os centros logísticos e industriais aduaneiros e a integração

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RESUMO: De agosto a dezembro de 2006 esteve em vigência uma medida provisória que alterava os procedimentos de criação de estações aduaneiras em zona secundária (portos secos) e criava, assim, uma nova categoria de recinto aduaneiro: o Centro Logístico e Industrial Aduaneiro (CLIA). São armazéns alfandegados onde se realizam os procedimentos de desembaraço aduaneiro na importação e exportação de mercadorias, entretanto, não estão localizados nas zonas de portos e aeroportos (zona primária). A medida estabeleu uma “liberalização” do setor ao transferir a iniciativa da criação destes recintos à esfera privada quando até então era de encargo exclusivo da Receita Federal, por meio de processos licitatórios. Trata-se de objetos geográficos com densidades técnicas e normativas que firmam-se como alternativa aos portos e aeroportos para os procedimentos de desembaraço aduaneiro. O presente trabalho pretende entender as implicações territoriais destas novas estruturas no estado de São Paulo, em um período caracterizado pela dispersão e dissolução do processo produtivo e pela crescente importância da circulação dentro deste. PALAVRAS-CHAVE: Fluidez territorial – porosidade territorial – logística – circuitos espaciais produtivos – aduanas ABSTRACT: From August to December 2006, a provisional executive order has changed the procedures for setting up customs stations in the secondary zones (dry-ports) and created thereby a new category of customs enclosure: Custom Logistics and Industrial Centers (CLIA). They are bonded warehouses (located out of the primary zones, wich are airports and ports areas) where import and export procedures are performed. The provisional executive order established a “liberalization” of the sector by transferring the initiative of establishing such grounds to the private sphere. Before that, it was a government responsability, through bidding process. They are geographical objects with technical and normative “densities” chosen as an alternative way to the procedures of customs clearance. This paper aims to understand the territorial implications of these new structures in the State of São Paulo, in a period characterized by the dispersion and dissolution of the production process and the increasing importance of its circulation. KEY-WORDS: Territorial fluidity – territorial porosity – logistics – productive space circuits - customs OS CENTROS LOGÍSTICOS E INDUSTRIAIS ADUANEIROS E A INTEGRAÇÃO TERRITORIAL NO ESTADO DE SÃO PAULO Lucas Ferreira Rosa Penha* *Mestrando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. Orientado pela Profª Drª Maria Mónica Arroyo. E-mail: [email protected] GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Edição Especial, pp. 143 - 158, 2009

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RESUMO:De agosto a dezembro de 2006 esteve em vigência uma medida provisória que alterava osprocedimentos de criação de estações aduaneiras em zona secundária (portos secos) e criava,assim, uma nova categoria de recinto aduaneiro: o Centro Logístico e Industrial Aduaneiro(CLIA). São armazéns alfandegados onde se realizam os procedimentos de desembaraçoaduaneiro na importação e exportação de mercadorias, entretanto, não estão localizados naszonas de portos e aeroportos (zona primária). A medida estabeleu uma “liberalização” dosetor ao transferir a iniciativa da criação destes recintos à esfera privada quando até entãoera de encargo exclusivo da Receita Federal, por meio de processos licitatórios. Trata-se deobjetos geográficos com densidades técnicas e normativas que firmam-se como alternativaaos portos e aeroportos para os procedimentos de desembaraço aduaneiro. O presente trabalhopretende entender as implicações territoriais destas novas estruturas no estado de São Paulo,em um período caracterizado pela dispersão e dissolução do processo produtivo e pela crescenteimportância da circulação dentro deste.PALAVRAS-CHAVE:Fluidez territorial – porosidade territorial – logística – circuitos espaciais produtivos – aduanas

ABSTRACT:From August to December 2006, a provisional executive order has changed the procedures forsetting up customs stations in the secondary zones (dry-ports) and created thereby a newcategory of customs enclosure: Custom Logistics and Industrial Centers (CLIA). They arebonded warehouses (located out of the primary zones, wich are airports and ports areas)where import and export procedures are performed. The provisional executive order establisheda “liberalization” of the sector by transferring the initiative of establishing such grounds to theprivate sphere. Before that, it was a government responsability, through bidding process.They are geographical objects with technical and normative “densities” chosen as an alternativeway to the procedures of customs clearance. This paper aims to understand the territorialimplications of these new structures in the State of São Paulo, in a period characterized by thedispersion and dissolution of the production process and the increasing importance of itscirculation.

KEY-WORDS:Territorial fluidity – territorial porosity – logistics – productive space circuits - customs

OS CENTROS LOGÍSTICOS E INDUSTRIAIS ADUANEIROS E AINTEGRAÇÃO TERRITORIAL NO ESTADO DE SÃO PAULO

Lucas Ferreira Rosa Penha*

*Mestrando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. Orientado pela Profª Drª Maria Mónica Arroyo. E-mail: [email protected]

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Introdução

O presente trabalho é uma tentativa deapresentação do tema dos Centros Logísticos eIndust r iais Aduaneiros (CLIAs) e suasimplicações territoriais no Estado de São Pauloa partir de uma perspectiva geográfica. OsCLIAs são recintos alfandegados em zonasecundária, cr iados para a faci litação dosprocedimentos de importação e exportação,apresentando-se como alternativas aos portose aeroportos. Para a tarefa de apresentá-los, énecessária a compreensão das razões de suacriação (projeto político) e das lógicas de seufuncionamento, identificando os principaisatores sociais envolvidos diretamente no projetoe aqueles mobilizados de maneira indireta.Nosso objetivo é o de realizar tal análise demodo a articular operacionalmente teoria econceitos caros à ciência geográfica com orecorte da realidade concreta selecionado.Assim, mais um tema de fundamentalimportância para a compreensão dastransformações pelas quais passa o territórionacional no atual período do desenvolvimentocapitalista mundial será posto dentro de umaabordagem que atrela, dialet icamente,fenômenos sociais aos seus condicionantes eprodutos espaciais, na qual o território, no seuuso, representa uma totalidade em contínuoprocesso de mutação (SANTOS, 1994).

O tema é um vasto campo a serexplorado pelo pensamento geográfico já quetoca a fundo em debates como a dinâmica dosfluxos no território, a híbrida regulação doterritório travada entre o público e o privado, ea competitividade que tais recintos, comocomponentes de um sistema logíst ico,imprimem ao território. Quando enxergamos osCLIAs como objetos geográficos construídostécnica e normativamente e, por tanto,elementos constitutivos do território nacional,uma análise geográfica pode ser realizada.Quando nos debruçamos sobre as minúcias desuas composições técnicas e normativas, somosremetidos, automaticamente, às análises dasescalas local, regional, nacional e mundial,revelando a importância desses recintos dentro

de diversos circuitos espaciais produtivos. Estes,na atual fase do capital ismo mundial, sedispersam pelas diversas regiões do mundo ese mantêm conectados por meio do avançadoestado das técnicas de transportes ecomunicações. Assim, o entendimento daexistência dos CLIAs passa, obrigatoriamente,pe la compreensão da lógica mundial deacumulação capitalista e suas implicaçõesespecíficas em território nacional.

Os CLIAs desempenham importantepapel na circulação das mercadorias, etapa docircuito produtivo cada vez mais relevante paraas estratégias produtivas das empresas. Sendoeles recintos alfandegados, tal papel é exclusivopara a circulação das mercadorias em fluxos deentrada ou saída do país, portanto, paraempresas com circuitos espaciais produtivosque contemplam importação ou exportação. Oaprofundamento da divisão internacional dotrabalho, principalmente a partir da transiçãodo capitalismo fordista para a produção flexível(HARVEY, 2004), na década de 1970, impôs àcirculação – material e imaterial – papel decisivonas políticas de empresas e Estados para ainserção de produtos nos mercadosinternacionais cada vez mais competitivos. Essalógica já caracter izava o período técnico-científico e informacional e começava a construirseu correspondente meio geográfico, de mesmonome (SANTOS, 2002).

A intensif icação desse processo emterritório nacional deu-se nos anos 1990 comuma abertura dos mercados nacionais nuncaantes sentida, sustentada por políticas neo-liberais que aumentaram consideravelmente onúmero de empresas multinacionais presentesno Brasil e seus respectivos fluxos comerciais(mercadorias e dinheiro) internacionais1. Esteé o período em que encontramos os principaisembriões dos CLIAs: interesse pelo aumento davelocidade nos fluxos e pela qualificação dosserviços associados a eles. Logicamente, essesinteresses sempre existiram em produções dotipo capitalista, mas nesses últimos anos doséculo passado ganharam importância tãoacentuada que se tornaram decisivos na

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competitividade dos produtos nos mercadosinternacionais, caracterizando o atual períodode globalização.

Os CLIAs como manifestaçãoterritorial do atual período

Para esclarecer nosso ponto de partida aoentendimento dos Centros Logísticos e IndustriaisAduaneiros e de suas implicações nos lugaresonde são instalados é necessário expressarmosnossos referenciais teóricos sobre os quaisembasaremos nossa análise. O fenômenoestudado está geneticamente vinculado, e nãopoderia deixar de ser, ao movimento da história,que já passou a ser mundial, senão no séculoXVI com as grandes navegações, nos seguintescom o aprofundamento da divisão internacionaldo trabalho trazido pelo modo de produçãocapitalista. Portanto, não está apenas inserido emum contexto temporal, mas é por ele condicionadoe produzido, não restando-nos outra alternativaque a compreensão do dito contexto. Entendemosque a caracterização do espaço geográfico no pós-guerra através do conceito de meio técnico-científico e informacional, colocado por MiltonSANTOS (2002), coincide com a concretude efuncionamento do mundo no período referido. Sóentão pudemos viver um mercado global,viabilizado pela imbricação de técnica e ciência,e pelo aproveitamento que dela fizeram asgrandes empresas, distinguindo o período de seuprecedente.

Do mesmo fenômeno está falando DavidHARVEY (2004) quando explica que a década de1970 representa uma ruptura de modelosprodutivos. A informação ganha importânciachave no novo modelo intitulado “produçãoflexível”, tida como a solução para o esgotamentodas possibil idades do modelo fordista deprodução. “Novas técnicas e novas formasorganizacionais de produção puseram em riscoos negócios de organização tradicional” (p. 146),fazendo com que novas estratégias começassema ser buscadas pelas empresas no sentido deadequação às exigências dos novos mercados. Adissolução do processo produtivo em unidades

setoriais e geograficamente dispersas teve, nesseperíodo, sua maior expressão, produzindo umamais complexa e profunda divisão territorial dotrabalho. E é o desenvolvimento técnico, frutotambém das novas pesquisas científicas, quepossibilitou a coordenação e a realização dasproduções nessa nova fase. Comunicações etransportes foram as áreas responsáveis por essaviabilização.

Claude RAFFESTIN (1993) entende acomunicação e a circulação como expressões dasredes geográficas. A primeira, imaterial eestratégica – já que não pode ser vista –representada por fluxos de ordens, dinheiro,informações, e a segunda, material e semprevisível, como pessoas e mercadorias. As redesgeográficas, união destas duas variáveis,começam a sobressair-se dentro do processoprodutivo capitalista. Em um período em queempresas e suas mais especializadas unidadesbuscam os lugares mais atrativos para arentabilidade de suas atividades num espaçoamostral que coincide com o mundo, acoordenação e realização da produção são fatoresfundamentais na política de crescimento dasempresas e se traduzem em comunicação ecirculação viabilizados por redes geográficasimpregnadas de técnica e ciência.

Frente a essa nova organização daprodução em escala mundial, iniciada no pós-guerra e reafirmada após a década de 1970,Milton Santos e María Laura Silveira (2001)propõem conceitos para operacionalizar asanálises contemporâneas que se deparam com aideia de divisão territorial do trabalho. Segundoos autores, a divisão territorial do trabalho éinstrumento fundamental para a identificação da“repartição das atividades entre lugares” (p. 143),mas o funcionamento dessa produção repartidaé apreendido através de um par de conceitos quecaptam o movimento do processo, fugindo doestático quadro da divisão territorial do trabalho.Circuitos espaciais produtivos e círculos decooperação no espaço são, então, ferramentasúteis a nós para a apreensão do movimentointrínseco e cada vez mais importante do processoprodutivo capitalista nos dias de hoje. Os CLIAs

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desempenham uma clara função no circuitoespacial produtivo de inúmeros produtos. Porserem recintos alfandegados destinados aocontrole fiscal e administrativo de mercadoriasde comércio exterior, entram no circuito daprodução como etapa da distribuição (transporte).

O aprofundamento da divisão territorial dotrabalho, fazendo dispersar as atividadesprodutivas pelo mundo, cria uma infinidade deunidades produtivas especializadas, umainfinidade de empresas prestadoras de serviçose uma infinidade de meios de comunicação e detransportes, isto é, as relações tornam-se maiscomplexas e os contextos alargam-se. Aocontrário do que se possa pensar, tudo issocontribui para uma racionalidade econômica cadavez mais presente, na medida em que as unidadesprodutivas aumentam sua produtividade, osserviços especializam-se e os meios decomunicação e transportes possibi litam oaumento da velocidade dos fluxos. Roberto LobatoCORRÊA (1997) contribui com mais um conceitopara o debate. Para ele, “as diferenças de lugaresface às necessidades historicamenteidentificadas” (p. 280) criam as interaçõesespaciais, representantes das transformaçõessociais e reprodutoras das desigualdadesexistentes. Ainda de acordo com o autor, aRevolução Industrial imprimiu à sociedadetransformações que se expressaram através damodificação das interações espaciais, como oaumento das trocas e “dos meios de circulação ecomunicação” (p. 281), ampliação das redesgeográficas e aumento da velocidade dos fluxos,anunciando a superação do espaço pelo tempo.Essas transformações se intensificaram nasegunda metade do século XX e, sobretudo, nadécada de 1990 para os países periféricos decapitalismo tardio.

Entendendo os CLIAs como objetosgeográficos produzidos pelo período técnico-cient íf ico e informacional – chamado deglobalização (SANTOS, 2001) ou mundialização(CHESNAIS, 1996) – pretendemos associar seunascimento à ultima década do século passado.É somente nesses anos que a periferia do mundocapitalista conhece a conciliação das condições

técnicas e políticas que viabilizam a intensificaçãodos fluxos internacionais nesses territórios. Aunicidade técnica da qual Milton Santos (2001)fala é possibilitada pela técnica da informação,que congrega todas as outras técnicas de formahegemônica e pode, então, se fazer sentirinstantaneamente no mundo todo. Associandoessa possibil idade técnica às polít icas deliberalização, privatizações e desregulamentaçõesadotadas pelos governos Thatcher e Reagan, nadécada de 1980 – e expandidas para a AméricaLat ina nos anos 1990 – que podem serconsideradas condicionantes políticas para adesenfreada expansão dos grupos multinacionais(CHESNAIS, 1996), o período mais recente dahistória capitalista mundial pôde se realizar emterritório brasileiro. Logo, a importância dada àcirculação, mesmo existente já desde outrosperíodos capitalistas, torna-se maior nesta faserecente, exigindo de Estados e empresasvelocidade na movimentação dos fluxos.

Não é sem motivos que a expressão“imperativos da globalização” aparece em análisesque buscam decifrar o atual período histórico. Ascaracterísticas do meio técnico-científico einformacional e o seu uso nos revelam que asobrevivência das grandes empresas – aquelasque organizam sua produção em escala planetária– depende, dentre outros fatores, da rapidez comque coloca sua produção à disposição do mercado.María Laura Silveira (2003) explica que os Estadosinventam uma viabilidade para os territórios. Emoutras palavras, adaptam seus territórios àsexigências das grandes empresas. Estas buscamno território, usado como recurso, fatores quetransfiram competitividade aos seus produtos nomercado global. Os CLIAs são densidades técnicase normativas que se encaixam nessa viabilizaçãodo território.

Entendendo os CLIAs

Os CLIAs são uma nova categoria deaduana, criada com a medida provisória n° 320,de 24 de agosto de 2006, que teve vigência deapenas seis meses, mas durou o suficiente paralicenciar cinco recintos. A medida estipulava que

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empresas interessadas em prestar os serviçospúblicos de armazenagem e movimentação demercadorias importadas e daquelas destinadas àexportação poderiam obter a correspondentel icença da Receita Federal mediantepreenchimento dos requisitos técnicos, financeirose operacionais legalmente especificados. Tratou-se de procedimento diferente daquele existenteaté então, que consistia na licitação pública comoúnico modo de criação das aduanas interiores,conhecidas como portos secos. Essencialmente,a nova medida alterou o quadro jurídico de criaçãode novos recintos alfandegados na zonasecundária2 ao fazer migrar à iniciativa privada ointeresse e a possibilidade do alfandegamento,quando eles eram de competência do governofederal. De acordo com o documento de Exposiçãode Motivos3 da medida provisória, o risco decomprometimento da oferta de serviçosaduaneiros era justificat iva para essa“liberalização” do setor.

No Brasi l, todo procedimento deimportação ou exportação de produtos devepassar, obrigatoriamente, por uma aduana paraque somente então eles possam seguir para oslugares de destino – dentro do Brasi l(importações) ou exterior (exportações). Aaduana é uma área alfandegada, isto é, comlimites físicos estabelecidos pela Receita Federaldentro dos quais são autorizados os serviços decontrole e fiscalização – despacho aduaneiro4 –das mercadorias importadas e daquelas a seremexportadas – sempre realizados pela ReceitaFederal. O território nacional pode ser divididoem zona primária – aquela de contato limítrofeentre o espaço econômico nacional e aqueleinternacional – (portos, aeroportos e postos defronteira), na qual é realizada a maior parte dosprocedimentos aduaneiros de importação eexportação, e zona secundária – o restante doterritório – onde, atualmente, existem algunstipos de recintos alfandegados, como portossecos, terminais alfandegados privativos eCentros Logísticos e Industriais Aduaneiros.

Os CLIAs são empresas que dispõem deum conjunto de áreas alfandegadas (na formade armazéns ou pátios) com a presença de um

posto da Receita Federal, autorizadas a realizaratividades aduaneiras e tornam-se, então, umaopção para importadores e exportadoresdelegarem o tratamento aduaneiro de suasmercadorias. Podem ser uma opção atrativa paraalgumas empresas por oferecerem maiorespecialização nos serviços aplicados àmercadoria (gerenciamento de estoques,habilitação para tratamento de tipos específicosde produtos, rapidez e segurança nosprocedimentos) em confronto com os portos eaeroportos que têm outras funções, além destas,para desempenhar, como carga e descarga demercadorias e sua movimentação.

Adiantamos, aqui, a importância da RegiãoMetropolitana de São Paulo para o funcionamentodos CLIAs. De acordo com trabalho realizado porMónica ARROYO (2004), o estado de São Pauloparticipa com cerca de 40% de todo o comércioexterior brasileiro, sendo a RMSP aquela comquase metade das exportações e importações doestado. Isso é reflexo da “convivência de umamultiplicidade de empresas exportadoras” (p. 93)na RMSP, que aumenta sua espessura, isto é, acomplexidade de seu sistema de fluxos. Estãonessa área as principais demandas pelos serviçosaduaneiros de um CLIA.

A opção por utilizar o CLIA como recintoalfandegado gera, no transporte da mercadoria,uma escala adicional, exigindo dele a oferta deatrat ivos que compensem esse fatorantieconômico. Como mostra o fluxograma aseguir, o caminho da mercadoria importada ouexportada se torna mais longo quando estapassa pelo CLIA. Nas exportações, a mercadoriadeixa a empresa exportadora sendotransportada até o CLIA, que realizará todasas operações aduaneiras necessárias para aexportação. Do CLIA, a mercadoria étransportada – já despachada e, portanto, sobregime de trânsito aduaneiro5 – até um pontoda zona primária, caso deva ser exportada porvia aérea (aeroporto) ou marítima (porto), ondeserá diretamente carregada para exportação.Nos procedimentos de importação, amercadoria chega pela zona primária e destaparte diretamente para o CLIA, sob regime de

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trânsito aduaneiro porque não foi aindanacionalizada. Apenas quando chega ao CLIAserá sujeita aos serviços de conferência e

controle aduaneiros e, somente após cumpridaesta etapa, poderá ser transportada à empresaimportadora.

Zona primáriaIndústria H B

Indústria G' G C' A

H' B'

CLIA F Ea D

EF' D'

E' Ea'

Fluxo da mercadoria - importação e exportação

A'

T erritório nacionalExterior

C

Legenda:

Importação

A – Saída da mercadoria no exportador (exterior).B – Transporte em área internacional.C – Chegada em terr itório nacional /Desembarque.D – Transferência para o CLIA sob regime deTrânsito Aduaneiro.Ea – Armazenagem da mercadoria ainda nãonacionalizada.E – Nacionalização / pagamento de tributos /liberação da carga.F – Transporte da mercadoria liberada aoimportador.G – Chegada da mercadoria no importador.H – Fluxo da mercadoria em caso de não utilizaçãodo CLIA*.

Exportação

G’ – Saída da mercadoria no exportador.F’ – Transporte em território nacional até o CLIA.Ea’ – Armazenagem da mercadoria ainda nãodespachada.E’ – Despacho aduaneiro / pagamento de tributos/ lacre.D’ – Transferência da mercadoria despachada àzona primária sob regime de Trânsito Aduaneiro.C’ – Embarque direto.B’ – Saída do território nacional.A’ – Chegada da mercadoria no importador(exterior).H’ – Fluxo da mercadoria em caso de nãoutilização do CLIA*.

*Nesses casos, os procedimentos indicados porE e E’ são realizados na zona primária.

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É importante destacar a pr incipalmodalidade de importação e exportação realizadapelos CLIAs, já que são muitos os regimesoferecidos por esses recintos. O regime especialde entreposto aduaneiro6 é o mais demandado,já que permite, tanto na importação quanto naexportação, a suspensão dos impostos enquantoa mercadoria não é nacionalizada ou despachada.Os impostos só incidem sobre a fração damercadoria nacionalizada ou despachada e devemser pagos apenas depois deste procedimento.Para o importador ou o exportador, esse regimeé interessante porque permite o armazenamentoda mercadoria sem a obrigação do pagamentoimediato dos impostos, que é realizado apenasquando os serviços aduaneiros são prestados(coincidindo com a demanda do consumo dasmercadorias estocadas).

Outro regime aduaneiro possível de seroferecido pelos CLIAs é o de entreposto industrial7,que consiste na possibilidade de realização depequenos processos de caráter industrial(etiquetagem, marcação, testes de funcionamento,acondicionamento e reacondicionamento,montagem e beneficiamento) por meio dainstalação de fi l iais de indústrias na áreaalfandegada, com aprovação da Receita Federal.A ideia é a de incentivar as exportações pelasvantagens tributárias da importação de matérias-primas necessárias à composição do produto finala ser exportado. Entretanto, a burocracia envolvidanas aberturas de filiais dificulta o aproveitamentodesse regime e, hoje, esses procedimentoscontemplam parcela insignificante dos serviçosprestados.

Como e por que foram criados

A criação do CLIA como categoria derecinto alfandegado não pode ser entendida comoresultado de um fator isolado ou casual, mas simcomo um conjunto de fatos e fatores articuladosdurante ao menos uma década que foramapropriados por sujeitos sociais para a produçãode um projeto de lei e sua conseguinte aprovação.Mesmo tendo sido arquivada meses depois, amedida provisória que cria legalmente o CLIA

nada mais é do que o resultado último de umlongo e complexo processo de debates políticose confrontos de interesses (públicos e privados),travados em reuniões, conferências e associaçõesrepresentativas das empresas do setor, numprimeiro momento, e no Congresso Nacional, emfase posterior. Logo, o texto da Lei, como emqualquer outro caso, exprime em poucas linhas oárduo processo político desenrolado a priori.Tentaremos identificar, a seguir, a trama dosacontecimentos e dos sujeitos envolvidos queantecipou a regulamentação dos CLIAs.

Até 19968, quando os portos secos foraminstituídos sob o nome de Estações Aduaneirasdo Interior, as importações e exportações eramrealizadas exclusivamente na zona primária –portos, aeroportos e postos de fronteira – ou emterminais retroportuários alfandegados. Com acriação dos portos secos, a partir da segundametade da década de 1990, parte significativadas mercadorias de comércio exterior passou aser controlada e fiscalizada nesses novos recintosde zona secundária que surgiam como viaalternativa para empresas prejudicadas peloslentos e burocráticos procedimentos aduaneirosdos recintos portuários. Os CLIAs surgem aindaneste contexto de criação de alternativas rápidase eficientes em contraposição à estruturasobreut i lizada dos tradicionais portos eaeroportos, porém, como resultado de uma fortepressão política das empresas de armazéns geraisno sentido de uma maior liberalização dessemercado.

A medida provisória n° 3209, aprovada emagosto de 2006, estabelece novos procedimentospara a criação dos recintos alfandegados em zonasecundária, denominando-os Centros Logísticose Industriais Aduaneiros. De acordo com odocumento Exposição de Motivos referente àmedida provisória, produzido em dezembro de2005, o objetivo da medida provisória é a“reestruturação do modelo jurídico de organizaçãodos recintos aduaneiros de zona secundária”justificada, também segundo o documento, pelapossibilidade de sobrecarga de procedimentos dedesembaraço aduaneiro dadas as condiçõesaduaneiras do terr itório brasi leiro. Osprocedimentos de abertura de portos secos

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estavam sujeitos aos modelos de concessão epermissão, isto é, abertura de licitação pública econcessão do serviço à empresa selecionada. Oaumento do número de portos secos em territórionacional estava subordinado à iniciativa pública,por meio da Receita Federal, que apenas abrialicitação após avaliação da demanda econômica.Esta prática, de acordo com o documento, nãoestava em consonância com o aumento damovimentação de cargas nos portos e, por isso,não era capaz de “responder prontamente àsdemandas do mercado”, que exigiriam rápidasadequações operacionais e mudanças locacionais.A ideia do CLIA surge fundamentalmente paraeliminar esse fator limitante que restringe oingresso de novas empresas no mercado, já queseus serviços – movimentação e armazenagemde mercadorias em processos de importação eexportação – não são considerados de naturezapública pelos idealizadores do projeto.

Com as especificações legais da MP 320,alteram-se os procedimentos para instalação derecintos aduaneiros em zona secundária. De umsistema de concessão passa-se a um sistema delicença. Esta “é o ato administrativo unilateral evinculado pelo qual a Administração faculta atodos os que preencham os requisitos legais oexercício de determinada atividade” e seufuncionamento seria condizente com os interessesde liberal ização do mercado de armazénsalfandegados. Assim, a abertura de um CLIA nãodepende mais da abertura de licitação por parteda Receita Federal e depende apenas dopreenchimento dos requisitos estipulados em leipara a aprovação da licença para exercício dosserviços de CLIA. A medida estabeleceu, então,via livre para a iniciativa privada na criação dosCLIAs e na passagem voluntária dos portos secosao regime de CLIA.

Atualmente, funcionam, em territórionacional, cinco CLIAs. O Grupo Mesquita detémdois recintos, um em Santos e o outro no Guarujá,com licenças outorgadas em 17 de novembro de2006. Na mesma data, a Deicmar S.A. conseguiua licença para seu CLIA, também em Santos. OGrupo Colúmbia Armazens Gerais teve sua licençapara operar como CLIA em Santos no dia 11 de

dezembro de 2006 e a CRAGEA, de Suzano, noúltimo dia de vigência da MP, 14 de dezembro de2006, teve sua licença aprovada. Todas elas sãograndes empresas do setor de armazéns gerais,com reconhecida tradição e longa experiência noramo, garantindo relevante força polít ica,necessária para a sustentação do projeto emquestão.

CLIA: Fluidez e porosidade territoriais

O caráter híbrido do espaço geográfico(SANTOS, 2002) é evidente em suas formas namedida em que estas revelam, sugerem oumascaram – dependendo de suas naturezas –duas modalidades de conteúdos passíveis dedissociação apenas para fins analíticos, comoeste. São eles: a técnica e a norma. São,portanto, dois atributos não só do espaçogeográfico, mas também, encontrados em cadaobjeto geográfico que o constitui e o CLIA, comoobjeto geográfico que é, não deixa de expressaresse h ibr idismo. Qualquer tentat iva deseparação entre conteúdo técnico e conteúdonormativo não pode ser, senão um esforçometodológico abstrato para o entendimento dacomplexidade de nosso objeto de estudo.Sabemos que o espaço geográfico é construídopor meio de trabalho humano e, assim, em cadaum de seus elementos técnica e norma existem– dialeticamente diluídas e imbricadas – desdeo momento de sua criação, isto é, de quando oprojeto humano é realizado materialmente.

O conteúdo técnico de um objetogeográfico pode ser identificado a partir de suacomposição material, isto é, da cristalização dotrabalho dispensado para sua real ização.Podemos, aqui , aproximá-lo ao concei tomarxista de trabalho morto. Entretanto, não seesgota aí . Toda a possibi l idade de açãoviabilizada por essa base material e, portanto,capaz de art iculá- la em s istema para asat isfação de uma necessidade – e aíencontramos um sistema técnico – soma-sequantitativa e qualitativamente ao seu conteúdotécnico. Resolvemos tratar o CLIA como criadorde fluidez territorial (SANTOS E SILVEIRA, 2001)

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sempre que, através de seu conteúdo técnico,tende a tornar fluido o fluxo da mercadoria.

O conteúdo normativo intrínseco aosobjetos geográficos é dado pelas funções às quaisforam destinados a cumprir e àquelas que, defato, cumprem. Representa, então, asintencionalidades presentes no projeto e no objetoe estas, por serem informações – conteúdoimaterial – exigem outra estratégia para suaidentificação. As normas podem ser formais,quando estipuladas dentro de um quadro jurídicopré-estabelecido, ou não formais, quando existemsomente nas prát icas sociais, políticas eeconômicas. O CLIA, como recinto devidamenteregulamentado nos âmbitos jurídicos, estárecheado de normas formais, mas também, comoqualquer outro objeto geográfico, é, em parte,regido por infinitas normatizações – não formais– estabelecidas pelo seu uso. Enxergamos o CLIA,então, como criador de porosidade territorial(ARROYO, 2001) a partir do momento em que seintegra à complexidade do sistema nacional deaduanas e à sua base normativa, aumentando aspossibi l idades de internacionalização demercadorias.

A seguir, detalhamos nosso entendimentoacerca do CLIA como expressão de fluidez eporosidade territoriais, explicando como seuconteúdo técnico se configura em potenciais defluidez e, ao mesmo tempo, como seu conteúdonormativo aumenta a porosidade do nossoterritório.

Procedimentos no CLIA como fluidezterritorial (aspecto operacional)

A f luidez terr itor ial não pode serconsiderada como um dado absoluto ou como umatributo do território existente per se, porqueestamos l idando com equipamentos deinfraestrutura fixados em espaço nacional, istoé, apenas um dos componentes necessários paraa realização da mesma (SANTOS, 2001). O outrocomponente é o próprio fluxo, no nosso caso, damercadoria que, não existindo, transforma oprojeto em capacidade ociosa e o invalida comoprojeto de desenvolvimento. Portanto, devemos

enxergar a fluidez territorial somente nos âmbitosdo uso do território (SANTOS, 1994). O territóriousado nos dá os instrumentos necessários para arelativização dos objetos geográficos e suacontextualização política, social e econômica. Aexistência dos fixos só pode ser explicada peloentendimento dos fluxos e estes nada mais sãodo que a expressão do uso do espaço realizadopelos diferentes sujeitos sociais.

Assim, a fluidez territorial criada peloconteúdo técnico existente no CLIA é potencial esó passa a ser efetiva quando usada por agentessociais específicos. A identificação destes édecisiva para o entendimento da importância dosCLIAs nas diversas escalas espaciais, já que indicaa parcela da sociedade incluída em cada umdestes projetos. Os agentes sociais que utilizamos serviços oferecidos pelos CLIAs – seus clientes– buscam a fluidez e, para isso, gozam de toda adensidade técnica presente nesses recintos, queé bastante diferente daquela encontrada nasestruturas portuárias e aeroportuárias. O fato deCLIAs realizarem operações de despachoaduaneiro, assim como o fazem portos eaeroportos, não implica presença de conteúdostécnicos semelhantes para as duas categorias derecintos. Inclusive, este mesmo fato cria umaconcorrência entre zona primária e zonasecundária que conduz os CLIAs a umadiferenciação técnica no intuito de atração declientes. A densidade técnica presente nessesrecintos de zona secundária é sensivelmentemaior e mais sofisticada do que aquela presentenas tradicionais zonas primárias.

Isso acontece porque, diferentemente dosrecintos de zona secundária, os portos eaeroportos são os responsáveis pelo primeirocontato f ísico na chegada da mercadoriaimportada e pelo último na saída da mercadoriaexportada, caracterizando sua função precípuade carga e descarga (para comércio exterior),exclusiva da zona primária. Os recintos de zonasecundária, por não terem de lidar com essadesgastante tarefa, concentram esforços nosserviços de movimentação e armazenamento dasmercadorias, especializando-se e aumentando aqualidade destes. Portanto, a diferenciação das

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funções entre zona primária e secundária é ogrande motivo para a existência de maioresdensidades técnicas no tratamento demercadorias nos CLIAs.

Organização interna e equipamentosmodernos são os pr incipais fatores desuperioridade técnica dos CLIAs em relação aosterminais de zona primária. Por essaespecialização no tratamento da mercadoria, osCLIAs desenvolveram sistemas de organização deestoque e movimentação de mercadoriasatrelados à aquisição de equipamentos(guindastes, empilhadeiras, prateleiras, e pallets)que dotam seus serviços de uma racionalidadeimportante para a competitividade do mercado.Os equipamentos de controle e fiscalização demercadorias, como balanças e esteiras, tambémfazem parte da modernidade técnica do recinto.A divisão interna dos pátios e armazéns revela,também, o grau de especialização no tratamentode certos tipos de mercadorias, como aquelas quenecessitam de refrigeração (disponibilidade degeradores de energia ou câmeras frigoríficas) ouaquelas que exigem isolamento e cuidados maisatenciosos (produtos químicos). Sistemasintegrados de segurança e vigilância encerram acomposição técnica desses recintos.

Esse conjunto de qualidades técnicasaplicado à movimentação e armazenamento dasmercadorias é o grande fator compensatório paraperda econômica que importadores eexportadores têm ao criarem um elo adicional emseus circuitos espaciais produtivos quando optampela utilização dos CLIAs. O ganho que asempresas têm com a qualidade dos serviçosprestados torna irrisório o transtorno envolvidono desvio do trajeto da carga para o CLIA.

CLIA como poro territorial (aspectonormativo)

O território brasileiro, como já sugeridoem item anterior, também se apresenta como umconjunto indissociável de técnicas e normas, istoé, se constitui por uma base técnica e uma basenormativa que condicionam e, ao mesmo tempo,produzem relações sociais, econômicas e políticas

(SANTOS, 1978). Só nestes termos podemosconsiderar o espaço nacional como uma instânciasocial que regula a sociedade e ao mesmo tempoa expressa. A base normativa, por excelência, éaquela que estabelece explícita ou implicitamenteo funcionamento das práticas sociais, econômicase políticas e é formada pelo conjunto de leis,decretos, acordos, regras, regulamentos –normas formais – e de costumes, tradições esolidariedades orgânicas – normas não formais.Entretanto, mesmo a materialidade do território,isto é, sua densidade técnica, torna-se normaquando, por sua durabilidade, induz ações.Encontramos aí, um ponto onde norma e técnicase confundem. As formas são construçõesmateriais que, de diferentes maneiras, favorecemou dificultam os novos fenômenos e processos aserem criados no espaço, reforçando a ideia doespaço geográfico ativo.

O CLIA apresenta todas essas variantesda base normativa do território, as formais, asnão formais e eles como materialidade, porém,sua condição jurídica oficial, isto é, aquelarepresentada pelo seu enquadramento normativona legislação de Estado, é a mais relevante parao entendimento da essência de sua existência.Como categoria ou modalidade de aduana,contém, na gênese de sua idealização, umafunção normativa maior e muito bem definida,que o diferencia do conjunto maior de objetosgeográficos. Seu papel alfandegário exige doEstado a produção de um vasto arcabouço de leise medidas legais para seu funcionamento. Emoutras palavras, o fato do CLIA ter a capacidadee a autoridade para receber mercadoriasestrangeiras e nacionalizá-las e para recebermercadorias nacionais e despachá-las para oexterior, torna-o de extrema importância para oexercício da soberania nacional e para areafirmação do Estado-Nação como tal. Pordesempenhar serviços de comércio exterior, oCLIA é alvo de legislação específica e estratégica.

Entendendo o território nacional comouma porção do espaço sobre a qual incide umsistema de poder const itucionalmenteestabelecido e, por isso mesmo, com fronteirassuficientemente claras que o separam de outrosterritórios, podemos ident ificar, como seu

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atributo, uma porosidade territorial (ARROYO,2001). Ela constitui-se como um sistema depontos – pequenas áreas – para os quais sãodirecionados os f luxos internacionais demercadorias, sendo eles expressosconcretamente pelos portos, aeroportos, postosde fronteiras, portos secos, terminaisretroportuários alfandegados, CLIAs. Apesar deapresentar-se como uma topologia de recintosalfandegados, a porosidade territorial explica-semais pela natureza das legislações incidentes emcada um deles e acaba por expressar a capacidadedo território em estabelecer trocas comerciaisinternacionais. Portanto, sua compreensão vaialém da análise da dispersão geográfica de seus“poros” e envolve, também, a regulação destes,revelando seus usos.

Pretendemos entender os CLIAs comoporos territoriais visto que integram o sistemabrasileiro de aduanas e, assim, fazem parte doconjunto de recintos habilitados, e comexclusividade, para realizar as operações dedespacho e desembaraço aduaneiros. O CentroLogístico Industrial e Aduaneiro é uma modalidadede recinto, criado em 2006, que representa a maisrecente versão de aduana, encerrando (até omomento) uma sucessão de legislaçõesreferentes à regulamentação das atividadesaduaneiras e, portanto, possui especificaçõesnormativas que o diferenciam dos restantes. Éimportante, então, reafirmar a importância de seuconteúdo normativo, que o estabelece como pontodo território com função político-econômicaespecíf ica: locus da nacionalização einternacionalização de mercadorias.

A lógica da localização

Por serem resultado de uma medidaprovisória que teve vigência de aproximadamenteseis meses – da data de sua publicação (agostode 2006) à data de seu arquivamento (dezembrode 2006) – os CLIAs existentes não apresentamestratégias comuns de localização. Mesmo porquetodos eles tornaram-se CLIAs por meio datransformação das concessões de seus portossecos em regimes permanentes de CLIA. Não há

nenhum CLIA criado através do processo deoutorga de licença a um armazém projetado paratal fim. Em outras palavras, a pouca duração daMP não deixou tempo para o surgimento de novosCLIAs pela demanda do mercado, como previa otexto da lei, impossibilitando a consolidação deum padrão específico de localização.

Entretanto, sendo eles projetos derivadosdos portos secos, suas estratégias locacionaiscoincidiriam com aquelas dos portos secos.Podemos afirmar isso porque o procedimento deinstalação de um porto seco dependia da aberturade licitação pela Receita Federal, e esta, baseava-se no cr itér io da demanda pelos serviçosaduaneiros. O que mudava com os CLIAs era queessa demanda não era avaliada pela ReceitaFederal, mas pela própria iniciativa privada, quepediria à primeira licença de alfandegamento.Assim, estamos falando sempre da demandapelos serviços aduaneiros como critérios delocalização de portos secos e CLIAs.

De acordo com trabalho realizado porRafael Pacchiega (2009) existem no Brasil 62portos secos, sendo que quase metade deles selocaliza no estado de São Paulo. O mapa a seguir,ret irado do mesmo trabalho, indica essaslocalizações e inclui os cinco CLIAs existenteshoje.

De acordo com trabalho real izadoanteriormente, em referência à RegiãoConcentrada, “explica-se a concentração deportos secos nessa área, pois a região (Sul eSudeste), recebendo historicamente os vetoresde modernização, torna-se, hoje, meio técnico-científico e informacional” (PENHA, 2005: 27), istoé, espaço de densidades técnicas e políticasfuncionais às atuações de grandes empresas docircuito superior da economia (SANTOS, 1979).É nessas áreas que existe a demanda pelosserviços aduaneiros dos portos secos. SegundoPacchiega (2009), a presença desses recintos emlugares mais afastados da região concentradaexplica-se pela formação de lobbys por políticose empresários regionais para a abertura delicitações em suas áreas de atuação. Nota-se,também, um papel importante do aglomeradometropolitano10 de São Paulo no abrigo dos portos

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secos, sugerindo exatamente a presença decircuitos espaciais produtivos vinculados aocomércio internacional nessa área.

O objeto de estudo do presente trabalho,isto é, os cinco Centros Logísticos Industriais eAduaneiros presentes no estado de São Pauloconstituem situação de mais complexa análise.O fato de todos eles atuarem anteriormente comoportos secos desloca as razões locacionais paraperíodo anterior ao da atuação como CLIAs,fazendo com que a análise do mapa dos CLIAs

no estado de São Paulo deva ser realizada commuita cautela. Dado mais interessante é quetodos eles são armazéns controlados por grandesgrupos empresariais do setor de armazéns gerais.Grupos de antiga tradição que acumularamexperiência nas áreas de transporte,armazenamento, despacho aduaneiro e logísticaintegrada, isto é, representam grandes capitaise a maior parte de suas atividades está ligada aocircuito superior da economia, já que o comércioexterior exige das empresas grande quantidadede capital e mercados expandidos, característicos

Fonte: PACCHIEGA, 2009

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OS CLIAS NO ESTADO DE SÃO PAULO

de grandes empresas exportadoras eimportadoras. Desse modo, a maioria dosarmazéns que hoje são CLIAs já existiam desdea década de 1980, e portanto, as lógicas desuas local izações responderam a fatoresexistentes naquele período.

Os quatro CLIAs que se localizam nasmargens do porto de Santos ali estão porqueatuavam antigamente como Terminais Retro-Portuários e foram sendo alfandegados etransformados em Estações Aduaneiras doInterior e CLIAs. Como são parte de grandesempresas do mercado de armazéns gerais,

tendo na zona portuária seu foco de atividades,esses CLIAs são formas geográficas (SANTOS,1978) que atravessaram décadas adaptando-se a novas atribuições exigidas pelo aumentoconstante dos f luxos internacionais demercadoria. Portanto, após surgirem comoterminais retroportuários, foram alfandegadose, sucessivamente, fizeram parte do processode interiorização das aduanas (PENHA, 2005)quando passaram a funcionar como EADIs e,agora, transformaram-se em CLIAs.

Essa sucessão de transformações dosrecintos em questão nos deixa claro que suas

Elaboração própria baseada nos dados da Secretaria da Receita Federal (2009)

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instalações se mantiveram nos mesmos locaisonde surgiram – cerca de três décadas atrás –entretanto, seus atributos e funções foram semodif i cando ao longo do tempo. Estãoconcentrados na área portuária de Santosporque ela representa uma especializaçãoterritorial produtiva (SANTOS e SILVEIRA, 2001)desde o século XIX e, como tal, recebeu ao longodo tempo vetores de modernizações –densidades técnicas e normativas – no sentidode aumentar essa especialização. Os CLIAs sãoelementos que, somados a uma infinidade deoutros, dotam os arredores do porto de Santosde uma especialização nos procedimentos demovimentação, armazenamento, despacho elogística, suficientes para sua autorreproduçãoe seu aprofundamento.

O CLIA presente em Suzano tambémtem sua localização explicada por processospresentes já no início do período técnico-cient íf ico e informacional. Atuando comoarmazém de cargas, já na década de 1970, teve,como os outros, passagens gradativas até suatransformação em CLIA. Pôde operar comoDepósito Alfandegado Público, depois comoEstação Aduaneira do Interior e, agora, é CLIA.A empresa que o administra, CRAGEA, desde oinício de suas atividades sempre teve comoclientes grandes indústrias do ABC paulista,região metropolitana de São Paulo e Vale doParaíba, o que explica sua localização.

Como já dito, os verdadeiros motivos dacriação dos CLIAs e, mais especificamente, ofato de serem estes cinco os estabelecimentosque receberam as licenças oficiais por parte daReceita Federal, são de difícil percepção, poisconfundem fatores políticos e econômicos. Osfatores econômicos são os mais claros eexplícitos e podem ser sintetizados no esforço

1 François Chesnais (1996), em seus estudos sobrea mundialização do capital, aponta comoconsequência direta do aumento dosInvestimentos Externos Diretos (IED) o aumento

de l ibera l ização do mercado de recintosal fandegados no intu ito de responderprontamente ao aumento da demanda dosserviços especializados de despacho aduaneirodos últimos anos. Inclusive, estes foram osmotivos alegados no documento de Exposiçãode Motivos para a MP 320. Entretanto, existemos fatores políticos, sempre mais dissimulados,mas de alguma forma apreendidos.

As empresas Deicmar S/A11 e CRAGEA,concessionárias de portos secos antes dapassagem ao regime de CLIA, tinham contratosde concessão na iminência de término logo nomomento da proposta de criação dos CLIAs. Amedida provisória 320 só conseguiu sair por meioda pressão política dessas duas grandes empresassomada àquela das outras duas (Armazéns GeraisColumbia e Grupo Mesquita). Não é a toa queapenas esses grandes grupos do mercado dearmazéns gerais conseguiram a licença paraoperar como CLIAs. Entendemos, então, que acriação dos CLIAs e a localização atual delesrespondem a fatores econômicos claros e fatorespolíticos parcialmente esclarecidos.

Apesar do arquivamento da medidaprovisória em dezembro de 2006, o debatesobre a l iberal ização do setor, isto é, aflexibilização do modelo jurídico de criação denovas estações aduaneiras em zona secundária,está em pleno movimento, seja entre asempresas de armazéns gerais e suasassociações representativas, seja entre estase seus representantes políticos nas diversasinstâncias do poder público. Desse modo,vivemos ainda um período de adequação doterr itór io, sobretudo em seu s istema deaduanas, aos crescentes fluxos de mercadoriasinternacionais, e a medida provisória 320 éapenas mais uma mostra deste movimento.

Notas

do fluxo internacional de mercadorias entreestabelecimentos de uma mesma multinacional,isto é, exportações e importações realizadasentre filiais localizadas em países diferentes.

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2 De acordo com o Decreto-Lei no 37 de 1966: Zonaprimária - compreendendo as faixas internas deportos e aeroportos, recintos alfandegados elocais habilitados nas fronteiras terrestres, bemcomo outras áreas nos quais se efetuemoperações de carga e descarga de mercadoria,ou embarque e desembarque de passageiros,procedentes do exterior ou a ele destinados; Zonasecundária - compreendendo a parte restante doterritório nacional, nela incluídos as águasterritoriais e o espaço aéreo correspondente.

3 Exposição de Motivos (EM) n° 00158/2005.4 O despacho aduaneiro de mercadorias é o

procedimento mediante o qual é verificada aexatidão dos dados declarados pelo importador/exportador em relação às mercadoriasimportadas/exportadas, aos documentosapresentados e à legislação específica, comvistas ao seu desembaraço aduaneiro –Secretaria da Receita Federal.

5 Necessário para o transporte de mercadoriasimportadas ou despachadas à exportação entredois recintos alfandegados, realizado porempresa habilitada pela Receita Federal.

6 Estabelecido com o Decreto n° 1.910, de 21 demaio de 1996, já para os portos secos.

7 Estabelecido pela Instrução Normativa SRF n° 79/2001 para zona primária e secundária.

8 O Decreto n° 1.910, de 21 de maio de 1996,normatiza as atividades realizadas por EstaçõesAduaneiras do Interior (EADI).

9 Medida provisória n° 320, de 24 de agosto de 2006.Dispõe sobre a movimentação e armazenagemde mercadorias importadas ou despachadas paraexportação, o alfandegamento de locais erecintos, a licença para explorar serviços demovimentação e armazenagem de mercadoriasem Centro Logístico e Industrial Aduaneiro,altera a legislação aduaneira e dá outrasprovidências.

10 O ag lomerado met ropo l i t ano é umaregionalização feita por Sandra Lencioni (2003)que abrange a Região Metropolitana de SãoPau lo e seu entorno, num ra io deaproximadamente 250 km.

11 Na data de 13 de dezembro de 2006, o jornal“Folha de S. Paulo” publicou artigo que reveloua doação de R$10.000 por parte da empresaDeicmar S/A à campanha eleitoral de Lula,prática ilegal para empresas concessionáriasde serviços públicos, sugerindo troca defavores entre a empresa e o novo governo.

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Trabalho enviado em outubro de 2009

Trabalho aceito em dezembro de 2009