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Versão On-line ISBN 978-85-8015-075-9 Cadernos PDE OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE NA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE Produções Didático-Pedagógicas

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Versão On-line ISBN 978-85-8015-075-9Cadernos PDE

OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSENA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE

Produções Didático-Pedagógicas

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FICHA PARA CATÁLOGO

PRODUÇÃO DIDÁTICO PEDAGÓGICA

Título: Nada a mais nada a menos: o miniconto como estratégia de leitura e

procedimento de produção textual.

Autor

Alcione Aparecida Azeredo da Cruz

Escola de atuação

Colégio Estadual Casimiro de Abreu

Município da escola

Porto Vitória

Núcleo Regional de Educação

União da Vitória

Orientador

Josoel Kovalski

Instituição de Ensino Superior

UNESPAR/FAFIUV

Disciplina/Área (entrada no PDE)

Língua Portuguesa

Produção Didático-pedagógica

Unidade Didática

Relação Interdisciplinar

Arte

Público Alvo

Alunos do Ensino Médio

Localização

Colégio Estadual Casimiro de Abreu - CECA Av. Reynaldo Frederico Gaebler, 464

Apresentação

Esta Produção Didático Pedagógica na escola busca usar o miniconto como estratégia para estimular a leitura significativa e produção textual para os alunos do Ensino Médio do Colégio Estadual Casimiro de Abreu de Porto Vitória. Com o avanço das tecnologias e a

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internet invadindo e seduzindo os jovens como uma ferramenta importante para ser utilizada não apenas no processo de comunicação, mas como rico e variado material de leitura interativa, cabe a escola aproveitar e através disso oferecer leituras de qualidade e diversidade de textos interessantes e breves para que absorvam a atenção do aluno/leitor. Para tanto, faz-se necessário introduzir os alunos no universo mágico da literatura, de forma criativa e prazerosa, para que, no futuro, eles possam alçar voos maiores. Acredita-se que o gênero miniconto, por ser extremamente contemporâneo e fiel ao culto da velocidade, venha a ser um instrumento nas aulas de leitura em que o professor possa desenvolver a imaginação e ampliar o horizonte dos jovens leitores, trabalhando pouco e produzindo muito, num tempo marcado pelo efêmero, no qual a flexibilidade e a fluidez aparecem como tentativas de acompanhar essa velocidade. Levando em conta que a fala, a leitura e a escrita deverão sempre ser trabalhadas juntas, já que uma atividade possibilita a outra e vice-versa, os alunos terão oportunidade de ouvir, ler, apreciar, comentar, pesquisar, produzir e divulgar minicontos com o intuito de despertar o interesse e participação, relacionando e construindo sentidos segundo suas vivências.

Palavras-chave

Leitura significativa; literatura; velocidade/rapidez; miniconto;

APRESENTAÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo desenvolver estratégias de leitura,

pois apesar de a leitura ser o meio privilegiado pelo qual as pessoas têm contato

com o mundo num processo contínuo de interlocução, vivemos uma crise de leitura

que, muitas vezes, parece não ter solução. Os alunos têm pouco ou nenhum contato

com a leitura por prazer.

E para isso, é fundamental que as atividades de leitura significativa estejam

no centro dos espaços escolares, independentemente da área de conhecimento ou

disciplina ministrada, pois se um texto, quando trabalhado não proporcionar um salto

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de qualidade no leitor para sua visão de mundo, a leitura perde sua validade. Daí a

passividade, o amortecimento da crítica e da criatividade, o consumo mecânico e

não significativo das ideias propostas nos textos.

Pensando nisso, é necessário que o professor faça a mediação, propicie a

leitura e a literatura, permitindo ao aluno criar e recriar o universo de possibilidades

que o texto literário oferece. Ensinar literatura é ensinar a ler textos complexos. Sem

leitura não há cultura.

Cabe a escola oferecer leituras de qualidade, diversidade de textos com o

propósito de pensar estratégias de que o professor possa se valer em sala de aula

para o desenvolvimento do gosto pela leitura.

Com os novos tempos novas formas são necessárias para acompanhar todas

as mudanças e evoluções tecnológicas. O trabalho com textos curtos, adequados a

esta velocidade pode introduzir os alunos no universo mágico da literatura, de forma

criativa e prazerosa, para que, no futuro, por conta própria busquem outros textos.

Com a utilização de novas tecnologias, característica da pós-modernidade,

faz-se necessária a observação de manifestações culturais e nesse momento o

miniconto torna-se um excelente recurso a ser utilizado, unindo dever e prazer.

Através das oficinas espera-se que os alunos, motivados pela curiosidade, se

envolvam em todas as atividades com interesse.

Na Oficina 1 Descobrindo minicontos, são apresentados contos com

sugestões de leituras e atividades para serem desenvolvidas. Em seguida será

apresentado o miniconto, um gênero extremamente contemporâneo e fiel ao culto

da velocidade que, de maneira inteligente, tira literalmente o máximo do mínimo,

convocando a participação intelectual do leitor.

Para Friedman (apud GOTLIB, 2006, p. 64): "A questão não é "ser ou não ser

breve". A questão é: "provocar ou não maior impacto no leitor".

Na Oficina 2 Analisando minicontos, há uma reflexão teórica que traz os

elementos da narrativa, objetivando mostrar que o principal elemento de qualquer

narrativa é o enredo e que apesar do conto e miniconto serem formas sucintas,

contemplam uma história, feita por personagens, em determinado tempo e espaço.

Foram selecionados contos e minicontos com sugestões de análise para que os

alunos entendam que, como disse Spalding (2007) "Ser mini, desta forma, não é um

fim em si mesmo, e sim uma estratégia estética do autor para fazer ficção".

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A oficina 3 Contando e Recontando evidencia que as pessoas sempre

gostaram de ouvir, contar, recontar e criar histórias, uma vez que o conto existiu até

"mesmo entre os povos sem o conhecimento da linguagem escrita". (MAGALHÃES

JÚNIOR, 1972) Serão trabalhadas algumas técnicas de expressão corporal,

expressão facial, tom de voz, entre outras, para melhor desempenho durante as

atividades. Os alunos organizarão, ao final da oficina, uma coletânea com os textos

contados. Esta coletânea será a primeira forma de intervenção, "o conto bate em

sua porta", para que a família tenha contato com a literatura .

Na oficina 4 Criando e Recriando serão propostas várias sugestões de

produções, utilizando-se da diversidade como fotos, imagens, poesias, minicontos

para que o aluno produza com criatividade, já que para a produção de minicontos

"trata-se de conseguir, com o mínimo de meios o máximo de efeitos". (GOTLIB,

2006)

Na oficina 5 será criado o blog da turma para socialização dos textos

produzidos a fim de que os alunos continuem lendo e outras pessoas possam ter

contato, passem a ler e gostar.

Na oficina 6 Intervenção Literária é o momento de envolver a escola

(Intervenção Literária na escola) e a comunidade (Intervenção Literária Urbana) e

através de ações simples trazer a literatura para todos, mostrando que ela vai muito

além do livro.

Trabalhando pouco e produzindo muito o miniconto pode ser estratégia para

que a literatura possa ser vista como multiplicidade e ao mesmo tempo despertar o

prazer em nossos alunos para que leiam, que leiam por vontade própria, assim

como quando utilizam as diversas tecnologias? Aliar dever e prazer?

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O objetivo desta oficina é: apresentar o miniconto como gênero literário. A partir da leitura de contos será inserido o miniconto para conhecimento e apreciação dos alunos.

Você saberia dizer como os contos

foram inseridos na nossa vida

cotidiana?

Os contos surgiram do hábito de ouvir e contar histórias, num tempo em que

nem sequer existia a escrita. No início, as histórias eram contadas na forma oral, ao

redor de fogueiras, geralmente à noite e, os diversos povos, em várias épocas,

cultivaram seus contos para manter vivas as tradições. Muitas modalidades de

contos foram surgindo, ao longo do tempo mesmo que não formalmente

classificadas: fantásticos, de mistério, de terror, cômicos entre outros.

Segundo Nádia Battella Gotlib (2006, p. 13):

Antes, a criação do conto e sua transformação oral. Depois seu registro escrito. E posteriormente, a criação por escrito de contos, quando o narrador assumiu esta função: de contador-criador-escritor de contos, então, o seu caráter literário.

Professor - Iniciar cada oficina com um conto

diferente (lido ou contado), fazendo questões orais

aos alunos a respeito do mesmo. Escolha um dos

textos sugeridos para realizar essa atividade.

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O conto é uma narrativa pouco extensa que, se bem escrito, conta uma

história em primeiro plano e outra que se constrói em segredo, produzindo efeito em

quem lê.

O conto é conciso. Que dirá o miniconto.

Atividade 1 - Leitura de diversos contos de diferentes autores, épocas e temas variados.

- Criar oportunidades para que o aluno sinta prazer em ouvir e ler histórias. 1º momento - leitura realizada pelo professor.

2º momento - leitura individual e silenciosa.

3º momento - leitura em duplas ou grupos.

Contistas brasileiros famosos Machado de Assis, Graciliano Ramos, Monteiro Lobato, Rubem Fonseca, Clarice Lispector, Luís Fernando Veríssimo, Moacyr Scliar, Lygia Fagundes Telles, Fernando Sabino, Marina Colasanti, Dalton Trevisan e outros.

Para saber mais

Contistas estrangeiros famosos Edgar Allan Poe, Ernest Hemingway, Gabriel García Márquez, Miguel Torga, Guy de Maupassant, Júlio Cortázar, Tchekov e outros.

Professor: Podem ser realizadas diversas dinâmicas para a escolha dos

textos. Uma sugestão é colocar papéis com os nomes dos autores que

se pretende trabalhar dentro de um balão gigante, entre balas e pirulitos

para descontrair a turma. Encher e estourar o balão. Cada um deve

pegar um papel contendo o nome do autor do texto que irá ler. Dessa

maneira também podem ser formados os grupos ou as duplas,

colocando-se mais de um papel contendo o nome do mesmo autor. Os

grupos ou duplas serão formados pelos alunos que pegarem nomes

iguais.

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Atividade 2

- Discussão sobre os textos lidos e intervenções a partir dos questionamentos sugeridos no início ou final de cada texto.

Atividade 3

- Tarefa de casa - Pesquisa de outros contistas e seus contos (atividade de incentivo e preparação para a oficina 3 Contando e Recontando).

Passeio Noturno – parte I

Rubem Fonseca

Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na cama, um copo de uísque na mesa de cabeceira, disse, sem tirar os olhos das cartas, você está com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto dela treinando impostação de voz, a música quadrifônica do quarto do meu

Professor: A seguir estão disponíveis diversas sugestões de textos.

Fica a seu critério trabalhar aqueles que julgar os mais adequados

com a turma ou os de sua preferência. Os textos podem ser usados

em todas as oficinas. Utilize a maior quantidade possível de textos.

Professor - Inicie lendo o título do texto (Passeio Noturno - parte I) e fazendo

questionamentos para despertar o interesse dos alunos. Leia os cinco primeiros

parágrafos antes de entregar as cópias impressas para intensificar as expectativas.

Inicie a leitura do sexto parágrafo e somente a partir daí entregue o texto para que

os alunos possam comprovar ou não as suposições feitas anteriormente.

Professor: O texto literário é carregado de pistas, que direcionam o leitor. Permite múltiplas interpretações, mas não está aberto a qualquer interpretação. Cabe ao professor orientar para que o aluno consiga fazer a leitura, intuindo sentidos, evocando outros textos.

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filho. Você não vai largar essa mala?, perguntou minha mulher, tira essa roupa, bebe um uisquinho, você precisa aprender a relaxar. Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisas sobre a mesa, não via as letras e números, eu esperava apenas. Você não para de trabalhar, aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar servir o jantar? A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescido, eu e a minha mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos conta bancária conjunta. Vamos dar uma volta de carro, convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela. Não sei que graça você acha em passear de carro todas as noites, também aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha mulher respondeu. Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu tirasse o meu. Tirei os carros dos dois, botei na rua, tirei o meu, botei na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os para-choques salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô aerodinâmico. Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mais fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio. Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos para-lamas, os para-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas. A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia terrível na companhia.

FONTE: FONSECA, Rubem. Feliz Ano Novo. São Paulo: Companhia das Letras,

1989, p. 59.

Professor - Entregue as cópias do texto Passeio Noturno - parte II para os

alunos. Deixe de fora os últimos parágrafos a partir de "Ela saltou". A leitura do

texto pode ser feita pelo professor, por um aluno ou de forma dramatizada.

Quando chegar no parágrafo citado, provoque os alunos com questões,

instigue-os a levantar hipóteses. Nesse momento entregue o final do texto para

que possam comprovar ou não as suposições a respeito das ações da

personagem.

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Passeio Noturno – parte II Rubem Fonseca

Eu ia para casa quando um carro encostou no meu, buzinando insistentemente. Uma mulher dirigia, abaixei os vidros do carro para entender o que ela dizia. Uma lufada de ar quente entrou com o som da voz dela: Não está mais conhecendo os outros? Eu nunca tinha visto aquela mulher. Sorri polidamente. Outros carros buzinaram atrás dos nossos. A avenida Atlântica, às sete horas da noite, é muito movimentada. A mulher, movendo-se no banco do seu carro, colocou o braço direito para fora e disse, olha um presentinho para você. Estiquei meu braço e ela colocou um papel na minha mão. Depois arrancou com o carro, dando uma gargalhada. Guardei o papel no bolso. Chegando em casa, fui ver o que estava escrito. Ângela, 287-3594. À noite, saí, como sempre faço. No dia seguinte telefonei. Uma mulher atendeu. Perguntei se Ângela estava. Não estava. Havia ido à aula. Pela voz, via-se que devia ser a empregada. Perguntei se Ângela era estudante. Ela é artista, respondeu a mulher. Liguei mais tarde. Ângela atendeu. - Sou aquele cara do Jaguar preto, eu disse. - Você sabe que eu não consegui identificar o seu carro? - Apanho você às nove horas para jantarmos, eu disse. - Espera aí, calma. O que foi que você pensou de mim? - Nada. - Eu laço você na rua e você não pensou nada? - Não. Qual é o seu endereço? Ela morava na Lagoa, na curva do Cantagalo. Um bom lugar. Estava na porta me esperando. Perguntei onde queria jantar. Ângela respondeu que em qualquer restaurante, desde que fosse fino. Ela estava muito diferente. Usava uma maquiagem pesada, que tornava o seu rosto mais experiente, menos humano. - Quando telefonei da primeira vez disseram que você tinha ido à aula. Aula de quê?, eu disse. Impostação de voz. - Tenho uma filha que também estuda impostação de voz. Você é atriz, não é? - Sou. De cinema. - Eu gosto muito de cinema. Quais foram os filmes que você fez? - Só fiz um, que está agora em fase de montagem. O nome é meio bobo, As virgens desvairadas, não é um filme muito bom, mas estou começando, posso esperar, tenho só vinte anos. Na semi-escuridão do carro ela parecia ter vinte e cinco. Parei o carro na Bartolomeu Mitre e fomos andando a pé na direção do restaurante Mário, na rua Ataulfo de Paiva. - Fica muito cheio em frente ao restaurante, eu disse. - O porteiro guarda o carro, você não sabia?, ela disse. - Sei até demais. Uma vez ele amassou o meu. Quando entramos, Ângela lançou um olhar desdenhoso sobre as pessoas que estavam no restaurante. Eu nunca havia ido àquele lugar. Procurei ver algum conhecido. Era cedo e havia poucas pessoas. Numa mesa um homem de meia-idade com um rapaz e uma moça. Apenas três outras mesas estavam ocupadas, com casais entretidos em suas conversas. Ninguém me conhecia. Ângela pediu um martíni. - Você não bebe?, Ângela perguntou. - Às vezes. - Agora diga, falando sério, você não pensou nada mesmo, quando eu te passei o bilhete? - Não. Mas se você quer, eu penso agora, eu disse. - Pensa, Ângela disse. - Existem duas hipóteses. A primeira é que você me viu no carro e se interessou pelo meu perfil. Você é uma mulher agressiva, impulsiva e decidiu me conhecer. Uma coisa instintiva. Apanhou um pedaço de papel arrancado de um caderno e escrevou rapidamente o nome e o telefone. Aliás quase não deu para eu decifrar o nome que você escreveu. - E a segunda hipótese?

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- Que você é uma puta e sai com uma bolsa cheia de pedaços de papel escritos com o seu nome e o telefone. Cada vez que você encontra um sujeito num carro grande, com cara de rico e idiota, você dá o número para ele. Para cada vinte papelinhos distribuídos, uns dez telefonam para você. - E qual a hipótese que você escolhe?, Ângela disse. - A segunda. Que você é uma puta, eu disse. Ângela ficou bebendo o martíni como se não tivesse ouvido o que eu havia dito. Bebi minha água mineral. Ela olhou para mim, querendo demonstrar sua superioridade, levantando a sobrancelha — era má atriz, via-se que estava perturbada — e disse: você mesmo reconheceu que era um bilhete escrito às pressas dentro do carro, quase ilegível. Uma puta inteligente prepararia todos os bilhetinhos em casa, dessa maneira, antes de sair, para enganar os seus fregueses, eu disse. - E se eu jurasse a você que a primeira hipótese é a verdadeira ? Você acreditaria? - Não. Ou melhor, não me interessa, eu disse. - Como que não interessa? Ela estava intrigada e não sabia o que fazer. Queria que eu dissesse algo que a ajudasse a tomar uma decisão. - Simplesmente não interessa. Vamos jantar, eu disse. - Com um gesto chamei o maître. Escolhemos a comida. Ângela tomou mais dois martínis. - Nunca fui tão humilhada em minha vida. A voz de Ângela soava ligeiramente pastosa. - Eu se fosse você não bebia mais, para poder ficar em condições de fugir de mim, na hora em que for preciso, eu disse. - Eu não quero fugir de você, disse Ângela esvaziando de um gole o que restava na taça. Quero outro. Aquela situação, eu e ela dentro do restaurante, me aborrecia. Depois ia ser bom. Mas conversar com Ângela não significava mais nada para mim, naquele momento interlocutório. - O que é que você faz? - Controlo a distribuição de tóxicos na zona sul, eu disse. - Isso é verdade? - Você não viu o meu carro? - Você pode ser um industrial. - Escolhe a sua hipótese. Eu escolhi a minha, eu disse. - Industrial. - Errou. Traficante. E não estou gostando desse facho de luz sobre a minha cabeça. Me lembra as vezes em que fui preso. - Não acredito numa só palavra do que você diz. Foi a minha vez de fazer uma pausa. - Você tem razão. É tudo mentira. Olha bem para o meu rosto. Vê se você consegue descobrir alguma coisa, eu disse. Ângela tocou de leve no meu queixo, puxando meu rosto para o raio de luz que descia do teto e me olhou intensamente. - Não vejo nada. Teu rosto parece o retrato de alguém fazendo uma pose, um retrato antigo, de um desconhecido, disse Ângela. Ela também parecia o retrato antigo de um desconhecido. Olhei o relógio.Vamos embora?, eu disse. Entramos no carro. - Às vezes a gente pensa que uma coisa vai dar certo e dá errado, disse Ângela. - O azar de um é a sorte do outro, eu disse. A lua punha na lagoa uma esteira prateada que acompanhava o carro. Quando eu era menino e viajava de noite a lua sempre me acompanhava, varando as nuvens, por mais que o carro corresse. - Vou deixar você um pouco antes da sua casa, eu disse. - Por quê? - Sou casado. O irmão da minha mulher mora no teu edifício. Não é aquele que fica na curva? Não gostaria que ele me visse. Ele conhece o meu carro. Não há outro igual no Rio. - A gente não vai se ver mais?, Ângela perguntou. - Acho difícil. - Todos os homens se apaixonam por mim. - Acredito. - E você não é lá essas grandes coisas. O teu carro é melhor do que você, disse Ângela.

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- Um completa o outro, eu disse. Ela saltou. Foi andando pela calçada, lentamente, fácil demais, e ainda por cima mulher, mas eu tinha que ir logo para casa, já estava ficando tarde. Apaguei as luzes e acelerei o carro. Tinha que bater e passar por cima. Não podia correr o risco de deixá-la viva. Ela sabia muita coisa a meu respeito, era a única pessoa que havia visto o meu rosto, entre todas as outras. E conhecia também o meu carro. Mas qual era o problema? Ninguém havia escapado. Bati em Ângela com o lado esquerdo do para-lama, jogando o seu corpo um pouco adiante, e passei, primeiro com a roda da frente — e senti o som surdo da frágil estrutura do corpo se esmigalhando — e logo atropelei com a roda traseira, um golpe de misericórdia, pois ela já estava liquidada, apenas talvez ainda sentisse um distante resto de dor e perplexidade. Quando cheguei em casa minha mulher estava vendo televisão, um filme colorido, dublado. - Hoje você demorou mais. Estava muito nervoso?, ela disse. - Estava. Mas já passou. Agora vou dormir. Amanhã vou ter um dia terrível na companhia.

FONTE: FONSECA, Rubem. Feliz Ano Novo. São Paulo: Companhia das Letras,

1989, p. 65.

a. Qual a relação entre Passeio noturno - parte I e Passeio noturno - parte II?

b. O adjetivo noturno nesses textos sugere o quê?

c. Identifique o tema abordado nos textos.

Sobre o autor

FONTE: http://www.releituras.com/rfonseca_bio.asp acesso em 25/10/2013

As Formigas Lygia Fagundes Telles

Quando minha prima e eu descemos do táxi já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima. - É sinistro. Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes, com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.

Nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 11 de maio de

1925, José Rubem Fonseca é formado em Direito, tendo

exercido várias atividades antes de dedicar-se inteiramente

à literatura. Foi, ao longo de sua carreira, agraciado com

inúmeros prêmios literários. Seus livros são publicado no

Brasil e no exterior, com grande sucesso de crítica e de

público.

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- Pelo menos não vi sinal de barata – disse minha prima. A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho. - É você que estuda medicina? – perguntou soprando a fumaça na minha direção. - Estudo direito. Medicina é ela. A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho. - Vou mostrar o quarto, fica no sótão – disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. - O inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles. Minha prima voltou-se: – Um caixote de ossos? A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e pondo-se de joelhos puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada. - Mas que ossos tão miudinhos! São de criança? – Ele disse que eram de adulto. De um anão. - De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados… Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. – Tão perfeito, todos os dentinhos! - Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente, extra. Telefone, também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa – recomendou coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada final: – Não deixem a porta aberta senão meu gato foge. Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada. Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana. prendi na parede, com durex, uma gravura de Grassmann e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. C quarto ficou mais alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho. Examinou-a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa. - Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele. Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava estudar até a madrugada e depois fazia sua ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria. - De onde vem esse cheiro? – perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. - Você não está sentindo um cheiro meio ardido? - É de bolor. A casa inteira cheira assim – ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama. No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto!, mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho. - Que é que você está fazendo aí? – perguntei. - Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo? Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.

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- São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida – estranhei. - Só de ida. Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama. - Está debaixo dela – disse minha prima e puxou para fora o caixotinho. Levantou o plástico. - Preto de formiga! Me dá o vidro de álcool. - Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora. - Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vêm fuçar aqui. Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e, como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro. Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho. - Esquisito. Muito esquisito. – O quê? - Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui? - Deus me livre, tenho nojo de osso! Ainda mais de anão. Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos à cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho. Voltei a sonhar aflitivamente, mas dessa vez foi o antigo pesadelo com os exames, o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não tinha, estudado. As seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, à procura delas. Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto. Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio voraz. Então me lembrei. - E as formigas? - Até agora, nenhuma. - Você varreu as mortas? Ela ficou me olhando. - Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu? - Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo… Mas, então, quem?! Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava. - Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo. Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas seria bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a atenção da minha prima para esse aspecto, mas ela estava tão deprimida que achei melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia Flor de Maçã por todo o quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho, que competia nas repetições com o tal sonho da prova oral, nele eu marcava encontro com dois namora dos ao mesmo tempo. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica. - Elas voltaram. - Quem? - As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo. A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta. - E os ossos? Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo. - Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada!

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Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta, senti que no quarto tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formigas, você se lembra? Não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas se trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão… Estão se organizando. - Como, se organizando? Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol. - Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando o seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e… Venha ver! - Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso? Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre as mãos. Comecei a rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas desapareciam com a luz do dia. Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule fumegando no fogareiro. - Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia – ela avisou. O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso. - Estou com medo. Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir. - Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam? Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, Acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga. - Voltaram – ela disse. Apertei entre as mãos a cabeça dolorida. - Estão aí? – Ela falava num tom miúdo, como se uma formiguinha falasse com sua voz. - Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a trilha já estava em plena movimentação. Então fui ver o caixotinho, aconteceu o que eu esperava… - O que foi? Fala depressa, o que foi? Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama. - Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto já está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui. - Você está falando sério? - Vamos embora, já arrumei as malas. A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados. - Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim? - Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta! - E para onde a gente vai? - Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão fique pronto. Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito? No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra.

FONTE: TELLES, Lygia Fagundes. Antologia: Meus contos preferidos. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

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a. Depois da leitura individual, realizar uma leitura dramatizada.

b. Elencar as informações depreendidas da leitura feita.

c. Tecer algumas reflexões a partir das informações destacadas.

d. Reconstruir essa história mudando o foco narrativo para a primeira pessoa, isto é,

como narrador-personagem.

Leia o texto Natal na Barca e socialize suas impressões com a turma.

Natal na barca Lygia Fagundes Telles

Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu. O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga. Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio. Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal. A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o. rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água. — Tão gelada — estranhei, enxugando a mão. — Mas de manhã é quente. Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade. — De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me encarando. — Quente? — Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas? Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta: — Mas a senhora mora aqui perto? — Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje...

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A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno. — Seu filho? — É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre... Mas Deus não vai me abandonar. — É o caçula? Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce. — É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos. Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo. — E esse? Que idade tem? — Vai completar um ano. — E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: — Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou. Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los. — Seu marido está à sua espera? — Meu marido me abandonou. Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos comunicantes. — Há muito tempo? Que seu marido... — Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora. Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar. — A senhora é conformada. — Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou. — Deus — repeti vagamente. — A senhora não acredita em Deus? — Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas... Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão: — Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio

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rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim. Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto. Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim. — Estamos chegando — anunciou. Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia: __ Chegamos!... Ei! chegamos! Aproximei-me evitando encará-la. — Acho melhor nos despedirmos aqui — disse atropeladamente, estendendo a mão. Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho. — Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre. — Acordou?! Ela sorriu: — Veja... Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar. — Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço. Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite. Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.

FONTE: TELLES, Lygia Fagundes. Venha ver o pôr-do-sol e outros contos. São Paulo: Ática, 1991.

a. A narrativa em primeira pessoa aproxima o autor do leitor?

b. O narrador personagem por participar da história fala de um jeito que melhor

envolve o leitor? Justifique.

c. O que representa a barca?

d. Identifique possíveis ambiguidades existentes no texto.

e. Qual o momento de maior tensão no texto Natal na Barca?

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Sobre a autora

FONTE: http://www.infoescola.com/escritores/lygia-fagundes-telles/ acesso em 25/10/2013

A Carteira

Machado de Assis

De repente, Honório olhou para o chão e viu uma carteira. Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo: - Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez. - É verdade, concordou Honório envergonhado. Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o bojo recheado. A dívida não parece grande para um homem da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta cousa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro. Endividou-se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um turbilhão perpétuo, uma voragem. - Tu agora vais bem, não? dizia-lhe ultimamente o Gustavo C..., advogado e familiar da casa. - Agora vou, mentiu o Honório. A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, em que fundara grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma cousa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais. D. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém. Fingia-se tão alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de política. Um dia, a mulher foi achá-lo dando muitos beijos à filha, criança de quatro anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que era. - Nada, nada. Compreende-se que era o medo do futuro e o horror da miséria. Mas as esperanças voltavam com facilidade. A ideia de que os dias melhores tinham de vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com, trinta e quatro anos; era o princípio da carreira: todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou: emprestado, para pagar mal, e a más horas. A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos mil-réis de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Honório quer pagar-lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde. Tinha-se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir

Contista e advogada Lygia Fagundes Telles nasceu em São Paulo, a 19 de abril de 1923, filha de Durval de Azevedo Fagundes e Maria do Rosário Silva. A menina cresce ouvindo histórias narradas por pajens e outras crianças. Mais tarde, já sabendo ler e escrever, Lygia passa a criar suas próprias narrativas e, aos oito anos, já anota no caderno os contos que irá transmitir para sua pequena plateia nos círculos caseiros. Sua obra é hoje internacionalmente reconhecida, e em sua coleção de prêmios constam alguns de alcance internacional.

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nada. Ao enfiar pela Rua. da Assembleia é que viu a carteira no chão, apanhou-a, meteu no bolso, e foi andando. Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, - enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma cousa e encostou-se à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a cocheira. Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregar-lha; insinuação que lhe deu ânimo. Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu-a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos mil-réis, algumas de cinquenta e vinte; calculou uns setecentos mil-réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar-se-ia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guardá-la. Mas daí a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com vontade de contar o dinheiro. Contar para quê? era dele? Afinal venceu-se e contou: eram setecentos e trinta mil-réis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos... Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, passava-o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do achado, restituí-lo. Restituí-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal. "Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar-me do dinheiro," pensou ele. Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?... Examinou-a por fora, e pareceu-lhe efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dois cartões, mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele. A descoberta entristeceu-o. Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um amigo. Todo o castelo levantado esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dous empurrões, mas ele resistiu. "Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer." Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado, e a própria D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma cousa. - Nada. - Nada? - Por quê? - Mete a mão no bolso; não te falta nada? - Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso. Sabes se alguém a achou? - Achei-a eu, disse Honório entregando-lha. Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um triste prêmio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deu-lhe as explicações precisas. - Mas conheceste-a? - Não; achei os teus bilhetes de visita. Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgou-o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor.

FONTE: http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/contos/macn101.pdf acesso em 05/10/2013

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a. Depois da leitura, abre-se um espaço para que os alunos coloquem seus

posicionamentos e sua percepção sobre o tema abordado no texto.

b. Se você encontrasse uma carteira, o que faria?

c. Qual é, geralmente, a atitude tomada pela maioria das pessoas num caso como

esse?

d. Identifique complicação, clímax e desfecho do texto.

Uns braços

Vídeo Disponível em http://www.downloadsgratis.org/download/filme-uns-

bracos-nacional acesso em 01/11/2013

Uns braços

Machado de Assis

Inácio estremeceu, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco.

- Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! maluco!

Professor: Proponha aos alunos assistir ao filme Uns Braços antes da leitura do texto para que depois possam comparar filme e texto. Depois de assistir ao vídeo, organize a turma em grupos e entregue o texto dividido em partes para cada equipe, distribuindo, ao acaso, para cada aluno. Uma parte para cada aluno para que montem a sequência correta do texto. Peça que cada aluno leia o seu trecho em voz alta para que percebam a sequência narrativa. Solicite que coloquem os trechos na ordem correta a fim de reconstruir o conto. Cada grupo apresentará para a classe o conto que organizou. Somente no final da atividade entregue o conto original para que confiram, comentem e corrijam, se for necessário.

OBS: Divida o texto de acordo com a quantidade de alunos da turma.

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- Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se para D. Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, há anos. Confunde-me os papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a outro, troca os advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De manhã é o que se vê; primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos... Deixe; amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura!

D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges espeitorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens.

Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça, ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870.

Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruído da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava logo calado.

Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.

Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.

Acabaram de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos da algibeira, comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os restantes. Aceso o charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D. Severina de trinta mil coisas que não interessavam nada ao nosso Inácio; mas enquanto falava, não o descompunha e ele podia devanear à larga.

Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dois, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa. Vá que disfarçasse com S. João, cuja cabeça moça alegra as imaginações católicas, mas com o austero S. Pedro era demais. A única defesa do moço Inácio é que ele não via nem um nem outro; passava os olhos por ali como por nada. Via só os braços de D. Severina, - ou porque sorrateiramente olhasse para eles, ou porque andasse com eles impressos na memória.

- Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador. Não havia remédio; Inácio bebeu a última gota, já fria, e retirou-se, como de costume, para o

seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto de zanga e desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma coisa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar. Havia cinco semanas que ali morava, e a vida era sempre a mesma, sair de manhã com o Borges, andar por audiências e cartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde, jantava e recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe dava intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs; cinco semanas de silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada.

- Deixe estar, - pensou ele um dia - fujo daqui e não volto mais. Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão

bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três semanas eram eles,

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moralmente falando, as suas tendas de repouso. Aguentava toda a trabalheira de fora toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços.

Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma coisa Rejeitou a ideia logo, uma criança! Mas há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra ideia não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim.

- Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa.

- Não tenho nada. - Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom

remédio para tirar o sono aos dorminhocos... E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente incapaz de as

cumprir, pois era antes grosseiro que mau. D. Severina interrompia-o que não, que era engano, não estava dormindo, estava pensando na comadre Fortunata. Não a visitavam desde o Natal; por que não iriam lá uma daquelas noites? Borges redarguia que andava cansado, trabalhava como um negro, não estava para visitas de parola, e descompôs a comadre, descompôs o compadre, descompôs o afilhado, que não ia ao colégio, com dez anos! Ele, Borges, com dez anos, já sabia ler, escrever e contar, não muito bem, é certo, mas sabia. Dez anos! Havia de ter um bonito fim: - vadio, e o côvado e meio nas costas. A tarimba é que viria ensiná-lo.

D. Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, o caiporismo do compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais. A noite caíra de todo; ela ouviu o tlic do lampião do gás da rua, que acabavam de acender, e viu o clarão dele nas janelas da casa fronteira. Borges, cansado do dia, pois era realmente um trabalhador de primeira ordem, foi fechando os olhos e pegando no sono, e deixou-a só na sala, às escuras, consigo e com a descoberta que acaba de fazer.

Tudo parecia dizer à dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita a impressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação moral que ela só conheceu pelos efeitos, não achando meio de discernir o que era. Não podia entender-se nem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e ele que mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estacou: realmente, não havia mais que suposição, coincidência e possivelmente ilusão. Não, não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o acanhamento, as distrações, para rejeitar a ideia de estar enganada. Daí a pouco, (capciosa natureza!) refletindo que seria mau acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das coisas.

Já nessa noite, D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de Inácio; não chegou a achar nada, porque o tempo do chá era curto e o rapazinho não tirou os olhos da xícara. No dia seguinte pôde observar melhor, e nos outros otimamente. Percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo. D. Severina compreendeu que não havia recear nenhum desacato, e concluiu que o melhor era não dizer nada ao solicitador; poupava-lhe um desgosto, e outro à pobre criança. Já se persuadia bem que ele era criança, e assentou de o tratar tão secamente como até ali, ou ainda mais. E assim fez; Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto.

- Vou-me embora, repetia ele na rua como nos primeiros dias. Chegava a casa e não se ia embora. Os braços de D. Severina fechavam-lhe um parêntesis

no meio do longo e fastidioso período da vida que levava, e essa oração intercalada trazia uma ideia original e profunda, inventada pelo céu unicamente para ele. Deixava-se estar e ia andando. Afinal, porém, teve de sair, e para nunca mais; eis aqui como e porquê.

D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, coisa que jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal

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dessa vez, porque era ele que contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria.

A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem entender-se. Não estava bem em parte nenhuma. Acordava de noite, pensando em D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que lha não trouxesse à memória. Ao entrar no corredor da casa, voltando do trabalho, sentia sempre algum alvoroço, às vezes grande, quando dava com ela no topo da escada, olhando através das grades de pau da cancela, como tendo acudido a ver quem era.

Um domingo, - nunca ele esqueceu esse domingo, - estava só no quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d'água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal.

Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. Era ela mesma, eram os seus mesmos braços.

É certo, porém, que D. Severina, tanto não podia sair da parede, dado que houvesse ali porta ou rasgão, que estava justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as escadas. Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca; levantando-se, foi pegar na jarra que estava em cima do aparador e deixou-a no mesmo lugar; depois caminhou até à porta, deteve-se e voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se outra vez cinco ou dez minutos. De repente, lembrou-se que Inácio comera pouco ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser até que estivesse muito mal.

Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou, deu com ele na rede, dormindo, com o braço para fora e o folheto caído no chão. A cabeça inclinava-se um pouco do lado da porta, deixando ver os olhos fechados, os cabelos revoltos e um grande ar de riso e de beatitude.

D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou. Sonhara de noite com ele; pode ser que ele estivesse sonhando com ela. Desde madrugada que a figura do mocinho andava-lhe diante dos olhos como uma tentação diabólica. Recuou ainda, depois voltou, olhou dois, três, cinco minutos, ou mais. Parece que o sono dava à adolescência de Inácio uma expressão mais acentuada, quase feminina, quase pueril. Uma criança! disse ela a si mesma, naquela língua sem palavras que todos trazemos conosco. E esta ideia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos.

- Uma criança! E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço caído; mas, ao

mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito mais bonito que acordado, e uma dessas ideias corrigia ou corrompia a outra. De repente estremeceu e recuou assustada: ouvira um ruído ao pé, na saleta do engomado; foi ver, era um gato que deitara uma tigela ao chão. Voltando devagarinho a espiá-lo, viu que dormia profundamente. Tinha o sono duro a criança! O rumor que a abalara tanto, não o fez sequer mudar de posição. E ela continuou a vê-lo dormir, - dormir e talvez sonhar.

Que não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas cálidas, principalmente novas, - ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse. Duas três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca.

Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como

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fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dali passou à sala da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se escutava algum rumor que lhe dissesse que ele acordara, e só depois de muito tempo é que o medo foi passando. Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crer que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus desejos na ideia de que era uma criança namorada que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia amiga, inclinara-se e beijara-o. Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo que dormia apontou-lhe na alma e deu-lhe um calafrio.

Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e só acordou para jantar. Sentou-se à mesa lépido. Conquanto achasse D. Severina calada e severa e o solicitador tão ríspido como nos outros dias, nem a rispidez de um, nem a severidade da outra podiam dissipar-lhe a visão graciosa que ainda trazia consigo, ou amortecer-lhe a sensação do beijo. Não reparou que D. Severina tinha um xale que lhe cobria os braços; reparou depois, na segunda-feira, e na terça-feira, também, e até sábado, que foi o dia em que Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar com ele; e não o fez zangado, porque o tratou relativamente bem e ainda lhe disse à saída:

- Quando precisar de mim para alguma coisa, procure-me. - Sim, senhor. A Sra. D. Severina... - Está lá para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã ou depois despedir-se dela. Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa mudança de D.

Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão bem! falava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente... Tanto pensou que acabou supondo de sua parte algum olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera, não era outra coisa; e daqui a cara fechada e o xale que cobria os braços tão bonitos... Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana:

- E foi um sonho! um simples sonho!

FONTE: http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/contos/macn005.pdf acesso em 05/10/2013

a. O filme contém a história escrita por Machado de Assis? Se apresenta diferenças,

quais são?

b. Quando você assiste a um filme, costuma ler o texto para comparar?

c. Qual apresenta mais riqueza de detalhes, filme ou texto?

A igreja do diabo

Antes do texto: A partir do título levante hipóteses sobre o texto, registre-as, depois leia o texto e

verifique se elas se concretizam. Socialize sua experiência.

a. Que igreja é essa?

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b. Quais suas características?

c. Difere das outras igrejas em quê?

A igreja do diabo

Machado de Assis

CAPÍTULO I DE UMA IDEIA MIRÍFICA

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

- Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a ideia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.

II ENTRE DEUS E O DIABO

Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

- Que me queres tu? perguntou este. - Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do

século e dos séculos. - Explica-te. - Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-

lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...

- Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura. - Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu

fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa ideia, não vos parece?

- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor, - Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres.

Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.

- Vai - Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra? - Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua

desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja? O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma ideia cruel no espírito, algum

reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

- Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...

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- Velho retórico! murmurou o Senhor. - Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as

anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...

Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu o Diabo.

- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?

- Já vos disse que não. - Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se

numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?

- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega. - Negas esta morte? - Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um

misantropo, é realmente aborrecê-los... - Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes,

recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai! Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a

um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

Ill A BOA NOVA AOS HOMENS

Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.

Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução

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direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloquência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.

Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? Não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? E o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.

IV

FRANJAS E FRANJAS A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de

algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.

Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que

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envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinquenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:

- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.

FONTE: http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/contos/macn004.pdf acesso em 05/10/2013

Depois do texto:

a. No texto igreja do diabo tudo era permitido, todas as vontades, todos os desejos,

todos os pecados. Note a partir dessa leitura a relação existente entre ficção (tempo

e espaço do texto) e realidade (dias atuais). Essa igreja se concretiza no modo de

ser das pessoas, suas atitudes, ou não?

b. Qual o papel da mídia em suas telenovelas? Será que não estão contribuindo

para que a igreja do diabo se efetive?

Sobre o autor

FONTE:http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe.php?foto=488&

evento=9 - acesso em 25/10/2013

Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21

de junho de 1839 — Rio de Janeiro, 29 de setembro

de 1908) foi um escritor brasileiro, considerado um dos

mais importantes nomes da literatura. Realista,

retratou as contradições da sociedade carioca do final

do século XIX.

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O coração delator Edgar Allan Poe

É verdade! Nervoso, muito, muito nervoso mesmo eu estive e estou; mas por que você vai dizer que estou louco? A doença exacerbou meus sentidos, não os destruiu, não os embotou. Mais que os outros estava aguçado o sentido da audição. Ouvi todas as coisas no céu e na terra. Ouvi muitas coisas no inferno. Como então posso estar louco? Preste atenção! E observe com que sanidade, com que calma, posso lhe contar toda a história. É impossível saber como a ideia penetrou pela primeira vez no meu cérebro, mas, uma vez concebida, ela me atormentou dia e noite. Objetivo não havia. Paixão não havia. Eu gostava do velho. Ele nunca me fez mal. Ele nunca me insultou. Seu ouro eu não desejava. Acho que era seu olho! É, era isso! Um de seus olhos parecia o de um abutre - um olho azul claro coberto por um véu. Sempre que caía sobre mim o meu sangue gelava, e então pouco a pouco, bem devagar, tomei a decisão de tirar a vida do velho, e com isso me livrar do olho, para sempre. Agora esse é o ponto. O senhor acha que sou louco. Homens loucos de nada sabem. Mas deveria ter-me visto. Deveria ter visto com que sensatez eu agi — com que precaução —, com que prudência, com que dissimulação, pus mãos à obra! Nunca fui tão gentil com o velho como durante toda a semana antes de matá-lo. E todas as noites, por volta de meia-noite, eu girava o trinco da sua porta e a abria, ah, com tanta delicadeza! E então, quando tinha conseguido uma abertura suficiente para minha cabeça, punha lá dentro uma lanterna furta-fogo bem fechada, fechada para que nenhuma luz brilhasse, e então eu passava a cabeça. Ah! o senhor teria rido se visse com que habilidade eu a passava. Eu a movia devagar, muito, muito devagar, para não perturbar o sono do velho. Levava uma hora para passar a cabeça toda pela abertura, o mais à frente possível, para que pudesse vê-lo deitado em sua cama. Aha! Teria um louco sido assim tão esperto? E então, quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a lanterna com cuidado — ah!, com tanto cuidado! —, com cuidado (porque a dobradiça rangia), eu a abria só o suficiente para que um raiozinho fino de luz caísse sobre o olho do abutre. E fiz isso por sete longas noites, todas as noites à meia-noite em ponto, mas eu sempre encontrava o olho fechado, e então era impossível fazer o trabalho, porque não era o velho que me exasperava, e sim seu Olho Maligno. E todas as manhãs, quando o dia raiava, eu entrava corajosamente no quarto e falava Com ele cheio de coragem, chamando-o pelo nome em tom cordial e perguntando como tinha passado a noite. Então, o senhor vê que ele teria que ter sido, na verdade, um velho muito astuto, para suspeitar que todas as noites, à meia-noite em ponto, eu o observava enquanto dormia. Na oitava noite, eu tomei um cuidado ainda maior ao abrir a porta. O ponteiro de minutos de um relógio se move mais depressa do que então a minha mão. Nunca antes daquela noite eu sentira a extensão de meus próprios poderes, de minha sagacidade. Eu mal conseguia conter meu sentimento de triunfo. Pensar que lá estava eu, abrindo pouco a pouco a porta, e ele sequer suspeitava de meus atos ou pensamentos secretos. Cheguei a rir com essa ideia, e ele talvez tenha ouvido, porque de repente se mexeu na cama como num sobressalto. Agora o senhor pode pensar que eu recuei — mas não. Seu quarto estava preto como breu com aquela escuridão espessa (porque as venezianas estavam bem fechadas, de medo de ladrões) e então eu soube que ele não poderia ver a porta sendo aberta e continuei a empurrá-la mais, e mais. Minha cabeça estava dentro e eu quase abrindo a lanterna quando meu polegar deslizou sobre a lingueta de metal e o velho deu um pulo na cama, gritando: — Quem está aí? Fiquei imóvel e em silêncio. Por uma hora inteira não movi um músculo, e durante esse tempo não o ouvi se deitar. Ele continuava sentado na cama, ouvindo bem como eu havia feito noite após noite prestando atenção aos relógios fúnebres na parede. Nesse instante, ouvi um leve gemido, e eu soube que era o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou de tristeza — ah, não! era o som fraco e abafado que sobe do fundo da alma quando sobrecarregada de terror. Eu conhecia bem aquele som. Muitas noites, à meia-noite em ponto, ele brotara de meu próprio peito, aprofundando, com seu eco pavoroso, os terrores que me perturbavam. Digo que os conhecia bem. Eu sabia o que sentia o velho e me apiedava dele embora risse por dentro. Eu sabia que ele estivera desperto, desde o primeiro barulhinho, quando se virara na cama. Seus medos foram desde então crescendo dentro dele. Ele estivera tentando fazer de conta que eram infundados, mas não conseguira. Dissera consigo mesmo: "Isto não passa do vento na chaminé; é apenas um camundongo andando pelo chão", ou "É só um grilo cricrilando um pouco". É, ele estivera tentando confortar-se com tais suposições; mas descobrira ser tudo em vão. Tudo em vão, porque a Morte ao se aproximar o atacara de frente com sua sombra negra e com ela envolvera

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a vítima. E a fúnebre influência da despercebida sombra fizera com que sentisse, ainda que não visse ou ouvisse, sentisse a presença da minha cabeça dentro do quarto. Quando já havia esperado por muito tempo e com muita paciência sem ouvi-lo se deitar, decidi abrir uma fenda — uma fenda muito, muito pequena na lanterna. Então eu a abri — o senhor não pode imaginar com que gestos furtivos, tão furtivos — até que afinal um único raio pálido como o fio da aranha brotou da fenda e caiu sobre o olho do abutre. Ele estava aberto, muito, muito aberto, e fui ficando furioso enquanto o fitava. Eu o vi com perfeita clareza - todo de um azul fosco e coberto por um véu medonho que enregelou até a medula dos meus ossos, mas era tudo o que eu podia ver do rosto ou do corpo do velho, pois dirigira o raio, como por instinto, exatamente para o ponto maldito. E agora, eu não lhe disse que aquilo que o senhor tomou por loucura não passava de hiperagudeza dos sentidos? Agora, repito, chegou a meus ouvidos um ruído baixo, surdo e rápido, algo como faz um relógio quando envolto em algodão. Eu também conhecia bem aquele som. Eram as batidas do coração do velho. Aquilo aumentou a minha fúria, como o bater do tambor instiga a coragem do soldado. Mas mesmo então eu me contive e continuei imóvel. Quase não respirava. Segurava imóvel a lanterna. Tentei ao máximo possível manter o raio sobre o olho. Enquanto isso, aumentava o diabólico tamborilar do coração. Ficava a cada instante mais e mais rápido, mais e mais alto. O terror do velho deve ter sido extremo. Ficava mais alto, estou dizendo, mais alto a cada instante! — está me entendendo? Eu lhe disse que estou nervoso: estou mesmo. E agora, altas horas da noite, em meio ao silêncio pavoroso dessa casa velha, um ruído tão estranho quanto esse me levou ao terror incontrolável. Ainda assim por mais alguns minutos me contive e continuei imóvel. Mas as batidas ficaram mais altas, mais altas! Achei que o coração iria explodir. E agora uma nova ansiedade tomava conta de mim — o som seria ouvido por um vizinho! Chegara a hora do velho! Com um berro, abri por completo a lanterna e saltei para dentro do quarto. Ele deu um grito agudo — um só. Num instante, arrastei-o para o chão e derrubei sobre ele a cama pesada. Então sorri contente, ao ver meu ato tão adiantado. Mas por muitos minutos o coração bateu com um som amortecido. Aquilo, entretanto, não me exasperou; não seria ouvido através da parede. Por fim, cessou. O velho estava morto. Afastei a cama e examinei o cadáver. É, estava morto, bem morto. Pus a mão sobre seu coração e a mantive ali por muitos minutos. Não havia pulsação. Ele estava bem morto. Seu olho não me perturbaria mais. Se ainda me acha louco, não mais pensará assim quando eu descrever as sensatas precauções que tomei para ocultar o corpo. A noite avançava, e trabalhei depressa, mas em silêncio. Antes de tudo desmembrei o cadáver. Separei a cabeça, os braços e as pernas. Arranquei três tábuas do assoalho do quarto e depositei tudo entre as vigas. Recoloquei então as pranchas com tanta habilidade e astúcia que nenhum olho humano — nem mesmo o dele — poderia detectar algo de errado. Nada havia a ser lavado — nenhuma mancha de qualquer tipo — nenhuma marca de sangue. Eu fora muito cauteloso. Uma tina absorvera tudo - ha! ha! Quando terminei todo aquele trabalho, eram quatro horas — ainda tão escuro quanto à meia-noite Quando o sino deu as horas, houve uma batida à porta da rua. Desci para abrir com o coração leve — pois o que tinha agora a temer? Entraram três homens, que se apresentaram, com perfeita suavidade, como oficiais de polícia. Um grito fora ouvido por um vizinho durante a noite; suspeitas de traição haviam sido levantadas; uma queixa fora apresentada à delegacia e eles (os policiais) haviam sido encarregados de examinar o local. Sorri — pois o que tinha a temer? Dei as boas-vindas aos senhores. O grito, disse, fora meu, num sonho. O velho, mencionei, estava fora, no campo. Acompanhei minhas visitas por toda a casa. Incentivei-os a procurar — procurar bem. Levei-os, por fim, ao quarto dele. Mostrei-lhes seus tesouros, seguro, imperturbável. No entusiasmo de minha confiança, levei cadeiras para o quarto e convidei-os para ali descansarem de seus afazeres, enquanto eu mesmo, na louca audácia de um triunfo perfeito, instalei minha própria cadeira exatamente no ponto sob o qual repousava o cadáver da vítima. Os oficiais estavam satisfeitos. Meus modos os haviam convencido. Eu estava bastante à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia animado, falaram de coisas familiares. Mas, pouco depois, senti que empalidecia e desejei que se fossem. Minha cabeça doía e me parecia sentir um zumbido nos ouvidos; mas eles continuavam sentados e continuavam a falar. O zumbido ficou mais claro — continuava e ficava mais claro: falei com mais vivacidade para me livrar da sensação: mas ela continuou e se instalou — até que, afinal, descobri que o barulho não estava dentro de meus ouvidos.

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Sem dúvida agora fiquei muito pálido; mas falei com mais fluência, e em voz mais alta. Mas o som crescia - e o que eu podia fazer? Era um som baixo,surdo, rápido — muito parecido com o som que faz um relógio quando envolto em algodão. Arfei em busca de ar, e os policiais ainda não o ouviam. Falei mais depressa, com mais intensidade, mas o barulho continuava a crescer. Levantei-me e discuti sobre ninharias, num tom alto e gesticulando com ênfase; mas o barulho continuava a crescer. Por que eles não podiam ir embora? Andei de um lado para outro a passos largos e pesados, como se me enfurecessem as observações dos homens, mas o barulho continuava a crescer. Ai meu Deus! O que eu poderia fazer? Espumei — vociferei — xinguei! Sacudi a cadeira na qual estivera sentado e arrastei-a pelas tábuas, mas o barulho abafava tudo e continuava a crescer. Ficou mais alto — mais alto — mais alto! E os homens ainda conversavam animadamente, e sorriam. Seria possível que não ouvissem? Deus Todo-Poderoso! — não, não? Eles ouviam! — eles suspeitavam! — eles sabiam! - Eles estavam zombando do meu horror! — Assim pensei e assim penso. Mas qualquer coisa seria melhor do que essa agonia! Qualquer coisa seria mais tolerável do que esse escárnio. Eu não poderia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Senti que precisava gritar ou morrer! — e agora — de novo — ouça! mais alto! mais alto! mais alto! mais alto! — Miseráveis! — berrei — Não disfarcem mais! Admito o que fiz! levantem as pranchas! — aqui, aqui! — são as batidas do horrendo coração!

FONTE: POE, Edgar Allan. Histórias Extraordinárias: Seleção, apresentação e

tradução de José Paulo Paes. Belo Horizonte: Boa Viagem, 2010.

a. Qual é a relação do título com o conto que você acabou de ler?

b. Mude o foco narrativo - de primeira pessoa para terceira pessoa.

O gato preto Edgar Allan Poe

Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã morro e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas consequências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e destruíram. No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror -- mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum -- uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais. Desde a infância, tornaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões frequentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.

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Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato. Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia frequentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento. Pluto -- assim se chamava o gato -- era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua. Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento -- enrubesço ao confessá-lo -- sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim -- que outro mal pode se comparar ao álcool? -- e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor. Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser. Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade. Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão -- dissipados já os vapores de minha orgia noturna -- , experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera. Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano - uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele.

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Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado -- um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível. Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de "fogo!". As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero. Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito - entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma sequencia de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo -- coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela, As palavras "estranho!", "singular!", bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em tomo do pescoço do animal. Logo que vi tal aparição -- pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa -- , o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu agora a via. Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então frequentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo. Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme -- tão grande quanto Pluto-- e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pelo branco em todo o corpo -- e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito. Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes. Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse -- detendo- me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tomando-se, logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher. De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que - não sei como nem por quê -- seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos - muito gradativamente -- , passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste. Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal

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circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros. No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pernas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo -- apresso-me a confessá-lo -- , pelo pavor extremo que o animal me despertava. Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar -- sim, mesmo nesta cela de criminoso -- , quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível -- que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa --, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer... E, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte! Na verdade, naquele momento eu era um miserável -- um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído... uma besta-fera que se engendrara em mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso -- encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim -- pousado eternamente sobre o meu coração! Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros -- os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade -- e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, frequentes e irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher - pobre dela! - não se queixava nunca convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas. Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar. O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido. Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos. Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de ideia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma ideia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas. Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e

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recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita. E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: "Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão". O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite -- e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranquila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma. Transcorreram o segundo e o terceiro dia -- e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura. No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência. -- Senhores -- disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada -- , é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída... (Quase não sabia o que dizia, em meu desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes -- os senhores já se vão? -- , estas paredes são de grande solidez. Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração. Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação. Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes. Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!

FONTE: POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias: seleção, tradução e apresentação de José Paulo Paes. Belo Horizonte: Boa Viagem, 2010.

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a. O título do texto é pertinente, original, sugestivo, instigante para o leitor?

b. O que a expressão "gato preto" lhe sugere?

c. Edgar Allan Poe é um místico escritor que narra as suas histórias como se ele

mesmo tivesse vivido, como se fosse um fato real. Dessa forma ele consegue

envolver o leitor?

Sobre o autor

FONTE:http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe.php?foto=565&

evento=9 acesso em 25/10/2013

- Leia o miniconto O gato de Ana Mello e estabeleça um paralelo com o texto O gato

preto de Edgar Allan Poe:

Quais as semelhanças e diferenças encontradas?

O gato

Odiava o bichano, e ele, sem dar importância, enrodilhava-se nas minhas pernas. Ronronava e lambia o pelo preto, que maculava o tapete. Matei-o por higiene, mais que por nojo ou prazer.

(59)

FONTE: MELLO, Ana. Minicontando. Porto Alegre: Casa Verde, 2009.

Edgar Allan Poe, poeta, escritor, crítico e

contista norte-americano, nasceu em

janeiro de 1809 em Boston,

Massachusetts -1849) e é considerado o

pai e mestre da literatura de horror.

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Sobre a autora

FONTE: http://www.artistasgauchos.com.br/veredas/?pg=1610 acesso em 13/11/2013

Mago Miguel Torga

Mago respirou fundo. Abriu o nariz e encheu o peito de ar ou de luar, não podia saber ao certo, porque a noite era clara como o dia e parada como uma montanha. Mas fosse de frescura ou de luz a onda que bebera num trago, de tal modo o inundou, que em todo o corpo lhe correu logo um frêmito de vida nova. Esticou-se então por inteiro, firmado nas quatro patas, arqueou o lombo, e deixando-se ficar assim por alguns instantes, só músculos, tendões e nervos, com os ossos a ranger de cabo a rabo. Arre, que não podia mais! Aquele mormaço da sala dava cabo dele. Deixava-o sem ação, bambo, mole e morno como o cobertor de papa onde dormia. A que baixezas a gente pode chegar! Ah, mas tinha que acabar semelhante degradação! Não pensasse lá agora a senhora D. Maria da Glória Sância que estava disposto a deixar-se perder para sempre no seu regaço macio de solteirona. Não faltava mais nada! E, se lhe restavam dúvidas, reparasse no que estava a acontecer naquele momento: ela a ressonar sozinha, na cama fofa, enquanto ele enchia os pulmões de oxigênio e de liberdade. É certo que a deixara primeiro adormecer, e só então, brandamente, deslizara de seus braços para o tapete e do tapete para a rua, através do postigo da cozinha. Uma questão de delicadeza, apenas. Porque, afinal, não havia vantagem nenhuma em fazer as coisas à bruta e ofender quem só lhe queria bem... Que diabo, sempre a senhora D. Maria Sância, a que até um fio de oiro lhe comprara para o pescoço! Que, considerando bem, por essas e por outras é que chegara àquela linda situação... - Ouvi dizer que já nem sardinhas comes?! - Essa agora! É todos os dias... - E que nunca mais caçaste? - Ainda esta manhã... Piadinhas do Lambão. É claro que os mimos de D. Sância lhe haviam deformado o gosto... Metia-lhe os petiscos ao focinho, tentava-se! E havia por onde escolher, de mais a mais! Quanto a ratos, que necessidade tinha de perder o tempo, debruçado três horas sobre um buraco, sem mexer sequer a menina dos olhos, à espera dum pobre diabo qualquer que ressonava lá no fundo? Deixá-los viver! As coisas são o que são. Em todo o caso, ainda comia a sua pescada crua e deitava honradamente a mão a uma ou outra borboleta branca, sem falar nas andorinhas novas e nos pardalecos que filava por desfastio na primavera. Que demónio! - Mas que não saias de casa, sempre agarrado às saias... Na verdade, saía pouco. Outros tempos, outros hábitos. Banqueteava-se e ficava-se pelas almofadas... Digestões difíceis, vinha-lhe um migalho de sonolência... Às vezes tentava reagir. Mas o raio da velha, mal o via pôr o pé na soleira da porta, perdia a cabeça! Parecia uma sineta! - Mago! Mago! Bicho, bichinho! Regressava aos lençóis, claro. Contrariado, evidentemente. Mas quê! Era o pão... O pãozinho na boca! Que remédio senão torcer caminho e, com as unhas discretamente recolhidas, continuar as carícias de algodão em rama no cachaço da dona... - E que deixaste a Faísca!... - Eu?

Nascida em São Leopoldo, Ana Mello é licenciada em Ciências e

Matemática pela Unisinos. Atua profissionalmente como téc.

Química. Iniciou suas publicações em 2002 quando foi uma das

classificadas no concurso da Carris, Relatos da História e outras

Memórias, tendo conto publicado em livro com esse título,

Publicou recentemente seu primeiro livro em papel,

MINICONTANDO, pela editora Casa Verde. Ministra oficinas de

minicontos, crônica e poetrix para público jovem e adulto.

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- Que anda metida com o Zimbro... Pelo menos é o que consta. Que teve até cinco pequenos dele... - Meus! Muito meus! Do meu sangue! Pantominice. Um triste chanato na honra do convento. Paleio de chavelhudo manso... a ninhada pertencia inteirinha ao Zimbro. Até pela pinta se via. Todos com o mesmo olhinho remeloso do pai... Um parrana, realmente, embora o não confessasse. Os mimos de D. Sância tinham-no desgraçado. Ah, mas a coisa ia mudar de figura! Estava farto de ser desfeiteado. Ainda há pouco... chegara-se ao pé da mulher, disposto a impor sua autoridade. - Ouve lá: disseram-se que mos andas a pôr para aí com todo mundo? E recebe esta pelas ventas: - Bem haja eu! - Bem hajas tu?! - Nunca guardei respeito a maricas! Só a tiro! Mas a verdade é que a Faísca tinha razão. Lá de ano a ano é que vinha procurá-la, e isso de gado fêmeo quer assistência. Além disso, pesadão, desconsolado. E até esquecido dos ganidos dessas horas... Uma vergonha! - Aparece logo à noite, pelo Tinoco... Há reunião. E adeusinho... - Adeus, Lambão. Foi no quintal, à tarde, quando a D. Sância dormia a sesta. O Lambão, empoleirado no muro, rondava a cozinha da vizinhança, onde assavam carapaus. Por acaso chegara à janela nesse momento, vira-o e fizera-lhe sinal. E o outro, de boa ou má fé, abrira o saco. Mas há males que vêm por bem. Depois da conversa, pensara maduramente no caso, e ali estava agora disposto a ressuscitar daquela vida perdida em que o destino o metera. Sim, ali estava, a dois passos do Tinoco, o clube da gataria de meia-idade. Bem situado, com saída para dois bairros da cidade, fora fundado pelo maior valdevinos da geração: o Hilário. Era um telhado corrido, quase plano, amplo, alto, mas de onde se podia cair de qualquer maneira numa aflição. Um achado. Como a casa servia de armazém, o Hilário viu de relance as condições do local. E logo no outro dia, os beijos, as mordedelas, os arranhões e os queixumes do cio foram ali. Bons tempos esses! Namorava então a Boneca, uma gatinha borralheira de a gente se perder. - Ora viva! - Miiau... - Seja bem aparecida, a minha bonequinha! - Miiau... Mimo da cabeça aos pés. Mas um rebuçadinho! Depois enrodilhara-se com a Moira-Negra, um coiro velho, curtido e batido. Cada guincho que abria a noite! - Cala-te lá com isso, mulher! Isso calava ela! Acabou por se aborrecer. Por fim veio a lambisgóia da Perricha... Uns trabalhos. Ciúmes, fraqueza, dores de cabeça, o diabo! - Matas-te, filho, arruínas-te... Palavras sensatas da mãe. - Muda de vida, homem! Essa excomungada leva-te à sepultura. Mas quê! O vício pode muito... Até que a mãe morreu de velhice e desgosto, a Perricha desapareceu do bairro e ele foi cair por acaso no quintal da D. Sância. - O bichinho está doente. Se calhar é fome... E a ternura da senhora nunca mais o largou. A princípio ainda tentou reagir, mas, por fim, o corpo, o miserável corpo, acostumou-se ao ripanço. A parva cuidava que era amor correspondido. Palerma! Amizade sincera não é com gatos. Simplesmente, quem brinca aos afogados, afoga-se. Com o andar do tempo, a moleza foi tomando conta dele... E pronto. Quando reparou, estava perdido. Às vezes tinha tentações do inferno. Infelizmente, as vidas iam ruins. Virava-se um balde de restos, e não se aproveitava uma espinha. Que remédio, pois, senão contemporizar... Mas cara aposentadoria! Considerando bem, melhor fora que o estafermo de solteirona nunca lhe tivesse aparecido. Mais valia andar pelado e a cair de fome e ser capaz de responder ao pé da letra aos sarcasmos que agora lhe atiravam. - Olha o Mago!... Olha o milionário!... O patife do Tareco. Era de o derreter logo ali! A desgraça é que não podia passar da mansa indignação que o roía. Nem forças, nem coragem para mais. E, logo por azar, com o clube à cunha!

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Parecia de propósito. Raios partissem a D. Sância, e mais quem lhe gabava as almofadas! Por causa delas, pouco faltava para lhe cuspirem na cara! - Com que então de visita aos bairros pobres? Obra de assistência ao desvalidos, não? Até o bandido do Zimbro. Vejam lá! O engraçado! Não contente de lhe roubar a mulher, de lhe pregar um par deles do tamanho duma procissão, vinha ainda com provocações à vista de toda a gente. Ah, mas estava redondamente enganado, se cuidava que não recebia o troco devido. - O cavalheiro seja mais delicado... - Reparem nas falinhas dele... A tratar os amigos por cavalheiros! - Amigos? Eu não tenho amigos da sua laia! - Pesam-lhe na testa, coitado! Desembestou. Cego da cabeça aos pés, atirou-se ao abismo. Infelizmente as ensanchas do Zimbro eram outras. Tinha raiva, tinha dentes, tinha unhas e fôlego. Contra tais armas, que podia a simples indignação dum pobre mortal, gordo e lustroso? Servir de bombo da festa... É que nem a primeira acertou! Ágil e musculado, e com a maleabilidade de uma cobra, o inimigo furtou-se à sua fúria, e ripostou a valer ao golpe esboçado. Depois, foi o bom e o bonito! A seguir, uma saraivada de investidas traiçoeiras, meia dúzia de navalhadas de liquidar um homem. Só visto! No fim da luta, quando já não podia mais e se confessou derrotado, sangrava e gemia tanto, que até um polícia, em baixo, na rua estreita, se comoveu. O clube, esse, parecia doido de alegria. A Faísca rebolava-se no chão, de contente. Fugiu desvairado pelos telhados. A lua, cada vez mais branca lá no alto, olhava-o com desdém. A cidade, adormecida, parecia um cemitério sem fim. Da torre duma igreja, saía um pio agoirento. Jogara naquele lance o resto da dignidade. E perdera. Dali por diante, seria apenas uma humilhação, sem esperança. Ele, que tivera nas mãos possantes e nervosas o corpo fino e submisso da Boneca, ele, o escolhido da Moira-Negra, ele, o companheiro de noitadas do Hilário, ele, Mago, relegado definitivamente para o mundo das pantufas e dos tapetes! Proibido para o resto da existência de pensar sequer numa baforada da úmida frescura que agora lhe atravessava as ventas e lhe deixava cantarinhas no bigode... Condenado para sempre ao bafio da maldita sala de visitas da D. Sância! Negra sorte! E tudo obra do coirão da velha... Se não fosse ela, em ver de ir ali esquadrilhado e a mancar da mão esquerda, estaria no Tinoco a soltar ganidos com os outros, depois de ter feito o Zimbro em pedaços... Assim, arrastava-se penosamente por aquele caminho de desespero, tal e qual um moribundo a despedir-se da vida... Miséria de destino! Vexado, vencido, retalhado no corpo e na alma...E tudo obra do estupor da santanária! Vinha rompendo a manhã. Um sino ao longe deu cinco horas. Abriam-se as primeiras janelas. Grandes laivos avermelhados anunciavam a chegada próxima do sol. Parou. Lambeu a pata doente e sacudiu-se, num arrepio. Uma lassidão profunda começava a invadi-lo. Maldita D. Sância! Se nunca tivesse conhecido a tal sujeita... Olha, olha, a enevoar-se-lhe a vista! Queriam ver que ia desmaiar?! Encostou-se a uma chaminé, e ficou algum tempo sem dar acordo de si, a arfar penosamente. Até que uma onda de energia o trouxe de novo ao mundo. Arregalou os olhos. Estava melhor, felizmente! Já enxergava claro outra vez. Podia continuar. Em que trabalhos o metera o raio da velha! E louvar a Deus safar-se com vida da brincadeira... Coça valente... Por um triz que não se ficava... Muita resistência tinha ele ainda! A alguns metros apenas do jardim da casa, cuidou que tornava a desfalecer. E só então é que reparou: deixava um rastro de sangue por onde passava... Fez das tripas coração e lá conseguiu equilibrar-se e chegar ao pequeno muro que vedava o paraíso da sua perdição. Saltava? Não saltava? Que infâmia, regressar aos mimos da D. Sância! Que nojo! Que ordinarice! Mas a que propósito vinham agora as perplexidades e as recriminações? Sim, a que propósito? Fartinho de saber que nem sequer lhe passara pela cabeça a ideia de resolver o caso doutra maneira! Ao menos fosse sincero! De resto, que esforço concreto fizera para se libertar? Nenhum. Ainda não havia uma dúzia de horas, ouvira a voz de Lambão como um eco da própria consciência... E, afinal, ali estava outra vez! E viera de livre vontade... Ninguém o obrigara... Já roído de remorsos? Ora, ora! Outro fosse ele, nem aquela casa encarava mais. E voltara! Sim, voltara miseravelmente... E à procura de quê? Da paz podre, dum conforto castrador... Que abjeção! Que náusea! E, sem querer, sem poder aceitar a sua degradação, Mago entrou pelo postigo da cozinha e foi-se deitar entre os braços balofos da D. Sância.

FONTE: TORGA, Miguel. Bichos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

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Vicente Miguel Torga

Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu. Quarenta dias eram já decorridos desde que, integrado na leva dos escolhidos, dera entrada na Arca. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu espírito não havia paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação. Em semelhante balbúrdia - lobos e cordeiros irmanados no mesmo destino -, apenas a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com o procedi- mento de Deus. Numa indignação silenciosa, perguntava: - a que propósito estavam os animais metidos na confusa questão da torre de Babel? Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa. E, quanto mais inexorável se mostrava a prepotência, mais crescia a revolta de Vicente. Quarenta dias, porém, a carne fraca o prendeu ali. Nem mesmo ele poderia dizer como descera do Líbano para o cais de embarque e, depois, na Arca, por tanto tempo recebera das mãos servis de Noé a ração quotidiana. Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto da própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão terrível do mar. A insólita partida foi presenciada por grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os seres em eleitos e condenados. Mas ainda no íntimo de todos aquele sabor de resgate, e já do alto, larga como um trovão, penetrante como um raio, terrível, a voz de Deus: – Noé, onde está o meu servo Vicente? Bípedes e quadrúpedes ficaram petrificados. Sobre o tombadilho varrido de ilusões, desceu, pesada, uma mortalha de silêncio. Novamente o Senhor paralisara as consciências e o instinto, e reduzia a uma pura passividade vegetativa o resíduo da matéria palpitante. Noé, porém, era homem. E, como tal, aprestou as armas de defesa. – Deve andar por aí... Vicente! Vicente! Que é do Vicente?!... Nada. – Vicente!... Ninguém o viu? Procurem-no! Nem uma resposta. A criação inteira parecia muda. – Vicente! Vicente!. Em que sítio é que ele se meteu? Até que alguém, compadecido da mísera pequenez daquela natureza, pôs fim à comédia. – Vicente fugiu... – Fugiu?! Fugiu como? – Fugiu... Voou... Bagadas de suor frio alagaram as têmporas do desgraçado. De repente, bambearam-lhe as pernas e caiu redondo no chão. Na luz pardacenta do céu houve um eclipse momentâneo. Pelas mãos invisíveis de quem comandava as fúrias, como que passou, rápido, um estremecimento de hesitação. Mas a divina autoridade não podia continuar assim, indecisa, titubeante, à mercê da primeira subversão. O instante de perplexidade durou apenas um instante. Porque logo a voz de Deus ribombou de novo pelo céu imenso, numa severidade tonitruante. – Noé, onde está o meu servo Vicente? Acordado do desmaio poltrão, trémulo e confuso, Noé tentou justificar-se. – Senhor, o teu servo Vicente evadiu-se. A mim não me pesa a consciência de o ter ofendido, ou de lhe haver negado a ração devida. Ninguém o maltratou aqui. Foi a sua pura insubmissão que o levou... Mas perdoa-lhe, e perdoa-me também a mim... E salva-o, que, como tu mandaste, só o guardei a ele... – Noé!... Noé!.... E a palavra de Deus, medonha, toou de novo pelo deserto infinito do firmamento. Depois, seguiu-se um silêncio mais terrível ainda. E, no vácuo em que tudo parecia mergulhado, ouvia-se, infantil, o choro desesperado do Patriarca, que tinha então seis- centos anos de idade.

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Entretanto, suavemente, a Arca ia virando de rumo. E a seguir, como que guiada por um piloto encoberto, como que movida por uma força misteriosa, apressada e firme - ela que até ali vogara indecisa e morosa ao sabor das ondas -, dirigiu-se para o sítio onde quarenta dias antes eram os montes da Arménia. Na consciência de todos a mesma angústia e a mesma interrogação. A que represálias recorreria agora o Senhor? Qual seria o fim daquela rebelião? Horas e horas a Arca navegou assim, carregada de incertezas e terror. Iria Deus obrigar o corvo a regressar à barca? Iria sacrificá-lo, pura e simplesmente, para exemplo? Ou que iria fazer? E teria Vicente resistido à fúria do vendaval, à escuridão da noite e ao dilúvio sem fim? E, se vencera tudo, a que paragens arribara? Em que sítio do universo havia ainda um retalho de esperança? Ninguém dava resposta às próprias perguntas. Os olhos cravavam-se na distância, os corações apertavam-se num sentimento de revolta impotente, e o tempo passava. Subitamente, um lince de visão mais penetrante viu terra. A palavra, gritada a me- do, por parecer ou miragem ou blasfémia, correu a Arca de lês a lês como um perfume. E toda aquela fauna desiludida e humilhada subiu acima, ao convés, no alvoroço grato e alentador de haver ainda chão firme neste pobre universo. Terra! Nem planaltos, nem veigas, nem desertos. Nem mesmo a maciez tranquilizadora dum monte. Apenas a crista de um cerro a emergir das vagas. Mas bastava. Para quantos o viam, o pequeno penhasco resumia a grandeza do mundo. Encarnava a própria realidade deles, até ali transfigurados em meros fantasmas flutuantes. Terra! Uma minúscula ilha de solidez no meio dum abismo movediço, e nada mais importava e tinha sentido. Terra! Desgraçadamente, a doçura do nome trazia em si um travor. Terra... Sim, existia ainda o ventre quente da mãe. Mas o filho? Mas Vicente, o legítimo fruto daquele seio? Vicente, porém, vivia. À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo tempo um perfil de vontade. Chegara! Conseguira vencer! E todos sentiram na alma a paz da humilhação vingada. Simplesmente, as águas cresciam sempre, e o pequeno outeiro, de segundo a segundo, ia diminuindo. Terra! Mas uma porção de tal modo exígua, que até os mais confiados a fixavam ansiosamente, como a defendê-la da voragem. A defendê-la e a defender Vicente, cuja sorte se ligara inteiramente ao telúrico destino. Ah, mas estavam "rotas as fontes do grande abismo e abertas as cataratas do céu"! E homens e animais, começaram a desesperar diante daquele submergir irremediável do último reduto da existência activa. Não, ninguém podia lutar contra a determinação de Deus. Era impossível resistir ao ímpeto dos elementos, comandados pela sua implacável tirania. Transida, a turba sem fé fitava o reduzido cume e o corvo pousado em cima. Palmo a palmo, o cabeço fora devorado. Restava dele apenas o topo, sobre o qual, negro, sereno, único representante do que era raiz plantada no seu justo meio, impávido, permanecia Vicente. Como um espectador impessoal, seguia a Arca que vinha subindo com a maré. Escolhera a liberdade, e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção. Olhava a barca, sim, mas para encarar de frente a degradação que recusara. Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito claro ou brumoso de cada um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco – a total autonomia da criatura em relação ao criador -, ou, submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema. A significação da vida ligara-se indissoluvelmente ao acto de insubordinação. Porque ninguém mais dentro da Arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência. Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte. Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra aquela vontade inabalável de ser livre. Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu.

FONTE: TORGA, Miguel. Bichos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

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a. Caracterize os personagens Mago e Vicente.

b. Verifique qual seu simbolismo: o que representam gato e corvo na cultura

popular?

c. Nos textos Mago e Vicente comprova-se o que a sabedoria popular diz sobre

gato e corvo?

Sobre o autor

FONTE: http://www.truca.pt/ouro/biografias1/miguel_torga.html acesso em

25/10/2013

Miguel Torga, pseudônimo de Adolfo Correia da Rocha, (São Martinho

de Anta, 12 de Agosto de 1907 — Coimbra, 17 de Janeiro de 1995) foi

um dos mais influentes poetas e escritores portugueses do século XX.

Destacou-se como poeta, contista e memorialista, mas escreveu

também romances, peças de teatro e ensaios. Cria o pseudônimo

"Miguel" e "Torga". Miguel, em homenagem a dois grandes vultos da

cultura ibérica: Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno. Já Torga é

uma planta brava da montanha, que deita raízes fortes sob a aridez da

rocha, de flor branca, arroxeada ou cor de vinho, com um caule

incrivelmente rectilíneo.

Para saber mais

Bichos é um clássico da literatura portuguesa. O autor inventa um mundo de bichos

humanizados.

São catorze contos, onde o mistério da vida nos aparece no seu esplendor,

perfilando bicho, homem e natureza numa comunhão fraternal, em que todas as

peças são necessárias.

Bichos é, também, o retrato fiel do viver trasmontano; uma vida de suor e lágrimas,

por entre escolhos e lobos, mas sempre repleta daquela alegria que só o sofrimento

pode justificar: a alegria de ser, de viver em comunhão total coma natureza, em fusão

permanente com os elementos.

Miguel Torga fez desta obra um testemunho impar da união natural entre os Homens

e os Bichos. No meio dos dois, a terra, o traço que lhes dá vida. No trabalho, nas

paixões e nas dores, os bichos compartilham com os homens as esperanças e as

desgraças.

Curiosa a palavra: “bichos” e não “animais”. Bichos são, talvez, os animais

humanizados, irmanados com o homem na mesma luta; na vida.

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A Moça Tecelã

Marina Colasanti

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear. Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte. Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava. Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela. Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza. Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias. Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado. Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta. Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida. Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade. E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar. — Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer. Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. — Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata. Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira. Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre. — É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos! Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo. Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear. Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as

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carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela. A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu. Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

FONTE: COLASANTI, Marina. Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento. Rio de Janeiro: Global, 2000.

a. Como a mulher é representada nesse texto de Marina Colasanti?

b. Qual o conflito inicial?

c. Qual o desfecho final?

d. Se você tivesse a capacidade expressa no texto, o que teceria? O que

desteceria?

Sobre a autora

FONTE:http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe.php?foto=4

81&evento=9 acesso em 25/10/2013

Marina Colasanti - A Moça Tecelã

Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=A_Ly7Myyo34 acesso em

18/11/2013

Marina Colasanti (Asmara, 26 de setembro de 1937) é

uma escritora e jornalista ítalo-brasileira nascida na então

colônia italiana da Eritreia.Viveu sua infância na Líbia e então

voltou à Itália onde viveu onze anos. Emigram para o Brasil em

1948 com a eclosão da Segunda Guerra Mundial.

No Brasil estudou Belas-Artes e trabalhou como jornalista, tendo

ainda traduzido importantes textos da Literatura italiana. Como

escritora, publicou 33 livros, entre contos, poesia,

prosa,literatura infantil e infanto-juvenil.

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Negrinha Monteiro Lobato

Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de

cabelos ruços e olhos assustados. Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos

escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.

Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo.

Ótima, a dona Inácia. Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem

filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:

— Quem é a peste que está chorando aí? Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa

abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero.

— Cale a boca, diabo! No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses

que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer... Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados.

Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a ideia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.

— Sentadinha aí, e bico, hein? Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas. — Braços cruzados, já, diabo! Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o

relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por dentro, feliz um instante.

Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim. Que ideia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha,

diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste...

O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta...

A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo — essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! “Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: “Como é ruim, a sinhá!”...

O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:

— Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...

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Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor!

Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.

Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta — atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam todos os dias.

— “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste — e foi contar o caso à patroa. Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se. — Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual

perua choca, a rufar as saias. — Traga um ovo. Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se

na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou:

— Venha cá! Negrinha aproximou-se. — Abra a boca! Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma

colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:

— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste? E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que

chegava. — Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã,

filha da Cesária — mas que trabalheira me dá! — A caridade é a mais bela das virtudes cristas, minha senhora —murmurou o padre. — Sim, mas cansa... — Quem dá aos pobres empresta a Deus. A boa senhora suspirou resignadamente. — Inda é o que vale... Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas,

pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas. Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos

do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.

Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado — e findo o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.

Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga”?

Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral —sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos — a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre.

— Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa. — Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não

me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora.

— Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco.

Chegaram as malas e logo: — Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas. Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.

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Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava “mamã”... que dormia...

Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.

— É feita?... — perguntou, extasiada. E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a providenciar

sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão,o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la.

As meninas admiraram-se daquilo. — Nunca viu boneca? — Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca? Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade. — Como é boba! — disseram. — E você como se chama? — Negrinha. As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha

perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca: — Pegue! Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como coração aos pinotes. Que ventura,

santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si, literalmente... era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim, apreciando a cena.

Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se.

Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos.

Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo — estas palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:

— Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein? Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais

a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu. Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha... Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na

mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca — preparatório —, e o momento dos filhos — definitivo. Depois disso, está extinta a mulher.

Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!

Assim foi — e essa consciência a matou. Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou

ao ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada. Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de

coração, amenizava-lhe a vida. Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de

susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos. Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso

inferno, envenenara-a. Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura,

tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma.

Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de

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olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.

Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.

Mas, imóvel, sem rufar as asas. Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou... E tudo se esvaiu em trevas. Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira —

uma miséria, trinta quilos mal pesados... E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória

das meninas ricas. — “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?” Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia. — “Como era boa para um cocre!...”

FONTE: LOBATO, Monteiro in MORICONI, Ítalo (org). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

a. Onde ocorre esta história? Em que época? b. De que trata o conto? c. Quais foram os fatos mais importantes?

Sobre o autor

FONTE: http://www.linkatual.com.br/monteiro-lobato.html acesso em 25/10/2013

E outros... muitos outros ...

Felicidade Clandestina - Clarice Lispector

A Cartomante - Noite de Almirante - O espelho - Machado de Assis

O corvo - Edgar Allan Poe

A Caolha - Júlia Lopes de Almeida

Monteiro Lobato, natural de Taubaté (SP), nasceu em 18/04/1882. É uma das figuras excepcionais das letras brasileiras. Jornalista, contista, criador de deliciosas histórias para crianças, suscitador de problemas, ensaísta e homem de ação, encheu com seu nome um largo período da vida nacional.

Era, de fato, um ser plural: escritor precursor do realismo fantástico, escritor de cartas, escritor de obras infantis, ensaísta, crítico de arte e literatura, pintor, jornalista, empresário, fazendeiro, advogado, sociólogo, tradutor, diplomata, etc. Faleceu na cidade de São Paulo (SP), no dia 04 de julho de 1948.

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O convidado - Murilo Rubião

As mãos de meu filho - Érico Veríssimo

Uma ideia toda azul - Marina Colasanti

Olhos de cão azul - O rastro do teu sangue na neve - Gabriel Garcia Márquez

Continuidade dos parques - Júlio Cortázar

A hora e a vez do miniconto: em

pequenas narrativas cabem grandes

histórias

O ritmo alucinante da vida moderna interfere na produção das narrativas

contemporâneas.

A pressa do mundo moderno e a utilização cada vez maior da internet

contribuíram para o surgimento do miniconto. que teve influência cultural norte-

americana e de movimentos artísticos como o Minimalismo e o Futurismo.

O que você diria se alguém lhe dissesse que é possível escrever contos com

cinquenta letras no máximo? Ou utilizando no máximo 140 caracteres?

No miniconto mais importante que mostrar é sugerir, deixando ao leitor a

tarefa de “preencher” as elipses narrativas e entender a história por trás da história

escrita. Não tem nenhuma definição rígida quanto ao número de caracteres, embora

acredita-se que deve ter até 140 caracteres para poder ser enviado via SMS.

FONTE: http://pt.wikipedia.org/wiki/Miniconto acesso em 12/08/2013

Professor, iniciar com uma dinâmica:

Colocar diversos minicontos nos balões. Cada aluno pega um balão, enche, estoura e lê o texto.

Que tipo de texto e esse?

Você gostou? Por quê?

Está faltando alguma coisa?

Onde podemos encontrá-lo?

Depois da socialização com os colegas, o professor passa a expor um pouco sobre o gênero,

incentivando os alunos para que pesquisem.

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Menos de cinquenta letras: esse é o tamanho do texto mais famoso do

escritor guatelmateco Augusto Monterroso, “O dinossauro”, também considerado o

microconto mais famoso do mundo, o menor conto da literatura mundial. Foi a partir

dele que se criou a onda dos microcontos ou microrrelatos dos últimos anos,

inclusive na literatura brasileira.

“Cuando despertó, el dinosaurio todavía estaba allí .” (versão original)

O dinossauro “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”.

Augusto Monterroso

a. Quem acordou?

b. Onde estava o dinossauro?

c. O que representa o dinossauro?

Sobre o autor

FONTE: http://www.releituras.com/amonterroso_menu.asp acesso em 25/10/2013

Augusto Monterroso Bonilla nasceu em

Tegucigalpa, Honduras, em 21 de

dezembro de 1921 - e faleceu na Cidade do

México, 7 de fevereiro de 2003. Foi

um escritor conhecido pelas suas coleções de relatos

breves e hiperbreves.

Professor: Perguntar aos alunos se costumam mandar mensagens por celular, se sabem

qual é o número máximo de caracteres para mandar uma mensagem e qual a relação que

isso tem com os minicontos dada a sua praticidade.

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Ernest Hemingway é autor de outro famoso miniconto. Com apenas vinte e seis letras, atrás das quais há toda uma história de tragédia familiar:

Vende-se: sapatos de bebê, sem uso. Ernest Hemingway

a. Será possível narrar uma história e se fazer compreender com tão poucos

elementos?

b. Quem está vendendo?

c. Por que estão vendendo?

d. Por que os sapatos estão sem uso?

Sobre o autor

FONTE: http://educacao.uol.com.br/biografias/ernest-hemingway.jhtm acesso em 25/10/2013

Características do miniconto

- Concisão - Narratividade (muitos dos ditos minicontos são, na verdade, tiradas líricas) - Totalidade (um miniconto não é uma story line) - Subtexto - Ausência de descrição - Retrato de "pedaços da vida"

FONTE: http://pt.wikipedia.org/wiki/Miniconto acesso em 12/08/2013.

Ernest Miller Hemingway nasceu em 1899, em

Oak Park, Illinois (EUA). Filho de um médico da

zona rural, cresceu em contato com um

ambiente pobre e rude.

Ganhador do Nobel de Literatura (1954),

Hemingway suicidou-se em sua casa de

Ketchum, em Idaho (EUA), em 1961.

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Ah, é?

11

Reinando com o ventilador, a menina tem a ponta do mindinho amputada.

Desde então as três bonecas de castigo, o mesmo dedinho cortado a tesoura.

(p. 12)

FONTE: TREVISAN, Dalton. Ah, é. Rio de Janeiro: Record, 1994.

**************************************** // **************************************

234

46

Domingo, de volta do futebol, ele serve-se de uma cachacinha, liga o rádio.

- Sabe paizinho?

É o menino de seis anos, todo prosa.

- O que, meu filho?

- Essa a música que a mãe dança com o tio Lilo.

(p. 28)

FONTE: TREVISAN, Dalton. 234. Rio de Janeiro: Record, 1997. **************************************** // **************************************

No Brasil, o livro Ah,é? 1994, de Dalton Trevisan, é

considerado o ponto de partida do miniconto no seu

formato contemporâneo.

São 234

contos curtos,

ministórias,

repletas de bom-humor, ironia e malícia.

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Desgracida

O genro

- Pai o João foi convidado para trabalhar em São Paulo. Passagem paga, pensão e tudo. De lá, pode mandar dinheiro todo mês. O meu medo é que não mande. Ou pior, nem volte. O que o senhor acha? - Se ele for e mandar o dinheiro, acho legal. - ... - Se não mandar, tudo bem. - ... - Se não mandar nada e não voltar, melhor ainda.

(p. 31)

FONTE: TREVISAN, Dalton. Desgracida. Rio de Janeiro: Record, 2010.

**************************************** // **************************************

Sobre o autor

FONTE: http://www.releituras.com/daltontrevisan_bio.asp acesso em 25/10/2013

Nascido em 14 de junho de 1925, o curitibano Dalton Jérson Trevisan sempre foi enigmático. Antes de chegar ao grande público, quando ainda era estudante de Direito, costumava lançar seus contos em modestíssimos folhetos. Dedicando-se exclusivamente ao conto, acabou se tornando um dos grandes mestres brasileiros no gênero.

Livro dividido em duas partes:

"Ministórias" repletas de ironia e sarcasmo,

características próprias do autor.

"Mal Traçadas Linhas" textos de antigas cartas

enviadas a alguns amigos.

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Uma vela para Dario Dalton Trevisan

Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo. Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque. Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca. Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado. A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado á parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata. Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las. Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso. Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade. Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes. O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão. A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto. Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos. Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva. Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.

FONTE: TREVISAN, Dalton. Em busca de Curitiba perdida. Rio de Janeiro: Record, 2004.

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a. O texto Uma vela para Dario é considerado um miniconto. Qual o tema abordado

pelo autor?

b. O que o título nos sugere?

c. O que simboliza a vela colocada pelo menino?

d. É comum as pessoas agirem dessa forma?

Uma Vela para Dario Vídeo animado que representa o enredo do conto do escritor paranaense, Dalton Trevisan, intitulado "Uma Vela para Dario. Um conto que abre espaço para muitos questionamentos sobre a valorização do ser humano. Disponível em: http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/video/showVideo.php?video=8325 acesso em 22/08/2013

Apólogo

Machado de Assis

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:

- Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?

- Deixe-me, senhora.

Para saber mais

O escritor Machado de Assis é considerado o precursor do miniconto no

Brasil com o texto Apólogo.

Apólogo: é a narrativa breve de uma situação vivida por seres inanimados,

ou melhor, sem vida animal ou humana. Normalmente, o apólogo tem

como personagens seres que ali adquirem valor metafórico, isto é, não são

símbolos como acontece com as personagens de fábula.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São

Paulo: Moderna, 2000.

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- Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

- Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.

- Mas você é orgulhosa.

- Decerto que sou.

- Mas por quê?

- É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?

- Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?

- Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...

- Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...

- Também os batedores vão adiante do imperador.

- Você é imperador?

- Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto... Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das

sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

- Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima... A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile. Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:

- Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá. Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

- Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:

- Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

FONTE: ASSIS, Machado in "Para Gostar de Ler - Volume 9 - Contos", Editora Ática - São Paulo, 1984. Disponível também em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp acesso em 05/10/2013 http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/contos/macn005.pdf acesso em 05/10/2013

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a. Problema: Os personagens da história tinham algum problema?

Ao ler o texto, o que você acha que os personagens pretendiam?

b. Ação: Quais foram os fatos importantes dentro da história?

c. Resolução: Como é que os personagens do texto resolveram seus problemas?

d. Tema: O que é que a história tentou nos comunicar?

Que lições podem ser extraídas dessa história?

Outros autores

Minicontos e muito menos

Minicontos e muito menos - Marcelo Spalding

Maria Helena é virgem desde que o pai sumiu de casa. (p. 15)

Maria Teresa frequenta a casa, mas não está nas fotografias.

Conhece a cama, mas não ignora a aliança. Espalha o vírus, mas não deixa vestígios.

(p. 16)

Houve um tempo em que havia pedras no meio do caminho. Tropeçava-se. Levantava-se. E seguia-se. Hoje tem uma bala no meio do caminho.

No meio do caminho tem uma bala. Tem uma bala no meio do ca...

(p. 45)

Chegou tua hora. Serás moleque travesso, jogarás bola e bolita e botão, terás mulher, filhos, carro e emprego, gostarás de ir à praia e conhecerás o Rio de Janeiro, comprarás casa,

terreno, assistirás ao teu time ser campeão do mundo, mas antes dos cinquenta, um disparo repentino levará teus movimentos, tua voz, tua fome. Topas?

(p. 22)

**************************************** // **************************************

Sexto volume da série Lilliput,

Laís Chaffe e Marcelo Spalding

reúnem suas melhores

micronarrativas e outras formas

breves que não se enquadrariam

em uma definição rigorosa do

conto. Em formato dois em um, o

livro tem duas capas.

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Minicontos e muito menos - Laís Chaffe

Saia-justa O casal passeia com o bebê.

- É a cara do pai - bajula a vizinha. - A senhora o conhece? - pergunta o homem.

(p. 23)

Hóspede - Sim, fui eu que convidei. Mas naquela época você garantiu que a sua mãe não tinha mais

que três meses de vida. (p. 27)

Boas maneiras

No meio da noite, o menino entra no quarto dos pais e pede água. - É assim que se faz? Saia, bata na porta e diga as palavrinhas mágicas.

Com sono e sede, mas obediente. Toc-toc. A mãe: - Sim?

Ele, depois de hesitar por segundos: - Abracadabra.

(p. 32)

FONTE: CHAFFE, Laís; SPALDING, Marcelo. Minicontos e muito menos. Porto Alegre: Casa Verde, 2009.

**************************************** // ************************************** Minicontando

A vida é agora

Sexta-feira, fim de tarde. Na parada do Centro, muitos idosos trancam a entrada. O motorista quase prende um na porta. Tenha paciência, meu filho. Quando eu morrer e for para o céu, prometo ficar na portaria. Facilitarei a entrada do amigo. Domingo de madrugada, assalto no coletivo. Não deu tempo, ninguém na portaria.

(12)

Espelhos

Depois da morte da esposa, ele retirou todos os espelhos da casa. Os vizinhos comentaram: estava enlouquecendo. Diziam que ele queria esquecer como ela era vaidosa, como passava o dia admirando sua própria imagem, pintando a boca. Estavam enganados. Ele queria apenas deixar de ver sua infinita tristeza.

(53)

FONTE: MELLO, Ana. Minicontando. Porto Alegre: Casa Verde, 2009. **************************************** // **************************************

Cem narrativas, retratos do dia a dia, fragmentos do cotidiano que

surgiram a partir da presença constante em oficinas e eventos

literários que ajudaram a cientista Ana a descobrir os talentos da

escritora Ana.

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Minicontos perversos e outras licenciosidades

Santinho do bolo Não é à toa que o bolo pesa mais de três toneladas. As casadoiras e encalhadas de Curitiba vão lá na Igreja do Bom Jesus comoer bolo na véspera de Santo Antônio. Tem até homem na fila que dobra o quarteirão. Diz que quem encontrar um santinho no pedaço casa em menos de um ano. Acho é que você foi lá na Bom Jesus comer bolo, e que entrou mais de uma vez na fila. Por isso quebrou o dente e chegou em casa sorrindo.

(p. 23)

30 dias Ele levantou no horário de costume e foi fazer o café forte, mas antes marcou mis um dia no calendário pendurado ao lado da geladeira. Gesto simbólico para ele notar sempre que ali passasse os olhos. Tiveram a conversa séria antes do natal, mas só depois do carnaval o marido aceitou a falência da relação e se comprometeu a sair de casa em um mês. Para ela, esses dias seriam a eternidade. Simbolizar isso marcando na folhinha era eloquência do seu desespero. Não bastou dormirem em quartos separados, nem os desencontros nas viagens ao litoral, ela aqui ele lá, ele aqui ela lá. Na primeira conversa ela propôs uma separação "cirúrgica", planejada e consentida, com anestesia e cuidados especiais. E por pouco não partiu para uma "amputação", daquelas em que o membro é arrancado à força - uma traição indiscreta bastaria, mas todos, inclusive os filhos, sofreriam mais. O que motivou o marido a tomar a decisão acertada foi ela assumir que necessitava conhecer outro alguém, questão de sobrevivência. E que isso estava na iminência de acontecer. Ele aceitou e decidiu sair de casa. Tolinho.

(p. 26-27)

FONTE: MARTINS, Gustavo. Minicontos perversos e outras licenciosidades. Curitiba: InVerso, 2010.

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"Os olhos não foram feitos para ler textos longos na tela do

computador".

"Um Miniconto Perverso não tem tamanho exato, mas a

ideia é que seja perfeito para ler no computador, no meio

daquele bombardeio de informações. Ou seja, tem que ser

do tamanho de uma tela de micro ou um pouco mais. Era

assim que eles existiam antes dos blogs virarem moda".

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Contos de algibeira

FONTE: CHAFFE, Laís (org). Contos de Algibeira. Porto Alegre: Casa Verde.2007.

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Contos comprimidos

FONTE: NEUBARTH, Fernando. Contos comprimidos. Porto Alegre: Casa Verde,

2008.

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Contos de bolsa

FONTE: CHAFFE, Laís (org). Contos de bolsa. Porto Alegre: Casa Verde, 2006.

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Antologia transatlântica, organizada por Laís Chaffe.

Escritores portugueses e brasileiros unidos na tarefa de criar

icebergs de proporções mais radicais do que as da já

clássica teoria de Hemingway, sobre o conto. Saboreie a

ponta de cada iceberg como a um sorvete.

Cinquenta escritores. Cem minicontos escritos a partir do

binômio saúde-doença.

Confira.

Segundo livro da série Lilliput. Traz minicontos sobre o tema

mulher.

São 47 escritores e escritoras, cada um colaborando com

dois textos.

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Contos de bolso

FONTE: CHAFFE, Laís (org). Contos de bolso. Porto Alegre: Casa Verde, 2005.

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a. Você já conhecia esse tipo de texto?

b. Qual sua impressão sobre os textos lidos?

c. Você sabe onde encontrá-los?

d. De um modo geral, quais as principais características desses textos?

Reúne mais de cem minicontos de diversos autores entre

convidados e integrantes da Casa Verde

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Os objetivos desta oficina são: - Analisar como é possível produzir uma narrativa com começo, meio e fim,

preservando as características do conto em espaço tão exíguo. - Reconhecer a estrutura narrativa que ancora os minicontos. - Identificar marcas de intertextualidade nos minicontos.

- Compreender o papel da intertextualidade em minicontos.

Antônio Maria descobriu o Brasil.

As brasileiras.

E voltou antes de se reconhecer no choro do neném. Marcelo Spalding

FONTE: CHAFFE, Laís; SPALDING, Marcelo. Minicontos e muito menos. Porto

Alegre: Casa Verde, 2009.

Sobre o autor

FONTE: http://www.artistasgauchos.com.br/portalx/index_festipoa.php?id=1 acesso

em 25/10/2013

Nesse conto, com economia de linguagem o autor conseguiu narrar uma

história que nos desafia como leitores a completar o que não está escrito, buscando

construir os elementos da narrativa. Essa busca nos abre os olhos para alguns

Marcelo Spalding é professor, escritor e jornalista.

Formado em Jornalismo e Letras, é também mestre e

doutor em Literatura pela UFRGS.

Como escritor, é autor de diversos livros, entre ele,

'Minicontos e Muito Menos'. É o idealizador do movimento

Literatura Digital, tendo publicado dois projetos inéditos de

literatura digital, 'Minicontos Coloridos' e o hiperconto 'Um

Estudo em Vermelho'.

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detalhes importantes da construção das narrativas e isso nos dá condições de curtir

ainda mais as histórias que nossa imaginação cria:

Elementos da Narrativa

O que pode ser inferido

Personagens Uma personagem (Antonio Maria) / interlocutores (brasileiras)

Tempo O tempo entre as ações Descobrir - Voltar

Espaço O Brasil - diversos lugares

Ação/Enredo Momentos do enredo: situação inicial (descobriu o Brasil); clímax (descobriu as brasileiras); desfecho

(voltou).

Narrador Narrador em 3ª pessoa

- Sugira possibilidades de desdobramento do enredo, imaginando uma história que

poderia se desenrolar a partir dessas breves indicações.

Para saber mais

Elementos essenciais para que ocorra a narrativa: ELEMENTOS DA NARRATIVA

Num primeiro momento vale destacar que toda narrativa apresenta um problema. Sem problema não há narrativa.

ENREDO (Como?): Trata-se aqui da ação da narrativa, da sucessão dos fatos, das vivências, das situações. E também conhecido como fabulação, intriga, trama. E onde as personagens se põem em movimento, relacionando-se entre si, como na vida, em relações que podem ser de colaboração, de afinidade, de oposição, de competição, que envolvem sentimentos e emoções. Complicação ou desenvolvimento: é a parte do enredo no qual se desenvolve o conflito. Clímax: é o momento culminante da história, o momento de maior tensão, no qual, o conflito chega a seu ponto máximo. Desfecho: é a solução do conflito, podendo ser um final feliz ou não.

Agora o desafio é para

você, leitor:

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PERSONAGEM (Quem?): É um ser fictício, responsável pelo desempenho do enredo. Entre as personagens, há aquelas que se destacam porque agem mais: são as protagonistas, também chamadas de heróis ou personagens principais. As que se relacionam a elas por oposição são as antagonistas, é o vilão da história, que geralmente também estão no primeiro plano dos fatos. Em volta dessas, há sempre um conjunto de personagens secundárias, que ajudam a sustentar a trama, têm participação menor ou menos frequente no enredo. TEMPO (Quando?): Época em que se passa a história, duração da história. Esse tempo pode ser cronológico, o tempo da natureza, aquele marcado pelo relógio, com o passar das horas e dos minutos. Ela é fundamental, por exemplo, para as narrativas históricas. Existe o tempo psicológico, o tempo da duração interior dos fatos, variável de indivíduo para indivíduo, composto de momentos imprecisos que se fundem ou se aproximam. Nele podem misturar-se passado, presente e futuro, ao sabor dos sentimentos e das lembranças. ESPAÇO (Onde?): A ambientação, o conjunto de elementos que compõem, por exemplo, o quarto, a sala, a rua, o bar, a montanha, a floresta, a escola, a cidade, o sertão, etc., constitui o espaço narrativo. Ou seja, é o lugar onde se movem as personagens. Em alguns casos, como na ficção regionalista, a caracterização do espaço físico é fundamental. Mas pode-se dizer que existe também um espaço psicológico, o nosso espaço interior, o universo da nossa vivência subjetiva, pessoal, cheio de sonhos, desejos, sentimentos e emoções, que predomina nas narrativas intimistas. NARRADOR: Há sempre uma voz que conta a história. Através do narrador, tomamos conhecimento do que é narrado. O narrador não é o autor, é um elemento interno da narrativa, ou seja, ele é também um ser ficcional, uma invenção do autor. Narrador -> 1ª pessoa ou narrador personagem: É o narrador que participa diretamente do enredo, como qualquer personagem. Narrador -> 3ª pessoa: Ao contrário do anterior, este narrador tem total acesso a todas as cenas, espaços e consciência das personagens.

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Momento do conto....

Leitura para apropriação das características do gênero, mostrando que

apesar do pouco (texto curto) é muito (texto completo).

Agora temos vários critérios para ler com mais qualidade uma narrativa

ficcional. Vamos colocá-los em prática. Boa leitura!

Venha ver o pôr-do-sol

Lygia Fagundes Telles

Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde. Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante. - Minha querida Raquel. Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos. - Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que ideia, Ricardo, que ideia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima. Ele sorriu entre malicioso e ingênuo. - Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância…Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas, lembra? - Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? – perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. – Hem?! - Ah, Raquel… – e ele tomou-a pelo braço rindo. - Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado…Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal? - Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério? Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem. - Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. – Ricardo e suas ideias. E agora? Qual é o programa? Brandamente ele a tomou pela cintura. - Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo. Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada. - Ver o pôr do sol!…Ah, meu Deus…Fabuloso, fabuloso!…Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério… Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta. - Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa

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pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura… - E você acha que eu iria? - Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada…- disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento –Você fez bem em vir. - Quer dizer que o programa… E não podíamos tomar alguma coisa num bar? - Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende. - Mas eu pago. - Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico. Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava. - Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas ideias vai me consertar a vida. - Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui. - É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros. - Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo… O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados. - É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega. - Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambiguidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa. - Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre. Delicadamente ele beijou-lhe a mão. - Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo. - É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais. - Ele é tão rico assim? - Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro… Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram. - Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra? Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo. - Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã…Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como aguentei tanto, imagine um ano. - É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?

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- Nenhum – respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: – A minha querida esposa, eternas saudades – leu em voz baixa. Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade. Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido. Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas…Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso. Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou. - Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face. – Chega Ricardo, quero ir embora. - Mais alguns passos… - Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta. - A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: – Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas. - Sua prima também? - Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos…Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas…Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus. - Vocês se amaram? - Ela me amou. Foi a única criatura que…- Fez um gesto. – Enfim não tem importância. Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o - Eu gostei de você, Ricardo. - E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença? Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu. - Esfriou, não? Vamos embora. - Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos. Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba. Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha. - Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui? Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico. - Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? - Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta. Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento. - E lá embaixo? - Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa? Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor. - Todas estas gavetas estão cheias?

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- Cheias?…- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta. Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz. - Vamos, Ricardo, vamos. - Você está com medo? - Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio! Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado: - A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer… Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?…- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos…Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus. Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada. - Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando… Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira. - Pegue, dá para ver muito bem…- Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos. - Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça…- Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.- Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida…- Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti… Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso. - Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu? Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás. - Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida! - Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo. Ela sacudia a portinhola. - Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!- Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. – Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra… Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque. - Boa noite, Raquel. - Chega, Ricardo! Você vai me pagar!… – gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.- Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando. - Não, não… Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas. - Boa noite, meu anjo. Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida. - Não… Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano: - NÃO! Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar

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mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.

FONTE: TELLES, Lygia Fagundes. Venha ver o pôr-do-sol e outros contos. São Paulo: Ática, 1991.

Um vetor fundamental de qualquer narrativa é o suspense, o mistério.

Ficamos ligados no seu desenrolar pela curiosidade de saber o que aconteceu ou

como tudo vai terminar.

a. Como se cria o mistério neste conto?

b. Em que momento da narrativa você desconfiou ou percebeu do que se tratava?

c. Identifique os elementos da narrativa.

Pausa Moacyr Scliar

Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para o banheiro. Fez a

barba e lavou-se. Vestiu-se rapidamente e sem ruído. Estava na cozinha, preparando sanduíches, quando a mulher apareceu, bocejando: — Vais sair de novo, Samuel?

Fez que sim com a cabeça. Embora jovem, tinha a fronte calva; mas as sobrancelhas eram espessas, a barba, embora recém-feita, deixava ainda no rosto uma sombra azulada. O conjunto era uma máscara escura. — Todos os domingos tu sais cedo – observou a mulher com azedume na voz. — Temos muito trabalho no escritório – disse o marido, secamente.

Ela olhou os sanduíches: — Por que não vens almoçar? — Já te disse: muito trabalho. Não há tempo. Levo um lanche.

A mulher coçava a axila esquerda. Antes que voltasse a carga, Samuel pegou o chapéu: — Volto de noite.

As ruas ainda estavam úmidas de cerração. Samuel tirou o carro da garagem. Guiava vagarosamente, ao longo do cais, olhando os guindastes, as barcaças atracadas.

Estacionou o carro numa travessa quieta. Com o pacote de sanduíches debaixo do braço, caminhou apressadamente duas quadras. Deteve-se ao chegar a um hotel pequeno e sujo. Olhou para os lados e entrou furtivamente. Bateu com as chaves do carro no balcão, acordando um homenzinho que dormia sentado numa poltrona rasgada. Era o gerente. Esfregando os olhos, pôs-se de pé: — Ah! Seu Isidoro! Chegou mais cedo hoje. Friozinho bom este, não é? A gente... — Estou com pressa, seu Raul – atalhou Samuel. — Está bem, não vou atrapalhar. O de sempre - Estendeu a chave.

Samuel subiu quatro lanços de uma escada vacilante. Ao chegar ao último andar, duas mulheres gordas, de chambre floreado, olharam-no com curiosidade: — Aqui, meu bem! – uma gritou, e riu: um cacarejo curto.

Ofegante, Samuel entrou no quarto e fechou a porta a chave. Era um aposento pequeno: uma cama de casal, um guarda-roupa de pinho: a um canto, uma bacia cheia d’água, sobre um tripé.

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Samuel correu as cortinas esfarrapadas, tirou do bolso um despertador de viagem, deu corda e colocou-o na mesinha de cabeceira.

Puxou a colcha e examinou os lençóis com o cenho franzido; com um suspiro, tirou o casaco e os sapatos, afrouxou a gravata. Sentado na cama, comeu vorazmente quatro sanduíches. Limpou os dedos no papel de embrulho, deitou-se fechou os olhos.

Dormir. Em pouco, dormia. Lá embaixo, a cidade começava a mover-se: os automóveis buzinando, os

jornaleiros gritando, os sons longínquos. Um raio de sol filtrou-se pela cortina, estampou um círculo luminoso no chão carcomido. Samuel dormia; sonhava. Nu, corria por uma planície imensa, perseguido por um índio

montado o cavalo. No quarto abafado ressoava o galope. No planalto da testa, nas colinas do ventre, no vale entre as pernas, corriam. Samuel mexia-se e resmungava. Às duas e meia da tarde sentiu uma dor lancinante nas costas. Sentou-se na cama, os olhos esbugalhados: o índio acabava de trespassá-lo com a lança. Esvaindo-se em sangue, molhando de suor, Samuel tombou lentamente; ouviu o apito soturno de um vapor. Depois, silêncio.

Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para a bacia, lavou-se. Vestiu-se rapidamente e saiu.

Sentado numa poltrona, o gerente lia uma revista. — Já vai, seu Isidoro? — Já – disse Samuel, entregando a chave. Pagou, conferiu o troco em silêncio. — Até domingo que vem, seu Isidoro – disse o gerente. — Não sei se virei – respondeu Samuel, olhando pela porta; a noite caia. — O senhor diz isto, mas volta sempre – observou o homem, rindo.

Samuel saiu. Ao longo dos cais, guiava lentamente. Parou um instante, ficou olhando os guindastes

recortados contra o céu avermelhado. Depois, seguiu. Para casa.

FONTE: SCLIAR, Moacyr in: BOSI Alfredo (org.) O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1977.

Sobre o autor

FONTE:http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe.php?foto=462&evento=9 acesso em 25/10/2013

1. Nesse conto, o narrador é observador. Ele narra o que acontece na vida da personagem Samuel/Isidoro: a. Quanto tempo transcorre entre o início e o final do conto? b. Como o narrador informa o leitor sobre o tempo decorrido?

Moacyr Jaime Scliar (Porto Alegre, 23 de março de

1937) é um dos mais conhecidos escritores brasileiros

da atualidade. Formado em Medicina, trabalha como

médico especialista em saúde pública e é professor

universitário.

Faleceu no dia 27/02/2011, em Porto Alegre (RS),

vítima de falência múltipla de órgãos.

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2. O tempo e o espaço são elementos importantes para a construção do sentido das narrativas. No conto “Pausa”: a. Onde ocorrem os fatos? b. Qual deles é mais destacado? Justifique sua resposta. c. Como se caracteriza esse lugar? d. Que relação há entre o título, o lugar onde ocorre a maioria dos fatos e o tempo em que acontece a história?

- A pausa do texto é semelhante ou diferente dessas pausas?

Percepção das relações de intertextualidade

TEXTO - IMAGEM - MÚSICA

FONTE:http://mgmeg3.blogspot.com.br/2013/05/situacao-de-aprendizagem-texto-pausa-

de.html acesso em 23/09/2013

Para saber mais

"(...) a intertextualidade ocorre quando, em um texto, está inserido outro texto (intertexto) anteriormente produzido, que faz parte da memória social de uma coletividade. (...) a intertextualidade é o elemento constituinte e constitutivo do processo de escrita/leitura e compreende as diversas maneiras pelas quais a produção/recepção de um dado texto depende de conhecimentos de outros textos por parte dos interlocutores, ou seja, dos diversos tipos de relações que um texto mantém com outros textos." (KOCH & ELIAS, Ler e compreender os sentidos do texto, p.86)

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Domingo Titãs

Não sei o que fazer Não sei o que fazer Eu saio por aí Sem ter aonde ir

Não é sete de setembro Nem dia de finados Não é sexta-feira santa Nem um outro feriado

E antes que eu esqueça aonde estou Antes que eu esqueça aonde estou Aonde estou com a cabeça?

Tudo está fechado Tudo está fechado Domingo é sempre assim E quem não está acostumado?

É dia de descanso Nem precisava tanto É dia de descanso Programa Sílvio Santos

E antes que eu confunda todo mundo Antes que eu confunda o domingo O domingo com a segunda

Domingo eu quero ver o domingo passar Domingo eu quero ver o domingo acabar Domingo eu quero ver o domingo passar Domingo eu quero ver o domingo acabar

Tudo está fechado Tudo está fechado Domingo é sempre assim E quem não está acostumado?

É dia de descanso Nem precisava tanto É dia de descanso Programa Sílvio santos

Titãs

Titãs é uma banda de rock brasileira formada em

São Paulo, em 1982. Tornou-se uma das quatro

maiores bandas do Rock, ao lado de Legião

Urbana, Os Paralamas do Sucesso e Barão

Vermelho.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Tit%C3%A3s_ acesso em 01/10/2013

Professor: Disponha a música para que os alunos ouçam pela primeira vez. Após, deixe tocar outras vezes e introduza questões como:

- Qual a relação do texto Pausa e da imagem Pausa com a música Domingo?

- Você já viveu uma situação parecida?

- Na sua opinião, as pessoas precisam desses momentos de "pausa" por conta

da agitação do mundo moderno?

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E antes que eu confunda todo mundo Antes que eu confunda o domingo O domingo com a segunda

Domingo eu quero ver o domingo passar Domingo eu quero ver o domingo acabar Domingo eu quero ver o domingo passar Domingo eu quero ver o domingo acabar Até o próximo, até o próximo, até o próximo domingo Até o próximo, até o próximo, até o próximo domingo

FONTE: http://letras.mus.br/titas/48966/ acesso em 01/10/2013

- Agora que já conhecemos os elementos que participam da construção das histórias de ficção podemos fazer uma leitura mais refinada e mais prazerosa.

Conto de verão nº 2: Bandeira Branca

Luís Fernando Veríssimo

Ele: tirolês. Ela: odalisca; Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval. Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.Só no terceiro Carnaval se falaram. - Como é teu nome? - Janice. E o teu? - Píndaro. - O quê?! - Píndaro. - Que nome! Ele de legionário romano, ela de índia americana. Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia. - Ah. Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse - Até o Carnaval que vem- e saiu correndo. No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu: - Me dá alguma coisa. - O quê? - Qualquer coisa. - O leque. O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.

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No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera? - Você vomitou a alma – disse a mãe. Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela. Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube – e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida. - Sei lá. Bávara tropical – disse ela, rindo. Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval. - E aquela bailarina espanhola? – Nem me fala. E o toureiro? – Aposentado. A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse - Píndaro?! - e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi - pelo menos o meu tirolês era autêntico - e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo - não vale, você cresceu mais do que eu - e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro. Encontraram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse -quase não reconheci você sem fantasias-. Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe dissera fora -preciso te dizer uma coisa-, e ela dissera -no Carnaval que vem, no Carnaval que vem- e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara. - O que você ia me dizer, no outro Carnaval? – perguntou ela. – Esqueci – mentiu ele. Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil. E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu.

FONTE: VERÍSSIMO, Luís Fernando in MORICONI, Ítalo (org). Os cem menores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

a. Quais os elementos que constroem a narrativa conto de verão nº 2 - Bandeira

Branca?

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b. Que personagem lhe chamou mais a atenção? Descreva-o.

Sobre o autor

FONTE:http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe.php?foto=462&

evento=9 - acesso 25/10/2013

Pai contra mãe Machado de Assis

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha de flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras. O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave.

Luis Fernando Veríssimo (Porto Alegre, 26 de

setembro de 1936), escritor brasileiro, filho do

também escritor Érico Veríssimo. Produz textos de

humor em jornais brasileiros e livros com crônicas

humorísticas, geralmente curtas, como em O Analista

de Bagé.

Os cem melhores contos brasileiros do século:

Contos imperdíveis da literatura brasileira,

curtos em extensão, profundos em humanidade.

Organização de Ítalo Moriconi

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Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado. Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando. Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", -- ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o açoutasse. Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem. Cândido Neves, -- em família, Candinho, -- é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos. Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito. Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras. O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi -- para lembrar o primeiro ofício do namorado, -- tal foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas. -- Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto. --Não, defunto não; mas é que... Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade. -- Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.

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-- Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi. A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha emprego certo. Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia. porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos. -- Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe. A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade. -- Vocês verão a triste vida, suspirava ela. -- Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara. -- Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que pouco... --Certa como? -- Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo? Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer. -- A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau... -- Bem sei, mas somos três. -- Seremos quatro. -- Não é a mesma cousa. -- Que quer então que eu faça, além do que faço? -- Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas sem vintém. -- Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo. Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado. Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão. Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis. Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem. -- É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas consequências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego.

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Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa. A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos. -- Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca! Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dous jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio. -- Titia não fala por mal, Candinho. -- Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim... Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor, -- crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dous foi interrompida por alguém que batia à porta da rua. -- Quem é? perguntou o marido. -- Sou eu. Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse. -- Não é preciso... -- Faça favor. O credor entrou e recusou sentar-se, deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais. -- Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo. Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança. A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dous, para que Cândido Neves, no desespero da crise começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem. Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte. Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos. As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido

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Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata. Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos. Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo. -- Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta. -- Mas... Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona. -- Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio. Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus. -- Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço! -- Siga! repetiu Cândido Neves. -- Me solte! -- Não quero demoras; siga! Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoutes, -- cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoutes. -- Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves. Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor. -- Aqui está a fujona, disse Cândido Neves. -- É ela mesma. -- Meu senhor! -- Anda, entra... Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinquenta mil- réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou. O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as consequências do desastre.

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Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto. -- Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.

FONTE: ASSIS, Machado in MORICONI, Ítalo (org). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

a. Explique o título "Pai contra mãe".

b. Identifique tempo e espaço em que ocorrem os fatos.

c. Qual o tema abordado no texto?

d. A que fato histórico podemos relacionar o texto.

Entrevista

Rubem Fonseca

M – Dona Gisa me mandou aqui. Posso entrar? H – Entra e fecha a porta. M – Está escuro aqui dentro. Onde é que acende a luz? H – Deixa assim mesmo. M – Como é o seu nome mesmo? H – Depois eu digo. M – Essa é boa! H – Senta aí. M - Tem alguma coisa para beber? Eu estou com vontade de beber. Ah, estou tão cansada! H – Nesse armário aí tem bebida e copos. Sirva-se. M – Você não bebe? H – Não. Como foi que você veio para o Rio? M – Peguei carona num fusca. H – São mais de quatro mil quilômetros, você sabia? M – Demorei muito, mas cheguei. Só tinha a roupa do corpo, mas não poderia perder tempo. H – Por que você veio? M – Há, há, há, ai meu Deus! Que coisa... só rindo. H – Por quê? M – Você quer saber? H – Quero? M – Meu marido. Vivemos quatro anos felizes, felizes até demais. Depois acabou. H – Como acabou? M – Por causa de outra mulher. Uma garota que andava com ele. Eu estava grávida. Há, há, só rindo, ou chorando, sei lá... H – Você estava grávida...

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M – No dia 13 de outubro jantávamos no restaurante, quando surgiu essa garota, que ele andava namorando. Meu marido estava bêbado e olhava para ela de maneira debochada, e então ela não aguentou mais e se aproximou de nossa mesa, falou em segredo no ouvido dele e eles se beijaram na boca, como se estivessem sozinhos no mundo. Eu fiquei louca; quando dei conta de mim, estava com um caco de garrafa na mão e tinha arrancado a blusa dela, uma dessas camisas de meia que deixa o busto bem destacado. H – Sei... Continua. M – Dei vários golpes com o caco de garrafa no peito dela, com tanta força que saiu um nervo para fora, de dentro do seio. Quando viu aquilo, meu marido me deu um soco na cara, bem em cima do olho; só por um milagre não fiquei cega. Fugi correndo para casa. Ele atrás de mim. Eu gritava por socorro para ver se os meus parentes ouviam, eles moravam perto de mim. Porque eu não sou cão sem dono, ouviu? Ainda ontem eu dizia na casa de dona Gisa, para uma moça, que não posso dizer que seja minha amiga, nesta vida ninguém tem amigo, nós apenas fazemos programas junto, eu dizia para ela, eu estou aqui mas não sou cão sem dono, quem encostar um dedo em mim vai ter que se ver com minha família. H – Mas agora eles estão lá no norte, muito longe... M – Parece que estou num teatro, há, há,... H – Você fugiu gritando por socorro. Continue. M – Eu me tranquei dentro do quarto, enquanto meu marido quebrava todos os móveis da casa. Depois ele arrombou a porta do quarto e me jogou no chão e foi me arrastando pelo chão enquanto me dava pontapés na barriga. Ficou uma mancha de sangue no chão, do sangue que saiu da minha barriga. Perdi nosso filho. H – Era um menino? M – Era. H – Continue. M – Meu pai e meus cinco irmãos apareceram na hora em que ele estava chutando a minha barriga e deram tanto nele, mas tanto, que pensei que ele ia ser morto de pancada; só deixaram de bater depois que ele desmaiou e todos cuspiram e urinaram na cara dele. H – Depois disso você não o viu mais? M – Uma vez, de longe, no dia em que vim embora. Ele veio me ver de muletas, com as pernas engessadas, parecia um fantasma. Mas eu não falei com ele, saí pela porta dos fundos, eu sabia o que ele ia dizer. H – O que é que ele ia dizer? M – Ele ia pedir perdão, pedir para voltar, ia dizer que os homens eram diferentes. H – Diferentes? M – É, que podiam ter amantes, que é assim a natureza deles. Eu já tinha ouvido aquela conversa antes, não queria ouvir novamente. Eu queria conhecer outros homens e ser feliz. H – E você conheceu outros homens? M – Muitos e muitos. H – E é feliz? M – Sou, você pode não acreditar, levando a vida que eu levo, mas sou feliz. H – E não se lembra mais do seu marido? M – Lembro dele apoiado nas muletas... Me disseram que ele anda atrás de mim e carrega um punhal para me matar. Posso acender as luzes? H – Pode. E você não tem medo de ser achada por ele? M – Já tive, agora não tenho mais... Vamos, que é que você está esperando?

FONTE: FONSECA, Rubem. Feliz ano novo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

a. Como as personagens do conto Entrevista são caracterizadas?

b. Crie um final surpreendente para o texto Entrevista.

c. Dramatizar o texto.

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A luz é como a água

Gabriel García Márquez

No Natal os meninos tornaram a pedir um barco a remos. — De acordo — disse o pai —, vamos comprá-lo quando voltarmos a Cartagena. Totó, de nove anos, e Joel, de sete, estavam mais decididos do que seus pais achavam. — Não — disseram em coro. — Precisamos dele agora e aqui. — Para começar — disse a mãe —, aqui não há outras águas navegáveis além da que sai do chuveiro. Tanto ela como o marido tinham razão. Na casa de Cartagena de Índias havia um pátio com um atracadouro sobre a baía e um refúgio para dois iates grandes. Em Madri, porém, viviam apertados no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Mas no final nem ele nem ela puderam dizer não, porque haviam prometido aos dois um barco a remos com sextante e bússola se ganhassem os louros do terceiro ano primário, e tinham ganhado. Assim sendo, o pai comprou tudo sem dizer nada à esposa, que era a mais renitente em pagar dívidas de jogo. Era um belo barco de alumínio com um fio dourado na linha de flutuação. — O barco está na garagem — revelou o pai na hora do almoço.— O problema é que não tem jeito de trazê-lo pelo elevador ou pela escada, e na garagem não tem mais lugar. No entanto, na tarde do sábado seguinte, os meninos convidaram seus colegas para carregar o barco pelas escadas, e conseguiram levá-lo até o quarto de empregada. — Parabéns — disse o pai. — E agora? — Agora, nada - disseram os meninos. — A única coisa que a gente queria era ter o barco no quarto, e pronto. Na noite de quarta-feira, como em todas as quartas-feiras, os pais foram ao cinema. Os meninos, donos e senhores da casa, fecharam portas e janelas, e quebraram a lâmpada acesa de um lustre da sala. Um jorro de luz dourada e fresca feito água começou a sair da lâmpada quebrada, e deixaram correr até que o nível chegou a quatro palmos. Então desligaram a corrente, tiraram o barco, e navegaram com prazer entre as ilhas da casa. Esta aventura fabulosa foi o resultado de uma leviandade minha quando participava de um seminário sobre a poesia dos utensílios domésticos. Totó me perguntou como era que a luz acendia só com a gente apertando um botão, e não tive coragem para pensar no assunto duas vezes. — A luz é como a água — respondi. — A gente abre a torneira e sai. E assim continuaram navegando nas noites de quarta-feira, aprendendo a mexer com o sextante e a bússola, até que os pais voltavam do cinema e os encontravam dormindo como anjos em terra firme. Meses depois, ansiosos por ir mais longe, pediram um equipamento de pesca submarina. Com tudo: máscaras, pés-de-pato, tanques e carabinas de ar comprimido. — Já é ruim ter no quarto de empregada um barco a remos que não serve para nada. — disse o pai — Mas pior ainda é querer ter além disso equipamento de mergulho. — E se ganharmos a gardênia de ouro do primeiro semestre? — perguntou Joel. — Não -- disse a mãe, assustada. — Chega. O pai reprovou sua intransigência. — É que estes meninos não ganham nem um prego por cumprir seu dever — disse ela —, mas por um capricho são capazes de ganhar até a cadeira do professor. No fim, os pais não disseram que sim ou que não. Mas Totó e Joel, que tinham sido os últimos nos dois anos anteriores, ganharam em julho as duas gardênias de ouro e o reconhecimento público do diretor. Naquela mesma tarde, sem que tivessem tornado a pedir, encontraram no quarto os equipamentos em seu invólucro original. De maneira que, na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam O Último Tango em Paris, encheram o apartamento até a altura de duas braças, mergulharam como tubarões mansos por baixo dos móveis e das camas, e resgataram do fundo da luz as coisas que durante anos tinham-se perdido na escuridão. Na premiação final os irmãos foram aclamados como exemplo para a escola e ganharam diplomas de excelência. Desta vez não tiveram que pedir nada, porque os pais perguntaram o que queriam. E eles foram tão razoáveis que só quiseram uma festa em casa para os companheiros de classe. O pai, a sós com a mulher, estava radiante. — É uma prova de maturidade — disse. — Deus te ouça — respondeu a mãe. Na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam A Batalha de Argel, as pessoas que passaram pela Castellana viram uma cascata de luz que caía de um velho edifício escondido entre as

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árvores. Saía pelas varandas, derramava-se em torrentes pela fachada, e formou um leito pela grande avenida numa correnteza dourada que iluminou a cidade até o Guadarrama. Chamados com urgência, os bombeiros forçaram a porta do quinto andar, e encontraram a casa coberta de luz até o teto. O sofá e as poltronas forradas de pele de leopardo flutuavam na sala a diferentes alturas, entre as garrafas do bar e o piano de cauda com seu xale de Manilha que agitava-se com movimentos de asa a meia água como uma arraia de ouro. Os utensílios domésticos, na plenitude de sua poesia, voavam com suas próprias asas pelo céu da cozinha. Os instrumentos da banda de guerra, que os meninos usavam para dançar, flutuavam a esmo entre os peixes coloridos liberados do aquário da mãe, que eram os únicos que flutuavam vivos e felizes no vasto lago iluminado. No banheiro flutuavam as escovas de dentes de todos, os preservativos do pai, os potes de cremes e a dentadura de reserva da mãe, e o televisor da alcova principal flutuava de lado, ainda ligado no último episódio do filme da meia-noite proibido para menores. No final do corredor, flutuando entre duas águas, Totó estava sentado na popa do bote, agarrado aos remos e com a máscara no rosto, buscando o farol do porto até o momento em que houve ar nos tanques de oxigênio, e Joel flutuava na proa buscando ainda a estrela polar com o sextante, e flutuavam pela casa inteira seus 37 companheiros de classe, eternizados no instante de fazer xixi no vaso de gerânios, de cantar o hino da escola com a letra mudada por versos de deboche contra o diretor, de beber às escondidas um copo de brandy da garrafa do pai. Pois haviam aberto tantas luzes ao mesmo tempo que a casa tinha transbordado, e o quarto ano elementar inteiro da escola de São João Hospitalário tinha se afogado no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Em Madri de Espanha, uma cidade remota de verões ardentes e ventos gelados, sem mar nem rio, e cujos aborígines de terra firme nunca foram mestres na ciência de navegar na luz.

FONTE: MÁRQUEZ, Gabriel García. Doze contos peregrinos. Rio de Janeiro: Record, 2013.

Sabendo que o título pode fisgar, atrair o leitor para a leitura, ajudá-lo a levantar hipóteses, intuir sentidos, evocar outros textos do seu repertório, responda: - Qual a relação entre título e texto?

Sobre o autor

FONTE: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gabriel_Garc%C3%ADa_M%C3%A1rquez acesso em 25/10/2013

Gabriel José García Márquez (Aracataca, 6 de março de 1927 ) é um escritor, jornalista, editor, ativista e político colombiano. Considerado um dos autores mais importantes do século 20. Foi responsável por criar o realismo mágico na literatura latino-americana. Em abril de 2009 declarou que se aposentou e que não pretendia escrever mais livros. Essa notícia viu-se confirmada em 2012, quando o seu irmão, Jaime García Márquez, noticiou que foi diagnosticada uma demência a Gabriel García Márquez e que, embora em bom estado físico, perdeu a memória e não voltará a escrever.

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A quem interessar possa Marina Colasanti

Abriu a janela no exato momento em que a garrafa com a mensagem passava, levada pelo vento. Pegou-a pelo gargalo e, sem tirar a rolha, examinou-a cuidadosamente. Não tinha endereço, não tinha remetente. Certamente, pensou, não era para ele. Então, com toda delicadeza, devolveu-a ao vento.

(p. 33)

FONTE: COLASANTI, Marina. Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

Conto em letras garrafais

Todos os dias esvaziava uma garrafa, colocava dentro sua mensagem, e a entregava ao mar. Nunca recebeu resposta. Mas tornou-se alcoólatra.

(p. 95)

FONTE: COLASANTI, Marina. Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

Momento do miniconto.......

Cem menores contos brasileiros do século Este vídeo apresenta o LivroClip do livro, "Cem menores contos brasileiros do século". Contos com até 50 letras organizados por Marcelino Freire.

Disponível em:

http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/video/showVideo.php?video=8392 acesso em 14/11/2013

Esta antologia reúne 100 escritores brasileiros em 100

microcontos de até 50 letras. O projeto foi organizado pelo

escritor pernambucano Marcelino Freire e conta com a

participação de nomes como os de Dalton Trevisan, Millôr

Fernandes, Manoel de Barros, Modesto Carone, Adriana

Falcão, Sérgio Sant'Anna, Marcelo Mirisola, entre outros. A

obra traz, ainda, um prefácio de 50 palavras assinado por Italo

Moriconi, organizador da antologia 'Os Cem Melhores Contos

Brasileiros do Século'.

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- Leia os textos a seguir com atenção. - Identifique os elementos que constroem as narrativas e verifique a intertextualidade existente nos mesmos.

Texto 1

Uma vida inteira pela frente. O tiro veio por trás.

Cíntia Moscovich

(p. 16) FREIRE, Marcelino (org.). Os cem menores contos brasileiros do século. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. O texto de Cíntia Moscovich refere-se à duas frases populares: uma delas usada quando ocorre uma tragédia com alguém muito jovem dizendo-se que tinha - "Uma vida inteira pela frente..."; a outra frase é usada para fazer referência a alguma traição - "por trás".

Texto 2

MAS O RIO CONTINUA LINDO Pensa o desempregado ao pular do Corcovado.

Antônio Torres

(p. 10) FREIRE, Marcelino (org.). Os cem menores contos brasileiros do século. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. O texto de Antônio Torres Mas o "Rio" continua lindo faz referência à música conhecidíssima de Gilberto Gil "Aquele abraço" ao dizer que "o Rio continua lindo". Apresenta duplo sentido na palavra Rio/rio.

Texto 3

CRIAÇÃO No sétimo dia, Deus descansou. Quando acordou, já era tarde.

Tatiana Blum

(p. 95) FREIRE, Marcelino (org.). Os cem menores contos brasileiros do século. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.

O texto Criação de Tatiana Blum refere-se ao conhecido texto bíblico do livro do Gênesis, do Antigo Testamento, sobre a criação do mundo e o descanso de Deus no sétimo dia.

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a. Propor a leitura dos minicontos.

b. Questionar os alunos quanto à interpretação dos textos lidos.

c. Analisar os elementos da narrativa presentes nos textos.

d. Procurar fazer a relação com outros textos lidos ou ouvidos.

FONTE: FREIRE, Marcelino (org.). Os cem menores contos brasileiros do século. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.

Outros Minicontos

13 Domingo inteiro de pijama, coça o umbigo. Diverte-se com os pequenos anúncios. Em sossego na poltrona, entende as borbulhas do gelo no copo de bebida. Uma velhice tranquila, regando suas malvas à janela, em manga de camisa. Única dúvida: ganhará o concurso de palavras cruzadas?

(p. 13)

25 Ao internar o marido alcoólatra no asilo, quando perguntam a profissão, ela diz: - Funileiro. E o bêbado, em triunfo: - Isso aí. Agora tenho profissão, não é?

(p. 22)

ESSA VIDA É UMA MERDA Suicidou-se

puxando a descarga. Marcelo Barbão

(p. 57)

CHICO - Se atrasa, preocupa.

Quando chega, incomoda. - Menstruação? - Meu marido.

Nelson de Oliveira

(p. 73)

ASSIM Ele jurou amor eterno. E me encheu de filhos.

E sumiu por aí. Luiz Ruffato

(p. 52)

DISQUE-DENÚNCIA - Cabeça?

- É. - De quem?

- Não sei. O dono não tá junto. Marçal Aquino

(p. 55)

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77 Assustada, a velha pula da cadeira, se debruça na cama: - João. Fale comigo, João. Geme lá no fundo, abre o olhinho vazio: - Bruuuxa... diaaaba... - Ai, que alívio. Graças a Deus.

(p. 58)

100 A bruxa em trapos, banguela e bêbada, num sorriso para o bicho barbudo de saco nas costas:

- Amor, tem um cigarro aí? (p. 71)

FONTE: TREVISAN, Dalton. Ah, é? Rio de Janeiro: Record, 1994.

**************************************** // **************************************

A chupeta Ele confisca a chupeta da filha, que se consola sugando os pequeninos dedos. Ah, é? Não aprende? E o pai queima com a brasa do cigarro todos os dedinhos.

(p. 53)

No Banco A menina acompanha a mãe ao banco. É a primeira vez. Na entrada uma fileira de máquinas gigantes que nem pianos em pé. A mãe brinca de tocar música nas teclas. E, aos olhos deslumbrados da pequena, a máquina cospe zuptzupt! uma pilha de notas estalando de novas. Puxa, assim facilzinho o dinheiro - é só pegar? A mãe recolhe, dobra e guarda na bolsa. Não agradece nem nada. E, pronta para sair, segura a mão da filha. Daí o projeto de gente a seus pés: - E eu aqui, hein, mãe? - ? - Faz um pouquinho pra mim também!

(p. 77)

FONTE: TREVISAN, Dalton. Desgracida.Rio de Janeiro: Record, 2010.

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17 A chuva engorda o barro e dá de beber aos mortos.

(p. 13)

184 Sem fôlego, descansa. Fuma um cigarro, deliciado. Já é manhã. Pedala devagar para a casa da mãe. Uma garoa fina. Repete o café, três pães, cata as migalhas: "Puxa, que

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fome". Exausto, desmaia na cama. De tardezinha, dorme ainda, chegam os tiras. Na delegacia, bate a cabeça na parede: "...eu amava, sim... ela me traiu... só fiz por amor..."

(p. 99)

FONTE: TREVISAN, Dalton. 234. Rio de Janeiro: Record, 1997.

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PREGUIÇOSA

Ela estava tão preguiçosa que, naquele dia, quando o amante a convidou para sair,

preferiu traí-lo com o próprio marido.

BARALHO

As senhoras jogavam baralho com tanto entusiasmo que não perceberam quando o

marido de uma delas se jogou pela janela do apartamento.

GALO

O galo de briga perdeu os dois olhos. Assim, não pôde ver seu dono sorrindo com o

dinheiro ganho na luta.

MOLEQUES

Os moleques jogavam bola no meio da rua. Num passe mais forte, um deles correu

para evitar a saída da pelota. Mas não evitou o motorista desatento…

AQUÁRIO

O gato dormia no tapete da sala, aproveitando a calma da casa antes de darem pela

falta do peixinho no aquário.

VARAL

As roupas penduradas no varal ganharam vida durante o vendaval. Pularam para o

vizinho. Depois, extenuadas da aventura, descansaram caídas no quintal.

VIZINHOS

As formigas, em longa fila indiana, indo de um quintal ao outro, eram a única coisa

que unia aqueles dois vizinhos.

FONTE: http://cseabra.wordpress.com/microcontos/ acesso em 04/07/2013

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Sobre o autor

FONTE: http://img.getglue.com/avatar/cseabra/large_tile.jpg. acesso em 04/07/2013

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Microconto #81

Por mais que tentasse começar uma história com era uma vez, sabia que no final

não viveriam felizes para sempre.

Microconto #80

Arrancar a rosa foi doido, mas devolvê-la à terra em forma de coroa, a 7 palmos, foi

muito mais.

Microconto #79

Lembrava sempre de não passar em baixo de escada e de não cruzar com gato

preto, mas esqueceu de colocar o cinto de segurança.

FONTE: http://www.patriciojr.com.br/no-livro-microcontos-a-nova-onda-da-literatura/

acesso em 04/07/2013

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De fato Abriu o biscoitinho da sorte e leu a mensagem: Viver a vida sem expectativas: isso é liberdade. Guardou o papel no bolso e seguiu catando mais comida no lixo do restaurante chinês.

Anseio

Todos cantando o tradicional Parabéns. Ele preparava-se para soprar a velinhas e fazer o pedido, o mesmo que fazia todos os anos: - Desejo que todos desapareçam.

Carlos Tabosa Saragga Seabra nasceu em Lisboa,

Portugal, reside há muitos anos no Brasil (...) Editor de

publicações e produtor de conteúdos de multimídia e

internet, consultor e coordenador de projetos de

tecnologia educacional e redes sociais, autor de diversos

artigos, jogos de entretenimento, softwares educacionais,

e sites culturais, educacionais e corporativos.

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No Inferno V

Não comi o pão que o diabo amassou.

Mas as empadinhas, não resisti.

FONTE: http://www.letrasecia.com.br/blog/blog/2011/04/11/minicontando/ acesso em

04/07/2013

- Qual o significado da expressão "comer o pão que o diabo amassou"?

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Existem muitos blogs de minicontos. Então acesse:

Professor: nesse momento os alunos serão motivados a pesquisar textos No laboratório de informática acessar links sugeridos para conhecer outros exemplos de minicontos e proceder a análise dos mesmos.

http://miniminimos.blogspot.com.br/

http://minicontosanamello.blogspot.com.br/2010/03/dez-dicas-para-escrever-

minicontos.html

http://www.seabra.com/cgi-seabra/contos/randtxt.pl/contos.html

http://www.patriciojr.com.br/no-livro-microcontos-a-nova-onda-da-literatura/

http://micro-leituras.blogspot.com.br/2011/07/carlos-seabra-brasil.html

http://www.jornalopcao.com.br/posts/opcao-cultural/30-contos-de-ate-100-caracteres

http://autoressaconcursosliterarios.blogspot.com.br/2013/05/os-20-minicontos-

classificados.html

http://minimicrocontos.blogspot.com.br/

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Existem muitos vídeos de minicontos. Acesse:

Revista Veredas

A revista Veredas e os mil minicontos

A revista Veredas é um site hoje dedicado ao miniconto, sendo uma referência no

gênero.

Disponível em http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=3411&titulo=A_revista_Veredas_e_os_mil_minicontos acesso em 13/10/2013

Minicontos http://www.youtube.com/watch?v=m1nQ-NLdMhY acesso em 22/08/2013

Minicontos 2 https://www.youtube.com/watch?v=BsRtJwOvIbQ acesso em 22/08/2013

Uma vela pra Dario https://www.youtube.com/watch?v=98N8TEgtNNs acesso em 22/08/2013

Ana Luísa Lacombe - O Vaso do Oleiro

http://www.youtube.com/watch?v=xHWf5E74YII acesso em 18/11/2013

Ana Luísa Lacombe - A Aposta http://www.youtube.com/watch?v=9x5sZ9DPDEg acesso em 18/11/2013

Marina Colasanti - A Moça Tecelã http://www.youtube.com/watch?v=A_Ly7Myyo34 acesso em 18/11/2013

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1) Ah, é?, publicado por Dalton Trevisan em 1994.

2) Contos Contidos, de Maria Lúcia Simões em 1996.

3) Passaporte, de Fernando Bonassi em 2001.

4) Mínimos, múltiplos, comuns de João Gilberto Noll em 2004.

5) Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século, antologia organizada por

Marcelino Freire em 2004.

6) Sem contos longos, de Wilson Gorj em 2007.

7) Contos de Bolso de Luís Dill em 2005

8) Contos de Bolsa, diversos autores em 2006.

9) Contos de Algibeira, antologia de minicontos que reúne escritores brasileiros e de Portugal em 2007.

10) Contos Comprimidos, antologia de minicontos organizada por

Fernando Neubarth em 2008

11) Minicontos e muito menos, Marcelo Spalding e Laís Chaffe em 2009.

12) Minicontando de Ana Mello em 2009.

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Os objetivos desta oficina são: - Estimular a leitura e a oralidade através da arte de contar histórias. - Desenvolver a capacidade de concentração e de memorização. - Pesquisar e divulgar obras literárias. - Elaborar uma coletânea de contos.

O texto é para ser lido, ouvido, sentido, vivenciado.

Ouvimos e lemos muito.

Agora temos muito o que contar.

A ideia que se tem de que contar histórias é privilégio dos pequenos é errada.

Contar e ouvir histórias é uma arte sem idade, o que confirma a frase popular que

diz que “de uma boa história ninguém escapa”.

Professor: Os textos para essa oficina estão citados nas oficinas Descobrindo minicontos e Analisando minicontos, além daqueles que serão trazidos pelos

próprios alunos para a coletânea de contos - atividade final da oficina.

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Nenhum de nós resiste a uma história. É só alguém começar a contar um

caso qualquer e nós já ligamos nossas antenas, curiosos para saber o que

aconteceu. E, claro, somos também contadores de histórias. Temos todos um

bom estoque de histórias vividas e ouvidas, além daquelas que inventamos ou

lemos.

O contador cria e constrói cada nova história a ser contada e

cada nova história é um desafio

Contação de Histórias - Cia Duberrô

Vídeo da Cia Duberrô, pretende integrar as linguagens cênica, musical e literária.

Trabalha com histórias, lendas, poemas, mitos, cantigas da cultura popular brasileira

com descendência indígena e africana.

FONTE:

http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/video/showVideo.php?video=8371

acesso em 14/11/2013

Professor: Iniciar com atividades de relaxamento, para proporcionar o bem estar e a concentração dos participantes nas dinâmicas, seguidas de apresentações de uma história por participante, que servem para ilustrar e exemplificar o conteúdo da oficina.

Através de dinâmicas em grupo introduzir e treinar técnicas orais e gestuais. As dinâmicas são seguidas de discussões, nas quais participam todos os envolvidos na oficina, para ter possibilidades de reflexão sobre a contação de histórias e temas ligados à literatura, em geral.

Participação e contribuição do professor de Arte.

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1ª sugestão

A turma será dividida em grupos e cada grupo planejará como fará a leitura

do conto, sendo que todos os participantes terão que fazer um papel.

2ª sugestão

Cada aluno deve ler o texto que escolheu ou contar com suas próprias

palavras.

3ª sugestão

Aprender histórias de cor para respeitar a beleza da linguagem dos autores.

Critérios para escolha dos textos

- Em primeiro lugar você precisa ler e gostar do texto.

- Escolha textos envolventes, que abordem temas interessantes.

- Dê ênfase aos textos que convidem à releituras e a uma atitude investigativa do

leitor.

Professor: Orientar os alunos para as apresentações de suas leituras; estas devem ser de forma dramatizada e lúdica.

O professor deve cultivar seu próprio repertório de literatura oral, suas histórias favoritas e incentivar seus alunos a também cultivarem. Os grandes escritores nacionais e tantos outros agradecem.

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Lembretes e sugestões

Coletânea de contos

- Organizar uma coletânea com os textos escolhidos pelos alunos para essa oficina.

Os textos escolhidos pelos alunos podem ser das sugestões do professor ou

pesquisados pelo próprio aluno. (autores, épocas e temas variados)

- Depois de reunidos os textos, os alunos deverão montar capa e sumário (com

títulos e autores de cada conto).

- Também podem ser organizados orelha e prefácio.

- Pronta a coletânea, deve ser feito um rodízio para que todos possam levá-la para

casa e socializá-la com sua família (caso tenha sido feito apenas um exemplar).

(Primeira forma de divulgar o trabalho e promover momentos de integração

literatura/família/comunidade - Intervenção literária urbana - O conto bate em sua

porta)

1. Não improvise: escolha com antecedência o livro ou a história. Para que a leitura ou a contação tenha sucesso aprecie a história; pense no que o autor quis dizer; sinta para passar as ideias, as emoções do texto. 2. Treine a leitura ou a contação em voz alta. 3. Sua voz deve ser clara, expressiva, em ritmo adequado, nem muito depressa, nem muito devagar. Devem aparecer as emoções sugeridas pelo texto, sem exageros. 4. Olhe para o seu público. Use as mãos para apontar, sugerir, mas não gesticule demais porque isso atrai a atenção. 5. Aja com naturalidade, varie de posição. 6. Procure controlar sua respiração para que não lhe falte ar nos finais das frases. FONTE: CARVALHO, Marlene. Alfabetizar e letrar. Um diálogo entre a teoria e a prática. 6ª ed. Vozes, 2009.

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http://cesardosanjos.blogspot.com.br/ acesso em 25/11/2013

http://www.eloisacartonera.com.ar/ acesso em 25/11/2013

Professor: A coletânea pode ser organizada no formato Eloísa Cartonera (os livros são confeccionados manualmente, utilizando papelão para a capa, que é ilustrada pelos próprios alunos) ou de acordo com os recursos da escola.

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Os objetivos desta oficina são: - Propor a composição de minicontos, estimulando o domínio da língua escrita e a criatividade. - Produzir minicontos, utilizando o recurso da intertextualidade.

Antes de começar

1.Leia minicontos:

Contos de amor rasgados

Desgracida

Ah, é?

Minicontos e muito menos

Minicontando

234

Mínimos múltiplos comuns

entre outros...

Professor: Avalie os minicontos criados levando em conta a originalidade, a concisão, a capacidade de narrar uma história com final surpreendente e o uso adequado da

linguagem.

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2. Identifique:

a. Quem é o narrador?

b. Quem narra a história participa dela?

c. Que situação é narrada?

d. O que teria dado origem a essa situação?

e. Qual poderia ser o desdobramento da história?

Sugestão Transforme num conto uma experiência marcante de sua vida. Atenção! Você

não vai simplesmente relatar essa experiência como uma história que a vida conta.

Vai transpor uma experiência vivida para o mundo da ficção. Não é você que conta,

mas um narrador que você vai criar. São os olhos e as mãos desse narrador que

nos conduzirão pelo enredo.

Dez dicas para escrever minicontos

1. Miniconto é um conto pequeno, portanto deve ter as características do conto: narratividade, ou seja, narrador, personagens, espaço e tempo. Efeito. Intensidade. Tensão. 2. Isso tudo em número limitado de caracteres. Muitos autores chamam de minicontos aqueles com até 200 caracteres, microcontos com até 150 e nanocontos com até 50 caracteres. 3. Caracter é qualquer letra, sinal de pontuação ou espaço em branco. O título não entra na contagem. 4. Os minicontos são ficção e têm como objetivo envolver o leitor no enredo. 5. Use um bom título. Ele é uma isca para seu leitor. 6. Pode ter humor, mas não é piada. 7. O subtexto é o melhor do miniconto, é o que não está dito, aquilo que cabe ao leitor descobrir, imaginar. 8. Quanto mais leituras possíveis, melhor o miniconto. 9. Qualquer assunto pode ser inspiração para um bom miniconto: contos maiores, notícias de jornal, a observação da própria vida. Mas sobretudo a leitura, o conhecimento. 10. Para finalizar, faça tudo diferente, tente, invente, o miniconto é também a síntese da criatividade. FONTE: http://minicontosanamello.blogspot.com.br/2010/03/dez-dicas-para-escrever-minicontos. html acesso em 23/09/2013

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Planejando e produzindo o texto Planeje seu miniconto passo a passo

1. Minicontos a partir de Fotos de sua autoria

1. A proposta é produzir um miniconto com cenas do cotidiano por meio da

ferramenta movie maker. (Os alunos devem observar e fotografar momentos de seu

cotidiano num determinado espaço de tempo e organizá-los em uma sequência

narrativa.)

Fazer a relação dessa atividade com a música Cotidiano de Chico Buarque:

- O que é tudo sempre igual?

- Quais as cenas que mais se repetem no seu dia a dia?

- O que diz toda mulher?

Cotidiano

Chico Buarque

Todo dia ela faz tudo sempre igual: Me sacode às seis horas da manhã, Me sorri um sorriso pontual E me beija com a boca de hortelã.

Todo dia ela diz que é pr'eu me cuidar E essas coisas que diz toda mulher. Diz que está me esperando pr'o jantar E me beija com a boca de café.

Todo dia eu só penso em poder parar; Meio-dia eu só penso em dizer não, Depois penso na vida pra levar E me calo com a boca de feijão.

Seis da tarde, como era de se esperar, Ela pega e me espera no portão Diz que está muito louca pra beijar E me beija com a boca de paixão.

Toda noite ela diz pr'eu não me afastar; Meia-noite ela jura eterno amor E me aperta pr'eu quase sufocar E me morde com a boca de pavor.

Todo dia ela faz tudo sempre igual: Me sacode às seis horas da manhã, Me sorri um sorriso pontual E me beija com a boca de hortelã.

Todo dia ela diz que é pr'eu me cuidar E essas coisas que diz toda mulher.

http://www.chicobuarque.com.br/ acesso em 01/10/2013

Chico Buarque

Francisco Buarque de Hollanda, mais

conhecido por Chico Buarque, é um músico,

dramaturgo e escritor brasileiro. É conhecido

por ser um dos maiores nomes da música

popular brasileira.

Nascimento: 19 de junho de 1944, Rio de

Janeiro, Rio de Janeiro.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Chico_Buarque acesso em 01/10/2013

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Diz que está me esperando pr'o jantar E me beija com a boca de café.

Todo dia eu só penso em poder parar; Meio-dia eu só penso em dizer não, Depois penso na vida pra levar E me calo com a boca de feijão.

Seis da tarde, como era de se esperar, Ela pega e me espera no portão Diz que está muito louca pra beijar E me beija com a boca de paixão.

Toda noite ela diz pr'eu não me afastar; Meia-noite ela jura eterno amor E me aperta pr'eu quase sufocar E me morde com a boca de pavor.

Todo dia ela faz tudo sempre igual: Me sacode às seis horas da manhã, Me sorri um sorriso pontual E me beija com a boca de hortelã.

FONTE: http://letras.mus.br/chico-buarque/82001/ acesso em 01/10/2013

2. Em grupo, com diversos objetos (exemplo brinquedos - bonecas, carrinhos,

bichinhos) criar uma sequência narrativa, que será fotografada para produção de um

miniconto por meio da ferramenta movie maker.

3. Com massinha de modelar criar os personagens do Conto Uma Galinha de

Clarice Lispector. Fotografar a sequência narrativa e usar a ferramenta movie maker.

Uma Galinha

Clarice Lispector

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã. Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio. Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado. Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.

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Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma. Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos: — Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem! Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão: — Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida! — Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros. Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto. Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado. Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos. Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

FONTE: LISPECTOR, Clarice in MORICONI, Ítalo (org). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Sobre a autora

FONTE:

http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe.php?foto=534&evento=

9 acesso 25/10/2013

Clarice Lispector, escritora pós-moderna, nasceu em Tchetchenillk -

Ucrânia, no ano de 1925. Começou a escrever contos logo que foi

alfabetizada. Entre muitas leituras, ingressou no curso de direito,

formou-se e começou a colaborar em jornais cariocas. Sua primeira

obra: Perto do coração selvagem. A moça de 19 anos assistiu à

perplexidade nos leitores e na crítica e a repercussão de um estilo

"muito diferente" para a época.

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2. Minicontos a partir de Imagens

1. Produzir minicontos a partir de imagens selecionadas pelo professor.

(O professor deve selecionar diferentes imagens que chamem a atenção e

possibilitem a expressão desenvolvendo a criatividade de cada um,

relacionando linguagem verbal e não verbal.)

SUGESTÕES DE IMAGENS

http://terceiraominicontando.wordpress.com/

acesso em 21/10/2013

Para saber mais

Passo a passo

Stop Motion - Movie Maker

Versão velha

- importar imagem - seleciona CTRL +

A

- arrasta - linha do tempo

- criar títulos de créditos (por título)

- entra novamente para colocar crédito

final

- importar música - arrasta para linha do

tempo

- ferramenta (0.25 tempo)

- salvar como filme

Versão nova

- adicionar fotos - selecionar

- CTRL + A e abrir

- início - títulos

- início - créditos

- música - início - adicionar

- tempo (duração) - editar - selecionar

CTRL + A e põe 20 segundos

- salva

- dá um enter na 1ª imagem - já

funciona

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http://lauravive.blogspot.com.br/2010_07_01_ar

chive.html acesso em 03/11/2013

http://terceiraominicontando.wordpress.com/

acesso em 21/10/2013

2. Cada aluno deve fotografar cenas ou lugares (na cidade) que julgar

interessantes e a partir das imagens produzir um miniconto

3. Minicontos a partir de Temas

No livro Minicontos e muito menos Marcelo Spalding cria Sinal dos tempos

modernos, são aspectos da vida moderna, fala do que é nosso, do que é atual,

queiramos ou não.

Leia e identifique o tema de cada texto:

ONLINE Não sei + o q fazer, Joana, meu filho ñ sai da frente do computador, vive nesses jogos de lutinha, de tiro, de... É ele, só um pokinho. Vê se eu posso, veio todo arrumado pedindo pra ir na casa do Beto. Imagina, pegar ônibus até a Zona Norte a essa hora! Claro que ñ, né, Joana... Mt perigoso!

(48)

BBB Beto até os 38 nunca trabalhou: morava com a mãe, uma professora viúva e calada, tomava Coca-Cola todas as noites, trocava de Play a cada dois anos, colecionava figurinhas do Brasileirão e latinhas de cerveja importada.

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Um dia, plim-plim, e ele estava na televisão. Mudou o nome para Bam Bam Bam, raspou os cabelos, fez tatuagem, inventou uma gírias e, em pouco tempo, ganhou seu primeiro milhão, dinheiro que a mãe não ganhara em trinta anos de sala de aula.

(49)

DECLARAÇÃO DE AMOR Eu te pago.

(50)

PEDIDO DE DIVÓRCIO Tu me paga.

(51)

ÚLTIMO CAPÍTULO Helena, Nazaré, Maria e Jade saem do trabalho com pressa, carregam pesadas ancas por calçadas quentes, atravessam ruas e gentes, sobem morros. Ligam a televisão, oito e meia. Último capítulo. O sofá é sujo, os gritos são altos, as paredes, poucas e a vila, grande. O trabalho é trabalho, o mundo é assim. Crucifixos tortos, mandamentos decorados. Mas é o último capítulo e calam as crianças num tapa. Torcem. Gritam. Choram. Enfim, sorriem, emocionadas, corações leves. O final foi feliz. O resto é ficção.

(52)

FONTE: CHAFFE, Laís; SPALDING, Marcelo. Minicontos e muito menos. Porto Alegre: Casa Verde, 2009.

Produza minicontos usando os temas identificados nos textos anteriores ou

escolha dos seguintes temas:

1. Lugares: No elevador, no ônibus, no trânsito, na escola, numa festa...

2.Temas: Traição, vingança, amor, violência, amizade, trabalho, sexo,

discriminação, morte, família...

4 Minicontos a partir de modelos

Escrevendo minicontos a partir de um modelo: como escrever para os alunos

é sempre difícil, em especial escrever literatura, uma boa forma de fazê-los brincar

com as palavras e exercitar a escrita é escolher um miniconto que tenha uma forma

peculiar e pedir que eles mudem o texto seguindo a mesma estrutura.

Analise os minicontos e produza outros minicontos seguindo os modelos:

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1ª sugestão

Seu Ermelindo roncava tão alto que ele mesmo em seus sonhos são conseguia

dormir.

FONTE: http://www.seabra.com/cgi-seabra/contos/randtxt.pl/contos.html - acesso em

25/09/2013

2ª sugestão

deep forest - google

MATA

Olhou pelo vidro da janela e disse: - mata!

E ela matou a borboleta.

- Não, droga! eu estava falando da mata.

FONTE: http://miniminimos.blogspot.com.br/ acesso em 23/09/2013

3ª sugestão

CONFISSÃO - Fui me confessar ao mar.

- O que ele disse? - Nada.

Lygia Fagundes Telles

FONTE: FREIRE, Marcelino (org). Os cem menores contos brasileiros do século.

Cotia: Ateliê Editorial, 2004.

- Explique a ambiguidade presente nos textos Mata e Confissão. Quais palavras são

ambíguas?

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4ª sugestão

FONTE: http://minicontosanamello.blogspot.com.br/ acesso em 13/11/2013

A partir dos exemplos de Ana Mello crie minicontos em série. Escolha tema e título

sugestivos.

Leia também as séries: No Inferno I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII e IX

No Céu I, II, III, IV, V, VI, VII e VIII

Vício I e II

No elevador - faltou luz I e II

Saga de família I, II, III

FONTE: MELLO, Ana. Minicontando. Porto Alegre: Casa Verde, 2009

Do pão que o Diabo amassou I

Na primeira mordida eu já percebi: o Diabo é um ótimo padeiro.

Do pão que o Diabo amassou II Ao sentir aquele cheiro de pão quentinho pensei: Esse Diabo sabe conquistar uma pessoa.

Do pão que o Diabo amassou III

A verdade era a seguinte: as receitas do

Diabo nem Deus reproduzia.

Do pão que o Diabo amassou IV

Um ajudante me contou que antes de acertar a massa, muito pão o Diabo abatumou.

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5ª sugestão

O Essencial

Guardou tudo que tinha. Roupa, sapatos e objetos. Ao

empilhar as malas percebeu que não tinha para onde ir.

Ficou.

Aos poucos, foi descobrindo do que, de

fato, necessitava. Deu todo o resto.

FONTE: http://miniminimos.blogspot.com.br/ - acesso em

23/09/2013

5 Minicontos a partir de poesias

No livro Minicontos e muito menos Marcelo Spalding cria "Faces de sete

poemas, na sua intertextualidade, mostra que a diferença entre a poesia e a prosa,

especialmente o conto, pode às vezes ser apenas a face, o lado que se olha".

(Leonardo Brasiliense).

- Leia os sete minicontos a seguir e identifique os sete poemas de Carlos Drummond

de Andrade que serviram de referência:

Texto 1 - Quando nasci, nenhum anjo torto me disse nada. Mas lembro da voz do pai perguntando como iam sustentar mais uma boca.

Fui ser gauche na vida. (39)

Poema de referência - Poema de sete faces

Texto 2 - Raquel gerou Teresa que gerou Raimunda que gerou Maria que gerou Joaquina que gerou Lili

que não gerou ninguém.

Raquel foi deixada nos Estados Unidos, Teresa no convento, Raimunda morreu de desastre, Maria ficou com a tia,

Joaquina suicidou-se ao ver Lili casar-se com J. Pinto Fernandes, que não tinha entrado na história.

(40)

Poema de referência - Quadrilha

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Veja também

Quadrilha

Vídeo que apresenta uma animação do poema "Quadrilha" do escritor brasileiro Carlos Drummond de Andrade.

Disponível em: http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/video/showVideo.php?video =8374

Texto 3 - E agora, José? E agora, Fernando?

E agora, Luís? E agora, você?

Que lutou para ser livre Que lutou pra voltar.

E agora, Brasil? Mudaram os sonhos?

Terminaram os nomes? Ou o sonho acabou?

(41)

Poema de referência - José

Veja também

E agora José

Poema "E agora José" de Carlos Drummond de Andrade narrado por ele mesmo.

Disponível em: http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/video/showVideo.php? video=8451

Texto 4 - Crianças entre mulheres, mulheres em frente à televisão. Um carro vai depressa, um casal se beija depressa, um sorriso termina depressa,

uma margarina surge depressa. Depressa, as crianças se calam. Plim-plim.

Êta vida besta, meu Deus.

(42)

Poema de referência - Cidadezinha qualquer

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Veja também

Cidadezinha Qualquer

Poema do Drummond, "Cidadezinha Qualquer", declamado e interpretado de forma divertida por Tom Zé no programa Fantástico da Rede Globo de Televisão em 16/09/2007.

Disponível em: http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/video/showVideo.php?video =8448

Texto 5 - Tenho apenas duas famílias e o sentimento do mundo.

Uma morre de medo ao meu lado, a outra passa fome sem mim.

(43)

Poema de referência - Sentimento do mundo

Texto 6 - O engravatado municipal Acusa o engravatado estadual

De estar ao lado do grande engravatado federal. (44)

Poema de referência - Política Literária

Texto 7 - Houve um tempo em que havia pedras no meio do caminho. Tropeçava-se. Levantava-se. E seguia-se. Hoje tem uma bala no meio do caminho.

No meio do caminho tem uma bala. Tem uma bala no meio do ca...

(45)

Poema de referência - No meio do caminho

Minicontos: FONTE: CHAFFE, Laís; SPALDING, Marcelo. Minicontos e muito menos. Porto Alegre: Casa Verde, 2009.

Poemas de referência: FONTE: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.

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- Produza minicontos a partir das poesias de Oswald de Andrade e de Francisco

Alvin:

FONTE: ANDRADE, Oswald de. Pau Brasil. São Paulo: Globo, 2001.

FONTE: ALVIN, Francisco. Poemas (1968-2000). Rio de Janeiro, 7 letras, 2004.

O capoeira - Qué apanhá sordado?

- O quê? - Qué apanhá?

Pernas e cabeças na calçada.

Escapulário

No Pão de Açúcar

De Cada Dia

Dai-nos Senhor

A Poesia

De Cada Dia

Relógio

As coisas são As coisas vêm As coisas vão

As coisas Vão e vêm

Não em vão As horas

Vão e vêm Não em vão

Vício na fala Para dizerem milho dizem mio

Para melhor dizem mió Para pior pió

Para telha dizem teia Para telhado dizem teiado

E vão fazendo telhados

Velho Todo velho dica assim

meio Ah nem sei como fica

Ele não fica Um velho não fica

Criatura Vai embora não

Vem cá Não me põe doente não

Se não era pra ficar Pra que que veio?

Sua mulher Que é como se fosse

sua mãe Que fez o pouco que você é

e ainda fará o muito que você há de ser

Balcão Quem come em pé

enche rápido

Agora o desafio é para

você:

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Atenção!

Crie minicontos, levando em consideração um número de 140 caracteres,

pois na sequência serão postados no blog da turma.

Para saber mais

Marcelino Freire em Os cem menores contos brasileiros do século

desafiou cem escritores brasileiros com histórias inéditas de até cinquenta

letras.

Seu miniconto é uma narrativa. Não esqueça que ele deve conter

personagem(ns), ação (ações), tempo e espaço, e permitir que o seu leitor infira

(perceba) as partes principais do enredo.

Use toda sua criatividade!

Economize na linguagem e mãos à obra!

Professor: Como atividade final dessa oficina pode ser produzido um minilivro

contendo as produções dos alunos.

Também podem ser pintadas camisetas, produzidos marcadores de

página, adesivos de carro e chaveiros com os minicontos (pois um miniconto

cabe até num chaveiro). Todo esse material pode ser usado nas diversas

atividades da Intervenção Literária Urbana (oficina 6).

São estratégias para que além dos alunos outras pessoas passem a gostar de ler.

Agora o desafio é para

você:

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Os objetivos dessa oficina são: - Identificar a adequação do uso da língua escrita em veículos diferentes. - Manter uma página com textos próprios pode melhorar as habilidades de leitura e escrita. - Extrair o máximo de comunicação com o mínimo de caracteres.

Algumas opiniões interessantes

"A internet deixou o leitor mais receptivo e participativo, pois recebe informações em

diferentes linguagens e por meio de leituras não lineares. O texto até então

"sagrado" se torna mais acessível. Se antes o ato de ler era algo distante, a internet

acabou com isso, o que é positivo". (CREMASCHI, Rosângela, in MURANO)

"Os que leem textos mais longos e difíceis são uma minoria como sempre foram.

Mas o restante das pessoas, que há uma década não lia nada, hoje trabalha com o

texto escrito boa parte do tempo, e isso cria um certo hábito de leitura, mesmo que

diluído". (LAUB, Michel, in MURANO)

"A internet não deve ser vista como algo negativo, pois amplia nossas possibilidades

de leitura. É claro que é preciso um olhar crítico, e este é o papel do educador, o de

orientar a busca, seleção e gerenciamento das informações que estão na rede".

(CARATTI, Valéria, in MURANO)

FONTE: MURANO, Edgard. O texto na era digital. Revista Língua Portuguesa.São

Paulo: Segmento. Ano 5. N.º 64. Fevereiro de 2011.

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Foi-se o tempo da passividade, os alunos de hoje são muito mais exigentes,

o que demanda um professor bem preparado e disposto a competir com o atrativo

mundo das tecnologias. É possível?

Professor: A turma deverá criar um blog, para serem postados os minicontos

produzidos na oficina Criando e Recriando. Também podem ser inseridos os

textos disponibilizados na Intervenção "O leitor vai até o conto" e a Coletânea de

Textos organizada na oficina Contando e Recontando.

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Os objetivos dessa oficina são: - Promover uma integração maior entre a cidade e a literatura/leitura. - Despertar interesse cultural, levando cultura para toda a comunidade escolar e para as ruas, incentivando o gosto pela leitura.

Através de ações simples trazer a literatura para todos, mostrando que ela vai muito

além do livro.

O leitor vai até o conto

- O conto "A luz é como a água de Gabriel García Márquez" dividido em diversos

trechos, aplicado em cartazes em pontos pré-determinados do colégio.

- Criar uma integração maior entre o colégio/comunidade escolar e a literatura, convidando os alunos/professores/funcionários a ler trechos de um conto que pode ser apreciado na sua íntegra de duas maneiras: percorrendo todos os pontos onde os cartazes estão afixados ou acessando o blog da turma.

- Cada cartaz com o trecho também aponta o endereço onde está cada trecho imediatamente anterior e imediatamente posterior.

- Leia o conto A luz é como a água. Use as indicações na parte inferior para percorrer todos os trechos.

Professor: Coloque os trechos do texto nos pontos de maior movimentação, em

lugares bem visíveis e que chame a atenção dos alunos.

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Trecho 1 A luz é como a água Gabriel García Márquez

"(...) mergulharam como tubarões mansos por

baixo dos móveis e das camas e resgataram do fundo da luz as coisas

que durante anos tinham-se perdido na escuridão."

No Natal os meninos tornaram a pedir um barco a remos. — De acordo — disse o pai —, vamos comprá-lo quando voltarmos a Cartagena. Totó, de nove anos, e Joel, de sete, estavam mais decididos do que seus pais achavam. — Não — disseram em coro. — Precisamos dele agora e aqui. — Para começar — disse a mãe —, aqui não há outras águas navegáveis além da que sai do chuveiro. Trecho 8 - (local)

Trecho 2 - (local)

Trecho 2 A luz é como a água

Gabriel García Márquez

Tanto ela como o marido tinham razão. Na casa de Cartagena de Índias havia um pátio com um atracadouro sobre a baía e um refúgio para dois iates grandes. Em Madri, porém, viviam apertados no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Mas no final nem ele nem ela puderam dizer não, porque haviam prometido aos dois um barco a remos com sextante e bússola se ganhassem os louros do terceiro ano primário, e tinham ganhado. Assim sendo, o pai comprou tudo sem dizer nada à esposa, que era a mais renitente em pagar dívidas de jogo. Era um belo barco de alumínio com um fio dourado na linha de flutuação. — O barco está na garagem — revelou o pai na hora do almoço.— O problema é que não tem jeito de trazê-lo pelo elevador ou pela escada, e na garagem não tem mais lugar.

Trecho 1 - (local)

Trecho 3 - (local)

Trecho 3 A luz é como a água Gabriel García Márquez

No entanto, na tarde do sábado seguinte, os meninos convidaram seus colegas para carregar o barco pelas escadas, e conseguiram levá-lo até o quarto de empregada. — Parabéns — disse o pai. — E agora? — Agora, nada - disseram os meninos. — A única coisa que a gente queria era ter o barco no quarto, e pronto. Na noite de quarta-feira, como em todas

as quartas-feiras, os pais foram ao cinema. Os

meninos, donos e senhores da casa, fecharam

portas e janelas, e quebraram a lâmpada acesa

de um lustre da sala. Um jorro de luz dourada e

fresca feito água começou a sair da lâmpada

quebrada, e deixaram correr até que o nível

chegou a quatro palmos. Então desligaram a

corrente, tiraram o barco, e navegaram com

prazer entre as ilhas da casa.

Trecho - 2 (local)

Trecho 4 - (local)

Trecho 4 A luz é como a água Gabriel García Márquez

Esta aventura fabulosa foi o resultado de uma leviandade minha quando participava de um seminário sobre a poesia dos utensílios domésticos. Totó me perguntou como era que a luz acendia só com a gente apertando um botão, e não tive coragem para pensar no assunto duas vezes. — A luz é como a água — respondi. — A gente abre a torneira e sai. E assim continuaram navegando nas noites de quarta-feira, aprendendo a mexer com o sextante e a bússola, até que os pais voltavam do cinema e os encontravam dormindo como anjos em terra firme. Meses depois, ansiosos por ir mais longe, pediram um equipamento de pesca submarina. Com tudo: máscaras, pés-de-pato, tanques e carabinas de ar comprimido. — Já é ruim ter no quarto de empregada um barco a remos que não serve para nada. — disse o pai — Mas pior ainda é querer ter além disso equipamento de mergulho.

Trecho 3 - (local)

Trecho 5 - (local)

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Trecho 7 A luz é como a água

Gabriel García Márquez

Chamados com urgência, os bombeiros forçaram a porta do quinto andar, e encontraram a casa coberta de luz até o teto. O sofá e as poltronas forradas de pele de leopardo flutuavam na sala a diferentes alturas, entre as garrafas do bar e o piano de cauda com seu xale de Manilha que agitava-se com movimentos de asa a meia água como uma arraia de ouro. Os utensílios domésticos, na plenitude de sua poesia, voavam com suas próprias asas pelo céu da cozinha. Os instrumentos da banda de guerra, que os meninos usavam para dançar, flutuavam a esmo entre os peixes coloridos liberados do aquário da mãe, que eram os únicos que flutuavam vivos e felizes no vasto lago iluminado. No banheiro flutuavam as escovas de dentes de todos, os preservativos do pai, os potes de cremes e a dentadura de reserva da mãe, e o televisor da alcova principal flutuava de lado, ainda ligado no último episódio do filme da meia-noite proibido para menores.

Trecho 6 - (local)

Trecho 8 - (local)

Trecho 8 A luz é como a água

Gabriel García Márquez

No final do corredor, flutuando entre duas águas, Totó estava sentado na popa do bote, agarrado aos remos e com a máscara no rosto, buscando o farol do porto até o momento em que houve ar nos tanques de oxigênio, e Joel flutuava na proa buscando ainda a estrela polar com o sextante, e flutuavam pela casa inteira seus 37 companheiros de classe, eternizados no instante de fazer xixi no vaso de gerânios, de cantar o hino da escola com a letra mudada por versos de deboche contra o diretor, de beber às escondidas um copo de brandy da garrafa do pai. Pois haviam aberto tantas luzes ao mesmo tempo que a casa tinha transbordado, e o quarto ano elementar inteiro da escola de São João Hospitalário tinha se afogado no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Em Madri de Espanha, uma cidade remota de verões ardentes e ventos gelados, sem mar nem rio, e cujos aborígines de terra firme nunca foram mestres na ciência de navegar na luz. Trecho 7 - (local)

Trecho 1 - (local)

Trecho 5 A luz é como a água

Gabriel García Márquez

— E se ganharmos a gardênia de ouro do primeiro semestre? — perguntou Joel. — Não - disse a mãe, assustada. — Chega. O pai reprovou sua intransigência. — É que estes meninos não ganham nem um prego por cumprir seu dever — disse ela —, mas por um capricho são capazes de ganhar até a cadeira do professor. No fim, os pais não disseram que sim ou que não. Mas Totó e Joel, que tinham sido os últimos nos dois anos anteriores, ganharam em julho as duas gardênias de ouro e o reconhecimento público do diretor. Naquela mesma tarde, sem que tivessem tornado a pedir, encontraram no quarto os equipamentos em seu invólucro original. De maneira que, na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam O Último Tango em Paris, encheram o apartamento até a altura de duas braças, mergulharam como tubarões mansos por baixo dos móveis e das camas, e resgataram do fundo da luz as coisas que durante anos tinham-se perdido na escuridão.

Trecho 4 - (local)

Trecho 6 - (local)

Trecho 6 A luz é como a água

Gabriel García Márquez

Na premiação final os irmãos foram aclamados como exemplo para a escola e ganharam diplomas de excelência. Desta vez não tiveram que pedir nada, porque os pais perguntaram o que queriam. E eles foram tão razoáveis que só quiseram uma festa em casa para os companheiros de classe. O pai, a sós com a mulher, estava radiante. — É uma prova de maturidade — disse. — Deus te ouça — respondeu a mãe. Na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam A Batalha de Argel, as pessoas que passaram pela Castellana viram uma cascata de luz que caía de um velho edifício escondido entre as árvores. Saía pelas varandas, derramava-se em torrentes pela fachada, e formou um leito pela grande avenida numa correnteza dourada que iluminou a cidade até o Guadarrama.

Trecho 5 - (local)

Trecho 7 - (local)

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Os contos no cinema

Organizar Sessões de cinema para maior integração da comunidade escolar,

mostrando uma outra possibilidade do contato com a literatura.

- Uns braços

Definir: Local - Horário - Turma

- Uma vela para Dario

Definir: Local - Horário - Turma

- A moça tecelã

Definir: Local - Horário - Turma

- O vaso do Oleiro

Definir: Local - Horário - Turma

O leitor vai até o conto - O conto "Pausa de Moacyr Scliar" dividido em diversos trechos, aplicado em

cartazes em pontos pré-determinados da cidade.

DICA - Criar um ambiente agradável

providenciando pipoca para as sessões

de cinema.

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- Criar uma integração maior entre a cidade e a literatura, convidando a população a

ler trechos de um conto que pode ser apreciado na sua íntegra de duas maneiras:

percorrendo todos os pontos onde os cartazes estão afixados ou acessando o blog

da turma.

- Cada cartaz com o trecho também aponta o endereço onde está cada trecho

imediatamente anterior e imediatamente posterior.

- Leia o conto Pausa de Moacyr Scliar. Use as indicações na parte inferior para percorrer todos os trechos.

Trecho 1

PAUSA Moacyr Scliar

Às sete horas o despertador tocou.

Samuel saltou da cama, correu para o banheiro. Fez a barba e lavou-se. Vestiu-se rapidamente e sem ruído. Estava na cozinha, preparando sanduíches, quando a mulher apareceu, bocejando: — Vais sair de novo, Samuel?

Fez que sim com a cabeça. Embora jovem, tinha a fronte calva; mas as sobrancelhas eram espessas, a barba, embora recém-feita, deixava ainda no rosto uma sombra azulada. O conjunto era uma máscara escura.

Trecho 7 - (local)

Trecho 2- (local)

Trecho 2 PAUSA Moacyr Scliar

—Todos os domingos tu sais cedo – observou a mulher com azedume na voz. — Temos muito trabalho no escritório – disse o marido, secamente.

Ela olhou os sanduíches: — Por que não vens almoçar? — Já te disse: muito trabalho. Não há tempo. Levo um lanche.

A mulher coçava a axila esquerda. Antes que voltasse a carga, Samuel pegou o chapéu: — Volto de noite.

Trecho 1 - (local)

Trecho 3 - (local)

Professor: Coloque os trechos do texto nos pontos de maior movimentação, em

lugares bem visíveis e que chame a atenção das pessoas para que leiam.

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Trecho 3 PAUSA Moacyr Scliar

As ruas ainda estavam úmidas de

cerração. Samuel tirou o carro da garagem. Guiava vagarosamente, ao longo do cais, olhando os guindastes, as barcaças atracadas.

Estacionou o carro numa travessa quieta. Com o pacote de sanduíches debaixo do braço, caminhou apressadamente duas quadras. Deteve-se ao chegar a um hotel pequeno e sujo. Olhou para os lados e entrou furtivamente. Bateu com as chaves do carro no balcão, acordando um homenzinho que dormia sentado numa poltrona rasgada.

Era o gerente. Esfregando os olhos, pôs-se de pé: — Ah! Seu Isidoro! Chegou mais

cedo hoje. Friozinho bom este, não é? A

gente...

Trecho 2 - (local)

Trecho 4 - (local)

Trecho - 4 PAUSA Moacyr Scliar

— Estou com pressa, seu Raul – atalhou Samuel. — Está bem, não vou atrapalhar. O de sempre - Estendeu a chave.

Samuel subiu quatro lanços de uma escada vacilante. Ao chegar ao último andar, duas mulheres gordas, de chambre floreado, olharam-no com curiosidade: — Aqui, meu bem! – uma gritou, e riu: um cacarejo curto.

Ofegante, Samuel entrou no quarto e fechou a porta a chave. Era um aposento pequeno: uma cama de casal, um guarda-roupa de pinho: a um canto, uma bacia cheia d’água, sobre um tripé. Samuel correu as cortinas esfarrapadas, tirou do bolso um despertador de viagem, deu corda e colocou-o na mesinha de cabeceira.

Trecho 3 - (local)

Trecho 5 - (local)

Trecho 5 PAUSA

Moacyr Scliar

Puxou a colcha e examinou os

lençóis com o cenho franzido; com um suspiro, tirou o casaco e os sapatos, afrouxou a gravata. Sentado na cama, comeu vorazmente quatro sanduíches. Limpou os dedos no papel de embrulho, deitou-se fechou os olhos.

Dormir. Em pouco, dormia. Lá embaixo, a

cidade começava a move-se: os automóveis buzinando, os jornaleiros gritando, os sons longínquos.

Um raio de sol filtrou-se pela cortina, estampou um círculo luminoso no chão carcomido.

Trecho 4 - (local)

Trecho 6 - (local)

Trecho 6 PAUSA

Moacyr Scliar

Samuel dormia; sonhava. Nu, corria

por uma planície imensa, perseguido por um índio montado o cavalo. No quarto abafado ressoava o galope. No planalto da testa, nas colinas do ventre, no vale entre as pernas, corriam. Samuel mexia-se e resmungava. Às duas e meia da tarde sentiu uma dor lancinante nas costas. Sentou-se na cama, os olhos esbugalhados: o índio acabava de trespassá-lo com a lança. Esvaindo-se em sangue, molhando de suor, Samuel tombou lentamente; ouviu o apito soturno de um vapor. Depois, silêncio.

Trecho 5 - (local)

Trecho 7 -(local)

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Chuva de minicontos

O miniconto vem até o leitor

- Chuva de minicontos é uma intervenção itinerante na qual os

alunos caminham com guarda-chuvas lendo e contando

minicontos.

- Cada guarda-chuva tem chaveiros com minicontos de diferentes

temas e diversos autores.

- Ao abordar uma pessoa, os alunos propõem a escolha de um dos guarda-chuvas e

depois a escolha de um chaveiro que se encontra pendurado no guarda chuva.

Estes chaveiros são como "gotas" e formam uma espécie de instalação. A pessoa

Trecho 7 PAUSA

Moacyr Scliar

Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para a bacia, levou-se. Vestiu-se rapidamente e saiu.

Sentado numa poltrona, o gerente lia uma revista. — Já vai, seu Isidoro? — Já – disse Samuel, entregando a chave. Pagou, conferiu o troco em silêncio. — Até domingo que vem, seu Isidoro – disse o gerente. — Não sei se virei – respondeu Samuel, olhando pela porta; a noite caia. — O senhor diz isto, mas volta sempre – observou o homem, rindo.

Samuel saiu. Ao longo dos cais, guiava lentamente.

Parou um instante, ficou olhando os guindastes recortados contra o céu avermelhado. Depois, seguiu. Para casa.

Trecho 6 - (local)

Trecho 1 - (local)

Page 123: OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA …£o facial, tom de voz, entre outras, para melhor desempenho durante as atividades. Os alunos organizarão, ao final da oficina, uma coletânea com

opta por uma "gota" sem conhecer o seu conteúdo. O aluno pega o chaveiro

escolhido e presenteia com a leitura do miniconto sorteado por ela.

- Para esta atividade serão utilizados minicontos de autores diversos e minicontos

produzidos pelos alunos.

Espaços de leitura

Criar espaços para leitura onde devem ser disponibilizados contos e

minicontos para leitura e apreciação pela comunidade.

Material: livros de contos e de minicontos, todos os materiais produzidos a partir dos

textos dos alunos (chaveiros, marcadores de página, adesivos de carro, camisetas)

diversidade de textos e de materiais.

Espaços de produção

Criar espaços e disponibilizar materiais necessários para produção de

minicontos pelos interessados.

Agora escreva você , aqui, um miniconto: _____________________________

Os contos no cinema

Organizar Sessões de cinema para maior integração da comunidade,

mostrando uma outra possibilidade do contato com a literatura.

DICA - Criar um ambiente agradável

providenciando pipoca para as sessões

de cinema.

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- Uns braços

Definir: Local - horário

- Uma vela para Dario

Definir: Local - horário

- A moça tecelã

Definir: Local - horário

- O vaso do Oleiro

Definir: Local - horário

O conto bate em sua porta

Atividade para que a família, os amigos e conhecidos possam viajar no mundo da

literatura.

O conto bate em sua porta é uma intervenção itinerante na qual os alunos vão

percorrendo o espaço urbano levando contos e minicontos ao alcance das pessoas

que não se deslocaram aos espaços disponíveis de leitura e produção.

Essa atividade poderá acontecer em diversos espaços de tempo e lugar,

abordando as pessoas nas mais variadas situações, de acordo com a realidade de

cada escola.

Material para essa atividade:

Coletânea de contos produzida na oficina Contando e Recontando - Cartonera

Minilivro produzido com os textos da turma

Todos os materiais produzidos com os textos dos alunos (chaveiros, marcadores de

página, adesivos de carro, camisetas).

Livros de contos e de minicontos.

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REFERÊNCIAS

ALVIN, Francisco. Poemas (1968-2000). Rio de Janeiro: 7 letras, 2004.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. ANDRADE, Oswald de. Pau Brasil. São Paulo: Globo, 2001.

ASSIS, Machado. Apólogo. In: "Para Gostar de Ler - Volume 9 - Contos". São Paulo: Editora Ática, 1984.

________ Pai contra mãe. In: MORICONI, Ítalo (ORG). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. CARVALHO, Marlene. Alfabetizar e letrar. Um diálogo entre a teoria e a prática. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009. CHAFFE, Laís; SPALDING, Marcelo. Minicontos e muito menos. Porto Alegre: Casa Verde, 2009.

CHAFFE, Laís (ORG). Contos de Algibeira. Porto Alegre: Casa Verde.2007. ________ (ORG). Contos de bolsa. Porto Alegre: Casa Verde, 2006. ________ (ORG). Contos de bolso. Porto Alegre: Casa Verde, 2005. COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000. COLASANTI, Marina. Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. ________ Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento. Rio de Janeiro: Global, 2000. FONSECA, Rubem. Feliz Ano Novo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. FREIRE, Marcelino. Os cem menores contos brasileiros do século. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. 11ª ed. São Paulo: Ática, 2006. KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006 LISPECTOR, Clarice. Uma galinha. In MORICONI, Ítalo (ORG). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. LOBATO, Monteiro Negrinha. In MORICONI, Ítalo (ORG). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

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MAGALHÃES JÚNIOR, R. A Arte do conto. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1972. MARQUÉZ, Gabriel García. Olhos de cão azul. Rio de Janeiro: Record, 1974. ________ Doze contos peregrinos. Rio de Janeiro: Record, 2013. MARTINS, Gustavo. Minicontos perversos e outras licenciosidades. Curitiba: Editora InVerso, 2010. MELLO, Ana. Minicontando. Porto Alegre: Casa Verde, 2009. MORICONI, Ítalo (ORG.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. MURANO, Edgard. O texto na era digital. Revista Língua Portuguesa.São Paulo: Segmento. Ano 5. N.º 64. Fevereiro de 2011. NEUBARTH, Fernando (ORG). Contos comprimidos. Porto Alegre: Casa Verde,

2008.

POE, Edgar Allan. Histórias Extraordinárias: Seleção, apresentação e tradução de

José Paulo Paes. Belo Horizonte: Boa Viagem, 2010.

SCLIAR, Moacyr. Pausa. In BOSI Alfredo (ORG). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1977.

SPALDING, Marcelo. Um jabuti para o miniconto. 2007. Disponível em http://www. artistasgauchos.com.br/veredas/?apid=2391&tipo=12&dt=0&wd=&titulo=Um%20jabuti%20para%20o%20miniconto> acesso em 25 mar. 2013.

TELLES, Lygia Fagundes. Antologia: Meus contos preferidos. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

________ Venha ver o pôr-do-sol e outros contos. São Paulo: Ática, 1991.

TORGA, Miguel. Bichos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

________ Contos da Montanha.Coimbra, 1969.

________ Novos Contos da Montanha. Coimbra,1967.

TREVISAN, Dalton. 2 3 4. Rio de Janeiro: Record, 1997.

________ Desgracida. Rio de Janeiro: Record, 2010.

________ Ah é. Rio de Janeiro: Record, 1994.

________ Cemitério de elefantes. Rio de Janeiro: Record, 1964.

________ Em busca de Curitiba perdida. Rio de Janeiro: Record, 2004.

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http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/contos/macn004.pdf acesso em 05 out 2013 http://www.truca.pt/ouro/biografias1/miguel_torga.html acesso em 25 out 2013 http://www.linkatual.com.br/monteiro-lobato.html acesso em 25 out 2013 http://www.releituras.com/amonterroso_menu.asp acesso em 25 out 2013 http://educacao.uol.com.br/biografias/ernest-hemingway.jhtm acesso em 25 out 2013 http://www.releituras.com/daltontrevisan_bio.asp acesso em 25 out 2013 http://www.artistasgauchos.com.br/portalx/index_festipoa.php?id=1 acesso em 25 out 2013 http://www.artistasgauchos.com.br/veredas/?pg=1610 acesso em 13 nov 2013 http://pt.wikipedia.org/wiki/Gabriel_Garc%C3%ADa_M%C3%A1rquez acesso em 25 out 2013 http://cseabra.wordpress.com/microcontos/ acesso em 04 jul 2013 http://www.patriciojr.com.br/no-livro-microcontos-a-nova-onda-da-literatura/ acesso em 04 jul 2013 http://www.letrasecia.com.br/blog/blog/2011/04/11/minicontando/ acesso em 04 jul 2013 IMAGENS DISPONÍVEIS NA REDE: http://img.getglue.com/avatar/cseabra/large_tile.jpg. acesso em 04 jul 2013 http://mgmeg3.blogspot.com.br/2013/05/situacao-de-aprendizagem-texto-pausa-de.h tml acesso em 23 set 2013 http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe.php?foto=462&evento=9 acesso em 25 nov 2013 http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe.php?foto=534&evento=9 acesso 25 out 2013

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http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe.php?foto=488&evento=9 - acesso em 25 out 2013 http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe.php?foto=565&evento=9 - acesso em 25 out 2013 http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe.php?foto=481&evento=9 - acesso em 25 out 2013 http://terceiraominicontando.wordpress.com/ acesso em 21 out 2013 http://lauravive.blogspot.com.br/2010_07_01_archive.html acesso em 03 nov 2013 VÍDEOS DISPONÍVEIS NA REDE: Minicontos Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=m1nQ-NLdMhY acesso em 22 ago 2013 Minicontos 2 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=BsRtJwOvIbQ acesso em 22 ago 2013 Uma vela para Dario Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=98N8TEgtNNs acesso em 22 ago 2013 O vaso do Oleiro Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=xHWf5E74YII acesso em 18 nov 2013 http://www.youtube.com/watch?v=9x5sZ9DPDEg acesso em 18 nov 2013 A moça tecelã Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=A_Ly7Myyo34 18 nov 2013 Uns Braços Vídeo Disponível em http://www.downloadsgratis.org/download/filme-uns-bracos-nacional acesso em 01 nov 2013 http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/conteudo/MachadodeAssis/unsbracos.htm acesso em 01 nov 2013 Quadrilha Disponível em: http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/video/showVideo.php?video =8374 E agora José Disponível em: http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/video/showVideo.php? video=8451 Cidadezinha Qualquer Disponível em: http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/video/showVideo.php?video =8448

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Contação de Histórias Disponível em: http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/video/showVideo.php?video=8371 acesso em 14 nov 2013 LivroClip Os cem menores contos brasileiros do século Disponível em http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/video/showVideo.php?video=8392 acesso em 14 nov 2013