os desafios da escola pÚblica paranaense na … · gramática tradicional e a análise...
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Versão On-line ISBN 978-85-8015-076-6Cadernos PDE
OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSENA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE
Artigos
A COESÃO SEQUENCIAL
Autor: Ronivaldo Olimpio Verrillo1
Orientadora: Alcione Tereza Corbari2
Resumo: Este artigo, parte concluinte do Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE), da Secretaria Estadual de Educação do Paraná (SEED), apresenta uma síntese acerca da aplicação, em sala de aula, da Produção Didático-Pedagógica, bem como uma reflexão a respeito de nossa participação no projeto como um todo. Nele consta, a princípio, um exame comparativo entre a Gramática Tradicional e a Análise Linguística com relação aos conectivos. Na sequência, há um relato reflexivo sobre a Implementação Didática, assim como uma breve exposição relativa à nossa atuação na condição de tutor do Grupo de Trabalho em Rede (GTR). Por fim, este documento encerra as considerações finais acerca dos resultados aferidos em dois anos de participação do programa em questão. Palavras-chave: Coesão. Conectivos. Análise Linguística.
Introdução
O artigo ora aduzido é resultado de nossa participação no Programa de
Desenvolvimento Educacional (PDE), promovido pela Secretaria Estadual de
Educação do Paraná (SEED).
Ao longo do primeiro semestre de 2013, período correspondente à primeira
etapa do referido programa, defrontamo-nos com o grande desafio, próprio dessa
fase, de delinear um Projeto de Intervenção Pedagógica com vista a conduzir os
estudantes à superação de uma determinada dificuldade de aprendizagem
diagnosticada.
Em nosso caso, isso ensejava também outra empreitada, de ordem pessoal.
Durante os anos de Graduação em Letras, nossos estudos linguísticos foram
norteados mormente pela Gramática Tradicional; essa mesma perspectiva, nos anos
seguintes, tornar-se-ia o instrumento mediante o qual lançaríamos mão para lecionar
Língua Portuguesa. Contudo, no decorrer desse exercício, fomos percebendo que o
ensino gramatical normativo enfrentava fortes resistências por parte de muitos
1 Graduado em Letras (Português-Inglês) pela Universidade Paranaense (UNIPAR). Professor (QPM)
de Língua Portuguesa dos Colégios Estaduais do Campo de Rio do Salto e de Juvinópolis. E-mail: [email protected]. 2 Docente do Curso de Letras da Unioeste, campus de Cascavel. Doutora em Letras e Linguística
pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected].
teóricos da linguagem contemporâneos, os quais, por sua vez, advogavam que os
professores de português deveriam adotar uma outra proposta de ensino, que,
segundo tais teóricos, seria mais eficiente: a da Análise Linguística. Desta,
entretanto, tínhamos exíguos conhecimentos. Em razão disso, anelávamos por uma
oportunidade em que pudéssemos nos dedicar a tal estudo – aspiração esta que se
tornou real com a nossa inserção no PDE.
Então, a fim de contemplar os supracitados empreendimentos – desenvolver
o Projeto de Intervenção Pedagógica e nos reciclar com relação aos estudos
contemporâneos na área da linguagem – tivemos a ideia de escolher um tópico
gramatical, estudá-lo segundo os princípios da Análise Linguística e, em
consonância com esta, desenvolver um conjunto de atividades para, na etapa
posterior – a da Implementação Didática –, aplicá-las com os estudantes.
Aos partilhar tais desígnios com nossa orientadora, ela, anuindo à nossa
proposta, sugeriu o tema da coesão sequencial, o qual foi prontamente acatado,
uma vez que vinha ao encontro de uma constatação que sempre nos inquietou ao
longo da carreira docente: se, sabidamente, a língua portuguesa é assaz prolífera
com relação ao seu repertório de conectivos, por que os estudantes apresentam um
uso tão parco dessa classe de vocábulos?
Assim, contando com o diligente suporte de nossa orientadora, elaboramos
uma série de atividades, as quais foram coligidas na Produção Didático-pedagógica,
sob o título de A coesão sequencial. A Implementação ocorreu no primeiro semestre
deste ano, no Colégio Estadual do Campo de Rio do Salto, em turmas de sextos
anos. Do andamento das ações, far-se-á um relato após a abordagem teórica.
1 A Coesão Textual
O termo coesão (do latim, cohaesus), no campo das ciências da linguagem,
tem sido historicamente empregado para designar as diversas formas de conexões
sintático-semânticas presentes nos enunciados. Segundo Koch, “o conceito de
coesão textual diz respeito a todos os processos de sequencialização que
asseguram (ou torna recuperável) uma ligação linguística significativa entre os
elementos que ocorrem na superfície textual” (KOCH, 2004, p.18).
Com efeito, ao exprimir verbalmente nossas ideias, estamos,
necessariamente, produzindo enunciados. Estes, por sua vez, não são engendrados
de modo avulso; pelo contrário, existe uma interdependência entre eles, a qual é
assegurada pelo uso de um grupo de vocábulos – explícitos ou subtendidos –
chamados de conectores ou conectivos. Portanto, na essência do que chamamos de
coesão textual, está a compreensão de todos os processos de conexão verificados
por intermédio desses articuladores.
Contudo, a categorização dos processos coesivos tem constituído uma tarefa
árdua aos estudiosos da língua. Isso porque são várias as formas linguísticas que
podem ser usadas para expressar as mesmas relações semânticas, da mesma
maneira que um único expediente linguístico pode estabelecer relações de sentidos
diversas, a depender do contexto (linguístico e pragmático) em que for empregado.
Além disso, por ser dinâmica, nem sempre a língua se sujeita a categorias pré-
estabelecidas.
A difícil missão de investigar essa matéria coube, inicialmente, à gramática.
Segundo Neves (2002), na Grécia antiga, quando começaram a surgir os primeiros
estudos gramaticais, os filósofos perceberam a existência de um grupo de palavras
ou expressões cuja função era a de estabelecer conexões entre as orações. A essa
classe de palavras deu-se o nome de conjunção (do latim, coniunctio). A título de
exemplo, Dionísio, o Trácio (170 a.C. - 90 a.C.), definia a conjunção como “a palavra
que liga com ordenação o pensamento e revela os vazios da expressão” (DIONÍSIO
apud NEVES, 2002, p. 57). Esse pensador estabeleceu ainda uma nomenclatura
acerca das conjunções, dividindo-as em copulativas, disjuntivas, continuativas,
subcontinuativas, causais, dubitativas, conclusivas e expletivas.
Os manuais de Gramática Tradicional contemporâneos segmentam a classe
das conjunções em dois grupos: o coordenativo e o subordinativo. Em termos
sintáticos, o primeiro corresponde a um tipo de estrutura chamada de parataxe – da
qual fazem parte as orações coordenadas sindéticas e assindéticas –, e o segundo,
à hipotaxe, compreendido pelas orações subordinadas adverbiais.
Os processos coesivos verificados mediante a utilização de conjunções
coordenativas são cinco: aditivo, adversativo, alternativo, conclusivo e explicativo.
Segundo Bechara (2009), tais conjunções “reúnem orações que pertencem ao
mesmo nível sintático: dizem-se independentes uma das outras e, por isso mesmo,
podem aparecer em enunciados separados“ (BECHARA, 2009, p. 319). Porém, essa
independência sintática nem sempre se traduz em autonomia semântica. Conforme
assinala Garcia (2012), as conjunções conclusivas e explicativas “estabelecem tão
estreitas relações de mútua dependência entre as orações por elas interligadas, que
a estrutura sintática do período assume características de verdadeira subordinação”
(GARCIA, 2012, p. 44). Para exemplificar, tomem-se as seguintes orações: “Ele
trabalha muito, portanto merece um descanso.” e “Ela é muito inteligente, pois
sempre emite opiniões fundamentadas.”; em ambas, o segundo enunciado só pode
ser compreendido se relacionado ao primeiro.
No que concerne aos processos subordinativos de coesão, verifica-se a
existência de dez espécies: integrante, causal, comparativa, concessiva, condicional,
conformativa, consecutiva, proporcional, temporal e final. Todas elas, assim como
ocorre no processo coordenativo, são consignadas pelo uso de conjunções ou
locuções conjuntivas afins, que, conforme indicam Cunha e Cintra (2013), “ligam
duas orações, uma das quais determina ou completa o sentido da outra” (CUNHA e
CINTRA, 2013, p. 593). Com exceção das integrantes, as demais séries conjuntivas
assinalam, sintaticamente, as orações subordinadas adverbiais. Sobre esse ponto, é
importante ressaltar alguns apontamentos feitos por Cegalla (2012), que postula a
existência de mais três tipos de orações não reconhecidas pela Nomenclatura
Gramatical Brasileira (NGB): as modais, como na frase “Entrou na sala sem que nos
cumprimentasse.”; as locativas, como em “Quero ir aonde estás.”; por fim, as de
companhia, verificadas em estruturas como “Irei com quem quiser me acompanhar.”
(CEGALLA, 2012, p. 402).
Dentro dos quadros da gramatica atual, os conectivos podem ser
esquematizados conforme a seguinte disposição:
Quadro 1 – Categorização dos conectivos conforme a Gramática Tradicional C
on
ecti
vo
s
Co
ord
en
ati
vo
s
subord
inativos
Aditivos: e, nem, mas também, como também, bem como etc.
Adversativos: mas, porém, todavia, entretanto, no entanto, não obstante, contudo etc.
Conclusivos: logo, por isso, pois (depois do verbo), portanto, por conseguinte etc.
Alternativos: ou, ou... ou, ora ... ora, já... já, quer... quer, seja... seja, talvez... talvez etc.
Explicativos: que, porque, porquanto, pois, por isso (anteposta ao verbo) etc.
Su
bo
rdin
ati
vo
s
Integrantes: que, se.
Causais: porque, pois, porquanto, como, pois que, por isso que, já que, uma vez que, visto que, visto como, que, na medida em que etc.
Comparativos: que, tal e qual, (tanto) quanto, como, assim como, do que (após mais/menos/maior/menor/melhor/pior) etc.
Concessivos: embora, conquanto, ainda que, mesmo que, posto que, apesar de que, a despeito de etc.
Condicionais: se, caso, quando, contanto que, salvo se, sem que, dado que, desde que, a menos que, a não ser que etc.
Conformativos: conforme, como, segundo, consoante etc.
Consecutivos: que (combinado com uma das palavras tal, tanto, tão ou tamanho, presentes ou latentes na oração anterior), de forma que, de maneira que, de modo que, de sorte que etc.
Proporcionais: à medida que, ao passo que, à proporção que, quanto mais, quanto menos etc.
Temporais: quando, antes que, depois que, até que, logo que, sempre que, assim que, desde que, enquanto, todas as vezes que, cada vez que, apenas, mal etc.
Finais: para que, a fim de que, que, porque (= para que) etc.
Fonte: Elaboração do autor a partir de Cegalla (2008), Sacconi (2011), Cintra (2013)
Percebe-se que tal modelo de sistematização dos conectivos é bem
abrangente e que, sem dúvida, configura um grande legado da Gramática
Tradicional para os estudos da linguagem. Todavia, conforme veremos na seção a
seguir, o ordenamento em pauta possui algumas limitações, as quais só viriam a ser
equacionadas a partir de uma nova perspectiva, que, sobrepujando o exame de
frases isoladas, pudesse estabelecer fundamentos numa dimensão maior, que é a
do texto.
2 A Coesão Textual no Âmbito da Linguística Textual e da Análise Linguística
Se, ao longo da história da gramática, a classe das conjunções praticamente
açambarcou o conceito de coesão, uma grande reviravolta ocorreu – e isso não
apenas com as conjunções, mas com todo o sistema gramatical – a partir da década
de 1960, com o surgimento, na Europa, da Linguística Textual (LT), movimento de
estudos linguísticos, cujos expoentes foram Weinrich, Halliday, Ducrot, Isenberg,
Lang, Dressler, Van Dijk, Petöfi e Schmidt, entre outros (KOCH, 2004).
Foge ao propósito deste trabalho estabelecer uma análise pormenorizada a
respeito da LT, mesmo porque esta não constituiu um movimento uniforme. Por
sinal, seus postulantes desenvolveram linhas de pesquisas tão diversificadas,
conforme mostram os estudiosos dessa área, que, para um esquadrinhamento
abalizado, seria necessário um exame à parte. Em todo o caso, de modo geral,
podemos afirmar que o princípio norteador dessa corrente foi a crença de que a
redução dos estudos da linguagem ao plano gramatical configurava uma forma de
mutilação do fenômeno linguístico. Então, os teóricos desse segmento dos estudos
linguísticos propuseram a ideia de que as manifestações verbais – fossem no nível
da fala, fossem no nível da escrita – deveriam ser apreendidas em sua completude,
isto é, pragmaticamente; logo, far-se-ia necessário levar em conta, além dos fatores
puramente textuais limitados ao nível frasal, aspectos do contexto linguístico
considerando o texto como um todo, além de outros de ordem contextual, tais como
a ideologia do enunciador, a época em que ele viveu, suas intenções, o público para
o qual ele se dirigiu, o meio que ele utilizou para estabelecer a interação com o(s)
interlocutor(es), entre outros aspectos.
Com o intuito de estabelecer uma linguística “do texto”, superando uma
linguística “da frase”, os defensores da LT demonstravam, por meio de seus
estudos, a existência de falhas e contradições dentro do sistema gramatical. Para
ilustrar alguns casos que vão ao encontro desses apontamentos, vejamos, por
exemplo, que, no mesmo capítulo em que afirma o sujeito como um “termo essencial
da oração”, a Gramática Tradicional declara, paradoxalmente, a existência de
“orações sem sujeito”. Outra situação cuja análise estritamente sistemática não
consegue solucionar é o da metaforização, ou seja, a característica que faz com que
os enunciados, muitas vezes, adquiram sentidos figurados, conotativos. Ao dizer que
devemos “matar um leão por dia”, não significa que o faremos de fato. Algo
semelhante ocorre com as ironias, em que o contexto produz um sentido oposto ao
do enunciado. Há ainda o fenômeno do “implícito”, isto é, aquilo que fica subtendido
nas enunciações. Um modelo bem ilustrativo disso ocorre naquele que, talvez, seja o
mais famoso dos versículos bíblicos: “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará”
(BÍBLIA, 1992, p. 672). Embora esse período esteja assindeticamente disposto,
percebe-se que há um conectivo implícito entre os sintagmas. Mas qual? Seria o
conclusivo portanto? O explicativo pois? Ou haveria ali uma relação de
consequência? Neste, como em tantas outras circunstâncias análogas, fica evidente
que uma abordagem circunscrita à gramática tradicional, ainda que tenha sua
validade, é limitada, e que somente um exame conjuntural – como defende a LT –
poderia perscrutar melhormente todas as minúcias da linguagem.
Aos poucos, os conhecimentos advindos da LT foram-se incorporando ao
ensino de língua materna, o qual, historicamente, era pautado pelo estudo da
gramática normativa. No Brasil, tal incorporação teve início na década de 1980, sob
a designação de Análise Linguística (AL), termo cunhado por Geraldi, em sua obra
“O texto em sala de aula”, publicada em 1984 (TEIXEIRA, 2011).
Assim como ocorreu com a LT, a AL passou por um processo de
segmentação muito amplo. Segundo Bezerra e Reinaldo, “a análise linguística é uma
expressão ‘guarda-chuva’ que abriga tantas especificações quantas forem as
orientações teóricas que a fundamentem” (2013, p. 31). Todavia, esse campo do
saber segue, basicamente, os princípios de sua matriz, a LT; mas, enquanto esta se
desenvolveu preponderantemente no campo filosófico, a AL compreendeu também o
aspecto prático, visto que perspectivava uma aplicação didática, nas aulas de língua
materna.
Mas como se impor num quadro historicamente dominado pelo ensino da
gramática normativa? No Brasil, isso se deu gradativamente, a partir da década de
1970, segundo Koch (1997), graças à influência dos trabalhos de Marcuschi (1983),
Koch (1987,1989, 1992); Koch e Travaglia (1989, 1990); Fávero (1991) e Bastos
(1985), entre outros teóricos. Em 1997 e 1998, com a publicação, pelo Governo
Federal, dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), a AL recebeu grande
destaque, tornando-se a metodologia recomendada para o ensino de Língua
Portuguesa. No Paraná, a mesma tendência foi ratificada com a elaboração, em
2008, das Diretrizes Curriculares da Educação Básica (DCEs), as quais
estabelecem:
A prática de análise linguística constitui um trabalho de reflexão sobre a organização do texto escrito e/ou falado, um trabalho no qual o aluno percebe o texto como resultado de opções temáticas e estruturais feitas pelo autor, tendo em vista o seu interlocutor. Sob essa ótica, o texto deixa
de ser pretexto para se estudar a nomenclatura gramatical e a sua construção passa a ser o objeto de ensino (PARANÁ, 2008, p. 61)
O processo de implementação, nas escolas públicas, de uma prática de
ensino de língua materna moldada pela AL tem-se caracterizado pelo abandono ao
exame de palavras ou frases isoladas, em função da abordagem de uma dimensão
mais ampla, que é a textual. Busca-se, desse modo, “verificar como os elementos
verbais (os recursos disponíveis da língua), e os elementos extraverbais (as
condições e situação de produção) atuam na construção de sentido do texto”
(PARANÁ, 2008, p.60).
Grosso modo, quando um professor for trabalhar, por exemplo, uma
determinada classe gramatical, em vez de abordar esse tópico separadamente, ele
deverá selecionar um gênero textual, observar neste a ocorrência da referida classe
e explorar com os alunos todas as possibilidades semântico-discursivas que
justificam tal incidência naquele contexto, explorando os sentidos que os recursos
linguísticos em estudo estabelecem naquele texto. Da mesma forma, nas atividades
de produção textual, o aluno não poderá escrever “a esmo”, mas, sob a orientação
do docente, deverá, de antemão, observar fatores globais, o interlocutor previsto, o
gênero utilizado, o nível de linguagem exigido para o gênero que vai mediar a
interação, suas intenções etc.
Em suma, para a AL, os aspectos conjunturais subjacentes a cada
manifestação textual devem ser contemplados – seja nas atividades interpretação e
produção de textos, seja na abordagem de tópicos gramaticais –, de maneira que,
uma vez feita a contextualização, o aluno adquira um aprendizado mais profundo,
que possa ser extensivo a outras leituras e produções textuais.
Retornando ao tema da coesão textual, que é o foco deste trabalho, a LT e a
AL trouxeram importantes contribuições.
Primeiramente, pela percepção da existência de formas coesivas alheias à
classe das conjunções, formas essas que se consignaram sob o título de coesão
referencial, “aquela em que um componente da superfície do texto faz remissão a
outro (s) elemento (s) nela presentes ou inferíveis a partir do universo textual”
(KOCH, 2004, p. 31). O processo de referenciação, conforme apontam os linguistas,
é exercido por pronomes, artigos, verbos, advérbios, numerais, ou mesmo pela
aplicação de outros mecanismos, tais como a utilização de sinônimos, a repetição de
palavras, a elipse de elementos, entre outros recursos.
Já para os processos conjuntivos de conexão, a LT e a AL criaram uma nova
terminologia: coesão sequencial. Esta, segundo Koch,
[...] diz respeito aos procedimentos linguísticos por meio dos quais se estabelecem, entre os segmentos do texto (enunciados, partes de enunciados, parágrafos e sequências textuais), diversos tipos de relações semânticas e/ou pragmáticas, à medida que se faz o texto progredir (KOCH, 2004, p. 53).
É interessante observar que, entre o conceito de coesão sequencial,
desenvolvido pela linguística, e o enfoque dispensado pela Gramática Tradicional às
conjunções, houve uma série de disparidades, que desencadeou discrepâncias de
nomenclaturas e de abordagens, embora ambas as perspectivas tratem, em
essência, do mesmo fenômeno.
Primeiramente, enquanto a Gramática Tradicional ordena a classe das
conjunções segundo os gêneros da coordenação e da subordinação, a LT e a AL
adotam os termos relações logico-semânticas e relações discursivo-argumentativas.
Além disso, o sistema gramatical restringe o conceito de conexão aos elementos
conjuntivos; já as supracitadas matrizes linguísticas afirmam que os processos de
sequenciação também podem ser desempenhados por locuções prepositivas a
adverbiais (KOCH; ELIAS, 2010). Por fim, a própria forma de classificar os
mecanismos coesivos é dissonante quando se compara os campos do saber em
questão.
Com base nos trabalhos de Koch (2004), entre as diferenças terminológicas,
podemos destacar:
1 – O termo ‘conjunção’, que, para a gramática tradicional, define toda uma
classe de vocábulos, agora fica restrito apenas ao modelo aditivo.
2 – As orações coordenadas adversativas e as subordinadas concessivas são
enquadradas no conceito de contrajunção.
3 – As orações subordinadas causais e consecutivas integram a relação de
causalidade.
4 – As orações subordinadas adverbiais finais são designadas pelo conceito
de mediação.
5 – As orações subordinadas temporais e proporcionais são compreendidas
na relação de temporalidade.
6 – A conjunção alternativa ou passa a assinalar dois tipos de relação: o de
disjunção e o de disjunção argumentativa.
7 – São acrescentadas, pela LT/AL, novas categorias, a saber, comprovação,
generalização, correção, reparação e especificação.
Os mecanismos de coesão sequencial, segundo a perspectiva Koch (2004),
são distribuídos da seguinte forma:
Quadro 2 – Categorização dos conectivos conforme Koch (2004), Koch e Elias (2004) e Fávero (1995)
Co
esão
seq
uen
cia
l
Rela
çõ
es ló
gic
o-s
em
ân
ticas
Condicionalidade “Se aquecermos o ferro, ele se derreterá.” (KOCH, 2004, p. 69).
Causalidade “O torcedor ficou rouco porque gritou demais.” (KOCH, 2004, p. 69).
Mediação “Saiu cedo para chegar a tempo na reunião.” (FÁVERO, 1995, p. 38).
Disjunção "Quer sorvete ou chocolate?” (FÁVERO, 1995, p. 36).
Temporalidade “Quando o filme começou, ouviu-se um grito na plateia.” (KOCH; ELIAS, 2004, p. 70).
Conformidade “O réu agiu conforme o advogado lhe havia determinado.” (KOCH, 2004, p. 71).
Modo “Sem levantar a cabeça, a criança ouvia as reprimendas da mãe.” (KOCH, 2004, p. 71).
Rela
çõ
es d
iscu
rsiv
o-a
rgu
men
tati
vas
Conjunção “Chove e faz frio.” (FÁVERO, 1995, p. 39).
Disjunção argumentativa
“Estude bastante para os exames. Ou você já se esqueceu do que lhe aconteceu no ano passado?” (FÁVERO, 1995, p. 39).
Contrajunção “Lutou arduamente durante toda a vida. Mas não conseguiu realizar seu projeto.” (KOCH; ELIAS, 2010, p. 172).
Explicação/ justificativa
“Prefiro não sair, pois estou um pouco gripada.” (KOCH; ELIAS, 2010, p. 171).
Comprovação “A sessão foi muito demorada. Tanto que a maior parte dos presentes começou a retirar-se.” (KOCH; ELIAS, 2010, p. 172).
Conclusão: “João é um indivíduo perigoso. Portanto, fique longe dele.” (KOCH, 2004, p. 74).
Comparação “Pedro é tão alto como João.” (KOCH, 2004, p. 75).
Generalização/
extensão
“Maria está atrasada. Aliás, ela nunca chega na hora.” (KOCH, 2004, p. 75).
Especificação/
exemplificação
“Muitos de nossos colegas estão no exterior. Pierre, por exemplo, está na França.” (KOCH, 2004, p. 76).
Correção/
redefinição
“Prometo ir ao encontro. Ou melhor, vou tentar.” (KOCH, 2004, p. 77).
Fonte: Koch (2004, p. 69-77), Koch e Elias (2004p. 171-172) e Fávero (1995, p. 36-39)
As classificações propostas por Koch (2004) guiaram a produção do material
didático elaborado. Na seção seguinte, faz-se o relato reflexivo de sua
implementação.
3 Relato reflexivo sobre a Implementação Didática
Em fevereiro deste ano, período de início de nossa implementação didática,
sentíamos, de antemão, um misto de expectativa e apreensão. Expectativa porque
era o nosso retorno, depois de um ano inteiro de capacitação propiciado pelo PDE, à
sala de aula. Apreensão porque receávamos ter exagerado ao decidir trabalhar um
tema tão complexo como os conectivos em turmas de sextos anos, já que os alunos
dessa série, via de regra, ainda não experienciaram atividades de análise linguística
similares aos exercícios por nós propostos.
Nas primeiras aulas, optamos por desenvolver apenas os conteúdos do livro
didático, além de outras atividades afins, objetivando aferir, antes do início da
Implementação, um panorama acerca do conhecimento dos alunos com os quais
partilharíamos o ano letivo. Para nossa preocupação, percebemos que ambas as
turmas em que aplicaríamos o projeto eram problemáticas, tanto no que tange à
aprendizagem quanto com relação à disciplina. Essa constatação nos induziu a,
algumas vezes, rever certas atividades, reelaborando-as a fim de torná-las acessível
ao alunado em questão.
No que concerne ao desenvolvimento dos módulos, podemos sintetizar os
trabalhos da seguinte forma:
Módulo I: Neste módulo introdutório, objetivávamos propiciar aos alunos um
primeiro contato com o tema da coesão sequencial. Para tanto, apresentamos duas
versões (sem os conectivos e com estes) da fábula A cigarra e a formiga. Essa
estratégia foi frutuosa, pois os estudantes perceberam a importância dos conectivos
para a inteligibilidade do texto. Houve um momento de relativa dificuldade quando
mostramos a tabela dos conectores, seguida de toda aquela complexa
nomenclatura. Porém, na atividade final, que envolvia exercícios de colocação de
conectivos na versão da parábola O filho pródigo, os estudantes tiveram um
desempenho significativo.
Módulo II: Neste módulo, propuseram-se exercícios com os elementos condicionais
e contrajuntivos a partir do poema Se eu morresse amanhã, de Álvares de Azevedo.
Nessa atividade, um primeiro obstáculo foi o vocabulário. Palavras como “porvir”,
“n’alva”, “louçã”, entre outras, não são comuns ao universo linguístico daquele
público. Contudo, uma vez apresentadas as respectivas significações, tudo se
desenvolveu a contento. Nós buscamos, por exemplo, mostrar aos estudantes que,
amiúde, no lugar do “mas” e do “porém”, eles podem utilizar outros conectivos, como
“contudo”, “todavia”, “entretanto”, “no entanto” etc.
Módulo III: Neste módulo, em que se propôs a análise dA última crônica, de
Fernando Sabino, o caráter comovente da referida narrativa serviu como um primeiro
impulso para despertar a atenção do aluno para com as relações coesivas ali
destacadas, a saber, as de mediação, de conjunção, de disjunção, de
temporalidade, de comparação e de modo. As atividades transcorreram de forma
satisfatória, uma vez que os estudantes, de forma geral, conseguiram resolver as
atividades sem grandes dificuldades.
Módulo IV: O texto Chapeuzinho Vermelho de Raiva, objeto de estudo do módulo
IV, pela linguagem acessível e pela perspectiva humorística, atraiu a curiosidade dos
alunos. Alguns exercícios geraram certas dificuldades, sobretudo aqueles que
envolviam as relações de generalização/extensão, de explicação/justificativa e de
disjunção argumentativa. Por isso, foi necessário apresentar outros exercícios afins,
além daqueles contidos na Produção.
Módulo V: O conto A primeira só, tema do módulo V, em razão de sua profundidade
temática, exigiu de nós uma atenção especial. Temíamos que os estudantes não
conseguissem acompanhar devidamente a leitura e as atividades. De fato, as
questões dissertativas não alcançaram a plena inteligibilidade por parte deles, de
modo que foram necessárias algumas instruções de nossa parte. Não obstante, os
alunos tiveram bom desempenho nas questões de múltipla escolha. No decorrer das
atividades, demos especial ênfase à relação de causalidade, mostrando, por meio
de exemplos, os conectores próprios dessa modalidade coesiva.
Módulo VI: Este módulo foi, entre todos, o mais difícil. O conto ali trabalhado – Uma
Vela para Dario, de Dalton Trevisan – tem como uma peculiaridade o excesso de
orações cujos conectivos ficam implícitos. Aproveitando-nos dessa característica,
formulamos uma série de atividades tentando instigar os estudantes a abstrair as
relações coesivas subtendidas em tais orações. Havíamos estabelecido um número
excessivo de questões (trinta e seis). Por isso, decidimos dividir o trabalho em dois
dias. No primeiro encontro, tudo transcorreu de forma positiva; no segundo, porém,
os alunos já não demonstravam o mesmo foco, o que exigiu de nós uma
recapitulação. Contudo, a despeito das dificuldades, esse módulo foi importante
porque nos permitiu mostrar para os alunos que, muitas vezes, os conectivos podem
estar velados.
Módulo VII: Neste módulo, foi trabalhado um gênero que, ao longo de nossa carreira
docente, sempre teve boa receptividade por parte dos estudantes: a parábola. Em
“Tudo que vem de Deus é bom”, de Felipe Aquino, a bela mensagem que é trazida e
o nível acessível de linguagem utilizado serviram de estímulo para o bom andamento
dos trabalhos. Neste módulo, foi abordada, com particular destaque, a relação de
conclusão Na maioria das questões, os alunos houveram-se satisfatoriamente.
Módulo VIII: A crônica Comunicação, de Luis Fernando Verissimo, a qual concluía
nossa Produção Didático-pedagógica, em razão da perspectiva humorística tão
própria de seu autor, atraiu a atenção dos alunos, facilitando, na sequência, a
execução das atividades. Ali trabalhamos as relações de correção/redefinição, de
conformidade e de especificação/exemplificação. O único momento de maior
complicação foi quando, a partir de uma frase retirada do texto, tentamos desdobrar
algumas relações coesivas subtendidas pela conjunção “e”. Contudo, graças aos
abundantes exemplos que havíamos previamente preparado, a problemática em
pauta foi devidamente sanada.
Considerações finais
Com relação aos resultados da Implementação Didática, ficou a certeza de
que o trabalho com a coesão sequencial não pode ficar circunscrito ao nono ano –
como ocorre na grade curricular presente –, mas deve, paulatina e
programaticamente, ser desenvolvido em todas as turmas, tanto do Ensino
Fundamental quanto do Médio. O acervo vocabular coesivo da língua portuguesa é
um grande tesouro cuja apropriação poderá contribuir decisivamente para que os
estudantes potencializem o uso competente da linguagem.
No que concerne aos conhecimentos advindos da Análise Linguística,
acreditamos que essa matriz tende a contribuir para o aperfeiçoamento da
Gramática Tradicional, ao invés de suprimi-la. Todavia, a composição de um
planejamento anual de português em conformidade com os pressupostos da AL
esbarra, sobretudo, na própria natureza epistemológica dessa corrente, que não
parte de um sistema apriorístico. É difícil, por exemplo, encontrar um “Manual de
Análise Linguística”. A maior parte da bibliografia do gênero apresenta, em seu
conteúdo, textos seguidos de análises e exercícios. Não existe um “roteiro” que
possa orientar os aspirantes desse ramo. Pelo contrário, é o próprio texto que
fornece as “pistas” para que a sequência didática seja elaborada. Contudo, isso
requer um tempo de que os professores, normalmente, não dispõem.
Em razão desses empecilhos, o ideal seria que, ao professorado de
português, fosse ofertado um número maior de cursos de capacitação acerca do
tema em pauta. Outra importante medida seria o aumento das horas-atividade para
que cada professor tivesse tempo suficiente para estudar Análise Linguística,
desenvolvendo atividades didáticas norteadas por ela.
Vale observar, ainda, que, no decurso da Implementação, tivemos o privilégio
de partilhar nossas experiências em ambiente virtual, por meio do Grupo de
Trabalho em Rede (GTR). Nossa turma era composta por quinze professores, de
diversas regiões do Paraná.
Logo de início, havíamos lançado uma questão polêmica, que solicitava, dos
cursistas, a opinião deles acerca da manutenção ou supressão da abordagem
gramatical nas aulas de Língua Portuguesa. A maioria mostrou-se favorável à
manutenção, desde que tal abordagem fosse orientada pelos princípios da análise
linguística.
De modo geral, os cursistas mostraram-se solícitos quanto à feitura das
atividades, e alguns deles demonstraram interesse em aplicar nossos módulos em
suas escolas.
Ao término de nossa participação no Programa de Desenvolvimento
Educacional, ficamos com a certeza de que tal projeto constituiu um verdadeiro
divisor de águas em nosso ofício de professor. Por intermédio do PDE, pudemos nos
afastar da sala de aula a fim de nos dedicar integralmente à pesquisa – não só de
temas ligados à língua portuguesa, mas também daqueles referentes à área
pedagógica. Tivemos também a oportunidade de estudar profundamente a Análise
Linguística e, em consonância com os pressupostos desta, desenvolver atividades
destinadas aos estudantes.
O ensino de língua portuguesa configura uma arte complexa, da qual os
professores da área devem-se atualizar constantemente. Logo, oportunidades de
capacitação similares ao PDE deveriam ser periódicas, pois, dessa forma, os
mestres paranaenses se manteriam num perene aprendizado, o que,
indubitavelmente, refletir-se-ia num maior nível de excelência das aulas por eles
ministradas.
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