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  • OS AORES EM FINAIS DO REGIMEDE CAPITANIA-GERAL

    1800-1820

  • FICHA TCNICA

    Ttulo Os Aores em Finais do Regimede Capitania-Geral 1800-1820

    Autor Ricardo Manuel Madruga da Costa

    Edio Ncleo Cultural da HortaCmara Municipal da Horta

    Capa Paulo Ferreira

    Paginao Ricardo Rodrigues

    Execuo Grfica Coingra, Lda.

    Tiragem 500 exemplares

    Depsito Legal 230108/05

    ISBN 972-96330-9-6

  • RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA

    OS AORES EM FINAIS DO REGIMEDE CAPITANIA-GERAL

    1800-1820

    Volume I

    NCLEO CULTURAL DA HORTACMARA MUNICIPAL DA HORTA

    2005

  • memria de meu pai, RomoA minha me, Ema

    A minha mulher, Maria EmliaAos meus filhos, Ana e Lus

  • NDICE

    Volume I

    Siglas e abreviaturas ......................................................................... 15Perfcio ............................................................................................ 17Nota prvia ...................................................................................... 19Introduo ....................................................................................... 251. A CONJUNTURA INTERNACIONAL .................................... 301.1 O conflito europeu ...................................................................... 34

    1.2 A Guerra de 1812 ........................................................................ 36

    1.3 As lutas de independncia das colnias espanholas ....................... 41

    2. A CONJUNTURA NACIONAL ................................................ 443. A CAPITANIA-GERAL DOS AORES EM VSPERAS DE

    OITOCENTOS .......................................................................... 473.1 Um novo quadro reformador ....................................................... 47

    3.2 Os Aores num tempo de transio ............................................. 57

    PARTE IPoltica e sociedade

    1. O EXERCCIO DO PODER ..................................................... 611.1 O governo civil ............................................................................ 631.1.1 A estrutura da administrao .................................................... 63

    1.1.1.1 A fazenda e a secretaria do governo ........................................ 641.1.1.2 A nova Junta da Fazenda ..................................................... 67

    1.1.1.3 O aparelho judicial ................................................................ 731.1.1.4 A nova Junta Criminal ........................................................ 76

  • 1.1.2 Uma sntese quantitativa e os encargos globais .......................... 771.1.3 O estado da administrao ........................................................ 781.1.3.1 A Fazenda Real e as suas vicissitudes ...................................... 811.1.3.2 O estado da justia ................................................................ 861.1.4 Obstculos ao curso normal da administrao .......................... 921.1.4.1 O afastamento geogrfico ...................................................... 92

    1.1.4.2 A questo da dependncia do governo ................................... 93

    1.1.4.3 Tutela administrativa e confrontos de jurisdio .................... 96

    1.2 O governo militar ...................................................................... 105

    1.2.1 A orgnica da tropa ................................................................ 106

    1.2.1.1 Planos de reorganizao militar ............................................ 109

    1.2.2. Os meios militares ................................................................. 112

    1.2.2.1 Os escales superiores e os quadros permanentes da tropa ... 112

    1.2.2.2 Os corpos militares na sua expresso numrica .................... 117

    1.2.2.3 Uma viso de conjunto ........................................................ 120

    1.2.2.4 Os equipamentos ................................................................. 121

    1.2.2.4.1 O armamento ligeiro ........................................................ 121

    1.2.2.4.2 As fortificaes .................................................................. 125

    1.2.3 A avaliao do sistema ............................................................ 132

    1.2.3.1 A tropa paga ........................................................................ 132

    1.2.3.2 As milcias ........................................................................... 137

    1.2.3.3 As ordenanas ...................................................................... 142

    1.2.4 As figuras atpicas do regime no plano militar ........................ 148

    1.2.4.1 Os titulares .......................................................................... 150

    1.2.4.2 Um equvoco ou uma fraude? .............................................. 153

    1.2.4.3 Dualidade de actuao e conflitos ........................................ 157

    1.2.4.4 Tipificao dos conflitos ...................................................... 160

    1.2.4.5 Os comandantes militares da Graciosa e de S. Jorge ............ 164

    1.2.5 O estado da defesa .................................................................. 1662. OS PROBLEMAS DA SOCIEDADE ....................................... 1722.1 A guerra ..................................................................................... 172

    2.2 O corso ...................................................................................... 1762.3 Crises frumentrias .................................................................... 181

    2.3.1 Carncias reais, interesses e condicionalismos ......................... 181

    RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA

    10

  • 2.3.2 As crises ao longo de duas dcadas .......................................... 1852.3.3 Um quadro inovador e o agravamento das crises ..................... 1902.4 O impacto social ........................................................................ 1972.4.1 Os recrutamentos ................................................................... 1992.4.2 A debandada das gentes .......................................................... 2032.4.2.1 A emigrao: um aparente paradoxo .................................... 204

    2.4.2.2 O controle da mobilidade .................................................... 205

    2.4.2.3 As motivaes ...................................................................... 208

    2.4.2.4 Incertezas, vicissitudes e outros revezes ................................ 212

    2.4.2.5 A divergncia dos interesses e critrios ................................. 216

    2.4.2.6 A expresso quantitativa da emigrao de casais ................... 217

    PARTE IIEconomia e Finanas

    1. A VIDA ECONMICA ............................................................ 2231.1 Algumas generalidades sobre as bases da economia insular ......... 223

    1.2 Constrangimentos ...................................................................... 225

    1.2.1 De natureza estrutural ............................................................ 225

    1.2.1.1 A propriedade ...................................................................... 228

    1.2.1.2 A ineficcia da Junta de Melhoramento da Agricultura ........ 232

    1.2.2 De natureza conjuntural ......................................................... 233

    1.3 As actividades ............................................................................ 234

    1.3.1 O predomnio agrcola ............................................................ 234

    1.3.2 As produes agrcolas ............................................................ 238

    1.3.2.1 Os cereais e leguminosas ...................................................... 238

    1.3.2.2 A vinicultura ........................................................................ 247

    1.3.2.3 Os citrinos ........................................................................... 256

    1.3.3 A pecuria ............................................................................... 2581.3.4 Outras produes .................................................................... 2611.3.4.1 A tradio da recolecta - a urzela .......................................... 261

    1.3.5 As indstrias ........................................................................... 2631.3.6 O comrcio ............................................................................. 271

    1.3.6.1 O comrcio local e inter-ilhas .............................................. 272

    11

    OS AORES EM FINAIS DO REGIME DE CAPITANIA-GERAL

  • 1.3.6.1.1 Alguns dados ilustrativos do comrcio inter-ilhas .............. 2781.3.6.2 O comrcio com o reino e a Madeira .................................. 286

    1.3.6.2.1 Alguns dados ilustrativos do comrcio com o reino e a Madeira .. 2891.3.6.3 O comrcio com o Brasil ..................................................... 301

    1.3.6.3.1 A tramitao dos procedimentos para o comrcio com o Brasil .. 3071.3.6.3.2 As exportaes dos Aores para o Brasil ............................ 308

    1.3.6.3.3 As importaes do Brasil ................................................... 313

    1.3.6.3.4 Aspectos comparativos do comrcio de importao do Brasil .. 319

    1.3.6.4 O comrcio externo ............................................................. 321

    1.3.6.4.1 A exportao dos citrinos para o estrangeiro ..................... 323

    1.3.6.4.2 O comrcio do vinho para o estrangeiro ........................... 329

    1.3.6.4.3 A laranja e o vinho no contexto do comrcio externo ....... 337

    1.3.6.4.4 Outras exportaes. A baldeao no perodo do non-intercourse 3431.3.6.4.5 As importaes do estrangeiro .......................................... 345

    1.3.6.4.6 Uma perspectiva comparada das importaes e exportaes ... 363

    1.3.6.5 Portos, escalas e armadores ................................................... 366

    13.6.5.1 Um comrcio menos visvel ............................................ 377

    1.3.6.5.2 Uma poca estimulante para os armadores aorianos ........ 381

    1.4 Uma perspectiva sobre preos e salrios ..................................... 385

    1.4.1 Os preos ................................................................................ 386

    1.4.2 Os salrios .............................................................................. 397

    2. A PROBLEMTICA FINANCEIRA ........................................ 4002.1 A nova Junta da Real Fazenda ................................................. 400

    2.2 A fiscalidade num novo contexto administrativo ....................... 404

    2.3 As precaues da anlise ............................................................. 405

    2.4 As receitas .................................................................................. 406

    2.4.1 A provenincia das receitas ...................................................... 406

    2.4.2 A expresso das receitas ........................................................... 4132.4.3 Caracterizao contabilstica das receitas ................................. 419

    2.5 A despesa ................................................................................... 4202.5.1 Caracterizao contabilstica da despesa .................................. 420

    2.6 Uma sntese dos balanos de receita e despesa entre 1800 e 1819 ..... 4222.7 Um ensaio sobre a Receita e Despesa dos Aores ....................... 425

    2.8 As presses da coroa sobre as finanas aorianas ......................... 430

    RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA

    12

  • 2.8.1 Os antecedentes do envolvimento dos Aores nasoluo da dvida .................................................................... 431

    2.8.2 Os Aores participam no plano de amortizaoda dvida nacional ................................................................... 433

    2.8.3 O contributo aoriano ............................................................ 4362.9 Sinais de desagregao social e econmica .................................. 439

    Concluso ........................................................................................ 447Bibliografia ...................................................................................... 451Anexo documental .......................................................................... 473

    Volume II

    Apndice 1 Valores da colecta do subsdio literrio nos Aores.

    1800 1820 .................................................................. 7

    Apndice 2 A fiscalidade aoriana entre 1800 1820. Valores

    dos Impostos, Direitos e Taxas ...................................... 23Apndice 3 Episdios com corsrios nos Aores entre 1800 1820 ...... 69

    Apndice 4 Recrutamentos nos Aores entre 1796 e 1820 .............. 83

    Apndice 5 Receitas contabilsticas da Junta da Fazenda dos

    Aores entre1800 1820 ............................................ 93

    Apndice 6 Despesa contabilstica da Junta da Fazenda dos Aores

    entre 1800 1820 ..................................................... 107

    Apndice 7 Os despachos de exportao da alfndega do Faial.

    1800 1820 .............................................................. 131

    Apndice 8 Os despachos de importao na alfndega do Faial.\

    1800 1820 .............................................................. 175

    Apndice 9 Os despachos de exportao da alfndega da Terceira.

    1803 1820 .............................................................. 375

    Apndice 10 Os despachos de importao na alfndega da Terceira.1803 1820 .............................................................. 397

    Apndice 11 Os despachos de exportao da alfndega de S. Miguel.1800 1820 .............................................................. 483

    Apndice 12 Os despachos de importao na alfndega de S. Miguel. 1800 1820 .............................................................. 565

    Apndice 13 Glossrio, cmbios e equivalncia de pesos e medidas ..... 853

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    OS AORES EM FINAIS DO REGIME DE CAPITANIA-GERAL

  • SIGLAS E ABREVIATURAS

    AA Arquivo dos AoresAbr. AbrilAgo. AgostoAHU Arquivo Histrico Ultramarinoalem. alemoAMM Arquivo Municipal da MadalenaANTT Arquivos Nacionais/Torre do Tomboamer. americanober.m bergantimBPAH Biblioteca Pblica e Arquivo da HortaBPAAH Biblioteca Pblica e Arquivo de Angra do HerosmoBPAPD Biblioteca Pblica e Arquivo de Ponta Delgadac.os cvadoscx. - caixacx.s caixasDez. Dezembrodin. dinamarqusdoc. documentoesp. espanholFAL Faial Fev. Fevereirofr. francshamb. hamburgushol. holandsinf.s inferioresingl. inglsJan. JaneiroJun. JunhoJul. JulhoMai. Maio

  • Mar. Marom.e mestrem.s moiosN/d valor no disponvelNov. NovembroOut. Outubroport. portugusprus. prussianoreg.to regimentoSet. SetembroSMG S. Miguelsup.s superioresTER Terceirav.as varas

    RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA

    16

  • PREFCIO

    A investigao universitria possui por objectivo o acrscimo doconhecimento cientfico. Por outras palavras, a inovao constitui opropsito dos estudos superiores. Este livro de Ricardo Madruga daCosta, intitulado Os Aores em finais do regime de Capitania Geral (1800-1820), que no essencial corresponde dissertao de doutoramento,defendida na Universidade dos Aores no ano de 2004, cumpreexemplarmente os desgnios de promoo da originalidade do saber. Comefeito, na base de uma anlise oportuna do quadro externo, esta obratrata, com uma profundidade at hoje inigualvel, da conjuntura aorianade 1800 a 1820, ressaltando particularmente a averiguao dasincidncias poltico-sociais e econmico-financeiras. Alm disso, a riquezainformativa do anexo documental e dos apndices transforma-os emddiva comunidade cientfica, que neles encontrar uma fonte preciosade inspirao e de pesquisa, indispensvel no processo incessante de (re)construo dos saberes.

    A dissertao de doutoramento de Ricardo Madruga da Costa,agora convertida em livro, constitui uma prova irrefutvel da renovaoda historiografia insular, que decorre desde a criao da Universidade dosAores, h trinta anos atrs. De facto, o tema e as fontes conferem, a esteestudo, um ineditismo singular. Entre as datas de 1766, que equivale implementao das reformas pombalinas, eivadas de propsitos deracionalizao e de modernidade, e de 1820, que corresponde sucessodas pugnas liberais, movidas pelo desgnio do transformismo total, acronologia eleita pelo autor, delimitada pelos anos de 1800 e de 1820,respeita a um tempo desconhecido e enigmtico. Na verdade, ainvestigao desvenda uma era de transio que estranhamente nodespertara a curiosidade dos estudiosos situada entre a refundao daCapitania Geral, que intenta a perpetuao mais esclarecida do AntigoRegime, e a inevitabilidade do Constitucionalismo, que logra

  • consolidao nos anos vinte e trinta do sculo XIX. Em matria defundamentao documental, a explorao dos acervos da BibliotecaPblica e Arquivo de Angra do Herosmo e do Arquivo HistricoUltramarino, ainda complementada pela anlise dos fundos dasBibliotecas Pblicas e Arquivos de Ponta Delgada e da Horta, nos Aores,e dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, em Lisboa, resulta narealizao de uma pesquisa monumental. Por isso, esta seguramenteuma das teses que se alicera numa das investigaes mais vastas,meticulosas e inovadoras e que melhor brota do stio prprio, o mesmo dizer, dos arquivos, inequivocamente as oficinas da Histria.

    Sobre o livro Os Aores em finais do regime de Capitania Geral(1800-1820), reafirmamos que equivale a um contributo relevante para oacrscimo e a renovao do conhecimento histrico relativo s ilhas. Sobreo autor Ricardo Madruga da Costa, que de pleno direito acresce o corpodos historiadores, a comunidade do saber aguarda pela continuidade dolabor cientfico, de preferncia materializado na multiplicao daspublicaes.

    Angra do Herosmo, 27 de Junho de 2005

    Avelino de Freitas de Meneses

    RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA

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  • NOTA PRVIA

    No obstante, nos ltimos anos, terem vindo a pblico alguns traba-lhos abordando temticas associadas histria dos Aores no sculo XIX, averdade que tem sido frequente considerar-se constituir este perodo umadas lacunas da historiografia aoriana. Residir neste facto uma primeira ex-plicao para a escolha do tema que esta tese pretende desenvolver. Natu-ralmente que a simples constatao de um vazio como o que acima se apon-ta, no se apresenta como razo suficientemente estimulante para determi-nar uma opo desta natureza. Investigao por ns levada a cabo em prin-cpio dos anos 90, ainda que cingida ao universo limitado da ilha do Faial,incidindo sobre factos ocorrendo nos anos de 1808 a 1810, levou-nos a sus-peitar da existncia de matria interessante e merecedora de ateno maiscuidada. Uma explorao mais cautelosa das fontes reforaria a suspeita, ea possibilidade de trabalhar a uma escala que se situava muito para alm darealidade redutora de uma s ilha, envolvendo ao mesmo tempo aspectosinovadores ao nvel da esfera poltico-administrativa, econmica e militardo arquiplago e implicando tambm contextos de abrangncia atlntica,seriam forte incentivo na deciso de meter ombros tarefa. O espao dedois anos sobre o qual nos debruramos a propsito da ilha do Faial abri-ra, em nosso entender, perspectivas de investigao de aprecivel alcance,implicando, no apenas com o funcionamento do sistema poltico-admi-nistrativo de capitania-geral vigorando nos Aores desde 1766, mas igual-mente com o impacto causado pela inusitada conjugao de conjunturasabarcando o Atlntico, aparentemente desconexas, cujo desenrolar quasesequencial, como veremos, moldou o desempenho das autoridades aoria-nas e, no menos significativamente, o prprio quotidiano insular.

    A partir desta concepo ainda um tanto imprecisa, a informaocolhida numa fase posterior da investigao permitiu-nos fixar os limitestemporais da abordagem, cujos contornos comeavam a impor-se de for-ma entusiasmante como projecto de trabalho. No limiar mais remoto fi-xmo-nos no ano de 1800, escolhendo para termo do estudo o ano em-

  • blemtico de 1820. Porm, a circunstncia de pretendermos tratar proble-mtica cujo quadro de fundo era o da Capitania-Geral dos Aores nas du-as primeiras dcadas do sculo XIX, na sequncia da chamada ReformaPombalina de 1766, levantava questes a ponderar. Desde logo porque atese de Avelino de Freitas de Meneses, escalpelizando at exausto a re-alidade aoriana em todas as suas vertentes, no perodo que decorre de1740 a 1770, cobrindo ainda o sistema das capitanias mas abrangendo jos anos de arranque do regime de Pombal, e a tese de Jos Guilherme ReisLeite estabelecendo em linhas mais gerais uma espcie de quadro de refe-rncia do funcionamento do sistema pombalino desde a sua criao at fi-nais da era de Setecentos, tornavam qualquer abordagem, na mesma linhade trabalho, no mnimo, redundante.

    A verdade, porm, que em torno do ano de 1800, e para l da co-modidade desta referncia temporal, produzem-se alteraes qualitativascujo significado se nos afigura suficientemente relevante para justificar umarevisita a alguns aspectos do exerccio do poder, do funcionamento das ins-tituies inseridas na estrutura da capitania-geral e do prprio quotidianoinsular. No tocante data at qual se prolonga a nossa investigao, tal-vez fosse suficiente referir que corresponde fronteira que, em virtude dopronunciamento de 20 de Agosto de 1820 no Porto, marca simbolicamen-te o termo do Antigo Regime tambm nos Aores. Independentemente dacontrovrsia que a prpria afirmao no deixar de suscitar e que no ca-be discutir no curso desta nota, a escolha desta baliza exige uma clarifica-o adicional que, no obstante a sua simplicidade, empresta ao critriodesta escolha uma maior solidez. De facto, 1820 no significa, formalmen-te, o fim da Capitania-Geral dos Aores; a justificao da escolha da dataestriba-se, essencialmente, nesta constatao simples: 1820 marca o termoda capitania-geral enquanto realidade poltico-administrativa concebidanos moldes da reforma de 1766. Sobretudo do ponto de vista institucionale em particular no que tem a ver com os desenvolvimentos ocorridos ao n-vel da envolvente poltica subsequente ao pronunciamento liberal de 1820,cujo eplogo apenas tem lugar em 1834, a capitania-geral ps-vintista pou-co tem a ver com a sua antecessora pombalina. Afinal, este o motivo que senos imps ao optar pela data de 1820 cujo significado de ruptura, por si s,possivelmente seria inaceitvel como fundamento de fixao do limite tem-poral por que optmos. Assim, concentrando o nosso esforo de investiga-o sobre questes que tm a ver com aspectos institucionais, da sociedadee da economia inseridos no quadro da capitania-geral, julgamos, todavia,que o presente estudo pode bem situar-se numa linha de abordagem e decaracterizao das facetas que definem as dominantes que, naquelas reas de

    RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA

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  • anlise, tornam peculiar esta fase de transio do arquiplago para um no-vo sculo da sua existncia, apontando j para o longo e sofrido processo dacontemporaneidade insular. Na primeira parte do trabalho, tentmos mes-mo um tipo de abordagem que nos franqueasse o acesso a um espao de in-timidade com uma poca na qual se pressente quase que o respirar angus-tiado de gente vivendo nas margens inseguras de uma terra dominada porfortes condicionantes em que predomina a precariedade.

    A par destas circunstncias que poderamos considerar como ine-rentes dinmica portuguesa, ocorre entre as datas fixadas uma comple-xa trama conjuntural que varre o Atlntico de um extremo ao outro, con-ferindo ao perodo que pretendemos tratar, quer a singularidade que odistingue, quer a densidade que o torna relevante, uma e outra, oferecen-do um aliciante e consistente campo de pesquisa a que o transcurso dasduas dcadas de 1800 a 1820 garante adequada profundidade temporal,separando, de um lado uma poca que poderia designar-se como de ten-tativa de refundao da capitania-geral e, de outro, uma era marcadamen-te de fronteira ao assinalar o eclodir do primeiro liberalismo em Portugal.So estas duas dcadas da histria aoriana que correspondem disserta-o que agora desenvolveremos.

    O trabalho comea por apresentar um texto introdutrio destinadaa traar, nos planos internacional, nacional e insular, quadros referenciaisque clarificam, numa linha imprecisamente sincrnica, conjunturas apa-rentemente desfasadas entre si as quais, no arquiplago dos Aores, demodo mais ou menos consistente, encontram como que um lugar de con-fluncia e de dilucidao histrica. Mesmo que marginal grande hist-ria, mas suficientemente expressiva para proporcionar, ou estimular, acompreenso de relaes aparentemente vagas e desconexas na amplidoda histria do Atlntico.

    Aps esta introduo, a Parte I pretende construir um percurso emque se definem os contornos dominantes de uma sociedade afectada pordesequilbrios que as referidas conjunturas determinam, de modo mais oumenos acentuado. Procuraremos, assim, salientar as circunstncias que, deforma frequente e persistente, evidenciam a face mais frgil de uma reali-dade social marcada pela adversidade. Assim, a situao da defesa e o cor-so luz do reforo da relevncia estratgica do arquiplago; a emigrao eos recrutamentos para o Brasil no quadro da poltica portuguesa aps a fi-xao da corte naquela colnia e, por fim, a ineficcia da administraoda justia e das questes correntes da vida insular, definem temas da abor-dagem desta primeira parte do trabalho. A Parte II procura caracterizar aeconomia aoriana nas vertentes produtiva e do comrcio, com especial

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    OS AORES EM FINAIS DO REGIME DE CAPITANIA-GERAL

  • detalhe para o comrcio externo. A estrutura financeira do arquiplago,expressa atravs da fiscalidade e de uma avaliao das receitas e despesasda capitania-geral, encerra esta anlise. Um breve texto conclusivo antece-de um anexo documental e um conjunto de apndices, para alm da in-dispensvel bibliografia de suporte ao estudo.

    No tocante s fontes, sobretudo na documentao que integra oncleo da Capitania-Geral dos Aores, guarda da Biblioteca Pblica eArquivo de Angra do Herosmo, que se fundamenta o nosso estudo. Peloseu volume e variedade, este arquivo que o labor aturado de Sena Frei-tas impediu de se perder no amontoado da documentao arrojada para oantigo hospital de Angra1 merece uma breve referncia quanto sua ca-racterizao e interesse. De facto, este acervo , a todos os ttulos, notvel.Cobrindo todo o perodo que abrange a vigncia do regime de capitania-geral no arquiplago dos Aores, rene uma imensa massa documental cu-jo contedo, proporcionalmente relevncia das vrias ilhas, abarca todoo arquiplago, nomeadamente a diversidade das relaes que as ilhas esta-beleceram umas com as outras e com a corte. O material que trabalhmosfaz parte de um conjunto que compreende 349 livros j inventariados pe-los respectivos ttulos2 e mais de um milhar e meio de grossos maos queincluem documentao avulsa e, por vezes, agregando nmero varivel delivros de natureza diversa. Apresentando, em geral, razoveis condies deconservao para manuseamento e consulta, as falhas encontradas no soimpeditivas de uma aproximao consistente com a anlise das matriasestudadas, sendo que a maior dificuldade se coloca ao nvel da organiza-o da investigao a exigir o domnio de to vasto acervo. Desde docu-mentao relativa fazenda real, designadamente quanto s feitorias, al-moxarifados e junta da fazenda, passando pela fiscalidade e alfndegas,at aos registos de correspondncia e disposies normativas, este valiosofundo tudo rene em termos de permitir estudo aprofundado sobre as v-rias vertentes da administrao insular. Em plano de idntica relevncia,o acervo compreende tambm livros e documentao avulsa do maior in-teresse para o estudo da economia e das finanas dos Aores.

    RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA

    22

    1 Bernardino Jos de Sena Freitas, Relatorio Historico sobre a classificao do archivo existenteno antigo edificio do hospital da Santa Casa da Misericordia da cidade dAngra do Heroismo,precedida dalgumas reflexes sobre a importncia dos archivos publicos, Angra do Herosmo,Typ. de M.J. Leal, 1856.

    2 Mariana Mesquita, Roteiro provisrio dos livros da capitania geral dos Aores pertencentes seco de reservados da Biblioteca Pblica e Arquivo de Angra do Herosmo, in Arquip-lago, Revista da Universidade dos Aores, Srie Cincias Humanas, Nmero especial , 1983,pp. 237-278.

  • Por ordem de importncia no plano dos contributos para este tra-balho, segue-se a documentao do Arquivo Histrico Ultramarino, de-vendo afirmar-se, todavia, que um trabalho cuidado sobre os fundos dacapitania-geral dos Aores quase dispensaria investigao aprofundada na-quela instituio. A documentao que compulsmos mostrar-se-ia, qua-se sempre, redundante.

    Colmatando o vazio causado pela transferncia de documentaodo arquivo de Angra do Herosmo para a Alfndega de Ponta Delgada, aqual, pela aco benemrita de Ernesto do Canto acabou por ser subtra-da voragem da irresponsabilidade oficial e depositada no arquivo mica-elense, foi-nos possvel dispor dos livros de registo dos manifestos e co-brana dos direitos de sada e entrada de mercadorias no porto da ltimadaquelas cidades, sem o que ficaria inviabilizado o estudo do comrcioque se integra na segunda parte. Aqui, tambm, o volume da documenta-o surge como forte desafio persistncia de qualquer investigador j quea consulta e tratamento individualizado dos despachos que percorrem aspginas de mais de meia centena de livros, constitui tarefa morosa e deuma arreliadora monotonia.

    Num plano de complementaridade documental, conta-se a contri-buio da Torre do Tombo e dos arquivos municipais aorianos. Na Tor-re do Tombo mereceram-nos especial ateno as caixas relativas ao Minis-trio do Reino, a documentao relativa Legao Portuguesa em Lon-dres e alguns microfilmes do Projecto Reencontro.

    ** *

    No como quem cumpre uma espcie de ritual na escrita de umanota preambular desta natureza, mas por necessidade imposta por um de-ver de verdadeira gratido, registo, com admirao e apreo, o mais since-ro reconhecimento ao meu orientador Professor Doutor Avelino de Frei-tas de Meneses. A imediata anuncia ao meu pedido para me aceitar co-mo orientando e a disponibilidade com que sempre acompanhou as di-versas fases do meu trabalho, transformaram esse longo percurso numpersuasivo exerccio de grande valia pedaggica e cientfica.

    Com o desprendimento que a amizade faculta, e com a informali-dade de muitas oportunidades de convvio e de empenhamento comumem trabalhos e projectos que algumas vezes partilhmos, dos meus anti-gos mestres, Professor Doutor Jos Damio Rodrigues e Doutor Artur

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    OS AORES EM FINAIS DO REGIME DE CAPITANIA-GERAL

  • Boavida Madeira, recebi palavras de estmulo e ajuda que gostosamenteagradeo. Neste repositrio das pessoas que acompanharam este trabalho,manifesto s Doutoras Susana Costa, Susana Serpa Silva e Rute Gregrio,s quais tambm me liga agradvel recordao do tempo em que usufrudo seu magistrio, a minha gratido pela partilha solidria de longos diasde trabalho de arquivo que a sua jovialidade e amizade tornaram menospenosos.

    Fundao para a Cincia e a Tecnologia, deixo registada igual-mente a minha gratido pela bolsa de doutoramento concedida a qualpermitiu, com maior segurana e desafogo, suportar os encargos inerentesa um trabalho envolvendo custos apreciveis.

    Cmara Municipal da Horta e ao Ncleo Cultural da Horta, queentenderam ser til dar corpo a esta edio, manifesto a mais profundagratido, sublinhando o quanto me honra ver este trabalho apadrinhadopor duas instituies to relevantes da terra do meu nascimento e ondedecorreu parte importante da minha vida.

    Registo igualmente o meu apreo e agradecimento AssembleiaLegislativa Regional dos Aores, Fundao para a Cincia e a Tecnologiae Direco Regional da Cultura pelo patrocnio to significativo conce-dido a esta edio e que a credibiliza.

    Ponta Delgada, Junho de 2003 e Julho de 2005

    Ricardo Manuel Madruga da Costa

    RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA

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  • INTRODUO

    (......................................................................................................)A notcia do novo governo geral estabelecido em Angra causou nas di-versas povoaes da ilha mui variados effeitos e impresses, pois aomesmo tempo que abalava a conscincia dos que andavam no regi-mento e governana, causava uma viva sensao de alegria na gentepopular, com lisongeira esperana de melhorar uma sorte cruel, quepelo despreso dos governantes e defeito das dannosas instituies lhesparecia infinita, neste paiz despojado de seus naturaes, melhoramen-tos, e semeado, por assim dizer, de espinhos, na amargura dos parti-dos, e violencias que nelle dominavam. (......................................................................................................)in Francisco Ferreira Drummond, Anais da Ilha Terceira, reimpressofacsimilada da edio de 1859, Secretaria Regional de Educao eCultura, 1981, vol. 3, pp. 4-5.

    (......................................................................................................)E a mudana da residncia do rei para o Rio de Janeiro, do mesmomodo que lhes trouxe grandes bens pela criao de Tribunais, que lhesdecidiam todos os negcios, ficando nas suas terras as grandes somasque de hora em diante ho-de ir levar a Lisboa; trouxe-lhes contudotambm, grandes males. Os tributos vieram mais pesados; os recruta-mentos mais tiranos; os bens que a coroa havia usurpado a seus donosderam-se a validos do rei, com uma indiscrio jamais vista. Final-mente todos os mandados do governo eram atentados contra a liber-dade e propriedade dos cidados.(......................................................................................................)in Joo Soares de Albergaria de Sousa, Corografia Arica. Descrio fsi-ca, poltica e histrica dos Aores, 1 ed. 1822, (prefcio de J. G. Reis Lei-te), Ponta Delgada, Jornal de Cultura, 1995, pp. 57-58.

    Independentemente de uma perspectivao ideolgica dissonantequanto aos respectivos autores, as citaes em ante-texto reflectem, de algum

  • modo, o distanciamento entre as intenes subjacentes reforma que ins-taurou a Capitania-Geral dos Aores e ao que ela, de facto, conduziu, tradu-zindo a frustrao de expectativas que a sua introduo ter acalentado.

    Efectivamente, apesar do entusiasmo revelado por FerreiraDrummond nos seus Anais da Ilha Terceira1 quanto ao regime de capi-tania-geral mandado introduzir nos Aores em 1766 pelo futuro Mar-qus de Pombal, como o limiar de uma nova era, no parece transpa-rente que os resultados correspondam s intenes e, menos ainda, aoaparente empenho de alguns capites-generais, patente no contedode anunciadas medidas de disciplina administrativa e de fomento, no-meadamente no campo da agricultura.

    Quando compulsamos a volumosa e variada documentao doacervo reunido no fundo da Capitania-Geral dos Aores, guarda da Bi-blioteca Pblica e Arquivo de Angra do Herosmo, fica-nos a impressode que o regime criado por Pombal em 1766 gerou e alimentou umaenorme teia burocrtica que, em novos moldes e sob a aparncia de umadesejada modernidade, perpetuou, afinal, o quadro das dificuldades quejustificaram a reforma do ministro de D. Jos. De facto, embora tornan-do a relao mais prxima e personificada numa autoridade centralizado-ra com tutela escala insular, pode dizer-se que quase apenas se alterou aproximidade da esfera do Estado e a maior frequncia do relacionamentoentre as vrias instncias do poder nas ilhas.

    Importa ter ainda em conta que, se certo que nos Aores se instau-ra um regime centralizado que poderia potenciar uma maior eficcia gover-nativa, a verdade que a autoridade mxima representativa da coroa no ar-quiplago ir, por seu turno, ficar extremamente dependente das decises eorientaes do governo de Lisboa, perdendo, assim, qualquer margem deautonomia que pudesse tornar efectiva e profcua a autoridade de que esta-va investida. Como afirma Jos Enes, O sistema [das capitanias] agravou-secom a reforma pombalina, porque o Capito General no foi investido commais competncias do que as que tinham os capites do donatrio e centra-lizando na Terceira a ligao governativa de todas as ilhas com Lisboa acres-centou mais uma instncia retardadora e conflituosa no exerccio do poder2.

    No se recusar, certamente, que, por exemplo, a Real Fazenda noprocure impor disciplina nos gastos e mais rigor na arrecadao das recei-tas da coroa; como no se recusar que a administrao da justia ter pro-

    RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA

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    1 Francisco Ferreira Drummond, Anais da Ilha Terceira, reimpresso fac-similada da ed. de 1850, 4vols., Angra do Herosmo, Secretaria Regional de Educao e Cultura, 1981.

    2 Cf. Jos Enes, O 25 de Abril e a Autonomia Regional dos Aores, Ponta Delgada, ed. Direco Re-gional da Comunicao Social, [1984], p. 8.

  • curado ser mais pronta e menos arbitrria. O certo, porm, que a ideiasubjacente criao da capitania-geral e muito marcada pela personalida-de e estilo de actuao do seu primeiro titular, D. Anto de Almada, ilu-de apenas um facto: o de que a disciplina administrativa, o fomento eco-nmico e o desenvolvimento social, pouco ou nada se alteraram ao longodos anos de vigncia do regime.

    O alegado jbilo popular que Drumond considera ter saudado a che-gada que ele mesmo anuncia como auspiciosa de D. Anto de Almada eo juzo valorativo assaz encomistico que aquele historiador tece a propsitodas iniciativas daquele governante, que inaugura o sistema administrativo decapitania-geral, constituem avaliao cujo teor no pode deixar de suscitar asmaiores reservas. Ficam-nos dvidas se novidade do esforo diligentementeempreendido por D. Anto de Almada, alis em estrita obedincia s ins-trues particulares que lhe so confiadas , visvel em sistemticos diagns-ticos de situao, incidindo sobre os mais variados aspectos da vida aorianae em abundantes medidas de carcter regulador, corresponder um conjuntode realizaes evidenciando uma eficcia real e duradoura, como consequn-cia palpvel do sistema introduzido. Afinal, parece poder questionar-se se apersonalidade decidida deste governante responsvel pelo arranque da execu-o das reformas pombalinas de 1766 no redundar, porventura, num dina-mismo ilusrio, apenas porque contrastante com uma administrao tradi-cionalmente ineficaz, mas, na verdade, sem efectivo alcance quando observa-da numa perspectiva de mdio e longo prazos. Esta aproximao, do nossoponto de vista, mantm plena validade quanto aos sucessores no cargo. Mes-mo que se dispense o aprofundamento individualizado da aco governativados vrios capites-generais que asseguraram essa funo no arquiplago e noslimitemos a seguir o perfil biogrfico esboado por Faria e Maia3 para cadaum deles, no repugna aceitar a ideia de que a cada um corresponde um es-tilo prprio e um dado pendor para uma rea especfica da governao. Po-rm, da apreenso global das grandes linhas de actuao da coroa em relaoao arquiplago e do desempenho dos capites-generais, em especial at fi-nal do sculo XVIII , parece poder concluir-se no sentido de uma continui-dade governativa tendo como denominador comum a ausncia de verdadei-ro progresso para as ilhas aorianas. Na verdade, a funo era exercida numcontexto que, quer no plano da poltica nacional quer no que toca aos desen-volvimentos da conjuntura internacional, revelava ser incapaz de estimular al-teraes com incidncia significativa no arquiplago. Para sermos mais expl-

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    OS AORES EM FINAIS DO REGIME DE CAPITANIA-GERAL

    3 Francisco dAthayde de Faria e Maia, Subsdios para a histria de S. Miguel e Terceira. Capites-Ge-nerais. 1766-1831, 2. ed., Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1988.

  • citos, enquanto que no plano nacional a coroa no revela verdadeiro empe-nho no desenvolvimento das ilhas, remetendo-se para uma postura regulado-ra e fiscalizadora susceptvel de potenciar as rendas reais, no que se refere l-tima das vertentes apontadas, quer a Revoluo Americana quer a RevoluoFrancesa, para alm de perturbaes sensveis no quotidiano insular, em par-ticular nos fluxos do comrcio transatlntico, no suscitam alteraes mere-cedoras de referncia. Pode bem dizer-se que no fervilhar agitado das ondasde choque que entre 1770 e 1848, de um e outro lado do Atlntico, do cor-po chamada Revoluo Atlntica4, os Aores, de um ponto de vista social eeconmico tero permanecido quase intocados. No afirmaremos o mesmoquanto a eventuais repercusses no plano ideolgico-cultural, j que plau-svel que a grande abertura do arquiplago ao exterior por via dos seus portose a renovao frequente dos magistrados judiciais nomeados para o arquip-lago, facultassem uma inevitvel contaminao ideolgica. A presena no ar-quiplago dos chamados deportados da Amazona chegados ao arquiplagono ano de 1810 constituir, a este propsito, oportunidade acrescida para queas ideias que abriram caminho instaurao do liberalismo em Portugal, sepropagassem junto das elites aorianas mais esclarecidas, embora a sua real in-fluncia esteja por esclarecer5.

    Em qualquer caso, entre o acto fundador da Capitania-Geral dosAores em 1766 e o dealbar do sculo XIX, julgamos que a vida aorianadecorre sem que ocorram factos ou mudanas que permitam destacar per-odos merecedores de particular ateno, para alm daquela que j foi dadapor Jos Guilherme Reis Leite6 e Avelino de Freitas de Meneses7, os histo-riadores que reforma de Pombal nos Aores dedicaram aprofundado la-bor. Mesmo para alm do limiar do novo sculo, objecto da nossa ateno,o modelo estrutural por eles fixado, permanece actual, seja do ponto de vis-ta social, econmico ou institucional, funcionando como matriz referenci-al para o regime de capitania-geral nos Aores.

    RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA

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    4 Jacques Godechot, As Revolues (1770-1799), So Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1976, p. 4.5 Sobre os deportados da Amazona ver Simo Jos da Luz Soriano, Historia da Guerra Civil e do Go-

    verno Parlamentar em Portugal comprehendendo a historia diplomatica, militar e poltica deste reinodesde 1777 at 1834, Lisboa, Imprensa Nacional, 1879, t.III, p. 84-100. Sobre os deportados daAmazona nos Aores ver Francisco dAtahyde Machado de Faria e Maia, Um deportado da Ama-zonas. Monografia 1810-1834, Ponta Delgada, Tip. Fernando de Alcantara, 1930; Jos Guilher-me Reis Leite, A entrada no contemporneo vista dos Aores in Boletim do Instituto Histrico daIlha Terceira, Angra do Herosmo, 1999, vol. LVII, pp.549-562.

    6 Jos Guilherme Reis Leite, Administrao, sociedade e economia dos Aores, 1766-1793, in Ar-quivo Aoriano, Coimbra, Ed. Grupo de Estudos Aorianos, 1971, vol. 16, pp. 269-474.

    7 Avelino de Freitas de Meneses, Os Aores nas encruzilhadas de Setecentos (1740-1770), 2 vols., (I-Poderes e Instituies; II-Economia), Ponta Delgada, Universidade dos Aores, 1993-1995.

  • Chegados a vsperas de Oitocentos, o arquiplago dos Aores pare-ce de novo reduzido a um estado de desordem que, nalguns aspectos, seapresenta com contornos anlogos ao que teria fundamentado a decisode Pombal para levar por diante um conjunto de reformas de sentido mo-dernizador a que j nos referimos.

    Poder mesmo antecipar-se que a capitania-geral nas duas primeirasdcadas do sculo XIX se acha em perodo de decadncia at porque os cons-trangimentos que pesam sobre a realidade insular, tanto de ordem internacomo externa, definem uma conjuntura fortemente adversa. Sobretudo apsa transferncia da corte portuguesa para o Brasil em finais de 1807, a auto-nomia dos Aores relativamente aos Governadores do Reino, substituda,privilegiadamente, pelo relacionamento directo com a coroa no Rio de Ja-neiro, dando lugar a um labirntico e lento circuito de relaes epistolares viaMadeira, Lisboa ou Londres, mistura com extravios e reencaminhamentospelo Faial e S. Miguel, cria, um tanto paradoxalmente, um vazio de poder.Com efeito, o ordenamento jurdico existente, no que toca aos Aores, per-manece inalterado mas, agora, num quadro de rarefaco de comunicaese de acrescidas dificuldades que teriam exigido metodologia orientada parauma maior rapidez das decises e sua execuo. A ausncia da regncia noBrasil, no s no rompe com uma visvel ineficcia no funcionamento dasinstituies, como d lugar ao seu agravamento devido ao distanciamento dacorte condicionando fortemente as relaes entre a coroa e a capitania-geral.

    Mesmo a aparente ruptura que um assento de 1808, por iniciativa daJunta da Real Fazenda da presidncia do capito-general, parece configurar,dando ordens que suspendem disposies da legislao rgia em vigor, limi-tadoras do exerccio do comrcio com as ilhas, corresponder a um mero im-pulso que as extraordinrias circunstncias do momento explicaro, mas semqualquer continuidade8.

    Sendo claro que a soluo concebida por Pombal ao criar um regimede forte centralizao, protagonizado por um poder sediado em Angra, masmanifestamente dependente em relao s instncias de Lisboa, e, depois,do Brasil, parte desde incio penalizada pela disperso que caracteriza o ar-quiplago e pela deficiente estrutura da rede de transportes. inquestion-vel que num cenrio de maior distanciamento das instncias de poder, ago-

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    OS AORES EM FINAIS DO REGIME DE CAPITANIA-GERAL

    8 Trata-se de um assento datado de 4 de Janeiro de 1808, na sequncia da partida da corte para oBrasil, contendo um conjunto de disposies destinadas a ultrapassar as dificuldades do bloqueiodos portos do reino com o consequente isolamento dos Aores em relao ao continente portu-gus. O documento encontra-se transcrito in Ricardo Manuel Madruga da Costa, As invasesfrancesas e a transferncia da coroa portuguesa para o Brasil, in Arquiplago-histria, 2 srie, III,Ponta Delgada, Universidade dos Aores, 1999, pp. 294-296.

  • ra exercido a partir do Brasil, e da concomitante ruptura com os Governa-dores do Reino cuja autoridade no tem aplicao nos Aores, tudo se tor-na mais complexo. Alis, o prprio Ferreira Drumond exprime esta ideia deforma muito lcida ao afirmar: Mudou-se ento a sede do governo para oRio de Janeiro, e sem embargo do muito que se lucrou na criao de certostribunais em Lisboa, todos os negcios que dependiam da corte tornaram-se muito mais difceis e dispendiosos pela sua dilao e longitude9.

    1. A CONJUNTURA INTERNACIONALA abordagem que nos propomos fazer impe a apresentao das li-

    nhas essenciais definidoras do quadro histrico da poca em apreo. , donosso ponto de vista, um exerccio indispensvel, j que a aparente inr-cia da vida aoriana vai ser fortemente agitada pelas ondas, ainda que porvezes algo amortecidas, causadas por um entrecruzar de dinmicas que noAtlntico Norte tm palco privilegiado.

    Dispensamo-nos de mergulhar na profundidade das causas mais re-motas que explicam a emergncia das mltiplas disputas que vo envolverPortugal e que resultam, sobretudo, da laboriosa busca de equilbrios vi-sando impedir a afirmao de potncias de vocao hegemnica. Apenastomaremos como referencial histrico a conjuntura surgida com a Guer-ra da Sucesso de Espanha cujo desfecho, com o Tratado de Utrecht em1713, no inviabiliza as aspiraes hegemnicas da Frana. A ecloso daGuerra dos Sete Anos, recobrindo os anos que vo de 1756 a 1763, cons-titui episdio elucidativo da tentativa de reposicionamento da Frana noconcerto europeu, dela no resultando mais do que o perpetuar da rivali-dade para com a Inglaterra cuja supremacia nos mares se afirmava de for-ma crescente. no mbito da estratgia poltica associada a estes confli-tos que se explica o apoio da Espanha e da Frana s lutas de independn-cia das colnias inglesas da Amrica, como oportunidade para atingir efragilizar o poderio britnico. Para Portugal, atendidos, naturalmente, osinteresses especficos que derivavam dos riscos da nossa proximidade coma Espanha e da necessidade da salvaguarda da integridade do espao bra-sileiro num cenrio em que as duas naes vizinhas se afrontavam, a fide-lidade para com a velha aliana luso-britnica prevaleceu, impondo as ori-entaes da nossa diplomacia de alinhamento com a Inglaterra10.

    RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA

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    9 Francisco Ferreira Drumond, Apontamentos topogrficos, polticos, civis e ecclesisticos para a hist-ria das nove ilhas dos Aores servindo de suplemento aos Anais da Ilha Terceira, Angra do Herosmo,Instituto Histrico da Ilha Terceira, 1990, p. 46.

    10 Sobre a problemtica das relaes internacionais de Portugal no contexto dos conflitos europeusdo sculo XVIII, ver Avelino de Freitas de Meneses (coord.), Portugal da paz da Restaurao ao

  • neste quadro conjuntural e seguindo a interpretao de Jorge Bor-ges de Macedo11, apontando para a afirmao em finais do sculo XVIII dedois blocos cuja propenso hegemnica, em termos espaciais, se exprimenas vertentes martima e continental, representados, respectivamente, pelaInglaterra e pela Frana, que deparamos com um cenrio no qual sobressai,com crescente relevncia, a questo americana, tanto no Sul como nos Es-tados Unidos, j independentes da Gr-Bretanha. Se certo, ainda na linhainterpretativa de Borges de Macedo12, que as disputas envolvendo Portugale a Espanha com vista fixao de fronteiras, e que se inserem num qua-dro estratgico mais vasto definido pelo Atlntico Sul e suas ligaes com arota do Cabo e com o Mediterrneo, reclamam o interesse de Portugal naabordagem diplomtica a que os diferentes pases implicados procede, no menos importante que as questes que envolvem a Amrica do Norte, emparticular com a ex-metrpole, obrigam igualmente a diplomacia portu-guesa a uma ateno cuidada. De facto, um eventual favorecimento da po-ltica francesa decorrente da conflitualidade anglo-americana, coloca em ce-na o conjunto dos pases na esfera dos quais, de modo mais estreito, gravi-tam os interesses de Portugal. Como reconhece o historiador que temosvindo a referir, A Frana, a Espanha, a Gr-Bretanha e Portugal detinhamos pontos fundamentais do Oceano Atlntico. A crescente interveno des-te ltimo na vida europeia ia agravar a luta pelas posies conhecidas comoessenciais13. Em consonncia com esta linha de pensamento, Godechotafirma que Na Frana no se errava quando se pensava que, para vencer aGr-Bretanha, era preciso arruinar o seu comrcio. Ora esse comrcio erafeito, um tero com a Europa, um tero com a Amrica do Norte e um ter-o com o resto do Mundo14.

    Face ao poder das potncias em confronto e emergncia crescen-te da ameaa napolenica, exigindo da parte de Portugal uma posio pro-

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    OS AORES EM FINAIS DO REGIME DE CAPITANIA-GERAL

    ouro do Brasil, in Joel Serro e A.H. de Oliveira Marques, Nova Histria de Portugal, Lisboa, Edi-torial Presena, 2001, pp. 148 e ss.; Jorge Borges de Macedo, Histria diplomtica portuguesa.Constantes e linhas de fora. Estudo de Geopoltica, s.l., Edio da Revista Nao e Defesa, s.d.,pp. 201 e ss.; Antnio Horta Fernandes; Antnio Paulo Duarte, Portugal e o equilbrio peninsu-lar. Passado, presente e futuro (Um estudo de geoestratgia), Mem Martins, Publicaes Europa-Amrica, 1998, p. 59 e ss.; Paulo Miguel Rodrigues, A poltica e as questes militares na Madei-ra. O perodo das Guerras Napolenicas, Funchal, Centro de Estudos de Histria do Atlntico,1999, pp. 25-48. Sobre as perturbaes causadas nos Aores pela Guerra dos Sete Anos, ver Ave-lino de Freitas de Meneses, Os Aores nas encruzilhadas de Setecentos (1740-1770), I-Poderes e Ins-tituies, Ponta Delgada, Universidade dos Aores, 1993, pp. 362 e ss.

    11 Jorge Borges de Macedo, op. cit., pp.295 e ss.12 Id., pp. 311-316.13 Id., p. 316.14 Cf. Jacques Godechot, Europa e Amrica no tempo de Napoleo (1800-1815), So Paulo, Livraria

    Pioneira Editora, 1984, p. 135.

  • piciadora de condies susceptveis de conferir poltica continental fran-cesa completa eficcia, a regncia portuguesa vai enveredar pela via deuma diplomacia visando obter um estatuto de neutralidade. Ver-se-, en-tretanto, que a necessidade de acautelar velhas fidelidades e a indispensa-bilidade de manter pacificada a fronteira com a vizinha Espanha, a que te-r de adicionar-se a preocupao de salvaguardar a defesa dos interessesdas colnias portuguesas, em especial o Brasil, vai inviabilizar os esforosda diplomacia portuguesa naquele sentido.

    Era claro o dilema colocado coroa portuguesa: por um lado o de-sejo de preservar a aliana com a Inglaterra, o que implicava o desagrado dolado francs; do outro, a necessidade de manter a paz com a vizinha Espa-nha a qual, por sua vez, permanecia em situao igualmente difcil peranteas duas inimigas tradicionais. Portugal e a Espanha estavam conscientes dosriscos que corriam, fossem quais fossem as opes que as respectivas coroasviessem a tomar. A Campanha do Rossilho em 1793, na qual Portugal se-cunda a iniciativa espanhola contra a Frana, para alm de inconclusiva mi-litarmente, tem um efeito clarificador de largas consequncias. Marginali-zados pela Espanha no concerto das diligncias para colocar termo s hos-tilidades, aquela acabar por estabelecer uma paz separada de que, natural-mente, resulta agravada a vulnerabilidade de Portugal15.

    Ao ligar-se Frana, a Espanha definia-se perante a Gr-Bretanha, ePortugal surgia, inequivocamente, para qualquer uma das partes envolvi-das, numa posio fundamental na estratgia de domnio dos mares ondeuma guerra se tornava inevitvel para definio da contenda entre a Franae a Gr-Bretanha. neste quadro, sobretudo aps a derrota francesa no ca-bo Trafalgar no ano de 1805, que a poltica do bloqueio continental, em-preendida por Napoleo, ganha pleno sentido e na busca da sua eficciaplena que o governo de Lisboa confrontado com as presses francesas como objectivo de vedar o acesso britnico aos portos portugueses16.

    No obstante o persistente afastamento dos Aores das pginas dahistoriografia portuguesa tratando desta problemtica17 (e tambm da

    RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA

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    15 Cf. Jorge Borges de Macedo, op. cit., pp. 332-333.Sobre a Campanha do Rossilho e as diligncia posteriores para manter Portugal numa posiode neutralidade ver Simo Jos da Luz Soriano, op. cit., t.III (Primeira poca), pp. 227-243.

    16 Cf. Jorge Borges de Macedo, O Bloqueio Continental. Economia e Guerra Peninsular, 2 ed., Lis-boa, Gradiva, 1990, pp. 35 e ss. Sobre as implicaes do bloqueio continental em Portugal vertambm Jacques Godechot, Europa e Amrica no tempo de Napoleo (1800-1815), So Paulo, Li-vraria Pioneira Editora, 1984, pp. 188-189.

    17 Sobre esta omisso na historiografia portuguesa, ver Jos Guilherme Reis Leite, Os Aores e osinteresses ingleses no Atlntico durante a Guerra Peninsular, in Arquiplago, n especial1988:Relaes Aores-Gr-Bretanha, Ponta Delgada, Universidade dos Aores, 1988, p. 103.

  • Madeira a qual, apesar de tudo, ter uma maior visibilidade em virtudeda sua ocupao pelas foras inglesas18), a verdade que o arquiplago es-t associado aos acontecimentos deste perodo que, para Portugal, iroculminar com as Invases Francesas no findar de 1807. Estas, e a subse-quente transferncia da corte portuguesa para o Brasil, com consequn-cias que, no tempo, se situam muito para alm do abandono do solo por-tugus pelas tropas de Massena em 1811, tm no arquiplago dos Aoressignificativas implicaes19.

    No perodo que decorre de 1800 a 1820 e para alm das condi-cionantes nacionais derivadas de um quadro de mudana com implicaonas ilhas, mais ou menos coincidente com a investidura oficial de D. Jo-o como Prncipe Regente de Portugal o Arquiplago dos Aores ar-rastado para a cena internacional, impondo-se-lhe uma teia complexa deacontecimentos de grande significado cuja ocorrncia vai atravessar, qua-se sem interrupo, as duas dcadas que nos interessa abordar.

    Uma vez mais, as ilhas aorianas renovam o seu prstimo de escalade insubstituvel valor, seja num plano meramente logstico seja no con-figurar de estratgias contemplando novas exigncias e necessidades e no-vas inter-relaes20.

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    OS AORES EM FINAIS DO REGIME DE CAPITANIA-GERAL

    18 Sobre este tema ver Paulo Miguel Rodrigues, op. cit.19 Ver Ricardo Manuel Madruga da Costa, Faial 1808-1810. Um tempo memorvel, in Boletim do N-

    cleo Cultural da Horta, vol. XI, 1993-95, pp. 135-284; id., As Invases Francesas e a transferncia daCoroa Portuguesa para o Brasil. Algumas repercusses nos Aores, in Arquiplago-histria, Ponta Del-gada, 2 Srie, vol. III, 1999, pp.275-324; id., Guerra Peninsular, conjuntura transatlntica e seu im-pacto nos Aores, in Boletim do Instituto Histrico da Ilha Terceira, vol.LVII, 1999, p.97-104.Sobre as invases francesas, em geral, ver Jos Acrsio das Neves, Histria Geral da Invaso dosFranceses em Portugal e da Restaurao deste Reino, 2 vols., Porto, Edies Afrontamento, s.d. Pa-ra uma viso mais ampla no tocante Pennsula Ibrica, ver Simo Jos da Luz Soriano, op. cit.,maxime tomos II, III e IV.

    20 Sobre a relevncia da posio geoestratgica dos Aores, ver Artur Teodoro de Matos, Subsdiospara a Histria da Carreira da ndia: documentos da nau S. Pantalio: 1592, in Boletim do Arqui-vo Histrico Militar, n 45, 1975, pp. 12-45; id., Os Aores e a Carreira das ndias, in Estudos deHistria de Portugal, II, Lisboa, 1983, pp. 95-110; id., A Provedoria das Armadas da Ilha Tercei-ra e a Carreira da ndia no Sculo XVI, in II Seminrio Internacional de Histria Indo-Portuguesa,Lisboa, Instituto de Investigao Cientfica Tropical, 1985, pp. 63-72; id. Aores: ponto de con-vergncia de rotas comerciais, in Oceanos, Comisso Nacional para as Comemoraes dos Desco-brimentos Portugueses, n 1, 1989, pp. 83-86; Avelino de Freitas de Meneses, Os Aores e o dom-nio filipino (1580-1590), 2 vols., (I-A Resistncia Terceirense e as implicaes da Conquista Espanho-la; II-Apndice documental), Angra do Herosmo, Instituto Histrico da Ilha Terceira, 1987; Id.,Os Aores nas encruzilhadas de Setecentos (1714-1770), 2 vols., Ponta Delgada, Universidade dosAores, 1993; Id., Os Aores na conjuntura Euro-Ultramarina de Setecentos in Estudos de His-tria dos Aores, Ponta Delgada, Jornal de Cultura, 1995, vol. II, pp. 17-42; Frdric Mauro, LesAores dans la dinamique de lAtlantique du XVIe sicle nos jours: remarques introdutrices, inBoletim do Instituto Histrico da Ilha Terceira, vol. XLV, t.1, 1987, pp. 19-30; Maria Olmpia daRocha Gil, O Arquiplago dos Aores no Sculo XVII. Aspectos scio-econmicos (1575-1675), Caste-

  • Pensamos que depois da crise dinstica de 1580 e da subsequenterebelio aoriana, que apenas ver o seu termo em 1583, jamais ter ocor-rido na histria dos Aores conjuntura alguma cuja complexidade e en-volvncia externas se lhe compare e em que, tal como naquele perodo,se individualize neste arquiplago um quadro histrico merecedor de des-taque e de adequada ateno e anlise21.

    Passamos a identificar, de forma sucinta, os factos mais salientesque compem essa teia conjuntural a que acima se faz referncia e na qualos Aores, de forma varivel mas sempre significativa, se vem envolvidos.

    1.1 O conflito europeuA afirmao de que sempre que o oceano constitui uma rea efecti-

    va ou potencial, de confronto, Portugal est nele, inevitavelmente, envolvi-do22, explica o crescente comprometimento de Portugal no conflito euro-peu, sobretudo aps o ano de 1792, quando D. Joo assume responsabilida-des governativas em substituio de sua me, situao que apenas ser ofici-alizada em 1799. Esse envolvimento vai obrigar a uma intensificao do es-foro diplomtico da corte portuguesa perante o acentuar da presso france-sa medida que a estratgia continental de Napoleo exige maior clarifica-o e compromisso dos pases ibricos. Neste quadro, que ir comportar al-guns episdios blicos a anteceder a Guerra Peninsular, as ilhas atlnticas soj apercebidas pela coroa como componente estratgica cuja integridade soba soberania portuguesa necessrio salvaguardar, garantindo a sua defesa.No caso da Madeira, as preocupaes britnicas que justificam uma pri-

    RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA

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    lo Branco, ed. da autora, 1979, pp. 339-352; Carreiro da Costa, Esboo histrico dos Aores, PontaDelgada, Instituto Universitrio dos Aores, 1978, pp. 109-113; Ricardo Manuel Madruga daCosta, Consideraes sobre o valor geoestratgico dos Aores e o elucidativo relato de um com-bate naval nos mares do arquiplago em 1819, in Colquio Vasco da Gama os Oceanos e o futuro.Actas do colquio, Lisboa, Escola Naval, 1999, pp. 116-120. Sobre as vantagens dos arquiplagospara a criao de condies propiciadoras de uma profundidade atlntica conferindo a Portugalpapel essencial na definio estratgica das potncias em confronto, ver Antnio Jos Telo, O pa-pel dos Aores no posicionamento portugus no mundo, in Pensar os Aores hoje. Actas do Col-quio, Ponta Delgada, Forum Aoriano, 1997, pp. 51-70, maxime, pp. 53-56; Jos Manuel Azeve-do Silva, A importncia dos espaos insulares na construo do Mundo Atlntico, in Histria dasIlhas Atlnticas (Arte, Comrcio, Demografia, Literatura), Funchal, Centro de Estudos de Histriado Atlntico, 1997, vol 1, pp. 125-161.

    21 Sobre o perodo do domnio dos ustria no arquiplago dos Aores, ver por todos, Avelino deFreitas de Meneses, Os Aores e o domnio filipino (1580-1590), 2 vols., (I-A Resistncia Terceiren-se e as implicaes da Conquista Espanhola; II-Apndice documental), Angra do Herosmo, Institu-to Histrico da Ilha Terceira, 1987. Ver ainda do mesmo autor, Os Aores contra Filipe II(1581-1583). Um episdio das rivalidades geopolticas da Europa de Quinhentos,in Estudos deHistria dos Aores, Ponta Delgada, Jornal de Cultura, 1994, vol.I, pp.123-173.

    22 Cf. Jorge Borges de Macedo, Histria diplomtica portuguesa. Constantes e linhas de fora. Estudode Geopoltica, s.l., Edio da Revista Nao e Defesa, s.d., p.315.

  • meira ocupao da ilha em 180223 tm expresso visvel na conveno se-creta24 celebrada a 22 de Outubro de 1807 entre as cortes britnica e portu-guesa25. J os Aores escapam, aparentemente, s atenes oficiais. Porm,quer as instrues emitidas pelo visconde de Anadia para o capito-generaldos Aores, D. Miguel Antnio de Melo, pouco antes da fuga da coroa pa-ra o Brasil26, quer o evoluir dos acontecimentos ligados ao novo contexto deocupao de Portugal, fazendo deslocar e intensificar as operaes navais in-glesas para a extenso do Atlntico de Norte a Sul, obrigam o governador ecapito-general a tomar medidas adequadas governao do arquiplago.Como o obrigam disponibilidade de facilidades para satisfao das neces-sidades logsticas inglesas27 decorrentes das mesmas operaes o que, tudoconsiderado, demonstra o protagonismo dos Aores28. Para ilustrar este pro-tagonismo, podemos mencionar, de um lado, o afrouxamento do rigor legis-lativo restringindo as trocas comerciais, nomeadamente a exportao degros para pases estrangeiros, como forma de ultrapassar as dificuldades co-locadas pelo bloqueio, de que resultaria o corte temporrio das comunica-es entre as ilhas e a capital do reino29, de outro, a renovada intensificaodas diligncias junto da corte e do enviado de Portugal junto da corte brit-nica, D. Domingos Antnio de Sousa Coutinho, com vista defesa das cos-tas contra eventuais foras navais inimigas30. Acresce a este enunciado, a ne-

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    OS AORES EM FINAIS DO REGIME DE CAPITANIA-GERAL

    23 Sobre o processo que precedeu a assinatura da conveno secreta, ver Paulo Miguel Rodrigues,op. cit., pp. 145-168.

    24 Colleo de tratados, convenes, e actos publicos celebrados entre a coroa de Portugal e as mais poten-cias desde 1640 at ao presente, Lisboa, Imp. Nacional, 1856 a 1858, t. 4, pp. 236-253.

    25 Ver Paulo Miguel Rodrigues, op. cit., p. 267 e ss.26 Ver aviso do visconde de Anadia para o capito-general D. Miguel Antnio de Melo, datado de

    7 de Outubro de 1807, transcrito in Ricardo Manuel Madruga da Costa, Faial 1808-1810. Umtempo memorvel, in Boletim do Ncleo Cultural da Horta, vol. XI, 1993-95, p. 197.

    27 Ver documento 20 em anexo transcrevendo carta do almirante Cotton.28 Sobre esta problemtica do envolvimento do arquiplago, quer no plano da logstica britnica, quer

    na administrao da capitania-geral e seu relacionamento com a corte, na decorrncia da sua fixa-o no Brasil e dos impactos que a situao traria para os Aores, ver os estudos citados na nota 19.

    29 Ver o assento correspondente s deliberaes da reunio de 4 de Janeiro de 1808 da Junta da Re-al Fazenda dos Aores, in Ricardo Manuel Madruga da Costa, As Invases Francesas e a trans-ferncia da Corte Portuguesa para o Brasil. Algumas repercusses nos Aores, in Arquiplago-histria, 2 srie, vol. III, 1999, pp. 294-297, j cit.

    30 Apenas a ttulo de exemplo, e como facto directamente associado situao de ruptura entre Por-tugal e a Frana, refira-se a presena de corsrios franceses nos mares dos Aores em 1797, cf.Antnio Loureno da Silveira Macedo, Histria das quatro ilhas que formam o distrito da Horta,(reimpresso fac-similada da edio de 1871), Angra do Herosmo, Secretaria Regional da Edu-cao e Cultura, 1981, vol. 1, p. 275. Ver igualmente Francisco Ferreira Drummond, Anais daIlha Terceira, reimpresso fac-similada da ed. de 1850, Angra do Herosmo, Secretaria Regionalde Educao e Cultura, 1981, vol.3, j cit., pp. 88-89.Sobre o papel da Inglaterra na defesa das ilhas dos Aores aps a 1 invaso levada a cabo por Ju-not em 1807, ver Jos Guilherme Reis Leite, Os Aores e os interesses ingleses no Atlntico du-

  • cessidade por parte do capito-general dos Aores da coordenao dos agen-tes da governao local para o apoio logstico mencionado navegao alia-da e s tropas acantonadas na Madeira, mesmo em perodos de crise de sub-sistncias, de que, no raras vezes, derivaram conflitos e mal-estar social31, ea interveno na moderao de tumultos envolvendo contrabando e a pre-sena de tripulaes estrangeiras nos portos das ilhas e a consequente desor-dem social32. Imps-se ainda no plano da aco governativa, especial aten-o no controlo das finanas, face s exigncias e solicitaes, quer das ins-tncias da coroa no Rio de Janeiro, quer do enviado de Portugal na corte deLondres em nome daquela33 com vista satisfao do servio da dvida re-sultante do emprstimo contratado entre Portugal e a Inglaterra em 1809.Em suma, em termos muito abrangentes e nas circunstncias que ento con-dicionavam o governo, pode afirmar-se que ao capito-general cabia assegu-rar as condies para que o arquiplago aoriano estivesse capacitado para odesempenho de funes caractersticas de uma verdadeira provedoria a meiodo Atlntico, em especial no novo quadro do exerccio do poder a partir doBrasil, implicando um volume acrescido de escalas34.

    Este simples enunciado, como se ver ao longo deste trabalho, colocao arquiplago sob a influncia cruzada de presses e exigncias cujos resulta-dos iro deixar marcas profundas no plano social, econmico e institucional.

    1.2 A Guerra de 1812Quando o presidente Washington declarou a neutralidade dos Estados

    Unidos da Amrica em Abril de 1793, provvel que no suspeitasse estar acriar condies para o acentuar das dissenes com a Gr-Bretanha, como re-

    RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA

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    rante a Guerra Peninsular, in Arquiplago, n especial 1988:Relaes Aores-Gr-Bretanha, Pon-ta Delgada, Universidade dos Aores, 1988, p. 104-105.

    31 Ver Ricardo Manuel Madruga da Costa, passim, Faial 1808-1810. Um tempo memorvel, inBoletim do Ncleo Cultural da Horta, vol. XI, 1993-95, j cit.

    32 Id., ibidem; sobre a prtica do contrabando, em especial com a interveno de cidados britni-cos e das implicaes da sua ingerncia nos assuntos do governo dos Aores, ver Jos GuilhermeReis Leite, Os Aores e os interesses ingleses no Atlntico durante a Guerra Peninsular, in Ar-quiplago, n especial 1988:Relaes Aores-Gr-Bretanha, Ponta Delgada, Universidade dosAores, 1988, j cit., p. 108 e ss.

    33 Ver Ricardo Manuel Madruga da Costa, As Invases Francesas e a transferncia da Corte Por-tuguesa para o Brasil. Algumas repercusses nos Aores, in Arquiplago-histria, 2 srie, III,1999, j cit., pp.275-324.

    34 Id., Os Aores nas rotas da Amrica Portuguesa nas duas primeiras dcadas do sculo XIX. O sig-nificado de uma escala, in As Ilhas e o Brasil, Funchal, Ed. Centro de Estudos de Histria do At-lntico, 2000, pp. 443-458, maxime, p. 457-458; id., Consideraes sobre o valor geoestratgicodos Aores e o elucidativo relato de um combate naval nos mares do arquiplago em 1819, in Co-lquio Vasco da Gama os Oceanos e o futuro. Actas do colquio, [Lisboa], Escola Naval, 1999, j cit.,pp. 116-120.

  • sultado das naturais sequelas da Guerra da Independncia opondo os doispases. Menos ainda poderia antecipar o cenrio de conflito que a Amrica te-ria de enfrentar face Frana, fazendo ruir uma solidariedade revolucion-ria que iria mostrar-se assaz frgil35. Afinal, em causa estava o exerccio livredo comrcio martimo por parte dos Estados Unidos da Amrica com as pos-sesses ultramarinas da Frana e da Espanha nas Carabas, que desencadeariaum longo e desgastante processo diplomtico em que a Inglaterra, ciosa dadefesa dos seus interesses face inimiga Frana, joga todo o seu poder por for-ma a impedir, por via do referido comrcio, vantagens para aquele pas.

    A invocao da chamada Rule of 175636 pela Inglaterra, a qual legi-timava o apresamento de embarcaes neutras que, em tempo de guerra,exercessem comrcio em portos inimigos que, em perodo de paz, lhes esti-vessem vedados, como era o caso dos portos das metrpoles europeias e su-as colnias, pode considerar-se o ponto de partida do conflito. O frequenteapresamento de navios americanos pelos ingleses e uma guerra de corso emcrescendo (muitas vezes nas guas aorianas, na proximidade das suas costase, mesmo, no interior dos seus portos), acabaro por conduzir os EstadosUnidos da Amrica e a Inglaterra Guerra de 1812. Independentemente des-te desfecho a que os Aores no ficaro de todo alheios, importa referir queas negociaes realizadas pelo enviado do governo americano, John Jay, jun-to da corte de Londres, no s no solucionam a crise como a agravam, j queos privilgios de neutralidade reclamados pela Amrica permanecem compro-metidos. Todavia, mesmo imperfeito na sua formulao, segundo a perspec-tiva americana, o tratado negociado por John Jay em 1794 origina grande res-sentimento por parte da Frana. Como facto agravante, a Inglaterra suscitaainda o conceito de mercadoria inimiga, em funo da sua verdadeira ori-gem, afectando severamente os interesses americanos e franceses, levando aFrana a desencadear aces de corso contra os navios americanos, do que re-sultaria uma situao de quase-guerra, ainda que no declarada, entre os doispases37. Alm dos interesses em jogo, aos franceses colocava-se uma questoideolgica, reclamando da parte dos Estados Unidos uma manifestao de so-lidariedade republicana38. Para os Estados Unidos da Amrica a questo nopodia colocar-se neste plano j que era a prpria sobrevivncia nacional e adefesa de princpios de liberdade de comrcio que o exigia. No culminar da

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    OS AORES EM FINAIS DO REGIME DE CAPITANIA-GERAL

    35 Ver Bradford Perkins, The Cambridge History of American foreign relations. Vol.I. The creation ofa republican empire, 1776-1865, Cambridge, Cambridge University Press, 1995, p. 81 e ss.; Ber-nard Bailyn et al., The Great Republic. A history of the American people, 3 ed., Lexigton e Toron-to, D. C. Heath and Company, 1985, p. 247 e ss.

    36 Bernard Bailyn et al., op. cit., p. 247 e ss.37 Id., p.248.38 Cf. Bradford Perkins, op. cit., p. 101.

  • tenso entre a Amrica e a Frana, no decorrer da qual a marinha americanaperderia centenas de navios, assiste-se ao recrudescimento da intolerncia in-glesa para com o comrcio martimo da sua antiga colnia, sobretudo aps1805, facto patente na deciso do almirantado britnico sobre o navio ame-ricano Essex, cujo apresamento resultou do transporte de vinho entre Barce-lona e Havana39. A circunstncia de o navio ter feito uma escala intermdianos Estados Unidos um subterfgio algo ineficaz para contornar as exign-cias britnicas no alterava a natureza da mercadoria e o caso, na perspecti-va britnica, configurava a situao prevista na chamada Rule of 1756 aci-ma mencionada. Se a esta situao associarmos os efeitos dos decretos napo-lenicos de Berlim e Milo datados de 21 de Novembro de 1806 e 11 de No-vembro de 1807, respectivamente 40, inferir-se- que o comrcio martimoneutral no Atlntico fica fortemente afectado. Os referidos decretos, respos-ta ao bloqueio decretado em 1806 pelos ingleses sobre toda a linha de costadesde o Elba at Brest, no s excluam os navios ingleses e as mercadoriaspor eles transportadas dos portos sob controle napolenico, como previam aconfiscao dos navios das naes neutras que acolhessem as regras britnicas,designadamente consentindo vistorias aos seus navios para verificao damercadoria. Com as Orders in Council do governo ingls, de Novembro de1807, proibindo todo o comrcio com a Frana e seus domnios41, fechava-se a apertada malha reguladora da marinha de comrcio cruzando o Atlnti-co. Para os Estados Unidos da Amrica isto significava uma dupla sujeio, jque o seu invocado estatuto de neutralidade, em funo dos condicionamen-tos que as naes beligerantes se impunham mutuamente, acabava por fazerda jovem repblica vtima directa de um conflito a que recusava associar-se42.A persistncia das condies adversas e a intransigncia britnica em pr fimaos actos de hostilidade contra a marinha americana, nomeadamente a humi-

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    39 Id., p. 118.40 Ver o texto integral dos decretos in Leone Levi, The history of british commerce and of the econo-

    mic progress of the british nation. 1763-1878, Shannon, Irish University Press, 1971, pp.113; 119.A estratgia francesa, independentemente dos aspectos militares, no deixa de manifestar, tam-bm no plano econmico, os receios da Frana perante o poderio da Inglaterra e o domnio im-perial em expanso. A afirmao e consolidao do imprio britnico nos finais do sculo so oresultado amadurecido da expanso inglesa alcanada no perodo da guerra com a Frana napo-lenica. Ver C. A. Bayly, Imperial Meridian. The British Empire and the World. 1780-1830, 5ed., Edimburgo, Longman, 1997, maxime p. 100 e ss.

    41 Cf. Bradford Perkins, op. cit., p. 119; ver texto integral destas decises do Conselho in Leone Le-vi, op. cit., pp. 116-119.

    42 No obstante o que se afirma, notar que, no s a procura de bens por parte dos pases europeusaumentou, como as exportaes americanas cresceram de modo acentuado; entre 1791 e 1807,as referidas exportaes passaram de 19 milhes para 49 milhes de U.S.dollars, cf. BradfordPerkins, op. cit., pp. 92 e ss.

  • lhante prtica do impressment43 de que, at 1815, ter resultado o desembar-que forado de mais de 10.000 marinheiros de bordo de navios americanos,acabar por desencadear do lado americano, agora sob a presidncia de Jeffer-son, um conjunto de medidas legislativas visando prejudicar os interesses in-gleses44. Contudo, a sucesso de prticas restritivas para alcanar esse objecti-vo, saldar-se- por uma enorme falta de eficcia.

    A primeira deciso americana de natureza retaliativa encontra-se con-substanciada no Nonimportation Act de 18 de Abril de 1806, proibindo a im-portao de diversos artigos com origem nos portos de Inglaterra e Irlanda ebem assim das colnias britnicas45. O mesmo se aplicava a produtos inglesesembarcados em portos estrangeiros. Seguiu-se o Embargo declarado peloCongresso com vigncia entre 22 de Dezembro de 1807 e 1 de Maro de1809, proibindo os navios americanos em portos sob jurisdio americana,mesmo os que se encontrassem carregados e despachados, de sarem dos Es-tados Unidos46. Embora a inteno fosse subtrair os navios americanos aosriscos que as imposies britnicas e francesas implicavam e, ao mesmo tem-po, sugerir um aviso no sentido de criar a ideia de que a Amrica estaria a re-unir recursos para uma guerra, a verdade que se tratava de uma deciso for-temente gravosa para os armadores e para o comrcio dos Estados Unidos47.Apesar de ser entendido como uma medida de carcter temporrio, as pres-ses internas e a frequente violao das disposies promulgadas dariam lu-gar sua revogao e substituio pelo Nonintercourse Act aprovado pelo Con-gresso a 1 de Maro de 180948. Em termos sucintos, o diploma fazia cessartodo o comrcio entre os Estados Unidos da Amrica do Norte com a Gr-Bretanha e a Frana49. A reiterada ineficcia das medidas legislativas acabaria

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    OS AORES EM FINAIS DO REGIME DE CAPITANIA-GERAL

    43 Consistia no desembarque forado de marinheiros americanos pela marinha inglesa, na presunode que seriam cidados britnicos. Sobre esta questo ver Bradford Perkins, op. cit., pp. 121-122.Este autor adianta como justificao para esta prtica uma forma de atenuar a dificuldade britni-ca em recrutar anualmente cerca de dez mil homens para a sua marinha. Ver tb. Donald R. Hickey,The war of 1812. A short history, Urbana e Chicago, University of Illinois Press, 1995, p. 7.

    44 Cf. Bernard Bailyn et al., op. cit., pp.274 e ss.45 Ver texto integral do decreto in Richard Peters, esq., Public statutes at large of the United States of

    America, from the organization of the Government in 1789, to March 3, 1845, Boston, Charles C.Little and James Brown, 1845, vol. 2, p. 379.

    46 Cf. Richard Peters, esq., op. cit., p. 451.47 Sobre o embargo, ver Bradford Perkins, op. cit., pp. 126-130; Burton Spivak, Jeffersons English

    Crisis. Commerce, embargo, and the republican revolution, Charlotsville, University Press of Virgi-nia, 1979.

    48 Cf. Richard Peters, esq., op. cit., p. 528. 49 O que o legislador no podia proibir era a baldeao de uns milhares de fardos de algodo e ou-

    tras mercadorias transportadas para os Aores por cerca de duas centenas de navios americanos, re-embarcados na ilha do Faial para outros tantos navios ingleses que ali vinham com esse fim. , cer-tamente, um aprecivel contributo para o bom desempenho da indstria britnica. Sobre este as-

  • por dar lugar adopo de uma nova lei. O Macon Bill No. 2, de 1 de Maiode 1810, foi a forma subtil de encontrar um desfecho prtico para os suces-sivos insucessos legislativos dos republicanos50. Na prtica, a lei proibia a en-trada a navios ingleses e franceses em portos americanos mas ressalvava umacondio que consistia em embargar o comrcio a uma das potncias, no ca-so da outra levantar as proibies decretadas contra os Estados Unidos.

    Uma inflexo de poltica por parte dos franceses no quadro da l-tima daquelas medidas legislativas, revogando as imposies anteriores so-bre o comrcio neutro, determinou em 1811 a declarao americana dononintercourse contra a Gr-Bretanha51.

    Isolado um nico inimigo, estavam criadas as condies para o de-sencadear da Guerra de 1812. A persistncia das prticas do impressment,as restries britnicas ao livre exerccio do comrcio americano consigna-das nas Orders in Council e a violao de guas territoriais americanas pe-la Royal Navy, constituam para os dirigentes americanos actos intoler-veis52. Era a prpria independncia nacional que estava em causa. Apesarde militarmente inconclusiva, a guerra opondo a Inglaterra e a Amricateria o seu eplogo em 1815 na cidade belga de Ghent53.

    O evoluir do confronto latente, opondo os Estados da Amrica doNorte Inglaterra e Frana, a ineficcia das vrias medidas legislativas pro-mulgadas pelas naes em conflito visando restringir o comrcio transatln-tico, e, finalmente, a Guerra de 1812, tm nos Aores episdios cujo signifi-cado merecedor de meno, entrecruzando-se com o desenrolar do confli-to especificamente europeu o qual, de igual modo, envolve o arquiplago. Defacto, seja como palco da operao corsria em que, na fase derradeira, avul-ta o episdio do combate entre uma esquadra inglesa e o corsrio americanoGeneral Armstrong ocorrido na baa da Horta, ilha do Faial, em 181454, seja

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    sunto ver Bradford Perkins, op. cit., pp. 130-133; Ricardo Manuel Madruga da Costa, Faial 1808-1810. Um tempo memorvel, in Boletim do Ncleo Cultural da Horta, 1993-95, vol. XI, j cit.,pp. 135-284.

    50 Cf. Richard Peters, esq., op. cit., p. 605-606. Ver tb. sobre este assunto Bradford Perkins, op. cit.,pp. 130-133.

    51 Id., p. 276; sobre o impacto destas medidas no Estado de Massachusetts, o que detinha maiortonelagem de navios no conjunto dos Estados Unidos, ver Samuel Eliot Morison, The MaritimeHistory of Massachusetts. 1783-1860, Boston, Northeastern University Press, 1979, pp.187-212.

    52 Sobre as causas e desenvolvimento da Guerra de 1812 ver Donald R. Hickey, The war of 1812.A short history, Urbana e Chicago, University of Illinois Press, 1995.

    53 Ver Donald R. Hickey, op. cit., p. 93 e ss.; Bradford Perkins, op. cit., pp.141 e ss.54 Sobre o combate referido ver [Samuel Chester Reid], History of the wonderful battle of the brig Gen.

    Armstrong at Fayal, Azores, 1814 and of the American flag, Boston, L. Barta & Co. Printers, 1893;General Armstrong e o canho Long Tom. Victory at Fayal, Horta, Direco Regional de Turismo, s.d.;Roxana Lewis Dabney (compil.), Annals of the Dabney Family in Fayal, [Boston], ed. for private cir-culation, [1899], vol. I, pp. 47-66; Jorge Martins Ribeiro, O papel dos arquiplagos dos Aores e da

  • como entreposto comercial ao servio dos interesses dos Estados Unidos e daInglaterra, como plataforma de baldeao de mercadorias no perodo do no-nintercourse em que as relaes comerciais entre as duas naes estavam blo-queadas, o arquiplago aoriano marca presena relevante na urdidura dosacontecimentos da histria destas duas dcadas que nos propomos tratar55.Alis, o estratagema da baldeao de mercadorias nos Aores, reembarcandoem navios ingleses grandes quantidades de algodo proveniente dos EstadosUnidos da Amrica, compreendia-se inteiramente, se tivermos em conta queas antigas colnias eram o principal fornecedor de algodo da florescente in-dstria britnica56. Tenha-se presente que o algodo constitua a matria pri-ma fundamental no processo de desenvolvimento da revoluo industrial emcurso na Inglaterra desde os anos 60 do sculo XVIII57.

    1.3 As lutas de independncia das colnias espanholasPassada a Guerra de 1812 com a assinatura do Tratado de Ghent em

    1815, constatamos uma como que reedio do reconhecimento do arquipla-go como rea de eleio para a prtica do corso. Praticamente sem interrup-o, os Aores so agora submetidos s vicissitudes resultantes do corso asso-ciado s lutas desencadeadas nas colnias espanholas da Amrica para obten-o da independncia. As ilhas, por este motivo, ficam sujeitas a verdadeirosvexames, tanto mais ultrajantes quanto derivam da absoluta ineficcia das de-fesas insulares, realidade que jamais mereceu soluo adequada, pese embora afrequente reclamao das autoridades das ilhas, precisamente em face da pre-mncia das situaes com que se confrontaram ao longo destas duas dcadas.

    curioso notar que a frequente apario de corsrios nos Aores, des-ta feita ao servio da causa dos chamados insurgentes, est de algum modoligada aos interesses americanos por via do comrcio martimo. Com efeito,apesar da proibio do governo americano, na decorrncia do Neutrality Actde 1794, no sentido de impedir o alistamento de marinheiros a bordo de na-vios estrangeiros e da proibio de armar navios de pases em guerra, em por-

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    OS AORES EM FINAIS DO REGIME DE CAPITANIA-GERAL

    Madeira no relacionamento luso-americano nos finais do sculo XVIII e incios do sculo XIX, inV Colquio internacional de Histria das Ilhas do Atlntico. O papel das ilhas do Atlntico na criao docontemporneo, Angra do Herosmo, Instituto Histrico da Ilha Terceira, 2000, pp. 285-305.

    55 Sobre esta problemtica e no que tem a ver com o envolvimento dos Aores, ver Ricardo Manuel Ma-druga da Costa, Faial 1808-1810. Um tempo memorvel, in Boletim do Ncleo Cultural da Horta,1993-95, vol. XI, pp. 135-284; id., Guerra Peninsular, conjuntura transatlntica e seu impacto nosAores, in Boletim do Instituto Histrico da Ilha Terceira, 1999, vol.LVII, j cit., pp. 97-104.

    56 Cf. P. J. Cain, Economics and Empire: The Metropolitan context, in Andrew Porter (ed.), The Ox-ford History of the British Empire, Oxford, Oxford University Press, 1999, p. 33.

    57 Cf.Joel Mokyr, Technological change, 1700-1830, in Roderick Floud; D.N. McCloskey (ed.),The Economic History of Britain since 1700, 2 ed., Cambridge, Cambridge University Press,1994, pp. 12-43.

  • tos americanos, o certo que essa prtica foi comum58. As simpatias revolu-cionrias que haviam justificado a solidariedade francesa face independn-cia dos Estados Unidos da Amrica, so, provavelmente, as mesmas que ex-plicam o envolvimento dos americanos nas lutas de independncia das col-nias a Sul do continente comum. At por razes mais fortes, como atestaMarc Ferro, ao afirmar que na Amrica do Sul, o movimento dos colonosobedeceu, em parte, a motivaes semelhantes s dos colonos da Amrica doNorte59. Maria Jess Servi vai para alm deste reconhecimento, ao deixarclaro que os movimentos que conduziram independncia das colnias espa-nholas (e tambm do Brasil), foram, se no determinados, pelo menos forte-mente influenciados pelo iderio do iluminismo e pelo sopro revolucionriovindo dos Estados Unidos e de Frana60. Calvet de Magalhes sugere razesbem mais prosaicas para o envolvimento americano. De facto, alcanada em1815 a paz entre a Inglaterra e os Estados Unidos da Amrica, os armadoresdeste pas dispunham de uma enorme frota mercante que a guerra de corsomobilizou no decorrer da Guerra de 1812. Da conciliao das simpatias pe-la causa dos independentistas sul-americanos com os interesses econmicosem jogo, ter resultado o apoio dos Estados Unidos a estes ltimos61.

    Todavia, a instabilidade espanhola, que deriva da Guerra Peninsular edas implicaes da Constituio de 1812, proporciona as condies favor-veis ao eclodir das independncias das colnias da Amrica do Sul62. MariaJess Servi aponta mesmo a crise dos pases ibricos, subsequente polticaexpansionista de Napoleo, como o verdadeiro detonador dos movimentosrevolucionrios de independncia63. No entanto, aps a derrota de Napoleoem 1814 e o concomitante regresso de Fernando VII a Espanha, o processoindependentista j tinha ganho a solidez necessria para garantir o seu pr-prio sucesso64. Por isso, para John Lynch A independncia da Amrica La-tina, realizada entre 1808 e 1826, foi um processo que se precipitou quandoNapoleo invadiu a Espanha e Portugal, dado que a invaso cortou de factoas comunicaes entre as colnias ibero-americanas e as suas metrpoles65.

    RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA

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    58 Bradford Perkins, op. cit., p.90.59 Cf. Marc Ferro, Histria das colonizaes. Das conquistas s independncias scs. XIII-XX, Lisboa,

    Editorial Estampa, 1996, p. 266.60 Cf. Maria Jess Servi, Formacin y consolidacin de los Estados Iberoamericanos, in Patricio

    de Blas et al., Historia comn de Iberoamrica, Madrid, Editorial Edaf, S.A., 2000, pp. 286-287.61 Cf. Jos Calvet de Magalhes, Histria das relaes diplomticas entre Portugal e os Estados Uni-

    dos da Amrica (1776-1911), Mem Martins, Publicaes Europa Amrica, 1990, p. 92.62 Cf. Maria Jess Servi, op. cit., pp. 286-287.63 Id. p. 294. 64 Id. pp. 298-300.65 Cf. John Lynch, As Guerras de independncia na America Latina, in Histria Universal. sia,

    frica e Amrica. Sculos XVI-XVIII, Lisboa, Publicaes Alfa, 1985, vol. 7, p. 353.

  • neste contexto que as lutas de independncia das colnias espa-nholas da Amrica do Sul, que na sua vertente naval daro lugar ao corsodos designados insurgentes de Buenos Aires, ganham visibilidade nasguas aorianas com numerosos episdios que analisaremos neste trabalho.

    Desta feita, as ilhas no proporcionam apenas o cenrio desse per-sistente cruzar de inmeros navios corsrios em busca de presas espanho-las. So os prprios interesses do comrcio martimo portugus que serofortemente afectados.

    Em virtude da poltica externa portuguesa para com os movimen-tos independentistas a Sul do Brasil, e no obstante o vigor da guerrilhaencabeada por Artigas, as foras portuguesas ocupam Montevideu em1816, constituindo, em toda a regio fronteiria do Rio Grande do Sul, aProvncia Cisplatina. Era a velha aspirao do domnio do Prata que re-gressava e que os tratados de Madrid de 1750 e o de S.to Ildefonso, de1777, apenas aparentemente fizera esquecer66.

    Os Aores, destitudos de qualquer dispositivo de defesa minima-mente dissuasor, oferecem rea privilegiada de manobra, tanto mais que asua posio geogrfica faz confluir, como bem sabido, a navegao dasrotas do Cabo, do Brasil e das colnias espanholas.

    Uma vez mais se cumpre a ideia to bem explanada por BentleyDuncan ao considerar a desproporo entre a relevncia intrnseca de al-gumas ilhas remotas em relao a continentes, como as dos Aores, avali-ada pelos seus prprios recursos e importncia econmica, e a valia queefectivamente detm por razes que a fatalidade da geografia faz sobrele-var67. S que, agora, domnio de um pas em guerra contra os indepen-dentistas de Buenos Aires, tambm os Aores e as suas gentes ficavam soba real ameaa do corso dos chamados insurgentes.

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