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OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE NA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE Artigos Versão Online ISBN 978-85-8015-080-3 Cadernos PDE I

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OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSENA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE

Artigos

Versão Online ISBN 978-85-8015-080-3Cadernos PDE

I

A EQUIPE MULTIDISCIPLINAR E OS DESAFIOS DA

IMPLEMENTAÇÃO DA LEI 10.639/03: SENSIBILIZAR PARA AGIR

ADRIANA APARECIDA BOARON DE SOUZA1

WANIRLEY PEDROSO GUELFI2

“Comece fazendo o que é necessário, depois o que é

possível e, de repente, você estará fazendo o impossível” São Francisco de Assis

Resumo Para viver democraticamente em uma sociedade plural é preciso conhecer, respeitar e valorizar a diversidade étnica e cultural que a forma. A lei 10.639/2003 deixa nítida a obrigatoriedade do ensino de conteúdos sobre a matriz negra africana na constituição de nossa sociedade e no âmbito de todo o currículo escolar. Com encontros periódicos, leituras, estudos e discussões, os integrantes da Equipe Multidisciplinar tiveram a oportunidade de aprofundar seu conhecimento quanto a questões relativas ao racismo dissimulado e perverso que ocorre na nossa sociedade, sensibilizando-se ao longo da implementação com a realidade vivida pelo alunado negro, reconhecendo e valorizando a diversidade étnico-racial brasileira, repensando o currículo, as atividades pedagógicas, o ambiente escolar, as formas racistas de ensinar, a relação entre o professor e aluno, o material didático. Este projeto oportunizou aos professores integrantes da Equipe Multidisciplinar refletirem a realidade do povo negro no que diz respeito ao preconceito e ao racismo diariamente vivido por eles na sociedade e no âmbito escolar. Palavras chave: Preconceito racial. Racismo. Equipe Multidisciplinar.

Introdução

Este documento é resultado da Intervenção pedagógica no Colégio Estadual

Desembargador Clotário Portugal – EFM, do município de Campo Largo – PR,

cumprindo o disposto no Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE/2014-

2015. A escolha do tema deriva da experiência da autora com a Equipe

Multidisciplinar desta escola, percebendo a necessidade de organizar ações que

sensibilizassem seus integrantes quanto a implementação da Lei 10.639/03 que

torna obrigatório o ensino de conteúdos sobre a matriz negra africana. Para

1 Professora PDE da Rede Estadual, lotada no Colégio Estadual Clotário Portugal-EFM, Campo Largo-PR. E-

mail:[email protected] 2 Docente do Departamento de Teoria e Prática de Ensino da Universidade Federal do Paraná – UFPR. E-

mail:[email protected]

combater o racismo e a discriminação na escola, inserindo no contexto escolar

estudos e atividades que promovam a educação das relações étnico-raciais

positivas, são necessários professores qualificados no domínio dos conteúdos,

sensíveis e capazes de colocar em prática o que sugere a referida Lei.

A criação desta Lei foi um avanço na luta antirracismo, porém, conforme

Santos (2005, p. 33), ela não se refere à qualificação dos professores dos ensinos

fundamental e médio para ministrarem as disciplinas referentes à Lei. Assim, parece

que, mesmo indiretamente, ela joga a responsabilidade do citado ensino para os

professores e, a observância da Lei, vai depender da boa vontade docente em

ministrar tais conteúdos em sala de aula.

Surge então a necessidade de criar possibilidades de formação e capacitação

para os professores dessa Equipe, sobre conhecimentos relativos à questão racial,

sensibilizando-os para a importância desse tema muitas vezes camuflado nas

escolas, sugerindo metodologias que poderão ser utilizadas no seu fazer

pedagógico com os alunos. Por meio de oficinas com a Equipe, foram estudadas

questões relativas ao racismo dissimulado e perverso que ocorre no nosso País,

propondo ações de conscientização, sensibilização e aprofundamento desse tema

pelos professores nos seus planos de trabalho e na prática em sala de aula, visando

auxiliar no alcance do verdadeiro objetivo da Equipe: contribuir para que o aluno

negro mire-se positivamente, pela valorização da história de seu povo, da cultura, da

contribuição para o País e para a humanidade. A utilização de atividades lúdicas

como prática pedagógica, tornaram as oficinas mais prazerosas, pois as pessoas

aprendem o que lhes dá prazer.

Para um melhor entendimento desse artigo, o mesmo será subdividido em

seções. Na primeira seção, é feita uma revisão da literatura, sintetizando as ideias

dos diferentes pesquisadores que estudaram sobre o tema em questão,

relacionando-os com a pesquisa desenvolvida, fundamentando-a e justificando o

caminho seguido na pesquisa. Na segunda seção, consta o relato da experiência

vivida durante a implementação didático-pedagógica e o GTR (Grupo de Trabalho

em Rede). Por fim, são apresentadas as considerações finais analisando todo o

trajeto da implementação deste projeto.

1 Contexto Histórico

“Conhecer nossa realidade étnica e racial é de fundamental importância para decifrarmos um País sofisticadamente dissimulado como o Brasil. Aprender e desvelar os quase códigos secretos que envolvem a questão racial pode mudar radicalmente a vida de uma pessoa.” (Hélio Santos)

Desde a primeira infância, os negros já acumulam uma desvantagem no que

diz respeito às oportunidades no campo do ensino. Segundo Santos (2001), estudos

revelam que as crianças de descendência negra (pretas e pardas) enfrentam

dificuldades escolares bem superiores as dos demais grupos étnicos. Elas tendem a

repetir mais vezes os anos escolares e são excluídas mais cedo da escola. O

percurso escolar dessas crianças é mais acidentado, já que elas experimentam um

número maior de saídas e retornos ao sistema de ensino. Pesquisas revelam as

dificuldades por parte dos alunos negros em se integrar ao tipo de sistema de ensino

atual: currículos e livros didáticos discriminatórios e equivocados.

As figuras utilizadas pelos materiais didático-pedagógicos eram, até pouco

tempo (não que não ocorra hoje!), praticamente só de pessoas brancas, sendo que

a família negra simplesmente não aparecia. A figura do negro era vinculada ao

folclore para ilustrar o processo escravista do Brasil-Colônia ou, ainda, de

desprestígio social. A utilização de recursos pedagógicos com esse caráter

demonstra

[...] uma socialização racista, marcadamente branco-eurocêntrico e etnocêntrico, que historicamente enaltece imagens de indivíduos brancos, do continente europeu e estadunidense como referências positivas em detrimento dos negros e do continente africano (CAVALLEIRO, 2005, p. 13).

Dados recentes apresentados pelo IBGE indicam que crianças negras deixam

a escola mais cedo que crianças brancas pertencentes à mesma condição social, o

que demonstra a baixa qualidade das oportunidades educacionais oferecidas às

crianças e adolescentes negros (CAVALLEIRO, 2003). O cotidiano escolar se

apresenta marcado por práticas discriminatórias que submetem a uma percepção

negativa das chances intelectuais dos negros e pardos, favorecendo a formação de

pessoas com ideias e comportamentos subordinados às demais etnias.

Para Kabengele Munanga, professor de Antropologia da USP e defensor do

sistema de cotas para negros nas universidades,

[...] o preconceito incutido na cabeça do professor e sua incapacidade em lidar profissionalmente com a diversidade, somando-se ao conteúdo preconceituoso dos livros e materiais didáticos e às relações preconceituosas entre os alunos de diferentes ascendências étnico-raciais, sociais e outras, desestimulam o aluno negro e prejudicam seu aprendizado (MUNANGA, 2005, p. 8).

Como resultado dessa educação discriminatória e desigual, o baixo nível de

escolaridade da população negra projeta sua exclusão no mercado de trabalho,

construindo um sentimento de inadequação ao sistema escolar e inferioridade racial.

Eliane Cavalleiro afirma que:

[...] a existência do racismo, do preconceito, e da discriminação raciais na sociedade brasileira e, em especial, no cotidiano escolar acarretam aos indivíduos negros: auto-rejeição, desenvolvimento de baixa autoestima com ausência de reconhecimento de capacidade pessoal; rejeição ao seu outro igual racialmente; timidez, pouca ou nenhuma participação em sala de aula; ausência de reconhecimento positivo de seu pertencimento racial; dificuldade no processo de aprendizagem; recusa em ir à escola e, consequentemente, evasão escolar. Para o aluno branco, ao contrário, acarretam: a cristalização de um sentimento irreal de superioridade, proporcionando a criação de um círculo vicioso que reforça a discriminação racial no cotidiano escolar, bem como em outros espaços da esfera pública (2000).

As Diretrizes Curriculares da Educação Básica da Secretaria de Estado da

Educação do Paraná para o ensino da Geografia (2008), “[...] propõe uma

reorientação na política curricular com o objetivo de construir uma sociedade justa,

na qual as oportunidades sejam iguais para todos” e, ainda, “precisa atender

igualmente aos sujeitos, seja qual for sua condição social e econômica, seu

pertencimento étnico e cultural”. Ora, diante da realidade vivida pelos estudantes

negros que foram apresentados até agora, observa-se que essas propostas das

Diretrizes Curriculares estão ficando apenas no papel.

Então, o que está faltando para realmente termos um ensino igualitário,

respeitando o pluralismo cultural e étnico, suprimindo a discriminação racial?

Primeiramente, é preciso refletir sobre a questão racial brasileira como uma questão

social, política e cultural de todos os brasileiros e não algo particular que interessa

somente às pessoas que pertencem ao grupo étnico negro.

É necessário eliminar o foco eurocêntrico da educação brasileira,

diversificando o currículo de forma cultural, racial, social e política. É preciso

promover o respeito mútuo e a possibilidade de se falar sobre as diferenças

humanas sem medo, sem preconceito e sem discriminação.

É fundamental que cada professor cultive sua sensibilidade em relação aos

povos e às culturas africanas, percebendo que tais culturas sustentam de forma

eficaz a personalidade do povo brasileiro; derrubando as ideias e preconceitos que

ocupam as abordagens sobre esse conteúdo, ampliando seus conhecimentos para o

ensino do continente africano nos aspectos humanos, físicos e culturais,

relacionando com a formação do território e do povo brasileiro, evitando todo

material didático com fontes desatualizadas e preconceituosas; refletindo sobre as

relações raciais no planejamento escolar, reconhecendo com dignidade o alunado

negro, denunciando o crime do racismo no cotidiano escolar.

Buscar soluções para o problema da discriminação racial não é um trabalho

apenas em favor do alunado negro, mas em favor de todos os brasileiros. Uma

educação antirracista não só proporciona o bem-estar do ser humano, em geral,

como também promove a construção saudável da cidadania e da democracia

brasileiras.

Para dar continuidade a esse texto, é importante investigar e retomar o

passado, para melhor compreender como se deu o processo de exclusão do povo

negro. Identificando seus principais elementos, poder-se-á ressignificá-los, abrindo

possibilidades para uma reformulação pedagógica que se apresenta urgente e

imprescindível.

A ideia de raças humanas, segundo Nascimento (2006), surgiu quando

cientistas europeus quiseram categorizar as diferenças entre os seres humanos

vindos de regiões afastadas da Europa. Aparências diferentes foram associadas a

supostas diferenças biológicas, constituindo o conceito geográfico de “raça”.

Pensava-se numa hierarquia da capacidade intelectual e civilizatória em que as

raças não europeias seriam classificadas como inferiores. A ideia da superioridade

da raça branca, supostamente comprovada pela ciência, passou a justificar atitudes

de dominação de outros povos, como a escravidão, a conquista, o colonialismo.

Nilma Lino Gomes, afirma que:

Essa reação tão diversa em relação ao uso do termo “raça” para nomear, identificar ou falar sobre pessoas negras deve-se, também, ao fato de que a “raça” nos remete ao racismo, aos ranços da escravidão e às imagens que construímos sobre “ser negro” e “ser branco” em nosso País (GOMES, 2005, p. 45).

Aprendemos tudo isso na sociedade: família, escola, amizades, trabalho. A

questão mais séria é: por que aprendemos a ver o negro como inferior devido a sua

aparência e/ou atributos físicos da sua origem africana? Porque vivemos num País

com uma estrutura racista onde a cor da pele de uma pessoa infelizmente é mais

determinante para o seu destino social do que seu caráter, sua história, sua

trajetória (GOMES, 2005).

Hélio Santos (2001) explica que em pesquisas realizadas por um grupo de

biólogos considerando mais de 8 mil amostras colhidas em todo o planeta,

constatou-se que não existem raças na espécie humana, mas infelizmente isso não

faz os racistas desaparecerem. Segundo o chefe da equipe de estudos, não há

raças porque as diferenças genéticas entre as diferentes etnias são mínimas,

insignificantes.

O olhar histórico voltado apenas aos últimos quinhentos anos reforça a

imagem construída, recentemente, dos povos africanos como primitivos ou eternos

escravos, deixando de lado 5.500 anos de desenvolvimento africano, os quais

antecedem o período da escravidão. Fica encoberto o fato de que os africanos

viveram uma pequena parte de seu tempo histórico presos à escravidão mercantil.

Durante milênios, foram agentes ativos do desenvolvimento da civilização humana

no mundo (NASCIMENTO, 2006).

Surge então uma necessidade de resgatar informações que possam construir

um perfil das culturas africanas e do negro brasileiro na formação do território e no

desenvolvimento do Brasil. Assim, compreender o tráfico, a escravidão e a

“diáspora” africana como elementos formadores do mundo atual, constitui elemento

fundamental para compreender o papel das culturas negras na configuração

espacial e do território do povo brasileiro.

No nosso País é tão forte a identificação da origem africana com a condição

escrava que a palavra “negro” é sinônima de escravo. Porém, a escravidão atingiu

vários povos do mundo. “Aliás, o vocábulo “escravo”, deriva de eslavo, em

decorrência da escravidão de europeus de língua eslava, muito comum durante o

Império Romano e a Idade Média” (NASCIMENTO, 2006, p. 36).

Vale destacar que a escravidão praticada na África era totalmente diferente

da barbárie praticada pelos europeus. Na verdade, na África era praticada a

servidão, baseada na captura de prisioneiros de guerra para serem servos, e essa

condição era reversível e não reduzia o escravo como simples mercadoria. Era

mantida intacta sua humanidade. Quando o servo saía dessa condição, podia elevar

seu nível social. Como era proibido em alguns reinados comentar a origem servil de

uma pessoa, um antigo servo poderia se tornar um chefe da sua aldeia.

Anjos (2006) faz um apontamento importante referente à Europa nos séculos

XV e XVI. Com seu território de dimensões reduzidas, pobreza mineral e uma

população insuficiente para ocupar e produzir nas “novas terras descobertas”, os

europeus vão encontrar nas terras africanas os fatores de produção que lhes são

escassos. Não era somente a terra e suas riquezas minerais que interessava aos

povos europeus, mas também os seres humanos. Esse fator fez com que a África

fosse transformada no maior reservatório de mão-de-obra escrava jamais visto e

imaginado pelo homem.

Santos (2001) explica que o povo negro para nosso País trazido – cerca de 4

milhões de africanos mais os “crioulos” (termo dado aos negros nascidos na

Américas coloniais) – trabalhou muito, aliás, só trabalhou. Tudo o que na Terra de

Santa Cruz tinha de ser construído: edificações, açudes, estradas, plantações, a

mão negra tudo fez. A crença por parte dos invasores europeus da inferioridade dos

negros legitimou o rapto destes da África. O entendimento por parte do português de

que os negros se “adaptavam” melhor ao trabalho escravo deve ter funcionado como

uma espécie de salvo-conduto para aliviar sua consciência católica.

Segundo Eliza Larkin Nascimento (2006), uma das consequências

geográficas mais graves dos processos espaciais desencadeados pela diáspora

africana (dispersão de um povo e sua cultura) foi a desestruturação dos antigos

Estados políticos do continente, componentes fundamentais para a compreensão da

amplitude das formas de organização social, política e territorial dos povos africanos.

Como a escravaria era formada por populações encarceradas, era muito difícil

para os cativos terem uma família estruturada, afirma Hélio Santos (2001). Os

grupos de negros que vieram para o Brasil provinham dos mais diversos lugares da

África, falando línguas diferentes, fazendo parte de diferentes grupos étnicos que, às

vezes, pertenciam a facções inimigas. A política dos escravagistas era realmente

esta: impedir uma maior solidariedade entre os escravos, o que lhes possibilitava

dominar mais amplamente a todos na senzala.

O trabalho exaustivo na senzala (mais de 12 horas por dia), a alimentação

inadequada, as péssimas condições de sobrevivência, as chicotadas no pelourinho,

a dor física e moral, faziam com que a expectativa de vida dos escravos ficasse

entre 18 e 23 anos. Esse fato proporcionava uma alta substituição de escravos,

assegurando uma equipe jovem e com força de trabalho para o senhor. Enquanto

existisse “fartura de mão-de-obra africana para abastecer as Américas, negras e

negros podiam “estourar” de trabalhar à vontade. Afinal, para cada “peça” tombada,

providenciava-se uma nova” (SANTOS, 2001, p. 69).

Revoltados com a situação, muitos negros se aquilombavam em busca de

liberdade. Fugindo, organizavam-se em quilombos, onde desenvolviam uma roça da

qual retiravam seu sustento. O principal deles foi Palmares, uma verdadeira

república que durou mais de 100 anos, tendo Zumbi, hoje considerado herói

nacional, como principal líder.

O escravismo no Brasil durou mais de 300 anos e a tortura foi o que

assegurou o direito dos senhores. O que era visto como rotina num sistema em que

algumas pessoas se achavam donas de outras e a violência com que se lastreou a

escravidão, resultou numa cultura que legitima relações de opressão/sujeição que,

nos dias de hoje, nem todos percebem. Em 13 de maio de 1888, se deu a abolição

da escravatura, mas com ela veio simplesmente a libertação física dos escravos,

não ocorreram ações efetivas comprometidas em acabar com os efeitos danosos da

escravidão.

Iniciado já no começo do século XIX e intensificado dois anos após a

abolição, houve um esforço nacional para embranquecer a população, abrindo

espaço para a imigração europeia. A partir de 1808, com a abertura dos portos, a

entrada do imigrante no Brasil é incentivada. Primeiro vieram os suíços, para os

quais o governo concedeu favores para que se instalassem bem em sua nova

moradia, depois os alemães que, além de receberem terras e apoio financeiro,

tiveram ajuda material, entre outros benefícios. O que deve ser destacado é que,

para os negros livres e índios, nenhuma vantagem semelhante foi concedida. “Dois

anos após a abolição, os recém-libertos continuavam entregues à sua própria sorte

– eram negros soltos, não cidadãos” (SANTOS, 2001, p. 44).

Durante o período colonial até a República, Rosa Margarida de Carvalho

Rocha (2011) explica que a maioria dos escravos não frequentou a escola, pois seu

tempo era exigido quase que exclusivamente para a atividade produtiva. A Igreja

Católica, na época, responsável pelos ensinos primário e secundário, possibilitava

somente aos brancos e ricos receber esta formação. Filhos de colonos aprendiam a

ler e escrever, progredindo no campo educacional.

Legalmente, a exclusão escolar da população negra brasileira foi oficializada

com o Decreto nº 1.331, de 17 de fevereiro de 1854, através do qual foi estabelecido

que nas escolas públicas do País não seriam admitidos escravos. E ainda pior, uma

Lei Complementar de 5 de dezembro de 1824 proibia o leproso e o negro de

frequentarem a escola pública.

A educação foi levada em conta durante o processo de abolição do trabalho

escravo, pois era preciso formar trabalhadores necessários à sociedade livre. Nesse

aspecto, a educação realizou-se de forma totalmente marginal: havia uma escola

para atender à sociedade da época e outra para os trabalhadores, uns tendo acesso

à riqueza material e outros não.

Outro fator importante para entender a situação de marginalização do negro

na sociedade brasileira e, consequentemente seus reflexos na educação, passa,

segundo Rocha (2007), pelo entendimento da visão eurocêntrica de mundo, tendo

como base o determinismo positivista do século XIX. Este, incorporado pelos

intelectuais brasileiros apoiados em teorias “científicas” racistas emergentes naquela

época, hierarquizava a participação da população brasileira, cabendo ao branco,

nesta ideologia de supremacia racial, o protagonismo do progresso e da evolução da

nação, e ao negro a posição de incapaz de pensar e interagir na sociedade.

Aos olhos da elite, era preciso branquear a população brasileira, a fim de

construir a nação brasileira de forma mais positiva, pois uma nação branca seria

superior, física e culturalmente.

Portanto, esta postura racista de construção da nacionalidade assumida pela sociedade brasileira determinou o lugar do negro nesta sociedade, contribuindo efetivamente para o agravamento de seu estado de marginalização progressiva, não só como indivíduo, mas como camada social. Sob essa perspectiva, a população negra foi impedida de viver sua cidadania em função do racismo, da discriminação e dos preconceitos que a atingiram em todos os setores sociais (ROCHA, 2011, p. 18).

O Estado assumiu a responsabilidade do ensino, espalhando práticas

discriminatórias e racistas do espaço social. Criou-se, então, segundo Rocha (2011),

um currículo centrado na criança, mas como o currículo é fruto de uma opção teórica

e política, a escola não era um espaço para o negro. As relações desiguais

presentes na sociedade brasileira ocupam todos os espaços, principalmente o

escolar, como comprovam os censos de 1940 e 1950 da Pesquisa Nacional por

Amostra de Domicílios (PNAD). Colocou-se na obscuridade a história negra e a

trajetória histórica de luta por cidadania.

Durante décadas, essa situação permaneceu estável, encoberta pelo mito da

democracia racial. As crianças e os jovens negros não encontravam um ambiente

acolhedor na escola, onde se garantisse um aprendizado prazeroso e a

permanência sem que essa tensão fosse explicitada. Práticas pedagógicas e

silêncios fizeram da escola uma reprodutora do racismo, conforme explica Rocha

(2011).

Os movimentos sociais negros passaram a incluir em suas agendas

reivindicações junto ao Estado Brasileiro referente à reprodução da discriminação

racial contra os negros no sistema de ensino brasileiro, a inclusão do estudo da

história africana, as lutas dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro

na formação da sociedade brasileira. Parte dessa reivindicação já constava na

declaração final do I Congresso do Negro Brasileiro, que aconteceu no Rio de

Janeiro, entre 26 de agosto e 4 de setembro de 1950. Respaldados pela

Constituição de 1988, Rocha (2011) esclarece que reivindicações e denúncias

apresentadas por vários movimentos sociais e estudiosos da questão racial,

começaram a ser ouvidas e essa história passou a tomar um rumo novo.

“O Art. 210, da chamada “Constituição Cidadã”, preconiza: ‘Deve-se promover o respeito devido pela educação aos valores culturais’. Também o Art. 227 atribui ao Estado o dever de ‘colocar a criança a salvo de toda forma de discriminação’. O Art. 242, d 1º, estabelece que “o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro” (BRASIL, 2000, p.131).

2 Relato da implementação

De acordo com o previsto na Deliberação n° 04/2006, do Conselho Estadual

de Educação/CEE-PR, que institui as Normas Complementares às Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o

Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos estabelecimentos

escolares da rede estadual de educação básica, estabelece-se na Resolução

3399/2010–GS/SEED e na Instrução 010/2010 SUED/SEED as normas que

regulamentaram o funcionamento e a composição das equipes mutidisciplinares em

todos os estabelecimentos de ensino e NRE.

Em consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e

Africana, e por meio da articulação das disciplinas da base nacional comum, as

equipes mutidisciplinares são constituídas como instâncias de organização do

trabalho escolar, com a finalidade de efetivar a educação das relações da

diversidade étnico-racial. Nesse sentido, compreende-se que a abordagem adotada

pelas equipes mutidisciplinares deve refletir sobre os processos de exclusão,

racismo e preconceito vivenciados por negras/os, indígenas, quilombolas. Mais que

isso, as ações pedagógicas propostas no plano de ação das equipes

mutidisciplinares, devem buscar possíveis soluções para dinâmicas e conflitos

relacionais, que permeiam o cotidiano da escola e que visem a uma educação

efetivamente democrática.

Para o desenvolvimento do trabalho, a equipe multidisciplinar propõe uma

dinâmica de encontros. Estas atividades são entendidas como formação continuada

em educação das relações da diversidade étnico-racial. Todos os participantes são

considerados concluintes desde que participem e tenham frequência de cem por

cento nos encontros realizados ao longo do ano letivo, fora do horário normal das

aulas, recebendo certificados emitidos pela SEED e contam pontos para a

progressão no plano de carreira do magistério público do Paraná.

Ter uma equipe multidisciplinar na escola não garante a implementação da

Lei 10.639/06, pois falta formação suficiente aos seus membros sobre a importância

da aplicabilidade da mesma, bem como todo o conceitual por ela envolvido.

Também falta interesse e envolvimento por parte de alguns membros da Equipe,

que buscam apenas pontos para sua progressão no plano de carreira.

Sob essa ótica, a autora deste trabalho decidiu tentar apontar algumas

sugestões de atividades a serem trabalhadas pela equipe multidisciplinar do Colégio

Estadual Desembargador Clotário Portugal, aprofundando os estudos sobre o

preconceito racial, a fim sensibilizar seus integrantes para essa problemática

enraizada no ambiente escolar e na sociedade.

Essa implementação constituiu um desafio, pois ocorreu em um contexto

desfavorável por se tratar de um período em que em professores se encontravam

desmotivados, com sequelas físicas ou de ordem psicológicas por conta do ataque

do governo aos professores, ocorrido no período da greve, em especial, no dia 29 de

abril de 2015. Para completar, a carga horária dos encontros das equipes

mutidisciplinares baixou este ano para apenas 28 horas, desestimulando ainda mais

os professores.

Os encontros com os participantes da equipe multidisciplinar foram realizados

nas dependências do Colégio, e as atividades previstas para serem desenvolvidas

no laboratório de informática não aconteceram, pois os estragos da chuva de

granizo em outubro de 2014 danificaram o local.

A implementação do projeto de intervenção pedagógica teve início com a

apresentação do mesmo para a equipe multidisciplinar em abril de 2015. Quando foi

apresentado o tema desta pesquisa para o grupo, surgiu uma polêmica relacionada

ao porque focar os estudos apenas no racismo e não nos outros tipos de

preconceitos explícitos na nossa sociedade. Essa polêmica esquentou o encontro,

pois a maioria não entendeu que no PDE temos que optar por um tema e focar o

estudo no mesmo.

Os encontros foram aplicados havendo momentos de leitura e estudo de

textos (coletâneas dos autores aqui já citados, estudados para elaborar o projeto),

com debates acerca do racismo, situação do alunado negro, origem do racismo,

valorização da cultura africana, escravidão na África e no Brasil, o pós-abolição e a

situação até os dias de hoje, fomentando reflexões que levaram os professores a

refletirem suas práticas em sala de aula. Foram utilizados também vídeos

relacionados ao tema e atividades lúdicas.

Nos primeiros encontros, durante os questionamentos e reflexões, observou-

se que nenhum professor assumiu uma forma racista de ensinar, e mais, afirmavam

que no colégio todos eram tratados com igualdade, sem discriminação racial.

Durante a implementação, foram apontados alguns aspectos positivos e

negativos. Os aspectos positivos situaram-se nos debates acerca do tema, onde as

discussões foram pontuando situações ocorridas em sala de aula e no dia a dia,

mostrando, ao longo dos encontros, a verdadeira realidade da escola, onde o

racismo está presente, mesmo de forma camuflada. Os vídeos que, embora sendo

literatura infantil, levantaram boas discussões acerca da aceitação das diferenças

entre as pessoas e aceitação de cada um com suas características peculiares. A

equipe gostou muito da palestra sobre a capoeira, bem como das atividades práticas

sobre a mesma.

Quanto aos aspectos negativos, estes envolveram a desmotivação dos

professores para participar das atividades lúdicas, o laboratório que não funcionava

para realizarmos as pesquisas, a negação por parte de alguns integrantes quanto a

existência do racismo na escola e a redução do número de horas para a progressão.

No GTR – Grupo de Trabalho em Rede – deste ano de 2015, inscreveram-se

20 cursistas, mas somente oito concluíram todas as atividades. Alguns desistentes

deram o retorno, explicando que estavam desmotivados a realizarem essa

formação, pois diminuiu o número de horas a serem computadas para a progressão.

Outros declararam achar difícil realizar as atividades nesse novo formato, por

requerer maior compreensão na área de informática, para acessar e postar links,

pesquisar e abrir artigos, entre outros. As discussões e sugestões apontadas pelos

cursistas foram relevantes para enriquecer o trabalho da autora deste projeto.

Considerações Finais

Foram enfrentadas dificuldades na implementação do projeto, pois esse ano

de 2015 foi muito difícil para os professores do estado do Paraná que, no dia 29 de

abril, foram agredidos física e moralmente na Praça Nossa Senhora de Salete, no

Centro Cívico, em Curitiba, no momento em que faziam uma manifestação pacífica

contra as mudanças que o governo fez em na Paraná Previdência.

Essa realidade interferiu consideravelmente e drasticamente na

implementação do projeto, mostrando o quanto os professores ficaram abalados

com a situação de desvalorização profissional e com a educação no nosso Estado.

Por outro lado, foi gratificante trabalhar com esses professores, pois apesar

do contexto em que se encontram, demonstraram força e coragem para participar

dos trabalhos sugeridos por mim nos encontros da equipe deste ano e disposição

em aprofundar seus conhecimentos acerca do preconceito racial, sendo que muitos

mudaram sua postura perante esse problema, aplicando as atividades trabalhadas

nos encontros, com seus alunos em sala de aula.

A implementação das atividades desse projeto foram simples proposições,

visto que o assunto sobre o preconceito racismo não se esgota, consistindo apenas

em modos de problematizar o tema em questão presente nas salas de aula.

Referências A Pesquisa sobre o Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar. 2009. Disponível em:http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/diversidade_apresentação.pdf. Acesso em 19/11/2014. ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. In: BRASIL. Educação Africanidades Brasil. Brasília. Ministério da Educação. Universidade de Brasília, CEAD, 2006. p.53-66. GOMES, Nilma Lino. In: BRASIL. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Coleção Educação para todos. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade: MEC/BID/UNESCO. Brasília: Ministério da Educação, 2005, p.45 a 48. MUNANGA, Kabengele. In: BRASIL. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Coleção Educação para todos. Secretaria de Educação

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