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OS ÁLBUNS DE FOTOGRAFIAS DOS ALUNOS DO CURSO PRIMÁRIO DO COLÉGIO FARROUPILHA (Porto Alegre/RS 1948-1966) Alice Rigoni Jacques [email protected] (Doutoranda da PUCRS) Palavras-chave: Álbuns de alunos, fotografias, coleção. Introdução Durante os anos de 1948 a 1966, as professoras do primeiro ano do Curso Primário do Colégio Farroupilha de Porto Alegre/RS realizavam um álbum contendo as fotografias da turma e as cartinhas de cada aluno, escritas especialmente para a ocasião, acompanhadas por suas fotografias, que eram entregues em forma de presente à Diretora da escola D. Wilma Gerlach Funcke 1 . Era na Festa do Livro, cujo evento era realizado no mês de outubro, que o presente era entregue, como forma de celebrar a passagem da nova cartilha 2 a ser utilizada. Na Festa do Livro, além de realizarem a entrega dos álbuns à Diretora, os alunos faziam apresentações teatrais da história “João e Maria”, declamavam poesias, cantavam as músicas “Meu livro”, presente na cartilha de “Vivi e Vavá” de Célia Rabello 3 , e “A linda rosa juvenil” (BASTOS e JACQUES, 2011). O recorte deste estudo consiste na análise destas fotografias, presentes nestes álbuns, cujo objetivo consiste em perceber aspectos do passado sobre as pessoas e sobre os fatos, declarando uma interpretação das imagens fotografadas a respeito da cultura escolar representada neste período analisado. A pesquisa detém-se na materialidade destas fotografias presentes nos 33 álbuns da 1ª série do Curso Primário, que se apresentam como miniaturas da realidade do universo escolar. Estes álbuns cujas fotografias presentes são os objetos de estudo desta pesquisa. Uma foto equivale a uma prova incontestável de que determinada coisa aconteceu. A foto pode distorcer; mas sempre existe o pressuposto de que 1 Wilma G. Funcke foi diretora do Curso Primário do Colégio Farroupilha no período de 1948 a 1966. 2 Sobre a cartilha, ver FRADE (2010). 3 Célia Rabello também é autora de outros livros de leitura: Em casa da Vovó; Os três amigos, indicados para a segunda série; Ninita e suas Amiguinhas (1942), para a terceira série.

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OS ÁLBUNS DE FOTOGRAFIAS DOS ALUNOS DO CURSO PRIMÁRIO DO

COLÉGIO FARROUPILHA (Porto Alegre/RS 1948-1966)

Alice Rigoni Jacques

[email protected]

(Doutoranda da PUCRS)

Palavras-chave: Álbuns de alunos, fotografias, coleção.

Introdução

Durante os anos de 1948 a 1966, as professoras do primeiro ano do Curso Primário do

Colégio Farroupilha de Porto Alegre/RS realizavam um álbum contendo as fotografias da

turma e as cartinhas de cada aluno, escritas especialmente para a ocasião, acompanhadas por

suas fotografias, que eram entregues em forma de presente à Diretora da escola D. Wilma

Gerlach Funcke1. Era na Festa do Livro, cujo evento era realizado no mês de outubro, que o

presente era entregue, como forma de celebrar a passagem da nova cartilha2 a ser utilizada.

Na Festa do Livro, além de realizarem a entrega dos álbuns à Diretora, os alunos faziam

apresentações teatrais da história “João e Maria”, declamavam poesias, cantavam as músicas

“Meu livro”, presente na cartilha de “Vivi e Vavá” de Célia Rabello3, e “A linda rosa juvenil”

(BASTOS e JACQUES, 2011).

O recorte deste estudo consiste na análise destas fotografias, presentes nestes álbuns,

cujo objetivo consiste em perceber aspectos do passado sobre as pessoas e sobre os fatos,

declarando uma interpretação das imagens fotografadas a respeito da cultura escolar

representada neste período analisado. A pesquisa detém-se na materialidade destas fotografias

presentes nos 33 álbuns da 1ª série do Curso Primário, que se apresentam como miniaturas da

realidade do universo escolar. Estes álbuns cujas fotografias presentes são os objetos de

estudo desta pesquisa.

Uma foto equivale a uma prova incontestável de que determinada coisa

aconteceu. A foto pode distorcer; mas sempre existe o pressuposto de que

1 Wilma G. Funcke foi diretora do Curso Primário do Colégio Farroupilha no período de 1948 a 1966.

2 Sobre a cartilha, ver FRADE (2010).

3 Célia Rabello também é autora de outros livros de leitura: Em casa da Vovó; Os três amigos, indicados para a

segunda série; Ninita e suas Amiguinhas (1942), para a terceira série.

algo existe, ou existiu, e era semelhante ao que está na imagem (SONTAG,

p.16, 2004)

Nesse sentido, as fotografias presentes no início dos álbuns impõem padrões a seus

temas. Elas expressam o didatismo da cultura escolar4, pois representam o cotidiano da escola,

ao expressarem a rotina da sala de aula. Já as fotografias individuais, apresentam imagens que

idealizam, expressando situações da vida familiar.

Estas fotografias presentes nos álbuns onde aparecem os alunos e suas respectivas

cartinhas redigidas demonstram um rito da família e da escola, apresentando uma

cumplicidade com o quer que se torne um tema interessante e digno de se fotografar.

Os álbuns

Fonte: Álbum das cartinhas e fotografias dos alunos do 1º ano do Curso Primário (1952)

Os 33 álbuns apresentam ilustrações bem coloridas através de flores coladas e

demonstram o zelo, o capricho e a organização das professoras do curso primário. As

fotografias presentes são as que foram tiradas com as professoras no terraço da escola; na sala

de aula em três ângulos diferentes (na frente do quadro negro, da sala de aula em outro

ângulo, e, por último, a foto da sala tirada do fundo, aparecendo o quadro-negro, com um

4 Entende-se cultura escolar Cultura escolar pode ser definida como um conjunto de normas que definem

conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses

conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem

variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). Normas e

práticas não podem ser analisadas sem se levar em conta o corpo profissional dos agentes que são chamados a

obedecer essas ordens e, portanto, a utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação, a

saber, os professores primários e os demais professores. Mas, para além dos limites da escola, pode-se buscar em

um sentido mais amplo, modos de pensar e de agir largamente difundidos no interior de nossas sociedades,

modos que concebem a aquisição de conhecimentos e habilidades senão por intermédio de processos formais de

escolarização (JULIA, 2001, p. 10).

menino e uma menina escrevendo); também nos álbuns estão presentes o convite e a

lembrança da festa; as “cartinhas” de cada aluno em papel de carta colorido ou enfeitado com

desenhos e carimbos e as fotografias dos alunos que aparecem junto às cartinhas.

As fotografias estão presas com cantoneiras douradas e, em sua maioria, são em preto

e branco.

Cada cartinha vem acompanhada, no alto, pela foto do seu autor.

Os álbuns, em sua maioria, apresentavam tamanho 33 cm x 23,5 cm, todos com folhas

de papel couche preto ou cinza, entremeadas por folhas de papel de seda bege, com escritos

em caneta branca. As capas dos álbuns variavam: lisas, de couro, de pele de jacaré, de

madeira, com capa plastificada com imagens de flores, bebês, paisagem. Alguns

apresentaram tamanho maior: com 33,5 cm x 38,5; outros com 40 cm x 29 cm. Variando capa

e tamanho, em cada ano, os álbuns eram iguais para todas as turmas. De 1958 a 1966, as

turmas estavam reunidas em um único álbum. Os álbuns de 1949, com capa azul para a turma

A e verde para a turma B, trazem impresso na capa, em letras douradas, o nome do colégio e a

turma. O fabricante era Cartona. Cartão-photo Nacional de João José Monegaglia, de São

Paulo e o modelo nº 158. Foram adquiridos em Porto Alegre/Rs na loja Claudino Nör, na rua

Senhor dos Passos, 199. As fotos eram presas com cantoneiras douradas. Em alguns anos, as

fotos das turmas são coloridas, mas predominam as fotos em preto e branco (BASTOS e

JACQUES, 2011).

As fotografias presentes nos álbuns

A fotografia não pode ser tomada meramente como o instrumento de uma

inscrição indexical, mas sim como uma tecnologia para exibição visual

experimentada como significante. A materialidade, assim, traduz o abstrato e

representacional da “fotografia” em “fotografias” que existem no tempo e no

espaço (EDWARDS, apud MENESES, 2005).

Ao longo do século XX, o mercado fotográfico ampliou-se e especializou-se, se

difundindo de forma capilar na sociedade contemporânea, sendo presença constante nas mais

diversas esferas públicas e privadas. E as instituições de ensino também fizeram uso dessa

prática.

A presença de fotografias nos álbuns da 1ª série do Curso Primário do Colégio

Farroupilha faz com que utilizemos estas fontes fotográficas para a pesquisa histórica, pois é

um objeto que troca de mãos, está integrado num acervo de pesquisa, transformando-se em

material de estudo para outros pesquisadores, pois mesmo guardado em armários mofados até

a sua deterioração, é redescoberto por historiadores, encaminhados para uma possível

restauração e colocados ao alcance para novos estudos e pesquisas.

Como os álbuns apresentam documentos textuais, no caso as cartinhas redigidas pelos

alunos sabemos que, o campo da historiografia privilegia mais estas fontes escritas do que as

imagens (fotografias de turma e dos alunos ) que se mantinham até então num segundo plano.

Nesse caso as imagens apresentadas, revelam a construção da representação escolar,

desempenham papeis pedagógicos, de acentuado caráter narrativo e alegórico. As fotografias

de turma presentes nos álbuns demonstram a postura hierárquica e de autoridade do professor,

pois sua posição é a de agente, vigilante, observador e controlador uma vez que, organiza a

sala de aula colocando seus alunos uns atrás dos outros e separando meninos e meninas nos

bancos escolares. Certamente, a posição que o professor ocupa é na frente da sala de aula, o

que revela sua postura hierárquica e de autoridade sobre a turma. Os alunos nesta mesma

alegoria assumem o papel de receptores e reprodutores do conhecimento e da ordem

hierárquica estabelecida e que deveria ser cumprida.

Estas fotografias comunicam-se por imagens não-verbais por possuírem um caráter

conotativo que remete às formas de ser e agir do contexto apresentado (Mauad, 2005, p.144).

No quadro abaixo identificamos alguns elementos da forma de conteúdo das fotos de

turmas presentes nos álbuns do 1º ano.

Conteúdo Fotografia 1 Fotografia 2 Fotografia 3 Fotografia 4

Ano 1953 1953 1952 1959

Local retratado Sala de aula Sala de aula Sala de aula Sala de aula

Tema retratado Turma de

meninos

Turma de

meninas

Turma de alunos Turma de alunos

Pessoas

retratadas

Meninos Meninas Meninos e

meninas

Meninas e

meninos

Objetos

retratados

Classes, paredes,

quadros,

cartazes,

uniformes

Classes, paredes,

cortinas,

bandeira,

quadros,

uniformes

Quadro negro,

classes,

lâmpadas, porta,

cartazes, plantas,

uniformes

Assoalho,

classes,

uniformes,

paredes,

cortinas,

cartazes

Tempo

retratado

Turno escolar –

manhã

Turno escolar -

manhã

Turno escolar -

manhã

Turno escolar -

manhã

dia/noite

No quadro seguinte, identificamos os elementos da forma de expressão das fotos

presentes nos álbuns.

Forma de

Expressão

Fotografia 1 Fotografia 2 Fotografia 3 Fotografia 4

Agência

produtora

Studio Os Dois Studio Os Dois - -

Tamanho da foto 13,5x8,5cm 13,5x8,5cm 17,5x11cm 17,5x11cm

Formato da foto Retangular Retangular Retangular Retangular

Enquadramento I

(horizontal,

vertical)

Horizontal Horizontal Horizontal Horizontal

Enquadramento

II (esquerda,

direita)

Esquerda Direita Centro Direita

Enquadramento

III (objeto

central)

Os meninos e as

classes no lado

esquerdo

As meninas e as

classes no lado

direito

A turma na sala

de aula sentada

nas classes

vistos de costas

Meninas e

meninos do

centro para a

direita

Nitidez Os meninos

sentados à frente

com mais

claridade que os

sentados ao

fundo

As meninas

sentadas à frente

com mais

iluminação do

que os demais

sentados atrás

O foco está mais

acentuado na

turma que está

sentada atrás da

sala de aula; o

quadro negro

também recebe

destaque e foco

na foto

As meninas ao

centro

demonstram o

percurso a ser

seguido,

desempenhando

o foco principal

desta foto

Iluminação Iluminação na

frente com

sombra atrás

Iluminação na

frente com

sombra atrás

Iluminação à

frente com

sombra no lado

esquerdo

Iluminação no

lado direito

central com

sombra ao fundo

Produtor Profissional Profissional Profissional Profissional

Para Lima e Carvalho (1997, p.32), existem dois descritores nas imagens distribuídos

em duas categorias: os descritores iônicos e os descritores formais. Os iônicos referem-se aos

registros dos elementos figurativos e espaciais, e os descritores formais, identificam o

tratamento plástico dispensado aos motivos selecionados do contexto.

Fonte: Álbum das cartinhas e fotografias dos alunos do 1º ano do Curso Primário (1953)

Fonte: Álbum das cartinhas e fotografias dos alunos do 1º ano do Curso Primário (1952)

Fonte: Álbum das cartinhas e fotografias dos alunos do 1º ano do Curso Primário (1959)

Nas quatro fotografias que compõem este estudo percebe-se que ambas, nos remetem

ao que ficou de fora, ao que não aparece, mas, que de alguma forma está contemplado, que é a

figura do professor ou da professora.

As fotografias presentes nas primeiras páginas dos álbuns dizem respeito às imagens

das turmas. As fotografias individuais de cada aluno aparecem junto com as cartinhas

escritas.

Fonte: Álbum das cartinhas e fotografias dos alunos do 1º ano do Curso Primário (1953)

Ao nos depararmos com as fotografias individuais, percebe-se que na sua maioria são

fotografias de estúdio. Nesse sentido, Walter Benjamin (1991, p.94), afirma que apesar de

toda perícia do fotógrafo e de tudo o que existe de planejado em seu comportamento, o

observador sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do

acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar

imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos, e

que com tanta eloquência que podemos descobri-lo, olhando para trás. A natureza que fala à

câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço

trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente.

Percebemos então nestas fotografias as suas posições, os locais onde foi tirado, o que estão

fazendo.

As fotografias individuais dos alunos presentes nos álbuns revelam atitudes de alegria,

timidez, espontaneidade, descontração, onde na maioria das vezes não se identifica nada sobre

suas vidas, pois estão desacompanhadas de um texto escrito que as explicasse.

Fonte: Álbum das cartinhas e fotografias dos alunos do 1º ano do Curso Primário (1958)

Nos álbuns analisados, a maioria das fotografias são em preto e branco. As fotos

apresentam tamanhos 3x4cm, 10x10cm, 13x8cm e algumas foram recortadas de outras

fotografias. Muitas delas apresentam uma moldura branca com a borda parecendo uma renda.

A foto abaixo é da aluna Virgínia Dreher, também do 1º ano A do ano de 1957. Foi tirada em

estúdio, pois a menina aparece num cenário que aparentemente está organizado para tal:

cortina ao fundo, vestido de festa, cabelo bem penteado com um laço enfeitando. Ela está

sentada e traz em suas mãos um livro que aparece apoiado sobre algo. A imagem da fotografia

aparece mais nítida do vestido para cima, o local onde ela está apoiada surge na foto como um

efeito sombreado impossibilitando identificar o que está ali. Penso que seja o efeito de uma

fotografia produzida a partir do trabalho de um profissional.

Fonte: Álbum das cartinhas e fotografias dos alunos do 1º ano do Curso Primário (1957)

Ao emergir nestes álbuns e folhear cada página ali ilustrada com a fotografia e com a

cartinha de cada aluno, tentamos estabelecer um diálogo de sentidos com outras referências

culturais, pois as imagens nos contam histórias, fatos, acontecimentos, atualizam memórias,

inventam vivências, imaginam a história.

Tanto as fotografias de turmas como as dos alunos onde se apresentam em diferentes

cenários e situações, são consideradas testemunhos, pois elas atestam a existência de ma

realidade.

As fotografias nos impressionam, nos comovem, nos incomodam, enfim

imprimem em nosso espírito sentimentos diferentes. Também faz parte da

nossa prática de vida fotografar nossos filhos, nossos momentos importantes

e os não tão significativos (MAUAD, 2005, p.136)

Também podemos identificar nos álbuns de fotografias das turmas de 1º ano do Colégio

Farroupilha, alguns estúdios fotográficos existentes naquela época.

Estúdio Local

Foto Nick Vila IAPI

Studio Os Dois Andradas

Studio Geremia Caxias do Sul

Foto Colombo Porto Alegre

Fotobaby -

Studio Michel -

Foto Abitante Rua Cristovão Colombo, 1784

O Stúdio “ Os Dois” pertencia à família Wickert, cujos filhos estudaram no Colégio

Farroupilha. Erico Winfried Wickert e Mário Walter Wickert cursaram o 1º ano do Curso

Primário nos anos de 1948 e 1957.

Ao que tudo indica, a infância destes alunos foi vivenciada junto à profissão do pai.

Quando desenvolvi a dissertação de mestrado sobre “As marcas de correção em

cadernos escolares do curso primário do Colégio Farroupilha no período de 1948 a 1958”,

encontrei no caderno de redações da 4ª série do Curso Primário de Erico5 a história relatada

sobre o Foto Atelier. O pai de Erico era fotógrafo e proprietário do Stúdio “Os Dois”6,

localizado no centro da cidade de Porto Alegre/RS.

“O Foto Atelier”

Meu pai é fotógrafo. Êle tem no centro da cidade um “foto-atelier” com um

grande laboratório fotográfico, onde trabalham muitas moças. Elas tiram fotografias,

revelam filmes e chapas, fazem reproduções, cópias e ampliações. Nos fundos do

estúdio existe um grande quarto escuro; não é bem escuro, tem lâmpadas vermelhas. Lá

estão os aparelhos para copiar e ampliar, e as banheiras com os reveladores. Gosto

muito de ajudar neste quarto. Como é interessante de ver aparecer pouco a pouco num

papel branco, nadando no revelador, um retratinho!

Numa outra sala existem lavadeiras, secadeiras elétricas, cortadeiras e mesas

para recortar, retocar e aprontar os trabalhos.

5 Sobre o caderno de redações de Erico ver a dissertação sobre “As Marcas de Correção em Cadernos Escolares

do Curso Primário do Colégio Farroupilha – 1948/1958” (JACQUES, 2011) 6 O estúdio “Os Dois” pertencia ao Sr. Wolfdietrich Wickert pai do aluno Erico Wickert. O pai tinha

nacionalidade alemã, mas naturalizado brasileiro. Muitas das fotografias presentes nos álbuns dos alunos da 1ª

série do curso primário, presentes nos álbuns foram tiradas pelo estúdio do Sr. Wickert.

Sempre há movimento no atelier. Pessoas trazem rádios, triciclos, maquetes,

máquinas de escrever e outras cousas para fotografar para catálogos ou fins de

propaganda.

Muitas vezes vêm mães com filhos para tirar fotografias. Umas crianças

riem, outras choram e têm medo. Talvez pensam de estar no dentista ou no médico,

porque lá todos andam com guarda-pós brancos. No estúdio há muitos aparelhos

diferentes, grandes e pequenos com muito brilho e lâmpadas com luz bem clara e forte.

Guardados num armário existem brinquedos como bonecas, bolas, cachorrinhos, livrinhos

para as crianças brincar a vontade.

Quantas vezes já ouvi dizer: “Olha pra cá, queridinho, da máquina vai sair um

passarinho.” Mas eu sei que não sai! Fonte: Caderno de Redação de Erico Wickert da 4ª série (1951)

Fonte: Álbum das cartinhas e fotografias dos alunos do 1º ano do Curso Primário (1948)

Na redação escrita por Erico, percebe-se claramente a vivência e o conhecimento que

ele tem sobre o funcionamento de um estúdio fotográfico. Mesmo em sua infância, ele

acompanhou e conheceu todo o processo desenvolvido pelo seu pai no laboratório

fotográfico, o que fica evidenciado na sua escrita infantil.

A partir destes registros e muitos outros, é que podemos constatar, segundo Lima e

Carvalho (2009, p.34), que a fotografia difundiu-se de forma capilar na sociedade

contemporânea, sendo presença constante nas mais diversas esferas públicas e privadas.

Utilizar fontes fotográficas para a pesquisa histórica significa inicialmente entender que

tamanha diversidade de usos gerou arquivos7 e coleções8 que podem ser encontrados não

somente em instituições de guarda (arquivos, museus, bibliotecas, etc.), mas também nos seus

locais de origem de produção ou no final do caminho de sua circulação.

É necessário ainda deixar claro que tais circuitos precisam ser compreendidos de modo

que a fotografia não seja descolada de seus contextos de produção, circulação, consumo,

descarte e institucionalização. O contexto da imagem fotográfica não é o seu conteúdo, mas o

modo de apropriação da imagem como artefato. Objeto que troca de mãos, é reproduzido em

revistas, integra álbuns, transforma-se em cartão postal, em obra de arte nas paredes e galerias

de museus, fica sempre guardado em armários mofados até a sua deterioração, é redescoberto

por curadores, pesquisadores, é restaurado e torna-se objeto de estudo para historiadores

(LIMA e CARVALHO, 2009, p. 35). É neste espaço, nestes achados, nestas descobertas,

nestes flagrantes, que lançamos mãos de nossas curiosidades e nos debruçamos nestas fontes

privilegiadas, senão exclusivas de documentos, que constituímos nossos objetos de estudo e

de pesquisa.

Conclusão

Arquivar

Uma das grandes funções da fotografia-documento terá sido a de erigir m

novo inventário do real, sob a forma de álbuns e, em seguida, de arquivos. O

álbum, enquanto mecanismo de reunir e tesaurizar as imagens; a fotografia,

enquanto mecanismo para ver (óptico) e para registrar e duplicar as

aparências (químico). Assim, esse inventário fotográfico do real constituiu-

se no cruzamento de dois procedimentos de tesaurização: o das aparências,

pela fotografia; e o das imagens, pelo álbum e pelo arquivo (Rouillé, 2009,

p.97).

Ao adentrar neste documento da cultura escolar, e revisitar memórias de vida expressos

pelas cartinhas e no caso deste estudo, as fotografias presentes nos álbuns dos alunos do 1º

ano do Curso Primário, concluímos que elas são um precioso corpus documental do cotidiano

da escola e das práticas educativas que foram realizadas durante um período de 18 anos por

esta instituição.

O fato das professoras do 1º ano do Curso Primário organizarem um álbum por turma

no período de 1948 a 1966, para ser entregue à Diretora, contemplando fotos das turmas em

7 Um documento de arquivo é aquele que faz parte de um “conjunto de documentos que, independentemente da

natureza ou do suporte, são reunidos por acumulação ao longo das atividades de pessoas físicas ou jurídicas,

públicas ou privadas”.Camargo e Bellotto (1996, p.5). 8 A coleção ao contrário do arquivo, seria uma “reunião artificial de documentos” Camargo e Bellottto (coords.)

op. Cit. P.17

diversos ângulos, cartinhas escritas pelos alunos e fotografias individuais permite aos

historiadores navegar no registro da história contemplando uma linguagem de imagens.

Para Mauad (2005, p.143), as fotografias guardam, na sua superfície sensível, a marca

indefectível do passado que as produziu e consumiu. Um dia já foram memória presente,

próxima àqueles que as possuíam, as guardavam e colecionavam como relíquias, lembranças

ou testemunhos. No processo de constante vir a ser, recupera o seu caráter de presença num

novo lugar, num outro contexto e com uma função diferente.

Ao definirmos que as imagens nos contam acontecimentos e imaginam histórias,

evidencia-se que as fotografias presentes nos álbuns são aquelas que remetem o cotidiano do

ambiente escolar, no caso as fotografias de turmas, onde as classes estão enfileiradas, onde os

meninos sentam numa fila e as meninas noutra. Mesmo o Colégio Farroupilha atuando com a

co-educação9, o espaço físico da sala de aula se apresenta com lugares separados para

meninos e meninas.

Sobre as fotografias individuais presentes nos álbuns, percebe-se que foram escolhidas

pelas famílias com dedicação e até com certo cuidado e formosura. Muitas delas são tiradas

em estúdios, ateliês10 e se apresentam com efeitos de luz, nitidez, com bordas enfeitadas e

demonstrando verdadeiros aparatos teatrais. Não sabemos porém, se as roupas utilizadas eram

das crianças ou dos próprios fotógrafos que forneciam a seus clientes. Mas eram de bom gosto

e de uma elegância impecável. Acredito que as fotografias que não foram tiradas em estúdios

ou ateliês, pertenciam aos álbuns de famílias e representam situações do cotidiano familiar:

crianças brincando, caminhando ou em posição de pose para a foto.

Sobre a análise metodológica também presente neste estudo, procurei descrever como

está sendo dado a ver estas fotografias e onde está a ênfase das imagens retratadas, pois as

imagens instituem códigos e incorporam funções sígnicas.

Para Mauad (2005, p.144), a imagem não fala por si só; é necessário que as perguntas

sejam feitas. Portanto, a fotografia deve ser considerada como produto cultural, fruto de

trabalho social de produção sígnica. Nesse sentido, toda produção da mensagem fotográfica

está associada aos meios técnicos de produção cultural.

Finalizando, as fotografias presentes nos álbuns propuseram uma interpretação da

cultura escolar e retratam convenções sociais de uma época.

9 O Colégio Farroupilha no ano de 1929 uniu numa só classe meninos e meninas, transformando a escola em

educação mista. Nesta época o Colégio funcionava na Av. Alberto Bins, onde hoje está localizado o Hotel Plaza

São Rafael. 10

Sobre ateliês fotográficos, ver Fabris (1997, p.11).

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do curso primário do Colégio Farroupilha (Porto Alegre/RS 1948-1966). In: Anais do 17º

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