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CC 4 – História Regional, Novas Abordagens Coordenador: Charles Nascimento de Sá Origem da Festa “Camacan e o Cacau” Charles Nascimento de Sá 1 Maria de Lourdes Neto Simões 2 . RESUMO Este artigo visa compreender o desenvolvimento da cidade de Camacan, e sua influência no surgimento da Festa “Camacan e o Cacau”. Analisa a importância desse evento na construção da cultura local e seu impacto para o turismo no ano de seu aparecimento, identifica a participação dos dirigentes e líderes locais (intelectuais), na idealização e concretização desse evento. Palavras-chave: cidade, festa, cultura, turismo. ABSTRACT This article aims at understand the development of Camacan city, and its influence in appearing of the Feast “Camacan e o Cacau”. It Analysis the importance of this event in the construction of culture place and its impact for the tourism in 1977; identify the participation of the commandants and leaders places (intellectuals) in the idealization and concreting of this event. Keywords: city, feast, culture, tourism 1 Professor de Cultura e História do Brasil na Faculdade de Tecnologia e Ciências de Itabuna, Especialista em História Regional pela UESC, Mestrando em Cultura e Turismo, UESC-Ufba, participante do Projeto Testemunhos para a História: Preservação da Memória Regional, CEDOC-UESC. [email protected] 2 Doutora em Literatura Portuguesa, Pós-Doutora em Tursimo Cultural, Professora de Literatura na Universidade Estadual de Santa Cruz e no Mestrado em Cultura e Turismo – UESC/UFBa.

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CC 4 – História Regional, Novas Abordagens

Coordenador: Charles Nascimento de Sá

Origem da Festa “Camacan e o Cacau”

Charles Nascimento de Sá1

Maria de Lourdes Neto Simões2.

RESUMO

Este artigo visa compreender o desenvolvimento da cidade de Camacan, e sua influência nosurgimento da Festa “Camacan e o Cacau”. Analisa a importância desse evento na construção dacultura local e seu impacto para o turismo no ano de seu aparecimento, identifica a participação dosdirigentes e líderes locais (intelectuais), na idealização e concretização desse evento.

Palavras-chave: cidade, festa, cultura, turismo.

ABSTRACT

This article aims at understand the development of Camacan city, and its influence inappearing of the Feast “Camacan e o Cacau”. It Analysis the importance of this event in theconstruction of culture place and its impact for the tourism in 1977; identify the participation of thecommandants and leaders places (intellectuals) in the idealization and concreting of this event.

Keywords: city, feast, culture, tourism

1 Professor de Cultura e História do Brasil na Faculdade de Tecnologia e Ciências de Itabuna, Especialista emHistória Regional pela UESC, Mestrando em Cultura e Turismo, UESC-Ufba, participante do ProjetoTestemunhos para a História: Preservação da Memória Regional, CEDOC-UESC. [email protected] Doutora em Literatura Portuguesa, Pós-Doutora em Tursimo Cultural, Professora de Literatura naUniversidade Estadual de Santa Cruz e no Mestrado em Cultura e Turismo – UESC/UFBa.

2

Todo problema histórico perpassa pelo conhecimento do objeto a ser estudado, seu

espaço e seu tempo. São essas funcionalidades que permitem ao historiador enquadrar uma

análise histórica sobre um determinado tema, dentro de

um período delimitado. Nesse contexto, a compreensão da importância e atuação

dos intelectuais enquanto agentes fomentadores de uma ideologia, e conservadores de uma

cultura, torna-se imprescindível para a compreensão de eventos singulares na formação de

uma sociedade e sua cultural.

A região cacaueira, situada no sul da Bahia desenvolveu-se sob a égide do cacau.

Devido a esse produto toda uma cultura e simbologia foram gestadas nesse espaço. Os

moradores, intelectuais e pessoas que tiveram contato com essa área, perceberam no cacau

o grande agente formador de nossa cultura.

Produzir uma festa que homenageasse as pessoas e o cacau foi dessa forma um dos

principais meios utilizados para consolidar a cultura regional. A Festa “Camacan e o

Cacau” representou e ainda representa um significativo exemplo de como se originou uma

simbologia própria para a área do cacau. Essa festa, que já possui mais de vinte anos,

simboliza para os moradores de Camacan e de cidades circunvizinhas, o seu principal

momento de diversão e confraternização.

A cidade de Camacan, por sua condição de pólo convergente das cidades sob sua

área de influência, representa a principal localidade da micro região cacaueira depois de

Ilhéus e Itabuna. È na festa Camacan e o Cacau que se comemora a emancipação política

de Camacan e onde se encontram os líderes e intelectuais dessa cidade. A harmonia desse

momento serve como meio de comemoração de uma data que, se beneficiou a um pequeno

grupo, é ali festejada por todos3.

Esse evento, que vai de 26 de agosto a 01de setembro geralmente, é o momento

festivo para as pessoas que residem na área sob influência de Camacan. Devido a sua

continuidade por um período de mais de vinte anos essa festa é o principal momento da

cultura e do turismo da cidade de Camacan. No período desse evento para lá convergem

3 Esse parágrafo e todo o histórico encontram-se em: Sá, Charles N. de. Os Intelectuais e a EmancipaçãoPolítica de Camacan .Monografia para o curso de Especialização em História Regional, UESC, Ilhéus, 1999.

3

muitas pessoas de outras cidades como Pau-brasil, Canavieiras, Mascote, Arataca, Jussari,

Itabuna. A Festa Camacan e o Cacau transformou-se dessa forma no principal

acontecimento cultural da cidade de Camacan, e no mais importante das cidades

circunvizinhas. Nesse contexto faz-se necessário se indagar qual a origem desse evento, e

qual o efeito do início desse acontecimento para o turismo em Camacan. São essas duas

perguntas que se pretende compreender nesse artigo.

A formação de uma sociedade grapiúna foi gestada ao longo dos séculos dezenove e

vinte nos municípios de Ilhéus e Canavieiras, foram essas duas cidades as primeiras a se

dedicarem ao cultivo e plantio do cacau. A economia do cacau foi assim responsável pela

organização e modelamento desse espaço social. Gradativamente, ao longo de choques e

disputas entre as várias classes que iam constituindo essa área, foi se firmando uma cultura

própria.

Esse espaço rural foi aos poucos assumindo aspectos de um meio urbano.

Canavieiras, e principalmente Ilhéus, foram se configurando como cidades que

paulatinamente passaram a ocupar uma importância econômica e política cada vez maior no

Estado.

O desenvolvimento dessas duas áreas foi acompanhado pelo surgimento de novos focosurbanos os quais passaram a gravitar ao redor desses dois principais centros de poder.Itabuna, distrito pertencente a Ilhéus, e Camacan, povoado pertencente a Canavieiras,foram exemplos de duas cidades que surgiram durante a expansão do cacau para novasáreas e que, posteriormente, adquiriram um perfil urbano, político e econômico que lhespossibilitaram superar suas antigas sedes.

A cidade de Camacan surgiu durante o período de expansão da lavoura cacaueira no

sul da Bahia. Ela teve seu início ainda no século dezenove quando o fazendeiro Antônio

Elias Ribeiro decidiu sair de suas terras em Canavieiras, banhadas pelo rio Pardo, para

procurar novas áreas de plantio na região dos índios Camacoan, a qual era banhada pelo rio

Panelão. Nessas circunstâncias, ocorreu a primeira experiência com mudas de cacau

naquele local.

Comprovada a excelência do terreno para o plantio do produto e depois de sofrer

inúmeras perdas de cacauais em sua fazenda, devido às enchentes do rio Pardo, o coronel

Antônio Elias Ribeiro decide se mudar para a região dos índios Camacoan. Lá, juntamente

4

com seus filhos, funda o povoado do Vargito, primeiro núcleo populacional do futuro

município de Camacan.

Durante as décadas que vão de 1930 a 1950, foi intenso o aumento de migrações

para essa área. O núcleo do Vargito foi gradativamente sendo suplantado pelo

desenvolvimento de um novo povoado em terras da Fazenda Camacan de João Ribeiro

Vargens. Iniciava-se, assim, uma nova etapa na expansão demográfica na região do cacau.

A partir de 1953, com a elevação de Camacan a distrito de Canavieiras, começou a

haver a circular de idéias sobre a emancipação. Vários fatores colaboraram para o

nascimento e fortalecimento tais idéias, merece destaque o desenvolvimento econômico do

distrito, o qual já suplantava sua sede em arrecadação, e a vontade política por parte dos

dirigentes de Camacan, em especial as Famílias Moura e Vargens, de produzirem para si

um espaço de manutenção de seu poder político.

De 1958 a 1961 ocorreram intensas movimentações com o objetivo de se conseguir

a emancipação. De um lado os representantes de Camacan se articularam com outros

grupos para conseguirem sua “libertação” de Canavieiras. Do outro lado, os políticos e

autoridades municipais da cidade tudo fizeram para impedir a emancipação. A principal

liderança, a época em Canavieiras, foi o então prefeito coronel Osmário Cavalcanti

Batista4.

Esse jogo político teve como principal grupo os intelectuais. Foram eles os

responsáveis pelas articulações e elaborações de uma política e ideologia que permitiram às

elites em lutas um municiamento ideológico que justificasse suas atitudes e necessidades.

Dessa forma, através de seus discursos e práticas políticas, os intelectuais locais

conseguiram transmitir aos moradores das duas cidades uma carga de informações que foi

vital para absorção de conhecimentos e para a tomada de posições por parte dos moradores

de Camacan e de Canavieiras.

A atuação dos intelectuais, grupo organizado e cônscio de seu papel de ideólogos dasociedade, permitiu então que os políticos de Camacan conseguissem separar a cidadede sua sede. No ano de 1961, o governador em exercício Orlando Moscoso, assinou a

4 Essa palavra foi a mais utilizada por aqueles que articularam o processo de emancipação de Camacan frentea Canavieiras, em especial João Santos, um dos principais ideólogos da emancipação. Idem.

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Lei que criava o município de Camacan e determinava seus limites. No ato dessaassinatura encontrava-se o deputado estadual José Ribeiro de Moura que, ao lado de seuirmão, Boaventura Ribeiro de Moura, havia sido o principal dirigente de todo oprocesso de emancipação. De 1961, quando foi assinada a Lei, até 1963, Camacanpermaneceu ainda sob a jurisprudência de Canavieiras. Em 1963, foi empossada aprimeira Câmara de Vereadores que contava com intelectuais que haviam participadodo processo de emancipação. Tomou posse também como primeiro prefeito deCamacan, Boaventura Ribeiro de Moura.

Os intelectuais tiveram então papel destacado nessa luta política. Médicos,

advogados, comerciantes, profissionais liberais, engenheiros, além dos próprios políticos.

Realizaram, dessa forma, o seu papel de agentes direcionadores e organizadores da

sociedade. É o papel de ideólogos que caracterizam esse grupo como intelectuais. Ao

agirem no seio da sociedade como organizadores práticos das atividades necessárias para a

emancipação, eles se enquadraram no conceito de intelectuais proposto por Antônio

Gramsci, isto é, um grupo cônscio do seu papel de organizadores práticos da sociedade5.

A consolidação político-administrativa do município de Camacan passou por

enormes percalços nos seus primeiros anos. Pouca coisa havia sido feita pelos

administradores de Canavieiras no período em que essa cidade ficara responsável pela

gestão pública da de Camacan.

Quando ocorreu a posse do primeiro prefeito, no ano de 1963, esse teve que enfrentarenormes dificuldades de organização da nova prefeitura local. A cidade, nessa época,não possuía nada mais que um grupo pequeno de casas, em sua maioria de tábuas, semcalçamento, esgoto, água encanada, luz e telefone. Enfim não havia os aspectosnecessários para se proporcionar aos moradores locais as condições mínimas deconforto e segurança. Boaventura começou, então, a realizar alguns calçamentos, masde modo especial iniciou a construção de uma barragem para a geração de energiaelétrica para a cidade de Camacan. Ao final de seu mandato já existia energia elétrica,uma atitude que foi muito questionada pela oposição da época pelo fato de a Coelba játer iniciado a construção de torres de transmissão para a cidade.

Boaventura foi substituído por Carlos Araújo, político amigo do ex-prefeito e que

deu continuidade às obras do primeiro dirigente. A política local de Camacan foi sendo,

dessa forma, cooptada pela jurisdição das duas principais famílias locais, Moura e Vargens,

até o ano de 1972, quando o padre Auxêncio, pároco da cidade e candidato pela oposição,

ganhou as eleições para prefeito.

5 GRAMSCI, Antônio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. São Paulo: Civilização Brasileira, 1995.

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A vitória de padre Auxêncio foi um duro golpe no continuísmo dos principais

mandatários locais. Ao término desse governo as forças políticas tradicionais conseguiram

retomar o poder. Foi eleito para prefeito o fazendeiro Luciano José de Santana maior

produtor mundial de cacau na década de oitenta. Com ele tem início a Festa Camacan e o

Cacau que passou a ser chamada por seus moradores a “Festa da Cidade”.

O aparecimento da festa foi dessa forma conduzido para que houvesse um momento

de reconhecimento e de comemoração da população local por toda a história do município.

A Festa “Camacan e o Cacau” foi idealizada e conduzida dentro de um objetivo bem

definido: realizar por meio de seus festejos, danças, músicas e divertimentos uma

comemoração pela história da localidade. Seriam lembrados os pioneiros, os líderes, as

figuras mais proeminentes, o governador e chefes estaduais e o cacau. Obviamente as

pessoas lembradas durante a festa foram àquelas ligadas política e ideologicamente ao

grupo dominante local.

Os dirigentes de Camacan idealizavam uma comemoração que fizesse jus ao porteeconômico dessa localidade. Os principais líderes de então Boaventura Ribeiro deMoura, Olympio Ribeiro Vargens, Carlos Araújo, Waldemar Rodrigues de Sá, JoãoSantos, Anísio Sabino Loureiro Filho, Luciano José de Santana, Padre Auxêncio, dentreoutros, acalentavam a idéia de produzirem para sua cidade uma festa em enaltecimentoà emancipação, ou “libertação” como eles se referiam.

A festa, idealizada dessa forma, serviria como um fator de convergência política e

cultural dos moradores locais com a cidade, mas principalmente com suas lideranças

políticas. Antes do surgimento da festa, comemorava-se em Camacan a semana da pátria.

Essa comemoração, que ocorria uma semana depois da data em que se festejava a

emancipação, estava ancorada no fato de o Brasil se encontrar sob o direcionamento

político da ditadura militar. A demonstração dessa cidadania era um fator primordial para

se angariar as benesses dos poderes federal e estadual.

A semana da Pátria serviu, dessa forma, como uma ponte para a implantação da

festa em comemoração à emancipação de Camacan. No ano de 1976 o prefeito municipal

padre Auxêncio realizou uma comemoração pela emancipação da cidade. Esse evento que

contou com trio elétrico e bandas e foi a primeira comemoração realmente festiva sobre a

emancipação.

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Foi em 1977 que o prefeito municipal Luciano José de Santana instituiu as

comemorações pela emancipação do município. A partir dessa data a emancipação seria

comemorada todos os anos, tornando esse evento singular e único em toda a região

Cacaueira. Essa festividade ocorreu juntamente com aquela dedicada à semana da pátria.

Foi ainda uma comemoração pequena, pois a prefeitura local encontrava-se com pouco

dinheiro em caixa, de acordo com a afirmação feita por Luciano ao Diário da Tarde de

Ilhéus. Outro fator que também contribuiu para isso foi o pouco tempo dedicado à

organização do evento, pois como se encontra na reportagem do Diário da Tarde, faltando

menos de dez dias para a festa, que seria em 29 de agosto, ainda não se sabia se iria

contratar um trio elétrico ou não6.

A partir do dia 27 de agosto os moradores dessa cidade passaram a externar, em

forma de danças, músicas e muita bebida, seus parabéns à “libertação” de Camacan7.

O surgimento da festa teve então um claro objetivo de proporcionar aos moradores

de Camacan uma formação ideológica que permitiu a essas pessoas a elaboração de um

pensamento local pautado na reverência aos principais responsáveis pela separação política.

Mesmo assim, muitos personagens foram esquecidos, sendo que coube aos chefes das

Famílias Moura e Vargens, boa parte das comemorações.

Esse aspecto de criação de um símbolo local que produzisse um sentimento de

coesão social profunda entre os moradores dessa localidade foi imprescindível para a

sedimentação do poder político dos dirigentes locais. A Festa Camacan e o Cacau

possibilitou ao grupo hegemônico a absorção por parte da população local de sua ideologia,

que enaltecia alguns fazendeiros enquanto relegava as outras lideranças, em especial

aquelas da oposição, a um papel secundário na história do município.

3- O efeito do evento como investimento turístico.

O turismo em Camacan, no ano de 1977 era ainda uma opção pouco desenvolvida peloslíderes políticos de então. Esse fenômeno não deve ser vislumbrado como umairresponsabilidade dos dirigentes locais, mas sim como uma impossibilidade por parte

6 População de Camacan reclama da Embasa: não existe água. In: Diário da Tarde de Ilhéus.. N.º 13.555, p.1, col. 2 e 3, Ilhéus 17 de agosto de 1977.7 Camacan um município em desenvolvimento. In. Diário da Tarde de Ilhéus, nº 13.561, p. 1, central, 29 deagosto de 1977.

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do município em abrigar um grupo maior de pessoas. Afora esse aspecto o turismonesse período não era ainda encarado como uma fonte geradora de recursos. A cidadecontava nessa época com algumas pousadas familiares ou pequenos hotéis. Essesgeralmente eram casas com vários cômodos nos quais os viajantes pernoitavam semnenhum conforto ou luxo.

Um outro grande empecilho para o turismo, nesse período, encontrava-se na

precariedade de comunicação terrestre entre Camacan e as cidades da região,

principalmente entre Itabuna e essa localidade. Elas eram de cascalho e o percurso entre

Camacan e Itabuna não se fazia em menos de quatro horas. Todos esses fatores foram

entraves importantes para que a primeira festa não tenha se transformado em fonte de

exploração turística. Essa atividade só se desenvolve em um ambiente onde o turista possa

ser bem atendido e onde ele se sinta confortável, (Petrocchi,1998).

Apesar de não haver proporcionado um deslocamento de pessoas da região para

Camacan, a primeira Festa “Camacã e o Cacau” foi importante enquanto fonte de lazer e

divertimento aos habitantes da localidade. O passado e o presente se encontraram em uma

projeção de futuro para os moradores locais, ou nas palavras de Calvino: “Uma cidade

exibe muitas, e ao contemplar o que ela é hoje em dia é possível vislumbrar o que ela fora

outrora”, (Calvino, 1990).

As comemorações, que duraram três dias, foram intensamente aproveitadas pelos

moradores, produzindo-se a fixação na população de uma simbologia nova e de uma

expectativa quanto a continuidade desse acontecimento. O saber e o viver local tiveram sua

afirmação cultural. As esperanças e desejos dos moradores de Camacan puderam, enfim, se

externalizar, permitindo a afirmação de seus valores e a solidificação de seus costumes e

memória.

O início dos festejos em comemoração à emancipação política local foi prenunciado

como um grandioso acontecimento pelos dirigentes de Camacan. Reportagens em jornais

locais testemunharam o início da festa como “um grande acontecimento para os

moradores dessa localidade”, (Diário da Tarde de Ilhéus, 1977). O efeito para o turismo no

entanto, não fora sentido no seu início. Essa atividade não conseguiu em seu primeiro ano

se firmar como uma opção de lazer e divertimento para os residentes de outras localidades.

A vinda de pessoas de outras áreas ou regiões é que compõe a peça principal na

9

orquestração do turismo enquanto fonte de renda para um município ou estado. A atração

turística deve conter elementos que possibilitem o surgimento de uma curiosidade por parte

dos moradores de outras áreas para que eles se desloquem a uma comunidade com o desejo

de conhecer sua cultura e sociedade (United Nations, 1999).

O turismo dessa forma só pode se desenvolver se o local receptor propiciar um

aguçamento no desejo de pessoas de outras áreas em conhecer a cultura de uma localidade.

O turista passa a deslocar-se a uma região sempre que esta lhe ofereça uma variedade de

opções de lazer e de cultura que possam ser por ele admiradas, conhecidas e consumidas.

Essas formações mercadológicas e culturais é que propiciam a vinda de pessoas de outras

localidades para uma determinada área.

O surgimento da “Festa Camacã e o Cacau”, só poderia representar uma opção para

o turismo no sul da Bahia a partir do momento que essa comunidade pudesse ofertar

elementos de consumo, sejam eles ligados à cultura ou lazer local, que pudessem ser

adquiridos pelos turistas.

O advento da festa em que se comemorou a emancipação política da cidade de

Camacan, e em que se evocou a memória dos pioneiros locais, de seu passado e tradição,

elaborados a partir da cultural cacaueira regional, foi o momento de melhor convergência

para a viabilização do turismo como uma das fontes de renda da comunidade. Essa opção

não se transformou na principal atividade econômica para a cidade, sua continuidade

permitiu, porém, um aumento da renda dos habitantes durante esse evento. Isso foi possível

através do aumento do fluxo de pessoas de outras localidades, que passaram a consumir os

produtos oferecidos durante a realização da festa.

10

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. Trad. Diogo Mainardi, São Paulo: Companhia

das Letras, 1990.

CAMACÃ completa 16 dia 29. In: Diário da Tarde de Ilhéus. N.º 13.560, p. 1, col. 1.

Ilhéus 24 de agosto de 1977.

________ um município em desenvolvimento. In: Diário da Tarde de Ilhéus. N.º 13.561,

p. 1, central, 29 de agosto de 1977.

________ completou 16 anos. In: Diário da Tarde de Ilhéus. N.º 13.565, p.1, Ilhéus 31 de

agosto de 1977.

GRAMSCI, Antônio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. São Paulo:

Civilização Brasileira, 1990.

PETROCCHI, Mario. Turismo: planejamento e gestão. São Paulo: Futura, 1998.

POPULAÇÃO de Camacan reclama da Embasa: não existe água. In: Diário da Tarde de

Ilhéus. N.º 13.555, p. 1, col. 2 e 3, Ilhéus 17 de agosto de 1977.

SÁ, Charles N. de. Os Intelectuais e a Emancipação Política de Camacan. Ilhéus,Monografia para o curso de Especialização em História Regional, UESC, 2000.

UNITED NATIONS. Economic and Social Council. Tourism and sustainabledevelopment. 22 january 1999.

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BELMONTE: MEMÓRIA E CULTURA

Durval Pereira da França Filho1

Estudar a cultura regional é procurar entender os processos pelos quais os

agrupamentos humanos, em determinado espaço, formam-se, vivem e se modificam

sob o impacto das transformações físicas, mentais e psicossociais. Nesse processo estão

presentes os componentes geográficos, os costumes, as atividades e os estímulos da

imaginação. Cultura, assim, é o modo de viver de um povo, com suas

particularidades: instituições, idéias, linguagem, instrumentos e sentimentos.

Como somente o homem é portador de cultura, somente ele a cria, possui e a

transmite. Daí a íntima relação que se pode estabelecer entre memória e cultura:

enquanto uma mantém vivas as marcas do homem em sua caminhada, a outra pode

estuda-las, analisa-las, interpreta-las e transmiti-las a outros povos ou a outras

gerações.

Assim, cultura é também uma herança que se recebe ao nascer por meio de uma série

de influências do grupo no qual está inserida. Quanto mais o indivíduo se integra,

mais hábitos adquire capacitando-se como membro dessa sociedade, agindo e atuando

dentro dos padrões estabelecidos, que são justamente a cultura.

O ser humano vê o mundo através das lentes de sua cultura, o que permite que cada

um tenha uma percepção diferente da realidade que o cerca, o que também vai

marcar todo um comportamento, todo um modo de viver. Todos os homens

compartilham atitudes e perspectivas comuns, contudo a visão que cada pessoa tem do

mundo é única (Laraia 1992). A cultura é, então, a lente através da qual o homem

pode ver o mundo e expressar seus sentimentos. Homens de culturas diferentes

percebem diferentemente e, muitas vezes, terão percepções desencontradas dos

objetos da observação.

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É com esses pressupostos que estamos analisando a memória da antiga povoação da foz do

rio Grande ou Jequitinhonha, no Sul da Bahia, no começo do século XVIII, onde estavam

localizadas algumas aldeias de índios botocudos catequizados pelo padre jesuíta José de

Araújo Ferraz. Aí o padre Ferraz erigiu uma capela sob a invocação de Nossa Senhora da

Madre de Deus, entre os anos de 1708 e 1712, ficando o povoado com o nome de São

Pedro do Rio Grande, segundo os memorialistas Barros (1916) e Monteiro (1918).

No início do século XIX, muitas bandeiras foram organizadas, a partir de Belmonte, para exploração de

pedras preciosas. Embora muitas pessoas tenham ficado ricas nessa atividade, a vila sofreu um grande atraso,

porque ficou esvaziada pela ausência de homens que se infiltravam nos garimpos em busca de ouro e pedras

preciosas, ao longo do Jequitinhonha (Barros, 1916).

Com a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil e a conseqüente abertura dos portos, a partir de 28 de janeiro

de 1808, os produtos da terra não se limitaram, como antes, ao exclusivo abastecimento do país, mas puderam

ser exportados para outros lugares. Mesmo assim, as atividades agrícolas, no Sul da Bahia, tiveram um

desenvolvimento lento por um período de aproximadamente 50 anos. Somente a partir de 1860 passam a

ganhar relevância, com o incremento da lavoura cacaueira, em termos econômicos. Belmonte é assim o

terceiro município baiano a desenvolver a cultura do cacau, depois de Canavieiras e Ilhéus (Monteiro, 1918).

A expansão da lavoura cacaueira, no município de Belmonte, foi rápida, com colheita farta e lucrativa, o que

resultou no reflorescimento da vila e estimulou uma grande migração, tanto de nordestinos como de

europe3us, principalmente italianos, o que também contribuiu para consideráveis mudanças na sociedade,

levando-se em conta os aspectos econômicos, políticos e religiosos – a cultura em geral.

Belmonte passa a manter as mais estreitas relações com a província das Minas Gerais, via Jequitinhonha, e

pelas longas estradas que eram transitáveis pelo trabalho dos escravos da Nação, que também ajudavam no

trânsito das boiadas e das tropas que transportavam mercadorias.

Com o desenvolvimento da lavoura cacaueira e a migração de pessoas de várias partes do Brasil e da Europa,

criou-se uma instabilidade social nos diversos setores da economia e da política, o que levou os fazendeiros

(coronéis) a organizarem uma polícia particular para defender sua ho0nra, sua família e sua propriedade – os

clavinoteiros (França Filho, 2000).

Nessa sociedade competitiva e instável, a violência fazia parte do cotidiano, como uma necessidade

imperiosa. Assim como o jagunço sertanejo, o clavinoteiro era o braço armado do coronel e tanto podia ser

um trabalhador da fazenda como fazer parte de um grupo armado, sob sua proteção, e em troca de eventuais

serviços.

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A história da imigração italiana em Belmonte é um capítulo à parte. Premidos pela crise que se abatera na

Itália recém-unificada, em meados do século XIX, muitos italianos vieram para as diversas regiões do Brasil.

A incorporação da península italiana à produção e ao mercado capitalistas pesaram sobre as condições de vida

das populações rurais. Os camponeses foram expulsos de suas terras porque o seu artesanato já não era

interessante e a indústria não tinha condições de absorver o excedente da força produtiva do campo. A

solução foi abandonar a terra natal e partir para a América e outros continentes, fugindo da fome, do trabalho

fatigante e pouco produtivo, da desnutrição, dos salários irrisórios, dos altos impostos (Maestri 2000).

Embora a saída de suas terras, na Itália, tivesse razões semelhantes, para todos os italianos

imigrados, a recepção no Brasil foi diferente, conforme as características sócio-ambientais

de cada região. Dos 1,4 milhão de pessoas que deixaram a Itália, entre 1870 e 1920, com

destino ao Brasil, cerca de 320 mil (22%), foram para o Rio Grande do Sul (Id.) e 980 mil

(70%) para São Paulo (Alvim 2000); os 8% restantes foram distribuídos entre os outros

estados. Os que ficaram em Belmonte representam um número pequeno mas significativo,

senão não se justificaria a presença de uma Delegacia Consular que ali existiu no final do

século XIX até as duas primeiras décadas do século XX.

O que nos interessa para este estudo é a contribuição que esses imigrantes italianos deram

no processo de desenvolvimento econômico e cultural de Belmonte. Quase todos eles

vieram do Sul da Itália, uma das regiões mais pobres. Tinham pouca escolaridade – alguns

eram mesmo analfabetos – e poucos recursos. Contudo, souberam aproveitar o momento

favorável para se adquirir e legalizar posses de terras, no Brasil, no transcurso do Império

para a República.

Das famílias italianas que se radicaram em Belmonte, a maioria obteve sucesso em seus empreendimentos.

Muitos deles, ou seus descendentes, enriqueceram, tornaram-se latifundiários; outros alcançaram sucesso na

política, ou ocuparam cargos importantes, e todos, de alguma forma, contribuíram para que Belmonte se

tornasse uma das mais importantes cidades do Sul da Bahia, no final do século XIX e início do século XX.

Segundo Jean Wyllys (1998), os italianos que migraram para a Bahia não chegaram a

formar uma comunidade coesa, a despeito de alguns hábitos e valores de seu país de

origem. Acomodaram-se de tal forma à cultura local que alguns dos seus descendentes

ignoram a relação de parentesco.

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Na realidade, conforme afirma Pozenato (2000), não existe uma cultura italiana no Brasil, mas uma cultura

de origem italiana, porque o imigrante italiano abrasileirou-se, esqueceu suas raízes. Até mesmo a tecnologia

agrícola trazida da Itália não pôde ser aplicada nas plantações de cacau das florestas tropicais. Nem mesmo os

sinais de mudanças do tempo e do clima podiam ser lidos da mesma forma.

Em atividades menos condicionadas pelo ambiente físico, alguns costumes ainda guardam vestígios. Foi

assim que o imigrante continuou fazendo a macarronada, o salame, a lingüiça, o queijo, a polenta e o pão,

práticas que, aos poucos foram desaparecendo no cotidiano dos seus descendentes, em parte desmotivados

pelo desinteresse em manter tais costumes, em parte influenciados pela força do mercado.

Nas relações de vizinhança também houve profundas mudanças. Na Itália, a vizinhança dos

camponeses era próxima, porque moravam em pequenas aldeias. Nas colônias brasileiras,

com lotes de 25 hectares, a distância já era bem maior. No Sul da Bahia, onde as fazendas

de cacau ultrapassavam os 200 hectares, favorecia o distanciamento entre um morador e

outro. A cultura do cacau, em si, foi um fator poderoso de abrasileiramento dos imigrantes

italianos no Sul da Bahia. Tratava-se de uma atividade produtiva sem raízes européias e

muito menos italianas. Envolver-se com tal atividade que passou a exercer, por mais de um

século, a hegemonia na economia regional, significava cortar as raízes culturais do país de

origem.

15

Em São Paulo, pode-se dizer que houve um processo semelhante. Os imigrantes

vieram para atender uma demanda de mão-de-obra para o cultivo do café, atividade

esta também desvinculada de raízes italianas ou européias.

No Rio Grande do Sul, a realidade foi outra. Além de tratar-se de imigrantes vindos do

Norte da Itália e, por isto, familiarizados com uma paisagem de topografia acidentada – os

de São Paulo, Espírito Santo e Sul da Bahia, na sua maioria, imigraram do Sul da Itália -

reproduziram na nova terra uma atividade típica da região de origem: a produção de uva e

vinho (Serra, 2000). Estava, portanto, instalada a infraestrutura que reproduziria a cultura

do país de origem.

No Espírito Santo, os imigrantes italianos se dedicaram, principalmente, à extração

de madeira-de-lei, especialmente jacarandá, atividade já conhecida na Europa, uma

iniciativa de Pietro Tabachi (Medeiros 1997).

No Sul da Bahia, a cultura do cacau, em termos econômicos, havia começado há pouco

tempo. O clima tropical, a floresta densa e úmida, com fauna e flora típicas, a extensão das

terras agricultáveis, os rios caudalosos, tudo era muito estranho para o imigrante. Precisava

romper os laços que o ligavam à Itália expulsora e abrasileirar-se para melhor viver nesta

terra desconhecida.

Em grande parte originários da cidade de Paola, região administrativa da Calábria, no sul da Itália, esses

imigrantes eram pobres e de pouca escolaridade. Contudo, muitos dos descendentes falam de sua

ancestralidade com forte dose de ufanismo, onde a figura patriarcal aparece de forma mítica.

Lá, na região da Calábria, vovô trabalhava na agricultura, junto com

os filhos. No verão, produziam salame, lingüiça, pernil defumado e

extraíam azeite de oliva... Além das atividades no campo, os filhos

aprenderam outras profissões: papai era sapateiro, tio Mário era

carpinteiro, tio Vincenzo era radiotelegrafista (Rafael Tosto Filho, 61

anos, filho de italiano).

16

Os Magnavita, originários de Paola, no Sul da península italiana...,

destacaram-se na firmeza de vontade, no idealismo realizador, no esforço

bandeirante... Praticamente fundaram Belmonte e alavancaram o progresso

e o desenvolvimento de Canavieiras (Manoel Costa Magnavita, neto de

italianos).

Embora fossem perdendo parte da cultura italiana, os imigrantes

preservaram boa parte, principalmente no que se refere à culinária. Eram

tradicionais as reuniões em família, com parentes e amigos, para uma lauta

refeição. Em termos de culinária, os italianos imigrados passaram para os

seus descendentes o gosto por uma boa macarronada. Também apreciavam

a polenta, o salame, a lingüiça, a mortadela, comidas que eram preparadas

pela própria família. Outra característica cultural era o gosto pela música

italiana orquestrada (Alberto Magnavita, neto de italianos).

“O che se vince o pur se muore” ( “ou se vence ou se morre”) é uma frase de um imigrante italiano citada por

Carlin Fabris ( apud Pozenato, 2000, p. 123), mostrando o discurso heroicizado que reforça o caráter de

grandeza dos pioneiros imigrantes: indivíduos que lutaram fortemente contra o destino adverso e venceram,

ao invés de morrerem.

Na série de mitificações que caracterizam a cultura de imigração italiana estão presentes: o

culto do trabalho (“Em termos de trabalho, os italianos eram pessoas ativas e

empreendedoras...”), a religiosidade (“Família tradicionalmente católica, os Tosto tinham

em casa imagens de santos...”), espírito de solidariedade (“Vovô trabalhava na agricultura

junto com os filhos”), a alegria permanente (“... pelo vinho como complemento alimentar e

pela alegria como uma correta atitude de vida”), a solidez da ordem familiar (“A família de

imigrantes italianos era de mesa farta. Os filhos se sentavam à mesa, já tomados os banhos,

calçados e bem vestidos”) e assim por diante.

Como os imigrantes italianos se abrasileiraram, a cultura de imigração italiana é apenas um traço diferencial

no contexto da cultura brasileira. Os herdeiros dessa cultura ancestral pouco contato mantém entre si e muitos

dos membros de uma mesma família extensiva ignoram a sua relação de parentesco.

Atualmente, alguns descendentes desses imigrantes ainda vivem em Belmonte e

municípios vizinhos. Outros, em decorrência do retrocesso sócio-econômico que marcou o

17

município de Belmonte, principalmente com a dinamização do porto de Ilhéus – situação

agravada pela crise da região cacaueira – estão espalhados em diversos municípios da

Bahia e em outras regiões do Brasil.

Contudo, existem em Salvador pelo menos duas organizações que procuram preservar edifundir a língua e a cultura da Itália. A atitude de se querer revalorizar a cultura deorigem (Ibid. 2000), é um sintoma de que essa cultura regional foi esquecida, o queleva as pessoas a preservar esse patrimônio cultural – língua, costumes, objetos.

É toda essa memória belmontense: os índios, o garimpo, o folclore, a religiosidade, a imigração italiana, a

saga do cacau com seus coronéis e clavinoteiros; é todo esse caldo cultural que faz de Belmonte um lugar

especial, onde ações humanas se desenvolveram, significados foram construídos, os quais s]ao expressos

através de representações da realidade.

É nesse espaço construído e ordenado que ocorrem as transformações físicas, por conta de

uma nova riqueza, a lavoura do cacau. Mas, a despeito da onda transformadora das

estruturas sociais, as marcas ficaram, vestígios de um passado grandioso, de

comportamentos, normas, posturas municipais – modos de viver, modos de fazer – traços

culturais.

Ao se tentar perceber os vestígios dessas ações, procura-se reconstruir um passado através de representações

coletivas, que devem ser preservadas, revitalizadas, re-significadas e colocadas à disposição da comunidade

belmontense e de seus visitantes – o meio ambiente, o patrimônio cultural.

Entendemos, pois, que patrimônio cultural é todo e qualquer artefato humano com forte

componente simbólico, representativo da coletividade, de um espaço, de um tempo

específico, que facilite a compreensão do processo histórico, levando-se em conta que “não

interessa exclusivamente a casa-grande mas também a senzala” (Pellegrini Filho, 1997, p.

104). Não apenas as casas dos coronéis do cacau, mas também as de humildes

trabalhadores, o depoimento e a produção artesanal de gente simples que participou ou

participa do processo histórico-cultural, tudo deve ser levado em consideração.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÄFICAS

ALVIM, Z. F. O Brasil italiano (1880-1920). In: FAUSTO, Boris (org.). Fazer a América. São Paulo:EDUSP, 2000.

BARROS, F. B. de. Memória sobre o município de Belmonte. Salvador: Imprensa Oficial, 1916.

LARAIA, R. de B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

MAESTRI, M. Rio Grande do Sul e a imigração italiana em fins do século XIX. In: Raízes italianas do RioGrande do Sul (1875-1997). Passo Fundo: UPF, 2000.

MEDEIROS, R. Italianos. In: Espírito Santo: encontro das raças. Vitória: Dom Quixote, 1997.

MONTEIRO, A. M. Belmonte e a sua história. Salvador: IGHB, 1918.

POZENATO, J. C. A cultura da imigração italiana. In: CARBONI, F. & MAESTRI M. (org.) Raízesitalianas do Rio Grande do Sul (1875-1997). Passo Fundo: ACIRS/UPF, 2000.

SERRA, C.H. A. Industrialização e exclusão na região colonial italiana. In: CARBONI, F. & MAESTRI M.(org.). Raízes italianas do Rio Grande do Sul (1875-1997). Passo Fundo: ACIRS/UPF, 2000.

WYLLYS, J. Em busca de identidade. Salvador: Correio da Bahia, 24.11.1998.

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RESSIGNIFICAÇÕES E RECONFIGURAÇÕES: O ENGENHO DO MATOIM,

UMA POSSIBILIDADE DE DESENVOLVIMENTO DO TURISMO CULTURAL

Genebaldo Pinto Ribeiro*

Maria de Lourdes Netto Simões**

RESUMO

Nesta comunicação interessa-nos estudar a ressignificação e reconfiguração da

memória/história, dos espaços físico e geográficos e das paisagens, em razão das

necessidades e imposições do mundo contemporâneo, objetivando o desenvolvimento de

um turismo sustentável que proporcione às comunidades local e regional uma melhor

qualidade de vida e progresso. O Engenho do Matoim, propriedade de cristãos – novos nos

séculos XVI e XVII, situado na Baía de Todos os Santos, neste texto viabiliza o

desenvolvimento e condução de nossas idéias.

Palavras – Chave : Ressignificação – Reconfiguração – Turismo

ABSTRACT

In this comunication he/she interests to study us the new meaning and configuration of the

memory and history, of the spaces physicist and geographical and of the landscapes, in

reason of the needs and impositions of the contemporary world, aiming at the development

of a maintainable tourism that provides to the communities place and regional a better life

quality and progress. The Engenho do Matoim, property of Christians - new in the centuries

XVI and XVII, located in the Baía de Todos os Santos, in this text it makes possible the

development and conduction of our ideas.

Words – Key: New Meaning – New Configuration - Tourism

* Mestrando em Turismo & Cultura pela UESC/UFBa e Professor Assistente da Faculdade Santo Agostinho.** Pós-Doutoranda em Turismo Cultural pela Universidade Nova de Lisboa- Portugal

20

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Viajar, ou seja, o ato de andar, percorrer, correr ou visitar outras localidades é comum

ao ser humano desde o início de sua história e considerado pelos que escrevem a

história, um dos leitmotiv da sua evolução. Razões bélicas, migratórias, comerciais,

econômicas, religiosas, de saúde, aventureiras e outras de caráter de urgência, sempre

fizeram os homens locomoverem-se, vencerem distâncias, buscando soluções para os

seus problemas, conhecimento e lazer. Exemplos não nos faltariam para comprovarmos

nossa afirmação.

Nos tempos de Roma [Antiga], os ricos aristocratas e funcionários dos altos

escalões do governo [...] viajavam por prazer. Os balneários de Pompéia e

Herculano proporcionavam aos cidadãos a oportunidade de se refugiarem em

suas villas de veraneio para se protegerem [...] do verão romano. (THEOBALD,

2001, p.27)

Com o declínio do mundo romano, viajar tornou-se um hábito raro, difícil e perigoso,

haja vista representarem possibilidades de grandes assaltos realizados por grupos de

bandidos. Mesmo sob as condições vigentes àquela época, Benjamim de Tudela, judeu

residente em Saragoça, em 1160, viajou pela Europa, Pérsia e Índia, buscando o

conhecimento, Marco Polo, cidadão da República de Veneza, e o mais famoso viajante

ocidental de todos os tempos, em 1271 chegou a visitar o Império do Meio (China).

Os séculos seguintes, com o advento do capitalismo comercial , as viagens foram se

propagando. A industrialização inglesa do século XIX, a difusão e a transformação que

o capitalismo industrial e a invenção da ferrovia, geraram o hábito de viajar para as

estações de águas, notadamente entre os membros das classes mais favorecidas. Essas

classes, além de descanso e saúde, passaram a ter também lazer, eventos sociais, bailes,

jogos de azar e outras formas de entretenimento, o que lhes aguçava o desejo de

continuidade e permanência.

Com o século XX e a invenção de novos meios de transportes, como o avião e o carro

(que proporcionam deslocamentos por distâncias maiores em períodos curtos, a preços

21

mais acessíveis), bem como o desenvolvimento das viagens marítimas (que se

tornaram mais seguras, baratas e rápidas), o fenômeno que hoje chamamos de turismo

tornou-se extremamente peculiar.

A partir dos anos cinqüenta , as viagens cresceram rapidamente, a busca por outros

espaços geográficos ficou acentuada, permitindo que um novo e importante setor se

desenvolvesse, o turismo. Assim, os governos passaram a tê-lo e aos turistas, entre os

seus maiores objetivos, pois oferecem oportunidades de emprego, desenvolvimento

sócio- econômico- cultural, bem como a possibilidade de ganhar divisas. Turistas, que

segundo a Organização Mundial de Turismo (OMT) são os “ visitantes temporários

que permanecem pelo menos 24 horas no país [ou qualquer localidade] visitado, e cujo

escopo é lazer, negócios, família, uma missão ou uma reunião” (THEOBALD, 2001,

p.34)

Nesse contexto, o segmento turismo cultural , aquele turismo fundamentado na busca

de lugares, centros e monumentos culturais; de espetáculos musicais, teatrais ou

folclóricos; de museus, bibliotecas e pinacotecas etc., é na atualidade motivação

principal para grandes deslocamentos.

Decerto essas considerações sustentarão a idéia, a ser desenvolvida neste texto, de que

as ressignificações das acepções e reconfigurações das formas quando disparadas e

concretizados através do turismo sustentado, preservarão a história e a cultura .

O texto tem por foco o Engenho Matoim, situado no recôncavo baiano, na Baia de

Todos os Santos, que pertenceu a cristãos-novos. Na estrutura do texto enfocamos por

primeiro a história de como foi forjado na Península Ibérica o tipo social, conhecido

por cristão-novo. Seguimos com a presenças deles nos primórdios do Brasil Colonial, e

por último tomamos o Engenho Matoim como um possível exemplo de

memória/história e espaço a ser ressignificado e reconfigurado com o objetivo de

desenvolver um produto turístico sustentável.

22

2. OS CRISTÃOS- NOVOS

A construção da Idade Moderna perpassa marcadamente pela compreensão do conceito

de nação - estado. Conceituação onde a definição de uma unidade política, lingüística,

religiosa, cultural e histórica, com base num território, era pontual para que o sujeito

moderno superasse as características sobreviventes da medievalidade, como o

particularismo e o universalismo, bem como desenvolvesse um sentimento de

identificação nacional. Identidade que não se importava quão diversos poderiam ser os

seus membros em termos de classe, gênero, etnia, cultura, valores morais, éticos e

religiosos, o objetivo maior era a formação de uma cultura nacional monolítica que

permitisse a ação de um governo forte e promotor do desenvolvimento e do poderio

sobre os demais povos. Unificar numa identidade cultural monolítica para que todos se

sentissem como pertencentes à mesma e grande família nacional era o foco maior dos

construtores da Idade Moderna (HALL, 2000).

Assim, o diferente, o outro, aquele que não comungava ou minimamente partilhava com

aquela representação ideológica desenvolvida e adotada pelas nações - estado, não eram

bem vistos. Dissidências políticas, culturais e/ou religiosas eram tomadas por crimes

contra a nação, passíveis de toda e qualquer punição.

Os judeus com sua acentuada diversidade cultural e religiosa obviamente não cabiam

naquele projeto de nação-estado da Idade Moderna, onde o lema adotado " um só rei,

um só Deus, uma só igreja" (MORAIS, 1972, p.197), era o ideal de unificação,

desenvolvimento e poderio.

Nesse processo se enquadram, após oito séculos de tolerância sob a dominação árabe,

os atos de intolerância perpetrados pela Espanha e Portugal no final do século XV e

princípio do XVI.

Tomando por fundamento a diferença religiosa dos judeus, haja vista no reino "hay

pocos judaizantes, malos cristianos que se apartan de Nuestra santa Iglesia Católica,

23

hecho que tiene su origen ante todo en la relación existente entre judíos y

cristianos”(KELLER, 1994:317), os reis de Aragão e Castela, Fernando e Isabel,

tomaram a decisão em 1492 de "expulsar de las fronteras [del] reino a todos los judíos

[...] sin distinción de sexo e ni edad" (Ibdem, p.317).

Pressionadas, as comunidades judaicas espanholas viram-se diante de duas opções:

batizarem-se no catolicismo ou deixarem a Espanha. Os que não se submeteram à fé

em Cristo fugiram para outros países vizinhos em busca de paz para refazerem suas

vidas.

Os que ficaram, já convertidos, diante da intolerância que passou a vigir contra eles,

adotaram a prática da duplicidade religiosa, externamente eram católicos e intimamente

judaizantes.

Em Portugal, o comportamento dos seus governantes com os de origem judaica não foi

diferente no que tange à tomada pelos vizinhos espanhóis.

D. Manuel I, pressionado internamente por razões de ordem religiosa, política, social e

econômica, bem como pelos monarcas da Espanha, em 1496, promulgou o édito de

expulsão dos judeus de Portugal, alegando que esses "se obstinam em seu ódio contra

a santa religião católica, perpetram crimes contra a religião e apartam os cristãos

do caminho da verdade"(Ibidem, p.322. grifo nosso).

A medida foi do agrado de uma parte da população laica e religiosa do reino. À outra

parte, mais esclarecida, a expulsão do judeus desagradou,

a começar pelo soberano [que não] estava interessado na partida desta minoria

social, econômica e culturalmente importante. De fato, os cerca de cinco milhões

de reais que entravam nos cofres dos nobres por pagamento de serviços e

impostos diversos à coroa e que esta concedera aos membros da nobreza em

24

tença1eram, por sí só, economicamente significativos para o reino e o monarca

(TAVARES, 1997, p.13).

Na verdade, o rei de Portugal estava interessado na permanência dos judeus no reino,

para tanto, se necessário fosse, ele os forçaria a se converterem ao cristianismo, mesmo

que tal atitude fosse contra toda a lei natural e canônica.

Com a promulgação do édito de expulsão, os judeus portugueses saíram em grande

número do reino. Apreensivo com o fenômeno, D. Manoel I, às vésperas da Páscoa

Cristã de 1497, ordenou que todas as crianças e adolescentes de origem judia fossem

batizados à força. Os filhos, razão e objeto de atenção especial para os judeus, pois

eram e são a continuidade religiosa e ética do povo, foram o estratagema utilizado pelo

governo português para os forçar a uma conversão total.

Como na Espanha,

a maioria dos convertidos conservaram sua fé judaica. Eles se abstinham de

comer carne de porco, sopravam, nos campos o shofar em Rosh-Há-Shaná e

comemoravam o Shabat e Pessach na intimidade dos seus lares[...]. Usavam

matsá durante o ano todo [...]. Mesmo a circuncisão, que implicava perigo para a

vida inteira, era paraticada [...] Mantiveram práticas residuais como ascender

velas na noite de Sexta - feira e jejuar na época do Yom Kipur, e até conservavam

a tradição de ter um mezuzá na ombreira da porta (UNTERMAN, 1992, p.166).

A tudo isto se chamou de criptojudaísmo, ou seja, a prática oculta dos ritos, costumes e

tradições do povo judeu.

Dessa maneira, Portugal e seu império ultramarino se depararam com a questão dos

cristãos novos, nome dado aos judeus convertidos ao cristianismo, expressão essa que

“passou a ter sentido deprimente e mesmo ofensivo, converteu-se ela em sinônimo de

cristão fictício, de criptojudeu, judeu batizado à força, sem apego à igreja, cuja fé não

merecia confiança, ainda que fossem cristãos genuínos" (SALVADOR, 1969, p. XX).

1 Tença- Pensão dada em remuneração por serviços prestados(N.A)

25

Foi nesse contexto que os judeus portugueses sofreram as perseguições que os levaram

ao "terceiro êxodo" que os trouxeram às Américas portuguesa e espanhola.

3. OS CRISTÃOS-NOVOS NO BRASIL COLONIAL: O RECÔNCAVO

BAIANO.

O êxodo dos cristãos-novos a partir de 1550, em razão da instalação em Portugal do

Tribunal do Santo Ofício da Inquisição a pedido do rei D. João III, fez com que os

quatro cantos da Terra fossem atingidos por eles. Perseguidos no reino, pareceu-lhes no

seu imaginário, que a América Portuguesa era a "Terra Prometida [...] a qual

procuravam chegar apesar de todas as proibições" ( NOVINSKY, 1992, p. XVIII).

No Brasil, chegaram acompanhados de seus costumes, religião, gastronomia, folclore,

literatura, tradições e idioma, o ladino2. Podemos afirmar que " por muito tempo seriam

maioria da população branca [da colônia]. Esses primeiros indivíduos desempenharam

papel de suma importância no povoamento e na [...] colonização da terra [brasileira]"

(SALVADOR, 1976, p.5).

Preferencialmente optaram pelas Capitanias da Bahia e Pernambuco, onde a nascente

cultura da cana-de-açúcar e sua agroindústria estavam em franco progresso, em razão

da extraordinária fertilidade do solo massapé do nordeste, o que evidenciava à

metrópole a viabilidade econômica de sua nova possessão.

2 Ladino- Dialeto judeu-hispânico, também chamado de judezmo, Djudeo-Espanyol, Sapanyolit, Spaniol denossotros ou Sefaradi (N.A)

26

Chegados à colônia, tinham ali essencial importância nos mecanismos

econômicos da colonização, nos negócios do açúcar, no equipamento dos

engenhos, na concessão de crédito as safras (SIQUEIRA, 1978, p. 310).

Na Capitania da Bahia, o Recôncavo, região em torno da Baía de Todos os Santos, onde

as bacias hidrográficas e as terras férteis prometiam grandes riquezas, foi o lugar

buscado por esses cristãos novos para iniciarem nova vida. Tudo isso permitiu que os

ricos ao chegarem, mais ricos ficassem e, os empobrecidos, algumas vezes

enriquecessem. Na verdade, mercadejar e tornarem-se senhores de engenho eram os

objetivs desses novos convertidos. Para atingir essa última opção, além do trabalho

árduo, a união matrimonial com filhos e filhas dos cristãos-velhos foi outro expediente

muito utilizado. Esses casamentos também permitiam o esquecimento de suas origens

hebraicas por parte da sociedade colonial, mesmo que só aparentemente, pois na

verdade, mesmo cristãos, continuavam a judaizar.

Wanderley Pinho nos permite exemplificar esse tipo de ascensão social, quando relata:

casando-se Sebastião de Faria com a filha de Heitor Antunes, é verossímel

melhorasse de fortuna, pelo menos há grande probabilidade de terem-lhe vindo

com o casamento as terras de outro engenho que possuía na ribeira de Aratu,

dentro do rio Matoim (1982, p.55).

A ascensão política era uma constante. Tonavam-se conselheiros não só das Câmaras

Municipais como também dos governantes da terra. Economicamente tornaram-se,

como no reino, grandes financistas.

Mas, ser senhor de engenho, era o que notoriamente agradava aos cristãos-novos,

pontuadamente os criptojudeus que, donos de engenho, neles permitiam-se praticar os

ritos judaicos com liberdade, de maneira consciente ou inconsciente, como muitas vezes

alegariam diante dos visitadores da Inquisição que por aqui passaram em duas ocasiões,

1591-93 e 1618-20.

Foi o caso de Ana Rõiz (Rodrigues), cristã-nova, mulher de Heitor Antunes, homem

que ostentava o título de Cavaleiro da Casa Del Rei, rendeiro dos dízimos do açúcar,

27

encarregado, nos primeiros tempos, do pagamento dos ordenados ao Cabido e ao Bispo

da Bahia3, senhor de engenho e propriedades. Era amigo e intimo do terceiro

Governador Geral Mem de Sá.

A família de Heitor Antunes e Ana Rõiz orgulhava-se de sua posição e fortuna diante

da sociedade colonial baiana, ao ponto de alardear sua descendência dos " macabeus, a

gente mais honrada dos judeus", conforme consta nos livros de Confissões e

Denunciações da Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil- 1591/93. Tal posição

não impediu que a família fosse denunciada à Inquisição por práticas judaizantes,

conforme o que estabelecia o Monitório4 de 1536.

Contra a matriarca da família, o Tribunal Inquisitorial para formar o processo nº 12.142

contra ela, alegou que, ao lançar bendições, fazer juramentos, lamentar, prantear e

praticar outros ritos funerários, ensinar a religião, praticar costumes alimentícios e

culinários à maneira dos judeus, ela estava praticando atos contra a " verdadeira

religião".

4- RESSIGNIFICAÇÕES E RECONFIGURAÇÕES: O ENGENHO DO

MATOIM

Como entende Eunice Durhan, "o homem é um animal que constitui, através de

sistemas simbólicos um ambiente artificial no qual vive e o qual está continuamente

transformado [e transformando]. A cultura é, propriamente, esse movimento de criação,

transmissão e reformulação desse ambiente artificial" (ARANTES, 1984 apud

MACÊDO & RIBEIRO, 1999, p.15). Tomando esse raciocínio para reflexão e

ampliando-o, haja vista entender-se que os sistemas simbólicos sofrem ressignificações

e reconfigurações conforme as épocas, interesses políticos, econômicos, sociais,

ideológicos, pode se trazer tais conceituações para o turismo, conforme faz Maria de

Lourdes Netto Simões, e entender nesse contexto, o universo cristão-novo no Brasil,

3 Documentos Históricos, Rio de Janeiro, 1937, vol.36, p.95-98-Os Judaizantes nas Capitanias de Cima, EliasLipiner, apud Ianchel, 1981: 95

28

especialmente no recôncavo baiano colonial, enquanto fonte que permite perceber de

forma transparente os significados, símbolos e representações sócio-culturais, como:

persistência, coragem, estilo, tudo "armazenado" na cultura e fé religiosa judaica, para

que possamos construir a história do Brasil, buscando não rejeitar o diferente, o outro.

Assim, registrar os fatos passados e atuais é importante para a construção do complexo

sócio-cultural, fundamento do desenvolvimento dos projetos turísticos contemporâneos

e futuros. Daí ser considerável verificar que a produção historiográfica e cultural, tão

necessárias ao turismo, têm um caráter sucessivo, seguido e ininterrupto. Registrá-los e

tratá-los contextualizando-os de acordo com a sua simbologia e significação, enquanto

bens patrimoniais, é vital para a preservação da memória identitária de um povo.

Preservar, resguardar, defender são sinônimos que não significam

só guardar um objeto, uma construção, a parte histórica de uma cidade antiga. [...]

Também é gravar depoimentos, sons, músicas populares e eruditas. [...] É manter

vivos, mesmo que alterados, usos e costumes populares. É fazer levantamentos de

sítios variados, de cidades, de bairros, de quarteirões significativos dentro do

contexto urbano (LEMOS, 1981 apud MACÊDO & RIBEIRO, 1999, p. 15-16).

Tudo objetivando compor o quê modernamente conceituamos de patrimônio sócio-

cultural e ambiental.

Se na modernidade tardia compreendemos patrimônio sócio- cultural e ambiental como

a produção intelectual, artística, arquitetônica, social, religiosa do ser humano, que

simbolicamente signifique de modo representativo a coletividade, a região ou uma

época própria, permitindo assim a percepção do processo de construção da história.

Essa mesma modernidade tardia cujo caráter marcante é a mudança, também permite-

nos ressignificar e reconfigurar esse patrimônio, em função de novos momentos e novas

situações enfrentadas pelas sociedades em razão de mudanças diversas.

4 Monitório- Listagem de comportamentos heterodoxos formulada e promulgada pelo Tribunal do SantoOfício, a Inquisição, passíveis de punição (N.A)

29

Ressignificação (novas acepções) e reconfiguração (novas formas) (SIMÕES,2001),

neste texto, são aplicáveis enquanto movimentos espiralados que objetivam a recriação,

a retransmissão e a reformulação de todo e qualquer termo, idéia, ambiente e/ou espaço

físico ou geográfico, a título de revalorização da cultura, tendo por finalidade a

manutenção e conservação sustentável do objeto a ser turisticamente explorado.

O Engenho do Matoim (Figuras 1 e 2), pertencente a cristãos-novos, serve ao objetivo

deste texto, enquanto exemplo de uma possível ressignificação e reconfiguração de sua

história e seus espaços visando atender ao turismo.

Figura 1: Fotografias atuais das fachadas e a planta baixa do Engenho do Matoim (Bahia, 1982, p.29)

Figura 2 : Fotografias dos aspectos do interior do Engenho do Matoim após o sinistrode 1977 (Bahia, 1982, p.30)

Localizado na Baía de Aratu, no séculos XVI pertenceu à família de Heitor Antunes e

Ana Rõiz, hoje, depois de desapropriado pelo governo do Estado da Bahia, passou a

30

pertencer ao Centro Industrial de Aratu e encontra-se abandonado e com parte de sua

casa-grande destruída em razão de um incêndio ocorrido em 1977. Vale ressaltar que o

atual dono não providenciou a realização de obras de estabilização ou restauro.

A possibilidade de restaurar esse espaço e de ressignificá-lo e reconfigurá-lo é latente,

haja vista, os valores histórico e monumental da propriedade, marcadamente de sua

casa-grande. Imóvel construído em três níveis, possui: porão, saguão, grandes salões

com janelas conversadeiras, quartos de hóspedes, galerias, capela, possibilitando o seu

uso como museu, hotel, pousada ou outra função qualquer voltada às atividades

turísticas em seus vários segmentos.

Como "as nações modernas são, todas, híbridos culturais" (HALL, 2000, p.62), o

espaço Engenho do Matoim - se nos apropriarmos do conceito de Hall - seria também

um híbrido cultural. Um híbrido cultural, em razão de estar contido em sua estrutura

dois mundos culturais distintos e antagônicos, o cristão e o judeu, que conviveram

simultaneamente de forma sincrética e conflituosa, haja vista a necessidade da Idade

Moderna de representar a identidade nacional através da expressão cultural de “um

único povo”. Híbrido cultural, também, porque nele está represado os tempos

cronológico, histórico e turístico. Este último internalizado na contemporaneidade,

objetivando após as ressignificações e reconfigurações vender o produto turístico.

Vale ressaltar que as categorias de tempo aqui tomadas querem evidenciar o especial

trato necessário às questões do turismo. O tempo cronológico (NUNES, 1995), o tempo

dos acontecimentos, aquele ligado ao físico e firmado pelo sistema de calendários, onde

as datas são ordenadas a partir de acontecimentos qualificados, que servem de eixo

referencial a outras ações/acontecimentos (31 de maio de 1593, Ana Rõiz é entregue à

Inquisição para ser enviada aos seus cárceres em Lisboa). O tempo histórico, contém e

representa a durabilidade das formas históricas de vida, formas essas ritmadas

diferentemente e com intervalos de duração longos, onde a história é produzida

inconscientemente e repleta de significações, “por trás dos acontecimentos demasiados

legíveis” (LE GOFF,1990, p.66) (a história do Engenho do Matoim) ou curtos, onde a

31

história dos acontecimentos, isto é, aquilo que é evidente, possibilita disparar as

ressignificações e reconfigurações ( a formação e desenrolar do processo de Ana Rõis).

O tempo turístico, é uma categoria aqui concebida, que em artigo próprio, trataremos

dos aspectos teóricos a ele inerente, como aquele tempo exclusivo, pessoal, público e

privado, que permite ao turista estar presente em dois momentos, dois ambientes, em

tempos distintos, num único espaço físico e geográfico (simultaneidade). Devidamente

ressignificados e reconfigurados, esses mundos e tempos, retidos numa paisagem, num

espaço físico ou geográfico, permitem ao turista tirar informações da localidade que

está visitando, refletir e perceber com olhares diversos, por força da temporalidade

individual, a história, a cultura e as suas origens identitárias; bem como elaborar um

conhecimento histórico particular e específico. Pontuadamente, os órgãos promotores

do turismo e o turista, aquele que voltará ou não, que promoverá ou não o espaço

visitado, notarão a importância da sustentabilidade para o desenvolvimento do turismo,

fonte de bem estar, progresso e melhor qualidade de vida das comunidades local e

regional.

As ressignificações, ações que buscam reiterar as relações mantidas, entre o significante

e o significado, ou seja, o valor, o sentido e a simbologia que o indivíduo, grupo e/ou

sociedade atribuem de per si ao sensível e ao não-sensível; as reconfigurações, atos que

visam mudar as formas exteriores de um corpo, um espaço físico ou geográfico, ambas

objetivando atenderem às necessidades pedidas pelo contexto e imposições do mundo

contemporâneo, quando levadas a cabo, nos termos das idéias, ideologias, espaços,

cenários e paisagens, permitem estabelecer "ligações e re-ligações" entre aquilo que

poderia ter havido e o que é concebido pelo imaginário e o que houve, o real.

Imaginário e real que ao transitarem pela experiência seqüencial dos estados internos

do turista, vivenciam a descoincidência entre o tempo turístico e as medidas temporais

objetivas, no sítio visitado. Certamente sua percepção do momento imediato, sua noção

de tempo, sustentada no subjetivo e no qualitativo, isto é, na percepção do momento

imediato, se realiza simultaneamente em função do passado, presente e projetos futuros

(NUNES, 1995).

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BIBLIOGRAFIA

Referenciada

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História e Imagem: as representações sociais no espaço da morte.

RIBEIRO, André Luiz Rosa.

Mestrando em História / UFBA

e-mail: [email protected]

O desenvolvimento dos estudos acadêmicos, dedicados a análise histórica, sobre

aspectos econômicos e socioculturais de regiões delimitadas forneceu dados relevantes para

a compreensão de realidades ainda não devidamente abordadas. Entendendo o termo região

como o locus de uma sociedade em um momento determinado, existindo como uma

particularidade dentro da totalidade.

A região é um objeto de representação mental, muitas vezes construído através da

formação de uma memória local e de uma identidade própria. Essa memória, desenvolve-se

a partir das representações de poder que não situam-se em lugares específicos e podem

apresentar-se de diversas formas, possibilitando a constituição de série homogêneas dos

signos de poder, tais como as narrativas, na literatura, na arquitetura, na indumentária, na

culinária e nas imagens.

O estudo dessas representações permite apreender a homogeneidade, unidade e

continuidade das idéias formadas ao longo das gerações, além dos momentos de ruptura,

em que se ressaltam as mudanças no comportamento. Em uma problemática mais ampla

adota-se uma perspectiva comparativa, sublinhando os fatores constantes e as diferenças

significativas, em uma série de interrogações e problemas concernentes tanto à cronologia,

como também aos encontros, especificidades e evoluções diferenciadas.

Uma das formas de investigação de aspectos sociais e culturais de uma dada região,tomando como exemplo a do sul baiano, é o estudo da arquitetura cemiterial alidesenvolvida no período de consolidação econômica da lavoura cacaueira. Para tanto,faz-se necessário analisar os mecanismos de poder engendrados pela sociedade regionale estabelecer quais as práticas desenvolvidas na tentativa de perpetuação da condiçãosocial dos grupos vinculados ao poder político e sócio-econômico.Os comportamentos e atitudes que estão corporizados nos ritos que encenam o morrer,como as representações do morto, as práticas funerais, de luto ou de sepultura sãoformas de perpetuar a lembrança individual ou familiar e construir uma imagem idealde sua existência. Nesse âmbito também estão expressas diferenciações sociaisexistentes na estrutura econômica. A pompa e a singeleza traduzem as desigualdades efornecem um mapa social do espaço da morte: o tipo de sepultura (perpétua ou comum,

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rasa ou monumental), a qualidade diversidade do material empregado, o seu tamanho elocalização espacial (zonas privilegiadas ou periféricas). Assim como as fontes visuais(estatuária e símbolos), epigráficas (epitáfios) e hemerográficas (necrológios) fornecemuma representação de determinados aspectos culturais da sociedade regional.De tal maneira, o espaço da morte é um dos mais significativos lugares de memória deuma sociedade. É o local onde a memória coletiva, seja de uma região ou de um grupofamiliar, é mais fortemente constituída. Como afirma Pollak, a memória é umaoperação dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer preservar,“em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos depertencimento.”8 A memória serve para manter a coesão dos grupos que compõem umasociedade, para definir sua complementaridade, mas também as oposições em relaçãoaos outros. Sendo que, o que está em jogo na memória é também o sentido daidentidade individual e coletiva.As fontes visuais, como as presentes nos cemitérios, além da sua qualidade de objetosde valor estético, permitem olhar o passado sob um novo prisma, apresentando-se comosignos a serem decifrados. Devem ser analisados como índices de épocas, criados comcerta intencionalidade, para representar a percepção de mundo dos seus construtores.São fontes importantes para o estudo das sociedades, oferecendo significativasinformações sobre como tais sociedades concebiam seu cotidiano ou imagináriocoletivo.9

Segundo Grassi, toda obra de arte possui uma referência cronológica, pois surge emdeterminado tempo e provêm, em primeira instância, de uma recriação de experiênciasque pertencem a uma determinada época histórica.10

A atividade do historiador que propõe-se a estudar a produção artística de umasociedade é descrever e interpretar as configurações e composições apresentadas à essamesma sociedade “de geração a geração”. Dessa forma, compreender como os váriosmodos de representação foram concebidos pelas comunidade às quais foram oferecidose tentar ver que correspondência havia entre as representações visuais e as outrasexpressões da vida de um período.11

Desde a Antigüidade Clássica ao Renascimento os praticantes da “arte da memória”evidenciaram o valor da associação daquilo que se deseja recordar com imagenssugestivas. Imagens construídas para auxiliar a retenção de recordações, monumentoscomemorativos (memoriais) como pedras tumulares ou estátuas.12

A memória, que é em parte herdada, sofre influência do momento histórico em que elaé articulada ou está sendo expressa. O contexto social contribui de forma significativapara a estruturação da memória, principalmente do ponto de vista político. A memóriatorna-se, então, algo a ser disputado entre distintos interesses de grupos em nível

8 POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Revista de Estudos Históricos, FGV, RJ, vol. 2, n 3, 1989,pp. 9-10.9 VIDAL, D.G. Fontes visuais na história: significar uma peça. Revista Varia História, BH, n 13, 1994, PP.129-130.10 GRASSI, E. Arte e mito. Lisboa, Livros do Brasil, s/d, p. 16.11 BERESON, B. Estética e história. São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 216.12 BURKE, P. O mundo como teatro. Difel, Lisboa, 1992, p. 240.

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regional ou nacional. É possível afirmar que existe uma forte ligação fenomenológicaentre a memória, como um fenômeno construído de modo consciente ou inconsciente, eo sentimento de identidade. Este último, entendido como “o sentido da imagem de si,para si e para os outros”.13 Ou seja, a imagem que um indivíduo ou grupo socialadquire referente a ele próprio, imagem por ele construída e apresentada aos outros e asi próprio como sua representação.O processo de construção dessa identidade é constituído por três elementosfundamentais: a unidade física ou fronteiras de pertencimento ao grupo, a continuidadeatravés do tempo e o sentimento de coerência que une diferentes indivíduos entre si.

“Podemos dizer que a memória é um elementoconstituinte do sentimento de identidade, na medidaem que é um fator importante do sentimento decontinuidade e de coerência de uma pessoa ou de umgrupo em sua reconstrução de si.”14

Segundo Le Goff, a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na lutadas forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento éuma das principais preocupações dos grupos e indivíduos que dominam ou dominaramsociedades históricas. Sendo a memória coletiva o que permanece do passado no vividodos grupos sociais.15 A memória coletiva, regional ou nacional, faz parte das grandesquestões das sociedades na luta pelo poder e pela promoção de valores. A memória,como elemento essencial do que se costuma chamar de identidade individual oucoletiva, é uma das atividades fundamentais da sociedade, funcionando comoinstrumento e objeto do poder.Os símbolos são instrumentos de integração social, enquanto instrumentos deconhecimento e de comunicação. Eles tornam possível o concensus acerca do sentidodo mundo social que contribui para a reprodução de valores e comportamentos.16 (9)Chartier supõe as representações como estando sempre colocadas em um campo deconcorrências, “cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação”. Aspercepções do social de determinados grupos produzem estratégias e práticas quetendem a legitimar seu projeto ou justificar as suas condutas.17

As práticas, tais como utilizar o viés religioso e o momento da morte comoinstrumentos da legitimação do poder, tem por objetivo construir uma identidade edemonstrar uma maneira de estar no mundo, além de significar simbolicamente umestatuto e uma posição. Trata-se, no caso, da apropriação do campo sagrado paraconstruir e perpetuar a memória. Os túmulos transformam-se em documentos

13 POLLAK, M. Memória e identidade social. Revista de Estudos Históricos., FGV, RJ, vol. 5, n 10, 1992, p.240.14 Ibid, p. 240.15 LE GOFF, J. História e memória. Campinas, SP, UNICAMP, 1994, p. 426.16 BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1989, p. 10.17 CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1990,pp 17 e 23.

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imprescindíveis à história, como marcos de memória, monumentos representativos noimaginário coletivo.18

A constituição da memória impõe operações de segregação. A manutenção e oexercício dessa memória exige a exclusão, através da interdição ou repressão, do quepossa ser uma forma de contestação da imagem ou representação de si mesmo.19 Osmitos e símbolos, devido ao seu caráter difuso e leitura menos codificada, sãoelementos fundamentais na projeção de interesses e aspirações coletivas que, aoalcançar o imaginário social, também influenciam visões de mundo e de condutas. 20

Uma das primeiras finalidades do cemitério para o historiador é representar um resumosimbólico da sociedade na qual está inserido. A análise da iconografia expressa nassepulturas permite reconstruir um dos olhares que a sociedade cacaueira lançou sobre simesma na elaboração de sua própria história. Os cemitérios constituem um importantedomínio para a observação e análise, a partir da cultura material, de fenômenos dadinâmica cultural e mudança social. As sepulturas e os aparatos que as acompanha,propiciam uma configuração ímpar para a investigação histórica, pelas possibilidadesque oferecem em termos de controle de dados.No período histórico da consolidação econômica do cacau como principal esteio dasrendas estaduais, entre final do século XIX e primeiras décadas do século XX, formou-se uma burguesia composta pelos grandes produtores e comerciantes que veio adominar o poder na região, cujas “ambições, vontades e gostos apareciam comomanifestações comuns a toda a sociedade.”21 De acordo com Carvalho, a manipulaçãodo imaginário social é particularmente significativa em períodos de mudanças política esocial, “em momentos de redefinição de identidades coletivas.”22

O espaço dos cemitérios é altamente significativo na visão do passado, pois a maiorparte do nosso conhecimento sobre os períodos históricos mais remotos deve-se aostúmulos e objetos que ali foram depositados. Ariès assinala que os nossos mais antigoscemitérios datam de aproximadamente 40 mil anos, verdadeiras sepulturas coletivas,muito provavelmente familiares.A partir desse período, o cemitério ou a sepultura será o signo permanente da ocupaçãohumana, testemunha da relação entre a morte e a cultura. Esta relação, que começa comas sepulturas, se estenderá a outros tipos de representações materiais, a das imagens.23

De acordo com Darnton, o estudo da morte desvendou realidades de comportamento emum tema ainda pouco estudado pelos historiadores.24 A importância desse campo depesquisa justifica-se pelas novas possibilidades de estudo sobre a sensibilidade e sobreo imaginário coletivo. Os túmulos e sua iconografia representam um conjunto de

18 PAIVA, E. (Org.). Belo Horizonte: histórias de uma cidade centenária. Belo Horizonte, F.I.N.P., 1997, p.29.19 COSTA, I.T.M. & GONDAR, J. Memória e espaço. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2000, p.37.20 CARVALHO, J. M. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo, Companhiadas Letras, 1993, pp. 10-11.21 FREITAS, A .G. & PARAÍSO, M.H.B. Caminhos ao encontro do mundo: a capitania, os frutos de ouro e aprincesa do sul. Ilhéus, EDITUS, 2002.22 CARVALHO, J. M. op cit, p. 10.23 ARIÉS, P. Images de l’homme devant la mort. Paris, Editions du Seuil, 1983, p.7.24 DARNTON, R. O beijo de Lamourete. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p.237.

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predisposições de caráter psicológico, referenciando um sistema de crenças definidorasde um visão de mundo e as múltiplas situações sociais de determinado contextohistórico.A produção iconográfica, como uma mediação complexa e não como simples reflexo,oferece importantes subsídios para a compreensão de aspectos culturais e sociais quedificilmente poderiam ser estudados através de outras fontes. A acumulação de dados ea análise documental, são seguidos por uma reflexão teórica que possibilite ainterpretação do contexto histórico. Para o estudo das representações expressas naiconografia cemiterial, é indispensável uma concepção prévia do sistema social queatribua à produção artística um lugar específico na luta pelo poder simbólico. ConformeDuby, para a compreensão da ordenação das sociedades humanas e para discernir asforças que as fazem evoluir, é fundamental dedicar atenção aos fenômenos mentais,cuja intervenção é tão determinante quanto os fenômenos econômicos e demográficos.25

Os temas fúnebres sempre foram caros aos baianos, ocupando um lugar de destaque noimaginário social.26 O túmulo individual, encimado por uma pedra com uma inscriçãobiográfica passou a ser visto como uma reserva inviolável no século XIX. Os parentes ovisitavam para honrar seus mortos, tanto em nível privado como em ocasiõescerimoniais. Surgiu um verdadeiro culto novo aos mortos.O cemitério da vila de São Jorge dos Ilhéus foi mandado fazer pelo governo provincialno ano de 1854, devido a proibição de inumações no interior das igrejas e terrenosadjacentes, como no caso da Ma triz de São Jorge e da capela de São Sebastião, nocentro urbano. A área escolhida para a construção do cemitério foi o terreno situado nosfundos da capela de Nossa Senhora da Vitória, no morro da mesma denominação. Oterreno, desmembrado da fazenda Boa Vista, foi doado pelo capitão Severiano José daCosta com escritura de 27 de outubro de 1852.27 A construção do cemitério em um localafastado atendeu das autoridades provinciais em transferir os enterros para cemitériosfora do perímetro urbano. Segundo os ideais civilizatórios do século XIX, a organizaçãodo espaço urbano necessitava que a morte fosse higienizada.O cemitério municipal de Ilhéus se constitui no mais representativo da sociedadecacaueira do sul baiano, não só pelo tamanho e quantidade de sepulturas, como tambémpela sua carga simbólica. O seu traçado atual, orientado por uma política administrativae urbana orientada para o embelezamento do espaço e uso racional do solo, mantém ocontexto histórico da sociedade e suas correlações sociais e culturais. A questão dotraçado do cemitério da Vitória está relacionado com a evolução urbana de Ilhéus,conseqüência de um fenômeno paralelo, o aumento da densidade demográfico regional.De um modo geral, é a partir do final do século XIX que inúmeros núcleos urbanos sedesenvolvem no sul baiano no rastro da expansão da lavoura cacaueira. Em uma áreacom uma grande dimensão territorial e subordinada a uma economia natural, as relaçõesentre os lugares eram bastantes esparsas. A agricultura de exportação foi a base dopovoamento e da criação de riquezas, redundando na ampliação de relações sociais e nosurgimento de vários arrais e povoados próximos ao litoral e o desenvolvimento

25 DUBY, G. História social e ideologia das sociedades. In: LE GOFF, J. & NORA, P. História, novosproblemas. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995, p.131.26 REIS, J.J. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XX. São Paulo,Companhia das Letras, 1991, p.137.27 Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). Seção Judiciária. Correspondência dos Juízes de Ilhéus –1853/1859. Maço 2398.

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demográfico nos já existentes. A incrementação da produção do “fruto de ouro” e aincorporação de novos territórios vem trazer um novo impulso e nova lógica noprocesso.O espaço urbano, tendo o cemitério como um dos seus componentes, caracterizou-secomo o espaço da estratificação e do conflito, mas também das tendências culturais dedeterminado período histórico. Para Valladares, o acervo tumulário datado entre o finaldo século XIX e início do século XX mostra uma sociedade “desejosa de parecer maiseuropéia.” Quando os jazigos não eram importados da Europa, eram confeccionadospor artistas estrangeiros residentes ou nacionais que seguiam os modelos europeus, comfarta utilização de materiais nobres de esculturas como o mármore e o bronze.Os túmulos do período trazem o espírito da Belle Époque. A pompa das sepulturas nãose apresenta somente no tamanho e nos materiais empregados, mas também no trabalhodecorativo de modelagem.28 A temática das sepulturas do cemitério da Vitória éeclética, passando por modelos de inspiração clássica ao popular, utilizando símbolospagãos assim como a semiótica cristã. Cada qual dentro das suas possibilidades, assepulturas esmeram-se em perpetuar a memória dos seus ocupantes através deinscrições, imagens, esculturas, retratos ou medalhões. O maior exemplo individualdesse fenômeno é o túmulo da família Berbert Tavares, o maior mausoléu do sul baianoem volume de massa e lavratura em mármore e bronze. Esse fator lhe confereimportante caráter documental, como confirmação do imenso desnível social existentena sociedade do período. Fortunas rapidamente construídas através da lavoura cacaueiraeram simbolizadas pela pompa funerária.A construção de mausoléus monumentais corresponde a um investimento de capital queprocura caracterizar o enriquecimento da burguesia cacaueira, dando formação afortunas que se semantizam nos títulos neo-nobliárquicos da Guarda Nacional,principalmente o de coronel. Ainda segundo Valladares, observa-se nos cemitérios decomunidades enriquecidas o costume da anotação biográfica nas inscrições e alegorias.“É uma maneira de refletir a ascensão social, a afirmação do indivíduo no meio e ovalor que seus descendentes atribuem e desejam usufruir. Fluxo melífluo daconsagração.”29

À grosso modo, o cemitério da Vitória é uma necrópole dominada por sepulturas deuma elite econômica, formada em sua maioria por self-made man, na maior parteimigrante estrangeiros e nacionais enriquecidos no período que a sociedade deocupação se transformou pequenos empreendimentos em sólidas fortunas capazes deinvestir capital na compra de jazigos perpétuos e na sua ornamentação.Esse investimento de capital no campo da morte, é a tradução de uma nova situaçãofinanceira pela qual passou a região cacaueira. As sepulturas mais antigas doscemitérios da Vitória e da Cordilheira, na zona rural , datadas do final do século XIX,foram construídas em alvenaria e ornato moldado, muitas imitando capelas e torres. Emalguns casos, esse aparato era somado a pequenas imagens e placas de mármore cominscrições dando informações sobre o(s) ocupante(s). Ainda não era comum a presençade materiais mais custosos como o bronze.

28 VALLADARES, C. do P. Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros. Rio de Janeiro, Conselho Federal deCultural, 1972, p. 765.29 Ibid, p. 1 078.

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Através da identificação e catalogação das sepulturas é possível perceber a evolução daindustrialização da produção mecanizada das marmoarias associadas às fundiçõeslocalizadas em grandes centros como o Rio de Janeiro e Belo Horizonte, com atendência a certos modelos estereotipados. Isso leva a crer que, muitas vezes, asencomendas de custo mais elevado não decorre de um critério mais apurado, mas davontade de demonstrar a condição social do indivíduo ou da família.A maioria das sepulturas de grande porte são exemplos de um processo de amplitudenacional que buscava na arte consumida no país uma aproximação com os estilosprovenientes da Europa, tendo na arquitetura uma visibilidade mais explícita. Aobservação desse processo na região cacaueira do período encontra maior ênfase noscemitérios, já que a evolução urbana de cidades como Ilhéus e Itabuna provocou umasistemática destruição do patrimônio arquitetônico civil e religioso.Os cemitérios situados na zona rural, contrariamente aos urbanos, não estãocaracterizados pela busca do moderno ou por modelos estrangeiros. Naqueles, asimbologia religiosa não foi reduzida a uma função ornamental enquanto ampliavam-seos sinais de riqueza e distinção social. Cemitérios rurais como o da Cordilheira,localizado no antigo distrito de Cachoeira do Itabuna, e do Almada, no distrito domesmo nome, as sepulturas conservam uma arquitetura simples de inspiração religiosa.As sepulturas dos cemitérios mais antigos não imitam a igreja no seu todo, não existementão miniaturas de capelas ou jazigos-capelas. As construções são compactas,constituídas pelos elementos formais da arte religiosa: sacrários, nichos, altares e torressineiras. São, como dizer de Valladares, pedaços de igrejas brotando da terra.30

A utilização do espaço da morte foi um projeto que utilizou em larga escala amonumentalidade para demonstrar poder social e econômico, sendo a pompa funeralum dado cultural expresso pela carga simbólica das sepulturas. Esse fenômeno nos levaa refletir sobre o exercício do poder e dos processos de disputa nas diversas dimensõesda vida regional, assim como pensar o espaço da morte enquanto um campo onde osconflitos e as contradições sociais se tecem historicamente.

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30 Ibid, p. 1 292.

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1 Durval Pereira da França Filho é licenciado em História e mestrando em Cultura & Turismo (UESC/UFBA)