que olhou o retrato?

A manhã passa, você quase perde a hora, se não fosse Tami insistir — vamos, Tat iana, estou sem carro e aceito sua carona. Estou com fome, vamos! Bem seu marido tem razão, como ele diz? Desliga, Tatiana! Você se envolve muito, faça como eu, tiro o corpo fora. Nem sinto, ouço o que me falam e localizo o problema, só. Você precisa aprender, menina! Cada um que carregue seu proble­ma. Cristo foi um só e ele morreu na cruz!

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N O S U M A R É

André hoje faz doze anos.

— Bem, filho, você já é homem.

— Oi, pai, sempre fui desde que nasci, né?

— É, fisicamente, mas agora me refiro à sua entrada na ado­lescência.

— Posso participar do papo?

— Mãe, como você está o fino!

— Parabéns, felicidades, meu filhinho, dois beijos amorosos

e . . . — E você sempre me dando dois beijos até ficar velhinho.

— É bem isso o que você quer?

— Sim, mãe bacana.

— Endosso o que André afirma.

— Obrigada, começo bem meu dia, acompanho com o moral tão elevado por vocês, a manhã que, pela amostra aqui da janela, promete ser linda.

— Estamos mesmo atravessando uns dias bonitos, o verão se revela este ano, espetacular. Devia sempre fazer calor.

De repente, um aperto no coração, algo que a inquieta assim como uma luzinha igual àquelas, eu sei, pisca-piscando na saída das garagens, atenção, atenção. Algo de errado? Não está certo. Nós. eu e você, não é, Tatiana? Não concordamos com o que Dr. Júlio acaba de afirmar? Devia fazer sempre calor?

— O que você está pensando, minha querida?

— Não , n a d a . . . eu me l e m b r e i . . .

— Do quê? Podemos saber? Duas vezes André falou e você

ausente.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 55

A luzinha reclamando atenção e ela. . . se afastando, se afastan­do para longe, um barco à deriva, quem vai tomar seu leme. . . precisa ouvir o marido a ler os cabeçalhos dos jornais, tecer comen­tários sobre a festinha que darão à noite, comemorando o aniversá­rio do filho.

— Tudo pronto, mamãe? — Tudo , filhinho, o bufê vem cedo.

— Quer dizer que você não trabalha hoje, não é, Tati que­rida?

— Como? Por quê? Não posso faltar.

— E a festa? Por quê? Seu filho faz anos, doze anos!

Quatro olhos a olharem para um rosto, dois mais angustiados e os outros inquiridores, será que até hoje, anos de seu filho, você vai trabalhar? É possível?!

Tatiana não sabe como resolver a situação, está perplexa, a luz acende e apaga, entendeu seu aviso, o que ela quer dizer, sua mensa­gem. Olha Tati , a ruga na testa de seu marido — e a triagem? E aqueles c a s o s . . .

— Não se impressionem. — A voz sai mansa, alegrinha. — Deixem para mim, sempre dei conta, não dei, da casa? das festi­nhas? Que é isso hoje, será que de repente deixei de ser eficiente? Vamos cortar nosso bolinho.

Vai até um aparador, pega pequeno bolo. É costume desde que André nasceu, comemorarem sozinhos, os três, seu aniversário com pequeno bolo, logo no café da manhã e depois à noite, a festinha para os amigos e parentes.

Assim cantam parabéns, mais abraços e beijos, despedem-se. Tatiana vai até a porta como sempre.

— Olha, mamãe, vêm vinte colegas, tá?

— Já sei, querido.

— Querida, festa legal, não é? Nosso filho já faz doze anos! — E os olhos a perguntarem, dois saca-rolhas tentando arrancar, através da ternura, a promessa de não ir trabalhar.

— Vou preparar tudo, deixem para mim a surpresa — e quan­do o Maverick se afasta, ela entra apressada e então dá atenção to­tal à luzinha pisca-pisca, sim, é isso, o marido falou que sempre de­via ser verão e no verão há piscina, prosa, um uísque geladinho, três pedras por favor, salgadinhos e sol, muito sol.

E desidratação. Muita desidratação. Isso dá nos jornais e se não der, basta ir aos hospitais e levantar os dados. Porém, Tatiana sabe com certeza porque na Triagem vê sempre casos assim. No dia anterior foram internados uns três menores bem pequenos, tão esqueléticos, começo de desidratação na certa.

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56 ODETTE DE BARROS MOTT

Hoje não pode e nem deve, realmente, se entregar a pensa­mentos tristes, é dia de alegria. André faz doze anos, virão vinte co­leguinhas e se viessem vinte crianças da triagem, o que diria o mari­do? E os convidados? Aquelas crianças de narizes sempre remelentos e de olhos assim angustiados como os de cachorro sem dono, a pro­curar proteção em quem possa e ao mesmo tempo, fugindo de medo.

Toma o Chevette que o chofer já tirou da garagem e deixou na porta, l impinho. O chofer é ótimo, cuida bem dos carros. Atraves­sa o trânsito, dá uma espiada no céu, tempo bom, nem precisa o homem da previsão informar, aí está a manhã ensolarada, risonha.

Somente pode ficar duas horas, nada mais, nem devia ir, tem a festinha do André , mas, atualmente, anda triste, seu tempo de des­preocupação já passou. Desde que entrou no Juizado. Todos aque­les menores abandonados, marginalizados, mais desprotegidos que os cachorrinhos que têm dono. Coitadinho do Lulu, não comeu, a co­zinheira disse que acabou a carne moída e ele não come sem ela, precisa comprar. E o chofer da dona rica vai comprar carne para seu cachorrinho de luxo, mimado, o coitadinho!

Os problemas do dia anterior, as três mães, uma, o filho de tre­ze anos, roubando frutas. Qual? Agora é tempo de uva Itália. Ele trabalha, dona, é bom menino, roubou, não sei por que, ele ganha frutas na feira, é carregador, vendedor de flanelas, a senhora sabe como é menino — e o que adianta saber?

Pode ela, Tat iana, assistente social, resolver? Ora, Tatiana, des­ligue, é melhor. Ela pode resolver alguma coisa? Dar frutas equita­tivamente para todos os meninos favelados do mundo, para que eles não precisem roubar? Ou impedir os donos das frutas de reclamar?

Depois, a mocinha de quatorze anos desaparecida. Que pena!

Hoje, hoje não pode se afundar, é dia dos anos do filho, é dia de alegria para todos nós que não moramos na favela.

Aleluia!

N A F A V E L A

— Mãe .

A mãe olha.

— Mãe , a gente já deu parte na polícia, mas ela ainda não en­controu eles não , eu procurei mais seu Antônio. Todos os dias a gente anda por aí comprando jornal e garrafa vazia. Nada dos me­ninos, será, s e r á . . . — e desanda a chorar, de encontro aos braços apoiados nos joelhos.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 57

Estavam os dois sentados na por ta do barraco, defronte à casa de tábuas e latas, papelão e trapos, igual à sua.

O fedor, por que falar em cheiro? É forte e azedo, qualquer um menos acostumado vomitaria.

Assim mesmo o sol brilha, porque é manhã ensolarada, a ma­nhã dos doze anos do André.

— Chora, não , filho, os meninos tão por aí com medo de vol­tar. Você perguntou pras freguesas na feira? E pros outros me­ninos?

— Já sim, mãe, canso de perguntar, nada . . . é engraçado, mãe, tem carregador briguento, mas na hora de falar dos meninos, eles têm dó, sabe? Fui na feira do Sumaré e o Gorila tava lá, veio por cima de mim, dando risada e querendo socar eu, daí o Teco falou: deixa ele, não viu que os irmãozinho dele sumiu?

— Como sumiu? Os irmãos do João filão? Aqueles dois bos-ticas?

— Sumiu, sim, faz seis dias.

— Pra onde?

— Sei não , sumiu e a gente já procurou bem eles.

— Deu parte na polícia?

— A mãe deu, falou também com os moços do jornal.

— A velha tá chorando, né?

— Chora, sim, dia e noite, ela gosta dos meninos, Carlos tá doente de bronquite.

— Oi, macacada, a gente vai ver se encontra eles pra velha não chorar mais. São dois bostinhas, mas a mãe gosta deles.

Todos cercam João. Querem detalhes, um loiro, outro moreno, seis, cinco anos, descalços, shorts rasgados, Caco que sofre de bron­quite, não pode tomar vento de noite, tosse, o peito chia e o Pedro é moreno, parece o pai.

— Por onde eles foram?

— Ninguém viu eles?

— N ã o , ninguém viu, seu Antônio, o garrafeiro, já procurou em todo lugar.

— Vocês hoje não fazem carreto?

— Faz sim, dona, a gente tá aqui pra ganhar uns dinheirinhos.

— Deixa pra mim, ela é minha freguesa.

— N ã o precisam brigar, logo vêm mais freguesas. Você tem força? Olha que vou fazer muita compra.

— Tenho, sim, dona. Ficaram uns cinco à espera, o Gorila também, vem outra fre­

guesa, o João faz o carreto, ele tá precisando de gaita. Todos en-

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58 ODETTE DE BARROS MOTT

tendem, João precisa fazer mais carreto que os outros.

Mas, quanto aos meninos, nada, nem à direita, nem à esquer­da, norte, sul, leste, oeste, tudo percorrido — pelo menos assim pensam eles que conhecem somente aquele pedaço de S. Paulo.

João leva o carrinho e não bate o papo de sempre, mas a fre­guesa fala qualquer coisa, ele responde. Será que ela sabe sobre os irmãos? É melhor perguntar, a mãe mandou.

— Meu marido, por coincidência, trabalha na delegacia, você me dá seu endereço, chegando em casa. Muitas vezes crianças per­didas são levadas para lá.

— Ficam presas, dona?

— N ã o , são encaminhadas para o Juizado.

— Lá eres comem?

— Sim, naturalmente.

João caminha pensativo. E ra bom vir à feira, depois levar as frutas, encontrar os meninos em casa. A g o r a . . .

Faz os carretos, volta tarde, olhando em todos os jardins, a dona disse pra ele voltar no outro dia, à noite ia falar com o ma­rido.

Falou mesmo, mal ele chegou para o jantar, ela perguntou e ele:

— Querida, como descobrir? Nem se você fosse Sherlock Hol-mes, dois meninos perdidos nesta c i d a d e . . . por acaso, sim, pode­riam ter caído na delegacia, num dia de meu plantão. Mas, veja a possibilidade. . . Se os tais garotos soubessem o endereço, o Juizado entraria em contato com os pais — também, se eles e s t ivessem. . . Tudo muito na base do s e . . .

— E, se não souberem?

— Outro se . . . havendo a queixa, serão procurados, a busca é demorada, as favelas dispersas e os favelados têm medo de falar.

— E daí?

— Ficam no Juizado.

— Mesmo?!

— Ora, e como você queria que fosse feito?

— Sei l á . . . procurar até encontrar.

— Fácil de falar, há mais criança por aí, perdida, morando nos becos, nos cantos, nos minhocões. . .

N a d a feito então. Não devia, se soubesse, ter dado esperança ao menino.

No outro dia, João apareceu e ante a resposta explicativa da freguesa, seus olhos se encheram de lágrimas.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 59

Antes o barraco que o minhocão, os dois dormindo, sozinhos num canto da ponte. Pobrezinhos!

À NOITE NO SUMARÉ

A FESTA

Os vinte coleguinhas, meninos e meninas, alunos da 7. a série do colégio de André , compareceram. Mais os avós e tios, cantaram parabéns e comeram bolo. Tudo azul como todos desejavam.

Tatiana é ótima dona de casa e André merece, se merece.

Mas o que não entendo e desta vez não sei explicar o porquê, você saberá me esclarecer? Ê esta a questão: há tanta criança sem festa de aniversário, será que todas elas não merecem? Ê certa esta resposta? Sei lá e segundo Dr. Júlio, que gentilmente serve uísque aos parentes e amigos, para que se envolver? Não vale a pena se perturbar, principalmente hoje. Quem vai alterar o ritmo natural das coisas? Tudo já está estabelecido. — A gente tem pena, não é? Ninguém é insensível, Deus nos livre de tal.

Mas, hoje é dia da festa de André, que deve correr alegre, cheio de velinhas, doze, já está um homem.

A turminha da escola se reúne, mas André gosta mesmo é de dois. São muito unidos, sempre juntos, piscina, o mesmo clube, fé­rias no Guarujá, até acampar uma vez acamparam no pico do Ita­tiaia. Foi uma farra.

— André.

— E daí?

— Eu acho — e continuam a conversa que gira em torno da palavra coragem. O que é coragem? Como chegaram até essa dis­cussão, não sabem dizer, mas agora, a palavra coragem exige uma definição.

Uns cinco ou seis se interessam pelo assunto, formam um blo-quinho e trocam idéias.

— Coragem é aquilo que demonstrou o cara no incêndio do Joelma. Aquele que ficou espremido contra a janela, esperando o fogo passar.

— E fumando, ele fumava.com paletó, gravata, não tirou nada e lá devia fazer um calor dos diabos.

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60 ODETTE DE BARROS MOTT

— Queria morrer defunto bonito, bacana.

— Você acha que isso é coragem? Não tinha outro jeito, ou ele se jogava ou então, esperando como fez Eu também esperava, mas jogar lá de cima, nunca! Morro de medo de altura!

— Eu já acho que coragem. . . é fazer o quê? — Ele mesmo nem sabe, ainda não pensou no assunto. Inventa na hora. — Olha, é fazer uma coisa com a polícia olhando a gente, vigiando. E a gente f a z . . . correr na pista com os tiras atrás, 180 por h o r a . . . o u e n t ã o . . .

— Roubar , pra roubar, a gente tem que ter coragem.

— Nessa tou com você, é preciso muita coragem pra roubar, isso eu também não faria.

— Pois eu fazia, na cara dos outros, sou capaz de roubar.

— Pô , sai pra lá, Tarzan.

— Juro! Pergunta pro André se já não roubei? Um dia tirei a caneta do Roberto e ninguém, nem ele notou.

— É, mas depois você devolveu, não é? Também assim de brincadeirinha eu tiro, mas roubar no duro , puxa, precisa coragem mesmo. A gente na hora deve ficar com um m e d o . . . sei lá.

— Eu fiquei.

— Você já roubou?

— Sim.

— Não acredito, Lucinha.

— Juro!

— Dinheirinho trocado da bolsa da mamãe quando tinha seis anos? Ou uma moedinha da gaveta?

— Não, eu roubei uma revista no dentista, tava precisando de uma ilustração sobre o café, vocês nem imaginam o medo que pas­sei. Nunca mais. £ preciso ter coragem para roubar.

— Roubinho, isso nem é roubo, você é medrosa, mulher não dá pra isso, tem medo!

— Então, pra roubar precisa mesmo ter coragem! E pra ter coragem precisa ser homem?

— Eu acho, e vccê, André? — Mais uma vez, o aniversarian­te é encostado na lona, precisa chegar a uma solução, dar resposta Certo, exato dentro do seu pensar, todos os colegas esperando.

— É, também acho, se vem a polícia, não é brinquedo, não.

— Ora, não é só isso, não , eu se roubar, fico com remorso.

— Você é delícadinho, Rober to .

— Pode ser, meus pais me ensinaram que roubar é errado.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 61

— O filhinho da mamãe é obediente — e todos brincam e ca­çoam do colega.

— Sabem o que estou pensando?

— O quê?

— Vamos provar a coragem do grupo. A gente tira sorte e aquele que for escolhido, rouba. Aí a gente fica sabendo, bem cer­to, se é preciso coragem para ser ladrão. Naquele filme que assis­ti, um bem antigo, o ladrão de casaca, o mocinho roubava sem medo, parecia dono da casa, ia direto nos cofres.

— Você está br incando, nessa eu não entro, roubar pra me me­ter numa fria? Não dou para isso. Desliga.

— Já sabia, Rober to , você é mesmo o bom rapaz. Quem quer? Que turminha desunida, poxa!

— Eu quero.

— Assim, bacana!

E você, André? Que está acontecendo com você, André, que também hesita e não tira o corpo fora? N ã o diz de início não? Não está preparado para evitar o perigo de ir na onda, como fez o R o ­berto, ou tem medo de não demonstrar coragem, e digam o André também é medroso. O que está acontecendo com o homenzinho, fi­lho do Dr. Júlio que está se deixando envolver? Atenção, luz ver­melha. E ele ultrapassa.

— A gente combina, vou fazer a experiência, só que não sei roubar.

— N ã o faz mal, vamos estudar um plano, assim, bichão, as­sim que é ser corajoso.

Toda a turminha se interessa, alguns preocupados.

— Pra dar certo, precisamos organizar um plano.

— Como as quadrilhas.

— O roubo perfeito!

— Onde vocês acham? O quê?

— Ah! Eu penso . . . Lá vem sua mãe, disfarça.

— Conversando? Não querem mais um refresco?

— Não , obrigado, dona Tatiana, a festa está bacana.

— Bacana mesmo!

— A gente está se divertindo muito.

— Há doces no jardim de inverno, depois partiremos o bolo.

— Obrigado.

— A mãe pensa que eu sou criança e faz questão do bolo com velinhas.

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62 ODETTE DE BARROS MOTT

— Mãe — explica rindo Tatiana — gosta de bolos com ve-linha, elas representam os anos de alegria que os filhos nos dão.

— Legal!

— Continuem a conversa, até depois.

— Que você acha, Marco, onde?

— Oi, gente, cuidado, isso pode dar bolo.

— Que é isso, Márcia? Você é mulher, morre de medo, não adianta. Não tem espírito de assaltante.

— Não é nada disso! Já vi muita mulher assaltante, é que se não der certo, vamos ficar e n v o l v i d o s . . . a escola, os pais. Um bafafá danado.

— Ué, tudo isso é risco, quem vai mostrar coragem precisa ser corajoso.

— N ã o entendo, pra que mostrar coragem desse jeito?

— Já não está combinado? Vamos provar que para roubar é preciso coragem. Ponto final no papo. Agora é só organizar o plano.

— Oi, André , você é meu primo e eu aconselho, não vá na onda.

— Lucinha, você não pode falar nada. Já roubou uma revista, imagine, logo do dentista.

Foi gargalhada geral. Lucinha se encabulou.

— Não fale isso alto, contei pra vocês que são colegas.

— Mas roubou, não adianta negar. Morreu de medo, vamos ver se o André fica também com medo e remorso.

— A gente até pode provar se o homem é mais corajoso que a mulher.

— N ã o , não me ponham nessa, nem quero saber mais nada.

— O medroso, eu sabia que você é medroso, Roberto.

— Sou, e daí? Vou comer doce.

Sai. Lucinha também. N ã o querem complicações.

— Os dois medrosos, é melhor mesmo não participarem. En­tão, onde o André vai. mostrar sua coragem?

— Pô, sei um bom lugar.

— Onde?

— No Supermercado.

— Que legal!

— Lá é fácil, não precisa muita coragem, não.

— Como você sabe? Tem tira?

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 63

— Ué, todo mundo entra, não pode levar sacola, mas o André não vai roubar uma caixa de batatas, não é?

André sente um choque. Rouba r? . . . mas agora, já não pode tirar o corpo fora. Fica mal.

Seu bobo, sempre é hora, a vez para seguirmos outro caminho, o melhor. Aí sim, você mostraria coragem.:, Por que não desiste?

— Como é, tem tira? — Sei lá.

— Deve ter sim, um detetive olhando lá de cima, por um olho mágico.

— Puxa, com essa eu não contava.

A festa continua, acertaram os planos, tudo legal, a prova seria no outro dia. Quarta-feira. Ótimo!

Depois da festa, ao se deitar, André pensa: será que eu tenho coragem? por que aceitei? e se me chamarem de medroso?

Dorme agitado.

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N O V I D A D E S N A F E I R A E T A T I A N A NA F A V E L A DO SAPO

— Sabem de uma coisa?

— O quê?

— Agora na feira não pode mais entrar carrinho. Os fiscais prendem. O Gorila quase foi embora, ele precisou esconder aquele carrinho novo na banca, ainda bem que o japonês foi camarada.

— Só os carrinhos da gente ou todos?

— Deixa de ser bobo, então como é que as donas vinham fa­zer compras? Carrinho da gente. A macacada trepa neles e corre pela feira, deram trombada num menino, quebraram a perna dele.

— Pô , que azar!

João que depois da conversa a respeito dos irmãozinhos foi acei­to na feira novamente, ouviu os comentários sem preocupação. Ele não levava carrinho, a distância entre seu barraco e a feira era de 4 km. Muita coisa. O bom é que estava ali, fazendo carreto e ga­nhando mais. Nesse ponto era feliz, mas, desde o momento que deixava o trabalho se lembrava dos meninos. Sentia muito a falta dos dois, onde teriam ido aqueles pestinhas, o Caco tão chorão.

A feira estava um pouco tumultuada, os carregadores agitados, assustados, os que chegavam com carrinhos, iam sendo avisados pe­los colegas. Na hora do pega-pega, tornavam-se solidários.

Nessa bagunça, João ganhou mais e voltou para casa, com a barriga cheia depois de ter comido um cachorro-quente. Bem gos­toso, com o molho picante a escorrer. Gostoso mesmo!

Volta com a sacola costumeira e logo na entrada da favela, uma novidade, um carro no caminho. Uns meninos pequenos, ten­tando abrir a porta, forçando.

— Ué, de quem é?

— De uma moça, ela tá lá conversando com as mulheres.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 65

— Vocês, o que estão fazendo?

— A gente vai abrir a porta e tirar o rádio.

— Vocês vão estragar o carro, a dona chama a polícia e todo mundo vai em cana.

Os garotos, sete, oito anos, ficam assustados, com medo dispa­ram pelos becos e um de longe, atira uma pedra que acerta no car­ro e amassa o lado, arranhando a pintura. Foge, dando risada.

João também corre, podem pensar que foi ele e ele não tem vontade nenhuma de se mostrar valente, corajoso. Não quer saber de encrencas. Vai para o barraco, as meninas já devem ter ido para a escola. Que pena, os meninos!

São duas horas, céu meio tocado a azul cinza, plúmbeo, não é assim que dizem os pintores? Eu, por mim, sem ser o homem do tempo, acho que vai chover, molhar tudo, encharcar a favela e im­pedir que os sócios aproveitem as piscinas dos clubes, ou nas praias, atrapalhar as férias dos turistas! Mas não faz mal, quando chove, resta o teatro, cinema, televisão e o mais importante, as poças d'água em frente dos barracos onde as crianças fingem nadar e se metem no barro. Gostoso mesmo! Depois vem o sol, a água apodrece, verde, cheia de ovos de pernilongos e fede mas tudo fede por lá, as fezes jogadas nos becos, restos de comida? Não , quem tem resto de comida? Se nem deu para ontem mesmo. Eu sei, logo ali é o depósito de lixo, explicando bem, os favelados construíram seus barracos desse lado de propósito. Para aproveitar, isso sim, o resto do tal. Segunda, quarta e sábado . . . Venha comigo logo depois do despejo.

— Achei um pedaço de maçã.

— Eu, uma boneca sem pé e nem braço.

— Oi, neste saquinho tem resto de bolacha, mas, ele é meu, não dou pra ninguém — e assim por diante.

Quanta sobra há no lixo, é só saber procurar e ter sorte. O que atrapalha um pouco, são os urubus, eles disputam com as crian­ças a comida encontrada. Sentem o cheiro de longe!

— Esse bicho nojento. Toca ele, Nico.

— Toca você, eu tenho medo.

— Medo?! Joga uma pedra, ele foge.

Acontece que aqueles urubus estão acostumados com as crian­ças, com os paus e pedras e eles também atacam, sabem defender com bicos e unhas o que lhes pertence: os restos. Eles também têm que sobreviver. De longe é pitoresco — para alguns turistas talvez, cai o lixo e logo o campo é invadido por dezenas de crian­ças e urubus. Bicos, pés, paus e mãozinhas esgravatando. Ânsia igual de encontrar algo.

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66 ODETTE DE BARROS MOTT

Agora, já acabou o movimento, tudo está mais calmo, as crian­ças maiores foram para o cruzamento da estrada, lá onde param os carros, pedir esmolas. Os que não andam sozinhos, ficam brincan­do na lama. O dia passa.

E o Chevette? T ã o nosso conhecido. Não é o Chevette da as­sistente social Tatiana? Tati , não se envolva, não participe. Os pro­blemas não são seus.

Mas ela está ali, pálida, como não se envolver, já sendo envol­vida pelas crianças nuazinhas de três, quatro anos, pisando no lixo, a disputar comida com os urubus? Não participe! E ela sofre e sente e torna a sentir, o Chevette lá embaixo, a casa com jardim de inverno mais longe e seu coração aflito, querendo pular do peito.

Dr. Júlio, onde está o senhor que não vem aconselhar sua mu­lher a ter menos sentimento, a se unir menos aos favelados, a se esquecer do sofrimento alheio? Leve-a ao teatro, ao cinema, tire-a daqui.

Tatiana penetra na favela, assustada. Está só e há muitos tipos estranhos por lá, ainda bem que veio simplesmente vestida sem jóias e enfeites. Esta é sua última oportunidade, talvez seja a favela dos meninos. . . e o Caco não pára de c h o r a r . . .

Como o marido está viajando, esse negócio no Rio de Janeiro é grande, e o filho junto com a turma, ela resolveu aproveitar a manhã, meio morta da quarta-feira e tentar encontrar a tal favela.

Sem nenhuma outra informação a não ser que é perto do mor­ro e do riacho seco, onde tem sapo, cobra, um homem foi mordi­do e seu Antônio não foi porque tem botas, não é Pedô? É Caco!

Tomou o Chevette, acordou cedo, sete horas, às oito horas já es­tava na rua, o trânsito está melhor.

Que direção tomar? Já se informou a respeito dos morrinhos, elevações que cercam a cidade, num planalto, tem urgência de encontrar a mãe dos meninos, eles não devem permanecer no Jui­zado, precisa encontrar sua família.

Traz anotado num caderninho as várias direções; já percorreu norte, nordeste, leste, oeste. . . agora falta este lado aqui. Às onze horas, toma um cafezinho num bar e telefona para casa, André não teve aula e ficou na cama até mais tarde.

— Mamãe, foi bom você telefonar, posso almoçar com o Mar­co? Ele convidou.

Tatiana pensa, hesita e cede. Até é bom ele almoçar com o amigo, assim ela terá mais tempo para a busca, não precisa voltar para casa, come um sanduíche na rua.

— Bem, filho, a que horas você volta?

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 67

— Seis, tá bem, mamãe? A gente vai ver o filme junto na te­levisão, tá?

— Está bem, André , bom divertimento, leve agasalho, parece que vai esfriar.

Mandam-se beijos e Tatiana depois de consultar o caderno, toma a direção norte. Já visitou três favelas e nada, não encontrou nenhuma mãe que tivesse perdido há nove dias, dois meninos, um loiro, outro moreno.

— Eu perdi o meu, faz cinco anos e nunca mais vi ele.

— O meu, foi atropelado e morreu.

— O m e u . . .

Ainda não encontrou a família dos garotos e já passa das 13 horas.

Esta é a última, prometo, chego em casa, tomo banho, um comprimido relaxante, preciso estar descansada, bem maquilada, an­tes de Júlio chegar às oito horas, vamos jantar fora, tudo combinado.

Vai chover, relâmpagos cruzam o ar, ela tem pressa. Entra na favela, sempre seguida por um bando de garotos rasgados, sujos, pe­dindo sem parar , dinheiro, bala, o colar simples que leva no pescoço. Um chega a puxar sua bolsa e todos riem. Está um tanto assus­tada, ainda não se acostumou de todo àqueles olhares examinadores dos homens e com os risos escondidos das mulheres.

Encontra uma mulher com certo aspecto simpático e se apre­senta, Tatiana, dona, sou assistente social e ando atrás da família de dois meninos etc. etc.

As crianças vão e vêm, falam, insistem nos pedidos, brigam, se empurram, dizem palavrões, pedem dinheiro, se atropelam.

— Para que a dona quer saber?

— Foram encontrados na rua, estão ainda no Juizado, mas, se até o começo da semana não localizarmos sua família, serão inter­nados em instituições pertencentes ao Juizado. São pequenos, não sabem nem o nome da mãe, sou encarregada do caso.

Tatiana, não se envolva, que é isso? Lágrimas nos olhos?

— A n . . .

— Que é?

Outra que aparece suja e desgrenhada.

— A dona aqui procura a mãe de dois meninos achados na

rua.

— É parente?

— N ã o , ela é assistente social, e os meninos estão no Juizado.

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68 ODETTE DE BARROS MOTT

— Ué — diz uma turma que ouvia a conversa — pode bem ser os filhos da mulher lã detrás, da subidinha, ela é nova aqui, veio do norte.

— Os filhos dela desapareceram?

— É isso mesmo, dois meninos, faz pouco mais de uma se­mana. A mulher tá doida, não adiantou tudo o que a gente falou.

— Onde ela mora, você conhece a casa?

— Eu levo, mãe, sei onde é.

— Pode ir, moça, ela leva.

Tatiana acompanha a menina, sobem a ladeira, olha o relógio, são três horas, não vai dar mais tempo para ir ao cabeleireiro, que azar, precisa dar um jeito ao chegar em casa, o cheiro é mais azedo que no começo da favela, porque ali não entra a brisa gostosa que desce do morro. O cheiro fica abafado de encontro à umidade e sobe no nariz. Aparecem homens e mulheres sujos, desgrenhados e ela tem medo e se encolhe em si mesma e ouve o marido a dizer — não participe, n ã o . . .

Crianças vêm e vão, falam, pedem doce e dinheiro, reclamam, até que chegam ao barraco: — Ê aquele ali, dona, ói, lá tá o ir­mão deles, o João.

João , ao ouvir o seu nome e vendo a moça, fica assustado, pen­sa em fugir, esconder-se, onde? Será que ela pensa que fui eu que joguei a pedra no carro? Puxa, que azar, e se for preso? Está in­deciso, pronto para f u g i r . . .

— Menino, você é o João? Vem cá, quero falar com você, sim, com você, não precisa ter medo, venha.

Vai subindo meio cansada, está sem comer desde o café da manhã. O ar abafado, fedorento. Meu Deus, como se pode morar aqui?

— Não fui eu, dona, n ã o fui eu — e desanda a correr e os meninos atrás e Tatiana perplexa, sem saber o que falar.

— Vem cá, João — grita ela — não vou fazer nada, não.

Um homem sai de dentro de um barraco: — O que o menino fez, dona?

— Nada, não , estou procurando a mãe de dois meninos en­contrados na rua.

— An, vou lá e-trago ele — dá uma corrida, pega o menino que pára ofegante, e o leva pelo pescoço até Tatiana.

— Deixe o menino, não precisa castigá-lo assim, por que você está assustado? São seus irmãozinhos que se perderam?

João mal pode falar, medo e cansaço juntos, tiram sua voz. Sa­code a cabeça, sim e, finalmente, a mãe tá procurando eles.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 69

— Eu sei onde estão.

— A senhora sabe? — E João não fala nada mais, tem os olhos cheios de lágrimas e a voz presa.

— Sei, sim, vim procurar a mãe deles. — A mãe tá t rabalhando — consegue falar — ela vem de

noite, eu vou buscar e l e s . . . — mas, se lembra do Chevette, aquele bruto arranhão, ela vai vê-lo.

— Você não pode tirá-los do Juizado, é menor, somente seu pai ou sua mãe.

— O pai não tá, ele foi embora, a mãe vem de noite.

— Então , sexta-feira ela vai me procurar na triagem do Jui­

zado.

— Sexta? N ã o pode ser hoje?

— Não , e nem amanhã — João olha sem compreender e sem

coragem de formular perguntas.

— Aqui está o endereço, não perca o cartão, sua mãe que leve documentos, o que ela tiver, entendeu bem? Eles estão bem, só falam nela e em você. Disseram que você traz dinheiro e frutas para casa.

João chora alegre e envergonhado de chorar, limpa o rosto na camisa, os bosticas vão voltar, vai dar uma surra bem dada em cada um, que bom! não caíram no poço e nem .no riozinho.

O dia carrega sua claridade rapidamente, longe dos barracos, cinzas, que agora estão negros.

A mãe volta do trabalho, vê João na porta soluçando.

— O que foi? — pergunta a mulher aflita, sacudindo o meni­no. Está assustada, logo ao subir a ladeira, ouviu comentário, este­ve uma mulher procurando você, e agora João a chorar.

— Mãe — João soluça, não consegue falar.

— O que foi? — pergunta ela aflita, sacudindo o filho

— Mãe, ela achou os meninos.

— Ela? Quem? Achou? Onde eles estão?

— Tão lá, mãe , num lugar onde você tem que ir.

— Onde é esse lugar? Vamos.

— Tá no papel, só na sexta-feira.

— O quê? Os filhos são meus, vou pegar eles agora.

— Não pode, mãe , é da lei, só na sexta. Tá lá no papel.

A mulher entra no barraco. Em cima do fogão, está o papel. Lê com dificuldade.

— Como ela achou eles?

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70 ODETTE DE BARROS MOTT

— Não sei, mãe.

— Essa mulher que veio aqui é polícia?

— Não , mãe, é uma tal assistente social, ela disse que eles es­tão bem.

— Eles comem?

— Ela disse que eles comem, é uma casa.

A mãe senta na porta, já é noite, a chuva passou, chuva de verão e por incrível que pareça, há estrelas e lua. A lua ali no morro é muito linda, não há poluição no alto do céu, a poluição é só na favela, com o calor depois da chuva, o cheiro aumentou, o lixo apodrecendo.

A mulher encosta a cabeça na porta e chora. As meninas que brincavam, aparecem e sem saber porque, vendo a mãe chorar, de­sandam num berreiro!

— Cala a boca, peste, vocês onde estavam?

— Brincando na estrada. — Já disse pra de noite não andar por aí, venham comer. —

Abre a sacola e tira dela uns pães, algumas bananas — ganhei da patroa, onde fiz a faxina, ela vai para Santos.

Comem felizes, então os irmãos vão voltar, hoje não precisam repartir as bananas com eles, nem o pão que vai dar para amanhã, que bom!

A G O R A , TRÊS H O R A S , N O S U M A R É

André acaba de almoçar na casa de seu amigo Marco e os dois estão à espera de outros companheiros, aqueles que na festa com­binaram a respeito do roubo.

Como o lugar da prova é o supermercado do bairro, então os olhos vigilantes, seriam os do detetive, porque já haviam se infor­mado de que o do bairro era guardado.

Às 4 da tarde é a hora combinada, os dois, para não continua­rem tão excitados, ligaram a televisão, mas quem pode ver televi­são tendo à frente, como programa especial, um roubo? Difícil, não?

— Vamos jogar pingue-pongue?

Isso vai bem, pelo menos vocês poderão descarregar na bolinha que acaba rachada, todo o nervosismo da espera. Não querem pen­sar no que vão fazer. Melhor mesmo é desviar a atenção.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 71

Minutos difíceis de passar e como tudo, mas tudo na vida pas­sa, eles também se sucederam segundo a regra — 2 horas e 15, 2 e 20, 2 e 25 e tc . . .

Lá pelas 2 e 45 , apareceram mais três companheiros que irão testemunhar a coragem de André. Depois de trocarem algumas pa­lavras, resolveram sair.

— Como é, André , está com medo?

— Medo do quê? — comenta Marco , o mais atrevido, pelo menos na aparência.

— Puxa! sempre é perigoso.

— Qual, a gente nem sabe se essa estória de detetive é ver­dadeira, pode ser invenção deles pra assustar a gente.

— Sei não , acho que tem olho gordo por aí.

— Já soube do caso de uma mulher que foi presa por estar roubando.

— Sai pra lá, derrotista.

— Deixa, eu não tenho medo.

Não tem medo de verdade, André , ou banca o corajoso? Para mim esse é o modo mais errado de mostrar coragem ou você não sabe o que é coragem? Devia ter pensado mais.

— Qual o plano que vocês arranjaram?

— Você que é o chefe, Marco , onde nós ficamos?

— Chefe? Eu não, a idéia é de todos.

— Vocês vão entrar?

— Natural , fazemos parte das testemunhas. A gente fica per­to do caixa e você passa sem pagar.

— O que vai tirar?

— Não s e i . . . vou ver.

— Olha, tira bombons, tá? Um pra cada um, a gente é cin­co, uma caixinha de chocolates tem cinco bombons.

— Vou ver, sei lá, o que na hora eu achar melhor pegar, dei­xem por mim.

E, chegando ao supermercado deixaram mesmo, ficaram perto do caixa, dois lá fora, corações agitados, ar de medo.

André entra, que tolo — pensa — como é possível bancar o corajoso, assim? Que coragem é essa?

Ele entra, vai até os corredores, examina aqui, acolá os produ­tos, assim como quem está procurando alguma coisa e não encon­t r a . . . o medo acelera seu coração, olha furtivamente, estarão vi­giando? Onde o tal olho gordo?

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Sente as mãos tremerem, pensa em voltar, que é isso, seu, sem coragem? Só um pacote de chocolate e nesse instante, sem pensar, a cabeça no alto, pega os bombons e os enfia no bolso e sai, dis­farçadamente. Foi fácil.

Encaminha-se para a saída. . . atravessa o caixa, os amigos in­terrogam com o olhar, ele sacode a cabeça que s i m . . . e sente uma mão que o segura e alguém diz: vem comigo.

O menino olha por cima dos ombros, vê um moço que não tem cara de detetive, pelo menos como aqueles que conhece através dos filmes de televisão.

Os colegas somem, de um lado, de outro, fogem, eles não pre­tendem demonstrar coragem e resta André só, t remendo, empurra­do pelo detetive, já que seus pés se negam a andar. Vão em dire­ção do escritório, onde entram.

— Vamos , dê o que você roubou.

O menino sente um vermelhão a lhe queimar o rosto, roubou e agora está sendo julgado como ladrão.

Sem coragem, onde está ela? Com vergonha, medo, enfia a mão no bolso e pega o pacote de bombons — Cr$ 15,50 estava es­crito o preço, uma porcaria. Traz três vezes esta quantia no bolso.

— Onde você mora? O homem examina-o da cabeça aos pés, avaliando, pensa logo,

o meniqo é filhinho de papai , classe A, gente rica, preciso cuidado, não quero me complicar.

— Onde você mora?

— Aqui no Sumaré.

— Muito bem, sermão da minha parte não vai adiantar, vou entregar você à polícia feminina e ela que resolva.

— Pelo amor de Deus, deixa eu ir, n ã o faço mais, meu pai vai ficar bravo.

— Não posso deixar e nem adianta choro, esta é a ordem da gerência, roubou, é com a polícia.

André chora desconsolado, o que o pai vai fazer? Que vergo­nha, o pai a chamá-lo de homem e ele a fazer besteira. E a mãe? Vai sofrer e muito.

O detetive saiu da sala, t rancou-a por fora e só voltou 15 mi­nutos depois, com duas polícias femininas, e André preferia sumir, morrer, não quer voltar mais para casa e chora e sofre e tem ver­gonha.

Atravessa o supermercado soluçando, todos se viram para olhar, comentam, perguntam às policiais, elas nem respondem e onde a coragem, onde, de André agüentar firme as conseqüências de seus atos?

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Empurraram o menino soluçando para dentro do carro que bu­zinando vai para a delegacia. Para André , a sirene do carro parece dizer e que todos entendem: aqui vai preso, André , filho do Dr. Jú­lio: ele roubou b o m b o n s . . .

— Onde as testemunhas?

Ê como digo, uma vez, há 2000 anos, aconteceu fato semelhan­te. Um homem cheio de amigos, chamado Cristo, foi preso. Não por roubo, mas, por motivos políticos. Diziam que ele desobedecia a lei. Então , na hora da prisão, viram um de seus amigos, o mais íntimo — Pedro — pescador que estava sentado entre os soldados, se esquentando ao fogo. Perguntaram-lhe: — Tu não és aquele pescador que se chama Pedro e vivia ao lado desse homem que uns chamam de Jesus e outros de Mestre? Você mesmo, chamava-o de Mestre, até ele ser preso. E Pedro , o amigo íntimo, ficou com medo e respondeu: — Eu não , eu não o conheço e nunca o vi . .. Ne­gou três vezes o amigo, pois, por três vezes os soldados o interro­garam.

Nossas testemunhas do roubo também sumiram, nenhum quis provar nada. Brincadeira que acaba com polícia no meio? Na hora do pega pra valer, adeus! Cada um tomou sua direção e foram se esconder, trêmulos, nas próprias casas.

Enquanto isso, André , já na delegacia, é interrogado.

— O que ele fez?

— Roubo . Bombons, num supermercado.

A assistente olha o menino, parece-lhe ser de boa família, o que teria acontecido? Prepara a ficha, quer saber nome, idade, re­sidência, filiação, então seu pai é jurista e você não sabe que rou­bar é contra a lei? Sabe? E por que roubou os bombons? Não ga­nha mesada? N ã o come doces em sua casa? Rouba por gosto?

Ela ia continuar, mas, de repente, lembrou-se de que o pai dele era jurista! Se usasse de muitos argumentos, talvez o pai fosse to­mar satisfação. Boa f a m í l i a . . . gente rica, de posição. . . Melhor não abusar.

Anota os dados, cerra a boca, mas seus olhos têm força, lan­çam raios. André está com medo e vergonha, sentimentos tão fortes que ele acaba chorando.

— Chorar , não adianta, o melhor é pensar duas vezes antes de agir, e sair, não pode. Seu pai terá que vir buscá-lo ou sua mãe.

Como? Deixar sair, você não faz mais? Você está metido em encrenca, foi pego roubando, e esse supermercado é exigente. Vai querer saber tudo a respeito de seu caso. Ainda mais com aquele detetive, ele é durão mesmo. Não adianta chorar.

Pega o telefone, disca.

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— Vou deixar o recado, logo que o Dr. chegar, ligar imedia­tamente, ouviu? Imediatamente para a Delegacia Especializada de Menores, vou dar o telefone e falar com Biasi, certo? É urgente.

André ouve o recado, o pai não está e nem a mãe, deve ser a copeira. Meu Deus! quando o pai c h e g a r . . .

DEPOIS D A F A V E L A , T A T I A N A , A T R A S A D A V O L T A P A R A CASA

Tatiana volta, aflita e corre mais do que o costume. Tem tanto que fazer antes do marido chegar, os cabelos, não vai dar tempo de prendê-los e secar. Só mesmo com a escova. Será que o André já chegou? E cai, novamente na sua constante preocupação, os ga­rotos, o cheiro azedo que ainda traz no nariz e se vê envolvida e nem ouve a voz do marido cheia de advertência, não participe.

Ele está viajando e só volta às oito horas. Telefona para sua casa, pergunta: — André também não voltou? Chego logo, diga para ele tomar banho, se vestir bem que vamos, jantar fora, Maria, por favor, dê uma alisada no meu vestido azul, sim? Volto cedo, o mais rápido possível.

Já está ficando tarde, a chuva também passou, toma uma re­solução rápida, se não proceder assim, não poderá suportar a noite — tem que passar pela triagem, falar com os meninos.

O choro agora manso, soluço triste do menino, de Carlos, pa­rece ser a pancada de seu coração: Mãe, quero a mãe. E se fosse o André a chamá-la?

A tarde também segue seu curso — já disse — segundos, mi­nutos e quando a gente dá conta, a hora passou.

O R E G R E S S O DE D R . J Ü L I O

No avião que o traz de volta do Rio de Janeiro, Dr. Júlio pensa no negócio que acaba de realizar, feliz, contente, vai ganhar mais uma nota.

O pensamento descansa na família — o filho, já homenzinho, na mulher . . . Tati anda triste, preocupada, ultimamente parece in­feliz, está se envolvendo muito com cs problemas dos outros, dos

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favelados. Sente que a mulher, por ela, com uma varinha mágica, resolveria todos os problemas dos marginais. Absurdo! Precisa com carinho, persuadi-la a pôr de lado tudo isso, fazê-la compreender que vive em outro meio, ocupa ovtra posição, enfim, nada a liga a essa classe inferior.

Seria bem melhor para ambos, que ela ficasse em casa, essa es­tória de sair todos os dias de casa para o trabalho dizem que valo­riza a mulher, pura invenção da classe média inferior. Não tem di­nheiro e então cria essa situação.

A mulher chega cansada, rejeita convites para boites, teatros, bate-papos legais com amigos.

Tati é delicada, sensível, precisa compreender que ele não a proíbe de trabalhar, mas, que essa advertência para não se envol­ver tanto é importante para sua estabilidade emocional.

Já o avião sobrevoa S. Paulo, mais cedo que o horário previs­to. Ainda não é noite, e além das luzes da cidade, vê no céu, uns restos de vermelho, que logo desaparecem e a lua surge aos poucos.

São mais ou menos sete horas.

N A M E S M A Q U A R T A - F E I R A

N O I T E E M SÃO P A U L O

Luzes, faróis baixos, letreiros luminosos, movimento intenso! É noite em São Paulo.

Tatiana chega em casa, pneu trocado, trânsito vencido e ela, também, vencida. São sete e pouco, o marido vai chegar, pelos seus cálculos, às oito horas. N ã o tem tempo para o longo banho de imersão, toma um de chuveiro mesmo. Está preocupada, chegou muito tarde, não gosta de contrariar o marido, de provocar desar­monia na família, mas, ao se lembrar da alegria estampada no rosto dos meninos e dos soluços aumentados pela notícia alegre, esquece tudo o mais. Que ambiente o da favela, aqueles urubus disputando comida, restos, com as crianças, precisa afastar para longe essa lem­brança, desligar.

Encosta o Chevette, pega a bolsa, seus papéis e entra. A casa refrescante, calma, gostosa, foi construída por um suíço, que abusou da madeira dos recantos e jardins! Deliciosa!

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Aí você vai se esquecer de tudo o que acontece aqui fora, não é, Tatiana? Nesta cidade desgovernada! Eu também vou pôr de lado os meninos e a tal cobertura da feira porque igualmente tenho uma casa confortadora.

Tatiana entra.

— Dr. Júlio já chegou? — A pergunta é meio inconsciente, pois sabe aue o marido vai chegar às oito horas .

— Veio, sim. — A resposta a deixa surpresa. Como? o Dr. Júlio já chegou?

— Ele deixou um bilhete para a senhora ler, é urgente. Ela pega o bilhete e vai para o quarto ler, longe da vista da

empregada, o que será? Meu Deus! Júlio chegou antes e já saiu.

Tatiana

Não encontrei você em casa e André está na Delegacia acusa­do de roubo. Vou até lá, espere aqui, é melhor.

Júlio

Ela senta na cama, lê e relê o bilhete. N ã o entende bem, seu filho detido — por quê? E se debate nessa confusão estranha, nova, pungente, opressiva. Parece que o mundo vai acabar, o que é isso, gente? Como pôde acontecer?

Onde? Em que Delegacia? Por quê?

Um tormento de pensamentos e censuras, meu Deus, por que não tomei bem conta dele? Andei me preocupando demais com os favelados e meu próprio filho, solto por aí, quem sabe se em más companhias, mas são somente seus colegas de turma, meninos bem. . . filhos de pais amigos, conhecidos. Como foi acontecer? Ela se debate, tonta, desnorteada, agora está envolvida, sim, mas é problema seu — Santo Deus, é problema seu!

O telefone soa, ela estremece, corre a atender, é mesmo o ma­r ido . . . — Onde esteve? Cheguei em casa e não encontrei você, o André está bem, naturalmente que vai comigo, então você acha que ele ia permanecer aqui? Es tá bem, sim, depois conversaremos, não, ele não vai falar, não , depois em casa ele explica tudo.

De bruços na cama, Tat iana soluça, desesperada. Não sabe o que pensar.

Ouve a porta ser aberta, a voz do mar ido, os passos dos dois e soluça mais e mais. Só, ela está só, sente isso, porque o marido vai acusá-la de ter abandonado a casa, o filho — ela também co­meça a se condenar — mas ouve, lá dentro, o choro desamparado de Caco, tão pequeno, sujo, tossindo com a asma, tomou tanta chu­va, quero minha mãe, m ã e . . . e confunde os choros dos meninos, da favela, e do filho que entrava no quarto e se jogara na cama ao seu lado.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 77

Dr. Júlio, cenho franzido, sai do quarto, volta com água e com­primidos, oferece aos dois, e procura acalmá-los com palavras.

— Vamos, Tati , você assim confunde o menino, pára de cho­rar, vá se lavar, ainda dá tempo para jantarmos fora. Está certo que André n ã o vai fazer outra, ele se sente deprimido. Viu que essa não é uma brincadeira própria para filho de um advogado.

Para quem, então? Bela explicação. Enfim!

— Venha, André , vamos deixar sua mãe se vestir, não dou mais que meia hora , estou faminto. Como é bom chegar em casa.

Tatiana levanta-se, beija o filho, aperta-o de encontro ao peito. Por quê?

Deixa seus pensamentos, Tat iana, foi brincadeira de colegas, o que não foi brincadeira, isso não , é o caso daquele menino que roubou as frutas, o filho da mulher que você atendeu na Triagem, lembra-se? Ela estava desesperada, não é mesmo?

E, agora, enquanto toma seu chuveiro, o tal banho de imersão e o cabeleireiro ficaram para trás, antes do pneu estourar — lem­bra-se — que azar o seu, por que não se desliga? Dos corvos, urubus lá na favela do mor ro , a disputar comida com os meninos.

Que vida! Como você assim enleada nesse drama, dele figu­rante, vai hoje suportar o jantar? É melhor desligar, tá?

N A D E L E G A C I A

— Pois é, doutor , o que aconteceu?

— A senhora já sabe, já falou com a assistente social, já foi informada que seu filho roubou.

— Meu Deus, seu Doutor , tenho sete filhos, meu marido está preso, o Tulé é arrimo de família, ele trabalha, vende flanelas nas ruas, aquele pano amarelo de l impar vidro, é um homem que dá pra ele vender. Ganha um dinheirinho, 25 centavos por flanela, aju­da no sustento.

— Quantos anos ele tem? — consulta a folha — tem treze anos, já roubando, vai longe. Quem começa assim cedo, esses trombadi-nhas, todos merecem cadeia, prisão perpétua — diz a um escriturá­rio que bate à máquina.

— Ele roubou, mas, não faz mal, ele não merece penitenciá­ria, não. Seu doutor, solta ele, pense nos seus filhos, o senhor tem filhos, não tem?

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78 ODETTE DE BARROS MOTT

T A T I A N A — SEUS P R O B L E M A S

Há uma pequena televisão na triagem. Duas das auxiliares, são vidradas por novelas e não podem passar sem elas. A que dorme na triagem é solteira, levou pequeno aparelho e assim ao anoitecer, põe a criançada sentada no chão e lá permanecem vendo e ouvindo as novelas, até às nove horas. Depois, cama, ou melhor, colchão.

Pedro e Carlos, nessa hora , se esquecem da mãe, do barraco, de João valente que vai dar nos meninos que batem neles, nem se lembram das irmãs, que ficavam com as melhores frutas e tudo o mais. Há o encontro maravilhoso da televisão, o sono se realiza, ali nas fitas de bangue-bangue, o tiroteio é grande, o bandido morre, cem índios caem feridos, pisados pelos cavalos, há roubos e assaltos, eles vibram, os maiores torcem, gritam, até a auxiliar vigilante se zangar e desligar o aparelho. Fim da festa.

Ê esse, penso, o meio mais fácil de controlar a criançada, per­gunto, não é? Agora, resta saber se é um bom meio, aqueles rou­bos, o tiroteio, mocinhos valentes, heróis que venceram pela for­ç a . . . E o menino se põe na roupa, na ação dos tais heróis. Eu,

— Ora, ora, se vou pensar nos filhos quando vem algum me­nino ladrão, estou feito. Seu filho roubou, merece castigo, ponto fi­nal. Ele vai para o Juizado, até ficar provado que a senhora tem possibilidade de ficar com ele e ele não se tornar um ladrão.

A mulher chora, chora desconsoladamente, o que fazer? Quem vai ajudá-la a ganhar um pouco mais, para sustentar as crianças?

— Bem, choro não resolve nada, se resolvesse, não haveria mais problemas, tanto as mulheres choram aqui Pode ir e aguar­dar aviso, não adianta vir aqui sem ser chamada.

Passa outra. . E assim, o dia continua na delegacia. Não adianta o sol cha­

mar lá fora, venham ver que claridade, como o verde é mais ver­de, não adianta o bem-te-vi gritar numa árvore que esbanja suas flores vermelhas. É uma espatódia que veio da África, se deu bem no Brasil, terra b o a . . . Tudo isso aqui acontece, sim, nesta terra boa, em que se plantando dá.

A mulher sai atordoada pelo brilho do sol. Brilho intenso, ale­gre, festivo — ela pisca os olhos, solta o último soluço e procura a rua. Vai trabalhar como diarista numa casa, onde a agência de do­mésticas mandou. Vai chegar tarde, mas não faz mal, dá as oito ho­ras de trabalho.

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quando crescer, vou também pegar um revólver e dar tiros, pan, pan, pan, eu também vou ser mocinho e matar bandidos. Viu como ele escapou da cadeia? Oi, seu bobo, o mocinho não pode ficar preso, tá? Ele escapa sempre.

A auxiliar tão entretida no que acontece na novela, no filme, só presta atenção ao que se passa no vídeo, nem percebe a conver­sa entre eles, enquanto não sai a gritaria.

Pois eu, eu não tenho razão èm afirmar que não é um meio muito bom? Mas, gente, é melhor não participar, como diz Dr. Jú­lio, só assim não sofremos pelos outros. Ignorar é m e l h o r . . . Mas, é o certo, o honesto? É o caso de se pensar . . . Vamos deixar essa interrogação e continuar.

Carlos e Pedro, Caco e Pedô, estão lá, sentadinhos, assistindo ao programa, já expliquei, de um bangue-bangue americano. Como os americanos conquistaram o território americano, massacrando os índios. Aleluia!

— Caco, sou o mocinho, e eu, Pedô, você deixa ser o amigo do mocinho, aquele que tem dois revólver e dá tiro sem errar? Sim, você vai ajudar, agora deixa eu ver a fita.

Nove horas, é hora de criança ir para cama. Há um copo de leite e um pedaço de pão para elas e então Caco se lembra da mãe e começa seu choro amolante e como não quer parar , nem com conselhos e nem com pitos, vai dormir sem o leite, o pão e um be­liscão. Bem feito! quem manda ser chorão, diz um garoto, doze anos.

Menino chorão perturba, é isso que merece, castigo. Ainda bem que não levou umas chineladas.

Foi antes do programa noturno de televisão que Tatiana che­gou à triagem. Dou um pulo — pensou ela — falo com os meni­nos e antes das cinco, estou em casa.

Nem olhou o relógio, para quê? Ia mesmo, não podia deixar de ir, já estava envolvida demais. Chegou à triagem, falou com os meninos, disse-lhes que esteve com João , a mãe e Caco abriu num berreiro alto, olhando desconfiado para todos os lados, se a mulher aparecer, será beliscão na certa.

— Sua mãe vem buscar vocês sexta-feira, lá eles sabem dia da semana?

Depois, despediu-se da auxiliar, beijou os garotinhos. Ê para você se desligar, ainda não aprendeu? Beijar dois me­

ninos da f a v e l a . . .

E no seu Chevette, quase parte de si mesma, aquela outra par­te, a assistente social que participa, que se realiza no trabalho, que ama o outro como irmão, parte da humanidade, toma o caminho de volta a casa.

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80 ODETTE DE BARROS MOTT

Procura o caminho mais livre de trânsito que a leve a casa.

Ainda tenho tempo para tomar meu banho de imersão, de me embonecar e quando o Júlio chegar, estarei bem descansada. An­dré já deve ter chegado. Que bom, encontrei a mãe dos meninos. Caco é tão pequeno, João já trabalha, deve ter a idade do nosso fi­lho, porém, mais miúdo.

Enquanto pensa, o carro puxando bem, olha a tarde, céu lim­po, a chuva lavou tudo, a cidade sem poluição. Perigosa, cheia de favelas, de marginais, de fumaça, de fábricas, de carros — ( m a s , nem sabe por que, gosta tanto dela. Nem bonita, dá a impressão de toda remendada, com minhocões, viadutos.

E n t ã o . . . acontece que nem sempre . . .

Sei lá o que, agora não posso parar para pensar e explicar, também ignoro a causa, as coisas n ã o dão certinhas como a gente planeja e no meio do caminho, um pneu do querido Chevette estou­rou e Tatiana não sabe trocar pneus.

Esperou na rua, meio solitária, evito o trânsito, chego mais de­pressa, se um táxi passasse, lá vem um vazio, milagre, que sorte!

Deu o sinal, o chofer parou, ela explicou o caso, disse que pa­gava e o homem fez o serviço, meio r indo, caçoista, quede a mu­lher igual ao homem se nem trocar um pneu sabe?

Ela tomou a direção no Chevette, e aquela meia hora perdida, no imprevisível, deu tempo para Dr. Júlio chegar primeiro em casa.

E, foi ele quem recebeu o telefonema, devia ir à Delegacia que seu filho André está detido. Detido? O mundo caiu, um surto de cólera varreu a Índia, 50 000 mortos, a bomba de Hiroshima?

Não , a prisão do filho do Dr. Júlio, que acaba de realizar um grande negócio e chegou de avião particular, seu filho na cadeia, que injustiça, seu filho, doze anos, um menininho ainda, sem respon­sabilidade, e a mãe?

— Onde está dona Tatiana?

— Ela saiu cedo, logo às oito horas.

— Ainda não voltou? N ã o deixou recado?

— Deixou, sim, seu Doutor , tá na agenda, escrevi lá, ela avi­sou para o André tomar banho e se trocar que ela volta logo. Nem ela e nem ele apareceram. Deu ordem pelo telefone para eu passar o vestido que ela vai sair com o doutor.

— Está bem, tenho que sair novamente, vou deixar um bilhe­te que você entregará a dona Tatiana, logo que ela chegar. É ur­gente e importante.

— Aconteceu uma desgraça, seu doutor?

— N ã o , nada, negócios. — Que moça intrometida, ia lá con­tar seus problemas à copeira?

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 81

Testa franzida, preocupado, como foi isso acontecer? ele se di­rige à Delegacia. Deve ser engano, algum erro.

Mulher que pertence a certa classe sócio-econômica, não devia trabalhar fora, não precisa, a Tat iana tem tudo, ela devia permane­cer em casa, governar os criados. Ultimamente com esse problema de sair diariamente, o movimento da casa parece não ir bem, nos trilhos. O menino solto por aí, é nisso o que dá, más companhias. É isso mesmo, como não havia pensado antes? más companhias.

Põe o carro a correr, também ele evita o trânsito e chega.

Dr. Júlio, etc. no cartão, nome, endereço, profissão, enfim, bem catalogado, é ele sim.

— Por favor, chego de viagem e recebo um aviso de que meu filho se acha detido. Absurdo!

— Sente-se, doutor, por favor.

— Quero saber do que acusam o gajoto.

— Foi preso em flagrante, roubando bombons no supermer­cado.

— Quem? Meu filho? Impossível!

— Sinto muito, mas é a realidade, vou mandar chamá-lo, o senhor conversará com ele. Traga o menino — dá ordens ao guar­da que atendeu ao seu toque — traga aquele garoto aqui.

O guarda volta logo com André que reluta em entrar na sala, chora, encostado no batente.

Dr. Júlio se vê preso de sentimentos contraditórios, pena do filho ao vê-lo chorar, preocupação com o acontecido, raiva do delegado.

— Você, guarda — diz ele descarregando o nervoso no servi­çal mais humilde — não precisa agarrar o menino assim, ele não é nenhum assaltante.

O guarda olha para o delegado que lhe faz sinal para se reti­rar, o doutor está mesmo nervoso e o melhor é evitar qualquer atrito.

— Vamos, filho, o que aconteceu? Conte tudo para seu pai. Você foi maltratado?

— Que é isso, doutor, o menino não tem queixa, não , ele foi preso em flagrante e trazido para cá. Somente isso, se chora é de medo.

— Você não precisa ter medo, filho, conte-me tudo.

— O senhor está muito zangado?

— Atônito, não sei o que pensar, sem saber o porquê de tudo isto. Conte, você roubou? É preciso que você conte toda a ver­dade.

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82 ODETTE DE BARROS MOTT

André sacode a cabeça baixa, sim, roubei.

— Por quê? Você não tem dinheiro?

A cabeça afirmando, sim, tenho.

— Foi molecagem, filho?

Ent re soluços, balbuciando, ele conta o que aconteceu.

Dr. Júlio respira aliviado, pura molecagem, ele sabia, seu filho nunca seria um ladrão, nunca!

— Posso levá-lo?

—. Terá que assinar termo de responsabilidade e advertência, os papéis seguirão seu curso.

— Qual curso? Meu filho não é ladrão, é um menino educa­do, de boa família, sou jurista, como está aí no cartão, ocupo alta posição. Meu filho ser julgado como ladrão?

— É de lei, o senhor como advogado conhece as leis.

— Quero falar com o Juiz, ele é meu amigo.

— O senhor quem sabe.

Dr. Júlio disca.

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Ontem, foi quarta-feira, dia movimentado para todos nós. Hoje é quinta, não é? Tudo tão certinho no calendário e por que entre os homens, as coisas não acontecem assim?

Tatiana dormiu mal a noite, quase se levantou, não o fez para não acordar o marido, ele logo sentiria sua agitação. Seu filho rou­bando, é verdade que de deu explicações, brincadeira, aposta com os colegas, nada de sério; bombons, se fosse comida, se estivesse com fome, talvez por necessidade, mas, bombons?

Pareceu-lhe tão leviano o modo como foi encarada a brinca­deira. Brincadeira. . . e ela se demora nessa palavra. Por brinca­deira, mãe, j u r o . . .

Vira-se na cama, de um lado, de outro, olha o marido, ele dor­me tranqüilo.

Como o senhor pode , Dr. Júlio? Nada o afeta? É tão dono, assim, de seus nervos? Não , não exageremos, naturalmente que o fato do filho ter ido parar na Delegacia o põe nervoso, seu filho na Delegacia, junto com os t rombadinhas, mas, desde o momento que ele se explicara: — Aposta , papai — sossegou. Nada grave, tão simples, brincadeira de meninos. Bem criado, ambiente sadio, en­tão ele ia roubar? N ã o tinha necessidade, que é isso, gente? Rou­bar por necessidade, o filho do renomado advogado?

Tat iana olha o marido deitado ao seu lado, dormindo. Que ho­ras são? Cinco? Seis? Olha o relógio no criado-mudo, letreiro lu­minoso: são cinco horas , muito cedo, mas, a cama está insuportá­vel, parece ter pregos, sabe lá o que, vai se levantar, precisa andar um pouco, é isso, quer movimentos.

Levanta-se de manso, nas pontas dos pés, e vai para o jardim de inverno, pega uma revista, um jornal, olha o cabeçalho dos ar­tigos, como faz seu marido, crimes, assaltos, que mundo, meu Deus, é assim que tem que ser?

Sente vontade de tomar algo quente, vai até a cozinha, prepa­ra um chá, sempre com pensamento fixo no acontecido, imagina ce­nas, o detetive segurando André , arrastando-o, a polícia feminina, ele na delegacia, chorando, só. Ainda bem que o marido não a acusou, não fez um carnaval do caso, simples brincadeira, nada mais.

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84 ODETTE DE BARROS MOTT

Ela, entretanto, está preocupada. O filho já tem doze anos, pa­recia-lhe ser mais adulto, mais firme em seu caráter, foi muito fácil ser levado à tal brincadeira, simples, sim, mas, com fundo desones­to. Não se conforma, é preciso fazer o quê? Tem de tomar uma decisão para que o fato não se repita — ficar mais em casa? Acom­panhá-lo mais? Será esse o motivo? Mas , quando estão juntos, ela. é tão carinhosa, se interessa por tudo o que lhe diz respeito. Par­ticipa.

E, essa palavra — participa — lhe faz lembrar dos garotos da triagem, amanhã, a mãe irá buscá-los, Caco secará seus olhinhos, os soluços passarão. Vão para a casa, com a mãe, o João , um meni­no simpático.

A favela, os urubus, os dois meninos estarão também tocando as aves nojentas, disputando a comida. Pelo menos, na triagem, eles têm o que comer, leite, bolachas . . .

E eu sei, Tatiana, você também sabe, outros meninos e meni­nas, alguns bons, outros péssimos pela sua formação, falta de res­ponsabilidade dos pais, influência do meio. Um verdadeiro desastre, se, como para André , tão bem orientado, as companhias exerceram tal influência, quanto mais para aqueles meninos, vivendo essa si­tuação?

Ela está aí para cuidar do filho, a ele se dedica, e os outros ga­rotos, como são tratados, aqueles abandonados? Caco, tão pequeno, a achar bacana, bonito, a querer viver a vida dos heróis do bangue-b a n g u e , um revólver em cada mão. Quem poderá ajudá-lo, quem? Tudo muito confuso.

Tatiana toma o chá, olha a manna que se aproxima, as árvo­res são verdes, um sabiá, quase inacreditável, mas há um sabiá que vem no quintal cantar, grande como um patinho, peito amarelo.

Olha tudo com amor e aperto no coração, vida estranha, goza do máximo conforto, rica, não precisa se preocupar tem tudo que deseja e ali está, nessa linda manhã que nasce, a pensar na favela, e o coração sofrendo, encolhido no peito, chega a doer.

— Tatiana querida.

O marido a procura: — Tatiana, o que aconteceu?

— Nada , não, querido, creio que a lagosta de ontem à noite me fez mal, vim tomar sal de frutas com um chazinho, você quer uma xícara?

— Acho você ultimamente, cansada, nervosa, irritada, inquie­ta, assim como quem está sempre preocupada, o que acontece? Você não se sente bem?

— Nada, querido, é cansaço físico, não se preocupe, vou ao médico, faço um exame geral, tomo vitaminas.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 85

— Creio, antes, que você anda se preocupando muito com seu trabalho. Deixe o Juizado, prefiro que você fique em casa, cuidan­do do nosso filho.

— Você me culpa do acontecido?

— Do que aconteceu no supermercado? Não, querida, isso foi coisa sem conseqüência, brincadeira de menino. Nem se preocupe, por favor, descanse sua cabeça. Tenho a impressão de que ela fer­ve, como panela de p r e s s ã o . . . — e ri, beijando-a. — Vamos, que­rida, aproveitar mais a vida, combinado?

Ela sorri, ama-o muito, mas, sente que há alguma coisa a afas­tar um do outro, pequena brecha, mas, que existe, ela sente, e de repente, tem a consciência de que entre os dois está a favela.

— E o André , não há perigo com ele? Estou tão preocupada.

— Não se impressione, ele é um menino bem cuidado, recebe amor e carinho dos pais, vive num ambiente sadio, não se preo­cupe.

A manhã acaba de chegar e bate nas vidraças.

Dr. Júlio abre as janelas e respira fundo o ar, ainda leve, que vem de fora.

— Que gostoso, Tati , sinta, nem parece que moramos em São Paulo. Ouça o sabiá. Lamentável que no centro o ar esteja tão poluído. No final da tarde, até me sinto mal. Vou me trocar, pre­ciso chegar mais cedo no escritório, talvez vá até o Rio com um cliente, por que você não vai ao clube, repousa, relaxa, faz sauna, e à tarde, um cinema.

— Está bem, querido.

— Então , venha comigo, quero que você se deite. Não con­verse com André , pelo menos hoje, deixe comigo, eu cuido do as­sunto.

Tatiana segue os conselhos do marido, retorna à cama e pro­cura dormir.

André acordou inquieto, não dormiu bem, pudera, o susto que levou. Um sustão, quando o detetive pôs a mão no seu ombro — tal e qual no cinema — comentaram os colegas e disse: venha co­migo. Que bacana o pai ser advogado, ter influência e assim tirá-lo de lá, era bem capaz de apanhar. Já ouviu dizer que não é brin­quedo, não, ir para o Juizado. Mais ainda, o ambiente feio, pare­des sujas, chão manchado, tudo muito triste. Tratado como coisa. Senta aí, fala quando eu mandar , o safanão que nem contou ao pai, daquele vigia do supermercado, ainda dói o pescoço, parece que tor­ceu. O pai, bacana mesmo, brincadeira de menino, não é, meu fi­lho, não fica bem para o filho de um advogado de nome, homem que defende as leis, brincar assim. E ele concordara, chorando, mas

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86 ODETTE DE BARROS MOTT

que foi excitante, foi. O arrepio ao pegar o pacote, a garganta aper­tada, a boca s e c a . . .

Como é, André? O que você pensa a respeito disso tudo? Vale a pena brincar perigosamente, vale? Posso dar um palpite? Peque­no , prometo, não vou dar conselhos, somente emitir uma observa­ção: É assim que muitas e muitas vezes se começa. Um ditado diz: "Coçar é questão de começar". Melhor mesmo é não brincar. Você já pensou se desse certo? O detetive não visse você roubar? Sairia triunfante do supermercado. O herói, o roubo perfeito! Ama­nhã vamos ver se a gente consegue tirar um par de meias? E de­pois? E. . .

André levantou-se cedo, toma seu banho, veste-se e desce para o café. Encontra o pai lendo jornal. Sente certa vergonha, timidez, pudera, não?

Dr. Júlio compreende, ele é muito compreensivo em relação ao filho, o que não entende mesmo é a mulher se comprometer tanto, com problemas dos outros. Que sensibilidade quase doentia!

Ele , Dr. Júlio, também trabalha, tem complicações no trabalho, mas, a mulher é demais, desliga, Tati , por favor.

— Vamos tomar café, filho?

— E mamãe?

— Ela já tomou chá, passou mal a noite, está descansando, tem trabalhado muito.

— Está doente?

— Não, um pouco cansada.

Tomam a refeição, o menino meio assustado. A mãe ficou doen­te por sua causa? Será?

— Sabe, filho, já programei nossa viagem de navio, para a Se­mana Santa, tivemos sorte, há um programão para esses dias e eu dei um jeito no escritório e posso sair.

— Que bom, papai.

— Estive pensando, filho, no problema de ontem, você não deve proceder assim, não fica bem. Isso podia ter dado galho, você ser mal tratado por algum tira valente, espero que isso não se re­pita.

— Está bem, pai, não vou brincar mais, prometo. E a parte excitante do jogo, aquele frio gostoso e amedronta-

dor a lhe subir pela espinha, você não vai experimentar outra vez?

Tatiana torna a lèvantar-se, não suporta mais a cama e desce até o jardim de inverno. Ê onde tomam a primeira refeição. Re­feição mesmo, Dr. Júlio acha que o dia deve ser enfrentado com o físico preparado. E há leite, pão , biscoitos, ovos, geléias, presunto, manteiga, queijo, etc. e t c . . .

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 87

— Tati, querida, você belisca, coma este pãozinho de queijo. Mas Tatiana está pálida, abatida, afundada nos seus dois problemas tão semelhantes, iguais: o filho, o seu filho e o filho daquela pobre mulher, roubaram. Que o menino da favela roube, dá para enten­der, ela procura justificar como todo o mundo faz, roubou porque sentia necessidade de comer frutas. Está aí o problema. Justo — e a solução foi o roubo.

Mas, será, torno a perguntar e me intrometer, eu que por di­versas vezes prometi me calar. Será que por ser favelado, forçosa­mente ele deva ser ladrão? Como pensa seu Antônio, o garrafeira, a respeito? Ele e João que também não roubam? Vieram da roça, para tentar vida melhor na grande cidade. Lá plantando feijão e mandioca e se o tempo ajudasse, colhiam para o ano. Tinham co­mida. Vieram, pensando em juntar um dinheiro, seu Antônio em busca de uma filha casada, ter contato com os dois netinhos. Ela morava em Santos e ele ficou por aqui. O pai de João , porque na seca, feijão e mandioca não dão, não , e a criançada come do mes­mo jeito. Vieram tentar vida melhor, moram na favela, mas, não são indigentes e nem ladrões. Somente favelados. O dinheiro que ga­nham, mal dá para o pão nosso de cada dia . . . Mas , roubar, não está no programa deles. E você, André , que não precisa? Brinca­deira mais besta, não acha? Veja só, não é que eu queira citar exemplos, Deus me livre. O que eu quero explicar para você, que aceitou meu convite, é o seguinte — seu Antônio construiu seu bar­raco de madeira, de latas. E sim. Apesar de viver ali, do João tam­bém revirar o lixo na esperança de encontrar alguma coisa de valor — achado não é roubado — nem ele e nem seu Antônio brigam, roubam, bebem, se metem em encrencas, vivem com dignidade. Por que então se marginalizar e justificar com a afirmação de que é fa­velado? Tatiana está como eu, tentando entender. Que programão para nós duas, não , Tatiana?

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P E L A M A N H Â N O S U M A R É

Manhã alegre, o homem do tempo disse que este verão foi par­ticularmente quente, tem razão, o termômetro mostra 36° à sombra. Calor mesmo, vontade de tomar sorvete, refresco, bem gelado.

— Depois das aulas, mamãe, posso nadar na casa do Marco? Hoje nossa piscina está esvaziando.

— Pode sim, filho, cuidado com o sol, com a desidratação — o calor está terrível.

— Sim, mamãe.

F A V E L A

A mãe se levanta e chama João , é dia de pegar os meninos.

— João , depois da feira, ajuda a carregar o caminhão e traga laranja, o doutor das Clínicas disse que o Carlos precisa chupar la­ranjas, faz bem pra bronquite.

- Tá bem, mãe, ajudo.

A mãe coa o café, os dois tomam um gole, de pé, ali mesmo.

O sol aproveita a fresta e entra no barraco, batendo numa das meninas. As duas dormem no colchão, mais folgadas, esperem só os meninos voltarem com seus socos e pontapés. Sardinhas na lata.

Os dois saem. A manhã se insinua linda, chamativa.

Lavam .o rosto na agua da lata, João mija de encontro à pa­rede.

A manhã acompanha-os no seu caminho — aos poucos, o sol se expande, clareia tudo, tocando uns restos de nuvens, o céu é um total azul. Vai mesmo esquentar.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 89

Lá, mais adiante, se separam, ele vai para a feira e a mãe para outro lado. Estômago vazio, só o cafezinho preto, pernas pesadas, cabeça tonta de tanto forçar o pensamento. Pensamentos desencon­trados, está alegre, será alegria o que sente? Sabe lá?

Caminha sem nada ver, nem agora, a rua asfaltada, crianças uniformizadas, que alegres vão para a escola, caras limpinhas, como devem ter todas as crianças, e cabelos penteados, preocupa-se com o presente, vai buscar os pestinhas, carros que correm.

Às tantas, antes das oito horas, chega ao Juizado. Creio que são sete horas, tem que esperar. Encosta-se na parede e ali fica. Depois chega outra mulher, dois homens discutindo, quase se pegan­do e mais e mais gente; uma mulher chora alto, o marido fica bra­vo, sacode-a pelo braço. Até dar oito horas e abrir a porta; entrem em fila, em silêncio, o seu comissário não está bom, não , cuidado!

Em fila e ordenados, cada um toma seu lugar e esperam. — Quem é o primeiro? A senhora? Pode entrar, o que quer?

Abre uma porta e faz a mulher entrar. Ela tem o papel na mão, o contínuo toma-o e dá para o comissário.

— Ah! o caso daqueles dois meninos perdidos, onde se viu, mãe perder o filho? A senhora não t em. . . — pára, ia dizer, ver­gonha. Não fica bem, para um comissário de menores falar desse modo. Então prossegue: — A senhora precisa tomar mais cuidado, não pode deixar os filhos abandonados, de um lado para outro. _ Fi­lhos têm que estar sob os cuidados maternos, então, para que pôr filho no mundo, se não cuida dele?

Ela queria se explicar: t rabalho, sou faxineira, meu marido foi pro Ceará, tentar a vida, o João tem doze anos, é meu braço direito, se não fosse ele, o que ganho, não dá pra viver. Mas cadê a co­ragem?

Boca fechada, amargura nos olhos que parecem conter ódio, ouve tudo; onde estão os moleques?

— A senhora tem que prestar uma declaração, dizendo que vai cuidar mais das crianças, está bem? Responsabilizar-se por elas, como toda boa mãe. Elas estão nesse endereço. Entregue este papel à assistente, ela lhe dará os meninos e se forem encontrados soltos outra vez, ficarão no Juizado para sempre, entendeu?

Ela sai, com as palavras martelando, só se amarrar os meni­nos, quando for t rabalhar . . .

Ou então, eu dou um conselho, fique com eles c u i d a n d o . . . É, mas há uma pedra no caminho, não é? Quem ganha para a comi­da, quem? Somente João com os carretos? Lá fora, como é verão, já disse, o sol feliz se espalha, é curioso, entra em todos os cantos, vê tudo! Se o sol falasse? Se ele falasse, contaria que lá na favela, os carros estão despejando o lixo. Os urubus e as crianças já estão de prontidão, vai ser uma festa!

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P A R A OS DOIS M E N I N O S

Pedro e Carlos estão contentes, a mãe encontrou a gente, que pena, Caco, na casa não tem televisão e nem chuveiro, a mãe com­pra uma, a mãe não tem dinheiro, Caco!

— Sabe, Pedô, a gente quando for grande, compra ou pega uma, não é Pedô?

Pega? Como? A televisão, infelizmente, tem dono.

— Pega, Caco? E o dono?

— Ué, a gente pega o revolve como o mocinho e fala, dá a televisão, a grandona de cor, e o homem fica com medo e dá.

Os dois se calam, imaginando a situação, eles com o revólver, como o mocinho da fita e o homem com medo, dando a maior te­levisão, bacana. É possível arranjar uma televisão assim?

Pois é, assim ensinam os filmes e a T.V. e tanta coisa mais!

Aí a mãe chegou, hoje é sexta, o dia marcado, lá pelas nove horas: a distância entre o Juizado e a Triagem é grande, ela não tinha dinheiro para a condução e foi a pé.

Nove horas , como está o dia? Já com o sol, Dr. Júlio não dis­se que a manhã era linda? A leve neblina que cobria a cidade (ne­blina mesmo) se desfez — agora o sol, namorado galante, a cobri--la de ouro em pó. Resplandece sob o sol, dourada!

A mãe entra acanhada, medrosa, será que vai levar outra bron­ca, será? Encontra uma assistente social, que se sente bem contente com o trabalho, foi recém-removida do interior para cá. Conversa, explica a situação, os garotos não podem reincidir, senão, dona, vão pensar que a senhora é descuidada e eles vão ficar no recolhimento de menores. Lá é difícil para as crianças, não é bom, não, há alguns desonestos, sem consciência. Nem todo o mundo compreende a vida, a senhora vê se fica com eles, já que tem que trabalhar, recomenda eles para uma vizinha. A vida é difícil, ainda mais para os pobres, mas, essa é a lei. No Juizado, junto dos maiores, eles vão aprender a roubar, uma série de vícios, a senhora sabe tanto quanto eu. Leve os meninos e evite que sejam pegos outra vez. Vou mandar traze­mos, a senhora, fique calma, depois converse com eles, já andam assustados demais.

Faz dez, onze dias que eles acompanharam aquele peste de ca­chorro e se perderam.

O mundo deu muitas voltas, tantas! A televisão funcionou to­das as noites, com seus filmes de terror, de bangue-bangue, até nos desenhos animados, vê, Caco, o gato vai comer o peixinho, parece o bandido e o mocinho.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 91

A servente chama os dois que aparecem assustados, vão deixar a posição já conquistada nessa semana e encontram a mãe. Enco­lhem-se e depois, Caco desanda a chorar, se aproxima e se encos­ta nela.

A mãe não sabe fazer carinhos, tão desacostumada está, ou nunca aprendeu — olha para os dois, estão mais gordinhos e lim­pos, olha-os bonitos e diz — vamos para casa, seus sem-vergonhas, que susto eu passei, mereciam apanhar uma surra, digam até logo pra moça.

— A senhora tem que assinar este papel, sabe assinar?

— Sei, assino o nome, dona — empurra os meninos, que ago­ra se agarram a ela fortemente, fortaleza única a protegê-los, e lu­tando, letra por letra, escreve o nome no papel.

— Está bem, pode levá-los e não se esqueça do que eu lhe disse — aqui não é bom para crianças, há muito menino grande, professores de vícios e malandragens!

Eles saem, os meninos piscam, a luz é forte, dia glorioso, até dá vontade de todo mundo largar de trabalhar e ir para a praia, ou piscina. Muita gente vai fazer assim, que amanhã é sábado.

A semana passa, n ã o é? E na favela, à tarde, não tendo pis­cina e nem praia, há um bom meio de se tomar banho de sol. Isso não era tão necessário, porque as crianças vivem de lá pra cá, ao ar livre, t ransando, queimam-se, ficam tostadinhas, seminuas, en­tram no lixo e com um pau vasculham tudo, esbordoam os urubus, enquanto o sol banha seus corpos escuros, de nascença ou de con­quista!

SEU A N T Ô N I O F I L O S O F A N D O

Seu Antônio, o garrafeira, conversa com João, enquanto cami­nham. Vão em cima da carroça, vazia, e depois de carregada com jornais, ferro velho, garrafas, o Garoto , não podendo puxar tudo, voltam a pé.

A conversa prossegue sem fim, como telenovela, um capítulo hoje, outro amanhã. Assim, não sentem a caminhada, falam de vá­rios assuntos ligados às suas vidinhas, simples, limitadas — um dia, precisam explorar juntos a matinha, talvez caçar lebre, do castiçal de ferro velho, batido, que compraram barato, bem lixado, dará uns bons cruzas, dos problemas diários da favela.

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92 ODETTE DE BARROS MOTT

— É como digo, João , tá falado e confirmado, a favela não é bom lugar, não. Lá não dá bom peixe. — João não entende bem essa conversa de peixe, onde o córrego é barrento e nem água tem.

— O que, seu Antônio?

— É o que digo, a favela não é bom lugar pra gente velha mo­rar nela, criança então, nem se fala!

João pensa, enquanto acerta seus passos pelo trote do burrico. Deve, sim, deve ser mais gostoso mesmo, morar no Sumaré, lá tem água encanada, luz, televisão.

— Sabe, João — seu Antônio fala repinicado, ele está velho, a subida cansa e seu fôlego é pequeno — pois é, o peixe precisa de água limpa pra viver. Sem poluição, como diz no jornal. Você sabe que leio os jornais velhos — tanto faz ler novo ou velho, é sempre a mesma coisa. A poluição, você sabe como é: se a fábrica joga tinta no rio, os peixes morrem. Quando eu era menino — pára, olha João — do teu tamanho, vim morar aqui, com meus padrinhos. Depois, voltei pra minha terra. Naquele tempo, pesquei muito no Tietê, até traíra e bagre. Pois é — e seu Antônio suspira, bufa, pára, outra vez, e o Garoto atiroveita o intervalo e come um tufo de mato. Já estão na estrada de terra. Ê uma boa subida. — Ago­ra — prossegue ele — nem lambari dá mais, nem girino, filho de sapo. Tudo podre, como te digo. Assim, é a favela, ela é podre e apodrece a gente. Difícil escapar, fruta podre no jacá, uma só, apo­drece todas elas, eu sei, fui vendedor de frutas. O que já não fui, o quê? •

João escuta, mas, ainda não entendeu, será que um dia ele também vai apodrecer? Mas , seu Antônio, n ã o está podre, não, ou está e a calça velha e o casaco escondem a podridão? Tá louco, seu, que conversa mais besta, seu Antônio, sempre a falar coisas boas, animando a gente, agora vem com essa!

— João, eu falo isso — e seu Antônio bate no peito — pra prevenir você. Sou seu amigo você veio do Ceará, morava no sítio, caiu na favela, quero avisar, minha mãe já dizia que quem avisa, amigo é. Eu também vim do sítio, de Araçá Mirim, isso nem dá no mapa, a gente é vizinho lá do norte. Eu de Pernambuco, você, do Ceará. Você não tem pai, eu posso ser teu pai e por isso aviso. A gente veio de um lugar l impo, João , lá não tinha poluição, não, nem no ar, nem nas pessoas. Tudo l impo. A gente é mais amiga, não dá tanta briga.

Isso João entendeu, morava no sítio e lá nunca ouviu falar des­sa tal de poluição. Só em São Paulo .

— João , você é menino, não tou falando dessa tal poluição do ar, não , tou falando da favela.

— Ê mesmo, lá fede muito , quando faz calor e o lixo azeda.

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 93

— Não, João, nem é do fedor da favela que falo, você é ami­go, João, falo da gente que mora lá, gente ruim, cabra peste mes­mo! Qualquer coisa é briga, cacete, facada. Me diga uma coisa, quem por lá anda direito? Quem? Quem não briga, rouba, bebe? Quem não foi parar em cana? Todo o mundo, a gente pode dizer assim, conto no dedo quem não foi na grade. Por quê? Você vê. — Pára outra vez, bate com o dedo no peito de João, toma fôlego, o Garoto come mais capim.

Eu, por mim, gostaria de responder à pergunta de seu Antônio, o garrafeira, dono do Garoto , do barraco onde mora há um ano só e logo, qualquer dia, inesperadamente, pode ser dele despejado pelo dono do terreno. Seu Antônio, apesar de novo na favela, já se im­pôs, é quase um prefeito, sua palavra tem certa força. Nem sempre é aceita por todos, mas, que vale, vale. Vamos ouvir a explicação que ele vai dar, a conclusão que tirou depois de pensar essas 365 noites que passou na favela. Vamos ouvi-lo.

Bufa, tosse, seu Antônio sofre de asma, é gordo, cansa-se facil­mente. Garoto come o capim e João aproveita o intervalo e vai uri­nar no mato e volta.

Prosseguem.

Esqueci de dizer que já entardece, o sol esquenta menos, e há muitas cores espalhadas no céu — que pena a correria da vida, nin­guém tem tempo para admirar o entardecer, isso é quase perda de tempo e "time is money"!

— Sabe, tou pensando e já pensei, neste ano, olhei bem, vejo tudo o que acontece. Não perdi nada. Quando fecho a porta do barraco penso — que vida, meu Deus, que vida. Se é segunda, quin­ta e sábado, então nem durmo. João, pensa, menino, se tá certo aqueles piazinhos brigando com os urubus, as aves pretas, agourentas fedendo a carniça? Brigando por um resto que veio das casas ricas? Resto que as crianças de lá não comeram e os daqui tão arranhando um o outro por causa dele? Tá certo? Já morei no assunto, não descobri a causa. Fecho a por ta e ponho a matutar, não encontra r e spos t a . . .

E nem Tatiana que também se envolveu. Nem eu também. Seu Antônio, pare, por favor, mas , ele está se desabafando, não quer e nem pode parar , é como a água que enchia a barrica até en­contrar um buraco e extravasa por ele. Seu Antônio. . . seu An­tônio.

— Sabe, João , aquela mulher que mora no barraco perto da mangueira? Pois é, o marido bebeu como sempre, tá sempre enchar­cado e espancou ela e o filhinho e jogou eles de noite pra fora. Dormiram no meu barraco, choveu a noite inteira, não choveu? Onde ela ia se esconder? Diga, e a criança? Ela veio faz três dias da Maternidade. Morria , não morria? Tá certo? Tá direito? João,

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isso é poluição da favela. O rio Tietê não era poluído, agora é. Será que um dia, ele volta a ter lambari e cará?

João não entende bem a metáfora, mas, deve haver alguma coi­sa muito séria naquilo que seu Antônio explica. Importante.

Também estou pensando e pergunto, lanço a pergunta que me angustia para que alguém participe (outra vez, essa palavra intro­metida, quase) e me ajude a encontrar a resposta, a solução — será que o favelado um dia vai se conscientizar? Deixar de ser poluído, como diz muito bem seu Antônio, em sua visão simplista do assunto? Será que o favelado vai compreender que, pelo fato dele ser pobre, não é por isso que deve ser ladrão, marginal? Ele precisa se cons­cientizar, compreender e lutar pelo seu lugar ao sol, isto quero di­zer, viver como homem, com todos seus deveres e direitos. Quando, quando? E como? João , seu Antônio — não sei responder, pala­vra, sei que o garrafeira está cem a razão, talvez ele, com a visão de quem participa, diretamente, depois de fechar a porta e se deitar no colchão, pense e torne a pensar e chegue a uma conclusão. Va­mos esperar de dedos cruzados, tá?

Sinto falar em esperar. . . Isso é comodismo. Tatiana está cer­ta em se envolver, em participar, é preciso tomar posição e lutar a luta honesta — como preconizou Cristo, o revolucionário, o não con­formista — "Dar a César o que é de César". N ã o a luta de armas nas mãos, não os mocinhos do bangue-bangue, mas, a luta contra toda a injustiça que o menino deve começar dentro de si mesmo. O ou­tro é igual a mim.

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S U M A R É

Como é Verão

piscina praia gelados piscina praia

piscina praia gelados piscina praia

F A V E L A

Como é Verão

o cheiro forte do lixo o cheiro forte do lixo falta de água — falta de água o cheiro forte do lixo o cheiro forte do lixo

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Tatiana está indecisa, entre a pressão do marido, que vive di­zendo para ela deixar o emprego e ao mesmo tempo, se envolve mais e mais.

Os dois garotos já estão com a mãe, aqueles merdinhas, que susto deram dez dias, procurando eles, seu Antônio, tão bom, até de noite saiu por aí, especulando. Apanharam uns tapas, mereciam uma surra de chicote, mas a mãe amoleceu, vendo eles! As meni­nas perguntaram como foi, como não foi, quiseram saber da televi­são, da comida. Se elas inventarem de sair por aí, vai ser fogo. A mãe devia ter batido nos dois pestinhas pra não fazer outra. O Pe­dro é danado mesmo!

Que alívio, não, Tatiana? Os dois já estarem com a mãe. Mas, e os outros problemas, os casos, que você, como assistente social, tem que resolver? A menina de quinze anos, o Garoto, o Tulé que roubou as frutas e foi preso como o André? O pai foi tirá-lo de lá, ou ele permanece ainda na Triagem e vai para o Juizado?

Ela roda em seu Chevette, pensando, é tudo difícil mesmo! Tem o Chevette, o clube, teatro, cinema, jantar com o grupo do Lions, chofer — que desperdício, André podia ir de ônibus ao colégio, já está grandinho e ela prefere guiar . . . a alegria dos garotos ao se­rem informados de que a mãe ia buscá-los.

E o caso da garota de treze anos? Os pensamentos passam pela mente de Tatiana, como as ruas são percorridas pelo carrinho. Um após outro. A garota fez cesariana, um bebê mirradinho, fraco, pa­recido com a mãe, que ela própria, naquela camisolona do recolhi­mento, mais parece criança brincando de mamãe.

Seu trabalho hoje" ;é no Juizado, ambiente deprimente, triste, meio sujo, necessitando de uma reforma geral. Volta para casa de­primida, então precisa disfarçar, não mostrar no rosto o que lhe vai no coração.

No Juizado, as crianças que lá moram, não têm muito que fa­zer, perdidas na solidão, outras, com o caminho já traçado de vícios e erros.

Difícil é cair e depois sair ileso, lá é um poço fundo! E eu

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OS DOIS LADOS DA MOEDA 97

também estou me envolvendo, desculpe, levando você comigo, mas, só assim você fica conhecendo a tal face oculta da lua.

Tatiana encosta o carro e vai tratar do seu caso, garoto, treze anos, duramente castigado por um guarda e que precisa ser enca­minhado para exame médico. Depois, prestar declarações. Não foi brinquedo, não , a surra que levou, está todo estropiado e se não fosse a nova orientação do Juizado, o caso seria abafado.

O sol lá fora, torrando, mais quente que nunca, no recreio, os meninos procuram a sombra, ninguém quer saber da bola, mes­mo aqui nesta sala, com ventilador, o calor é pegajoso, abafa.

Nuvens negras se acumulam, parece que vai chover.

N A F E I R A D E S E G U N D A - F E I R A

O colorido na feira é tão apetitoso, quanto o perfume atraente. As frutas transbordam das bancas.

Freguesas vão e vêm, examinam, escolhem, compram e pagam, naturalmente, tudo é pago.

Quem não pode comprar, pode olhar, sentir o perfume e de­sejar. O outro sentido — o paladar — fica para os que têm di­nheiro.

João já entrou na feira coberta. Continua no Sumaré mesmo depois dos irmãos terem voltado. Gorila se esqueceu dele, agora tem carro de polícia, vigiando. Deram para roubar carteiras na fei­ra c a polícia vigia atenta, e há vários meninos presos.

Poderia dizer ladrcezinhos, são garotos, meninos quase, na ida­de e no tamanho.

Pergunto a um deles: quantos anos você tem? Examino-o an­tes e calculo doze — e lá vem a resposta, quatorze.

Magro, miúdo, esquivo, olhos atrevidos, parece no máximo, ter doze anos. Mais tarde, vejo-o na viatura policial, encostadinho no vidro, ar de quem olha e não vê.

O que teria acontecido? Vamos perguntar, ainda hoje é segun­da e estamos dentro de nosso prazo.

— O que foi? — pergunto. Sou muito intrometida? Quero sa­ber tudo? Esse está assustado, esquivo, olha de longe o que acon­tece.

— Ele é trombadinha.

— Como?

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— Ué, dá t rombada e afana a carteira. A dona gritou, os guardas tão de olho, já foram avisados, faz tempo, andam de olho.

— Você conhece esse menino?

— O Coati? Todo o mundo conhece ele, mora aqui na feira.

— Na feira? Você quer dizer que ele trabalha aqui, não é?

— N ã o , dona, mora aqui no coberto. Ele não tem casa.

— N ã o tem família?

O carregador me olha e ri de manso:

— Ué, dona, mãe e pai deve ter, não? Mas, ele mora aqui.

— E a polícia? O Juizado?

— Ainda não descobriu, não , ele dorme naquele canto ali. É escuro, de noite ninguém vê ele. N ã o deve ser visto mesmo, pen­so, tão pequenino!

O movimento aumenta, um guarda aparece com outro garoto preso pelo pescoço, que se debate. Uns catorze anos — esse já é grandinho, diz palavrões, ar de malandro.

— Me deixa, seu, eu não tava fazendo nada!

— Vamos, cala essa boca — e com um tranco, o guarda jo­ga-o dentro da viatura. Ele bate a cabeça na porta, se machuca e continua a xingar, violento. Lá dentro, empurra dois menores e lhes dá pontapés.

Olho o guarda, cara de poucos amigos, vontade de dar umas pancadas no garoto — porém, há muitos observadores por ali.

Meu informante acha melhor se retirar, não se sente seguro atrás da árvore, e eu lhe peço para fazer meu carreto. Desse modo, posso continuar nossa conversa, conhecer mais profundamente o que os carregadores pensam e fazem na vida.

— Vamos? Começo as compras na seção de cereais. Você conhece o tal Coati? Que nome engraçado.

— A senhora não viu ele r indo, ele tem os dentes afiados.

— Como?

— Lascou as pontas dos dentes pra ficar bonito, parece aque­la mulher onça da televisão.

— Ele veio de onde?

— Do norte, tem uns cinco que mora aí no coberto, quando chove, não faz' mal , só que no frio, é frio mesmo. Eles se escon­dem atrás da coluna, cobrem com jornal, o jornal esquenta.

— Por que ele não vai para casa?

O menino pára e me olha, não descobre se sou rica ou pobre, visto calças compridas e um blusão. Uniforme de ir à feira. Estou a pé, gosto de caminhar. Fora do carro, sinto melhor a vida.

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— Dona, a senhora acha mesmo que todo mundo tem casa?

Pareço uma aluna que errou a lição no primeiro dia de aula. Sinto-me envergonhada.

— Você tem razão, então, eles dormem aqui?

— Dormem, né, até a polícia deixar. Eles, a polícia deixava porque não faziam nada, às vezes, um foguinho fraco, mas tudo é cimento e não tem perigo de pegar fogo. Agora, não sei, não , o Coati foi preso, ele é o chefe da turma, a polícia vai espantar todos eles daqui.

— Então , onde vão dormir? Nova olhada medrosa para os lados, deve estar desconfiado

com tantas perguntas.

— Sei lá, dona, a senhora não é detetive da polícia, não?

— Não , é q u e . . . sofro vendo meninos dormirem assim.

— E nas pontes, nos viadutos, tá cheinho assim — é só a po­lícia fechar os olhos. O Coati e o Baixinho, aquele outro lá que a senhora viu, vão ficar um tempo no Juizado, isso garanto pra se­nhora. Até eles conseguir escapar, não têm pai pra tirar eles de lá, Deus me livre, é mais ruim que o coberto. Aqui a gente dorme e se esquenta no frio com o foguinho e o jornal, lá a gente dorme mui­tas vezes quente . . . fica com medo — e não me fala mais nada.

Acabamos de fazer as compras, vamos para a minha casa. En­tre árvores e verde, meu marido contou, vinte e nove pés de árvo­res e arbustos no nosso terreno, é um oásis em São Paulo. Olho e respiro com prazer.

Pois é, o garoto vai ver meu conforto, ele carrega as compras até a copa, onde a mesa do café está pronta e farta.

Tati , e se ele entrasse no seu jardim de inverno, não? Depois desse papo de ccbertas, pontes, minhocão, como você ficaria?

Dou ao carregador uma fatia de bolo.

— Que bom, que bacana, obrigado, dona. — Ele sai comen­do alegrinho, reconhecido, sem se dar conta de eme ele também tem direito ao bolo. Assim, acalmo minha consciência: pago bem, dou bolo.

Tatiana, aue vamos fazer nós duas? Abrir mão e deixar as águas rolarem? Ou continuar a sentir essas pontadas no peito? Aca­bamos, se continuarmos assim, nesse envolvimento permanente, se não tirarmos o corpo fora, pelo menos eu, que já tenho sessenta e quatro anos, com um enfarte e você, como vai resolver sua vida? Mas, pensando bem, deve existir algum meio, um modo honesto de resolver essa questão, a do menor abandonado, o que você acha? Deve, não é?

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A favela do Sapo existe, ou existia, quando escrevi este livro, onde moravam, sei lá, quantos favelados e crianças e mais crianças.

Elas viviam nessa favela, juro, como lhes contei no livro. Tal e qual. Um dia o dono do terreno pediu suas terras, ia construir casas de tijolos e alugá-las.

Onde foram morar os favelados da favela do Sapo?

"Sou eu, por acaso, guarda de meu i rmão?" Gênesis.

André também existe. Não inventei e nem conto estórias de fadas: era uma vez um príncipe encantado, uma linda princesa, um castelo de pra ta . . .

Não . O que lhes contei faz parte da vida. Da vida real, gente, da qual participamos.

Agora pergunto: é errado falar dessa realidade para garotos de doze, quatorze anos? E é certo, garotinhos de quatro, cinco, seis anos tocarem urubus com paus, para disputar com eles o lixo, o lixo, talvez, da casa do André?

Vocês são os donos da jogada, acertem por favor!

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Biografia

Odette de Barros Mott

Olhos assustados na procura, sorriso encabulado, baixinha. Fala de sua vida, de seus livros, de seus filhos, assim meio sem jeito, quase pedindo desculpas por terem sido só oito os filhos e quase trinta os livros.

Nasceu no interior de São Paulo, em Igarapava, em 24 de maio de 1913. Seu pai , autodidata que falava seis línguas, inclusive o árabe, foi quem despertou na escritora o gosto pela leitura. Lembra com ternura a primeira vez em que entrou numa biblioteca, acom­panhada pelo pai . Tinha 10 anos. Seu Carlos pediu para a biblio­tecária dar um livro a sua filhinha. O livro escolhido pela bibliote­cária foi A Dama das Camélias. Muitas das situações descritas no livro, Odette só veio a entendê-las vários anos depois.

Formada no Curso Normal do Instituto de Educação Caetano de Campos, t rabalhou como professora primária no Colégio Santana durante quatro anos.

Seus primeiros trabalhos literários foram publicados no jornal O Ginásio. Colaborou com suas poesias nos jornais Eco Mariano e OJocismo.

Aos vinte anos publica Tranqüilidade, livro de poemas prefa­ciado por Correa Júnior.

Casa-se aos 24 anos com Leone Mott e com os filhos começam a surgir os livros Aventuras no país das nuvens, editado em 1949 pela Editora do Brasil, foi o primeiro.

Desde então, Odette de Barros Mott não parou de escrever: em 28 anos, quase tr inta livros publicados, 3 peças de teatro.

Os 11 prêmios recebidos e mais de 1000000 de exemplares não alteram sua simplicidade, só seus olhos estão mais assustados.

Seu endereço: Rua Mococa, 9 1 , São Paulo — SP Telefone: 62-8343

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\ o c ê

conhece livros

Mocinhos do Brasil Luiz Puntel

Num belo dia, no vilarejo de Santa Cruz, começam a sumir objetos inusitados: o mapa do Brasil, os cadernos de cartografia, as cédulas de

quinhentos cruzeiros... O ladrão, quem seria? O mistério é desvendado por uma narrativa caleidoscópica,

da qual participam todas as personagens da trama.

Mairi, uma cidade sob medida M a n o e l C a r d o s o

Sambaíba amanhece em burburinho. Toda a população ficou inteirada da pesquisa de um grupo

de garotos da escola local. É que foi realizado um concurso diferente: planejar uma

cidade que atendesse as necessidades vitais de uma coletividade. Qual será o plano mais

viável para uma região pobre do nordeste brasileiro?

Pedro pedreiro O d e t t e de Ba r ros M o t t

Focalizando a epopéia do empregado de construção civiína cidade grande, esse livro narra a

história do nordestino Pedro, de 45 anos, e por isso marginalizado no mercado de trabalho.

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F I C H A D E L E I T O R

Autor

N a t u r a l de- 1 1

Tí tu lo do livro

/ Cidade Estado País Género do livro N . ° de Páginas

Classificação: / /

• Clássico / • Moderno Editora Edição Ano

ANALISE DA OBRA: Leitura iniciada Terminada

Ambiente Época Local Principais Personagens ——-

Personagem(s) mais apreciado(s) sua(s) qualidades)

seu(s) defeito(s) Personagem(s) menos apreciado(s)

seu(s) defeito(s) sua(s) qualidade(s).

Acontecimento(s) / Cena(s) mais marcante(s)

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Acontecimento(s) / Cena(s) mais apreciada) s)

Acontecimento(s) / Cena(s) menos apreciada(s), com a(s) qual(is) discorde, ache inútil, exagerada etc.

. (Por quê? ).

Você achou algum a mensagem no livro? • Sim • Não. Qual foi?.

FAÇA UM RESUMO DO TEXTO

Sua avaliação pessoal, dando: (0) para mau (ou não existente); (1) para regular; (2) para bom; (3) para ótimo.

interesse: facilidade de leitura: acontecimento / cena de que mais gostou: _ mensagem: ,. tamanho' aventura-no livro: personagem de que mais gostou:

gênero: romance no livro: idéias dadas pelo livro: _

(Some o total e divida por 10) Nota: Assinatura do leitor

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O U T R O S LANÇAMENTOS DA COLEÇÃO

"JOVENS DO MUNDO TODO'

Sugeridos a partir da 8.a série

A Rosa dos Ventos

Odette de Barros Mott

Os conflitos que surgem entre as pessoas que trabalham nu­ma papelaria, jovens em busca de uma direção definitiva para as suas vidas, e suas experiên­cias na descoberta do amor.

Antes Que o Sol Apareça

Lucília J. de A. Prado

Este livro retrata a vida daque­les que, antes de o sol apare­cer, já estão na roça, capinan­do duro. O almoço é impreteri­velmente frio, não há como es­quentá-lo: são os "bóia-frias".

As Incríveis Aventuras de El Condor

João Silvério Trevisan

Embarcando neste livro muito louco, você terá a honra de co­nhecer um carinha muito vivo chamado Ricardo — " E l Con­dor", para os íntimos. Um bra-sileirinho que botou o pé na es­trada e viveu aventuras pela América Latina.

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