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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA – UFU CENTRO DE ENSINO, PESQUISA, EXTENSÃO E ATENDIMENTO EM EDUCAÇÃO ESPECIAL – CEPAE I CONGRESSO NACIONAL DE LIBRAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA I CONALIBRAS-UFU ISSN 2447-4959 Realização: OS ATORES PRESENTES NO PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO DE ALUNOS SURDOS EM ESCOLAS COMUNS: RELAÇÕES INTERCULTURAIS EIXO 2: Processos de Escolarização dos Surdos / 2.1: Educação Inclusiva / Bilíngue Davi, VIEIRA MEDEIROS, UFJF 1 Carla, COUTO DE PAULA SILVÉRIO, UFJF 2 Resumo: Devido à presença de alunos surdos em escolas comuns, tem sido possível perceber, nos últimos anos, uma (trans)formação da dinâmica existente tanto na sala de aula quanto nos diversos ambientes desse contexto: por exemplo, de um lado, estão os professores, os quais precisam lidar com duas línguas de/em modalidades distintas, o português, oral-auditivo e escrito, e a Língua Brasileira de Sinais (Libras), espaço- visual; do outro, o Intérprete Educacional (IE), aquele que atua como profissional intérprete de língua de sinais na educação, o qual necessita conhecer as línguas em questão, bem como as culturas inerentes a elas, para atuar na transposição dos saberes envolvidos nesse processo, pois ao interpretar de uma língua para a outra, ele está, na verdade, interpretando de uma cultura para outra (LACERDA, 2005, 2009; LEITE, 2005; QUADROS, 2004). Os principais atores presentes no processo de escolarização de alunos surdos em escolas comuns – os alunos surdos e ouvintes, os professores e o IE – junto à língua, trazem consigo uma bagagem cultural, dialogam com/no ambiente educacional e (re)significam as relações existentes neste espaço, o que permite o entrelaçar das diferenças culturais, conferindo, então, certo caráter intercultural ao ambiente. Acreditamos, por isso, ser relevante discutir acerca da educação intercultural, bem como refletir mais a fundo sobre os papéis exercidos pelos diversos atores, na escolarização de surdos em escolas comuns, e sobre a forma com a qual essa diversidade cultural vem caracterizando esse processo de ensino. Para isso, partimos, neste trabalho, de Akkari (2010), o qual discute a educação cultural sob a perspectiva da diversidade cultural no ambiento escolar e sob o respeito às várias identidades culturais existentes nesse ambiente. Palavras-chave: Escolarização de Surdos; Relações Interculturais; Diversidade Cultural. 1 Graduando do curso de Letras da Faculdade de Letras (Fale) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Integrante do Grupo de Estudos Linguísticos da Libras (Gelli), da UFJF, do projeto interinstitucional Libras e Saúde: acessibilidade no atendimento clínico (UFJF/UFSC) e do projeto de pesquisa O Processo Interpretativo Interlinguístico- Intermodal da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Tradutor-Intérprete de Língua de Sinais Brasileira- Português na UFJF. Endereço eletrônico: [email protected] . 2 Mestre em Gestão e Avaliação da Educação Pública, pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); Pós-graduada em Linguagem com Enfoque no Âmbito Educacional, pelo Centro de Especialização em Fonoaudiologia Clínica de São Paulo (CEFAC); graduada em Fonoaudiologia, pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF). Professora da Faculdade de Letras (Fale) da UFJF, com atuação no curso de Letras-Libras. Endereço eletrônico: [email protected] .

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA – UFU CENTRO DE ENSINO, PESQUISA, EXTENSÃO E ATENDIMENTO EM EDUCAÇÃO ESPECIAL – CEPAE I CONGRESSO NACIONAL DE LIBRAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

I CONALIBRAS-UFU

ISSN 2447-4959

Realização:

OS ATORES PRESENTES NO PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO DE ALUNOS SURDOS EM ESCOLAS COMUNS: RELAÇÕES INTERCULTURAIS

EIXO 2: Processos de Escolarização dos Surdos / 2.1: Educação Inclusiva / Bilíngue

Davi, VIEIRA MEDEIROS, UFJF1 Carla, COUTO DE PAULA SILVÉRIO, UFJF2

Resumo: Devido à presença de alunos surdos em escolas comuns, tem sido possível perceber, nos últimos anos, uma (trans)formação da dinâmica existente tanto na sala de aula quanto nos diversos ambientes desse contexto: por exemplo, de um lado, estão os professores, os quais precisam lidar com duas línguas de/em modalidades distintas, o português, oral-auditivo e escrito, e a Língua Brasileira de Sinais (Libras), espaço-visual; do outro, o Intérprete Educacional (IE), aquele que atua como profissional intérprete de língua de sinais na educação, o qual necessita conhecer as línguas em questão, bem como as culturas inerentes a elas, para atuar na transposição dos saberes envolvidos nesse processo, pois ao interpretar de uma língua para a outra, ele está, na verdade, interpretando de uma cultura para outra (LACERDA, 2005, 2009; LEITE, 2005; QUADROS, 2004). Os principais atores presentes no processo de escolarização de alunos surdos em escolas comuns – os alunos surdos e ouvintes, os professores e o IE – junto à língua, trazem consigo uma bagagem cultural, dialogam com/no ambiente educacional e (re)significam as relações existentes neste espaço, o que permite o entrelaçar das diferenças culturais, conferindo, então, certo caráter intercultural ao ambiente. Acreditamos, por isso, ser relevante discutir acerca da educação intercultural, bem como refletir mais a fundo sobre os papéis exercidos pelos diversos atores, na escolarização de surdos em escolas comuns, e sobre a forma com a qual essa diversidade cultural vem caracterizando esse processo de ensino. Para isso, partimos, neste trabalho, de Akkari (2010), o qual discute a educação cultural sob a perspectiva da diversidade cultural no ambiento escolar e sob o respeito às várias identidades culturais existentes nesse ambiente.

Palavras-chave: Escolarização de Surdos; Relações Interculturais; Diversidade Cultural.

1 Graduando do curso de Letras da Faculdade de Letras (Fale) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Integrante do Grupo de Estudos Linguísticos da Libras (Gelli), da UFJF, do projeto interinstitucional Libras e Saúde: acessibilidade no atendimento clínico (UFJF/UFSC) e do projeto de pesquisa O Processo Interpretativo Interlinguístico-Intermodal da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Tradutor-Intérprete de Língua de Sinais Brasileira-Português na UFJF. Endereço eletrônico: [email protected]. 2 Mestre em Gestão e Avaliação da Educação Pública, pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); Pós-graduada em Linguagem com Enfoque no Âmbito Educacional, pelo Centro de Especialização em Fonoaudiologia Clínica de São Paulo (CEFAC); graduada em Fonoaudiologia, pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF). Professora da Faculdade de Letras (Fale) da UFJF, com atuação no curso de Letras-Libras. Endereço eletrônico: [email protected].

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Introdução

Desde o final do século XVIII, os termos kultur e civilization, de origens germânica e latina,

respectivamente, eram usados para se fazer menção aos aspectos espirituais de determinada

comunidade e às realizações materiais de determinado povo. É, contudo, devido ao aparecimento do

termo inglês culture que uma noção mais complexa de cultura vem a ser estabelecida: ela passa a

ser vista como um sistema de representações particulares à espécie humana, conferindo significado,

sentido e coerência às experiências individuais e coletivas (AKKARI, 2010) e a abranger “todas as

possibilidades de realização humana, além de marcar fortemente o caráter de aprendizado da cultura

em oposição à ideia de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos.” (LARAIA, 1986,

p. 25 apud DAMÁZIO, 2008, p. 65).

No final do século XX, mais precisamente a partir da década de 1980, as questões do campo

das Ciências Sociais e do campo das Humanidades concorrem ao domínio transdisciplinar dos

estudos culturais, visando à concepção de cultura como sendo um fenômeno aliado à diferenciação

e à hierarquização, não só no contexto das sociedades nacionais, mas, também, no contexto dos

cenários locais ou dos espaços transnacionais. Então, torna-se a cultura não apenas um conceito

estratégico central para a definição de identidades e de alteridades no mundo contemporâneo, mas,

também, um campo de lutas e de contradições (DAMÁZIO, 2008; SPIVAK, 1999 apud SANTOS,

NUNES, 2004); enquanto um conceito estratégico, a concepção de cultura contribui para a

derivação de diversos “ismos”, os quais passam a ser amplamente empregados e debatidos na

contemporaneidade, como os termos multiculturalismo e interculturalismo3.

Com a globalização, como aponta Giardinetto (2000), a diversidade étnica presente nos

países se tornou um elemento de conflito entre países (e também no interior deles), principalmente,

pela redefinição dos territórios, permitida devido à mundialização da economia. Ademais, percebe-

3 Os termos multiculturalismo e interculturalismo (e, por conseguinte, intercultural e interculturalidade e multicultural e multiculturalidade) são neste trabalho considerados distintos: enquanto o primeiro aponta para a realidade da presença de diversas culturas no seio de uma mesma sociedade e visa manter a assimetria do poder entre elas sem, no entanto, trazer à tona o marco estabelecido pela ordem cultural hegemônica, o segundo chama a atenção para a comunicação e para a interação entre elas existentes, procurando não somente a mera coexistência entre as distintas culturas em um mesmo espaço, mas sim, certa qualidade interativa das relações delas entre si (FORNET-BETANCOURT, 2007 apud DANÁSIO, 2008). Em outras palavras, enquanto o multiculturalismo denota a multiplicidade de culturas sem fazer referência à possível relação entre elas, o interculturalismo diz respeito à relação entre elas existente.

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se uma inflamação de movimentos xenófobos4, racistas e de intolerância contra as minorias étnica5,

reflexo dos movimentos migratórios de países nos quais a economia se encontrava enfraquecida

para países nos quais ela se encontrava mais desenvolvida. Nesse entretempo, os conflitos de grande

relevância se tornaram item de preocupação de potências industrializadas, e a temática

interculturalidade passou a ser um elemento de reflexão consideravelmente relevante, estendendo-se

às diversas esferas da estrutura social, como, por exemplo, a escola.

Desde a sua constituição, é possível perceber nas escolas a constante prevalência de

determinados grupos sociais em detrimento de outros, o que caracteriza certo etnocentrismo, em

relação a alguns desses grupos: busca-se, assim, a homogeneização cultural e respeitam-se,

minimamente, as culturas minoritárias. Com isso, ainda que uma das funções da escola seja a de

emancipação, o que se percebe, muitas vezes, é que esta só é exercida em favor de uma parcela dos

estudantes, na maioria das vezes, aqueles pertencentes a grupos restritos (AKKARI, 2010).

Assim como a sociedade contemporânea, as escolas abrangem uma grande diversidade

cultural (há, aliás, possíveis explicações para esse fato, uma delas a democratização acontecida na

década de 1980, em toda a América Latina6, que culminou na Constituição Federal Brasileira de

1998, por meio da qual o Estado se viu obrigado a oferecer educação pública e de qualidade para

toda a população, em idade de escolarização). A educação pública deixou de ser planejada e

realizada apenas para as classes mais favorecidas e a escola passou a incluir, principalmente no

Ensino Fundamental (todavia, de maneira precária), grupos que, até então, eram excluídos do

processo de escolarização, deixando o espaço escolar de ter alunos homogêneos para passar a ter

uma heterogeneidade de alunos oriundos das famílias mais pobres, com precedentes de

desescolarização. A partir das práticas culturais e de sistemas de representações, como a língua, por

exemplo, os grupos sociais vão surgindo e se caracterizando. E a escola, grande reprodutora7,

contribui significativamente para isso.

4 O conceito de xenofobia é usado para se referir à predisposição de um sujeito ou de um grupo à aversão ou à rejeição de indivíduos que apresentam padrões culturais e práticas sociais distintos dos seus, que, por isso, são vistos como estranhos e indesejáveis (ROCHA-TRINDADE, 1955 apud GIARDINETTO, 2000). 5 Conforme explica Giardinetto (2000), ao citar Rocha-Trindade (1955), o conceito em questão denota, para além do sentido numérico, que a etnia considerada é claramente notada, quer seja pelas suas características físicas, quer seja pelas suas caraterísticas sociais e/ou comportamentais. Além disso, o autor chama a atenção para o fato de ela apresentar-se em uma posição de desigualdade no que tange a termos políticos e econômicos frente à sociedade majoritária. 6 Vale mencionar, também, dois outros fatores relevantes na justificação da diversidade cultural presente no âmbito educacional: (i) a descolonização e a (ii) internalização das migrações. 7 Segundo Burgos (2012, p. 1016), o sociólogo Pierre Bourdieu aplicou o conceito de sociologia da reprodução, principalmente, para explicar a forma pela qual instituições sociais, como escolas, reproduzem as ideias culturais que legitimam a posição privilegiada das classes dominantes dentro da sociedade.

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Metodologia

Neste trabalho, partimos de Akkari (2010), o qual discute a educação cultural sob a

perspectiva da diversidade cultural no ambiento escolar e sob o respeito às várias identidades

culturais existentes nesse ambiente. Nesse sentido, consideramos que os alunos surdos e ouvintes,

os professores e o IE, os quais representam os principais atores presentes no processo de

escolarização de alunos surdos em escolas comuns, trazem consigo uma bagagem cultural,

dialogam com/no ambiente educacional, bem como (re)significam as relações existentes nesse

espaço, o que permite o entrelaçar das diferenças culturais, conferindo certo caráter intercultural ao

ambiente.

Acreditamos ser relevante discutir sobre a educação intercultural, além de refletir mais a

fundo sobre os papéis exercidos pelos diversos atores na escolarização de surdos em escolas

comuns e sobre a forma com a qual essa diversidade cultural vem caracterizando esse processo de

ensino. Para viabilizarmos essa reflexão, colocaremos em evidência, neste trabalho, a educação

atrelada ao viés da inclusão, destinada às pessoas surdas, em escolas comuns.

Discussão

A educação de surdos começou a ser repensada a partir da Declaração de Salamanca,

produzida na Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais: Acesso e Qualidade,

em 1994. Após a elaboração desse documento, a orientação passou a ser a inserção dos surdos em

escolas comuns, públicas ou privadas, e não em escolas especiais. A esses indivíduos, dever-se-ia

oferecer, obrigatoriamente, a presença de intérpretes de língua de sinais, língua natural desses

surdos, a fim de que as suas especificidades linguístico-comunicativas, no ambiente educacional,

fossem atendidas (LEITE, 2005).

Após a saída dos surdos das escolas especiais e, por conseguinte, a sua chegada às escolas

comuns, percebeu-se a existência de uma nova dinâmica de ensino, considerando as especificidades

linguístico-culturais desses alunos: o espaço da sala de aula, bem como das demais dependências da

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escola, recebeu um novo ator com o objetivo de promover o acesso à informação: o Intérprete

Educacional (IE) (LACERDA, 2005, 2009; LEITE, 2005; QUADROS, 2004).

A chegada do IE no espaço escolar gerou uma séria e problemática questão, por muitas

pessoas considerarem que apenas a inserção desse profissional na escola comum consistisse na

garantia de um atendimento diferenciado e eficiente ao aluno surdo e/ou que a transposição de

informações entre a língua oral e a língua de sinais fosse a única questão a se ater na escolarização

de surdos nessas escolas. As pesquisas de Lacerda (2009) evidenciaram que a presença do IE não

consiste na garantia do pleno estabelecimento de relações sociointeracionistas entre alunos surdos e

alunos ouvintes, alunos surdos e professores, e/ou entre os próprios alunos surdos. Segundo a

autora, algumas vezes, o aluno surdo restringe as suas relações interacionais na sala de aula ao IE,

pelo fato de ele ser o único ator que conhece a sua língua, isolando-se, assim, dos demais atores

presentes nesse mesmo ambiente.

Durkein (1955) citado por Sirota (1994) concebe a sala de aula como sendo uma pequena

sociedade, um lugar passível de ser analisado e, ainda, um lugar de representações sociais. Assim,

considerando o processo educativo como um processo de conhecimento que possui uma base de

cunho social, histórico e, também, cultural, além da bagagem cognitiva dos alunos, as

características das interações desenvolvidas entre os sujeitos, bem como do contexto social e

cultural de que eles partilham, estão presentes, no contexto instituído da sala de aula. No caso

específico das salas de aulas com alunos surdos, questões, antes, de outras ordens, como culturais,

pedagógicas e identitárias também se fazem presentes, pois se trata de uma minoria8.

Outro fator importante a ser considerado na sala de aula inclusiva com a presença de alunos

surdos e do IE é a existência de duas línguas de modalidades diferentes, o que permite a ocorrência

simultânea de tais línguas no mesmo espaço físico (por exemplo, nos momentos em que as falas do

professor e/ou dos alunos ouvintes são simultaneamente interpretadas aos alunos surdos e vice-

versa). Essa simultaneidade pode trazer sérias implicações: Williams e Bolster (1999) citado por

8 A cultura surda é explicada por Campos (2008) por um viés histórico, comportamental, normativo, funcional, mental, estrutural e simbólico. Histórico, porque, mesmo que a língua de sinais mude com o tempo (continuando, no entanto, sendo uma língua espaço-visual), os surdos continuam usando-a; comportamental, pois esses sujeitos compartilham as suas experiências, se encontrando em espaços culturais, como associações de surdos, escolas de surdos, e outros, para compartilhar ideias, sentimentos, conquistas, etc.; normativo, ao passo que se configura a língua de sinais como valor cultural, como importante meio de comunicação que possibilita ao surdo expressar-se de forma mais completa e acessível; funcional, por priorizar-se a língua de sinais e a cultura surda, bem como a relação deste sujeito com o seu entorno; mental, porque os surdos têm tentado mostrar à sociedade a não inferioridade da língua de sinais e o seu caráter linguístico; estrutural, pelo fato de os surdos participarem da experiência visual e os ouvintes participarem da experiência auditiva e oral; e, por fim, simbólico, pois há uma união política, por parte dos surdos, objetivando manter a língua de sinais e preservar seus espaços culturais.

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Lacerda e Mantelatto (2000), em suas pesquisas sobre a formação de intérpretes, relatam, por

exemplo, a possibilidade da ocorrência de uma participação diferenciada do aluno surdo quando o

professor pergunta algo aos alunos – o IE, ao começar a ouvir a questão feita pelo professor,

permanecerá um tempo parado sem produzir nenhum sinal; com esse “tempo de atraso”9, antes de o

IE terminar de interpretar a pergunta, algum aluno ouvinte, possivelmente, já tendo-a ouvido, a

respondeu. Além disso, ao ocorrerem atividades que exijam, ao mesmo tempo, ver e ouvir, o aluno

surdo provavelmente perderá parte da tarefa.

Outra implicação decorrente da modalidade espaço-visual da língua de sinais diz respeito à

disposição da sala de aula: por ser uma língua espacial e visual, como já mencionado acima,

cadeiras enfileiradas dificultam ou, até mesmo, impossibilitam o acesso e a interação comunicativa

dos alunos surdos10.

Contudo, além dos aspectos discursivos que devem ser considerados na sala de aula em

questão, um fator também importante é como se estabelecem as regras culturais de convivência que,

segundo Goffman (2002), são co-construídas pelos presentes e definem como os sujeitos precisam

se comportar em um grupo. No contexto em questão, então, tais regras são co-construídas e co-

relacionadas nas interações sociais desenvolvidas entre (i) alunos surdos, (ii) alunos ouvintes, (iii)

professor e (iv) IE. Este último tem sido visto pelas políticas educacionais promotoras da inclusão e

do aprendizado do aluno surdo como sendo a principal “estratégia” encontrada para solucionar os

impasses que dizem respeito à utilização de diferentes línguas (língua sinalizada e língua oralizada)

e de diferentes culturas (surda e ouvinte), na sala inclusiva. Todavia, embora Lacerda (2009) aponte

para a existência de proveitos no percurso dos surdos, já que eles, de alguma forma, têm acesso

no/ao ambiente escolar, Miranda (2010) chama atenção para o fato de os dados revelarem que,

embora existente no espaço físico, tal inclusão está distante de ser atingida se se considerar o acesso

à informação e ao conhecimento pelo aluno surdo, em relação ao mesmo acesso pelos alunos

ouvintes.

Considerando a noção de cultura proposta no presente trabalho, de forma geral, para que um

professor possa trabalhar com um aluno de cultura diferente da sua, no ambiente escolar, ele

precisa, primeiramente, perceber a existência dessa nova cultura para, então, compreender em que

9 “Tempo de atraso”, neste trabalho, corresponde a uma das possíveis traduções para “lag time”, que consiste no período, logo após o início do áudio do texto fonte, em que o intérprete de língua de sinais permanecerá parado sem produzir nenhum sinal. 10 A crítica, por parte de alguns especialistas, da disposição da sala de aula em fileiras, tem como argumento, segundo Rodrigues (2008) citado por Miranda (2010), o fato de essa organização impedir a interação direta e imediata entre os alunos, já que, carteira atrás de carteira, inviabiliza as trocas conversacionais dos participantes nessa sala de aula.

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ela consiste. Necessita, também, apreender a forma como o próprio aluno a concebe, localizar suas

diferentes características dentro de um contexto dinâmico educacional e combater, dessa forma, a

inclinação que os atores envolvidos nas ações da escola têm em produzir comportamentos

etnocêntricos.

Na escolarização de surdos, podemos perceber, então, um entrelaçamento das diferenças

culturais, o que confere ao ambiente educacional certo caráter intercultural. O professor tem que

lidar, por exemplo, (i) com línguas de modalidades diferentes, uma oral e auditiva e a outra visual e

espacial, (ii) com as bagagens culturais trazidas pelos alunos, tanto surdos quanto ouvintes, que

dialogam com/ nos ambientes coletivos e (re)significam as relações existentes nesses espaços, e,

também, (iii) com o IE que, ao traduzir de uma língua para a outra, está, na verdade, traduzindo de

uma cultura para a outra.

Muitas vezes, no ambiente educacional, o que temos visto é o IE sendo o principal

responsável pelas relações sociointeracionistas dos alunos surdos com os demais atores envolvidos

nesse ambiente, pensando, consequentemente, o professor, não ter responsabilidade e/ou

necessidade de participação em tais relações. Porém, o professor tem papel fundamental na

construção dos saberes de seus alunos, sendo eles ouvintes ou surdos, e na articulação das relações

linguísticas e culturais em questão, na sala de aula.

Geralmente, o professor da sala de aula com alunos surdos constrói suas práticas

educacionais através de suas experiências como ouvinte e o faz para alunos ouvintes. Então, torna-

se extremamente necessário que as práticas pedagógicas sejam (re)pensadas e que o professor

busque capacitação profissional, a fim de possibilitar um espaço socioeducacional propício para o

estabelecimento das interações entre os sujeitos, as línguas e as culturas em questão. Tendo o

professor a responsabilidade de ensinar tanto aos alunos surdos quanto aos alunos ouvintes, ele

precisa conhecer a língua de sinais bem como a cultura surda, se tornando também co-responsável

pelo processo de interação. Por isso a importância de ele estar envolvido com o IE para, juntos,

trabalharem em parceria, buscando o aprimoramento das relações interculturais, mal estabelecidas

no ambiente socioeducacional.

Referências

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