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ORDENANDO E CLASSIFICANDO PARA INCLUIR Maria da Graça Taffarel Krieger 1 Esse texto, foi organizado a partir da dissertação de mestrado, cujo material empírico constituiu-se de dois fascículos da coleção “A educação Especial na Perspectiva da Inclusão Escolar”, intitulados “A Escola Comum Inclusiva” e “O Atendimento Educacional Especializado para Alunos com Deficiência Intelectual”. Essa coleção foi elaborada no âmbito do Ministério da Educação e foi distribuída gratuitamente nas escolas públicas do país. Os principais objetivos da referida dissertação foram: 1) discutir a forma como esses materiais elaborados pelo MEC produzem uma forma específica de se pensar sobre a inclusão escolar; 2) problematizar os mecanismos de normalização dos deficientes intelectuais que são colocados em curso pelos materiais e 3) discutir o modo como os documentos procuram governar as condutas de professores para atuar junto a sujeitos com deficiência intelectual no âmbito educacional. Neste trabalho, especificamente, deter‐nos‐emos ao segundo objetivo. Para tanto, adotaremos como referencial teórico as contribuições dos Estudos Culturais e dos Estudos Foucaultianos em articulação com a abordagem pós‐estruturalista de análise. Utilizaremos, como principais ferramentas analíticas, os conceitos de governamentalidade, governamento e norma. O fascículo denominado “O Atendimento Educacional Especializado para Alunos com Deficiência Intelectual”, aborda as bases conceituais relativas ao funcionamento cognitivo dos alunos que apresentam deficiência intelectual, trata das características do desenvolvimento e da aprendizagem desses alunos e as ações pedagógicas voltadas para o aluno que apresenta esse tipo de deficiência. É nesse artefato, em especial, que voltarei meu olhar nesse trabalho. Os sujeitos com deficiência ao serem ordenados, classificados acabam marcados a ocupar um lugar em relação à norma. Ou seja, o que está colocado em jogo nesse momento são estratégias de normalização. O material analisado apresenta, de certa forma, estratégias que partem da norma e que servem como gerenciadoras do risco social. 1 Doutoranda PPGEDU/ ULBRA, Mestre em Educação, Psicóloga.

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Page 1: ORDENANDO E CLASSIFICANDO PARA INCLUIR · constituiu-se de dois fascículos da coleção “A educação Especial na Perspectiva da Inclusão Escolar”, intitulados “A Escola Comum

ORDENANDO E CLASSIFICANDO PARA INCLUIR

Maria da Graça Taffarel Krieger1

Esse texto, foi organizado a partir da dissertação de mestrado, cujo material empírico

constituiu-se de dois fascículos da coleção “A educação Especial na Perspectiva da Inclusão

Escolar”, intitulados “A Escola Comum Inclusiva” e “O Atendimento Educacional

Especializado para Alunos com Deficiência Intelectual”. Essa coleção foi elaborada no âmbito

do Ministério da Educação e foi distribuída gratuitamente nas escolas públicas do país.

Os principais objetivos da referida dissertação foram: 1) discutir a forma como esses

materiais elaborados pelo MEC produzem uma forma específica de se pensar sobre a inclusão

escolar; 2) problematizar os mecanismos de normalização dos deficientes intelectuais que são

colocados em curso pelos materiais e 3) discutir o modo como os documentos procuram

governar as condutas de professores para atuar junto a sujeitos com deficiência intelectual no

âmbito educacional. Neste trabalho, especificamente, deter‐nos‐emos ao segundo objetivo. Para

tanto, adotaremos como referencial teórico as contribuições dos Estudos Culturais e dos

Estudos Foucaultianos em articulação com a abordagem pós‐estruturalista de análise.

Utilizaremos, como principais ferramentas analíticas, os conceitos de governamentalidade,

governamento e norma.

O fascículo denominado “O Atendimento Educacional Especializado para Alunos com

Deficiência Intelectual”, aborda as bases conceituais relativas ao funcionamento cognitivo dos

alunos que apresentam deficiência intelectual, trata das características do desenvolvimento e da

aprendizagem desses alunos e as ações pedagógicas voltadas para o aluno que apresenta esse

tipo de deficiência. É nesse artefato, em especial, que voltarei meu olhar nesse trabalho.

Os sujeitos com deficiência ao serem ordenados, classificados acabam marcados a

ocupar um lugar em relação à norma. Ou seja, o que está colocado em jogo nesse momento

são estratégias de normalização. O material analisado apresenta, de certa forma, estratégias

que partem da norma e que servem como gerenciadoras do risco social.

1 Doutoranda PPGEDU/ ULBRA, Mestre em Educação, Psicóloga.

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Nesse sentido, ao ordenar e classificar para incluir, o que consta no material acaba

fabricando determinados sujeitos, sujeitos falhos que, nesse caso, podem ser entendidos

como sujeitos de risco.

O estiramento da noção de quem é o sujeito partícipe das políticas públicas de inclusão

escolar permite dividir, categorizar e fixar cada vez mais a figura do anormal. Para isso, as

práticas de inclusão constituem, num primeiro momento, uma “operação de ordenamento”

(VEIGA-NETO, 2001).

Quando se sugere ou se define que um sujeito deve ter acesso ao Atendimento Educacional

Especializado (AEE), não se deixa de fazer uma classificação. O estabelecimento de regras

de ingresso dos alunos no AEE é uma preocupação presente no material analisado:

São atendidos, nas Salas de Recursos Multifuncionais, alunos público-alvo da

educação especial, conforme estabelecido na Política Nacional de Educação Especial na

Perspectiva da Educação Inclusiva e no Decreto N.6.571/2008.

Alunos com deficiência: aqueles [...] que têm impedimentos de longo prazo de

natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais em interação com diversas

barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de

condições com as demais pessoas (ONU, 2006).

Alunos com transtornos globais do desenvolvimento: aqueles que apresentam

alterações qualitativas das interações sociais recíprocas e na comunicação, um repertório de

interesses e atividades restrito, estereotipado e repetitivo. Incluem-se nesse grupo alunos

com autismo, síndromes do espectro do autismo e psicose infantil. (MEC/SEESP, 2008).

Alunos com altas habilidades/superdotação: aqueles que demonstram potencial

elevado em qualquer uma das seguintes áreas, isoladas ou combinadas: intelectual,

acadêmica, liderança, psicomotricidade e artes, além de apresentar grande criatividade,

envolvimento na aprendizagem e realização de tarefas em áreas de seu interesse

(MEC/SEESP, 2008). (BRASIL, 2010a, p.17).

Além de determinar os alunos que poderão receber atendimento no AEE, o material

analisado também apresenta as Diretrizes Operacionais para o atendimento especializado

em caso de oferta do AEE ser realizado fora da escola comum, reforçando que é necessário

convênio com os referidos locais e estes, devem seguir as normativas estabelecidas pelo

Conselho de Educação do respectivo sistema de ensino para autorização e funcionamento,

seguindo as orientações preconizadas nessas diretrizes, da mesma forma como ocorre com

o AEE nas escolas comuns.

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As Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado (2009)

Conforme as Diretrizes, para o financiamento do AEE são exigidas as seguintes

condições:

a) matrícula na classe comum e na sala de recursos multifuncional da mesma

escola pública;

b) matrícula na classe comum e na sala de recursos multifuncional de outra

escola

pública;

c) matrícula na classe comum e em centro de atendimento educacional

especializado público;

d) matrícula na classe comum e no centro de atendimento educacional

especializado privado sem fins lucrativos.

(BRASIL, 2010a, p.22)

Ou seja, mesmo que o atendimento no AEE não seja ofertado pelo Estado, esse de

alguma forma regula o funcionamento de todos os espaços que oferecem esse serviço.

A respeito dos processos de classificação desenrolados no âmbito de nossas

sociedades, Silva (2000) argumenta que é por meio deles que ocorre a ordenação do mundo

em classes e grupos. De acordo com o mesmo autor, essas divisões acabam por estabelecer

os critérios de hierarquização entre os diferentes grupos sociais ordenando-se em forma de

oposições binárias: “em uma oposição binária um dos termos é sempre privilegiado,

recebendo um valor positivo, enquanto o outro recebe uma carga negativa (SILVA, 2000, p.

83)”. Sendo assim, quem detém o poder de classificar, detém também o poder de atribuir

valores diferenciados aos grupos.

Mesmo possuindo um diagnóstico que, como descrevi anteriormente, se faz

necessário para que o aluno com necessidades especiais ingresse no AEE da rede comum de

ensino, após sua inserção no AEE ele é novamente avaliado pela professora do AEE em

aspectos específicos do desenvolvimento, como mostra o excerto que segue:

Na sala de recursos multifuncionais, o aluno com deficiência intelectual poderá ser

avaliado em função dos aspectos motores, do desenvolvimento da expressão oral e escrita,

do raciocínio lógico matemático, do funcionamento cognitivo, da afetividade

(comportamento e interação) e da relação que o aluno estabelece com o saber. Essa avaliação

deve ser realizada preferencialmente através de situações lúdicas, as quais devem permitir a

livre expressão do aluno (BRASIL, 2010b, p.10).

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Cabe ressaltar aqui que na escola de educação especial essa avaliação é realizada por

técnicos de diferentes áreas (Psicólogo, Fonoaudiólogo, Fisioterapeuta, Psicopedagogo,

Neurologista). Esses especialistas são acionados sempre que o aluno apresente alguma

dificuldade na sua referida área e, de forma interdisciplinar, planejam o atendimento

especializado a esse aluno. Não me posiciono aqui no sentido de defender ou escolher uma

ou outra atuação como a ideal, mas para salientar que, de certa forma, ambos os espaços

avaliam e trabalham junto ao sujeito com o objetivo de aproximá-lo da normalidade. Um

com auxílio da clínica, outro com uma professora especialista em AEE.

Segundo Santos (2010):

Para que haja a classificação é necessária a normatização, pois ela é a

primeira etapa do processo. É preciso que se tenha estabelecido, em primeiro

lugar, o que é normal, para que posteriormente haja uma distribuição de sua

multiplicidade, ou seja, normais e anormais. Lembrando que, a norma pode

ser dirigida tanto a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população

que se quer regulamentar (SANTOS, 2010, p.28).

A autora auxilia-nos na compreensão do significado do conceito de norma salientando

a sua dupla realidade: 1) como regra de conduta, como oposição à irregularidade e à desordem;

2) como regularidade funcional, como oposição ao patológico e à doença. Segundo a autora “é

essa dupla realidade da norma que faz dela um operador tão útil para o biopoder” (SANTOS,

2010, p. 103).

Ao encontro disso que vem sendo colocado, Ewald (1993) salienta que a norma pode

ser entendida como:

“[...] uma medida que simultaneamente individualiza, permite

individualizar incessantemente, e ao mesmo tempo torna comparável; como

um princípio de comparação, de comparabilidade. [...] a norma designa uma

medida que serve para apreciar o que é conforme a regra e o que dela se

distingue, mas já não se encontra ligada à ideia de retidão; a sua referência

já não é seu esquadro. Assim, [...] a norma toma agora o seu valor de jogo

das operações entre o normal e o anormal ou entre o normal e o patológico.”

(EWALD, 1993, P.79).

Tem-se, então, a ampliação do vocabulário da norma, pois essa não se refere apenas

ao normal, mas perpassa a normalidade, ao normativo e à normalização.

Cabe ressaltar que a norma, no âmbito das instituições disciplinares, no caso aqui a

escola, assim como individualiza também homogeneíza seu espaço social, buscando

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potencializar a capacidade dos indivíduos no que se refere à aprendizagem, produção de

comportamentos, etc. O material empírico dessa investigação, de certa forma, procura dar

sugestões com esse intuito: potencializar a utilidade dos indivíduos. Para tal é necessária:

A avaliação realizada na sala de recursos multifuncionais, na sala de aula e na família

visa recolher informações sobre o aluno considerando seis aspectos principais:

desenvolvimento intelectual e funcionamento cognitivo; a expressão verbal; o meio

ambiente; as aprendizagens escolares; o desenvolvimento afetivo-social e as interações

sociais; os comportamentos e atitudes em situação de aprendizagem e o desenvolvimento

psicomotor. (BRASIL, 2010b, p. 10)

Outro excerto que salienta a importância das informações colhidas através da

avaliação do aluno do AEE:

A partir das informações obtidas nos três ambientes de avaliação, o professor do AEE

constrói o perfil do aluno, bem como identifica a natureza do problema que mobilizou o

encaminhamento desse aluno para a sala de recursos multifuncional. (BRASIL, 2010b, p.10)

Nota-se aqui mais uma vez o sujeito “marcado” por suas faltas, resultando em

registros de perfis que “necessitam” de ações que se propõem a “melhorar” os sujeitos com

a finalidade de tornar pensável a vida dessa população e desenvolver uma série de

tecnologias que possibilitem regular essas vidas.

Foucault (1999), através de sua obra Vigiar e Punir, descreve o deslocamento da

sociedade soberana da época clássica para a sociedade disciplinar moderna. Segundo o autor,

o que acontece é uma inversão da função da sociedade – de disciplina-bloqueio para

disciplina-mecanismo. Sua função de controle e repressão desloca-se para uma função de

produtividade e positividade, ou seja, o foco é a produção de corpos dóceis, potencializando

a utilidade dos indivíduos. A difusão das disciplinas permite, assim, o surgimento de uma

sociedade de comunicação. De acordo com Foucault apud Ewald (1993, p.83), a norma, ou

o normativo é,

[...] ao mesmo tempo aquilo que permite a transformação da disciplina-

bloqueio em disciplina-mecanismo, a matriz que transforma o negativo em

positivo e vai possibilitar a generalização disciplinar como aquilo que se

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institui em virtude dessa transformação. A norma é precisamente aquilo pelo

qual e mediante o qual a sociedade se comunica consigo própria a partir do

momento em que se torna disciplinar. A norma articula as instituições

disciplinares de produção e saber, de riqueza, de finança, torna-as

interdisciplinares, homogeneíza o espaço social, se é que não unifica.

Segundo Bujes (2001) a norma é, então,

O elemento que vai circular entre o disciplinar e o regulamentador; que vai

aplicar-se ao corpo e a população; que permite a um só tempo controlar a

ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatórios de uma

multiplicidade biológica”. Portanto, a norma é o que pode tanto se aplicar a

um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer

regulamentar. Enquanto as disciplinas têm uma abrangência local, agem

num nível microfísico, a segurança destina-se a gerir populações, passando

para um nível biopolítico.

Foucault (1997a) ressalta que a população, esse novo personagem, estará presente na

passagem da disciplina a outra economia de poder, as seguranças. O autor salienta também

que tanto a disciplina quanto os mecanismos de segurança são diferentes faces da

normalização. Trata-se, portanto, de marcar as novas ênfases da normalização.

A disciplina normaliza, pois analisa, decompõe os indivíduos, os lugares o tempo.

Segundo Fonseca (2000, p.227), normaliza porque “[...] classifica os termos decompostos,

estabelece sequências e ordenações entre elas, fixa procedimentos de adestramento e de

controle e, a partir daí, estabelece uma separação entre o normal e o anormal. ”

Nessa lógica, é necessário refletir sobre a inclusão escolar como ela se apresenta, na

forma politicamente correta onde o exceto que destaco, ressalta:

Na perspectiva da inclusão escolar, as identidades são transitórias, instáveis,

inacabadas e, portanto, os alunos não são categorizáveis, não podem ser reunidos e fixados

em categorias, grupos, conjuntos, que se definem por certas características arbitrariamente

escolhidas. (BRASIL, 2010a,p.7)

Mas, ao mesmo tempo, o material apresenta atendimentos onde os grupos ou alunos

são atendidos conforme suas características e/ou dificuldades. Como exemplo disso,

apresento as gravuras a seguir.

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O material apresenta um atendimento em uma sala de recursos multifuncional com

uma professora ensinando língua portuguesa escrita para crianças com surdez, como mostra

a ilustração a seguir:

Figura 1 – Mostra uma sala de recursos multifuncional e a professora ensinando Língua Portuguesa escrita

para crianças com surdez.(BRASIL, 2010a,p.23)

Figura 2 – Mostra o aluno no AEE aprendendo o uso do leitor de tela. (BRASIL, 2010a,p.27)

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Figura 4 - Mostra a professora do AEE ensinando o aluno com cegueira a usar a máquina de datilografia

Braille. (BRASIL, 2010a,p.34)

Figura 5 - A foto ilustra uma atividade de acompanhamento realizada comum aluno que tem paralisia cerebral

associada a dificuldades motoras e de linguagem e deficiência intelectual. A atividade consiste em utilizar

jogos de encaixe com a finalidade de desenvolver suas habilidades de preensão e punção, bem como

desenvolver sua capacidade comunicativa. (BRASIL, 2010b, p.11)

Trago as ilustrações, com o objetivo de reflexão sobre como a educação inclusiva concebe a

escola como um espaço para todos, como os discursos pedagógicos nos remetem a pensar a escola

como um espaço de convivência e o quanto os alunos com necessidades especiais estão

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sendo submetidos a espaços e momentos onde o foco do trabalho busque a supressão da

diferença.

Defende-se que os alunos “incluídos” devem estar com os demais colegas justamente

para que não sejam marcados, diferenciados. Porém, muitas vezes o que se vê são monitores

e professores atuantes em Laboratórios de Aprendizagem (LA)2 acompanhando quase todo

tempo o aluno “especial” em ambientes fora da sala de aula, diferenciado.

Creio que cabem aqui algumas reflexões: mudam as formas de intervenções com

alunos com necessidades especiais ou só mudam os locais de atendimento especializado?

Não estaríamos vivenciando exclusões a partir dos pressupostos da inclusão? Os

atendimentos especializados saem do ambiente da Escola Especial para um ambiente de sala

de multimeios com um especialista, mas inserido na rede comum de ensino.

Outra questão a se pensar vincula-se às “Bases conceituais relativas ao funcionamento

cognitivo dos alunos que apresentam Deficiência Intelectual”, esse paradigma parece mais

igualar os sujeitos com Deficiência Intelectual, desconsiderando a individualidade de cada

sujeito construída através de suas vivências únicas e intransferíveis. Mais importante do que

o professor se apropriar das bases conceituais relativas ao funcionamento cognitivo dos

alunos que apresentam Deficiência Intelectual seria o conhecimento do funcionamento de

cada aluno.

Muitas são as narrativas dos professores frente ao despreparo em sua atuação junto aos

alunos com necessidades especiais - reitero aqui minha postura como profissional da

Educação Especial que, dentre todas as necessidades especiais as que mais suscitam dúvidas

e inseguranças nos professores é a Deficiência Intelectual – o que acaba por valorizar o saber

especialista e solicitar sua participação no cotidiano escolar procurando apoio e orientações

que possam auxiliá-los a solucionar as dificuldades de aprendizagens de seus alunos. O

próprio professor do AEE precisa ter formação (especialização) em Educação Especial.

Assim, sem o propósito de produzir respostas conclusivas e unidirecionais, tampouco

culpabilizar algo ou alguém pelas dificuldades que ocorrem nas instituições escolares em

relação à inclusão, o que busquei foi tentar compreender o processo pelo qual surge e se

2 Laboratórios de Aprendizagens na maioria das vezes se destinam a oferecer aos alunos com problemas de

aprendizagem, mas sem deficiências específicas - aquelas que são consideradas público-alvo da educação

especial - uma oportunidade de equalizar saberes e ter acesso ao conhecimento assim como seus colegas.

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alimenta a defesa da chamada Educação Inclusiva, que, ao mesmo tempo em que questiona

e coloca em xeque a noção existente sobre os sujeitos com necessidades especiais, critica as

práticas da educação tradicional na rede comum de ensino, tanto quanto questionam as

instituições de educação especial.

Necessário pensar que os discursos que se propagam sobre educação inclusiva são

discursos que se narram em circunstâncias bem determinadas, são coisas ditas que se

conservam por serem detentores de certa riqueza, reconhecidos em nosso sistema cultural.

O discurso sobre educação inclusiva, recebe o reforço dos movimentos internacionais que

defendem o direito das pessoas com deficiência não só de estar, mas também em permanecer

nos diferentes espaços sociais, sendo a escola um dos espaços mais referenciados nesse

sentido.

Outro fator importante no controle de um discurso é o autor. Esse é o protagonista que

dará densidade ao discurso, é o indivíduo falante, que pronuncia ou escreveu o texto. Os

discursos circulam e sua eficácia ou aceitação dependerão do autor, aquele que dá a

linguagem seus nós de coerência, a inserção no real o seu papel de multiplicador e coercitivo

do discurso.

Pelo fato de o material escolhido como objeto de estudo nessa pesquisa ter sido

elaborado pelo MEC, o autor em questão possui a “autenticidade” da autoria por ser ele

próprio um Ministério que produz e legisla sobre a educação no Brasil.

Considerações finais

Nascido sob amparo de movimentos mundiais realizados principalmente na década

de 1990, o imperativo da inclusão parece defender a prevalência de um único sistema

educativo para todos, efetivando ações que tem como objetivo fazer chegar ao aluno

educação em contextos regulares e não-segregados.

A educação inclusiva parece ressaltar o princípio da felicidade, da autoestima

enfatizando que as pessoas com necessidades especiais se desenvolvem melhor social e

cognitivamente se estiverem na rede comum de ensino. O direito de ser diferente, como nos

ressalta Santos (2010), parece ser o imperativo proclamado pelas políticas educacionais.

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A reflexão necessária se faz em virtude da inclusão escolar não se consolidar

somente através de documentos políticos, nem tão pouco mediante ao deslocamento de

estudantes de escolas especiais para escolas comuns, o que importa é que esse sujeito tenha

a garantia de acesso a uma educação de qualidade, independente do espaço físico em que

esta se realizará.

Por fim, para que fosse possível realizar a análise do material escolhido, foi

necessário me embrenhar na sua lógica, conhecer sua gramática com intuito de aprender os

significados que produzem nos espaços que circulam e no momento que lemos tais textos.

Faz-se necessário estar atento, para que se lance um olhar que esmiúce as relações entre as

imagens, os textos, as tendências sociais e os produtos que são produzidos pela cultura.

Portanto, o que mais interessa é tomar o texto:

[...] menos por aquilo que compõe por dentro, e mais pelos contatos de

superfície que ele mantém com aquilo que o cerca de modo a conseguirmos

mapear o regime de verdade que o acolhe e que, ao mesmo tempo, ele

sustenta, reforça, justifica e dá vida. (VEIGANETO, 2001, p. 57).

Segundo Bujes (2001, p.71) “É assim que a educação institucionalizada vai se

constituir numa estratégia privilegiada de disciplinamento das populações [...] fazendo a

conexão entre o indivíduo e a sociedade”. Os sujeitos com deficiência se tornaram objetos

de domínio e de ação governamental. Passaram a compor um campo conceitual passível de

intervenção e regulação.

O uso alargado do termo inclusão acaba dificultando a diferenciação entre as várias

categorias excluídas, o que acaba resultando na colocação de todos sobre o mesmo processo

includente. Nas escolas, por exemplo, comumente se faz uso do mesmo processo de inclusão

para sujeitos autistas, surdos, cegos em diferentes faixas etárias.

Traçar as condições de possibilidade do material por mim analisado e mostrar como

este dispositivo pedagógico é gestado nas tramas discursivas e nas relações político-

institucionais que perpassam o campo da inclusão escolar, como ele é tornado

operativamente possível, como múltiplas relações de força, intricadas e cruzadas, o

conformam como dispositivo de poder foi meu intuito.

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Para Foucault (2002) os procedimentos de controle funcionam com o propósito de

classificar, ordenar de distribuir, como se se tratasse de submeter outra dimensão do

discurso: a do acontecimento e do acaso. Essa prática pode ser observada no material

analisado nessa pesquisa. As cartilhas definem e propõem intervenções e ações sempre

embasadas na classificação dos sujeitos. Nem todos os alunos podem frequentar os espaços

do Laboratório de Aprendizagem, somente aqueles que se adequam ao perfil de aluno

estabelecido pelas políticas de inclusão brasileira. Esse sujeito/aluno passa a ser

“reconhecido” como aluno de inclusão, portanto é necessário classificar para incluir.

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