(ordem vermelha #1) filhos da degradação -...

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Copyright©CCXPEVENTOSLTDA.OrdemVermelhaéumprojetodeFelipeCastilho,RodrigoBastosDidiereVictorHugoSousa,comdireçãocriativadeEricoBorgoeRenanPizii.PublicadomedianteacordocomCCXPEventosLtda.Todososdireitosreservados.

ILUSTRAÇÃOELETTERINGDECAPA

RodrigoBastosDidier

CAPA

RafaelNobre

MAPA

IlustraçãodeRodrigoBastosDidier,desenvolvidacomFelipeCastilhoeVictorHugoSousa

PROJETOGRÁFICO

RafaelNobre

PREPARAÇÃO

UlissesTeixeira

REVISÃO

GiuAlonsoMarianaBardIsisPintoBeatrizD’Oliveira

REVISÃODEE-BOOK

ManuelaBrandãoTaynéeMendes

GERAÇÃODEE-BOOK

Intrínseca

E-ISBN

978-85-510-0270-4

Ediçãodigital:2017

1aedição

TodososdireitosdestaediçãoreservadosàEDITORAINTRÍNSECALTDA.

RuaMarquêsdeSãoVicente,99,3oandar22451-041–GáveaRiodeJaneiro–RJTel./Fax:(21)3206-7400www.intrinseca.com.br

ParaMaxMallmanneLucasS.Sousa

AFÚRIADOSSEISEOSURGIMENTODEUNA

No princípio, não havia nada, somente os SeisDeuses. E, em toda a sua bondade, eles teceram omantodoscéus—umladoescuroecravejadodepedraspreciosas,ooutro,claroecomumapepitadeouro incrustada.OsDeuseso estenderamacimada superfíciequeabrigariaaságuas,osmontes etudomaisqueavastaimaginaçãodosSeisousassematerializar.

Diantedetantasmaravilhas,osDeusesacharamporbemcriarprotetoresparacadaumadelas.Paraasmontanhas,criaramosgigantes.Altosefortes,capazesdelimparospicosenevoadosede

trataratundra.Para as cavernas, os anões, pequenos mas resistentes, como os valiosos minérios que lá se

formavam.Paraguardaraságuasetudoquefluía,foramcriadososgnolls.Silenciososcomoachuva,velozes

comoosrios.Paraosbosquesrepletosdefrutaseflores,ossinfos.Levescomoopólencarregadopelovento,eles

seriamosmensageirosdamagiainvisível.Para os terrenos rochosos e as selvas fechadas, os kaorshs. Altivos e esguios, preparados para

transporobstáculoseresponsáveispordarcoraomundo.Os humanos receberam as planícies. Fortes e de boa saúde, eles cuidariam do solo e amariam

aquiloquelheseradado.Noentanto,oqueerapazsetornouguerra.Os humanos cobiçavam os dons das outras criaturas, e então envenenaram as mentes delas,

apontandoseuspontosfracos,incitando-asacompetirentresieamaldizerosDeusesportê-lasfeitotãofalhas.

Logo todas as raças passaram a invejar umas às outras, sem jamais se contentar com o quereceberam: os gnolls queriam a liberdade dos sinfos e deixaram de zelar pelas águas; os anõesalmejavamaluzdosoleabandonaramascavernas;oskaorshs,arrogantes,trocaramascoresdasplantasedasfrutas,comoseasescolhasdivinasnãofossemboasosuficiente;osgigantes,porsuavez,desejavamaproteçãoeocalordascavernase,aotentaremesconder-sesobaterra,destruíramasmoradasdosanões;ossinfosriamdetudoaquilo;eoshumanos,percebendooconflitoentreasraças,usaram seus recursos e sua inteligência para criar máquinas de guerra, distribuindo-as paraqualquerumquequisessemaispoderdedestruição.

Os Deuses, ofendidos e decepcionados, enviaram pragas como punição para criaturas tãoinsatisfeitas.Dessaforma,asflorestaspassaramaserhabitadaspormonstroseoutrasabominações;oarcheiravaafumaçaemorte;osriostinhamacorvermelhadosanguedaquelesquepereceramnasbatalhas.

Aindaassim,osSeisacharamqueosfilhosnãotinhamsidocastigadosobastante,entãoderamumapuniçãoespecialparacadaumdeles:osgnolls,queantessecurvavamapenasparabeberaágua

dosrios,foramcondenadosaandarparasempreemquatropatas;ossinfos,queantesviviamcomoumvendaval,tiveramavidareduzidaaumalevebrisa;oskaorshs,quecoloriamomundo,foramfadadosaterascorespresasdentrodesi;osgigantes foramreduzidosapoucos,paraaprenderemsobreasolidãoquehánadestruição;osanõesforampresosdentrodascavernas,atéqueasjoiasdequetantoseorgulhavamfossemosúnicosalimentosdisponíveis;e,porfim,oshumanos,quehaviamcomeçadotodooconflito,tornaram-sefrágeisedoentesdecorpoedealma—amaisfracadetodasasraças.

Após tanta dor e lamento, omundo se reduziu a um deserto, e esse deserto recebeu o nome deDegradação.Sobrouapenasumúnicopedaçodeterrahabitável,aospésdomonteAhtul,próximoaosGrandesPântanos formadosduranteaguerra.Nocume,osDeusescombatiamosúltimosdosmesquinhosgigantes,queserevoltavamcontraoscastigosrecebidos.Então,comasmãosrepletasdosangue vermelho dos desobedientes, os Seis perceberam que tinham se tornado tão cruéis quantoaquelesquenãohonraramsuasbênçãos.

Assim,elesdecidiramtornar-sealgonovo,semfalhas.Assim,elesdecidiramtornar-seumsó.Assim,surgiuadeusadeseisfaces,adeusaUna.Comoprimeiroatodepoder,UnatingiuoSoldenegro,e,pelotempoquedesejou,osdoisladosdo

céuforamapenasescuridão.Porcompaixão,Unadeuàscriaturasumaúltimachance:permitiuqueocupassematerraaospés

domonte,aqualchamoudeUntherak,equeafizessemprosperar,comoprovadeseuamoràdeusa.Do sangue derramado, Ela pediu o esquecimento, e baniu a cor vermelha, para que os súditos

pudessemviver semo constante lembretedaspróprias falhas.Dessa forma,osque sobreviveramàFúriadosSeislheserviriamparasempre.

DoSolescurecido,UnaretirouumlíquidomalditochamadoMácula,quelavariaospecadosdetudo que viera antes dEla, e o armazenou no poço de seu Palácio. Os que ali fossem batizadosouviriamosgritosdaquelesquejáse forameteriamocorpotorturadopeloscrimescometidosporseus antepassados, dando as boas-vindas a uma nova existência, na qual cumpririam apenas asordens da soberana.Os humanos, porém, por terem despertado a Fúria dos Seis, teriam o corpocorroídoaoentrarememcontatocomaMácula—assimcomoosmortos,desfaziam-seaotocarosumodoSolnegro.Paraeles,autoresdopecadooriginal,aMáculanãoseriatransformação,masexecução.

Àquelesquesemostrassemtemerososehonrados,Unaconcederiaabênçãodoperdãoedeserosseus olhos e ouvidos para a execução da lei. Se fizessemumbom trabalho,Una lhes concederia adádivadasemiliberdade.Quemdesafiasseseupoderinfinitoestariacondenandoasimesmo—easeusdescendentes—àverdadeiraservidão.

EfoiassimquenasceuaEradosFilhosdaDegradação.

Maisperturbadordoquefugirdolugarondeseperdeutudoéretornarporvontadeprópria.Nunca pensou que retornaria aUntherak através do rioAbissal. Aquelas eram lembranças

mortasdaúltimavezqueestiveraali—fugindo,deumamaneiraqueninguémpoderiaimaginar.Equilibrava-sedepéemumpedaçodemadeirabemnahoraemqueavelhabalsa chegavaaoPortãoOeste.Antes,asgradessecravavamnorio,masoníveldaáguatinhabaixadotantoqueagorahaviaespaçosuficienteparadestroçoserestosdeembarcaçõesentraremnacidade.

A lua se escondia atrásdomonteAhtul.À frente, ele via as seis facesda colossalUna: ummonumento erguido num passado sombrio e que já perdera o sentido. Também conseguiudistinguir a silhueta dosAssentamentos à esquerda.Nãopoderia dizer se algonaquela regiãohaviamudadorecentemente,pois,mesmoemseustemposcomoservo,olugarsempreforaumametamorfoseconstante.

Adespeitodomantovermelhoesfarrapadoedaimensaespadaàscostas,ninguémoviusaltaremterrafirme.Mantinhaospassos leves,aindaqueparecessenãoterninguémemumraiodequilômetros.Outrora,oportãodorionãoficavanemumminutosemumgigantecomovigia.

Entrou pelas ruas estreitas, sempre subindo. Não sabia se reconheceria os lugares maisfamiliares— o Pâncreas deGrifo, ele já não tinha esperança alguma de encontrar, tampoucoentesqueridos.Comoseusolhosestavamacostumadosàescuridão,nãoprecisoucorreroriscodeacenderumarchote.

Ficouclaroqueosbarracoseascasasmal-ajambradasnoiníciodasubidadomorrotinhampegadofogo,algocorriqueironosAssentamentos.Quandoissoacontecia,osmoradoressaíamdolocal,ascasaseramreconstruídaseaencostadomorro,refeita—oquenãoocorreradessavez.Temposdifíceis,queficariamaindapiores.

Haviacorposcalcinadosdentrodeconstruçõesenegrecidas.Talvezdeanões,oukaorshs,ouhumanos.As carcaçasmenorespodiamserde sinfos,mas,

comooexpurgolevaraquasetodososdaquelaraça,eramaisprovávelquefossemdecriançashumanas.

Continuousubindopor ruasvazias, tentandose lembrarde comoeramosAssentamentosanosantes.Sentiaumcheirofamiliarmisturadoaodospântanos,sopradoporumventovindodosul,distanteaindaquepungente.Causava-lhearrepios.

Avançandoalgunsmetrosatéoutraregiãoabandonada,subiuemumtelhadoe,delá,saltouparaoutromaisalto.Entãopôdeverdepertoaestátuadeseisfaceseumbomtrechodomorro,assim como as ruas abaixo dele — entre elas, uma vielamovimentada. Era de lá que vinha ocheiro.

Saltandode telhado em telhado, chegouatéumapassagemestreita.Talvez fosse a ruaqueprocurava, talvez não. Estava apinhada de gente, incluindo crianças. Aquelas não estavam

incineradas,maseramviciadas.Kaorshsdiscutiamcomanões,humanosiamàsviasdefatocomkaorshs,emuitosdastrês

outrasraçaschoravam.Ehaviaaindaaquelesqueapenasvagavamporlá.Umfogobrancoedébilnomeio da rua servia como fonte de luz naquelamiséria. Caminhou entre pessoas de andararrastado, passou por corpos caídos, os rostos virados para a terra batida.Ninguémnotou omanto vermelho nem a grande espada. Sentia-se invisível. Um fantasma—mais um naquelelugar.

Atéque,aopassarporumbecocheiodelixo,alguémenfimreparouemsuapresença.—Me…ajuda…Era um homem. Ou um kaorsh. Subnutrido, com sulcos profundos no rosto e pele

acinzentada. Estavadeitado entre carne podre emadeira enegrecida pelo fogo. Juntou toda aforçaquelherestavaparaergueropescoçoechamaraatençãodafiguraencapuzada.

—Ajuda,por…favor…—Desculpe,nãotenhonemmesmoumbakircomigo.Jáháumbomtempo,aliás.Ohomempareceuseengasgar.Algunssegundosdepois,oencapuzadopercebeuqueeleestava

rindo.—Eoqueeu…fariacomdinheiro?Fumaria?Ocheirodecarvãoexalavadosporosdosujeito,ehaviaumcachimboimprovisadopousado

apoucoscentímetrosdesuamãodireita.Oforasteirosentiuaprópriamãotremerporummomento.Seucorposelembravadecomo

era,eamenteaindalhepregavapeçasporcausadousoprolongadodasubstância.—Nãotenhocarvão—respondeu,tentandodeixarasemoçõesdelado.—Aindavendempor

aqui?— Vender? Não… — O sujeito tossiu e escarrou, sujando o próprio braço, mas não deu

importância.—Masespera…comoéquevocênãosabe…disso?Comumapontadeesperançaeincoerência,oencapuzadoajoelhou-senafrentedoviciadoe

examinouseupescoço.Nãohavianadalá.Claro.Umhomemquetivesseabusadotantodousodo carvão já teria vendido qualquer pingente para satisfazer as suas necessidades. Então,perscrutouorostodele.Não,nãopodiaser.Eleeramuitovelho,talveztivessedezanosamais.Tudobemqueocarvãoenvelheciaousuário,masmesmoassim…

—Euvimdelonge—respondeuoencapuzado,porfim.Eramuito difícil deixar alguémmorrer em seu coração sem a confirmação do óbito. Em

algumlugardesuamente,umsussurrorepetia:“Semcorpo,semprovas.”—DoPortão…Sul?Láépior…maisgosmentosvagandoe…—DeforadosPortões,euquisdizer.O viciado respirou fundo. Seus olhos se projetarampara a frente, como se uma avalanche

estivesseacontecendodentrodocrâniodohomemeosglobosoculares estivessemprestesasaltar. Então, o sujeito começou a rir semparar, com a boca arreganhada,mostrando para o

forasteirodentespodreseumalínguaesbranquiçada.—Euquefumocarvão…evocêquedizqueveiodaDegradação?Essaéboa!Orisocontinuou,eoencapuzado fezmençãodese levantar,certodequenãoconseguiria

extrairnadadaqueleali.— Espera! Se veio “de fora”… então temmuita coisa… que precisa saber… heh. Hehehehe…

Comoémesmoseunome?—Eunãodisse.—Então,diz!Grosseriadagosma.Eudiriaomeunome…semelembrassedele.Emoutraépoca,aquiloseriaengraçado.Contudo,oforasteirosabiaqueobomhumoreas

respostasespirituosaslogoseriamsubstituídosporlágrimas,violênciaoualgumaoutrareaçãodesmedidacausadapelousoprolongadodecarvão.

—Comofuncionaavenda?—insistiupelaúltimavez.Oviciadoestaloualíngua.—ÉoGeneral…Elenosdáocarvão,senhorsemnome.Édegraça…Eletambémconseguiu

deixaracoisamaisforte…ocoicebatequenemmurrodegigantenacabeça…Mas,quandoquernoscastigar,elenãodámais.

—EeleusaosAutoridadesparafazeradistribuição?Ohomemfezumacareta.—Taíoutrapalavraquenãoescutofaztempo…Autoridade—disseele,enxugandolágrimas

dosolhosetossindoemseguida.—Seilá…Deveteralguémvivoque já foiAutoridade…Lánapraça,parecequetemumotárioquejáfoi.ElemorounaVilaA…antesdevirarumafavelaquenemesselugaraqui.

—NãoexistemmaisAutoridadesservindonoPalácio?— Claro que não — respondeu o sujeito, fazendo um barulho molhado com a boca e se

mexendoparaqueolixoseacomodassemelhorsobseutraseiro.—Sevocêtivessepoder…sobretodaumacidade…porqueiaquererintermediários?

—MantiveramocargodeTenente.—Olha só…Você atéque é bemespertinho…para alguémque “veiodaDegradação”.Heh…

Hehehe.—Ohomemvoltouarir,massóatétatearocachimboeverificarqueofornilhoestavavazio.—Ai,minhastripas…mearranjaumcarvãoaí?

Oforasteiroselevantou.Nemvaliaapenaperguntarporsobreviventesdaquelediafatídico,muitomenos por nomes. Omelhor era passar para o plano principal e ir até a praça que ohomemmencionara.Delá,talvezconseguissechamaraatençãodapessoaquequeriaencontrar.“Ospéstêmmemória”,haviamlheditocertavez.

Gritos.Sonsdepassosemmarcha.Elepercebeuumaagitaçãodiferenteforadobeco.Olhouparaaruaàssuascostaseviumuitagentecorrendo.Duaspessoasentraramnobeco,ofegantes,escorando-senaparede.

—Oqueestáacontecendo?—perguntouaosdoisesfarrapados.

Eramumanãoeumahumanaàbeiradeumataquecardíaco.—Vãolimparaárea!—gritouela.Oanãotambémpareciaapavorado,masestavasoboefeitodocarvão.Oforasteirotirouaespadadascostas,devagar,esaiudobeco.—Tábom,vaiembora!—gritouoviciadocomquemeletinhaconversado.—Enfiaocarvão

norabo,fazumafornalhaaídentro!Semdarouvidosàsmaldiçõesatiradaspelohomem,oforasteirocaminhounocontrafluxo

desorganizadodamultidãorotaemaltratada,eentãoavistouoquetantotemia:umaparededeescudosnegrosqueavançavaapassoslentoseconstantes.Cadaviciadoquehesitavanafrentedopelotãopagavacaro,sendoderrubadopormaçaseclavasque,tãologoterminavamoserviço,voltavam para trás dos escudos. As armaduras pareciam as dos antigos Únicos, notou oforasteiro,mascompequenasdiferenças—assimcomoocomportamentodossoldados.

— Alto! — gritou um dos soldados, depois de ver por cima do escudo um único homemparadonomeiodarua,brandindoumaespadaimensa.Opelotãoestacou.Eramosprimeirosamostrardesconfortodiantedomantovermelho.—Largueessaespadaeajoelhe-se!

Oforasteironãorecuounemummilímetro.Eraumespantalhonomeiodarua,destoandodocinzapredominante.

—Nãoouviu,não?—gritououtravozportrásdosescudos.—Largueaespada!Dejoelhos!Agora!

Contouosescudosàfrente:cincoemcima,cincoembaixo.Dezsoldadosnalinhadefrente,earriscariadizerquehaviapelomenosoutrosdeznaretaguarda.

Umbomnúmeroparacomeçar,pensou.Horadequebrarosilêncio.— Escutem: quero falar com o General. E só com ele. — O estranho fez uma pausa e

acrescentou:—Portanto,saiamtodosdaquiantesquesearrependam.Aparedede escudos se abriu aospoucos.Humanos, kaorshs, anões: todospareciamquerer

botar os olhos naquela criatura que provavelmente fumara tanto carvão que tinhaenlouquecido.E,então,explodiramemgargalhadas.

—Ondeconseguiuessebrinquedinho,refugo?—gritouumkaorsh,logoàfrente.—Vaiacabarsecortando!

—Ouvouacabarcortandovocê—respondeuoforasteiro,muitocalmamente.As risadas cessaram. De um segundo para o outro, o escárnio no rosto do kaorsh se

transformouemira.—Vocêestápedindo…Previsível.Okaorshavançou,segurandoamaçaeoescudo,quebrandoaformaçãonaparede

deproteção.Eeraissoqueoestranhoqueria.Aespadabalançounamãodelecomose fosseumapluma.Okaorshgritouemdesafioeo

atacou,golpeandodecimaparabaixoeatingindoalâminadoforasteiro,queatravessouocabodaarmadosoldadoe,nomesmomovimento,arrancoumetadedesuacabeça.

Osangueespirrounocapuzvermelhodohomem,queseguiunadireçãodosoutrossoldados—maisprecisamente,nadireçãodovãoquehaviasidoabertonaparededeescudos.

Girando a espada num golpe lateral, ele fez os soldados recuarem às pressas. Com isso,avançounumpassoágilparadentrodaclareiraabertanomeiodos inimigos.Qualqueroutrooponenteevitariaficarcercadoporquaseduasdezenasdehomensarmados,masaquelepareciaquererjustamenteisso.

A lâmina descrevia círculos completos ao redor do forasteiro. Era um estilo de lutainesperado, amplo.Nenhum dos soldados sabia como lidar com um inimigo que, em vez deavançareretroceder,rodopiavacomaespadaempunho.Osguardasdafrentenãoconseguiamrecuar, pois os de trás estavam descoordenados, sem dar espaço para os outros semovimentarem.Dessaforma,entrecabeças,braçosepernas,seismembrosforamcortadosemquestãodesegundos.

Adisciplinadatropadechoqueedispersãosetransformounumconfusogrupodehomensacuadoslutandopelaprópriasobrevivência.

Alguns soldados conseguirammanter a calma. Talvez sonhassem em voltar para oMiolocom a cabeça do sujeitinho petulante que os desafiara nos Assentamentos. Esses nãopreocuparam tanto o forasteiro quanto os acuados — em sua experiência, pessoas prestes amorrererambemmaisperigosasdoquebrutamontesqueconfiavamdemaisemsuaforça,emsuaarmaeemsuaarmadura.

Umaclavaseaproximoudascostelasdoforasteiro.Eleseesquivoue,comapalmadamão,quebrouonarizdooponente.Ohomemtevecercadedois segundosparaurrarporumadormínimacomparadaàqueseseguiu,deteroestômagotrespassadoporumaespada.

O forasteiro começava a dar sinais de cansaço. A explosão de adrenalina do início estavaarrefecendo,eerahoradetomarcertasprecauções.Caminhouparatrás,forçandoossoldadosaseespremerempelaviela,demodoqueapenasumpudesseatacarporvez.Recuandodecostas,passoupelobecoemqueestiverapoucoantes,eviuderelanceosviciadosescondidos,osolhosvidradosnaquelacenainesperada.

Enquanto o corpo funcionava por si só, atacando, desviando e defendendo, a mente doestranhocomeçouaselembrardetemposemqueeleevitavaoconflitodireto.Aaçãofurtivaeraomodomaisapropriadodeminaropoderdeumadeusa.

Sorriu enquanto empalava um adversário. Suasmãos estavam no presente e sabiam o quefazer.Jásuacabeçaviajavaparaumpassadoduro,masumpassadonoqualasdificuldadeseramenfrentadasaoladodealiadosdispostosamorrerunspelosoutros.

Dentrodassombrasdocapuz,umalágrimasingrouorostodoforasteiro.Mas,seupranto,assimcomoaquelaslembrançaseorioAbissal,eramáguasmortas.

1

O tempo tem a capacidade de transformar tudo, exceto a si mesmo. Ele derruba muralhas,modificaraças,transfiguraumapessoaemoutraedeturpamemórias.Noentanto,serásempreotempo.

Eéclaroqueotemposóexisteporqueasoberanaassimopermite.QuandofoiiniciadaaconstruçãodacolossalestátuadeUnanocentrodeUntherak,osgnolls

dominavamasmargensdospântanos.SuasrisadasconvulsivaseseushábitosdecaçanoturnaforamoprimeirodesafioparaaquelesquehaviamseestabelecidoaospésdoAhtul.Numerosos,brutais,semprearmadoscommachados—comoseasmandíbulasnãobastassem.

Milanosdepois,noentanto,osgnollsestavampraticamenteextintos.Os espécimes restantes erampoucomais que cãesde guarda em coleiras, reproduzidos em

cativeironoscanisdoconturbadocentrodeUntherak,conhecidocomoMiolo.Domesticadose submissos, erambípedes transformados emquadrúpedes.Ainda brutais,mas apenas quandosolicitadosouatiçadospelomedo,osgnollseramomaiorexemplodequeavontadedeumadeusasesobrepunhaàdanatureza.Vendo-osdecima,andandosobrequatropatas,nemdelongelembravamascriaturasletaisdasantigaslendas.Inclusive,Aelianachavaquepoderiamontarumdeles—umpequenoefaminto,depreferência—,massóselhefossemoferecidosmuitosaltinemumadasmesasdeapostasdoPâncreasdeGrifooudoPoçodosDesejos.Eleera jovemefaziainúmerasidiotices,mastodascomalgumavantagememvista, fossealgodevalorouescassosmomentosdeliberdadeforadoscorredoressufocantesedascelasapertadasdoPoleiro.

De onde estava, ele podia ver duas das seis faces enormes, esculpidas por mãos pequenas.Lutoucontraasensaçãodeestarsendoobservado.Defato,maisqueummonumento,aréplicaem ouro e ônix da deusa era um aviso contra qualquer insurgência ou atitude desmedida. AestátuaeratãograndequeseusdiversosolhosapareciamporcimadamuralhaqueseparavaoMiolodosCamposExteriores,capazesdevigiaraArenadeObsidianaetodooUnificadoatéaperiferiadaBorda.

OsolhosdeAeliansevoltaramdoslimitesdoUnificadoparaaArena,esuamentetambém.Rememorouopisopretodeobsidiana,observandoAenochOruzemsuavitória.Aelianera

pequeno, e aquele era o primeiro Festival da Morte a que assistia, ainda que escondido,encarapitadonotelhadodaArena,jádemonstrandoseutalentoparaescalarparedes.Ocalor,asensaçãodealegriapordescobrirqueoguerreiroquehaviaarrebatadoamultidãoeraopaidele…Tudoaquilodandolugaràtontura,aodesmaio…

Quandoacordou,viuocorposendoarrastadopordoisAutoridades,cadaumsegurandoumaperna. Não havia rastro visível da cor proibida no piso de obsidiana, mas ela estava lá, aos

montes,camufladapelonegrume.Aelian afastou as lembranças dolorosas e encarou o presente. O sol já tinha quase

desaparecidodocéu.Restavampouquíssimosminutosantesqueacontagemcomeçasseemseucorredor—eaindaprecisavaencerrarostrabalhoscomasencomendasdoPoleiro.

Como joelhodireitoplantadonotelhado,orapazesperouqueapatrulhaqueconduziaosgnollspelavielaabaixosumissedevista.Estavaacercadeoitentametrosdosolo,mastemiaservisto de relance na hora em que saltasse de uma torre para a outra. Observava a patrulhamudandode formação, os homens se enfileirandopara passar por umbeco estreito.Umdosgnollsparouparacoçarasarnaatrásdaorelhaetomouumpuxãonacoleiraqueofezganirevoltar a caminhar no mesmo instante. Outros ruídos de correntes seguidos de ganidosindicaramqueoprocessoserepetiuemoutrobichonofimdafila.

Aelianesperava,impaciente,enquantoosolmergulhavanohorizonte,tingindoocéudacorproibida. Como o costume popular exigia, o jovem bateu com a palma damão na testa trêsvezes.EraosinalcontraoMalRubro,queelesabiaqueUntherakinteira—pelomenososquetrabalhavamacimadasuperfícieeemcampoaberto—deviaestarfazendonaquelemomentodeagouro.

O beco estava enfim vazio. Aelian se levantou na ponta dos pés e se afastou da beirada.Quandoeraapenasumacriançaossuda,emseusprimeirosdiasdeservidãonoMiolo,podiasedaraoluxodesermaisdescuidadocomoslocaisporondeandava,poisastelhasdebarro,aslajesinacabadas e as coberturas de palha não reclamavam sob seu peso. Duas décadas depois, asituação era outra: o corpo dele era esguio como o de um servo não tão habituado a pás epicaretas, mas com os músculos condicionados pela contraventora mania de viver naquelemundoselvagemeverticaldasescaladas.

Aeliangirounoscalcanhares.Estavamaisumavezdefrenteparaabeiradadotelhado,amaisoumenosdezmetrosdedistância.Flexionoudeleveaspernas,correuesejogounovazioentreosdoisprédios.

Eraincrívelcomo,duranteosalto,adistânciasemprepareciaaumentar.Ele encostouos joelhosnopeito e abraçouaspernasporum instante. Sentiuo estômago

contraireavelocidadeaumentarapósatingiropontomaisaltodaquelevoo.Eentão,adescidainevitável, a aceleração. Cerrou os dentes, esticou as pernas e se preparou para o impacto. Ooutrotelhado,deumaestruturamaciça,achatadaecheiadechaminés,ficavabemmaisabaixoqueoanterior,eumaaterrissagemtranquilaestavaforadequestão.AlieraaBigorna,umdoslugaresquemaisabusavamdasaúdefísicaementaldosservosdeUna,aestruturaresponsávelpelaforjadearmasdeUntheraketambémpelocarvão,asubstânciaentorpecenteproduzida—ilicitamente—nasfornalhasetraficadaportodooUnificado.

ApontadeseuspéstocouabeiradotelhadoemdeclivedaBigornaeoimpulsionouadiante.Alguns centímetros a menos e Aelian teria continuado a rápida descida até o chão. Ele seencolheuerolou,arrancandoalgumastelhasvelhas,levantandooforrodepalhaecaindoperto

deumabandeirasujaeesfarrapadapresanumahastemetálicaqueestavaaliparaservirdebiruta,indicando a direção do vento. Nada daquilo fora planejado. Estavamais para um improviso.Aelian esticou o braço no último instante e agarrou a haste, fazendo ometal ranger com otrancodafreadabrusca.

Ergueu-secomumgrunhido.Aquelaforaporpouco,masotelhadodaBigornaeraomelhorlugarparacomeçarodemoradoprocessodeescalarasparedesexternasdoPoleiroparachegaratéosótão—deonde,emteoria,Aelianjamaisdeveriatersaído.

Seucabeloestavabagunçadoecheiodefiaposdepalha.Orapazsacudiuacabeçaeprendeuocabelocomatiradecouroquelevavaamarradanopulso—sempreesqueciadeprendê-loantesdossaltoscomplicados,esempresearrependia.

Pormaisqueestivessecompressa,precisava recuperaro fôlego.Aindaagarradoàhastedabandeira, ergueu-see respirou fundo.Oar eramais fétidoqueonormal,por causada fumaçasuspeita que as chaminés da Bigorna despejavam no fim da tarde; porém, era o único ardisponível. O edifício tinha um formato que lembravamesmo uma bigorna. Suas chaminésregurgitavam vapores dia e noite, e naquelemomento Aelian foi acometido pela tontura aoaspiraraqueleartãodeperto.Parasereequilibrar,paroueolhouparaocentrodoUnificadomaisumavez.

AentregadecartasedepequenosobjetosemUntherakera feitapor falcões treinadosquevoavamentrepostosdecoletaededepósito.Haviaapenascorrespondênciasdecunhooficial,jáqueaescritaealeiturasóerampermitidasentreosAutoridades,osÚnicos—aguardaespecialdeUntherak — e outros cargos militares de alta patente. Os servos, noMiolo, podiam receberapenaspequenosobjetosdas famílias,queviviamnosCamposExteriores,comolembrançaseobjetospessoais.Aelianeagrandemaioriadosservostrabalhavamemjornadasdetrezehorasdiárias,passandoasnoitesemcelasque,emgeral,localizavam-senomesmolocalondeosseusofícioseramrealizados.Apósosextodiade trabalhovinhaoDiadeLouvor,noqualoservorecebia seus três gumus semanais e tinha permissão de passar o dia de folga com familiares eamigosforadoMiolo—desdeque,éclaro,asobrigaçõesreligiosascomUnafossemcumpridas:seishorasdeescuridão,nasquaisoservodeveriapermanecerdeolhosfechadosparajamaisseesquecerdopoderdadeusadeenegreceroSolecomandaraMácula.

NocasodeAelian,que,comumapontadadeculpa,abandonavaaescuridãoantesdohorárioestipulado,osdiasde folgaeramgastosemmesasdeapostaecasasdepenhores.Maisdeduasdécadasantes,ospaisdelehaviamtrabalhadonoMioloetentadocomprarasemiliberdadedofilhocomtodososaltinacumuladosdassuasservidões.Contudo,nenhumdosdoisfoialémdatentativa…

Aeliangrunhiucomaslembrançasqueinvadiramdevezasuamenteemumfluxocontínuoebarulhento,comogrãossendodespejadosemumsilo.Denovo,lembrou-sedopai,inerte,sendoarrastado pelo lustroso chão preto da Arena de Obsidiana, que ocultava a cor proibidaderramada. A despedida seguinte, uma última tentativa de garantir sua liberdade, seguida de

outra notícia de morte. Com a melhor das intenções, os pais de Aelian apostaram tudo econdenaram um garoto de seis anos a começar mais cedo as obrigações que tinha com asoberana.Eaquelemeninojamaisimaginariaoquantoasapostasfariampartedesuavidadaliemdiante.

Sentiuumacoceiranonariz,bemnatatuagem.CriançasquepagavamaDívidaFamiliarerammarcadasnorostocomumriscoqueiadeorelhaaorelha,paraquepudessemseridentificadaspelos soldados do Unificado commais facilidade e não fossem confundidas commolequesdesgarradoseenxotadosdoslocaisdetrabalho.Aeliannãolevouamãoaorosto,poissabiaqueaquiloeramaisumtruquedamentequede fatouma irritaçãonapele—a tatuagemestava láhaviaquaseduasdécadas,enãoseriaagoraqueinflamaria.Eleseocupouemmedirosaltoatéuma das sacadas do Poleiro, dessa vez procurando controlar a velocidade da queda. Ospensamentosquetinhaminundadosuamenteevaporaramcomoafumaçapretadaschaminésdasforjas.Aurgênciadechegaraosótãofaloumaisalto.

UmbandodeabutrespairavaacimadaestruturadoPoleiro,agorabempróximo.Enquantoespantavaospombosdocaminhoduranteasuapassagemdestrambelhada,Aelianesquadrinhavaoarprocurandoumpardeasas familiarnomeiodoplanaragourentodoscarniceiros.Enãodemorouaidentificá-lo.

Umborrãodardejoucontraumdosinfelizes,queinterrompeuseucírculoparacairemumaespiraldemorte.Aquelaavenãoestavanemumpoucointeressadaemplanaremsintoniacomosabutres.BicofinoeramenorqueamaioriadosfalcõeseporissomesmosetornaraamascotedeAelian—elenãoatendiaàsexpectativasdeumbom falcão-mensageiro.Mirradoe rebelde,nuncavoavadiretoparaospostosondeeracondicionadoapousaresemprevoltavacomumrato na boca. Em mais de uma ocasião, nublada pelas névoas do tempo, o criador antigoameaçousacrificarobichoporelesermuitodependentedecuidados,eopequenoAelian,comosemblante impassíveleascostelasmarcandoapelegraçasà fomeconstante,prontificou-seafazer o serviço. Levou o animal para longe dos olhos do homem e logo estava de volta,silencioso,quieto.

Oanimalfoiencontradopoucashorasdepois,debaixodocatrenaceladeAelian,localizadoemrazãodeestardalhaçoquefaziaportersidocolocadonumagaiolaimprovisadaenoescuro,aindaporcima.Ofalcoeiroseenfureceu.Apóslevarumsermãofurioso,Aelianconfessouquenãoqueriamatarobicho.Elejáhaviaperdidoospaisenãoqueriaperdermaisninguém.Ovelhofalcoeiro,comoqualqueroutroservodeUntherak,nãoeramuitochegadoasentimentalismos.OpoucoqueaspessoassepermitiamsentiralierareservadoparaosfamiliareseentesqueridosnosCamposExteriores—issosehouvessealguémdoladodeláosesperandonoDiadeLouvor.Porém,elesedeucontadequeopequenoAelianestavanoPoleiroparapagaradívidadospaismortos e que já havia sofrido o suficiente nos últimos tempos, a ponto de ter soterrado ainfânciadeformadefinitiva.Àsuamaneirarude,elesepreocupavacomobem-estardomenino.

—Essaspragascomemqualquercoisa,ésódeixaressebichosoltoqueelesevira—disseo

primeirofalcoeironaquelediadistante,dandoascostasaAelianetrancandoapesadaportademadeiraquelevavaaotopodoPoleiro.—Esealgumguardaquisertirá-lodevocê,deixe.Nãosoframaisdoquepodeaguentar.

Mesmo após tantos anos, Aelian lembrava-se bem daquelas palavras. Às vezes esquecia osnomesdaspessoas, jáquetantosservos iamevinham,numeterno fluxodemorteedestinosincertos.Porém,nãoseesqueceradofalcoeiroquelheensinouboapartedoofício:Gunnar.FoielequemsugeriuonomeBicofino.OvelhodesapareceusemmaisnemmenosquandoAeliantinhacercadequinzeanos,oquefezogarotoassumirocomandodoPoleiroporumtempo,atéencontraremalguémmaiscapacitado—umcargoqueninguémqueria,poisolugarcheiravaamerda emofo, ficava no topo de uma escadaria interminável e, para piorar, envolvia aves derapinabemassustadoras.

—Foco,seuidiota!—gritouAelianparasimesmo,tomandodistânciaparaoúltimosalto.Passoupor uma chaminé, atravessando a cortinade fumaça.Dali, ele sabia que eramvinte

passosatéofimdotelhado.Acambalhotaemplenoarnãotinhanadadeornamental,apesardadestrezadofalcoeiro,que

pousoucomosdoispés juntosnabeiradadeumadasmuitassacadasdoPoleiro.Osgiros,ossaltosmortais e os rolamentos tinham a função de absorver o impacto da aterrissagem nosmembros inferiores. Era uma técnica própria, que Aelian descobrira cedo e que depois foiaperfeiçoando em corrimões e patamares de escadarias enquanto ninguém o observava ouquando fugia dos servosmais velhos que tentavamprendê-lo dentro de barris e baús apenasporque sabiam que o garotomorria demedo de ficar trancado em lugares apertados. Aelianprocuravaprotegeros calcanhares, entãopreferia rolarpelo chãoe se ralar inteiroa correroriscodequebraralgumossodospés.

Olhouparacimaeestendeuobraçodireito.BicofinodeuumavoltacompletanoPoleiro,sempredescendo,efechouasgarrasnafaixadecouroqueprotegiaopulsodorapaz,olhandoparaelecomumaacusadorapenanegrasaindodaboca.

—Euaquidesesperadoparasubiressacoisa,evocêaícomendo,suagalinhamimada!—Aelianriumesmoemmeioàurgência,colocandoaavenoombroecomeçandoaescaladaatéotopodoPoleiro,deondeconseguiriavoltarparaosótãodeondenuncadeveriatersaído.—Comoeuqueriaternascidofalcão!

Algunsminutosdepois,jánoaltodoedifício,umacarcomidaescadaretrátiloaguardavanaentradadosótão.Assimquecolocouospésnopiso,foiatingidoderaspãonacabeçaporalgoquepareciaumgrande carretel de cordade sisal.Bicofino grasnou e vooupara a viga acima,deixandoumaplumanegrapairandoabaixodesi.

—Seumolequeirresponsável!—gritouumhomemcorpulentocujobraçodireitoterminavalogo após o cotovelo. Ele avançou com passos pesados pelo piso coberto de excremento defalcãoatéumarchoteapagadonaparedemaispróxima,doqualpingavaóleo.Osujeitocuspiaconformegritava,eosperdigotosseprendiamemsuabarbadesgrenhada.—Estáescurecendo,a

contagemjávaicomeçarevocênemacendeuastochasdesteandar!Etambémnãoseparouascorrespondênciasdatarde!

— Seu humor parece o chão deste lugar, Kivan— disse Aelian, se recompondo do susto esoltandoocabelo,jáquenãoiriamaisprecisarsearriscarsaltandodeumprédioparaooutro.—Eu estava recolhendo os bichos, coisa que você nunca faz. Fica tranquilo. Vou separar ascorrespondênciasagora,numinstante.

—Recolhendooseubicho,nocaso!Todososoutrosjávoltaram!—gritouKivan,apontandopara os falcões devidamente encapuzados ao redor. Aelian revirou os olhos e começou a semovimentar mais rápido. O homem continuou ralhando: — Precisava dar uma de diabrete-alpinistanotelhadocomotempotãoapertado?

Enquantograsnavacomoumfalcãovelhoeranzinza,Kivanfaziacontorcionismoparariscaraspederneiras comumbraçomais curtoqueooutro.Ele foramutiladohaviapouco tempo,entãoaindanãotinhaadestrezadaquelesqueseadaptamaumadeficiênciaaolongodeumavidainteira.

—Kivan,vocêestámedandodordecabeça.Deixaeuajudarcomofogo…—Eprecisavasubirnotelhadopararecolherosbichos?Precisavaficarmaisdeduashoras lá

emcima?—Elecontinuouagritarcomorapazefezummovimentobruscodispensandoajuda.—Euseidesuadificuldadecomlugaresfechados,masvocêsabequeéproibido!SeaquelebostadoHarundescobrir,vocêvaiparamaisumasessãodetortura!Evaiserparaaevisceraçãoembrasa,AelianOruz!Seeunãofossecastigadojunto,estariapoucomelixando.

Aeliantomouapederneiradamãodohomemcomumbotetãosuavequeelenemtevetempode protestar. Kivan fora transferido para o Poleiro depois de um acidente nos moinhos doFlancoLeste.Oprimeirofalcoeiroanterior—osextoousétimoqueassumiraocargodepoisdeGunnar(Aelianjátinhaperdidoaconta)—foralevadoparaasmasmorrasapósdescobriremqueosujeitotraficavacarvão.Maisumavez,Aelianhaviaficadopoucosdiasnocomandoatéqueencontrassemumsubstituto—oquegeravaumapiadarecorrenteentreosoutrosservos,dequeocargoeraamaldiçoadopelomau-olhadodoeternoassistente.

O rapaz gostou de passar alguns dias sem precisar se sujeitar ao grosso dos afazeres deassistente,quesempreenvolvialimparmerdamaisquequalqueroutracoisa.Noentanto,Kivanchegouquerendocolocarordemnolugar,quejáeraumabagunçamesmoantesdanovagestãode emergência de Aelian. Ele não aceitava muito bem certas questões, como a perda de ummembroouofatodeseusubalternoodesafiaracadapequenaordem.Porincrívelquepareça,noentanto,AelianentendiaKivanesecompadeciadele.Éclaroque,comseujeitomandão,ochefeo irritava como poucos. Porém, bastava olhar para o rosto do homem que sua impaciênciaarrefecia.Asemelhançaentreosdoisestavanafinalinhahorizontalquecruzavaonariz.

KivanestavanoMiolofazianomínimocinquentaanos.Nãotinhacomoficarcomraivadohomem,quejáhavia,inclusive,ultrapassadoaexpectativadevidadeumservo—comexceçãodos poucos gigantes que sobravam e dos anões, que eram, por natureza,mais longevos,mas

talvezvivessemaindamaissetivessemcondiçõesmelhores.—Eunãoprecisodasuaajuda!—resmungouKivan.Mesmoassim,Aelianacendeuoarchote,queardeucomumaluzbranca.Otomnaturaldas

chamas precisava ser evitado, e o velho costume em Untherak era de que todo fogo acesocontivesse lascas demagnetita, enxofre ou outrominério que inibisse a cor proibida. AelianpassouoarchoteparaKivan,paraqueohomemousasseparaacenderosoutros.

—Nãotemproblemaaceitarajuda.Seumdiaeuescorregardotelhadoeficaràbeiradamorte,aceitoumamãozinha—provocouojovem,sorrindo,edeuumtapinhanoombrodeKivan.—Tratedemanteraquesobrou.

—EuvenderiaamãoquesobrounosescambosdosCamposExteriorespelachancededeixarvocê cair daqui de cima — retrucou Kivan, com uma resfolegada que denunciava um risoreprimido.

—Vocêinteirojánãovalenada,imaginasóumpedaço!—respondeuooutro,verificandooscapuzesdecouronosfalcõesempoleiradosejogandoospergaminhoseasencomendasdeixadasnos cestos logo abaixo deles para uma grande bolsa de lona. Pulou Bicofino, que não tinhaencomendaenãoprecisavadocapuz.Aavetinhasehabituadoaficarnoprédioduranteanoiteeanãoficarnervosocomaclausura,atéporquesabiaqueAelianiasoltá-lo,àsescondidas,paraumacaçadanoturnaouumvooaoluar.Exatamenteporessemotivo,Aeliandisfarçoueabriuotrinco de umadas saídas dos pássaros queKivanhavia acabadode fechar.—Pode deixar queterminodedistribuirascorrespondênciasnosdutos.Váparasuacela.

—Olha sóquemestámedandoordens agora…A contagem jávai começar,Aelian—disseKivan, agora menos irritado e mais preocupado. O tropel de botinas alguns andares abaixoindicavaqueempoucotempoascelasseriamfechadas.—Euajudoasepararasencomendas,equalquercoisaexplicoparaoHarunque…

—Vai logo,Kivan— interrompeuo outro, comumapiscadela tranquilizadora.—Douumjeitodechegarantesdacontagem.

Ohomemmaisvelhoassentiuemsilêncioeabriuaportademadeiramaciçaque levavaaoandar de baixo, onde muitos já se acotovelavam para chegar às celas. Então, ele se foi,misturando-se às cabeças sujas de fuligem e roupas empapadas de suor, um cheiro que faziaAelianpreferirodedejetosdefalcão.

Enquantoouviaoestardalhaçodasportasdascelaschegaratéosótão,Aelianparouemfrenteaos dutos de entrega que ficavamao lado da escadaria. Eram calhas embutidas na parede quecuspiriam o conteúdo depositado no lugar certo. Ele só precisava separá-los pelo código decores.Ospergaminhospretoscomtintadouradaeramregistrosdos feitosdasoberanaesuasordens diretas — os mesmos que eram lidos em voz alta nas ruas do Miolo para manter apopulação informada. Já os pergaminhos comuns, com tinta preta, eram os documentos, osóbitos e as ordens de punição provenientes de subalternos e dos Autoridades. Pacotes quechegavamdosCamposExterioresdestinadosaosservosprecisavamantesserexaminadospelos

monitores de triagem, que tinhamum salão destinado a essa atividade no segundo andar doPoleiro. Em geral, eram pequenos amuletos; muito raramente, ração extra. Os monitorescostumavamdesviarosalimentosparasimesmos,semomenorpudor.Todomundosabiaqueisso acontecia e evitava reclamar, já que objeções e queixas deveriam ser feitas aos própriosmonitores, e eles apenas respondiam, com ironia, que encaminhariam essas críticas para osAutoridades.

AhabilidadedelereraconsideradaumbenefícioexclusivodosaltoscírculosdeUntherak.OsencapuzadosdecrépitosdaCentípededominavamaescrita,eescribaspreenchiamrolosemaisrolosdepergaminho.OsmonitoreseAutoridadestambémpodiamler.Comograndepartedapopulaçãonãoeraalfabetizada,sabendoapenasgrafaropróprionome,todaacorrespondênciaseguiaumsistemadeseloscoloridosdesenvolvidonaTorreLestepeloskaorshs.Assim,acordacerautilizadaparalacraropacoteoupergaminhoindicavaolugarparaoqualsedestinava.ComonomedoindivíduoestampadoporAutoridades,aencomendachegavaaodestinocertosemproblemas. A leitura e a escrita não eram bem-vistas pela soberana desde os primórdios deUntherak,masparecequeatéelasabiaqueotráfegodeinformaçõesficavamaisfácilquandoosservosconseguiamreconheceropróprionome.

Aelian sabia ler bemmais que isso. Anos de trabalho automático e solitário no Poleiro ohaviamlevadomuitoalémdoqueUnapermitiaqueosservossoubessememrelaçãoàleituraeoajudaramadesenvolvermaishabilidadesdoqueaquelasqueaservidãopoderialheproporcionar—outras práticas ilegais que se somavamà grande lista de delitos dele, junto como jogo dedados, as escapadas da cela durante a madrugada e as mentiras habituais contadas para ossuperiores.

Deformadiscreta,enquantodespachavaosconteúdos,liaosnomesaoladodosselos.Muitosnãosignificavamnadaparaele,jáquearotatividadedeservosnosandaresinferioreseragrande—justamenteporquemorrernumabrigaounumacidenteeraalgobemcomumnoMiolo.Aindaassim,váriosdosquemorriamalieramconhecidosdeAelian.

PergaminhopretoparaosAutoridades:paraoburaco.Pergaminhocomumparaaguardadotérreo:buraco.UmembrulhofinoendereçadoparaJaenni:nesse,Aelianhesitou.

Dentrodabolsade lona restavamapenas trêspacotesa seremdespachados.O rapazolhouparaacaligrafiatrêmuladoembrulho.Deondeeleconheciaaquelenome?Nãoeraummonitornemumdostrabalhadoresbraçais…

Agritariadiminuíaláembaixo,enquantoseouviaotropeldebotassubindoaescadariaquelevavaàscelas.Pareciaquetinhamaisgentequeonormalsubindoparafazeracontagem…Poisbem,eramcentoevintedegraus,ejádeviamtersubidometadedeles.Ogrupoeralideradoporumanão,cujaspernascurtasatrasavamquemvinhalogoatrás—soldadosquenãodeviamseranões.Aindahaviacercademeiominutoatéogrupoirromperpelaportaaoladodesuacela…

Pernas curtas. O pensamento funcionou como um gatilho para o que Aelian buscava namente.

Jaenni fora um sinfo. Apesar do talento natural da raça para fazer música com flautas einstrumentos de corda, eles serviam no Poleiro como limpadores de chaminés e de outroslugaresdifíceisdeseremalcançadosporhumanos(altosdemais)eanões,que,comseuscorposparrudos,entalariamemdutosdecorrespondênciaeencanamentosdedejetos.Jaenniforaumsinfo,pois falecerasemanasantes,quandoumdosdutoscedeu.Aelian,quesuavafriosódeseimaginarnumasituaçãoclaustrofóbicacomoaquela, lembrava-sedonomedosujeitoporqueHarunomandaraatéosótãoparadesentupirumacalhaeocoitadoficoupenduradodoladodeforapormaisdemeiahora,semsegurançaalguma,enquantorealizavaoserviço.Quandovoltouparadentro,umtanto trêmulo,Aelian lheofereceuáguaparaqueseacalmasse.Sinfosviviamapenas doze ou treze anos,mas o sistema de servidão deUntherak sabia como estragar suasbrevesvidastãobemquantoadeserescomperspectivasdeexistênciamaislongeva.

Mesmoumandaracima,AelianconseguiaouviravoztrovejantedeHarungritandoparaquetodos soubessemque ele estava chegando— e aquilo com certeza não tinha nada a ver combondade.ServiaapenasparareforçarasuapatentedeAutoridade.Anõesamavamfortalecerasuaimagemperanteosoutros,oquefaziamuitosentidoconsiderandoashabilidadesdaraça:erameternosescultores,inclusivedaprópriareputação.

Aeliannãochegariaatempo.Osservosjádeviamestarposicionadosnascelas.Sentiu-seumverdadeiroidiota,correndoesearriscandoparachegarnahoracertae,nofim,atrasando-seporacabarperdidoempensamentos.

Apalpouopacote.Eraalgofino,achatado…edestinadoaumservofalecido.NãoconheceraJaennitãobemquantogostaria,massabiaque,fosseláoquetivessequeserentregueaosinfo,terminarianosbolsosdosmonitores.

Deslizouopacoteparadentrodascalçaslargas.Asdemaiscorrespondênciasforamatiradasnosburacoscertos,eorapazcorreuparaaescadariacomtodoofôlegoquelherestava.

Harunjáestavalá,ladeadopordoisÚnicosmaceiros,gingandonaspernascurtaseolhandoparaoaposentovaziodeAeliancomarfurioso.Seapelenegradoanãocontrastandocomsuabarbabrancaemaranhadaerasímbolodeausteridadeerespeitoentreosservosdaqueleandar,aatmosferanascelaspareceuficaraindamaisgeladaapóseledarpassagemaumafigurademaiorpatente.

ATenenteSureyya.Eradiadeauditoria,noqualelairiaaveriguarotrabalhodosAutoridades.ATenenteeraalta

como todamulher kaorsh,mas aMáculanegra cobria o corpo esguio e a armadurade peçasleves. O chicote de ponta tripla na cintura dela era perfeito para lacerar a carne de qualquerespécie.Nomomento,estavaenrolado,masnuncapermanecianaqueleestadopormuitotempo.Oelmoespinhentodeixavaa imaginaçãodosservosadivinharseseucabeloeracurtoàmodamilitar ou se sequer havia cabelona cabeçada kaorsh.Os olhos completamentenegros, sempupilas e inundados de Mácula, miravam o fim do corredor, como se as celas ao redor nãoexistissem.Oscrâniosdepássarosemseusombros,adornosassustadoresquedemarcavamasua

posição comoTenente deUna, pareciamvigiar seu entorno.Por que perder tempo virando opescoço para intimidar os outros se órbitas vazias de pássaros podem fazer isso por você o tempotodo?,pensouAelian,apressandoopassosemolharumasegundavezparaSureyyaouHarun.Elejá havia sido flagrado fora da cela, então resolveu lidar com um problema de cada vez e sehumilhar em desculpas quando já estivesse onde deveria. Entrou na cela e puxou a grade decorrer, sentindo o coração querendo abrir o peito a golpes e fugir dali antes que o pioracontecesse.

De repente, um golpe demartelo próximo a seus olhos arrancou faíscas da barra de ferro.HarunenfiouamãoporentreasbarrasepuxouAelianparabaixopelagoladacamisaencharcadadesuor,paraqueosolhosdeambosficassemnamesmaaltura.Oanãoeraforte,assimcomoocheiroqueexalava.

—Contagem,AelianOruz!Contagemdecelas!Vocêconheceomalditoprocedimento!Mãosao ladodo corpo, trêspassos atrásdas grades.Estardentrodoalojamentoquandoa

inspeçãochegar.Háquantotempoelefaziaaquilo?HáquantotempoviaafuçairadadeHarunetinhaquefingirsermaisidiotadoqueeranafrentedoanão?

— Eume atrasei. Tínhamosmuitas encomendas e entregas hoje — disse Aelian, com umacalmasimulada,desviandoosolhosparanovoshomensarmadosqueentravamnoandarparaacompanharainspeção.Sureyyacontinuavaolhandoparaafrente,opescoçoimóvelealheiaàgritariadeHarun.Contudo,elahaviaparadodeandar.Talvezaatençãodakaorshnãoestivessetãolongeassim.—Peçodesculpa,AutoridadeHarun.

—“Eumeatrasei”?—Harunficouexasperado,comumrisodeescárnioquesecontrapunhaàsuavozgrossaeraivosa.ElepuxouAelianparaasbarrasmaisumavez.—Vocêestáaquidesdeque era um rato, sabemuito bemque dispõe do dia inteiro para separar a correspondência ealimentaraquelessacosdepenasecarrapatos,emevemcomessepapofurado?

Comumacaretadedor,AelianviuqueSureyyatinhadadoalgunspassosadiante,afastando-sedaceladele.Osupercíliodorapazlatejava:comapuxadadoanão,elehaviabatidoorostonabarradeferro.Adorlheinjetaraumtipodeteimosiaestúpidaquepareciavirdomesmolugarqueoabasteciadecoragemparapulardeumatorreaoutra.Alémdisso,nãoeraaprimeiravezqueeraagredidoporumÚnicoouumAutoridade—haviamuitaraivareprimidacontraaquelesatosostensivosetruculentos.Então,faloubaixo,paraquesomenteHarunoescutasse,jáqueaTenente com certeza não estaria interessada naquela burocracia de um Autoridade com umservoqualquer:

—Naquelaépocaeujádeviaserumratomaiorquevocê.Aelianesperououtropuxãoesepreparouparao impacto.Comfrequênciasearrependiade

dizer as coisas por impulso, achava uma bobagem o sem-número de brigas (emortes) entrehomenseanõesquecomeçavamcomcomentáriossobreestaturaouvirilidade.Harun,porém,pareceuabaladoportersidodesafiadonafrentedaTenenteelargouoservoporummomento,enfiandoosbraçosroliçosnacelaeerguendoomarteloparatentaratingirAelian—quetomara

umadistânciaseguradasbarras.Orapazpensouqueoresultadosatisfatóriodesuapetulânciavaleriaatélevaralgumaschibatadas.

—Vocêseachaesperto,refugo—murmurouoanão,olhandoparaascostaseretasdeSureyyamaisàfrentenocorredor.—Masescolheriamelhorsuaspalavrassenãotivesselíngua.

Aelian cerrou os lábios. Olhou para a gama de ferramentas que pendiam dos bolsos e docinturãodeHarun:cinzéis,estacas,martelos.Elelevavaatéumapicaretapresaàscostas.MesmosendoumAutoridadecomcertosprivilégios,oanãoera,comotodoservo,sobrecarregadodefunções, e também fazia a manutenção de estátuas. Aelian tinha consciência de que searrependeriapor responder,masprovocaroanãoparecia terse tornadoalgo incontrolável—emborafosseumaatitudeidiota.

—Vaiserdifícilarrancarminhalínguacomummartelo.—Euusariaosdentes,senecessário!—sibilouoanão,vertendoódionaspalavras.—Seusaessadesculpaparabeijarunsrefugos,jádigoquenãovaifuncionarcomigo.Aprincípio,Harunnãoentendeuaresposta,mas,depoisdealgunssegundos,pareceuenfim

visualizaracena.Entrearaivaeoarrependimentopelapéssimaescolhadepalavras,grunhiuelevantouomartelooutravez.Umavoz fria interrompeua ação— e tambéma respiraçãodetodos.

—AutoridadeHarun, sua contagemagora envolve um longo diálogo com cada umdessesmiseráveis?Não tenho tempoaperder—disseaTenente, aindadeixandoos crâniosdasavesencarandoascelas.

Aelianergueuassobrancelhas,surpresocomopróprioêxito.Tiverasorte,massemdúvidahaveriaumrevide.Oanãorelaxouosbraçose,emvezdefitaroservoinsubordinado,olhouparabaixo,paraochãodeblocosdepedra,maisexatamenteparaumpontopróximoaospésdocatre.

Umpontomuitoespecífico.—Vocêescondecoisasdemaisportrásdessesemblantedejogadordedados,AelianOruz.Orapazesperavaestarfazendoumaexpressãoimpassíveldeblefe.Haruncontinuouolhando

para o piso da cela e, de lá, para a janela. O anão parecia estar sussurrando consigo mesmoenquantoosolhosdançavamentreosdoispontos.Eracadavezmaisdifícilforjarserenidade.

—Rogoporsuaclemência,Tenente—disseHarun,demaneirarespeitosa,enquantodavaascostas à cela e brandia omartelo. Eradifícil afirmar sehavia um sorrisodedesdém sob todaaquelabarbabranca,masAelianteveessaperturbadora impressão.—Nãovamosnosdemorarmais.Posiçãodecontagem,vermes!Vamos!Trêspassosatrásdasbarras!

A contagemseguiu comoem todososdias, o que significavaquepelomenosumapessoagritoudeagoniaeimploroupelaprópriavidaemalgummomento.EnquantoHaruneSureyyaseguiampelasoutrascelasealgunshomensarmadosmontavamguardaaoladodaporta,Aeliannãoconseguiadeixardesentirumainquietaçãoenormeeaimpressãodequealgofugiradeseucontrolenosúltimosminutos.

Sureyya voltou por onde havia entrado, guardando uma faca longa e de lâmina preta na

bainhadesuacotademalhadamesmacor.Eraprovávelqueaqueleinstrumentotivessesidooresponsável pelo grito queAelian escutara.Harun a alcançou e esperouque ela atravessasse aporta,dandopassagemparaasuperior.

Noentanto,akaorshnãosemoveu.—AutoridadeHarun,hápoucopresencieiumcasodeinsubordinaçãoinaceitável—disseela,

osdedoslongosdançandopelabainhadafacaeacabeçavoltadaparaaporta,comoseninguémalimerecesseseuolhardireto.—Espereiquetomassealgumaatitudecorretiva,masvejoquefuitola.Fizoprimeirofalcoeiropagarcomavidapelocomportamentodeseusubalterno,masnãocreio que seja suficiente. Acho que os exemplos para os refugos devem ser sempre amplos.Didáticos.

AquilofezasentranhasdeAeliangelarem.Kivan?Ogritoeosbalbuciosdeclemênciatinhamsidodele?

Harunabaixouacabeça,envergonhado.SabiaqueelaestavasereferindoàanimosidadecomAeliannoiníciodacontagem.

—Asprovidênciasserãotomadas,TenenteSureyya.—Sim,serão.—Ocantodosseuslábiosseelevou,easuamãodededoslongosdesceuatéo

chicoteenroladonacintura.Elaabriuatiradecouroqueomantinhaali,deixandoapontasedesenrolar pelo chão. A kaorsh o pegou e, ainda sem olhar para ninguém em específico,estendeu-oparaHarun.—Agoramesmo.

O anão hesitou em segurar a arma de sua superior. Em outras condições, aquilo seriaconsideradouminsulto.Porém,aameaçaimplícitanavozcontroladadaTenenteerataxativaquantoaoqueeledeveriafazernaquelemomento.

UmsoldadoabriuaceladeAelian,quedeuumpassoparatrás,nadefensiva.Outroguardaoagarrou pelo antebraço com rispidez, puxando-o para fora. Aelian poderia ter desferido umacotoveladanonarizdaquelepaspalho,masnadaquefizessenomomentoosalvariadapunição.Além do quê, ele não conseguia mais reagir… Kivan estavamorto por causa de suas atitudes.Aquiloamorteciaomundoaoseuredor.

—Tireacamisaesegure-senasbarras—ordenouHarun.Ojovemobedeceu,sentindoopingentebalançandocontraopeitoaosedespir:seutotemnas

mesasdeapostas,umdadodeoitoladosfeitodequartzoverde.Gostavadepensarnelecomoumamuleto…Contudo,a inexplicávelsortequetiverano inícioda inspeçãosevoltaracontraelemuitoantesdoesperado.Umasuperstiçãosemgraçaquetalvezestivessetrabalhandoafavordeseualgoz.Aindaassim,Aeliannotouqueoanãotambémnãopareciacontentecomaquilo.

Ouviuaspontasdochicote,batizadascomMácula,searrastandonochãodepedraenquantooAutoridadetomavadistância.Ouviutambémumburburinhosedestacandoacimadasvozesressabiadasnasoutrascelasconformeumcorpoeracarregadopelocorredor.Mesmodecostaspodia adivinhar o que estava acontecendo, ouvindo os comentários. E aquilo destroçava seuespíritomuitomaisquequalquergolpequereceberianacarne.

Oar assoviou e estalou pouco antes de o frio lacerante daMácula cravar-se nas costas deAelian.Tão logoas trêsgarrasentraram,saíram.Nãohouvetempoparaosangueescorrerouparaapeleserarrancada,poisestaeraaironiamacabradasarmasbatizadas:ferir,açoitar,lacerar,massemderramaracorproibida—poisaMáculacortavaecauterizava,preenchendonamesmahoraoferimentocomseuresíduo.Porissosoldadosrasosusavamapenasarmasdecontusão,eoportedearmascortantesbanhadasnolíquidonegroerareservadoaosAutoridadeseaosÚnicos.As cicatrizes que Aelian havia colecionado ao longo de duas décadas seriam encobertas poroutras,maioresemaisescuras, linhasnegrasque formariamumaespéciedemapa riscadonassuascostas.

Nãoqueriagritar,masnãohaviaopção.Conseguiusesegurarapenasnaprimeirachibatada.Depois,suavozpreencheuascelasdoPoleirocomdoreagonia,fazendoosfalcõesseagitaremnoandardecima.Umdeles, emparticular,grasnavacomraiva,pressentindooqueaconteciacomoúnicohumanoquelheeraimportanteemtodaUntherak.

Aofimdedezgolpes,umAelianforadesifoitrancafiadodevoltaemsuacela.—Parabéns!Agora,vocêéonovoprimeirofalcoeiro,AelianOruz—dissealguémantesde

sair,comrequintesdecrueldadeacadasílaba.Aquelatambémeraumaformadelaceraçãoquenãoderramavasangue.Aportasefechou,ainspeçãofoioficialmenteterminada,eaúnicavozquecontinuoufalando

poraliestavadentrodacabeçadeAelian,muitodistante,repetindoumaúnicafrase:Nãosoframaisdoquepodeaguentar.

2

—Vocêtemmãoslongasededosperfeitos,minhaquerida—disseohomem,tomandoamãodakaorsh e sorrindo para a dona do par de olhos verdes que o havia procurado em segredo.OMiolonãoera lugarpara romantismo,eaquelanãoeraumaexceção.—Poderia juntarmuitoourocomaminhaajuda.

HerkZatoifferaumAutoridade,mastambémseconsideravaumempreendedor—sendoqueessa segundaocupaçãonãoerade conhecimentodoPalácio.Acostumadoapercorrer as ruasestreitasdocentrodeUntherakcomtotalliberdade,seucargodesupervisornoTeargarantiaqueasescapadasdeleemhoráriodetrabalhoesuasconversassuspeitasembecoscheiosdelixonãofossemquestionadas.Eraumhumanopálido,consequênciadosanospassadosàsombradaestátuada soberana, inclusive durante osDias de Louvor, quando, em teoria, podia visitar osCamposExterioreseaVilaA,ovilarejoondeficavamascasasdosAutoridades,juntoaoPortãoSul.

Pormaisqueexistissemprostíbulosnasáreassemilivres,foradoMiolo,Herkhaviainventadoessemodelode“negócio”emquepoderialucrarduranteosdiasdetrabalho,entreumaescapadae outra: agendavamulheres e homens, de qualquer raça— ainda que preferisse trabalhar comkaorshsdoTear,poiseraasua jurisdição—,usandoopoderquetinhacomoAutoridadeparainventar algumademanda que permitisse o afastamento temporário dos servos das linhas deproduçãoououtrasatividades.Depois,erasóaguardarolucrocairemseucolo.Ouronasmãoscertas,propinaparaosolhosquedeveriamfazervista-grossaetodossaíamganhando:inclusivequemoprocuravaembuscadeprazerrápido,semprecisaresperarpeloDiadeLouvoresemseafastardemaisdesuaáreadetrabalho.EranessesistemaqueHerktiravaservosdoprocessodefeituradevestimentaseuniformesparaquesatisfizessemseusclientes.

OTearficavanoFlancoLestedoMiolo,ondecarroçassacolejavamotempotodopelasruasabarrotadas, indoevindocom lãecomo tecidosagrado,a seda,abençoadapeladeusae feitacommaestriaapenaspeloskaorshs.Tantoqueasedaproduzidaporeles(ouelas,jáqueamaioriadosquetrabalhavamnastecelagensdoPalácioeramulher)valianomínimotrêsvezesmaisqueasedacomum.HerkZatoifftinhaumaopiniãosobreasmãosdasmulheresdaquelaraçaenãohesitouemcompartilhá-lacomRaaziTanNurten.Eraumatecelãeficiente,caladaefocadanoserviço,quehaviaprocuradoosupervisoràsescondidas,dizendoqueprecisavademaisdinheiroqueacotasemanalpoderialheproporcionar.

—Oquefoi,querida?—perguntouele,vendoqueRaazinãoesboçavaemoção.Asmulheresqueoprocuravamcostumavamsederretercomosseuselogioscheiosdepromessasderiqueza.Emgeral,Herkdiziaqueopreçoparaentrarnonegócioeraumaespéciede“teste”comele,mas

aquelaalinãopareciamuito inclinadaa isso.—VocênãoveioatéaquiemseuDiadeLouvordizendoquequeriaouroextra?Poisbem,aquiestamos!Então,nãomeolheassim…

Raazisuspirou.Herklargouasmãosdelaepassoualínguanosdentesdafrente.Eraumhábitoqueohomemhaviaadquiridoaolongodosanos,antesdecomeçaranegociar—noinício,ummovimento inconsciente,mas agora calculado.Gostava de pensar que aquilo o deixavamaissedutor.Porém,nãoconseguiunenhumaconfirmaçãovisualporpartedakaorshdesemblanteneutro.Oqueelaquer?,eleseperguntou,notandoqueocabelodelabeiravaotomproibido.UmpoucomenosdouradoeumpoucomaisacobreadoeRaaziseriaobrigadaarasparacabeçaeassobrancelhas.

—Certo,certo—disseele,voltandoaotom“profissional”.—Parecequevocêquerirdiretoaoassunto.Osvalores:quatrobakir por serviço.Euagendoos clientese fico comopagamentointegraldostrêsprimeiros…Éaregra,vocêdeveterouvidofalar.Nosseguintes,vocêficacomdoisbakiremedáosoutrosdois.Umabagatela,certo?Pornomáximovinteminutinhosde“trabalho”.—Eleergueuassobrancelhas,enfatizandooquehaviaacabadodedizer.—Quantovocêganhaporsemana,escalaseisporum, trezehoraspordia?Trêsgumus, nãoé?Penseemquantopodeganharseeuagendarparavocêumclientepordia!Dáseisaltinpormês!Esevocêainda conseguir passar carvão para eles, também recebe uma comissão… Tenho um sujeitodentrodaBigornaquemearranjaosmelhorespedaços.

Raazibalançoua cabeça,devagar.Osolhosdela esquadrinharamoambiente.Obecoaindaestava deserto, e Herk falava eloquentemente, como se o lixo entulhado junto às paredesexternasdoTearfosseumaplateia.Osupervisorestavasesentindoemterritórioseguro.

—Ei,garota!—Ohomemestalouosdedosnafrentedorostodakaorsh.—Estámeouvindo?Digaalgumacoisa!

Raazinãosabiacomocomeçar.Ponderouporalguns instantes,atéqueumadassuasmãoslongasdededosperfeitosse fechounopescoçodohumano,empurrando-ocontraaparedeefazendoosujeitoengasgar.

Raazicrispouoslábiosconformepressionavaatraqueiadele.Herkolhavaparacima,divididoentreasurpresaeopavor.Askaorshseramnaturalmentemaisaltasqueosmachosdesuaraça,eHerk não era considerado sequer mediano para um refugo — ela não gostava do termopreconceituoso que alguns kaorshs e anões usavam para os humanos, mas aquele homemmereciaotítulo.

O Autoridade não entendia a transformação que a kaorsh tinha sofrido. Como, de umsegundoparaooutro,elapassaradeumapossível fontederendaparaumaameaçareal?Herkgostaria que amulher percebesse que sempre haveria aqueles dispostos a gastar todas as suaseconomiasparaterummomentodeprazer,fossecomálcooloucomocalordealguém.

—Herk,vocêsabecomonós,kaorshs,chamamosonossocorpo?Ohomemsufocava,arranhandoopulsodeRaazi,tentandosesoltar.—Sabe?—insistiuela,ignorandoomovimentodébildosujeito.Herkcomeçouaadquirirum

exótico tom violeta que Raazi achava um tanto difícil de alcançar, mesmo com as suashabilidades naturais de camuflagem. Admirou o degenerado por mais um tempo até que ovioletasetornouumtomarroxeado.Ohomemmeneouacabeça.Semdúvidaeraumnão.—Eujá imaginava.Bem,chamamosamoradadanossaessênciadecanväs. Éonde fazemosanossaarte,Herk.Meucorposeenfeitaparacelebraraminhaalma,nãoparaodeleitealheio.Ocanväséumpaláciodecoradoparaaaguardadavisitadeumconvidadoquenãoficarápormuitotempo.Porisso,queremosqueanossaessênciasesintabemduranteasuaestadia.Estáacompanhandoomeuraciocínio,Herk?Abraosolhos,estoufalandocomvocê!

—Por…argh…favor…—Nãoentendi.Porfavoroquê?—Eu…argh…morrer…—Ora, todos nós vamosmorrer um dia, se é isso que o preocupa.Mas não era disso que

estávamosfalando.Euestavaexplicandoporquenossocanväsétãosagradonaculturakaorsh.Éumrelatoextenso,muitoextenso.

O peito de Herk subiu com um ruído assombroso, a garganta buscando ar numa últimatentativaantesdeocérebroapagar.UmodorfortechegouàsnarinasdeRaazi,que,comumaolhadelapesarosa,percebeuqueohomemestavaesvaziandoabexiganascalças.Pensouqueseriamelhorlargá-loantesquealgomaissaísse,oquedeixariaaconversaumtantoquantoinviável.

—Vocêmedecepciona.—Elaoergueuaindamaisantesdesoltá-lo,paraqueaquedanãofossenadasuave.OAutoridadeescancarouaboca,tentandosorveromáximodearpossível,fazendouma série de ruídos guturais. Raazi olhava para o homem caído com uma expressão muitopróximaaotédio.—Comoquercontrolarocorpodosoutrossenãoconseguenemdomaressaporcariaquetementreaspernas?

—Eu…estavatentandoajudarvocê…suamaluca…Akaorshcruzouosbraços,deuumpassolentoparaafrenteeparoucomopédireitobem

sobre o tornozelo do homem. Largou o peso do corpo em cima dele e recebeu um grito deagoniacomoresposta.

—Quieto.OsoutrosAutoridadesnãopodemsaberquevocêestáaqui,tentandolucrarcomotrabalhodivinodosservosdeUntherak.QuerganharumbanhodeMácula,Herk?

—Bemquedizemquevocês,kaorshs,sãotodasumasputastraiçoeiras…Raazisaiudecimadotornozelodeleeseagachouàsuafrente.Porprecaução,tirouaespada

curtadabainhadeHerk,casoohomemresolvessefazeralgomaisdrásticoquesemijartodo.—Herk,Herk…Não sei há quanto tempo você faz isso, essaatividade paralela. Se alguma

kaorshjáchegouavenderoprópriocanväsparaosseusintentos,nãopossojulgá-las.Nãosoudonadocorpodelas.Ninguémé.Aindaassim,estamosnummundoemquetodostêmdireitosobrenossocanväs,menosnósmesmas.Numlugarassim,écomumqueodesesperonosobrigueatomarmedidasdrásticas,quemuitasvezesnãocondizemcomosnossoscostumes.Masmedigaumacoisa,Herk…

Casualmente,RaaziapontouaespadadoAutoridadeparaorostodele.Ecompletou:—Eulhepareçodesesperada?

MercadoAbertodosCamposExteriores,BordaNorteDuassemanasantes—Nossa,masporquequertantodinheiro?VaipedirparaaVenomamataralguém?—perguntouBaeli,arregaçandoasmangasdovestidoetentandocolocarumgrandesacodefarinhanotopodapilha,maspercebendo,noúltimoinstante,quenãoiriaconseguir.—Urgh…Dáumaajudinhaaqui?

Raaziselevantoudobarrilemqueestavasentada,natendavizinhaàdeBaeli,quepertenciaaumhomemquepenhoravaobjetosvariados,defundasechaleirasarastelosecestosdevime.Asbarracas se amontoavamdeambosos ladosda rua,numescarcéu ininterrupto típicodeumafeiralivre.Ocheirodecravoedeoutrasespeciariassemisturavaaoaromadasfrutasedosuordequemestavatrabalhandodebaixodosol.Asrodasdascarroçasquepassavamnaestradadeterraainda úmida da chuva da noite anterior formavamduas canaletas na lama enegrecida.Quemestavaapéacabava sujandoabarradasvestes comoque respingavado chão, algo inevitávelnaquelamultidão.Apesardemuitaspessoastransitaremnosdoissentidos,poucospareciamdefatoparardiantedoscomerciantesparacompraralgo.

—Hum...Talvez—disseRaazi,queerabemmaisaltaqueaamiga,umaanãatarracadacomotodasasoutras.

A amiga fizera uma brincadeira, mas acertara qual era o intuito dela em juntar dinheiro:contratarVenoma.Nãoquepensasseque amulher daria cabodo alvoprincipal,mas seria degrandeajudanoplanoqueelaeYanishaestavamcolocandoemandamento.

Raaziergueuosacodefarinhacomosefosseumtravesseiroeocolocounotopodapilhaqueaanãtinhainiciado.

— Por toda essa grana, acho que eu mesma sujaria minhas mãos — resmungou Baeli,observandoasmãosliteralmentesujasporcausadoserviçobraçal.

—Querdizerentãoquepossocontarcomseusserviçose seusilêncio?—perguntouRaazicalmamente,enquantopegavaoutrosacosemqueBaelivoltasseapedirajuda.Mesmoquandoestava brincando, a kaorsh não sorria. Ela era ótima emmanter-se impassível e confundir apercepçãodosoutros.—PrefirodardinheiroparaumaconhecidaameenvolveremproblemascomosAutoridades.

— Ah, claro. Porque aí seria eu quem teria meu belo rosto estampado nesses cartazes dePROCURA-SEportodooMercado.

BaelisereferiadenovoaVenoma,umaassassinadealuguelderaçaindefinidaque,graçasaosAutoridadesdeUntherak,haviasetornadooassuntomaiscomentadodomomento—aindaque

fossecrimefalarsobreela.Numamanobraqueconseguiupioraraindamaisasituação,osÚnicoshaviam abandonado a discrição costumeira com que caçavam os desordeiros e espalharamcartazes por todos osCamposExteriores, oferecendo cerca de trezentosaltin pela cabeça damercenária—oquesóaumentouapopularidadedacriminosa.Amisteriosamulhernuncaeraencontrada, mas seus “feitos” ficavam cada vez mais conhecidos por todo o Unificado.Silenciosa, furtiva,donadeumamira irrepreensível, abatiaseusalvoscomumabesta,as setasembebidasnumvenenosemantídotoconhecido—osmortosficavamcomveiasestouradaseenegrecidas por todo o corpo. Quem a contratava queria, geralmente, vingar-se de algumahumilhaçãoouresolverumadesavençaocorridanasmesasdeapostaouduranteosseisdiasdetrabalhonoMiolo—oquesignificavaqueamaioriadasvítimasdeVenomaeramviciadosemdados,Autoridadesouambos.

—Poderíamosnostornarassassinasdealugueltambém.SeformostãoboasemnosescondercomoVenomaé…

— Não, não coloca o saco aí em cima! Eu não alcanço, estou longe de ter essas pernascompridonas!—interrompeuBaeli,pegandoofardodosbraçosdeRaazieiniciandoumanovacolunadesacosaoladodaprimeira.Elalevantouodedoparadizeralgosobreoassuntoanterior,masesperouumgrupode sinfos terminardeexaminaralgumaservasaromáticasnobalcãoeseguircaminhosemcomprarnada,comodecostume.—Olha,devezemquandoeugostariadesabermatar,sabe?Detercoragem.Desdequecompreiaminhasemiliberdadeeabriessatenda,agrananobolsoémaisescassaquefloresnoMiolo.Pelomenosnosmeustemposnasforjaseutinhaostrêsgumusgarantidosnofimdasemana…

—Nãomedigaqueumaex-servamarcadaestácomsaudadedetrabalharnaBigorna.—Quê?PelaFúriaquenão!—exclamouaanã,cruzandoosbraçoscomumacaretaofendida.

—SóachoquenãopossocondenarquemnuncatentoucomprarasemiliberdadeepreferevivernoMioloparasempre.Éumconfortodolorosotertãopoucodinheiro,massaberquenãovaiprecisarsepreocuparcomissoparasobreviver.Ésóencararumdiadepoisdooutroenãoquerernadaparasimesmoalémdeumpoucodecomida,queésempregarantida.—Elafezumapausaeacrescentou:—Tudobem,comidaruimésempregarantida.

—Maldição!Vocêestavaquasesoandoromântica—disseRaazi,fingindopesar.Baelideuumsoconacinturadakaorsh,quemalsentiuogolpe.—Otária.Bom,vocêquertantodinheiroparacomprarasuasemiliberdadeedeixararotina

no Tear para trás, não é? Ainda falta muito para alcançar o valor, mas imagino que tenhapoupadoalgumacoisa…

—Hum...É.Minhasemiliberdade.Raaziseesquivoudeoutrasperguntaseseaproximoudeumcestodemaçãsverdes,pensativa.

NãosabiaatéquepontodetalhariaascoisasparaBaeli.Quantomenoselasoubesse,melhorseriadepoisquetudosedesenrolasse.NãocontariaarazãodeseuplanonemmesmoparaVenomaouparaalgumoutroassassinodealuguel,queentrariaapenasparaeliminaralgunsalvos-chaveno

caminhoatéoalvoprincipal.Akaorshpassouapontadosdedosporumdosfrutoselevouamãoaorosto,deixandoum

riscoesverdeadonabochecha.Elanuncahaviamimetizadoaquelacoremseucanväs, eagorapoderiaacessá-laquandodesejasse.

—Achoqueesseverdecairiabemnosseusolhos,Baeli.—É,masnãosoukaorshenemseiporquetripasmeenfeitaria.Paratrabalharnafeira?Para

me exibir no sermão dos Arautos? Amaioria dos devotos fica de olhos fechados por horas,ninguémveriaaminhamaquiagem!Enemtentemudardeassunto,queeuconheçovocê!

Raazipensounopógrudentoqueaspessoaspassavamnorostoquandoprecisavamescondermanchas, erupções cutâneas ou cortes. Olhou para os lados e viu aomenos três pessoas quepareciam ter rebocado a cara com algo de um tom totalmente diferente de seu tomde pele.Aquela espécie de maquiagem grosseira era uma forma de esconder qualquer indício da corproibidaquebrotassenumapartevisíveldocorpo, jáqueninguémgostariadeserinterpeladoporumAutoridade,queoobrigariaaesconderamancha.Averdade,porém,éque,pormaisquefossecomum,muitasvezeseraassustadorcruzarcomalgunsrostosmaisbrancosquecadáveres.

— Posso tentar fazer algo com essa coloração. Se me der algumas maçãs verdes, testo afórmulaamanhãnaminhacela.Possodiluirnopóqueaspessoaspassamnorosto,tentardeixá-lomaisfino,daroutrousoparaele.Sefuncionar,vocêvendeaquiemsuabarracaemedáumapartedolucro.

Baelicruzouosbraçoseassentiu.Eladefatoprecisavadealgumasnovidadesparaafeiralivre.Fazia três meses que só vendia maçãs verdes, farinha, cevada e alguns poucos temperos.Cosméticosseriamumanovidade.

—Combinado.O que tenho a perder além de algumas frutas?Mas não acho que qualquerpessoa emUntherak tenha afeição a pintar o rosto compropósitos estéticos, tirando vocês,kaorshs.Eissonãovainosdarmaisquealgunstrocados,nadaqueseaproximedemilaltin.Anãoserquequeiracomprarasuasemiliberdadedaquiaoitentaanos.

—Qualquerquantiaébem-vindaenquantopensoemoutraformadereunirodinheiromaisrápido.

Baelideudeombros.— Com os Festivais da Morte, pelo menos os mais desesperados tinham um atalho para

conseguirasemiliberdade,né?Umatalhobemfilhodaputa, jáqueeununcasoubedealguémque tenhaganhado.A inscriçãocustavaquaseumquartodovalordasemiliberdade…mas,nofim,aspessoasacabavampagandoparamorrer.

RaazisabiaqueopovodeUntheraknãotinhamemóriaejamaisselembrariadedetalhes—comoofatodenuncaterhavidoumvencedornaArena.SeosFestivaisvoltassem,eracapazdequefizessemfilaparaasinscrições.

Akaorshsegurouarespiraçãoecontrolouofluxodosvasossanguíneosdorostoparaevitarqualquerenrubescimentoquedenunciassealgumaemoção.

—PorquevocêestáfalandodosvelhosFestivais?—Ah,tenhoumaamiganoPoço,aLahina.Lembra-sedela?—Alta,cabelocastanho.Umapintanabochechaesquerda.—Elamesma.Bom,imaginoque,naprofissãodela,Lahinaatendaatodotipodesujeitoatrás

deumpoucodediversão.TemumAutoridadequegostadeficarseexibindoparaasgarotaseacabousoltandoqueUnaconvocouumnovoFestivaldaMorte…Fazoquê,vinteanosdesdeoúltimo? Acho que as masmorras e o Anel de Celas devem estar muito cheios, e o GeneralProghonquerliberarespaço…

Aanãcontinuoufalando.Raazianuía,tentandomostrarqueestavaprestandoatenção,masacabeça da mulher já estava longe dali, no Poço. E ainda mais longe, num futuro próximo,sobrevivendonaArenadeObsidiana…

Recebendo os louros da vitória das mãos de Una, pensou, recalculando os planos naqueleinstante.Bempróximaaela.ComUnaaomeualcance.

Secorresse,talvezhouvessetempoantesdofimdeseuDiadeLouvor.

Originalmente,onomecompletodolugareraPoçodosDesejos,pormotivosóbvios.Porém,obordelacabouexpandindoosnegóciosparaotráficodecarvãoedearmasbatizadas,passandoaser conhecido só pelo primeironome, ainda que a parte dosdesejos fosse a forçamotriz quemantinhaoestabelecimentofuncionando.

Raazi pisou no salão. Moedas pararam de tilintar nas mesas, dados foram esquecidos poralguns instantesemuitosparesdeolhosacompanharamseupassofirmeatéobalcão.Mesmocomo lençoemvoltado rosto,elaerauma figura imponente,quedestoavademaisdoclimadecrépitodoambiente.Aquelessujeitosestavam,defato,nofundodopoço.

Raaziolhouparaobalcão,ondeumhomemcorpulentoesfregavaumcopocomoquepareciaumpanodechão.ElafoidiretoatéeleeperguntouarespeitodeLahina.Perplexo,obalconistademorou alguns segundos até apontar para a escada que levava aomezanino. A kaorsh já iaseguircaminho,semagradecer,masfoiinterceptadaporumhomemdebarbalongabifurcadaecapamarromsobreosombros.Magro,cheirandoafumoerum,elebrincavacomumafacaentreosdedos.

—Nãome importaoquevai fazercomumadasnossasgarotas,compridona,mastemquepagar,comotodomundo.

Raaziatétentouolharnosolhosdohomem,maselesemanteveconcentradonafaca,comumsorrisodequemsabiaquefugirdeolharesincisivoseraalgoirritante.Elatirouquatrobakirdabolsadealgodãocruquelevavaamarradaaocintoeosestendeuaosujeitoquebloqueavaocaminho,forçando-oaparardebrincarcomafaca.

Depropósito,Raazideixouumadaspequenaspeçastriangularescairnochão.Orufiãoriu,

aindaevitandoocontatovisual.—Eunãovoupegaressamoeda.Vouliberarapassagem,e,quandovocêdescer—elevoltoua

girarafacaentreosdedos—,podepegaroquedeixoucair“poracidente”emeentregar.Divirta-se.

Elesepôsdelado,liberandoaescada.Raazisubiusemolharparatrás,masconscientedequetodooPoçotinhaosolhoscoladosemsuascostas.

OsdadosvoltaramarolaruminstanteapósaportadosaposentosdeLahinabater.

—Vocêékaorsh.—Evocêébemobservadora—retrucouRaazi,queaindanemhaviatiradoo lenço.Lahina

estavanoextremoopostodoaposento,abraçandoasimesma,manchadapelasombradacopadaárvorequeficavanafrentedasuajanela.—Oquemedenunciou?Aaltura?

Lahinainclinouacabeçadelado,enessahorafoipossívelenxergarapintadenascençanafacedela.Amulherpuxouatrançaparaafrente,fazendootecidotranslúcidoquevestiafarfalhardeformasuave.

—Altaeutambémsou,enãotenhoumpingodesanguekaorshnaminhaascendência,possogarantir.Nãoseiexplicar.Talvezporqueapenumbradomeuquartopareçagostardevocê.SeucaminharlembraodaTenenteSureyya…

—Maseunãosoumaculada.—Eunãodissequeera.Avozdacortesãsoavacomoumafacaquenãoeraafiadahaviamuitotempo,masqueainda

podia perfurar. Se fosse preciso, Lahina sem dúvida saberia se defender. Ela tinha ombros deguerreira,aindaqueocorposinuosoeaspernasnãoparecessemhabituadosàdançaqueeraoavançareorecuarduranteacançãodasespadas.

—Gostariadeconversarcomvocêporuminstante,Lahina—explicouRaazi,enfim.—Aspessoasnãovêmaquiparaconversar.— Ainda assim, tenho certeza de que você escuta uma porção de coisas. É isso o que vim

buscar,nãosexo.—Quepena—disseLahina,apertandoos lábiosemumfalsopesar.—Poisesse foioúnico

talentoqueadeusa,nasuainfinitabondade,meconcedeu.Raazipensouemtirarolençodorosto,paraganharumpoucomaisdaconfiançadamulher.

Nãopareciaqueiriaobtercolaboraçãotãofacilmente.Porém,aomesmotempo,achavaqueumpoucodeanonimatopoderiaajudá-ladepois.

—OuvidizerqueUnaestápreparandoumFestivaldaMorte.— É mesmo? — A cortesã deu de ombros, dissimulada. Uma camamartelava a parede do

quartovizinho.—SempreacheiosFestivaisdeumaselvageriasemtamanho.Nemmelembrodo

último, era muito nova. Ainda não trabalhava no Miolo e não sonhava conseguir minhasemiliberdadetãodepressa.

—Lahina,eu já seiqueosAutoridadesestãoplanejandoumnovotorneio.Eprecisomuitosaberonomedealguémqueestejaenvolvido—disseRaazi,dandoumpassoàfrente,e,comosesóentãopercebessearispidezdeseupedido,acrescentou:—Porfavor.

—Olha,nãoseicomovocêsabedissooucomochegouatémim.Àsvezeseubeboedoucomalínguanosdentes,masnãoquerosaberdeencrencacomosAutoridadesouqualquercoisadoMiolo,entendeu?Jápasseimuitotempodaminhavidasofrendodentrodeumacelaparacorreroriscodevoltarparalá!

—Lahina,eu…—Devezemquando,oshomensfalamdormindo,ouentãoqueremsegabar,etemvezesque

euapenasficosabendo.Nãotenhonadaavercomisso.Sigiloediscriçãosãoexigênciasdaminhaocupação.

—Nãoqueroenvolvervocêemencrenca.Sóprecisodeumnome,eprometoresolver issobemlongedaqui…

Lahinasuspirou,revirouosolhosexpressivosedeixouocorpodesabarnacama.Apoiou-senoscotoveloseergueuacabeça.

—QualéoseuinteressenoFestival?Nãoqueeuvácontarnada.Estoucuriosa.— Quero vencer o Festival para conseguir a minha semiliberdade… – Em seguida, Raazi

completou, sentindo-se um pouco repetitiva naquelas explicações: — Paramim e para outrapessoa.

Amulherpareceuumpoucoperplexaefezummuxoxo.— Você está falando com alguém que comprou a semiliberdade sem precisar arriscar o

pescoçonaArena.—Aquecusto,Lahina?Decertaforma,vocênãocontinuasendoumaescravaaquidentro?—Minhaqueridakaorsh,éporissoquesechamasemiliberdade.Aliberdadetotalnãoexiste!

Vocêgastauma fortunaparavirparao ladode fora,mas, seUnaquiser convocá-laparaumanovaguerracontraopecadoeaingratidão,vocêvaiatender.—Amulherseajeitounocolchão,ficando deitada sobre apenas um dos cotovelos e fazendo, com o braço livre, um gesto queabrangiaoquarto.—Nomeucaso,meucantinhoébemmaischeirosoqueumacelanaBigorna,naEstrebaria,noTear,noPoleiro…

—Masaindaéumacela—disseRaazi,econseguiunãosoartaxativa.ElasentiaempatiaporLahina. A mulher era uma sobrevivente. Ela só tinha encontrado uma maneira diferente depermanecerviva.

—Untherakinteiraéumacela,meubem—disseacortesã.—Etalvezsejamelhorassim.VaisaberoqueexisteàsoltanospântanosenaDegradação?Asbarrasdascelaseasmuralhasnosprendemenosprotegem.Éopreçodascoisas.Etudotemumpreço.

Raazi suspirou. Lahina sabia o que estava fazendo, e a kaorsh precisaria encontrar outra

maneiradealcançarseuobjetivoquenãodependessedavontadedacortesã.—Agradeço,dequalquerforma—disse,mas,emvezdedarmeia-voltaesairporondehavia

entrado, contornou a cama e caminhou até a janela, colocando uma perna para fora eprocurandoalgumapoioparaospés.Lahinasentou-seeretanocolchão.

—Ei,ei!Vaisairporaímesmo?—Vocês têmum rufiãobem imbecil lá embaixo.Oque fica brincando coma faca—disse

Raazi,metadedocorpo jápara foradoquarto.—Nãoqueroencrencaa estahoradanoite.Etambémnãoqueromachucá-lo.

Amulhersemanteveimpassívelporuminstante,eentãoriu.Eraumrisoincontido,nemumpouco dissimulado. Raazi ficou sem entender, e fez um barulho que parecia o de um cavaloespantandomoscasdasnarinas.Nãoestavaacostumadaasorrir.

Agarrouogalhomaispróximodaárvoreemfrenteesecertificoudequeconseguiriachegaratéochãoemsegurançaporali.Então,voltou-seumaúltimavezparaLahina.

—Bom,tenhaumaboanoi…—HerkZatoiff.Raazinãoentendeu.—Perdão?—OnomedoAutoridadequemecontousobreoFestivaldaMorte.HerkZatoiff.Trabalha

nosandaressubterrâneosdoTear,controlaumagranderededetráficodecarvãoemonopolizaaprostituição.EraelequemmeagenciavanoMioloatéeuconseguiragranaparaasemiliberdade.Depois,elemeindicouparaodonodoPoço,masdizterumapredileçãopormimesemprevemaqui…Olha,semeperguntarem,negoquesoubedissopormim.

HerkZatoiff.EnoTear, justamenteondeRaazitrabalhava.Eramuitacoincidência,masaomenoseraumatarefaquenãoamandariaparaooutroladodeUntherak.AkaorsholhouparaLahina,agoracontraaluzemanadapelalua.

Comoespecialistaemcoloraçõesequestõesdapele,enxergoucamadaporcamadadopóqueacortesãusavanorosto—omesmoqueaspessoasusavamparaesconderacorproibida.Eracapaz de dizer quantas pinceladas haviam sido passadas, com que tipo de cerdas. Notou amaquiagemqueamulherusavaparaalongaroscílios,asombraescuranosolhos…

Emaisalém.O olho esquerdo. Havia pequenas marcas de expressão, debaixo das camadas de pó e da

sombra…etambémumhematomarecente.—Foielequemfezissocomvocê?Lahina se fez de desentendida, mas na mesma hora levou uma das mãos ao machucado

disfarçado,entregando-se.—Oufoioutrocliente?—insistiuRaazi.—Malditasejaasuaraçaeosseustruques.Vocêsenxergamatravésdascoisastambém?—Éinevitável.Desculpe.

—Hum.Bom,achoquenãoprecisoentraremdetalhes.Edaíse foioHerkque fez isso?—Lahinaajeitouagoladasvestesdisplicentemente.—Todoselessãoiguais.Eissoépouco,pertodoqueeutinhaqueaguentar.

Raazi baixou o olhar. Lembrou por que fora até lá.Murmurou o nome aprendido naquelanoiteefoiembora.

ArredoresdoTearDuassemanasapósavisitaaoPoçoHerkestavadevolta.Elemancavaelevavaumsacodetraposremendadonascostas.Raazihaviaconseguido uma promessa, ouro para duas inscrições e talvez uma jura de ódio eterno. Ohomem nunca imaginaria que aquela “reunião de negócios” acabaria com um prejuízo tãograndedeumavezsó.

—EsperoquemorranaArena—ganiuele,aopassarosacoparaRaazi.Seriaótimo,pensouela.Ninguémimaginariaqueseiscentosaltinpoderiamsercarregadosdemaneiratãodescuidada.

Akaorsholhouparaosladosafimdesecertificardequeeletinhavoltadosozinho.Nofimdobeco,umapatrulhadegnollsrosnavaeignoravaaruasemsaída.Raazicolouocorponaparede,bemsobreumcartazdesbotadocomo rostodeVenomaestampado, e começouaconferirovalor.

—TambémesperomorrernaArena,Herk—respondeuela,comcalma.—Porquesealgumacoisaacontecercomigoantes,vocêvaiperdertantoquantoeu.Deixeialgumaspessoasavisadassobreseuesquemadecarvãoeprostituição.Sóporgarantia.Aliás,vocêaindaprecisahonraroacordoeapromessa:eueaoutrapessoainscritadevemoslutarjuntas.

—Nãoacreditoqueestásearriscandoparamorreremduplanafrentedeumaplateia—disseele,cuspindoparaolado.Estavacomoorgulhoeocofreabalados,alémdeumcalcanharferidoque seria um lembrete eficaz da sua perda durante as semanas seguintes. — Estou sendoextorquidopelafuturadefuntamaisburradeUntherak!Nãodáparaacreditar!

Raaziinterrompeuotilintardemoedas.—Entãofinalmentetemosalgoemcomum,Herk.Estoufazendoissoporquenãoacreditoem

algo.Eissotambémmerevoltamuito.Elafechouosaco.Orostodohomemcongelounumaexpressãodenítidaincompreensão.—Adiferençaéqueasuarevoltaéporquevocênãoaceitaperder—explicouela.—Eeunão

aceitomaisquetantaspessoaspercam.Fazendoaindamenos sentidodoqueantes edeixandoHerkplantado sobreopé saudável,

Raazi jogouosacodedinheironascostas,surpresaemnotarcomoamoedadeUntherakeraleve,mesmoemgrandequantidade.

TinhamaisumavisitaafazerantesdepassarorestodoDiadeLouvorcomquemmaislheinteressava.

Eradifícilveralgumaestruturadearquiteturaanã,humanaoukaorshnumdosúltimosredutosdeUntherakemqueamaioriadoshabitanteseracompostaporsinfos:oSegundoBosque.Noentanto,aquelacasadeaparênciafrágilcomtelhadodepalha,lajeejanelaseraumamisturadasestéticasdasquatroraças,aindaquenãofosseumacasanaárvoredesinfosimplesmenteporqueestavabemfirmenochão.

Raazinãoconseguiachamá-ladelar,umavezquesóiaparalánoDiadeLouvor—eeraumacasademasiadamentehumana,jáquekaorshsnãogostavamtantoassimdetelhados.Afachadaeraquasetodaencobertaporhera,oqueajudavaaevitarolharesmal-intencionados,mesmoqueaconstruçãoestivessetãosolitárianabordadoSegundoBosque,desprovidadeumavizinhançaoumesmodeumassentamentointer-racialformadoàspressas.

Akaorshouviuobarulhopeculiardafechadura,umcliquemetálicorápido,masque,paraela,significava“sejabem-vinda”.Trabalhavamuitashorasemuitosdiasparaterodireitodeescutaraquele ruído.Raazi tinhamais familiaridade comospoucosmetrosquadradosde sua celanoTear,masnãopodianegarqueansiavapeloaconchegodaquelasparedestãodistantesumasdasoutras,daquelesilêncioedadisposiçãodospoucosmóveisediversostecidosqueenfeitavamacasa.

Eavistadasjanelas…Bem,paracomeçar,elasnãoemolduravamumavistadostelhadosedastorresdoMiolo.SeRaaziconseguisseenxergarapenasumapoçadelamaaoespiarparaforajáseriaumavitória,pornãoterbarrasdeferroverticaisbloqueandopartedesuavisão.Contudo,dacozinha,elaenxergavaasárvoresdoSegundoBosque,amenosdecinquentametrosdali.Eeraporaquelajanelaque,vezououtra,osomfugazdeflautasealaúdesdossinfosescorregavamparadentroda casa, ligeiros, e terminavamantes que amente começasse a relaxar ou extrairprazerdasonoridade;afinal,amúsicaparaessesdoispropósitoseraestritamenteproibida.Osinstrumentos só deveriam ser tocados nas plantações ou durante o trabalho, para queinduzissemosColeoptauruseoutrosanimaisdetraçãoapuxaremosancinhosoucarregaremacarga,osfardos,alenhaouoquefossenecessário.Porém,instrumentosprecisavamserafinadosde vez em quando, e era com essa desculpa que os sinfos se arriscavam a extrair delessentimentosfurtivos.ERaazificavaagradecidaporconseguirroubaraquelesinstantesemseusdiasdefolga.UmamúsicaincompletanosCamposExterioreseramelhorquenenhumamúsicanosufocodoMiolo.

Ajaneladoladodoquarto,entretanto,emolduravaumavisãotenebrosa:aregiãoondehaviasidofeitoodesviodorioAbissal,arruinandooPrimeiroBosquedossinfos.Aquiloobrigaraospequeninos nascidos naquelas árvores que agora secavam aos poucos a se acomodarem no

Segundo Bosque, o que causou uma superpopulação de sinfos no local e o desequilíbrio doambiente.

O Primeiro Bosque havia se tornado uma pequena amostra da Degradação, como erachamadoodesertoqueseestendiaparaalémdosmurosdeUntherak.Asárvoresfrondosas,que,nopassado,tinhamsidoasincubadoras,osberçoseasmoradasdossinfos,tornaram-segrandesestacasressequidasirrompendodaterraárida.

Raazi gostavade terduasvistas tãodiferentesnamesmacasa.Aquilo fazia comque ela selembrassedadualidadedascoisas,decomo,dentrodaqueleUnificadoembrutecido,erapossívelencontraralgoquedessesignificadoparaa suaexistêncianomundo.E,naquele lugarqueelaodiava, a casa era um pequeno lugar para amar. Um último refúgio, um santuário parasentimentosconsideradosperdidosedesconexosaquemvivesseàsombradaestátuadeUna.Paraumkaorsh,ocanväseraoverdadeirotemploeaverdadeiramoradadaalma.Todavia,aindaqueraro,erapossívelencontrarasalvaçãoforadoprópriocorpo.

—Vocêchegoutarde,eamanhãdemanhãjávaiterqueestardevoltaaoTear—disseumavozque não soava nem um pouco aborrecida.Não era uma cobrança,mas uma observação comcertopesarcarinhoso.

Ela se aproximava pelo corredor, passos leves, segurando um candeeiro. O fogo da velamostravaseuscontornosemtraçosâmbar,eRaazisabiaqueaquelacornãovinhaapenasdaluzincidindonapeledeébanodaoutrakaorsh;Yanishadominavaatécnicadecamuflagemapontodeemularluzebrilho,eusavaseutomdepelenaturalcomotrampolimparaatingirosmatizesmaisdifíceisdealcançar.

— Tive que passar em outro lugar depois do meu “encontro” — disse Raazi, tirando umagarrafa de vinho de amora de dentro do saco de pano maltratado. Houve um tilintarmomentâneodepeçasdealtin,gumusebakir,quefezcomqueoutroassuntoentrasseempautanamesmahora:—Ah,sim.EstátudonosconformescomaArena.Entraremosjuntas.

Yanishaapoiouocandeeironamesaesorriu.Afastouumadastrançasqueinsistiaemcairnorosto e fezumgestoparaa garrafanasmãosdeRaazi, queparecia chamarmais a atençãodeYanishadoquetodoaqueledinheiro.

—Eessaéanossacomemoração?—Baelicontrabandeouparamim.Acheiqueseriajusto—falouRaazi, indoatéadespensae

trazendoduastaçasfoscasdelatão.Yanishaaacompanhoucomosolhos.—NinguémdeveriapassartantotemponoMiolonumDiadeLouvor.

Arolhadecortiçafoiarrancadacomumestampido,easduastaçaslogoficaramcheias.Elasolharamparaolíquidorubi.

—NinguémdeveriapassartempoalgumnoMiolo—retrucouYanisha,agorasimemtomderepreensão,aindaquecomumtoquecarinhoso.—Aquelelugarnemdeveriaexistir.

—Éverdade.—Raazisuspirou,seuolharseperdendoporummomentodentrodolíquido.—Assimcomoninguémdeveriaveroquevocêviu.

Amente deYanisha pareceu ser catapultada para o passado. Raazi, no entanto, não queriaperderaquele instanteemmeioamemóriassombrias,entãotratoudevoltaraopresente,que,mesmonãosendoanimador,aindaeraamelhoropção.

—Bom,masfoiútilfazerumnovoinimigonestediaquedeveriaserdedescanso.Yanishaconcordou,sorrindo.Otomâmbaremsuapeleondulouefoiminguando,conforme

elavoltavaàsuacornatural.—Exibida—disseRaazi,sorrindo,algoqueelafaziapoucolongedeYanisha.Ergueuataça,eaoutraimitouogesto.—Vocêtambémconseguiria,setentasse.—Étardedemaisparaaprenderalgonovo.Játenhomuitascoresdentrodemim.Easquenão

aprendi,euencontroemvocê.Asduasbrindaram.Osomdelatãocontralatãoerasurdo,nãotinhanadadecristalinocomo

obrindedetaçasdecristal.Porém,quantomaisarriscadooplano,maissefazianecessáriaumacomemoraçãosilenciosaediscreta—aindaqueousada,comumabebidadacorproibida.Nofimdascontas,umbrindeemtaçasdelatãonãoeratãoinapropriadoassim.Oqueimportavaeraaessência.

—ÀmortedeUna—disseRaazi.—Eàmortedetudooqueconhecemos—falouYanishaantesdebeberem.AqueleseriaumdosúltimosmomentosdepazparaRaazieYanisha,jáquesabiamqueofim

deUnaseria responsabilidadedelas—atéporqueasduas tinhamconsciênciadequeninguémtopariaumamissãocomoaquela,nemmesmoVenoma.

Asraraspausasentreumbeijoeoutronaquelanoiteseriamosúltimosmomentossilenciososqueteriamjuntas.EnosbraçosumadaoutraencontrariamseuúnicorefúgioemtodaUntherak.

3

Às vezes, a dor é tão intensa que é preciso passar por ela. Ultrapassá-la, de certa forma. Oskaorshs acreditavam que nada que a pessoa tenha sentido antes serve como comparação. Oespírito passa a ser uma espécie de espectador do sofrimento e é expulso do corpo, por nãoaguentarmaisumestadodevigíliaforçadoporferimentosoufraturas,atéqueadoranestesieasimesma.

Aeliannãoconseguiadiferenciarfebredepesadelos.Tambémnãoconcordavacomacrençados kaorshs sobre a ligação entre corpo e espírito nem tinha a habilidade daquela raça de secamuflar, extraindopigmentos deminérios e outros elementosnaturais emudando a cor daprópriapele.Arelaçãodoskaorshscomocanväseraalgoqueoshumanosjamaisconseguiriamcompreender,apesardasemelhançaanatômica.Porém,naquelanoite,deitadodebruços,orapazentendeuoquediziamarespeitodosofrimentoqueseanula.Eletinhamuitador,maspoucamenteepoucocorpoparaatenderatodaaenormedemanda.

Os lençóis estavam molhados de suor, como se Aelian tivesse derretido. O corpo queriasangrar—precisava,comoeranatural.Contudo,aarmabatizadalhehaviatiradoessedireito,eera comose algoquisesse escapardaprisãode carne eosso,masnãopudesse.O jovemhaviaatravessadoamadrugadaserevirandonocatre,gemendo,eporváriasvezesescutaraprotestosdealguémnascelaspedindosilêncio.EraprovávelquefosseumapessoanovanoPoleiro.SeráquejáteriamcolocadoumnovoservonaceladeKivan?

Entreosdelíriosdefebre,acontecimentosreaiseasincursõesdesuamenteempesadeloscadavez mais perturbadores, Aelian experimentou uma longa colcha de retalhos de lembrançasentrecortadas: pessoas que passavam na frente de sua cela, ou lhe lançando xingamentos, oudizendo,deformapesarosa,que“essenãoduraatéamanhã”;Kivan,ensanguentado,culpando-oporsuamorteesegurandooflagelodeSureyya,prontoparaavingança;umapessoaemsuacela,usandoummantoda cor proibida e tocando as feridas enegrecidasnas costasdele enquantodiziacoisasininteligíveis.

Aelian não sabia no que acreditar,mas, pormotivos óbvios, concluiu que o vislumbre deKivannãopodiaseroutracoisaalémdeumpesadelotípicodealguémcomaconsciênciapesada.Aideiadeumapessoausandoumacapadacorproibidadentrodesuacelasoavaigualmentetãoabsurda.Contudo,haviaalgodeestranhonaquelalembrança,jáquesódepensarnela,umalívioimediatoeinesperadopercorriaasbordasdassuasnovascicatrizesnegras.Pareciaquealguémhavia passado um unguento em seus ferimentos, o que era impossível. E justamente quandocomeçava a contestar aspróprias convicções,Aeliandecidiuque seria umaboa ideia abrir osolhos…

Então ele se ergueu com um único movimento, alerta, e soltou um grito sufocado,preocupadocomohorário.

—Merda!Suacelaestavaaberta,assimcomoasgradesdocorredor.Ruídosdamisériadiáriavinhamde

todososlugares.Osol,ajulgarpelamaneiraqueincidiaatravésdajanela,jáestavaaltonocéu.Nocauteado pela dor e pelo sono acumulado, o recém-nomeado primeiro falcoeiro haviapassadodohoráriodelevantaretentavaentenderporquenãoforaacordadocomoutrasessãodechicotadas.

—DiadeLouvor—murmurouele,deixando-sedesabardeladonocatreparalogoemseguidasearrepender,emvirtudedadorlancinante.HaviadesperdiçadohorasdoúnicodiaemquenãoprecisavaficarnoPoleiro…

Era difícil reunir ânimo ou forças para aproveitar a folga após todos os acontecimentos.Sentia como se estivesse desrespeitando a memória de Kivan. Ele tinha consciência de que,àquela hora, o corpo do homem já teria sido diluído na Mácula, mas gostaria de ter tido aoportunidadedesedespedirdele.Gostariadetê-lodefendido,detersidomortoemseulugar—Aeliannãosabiaseeramosresquíciosdafebrequemotivavamaquelespensamentos,masestavaplenamenteconvencidodequeasuamorteseriamais justaqueadeKivan.Virou-senacama,tentandoajeitarocorpoparaquenãoficassesobreumadasferidasmaculadas,esentiualgooincomodandonapernadacalça.

Eraaflautadosinfofalecido,queelesurrupiaradacorrespondêncianodiaanterior.Pegou-a,atentoaocorredor,paraqueninguémquepassassetivesseachancedevislumbraro

objeto.Aquilootiroudotorpordeculpaeocolocoudenovonomododesobrevivência,quejamais deveria ser desligado ali, noMiolo. Teria outros pesadelos para amargurar amorte deKivan. No entanto, naquele momento, era o presente do falecido Jaenni que deveria serlembrado.

Aelianseagachoucomdificuldadeaoladodacama.Colocouapalmadamãonumdosblocosdopisodepedra,umapeçadegranito igual àsoutras.Será que dá para perceber?, pensou ele,jurandoqueHaruntinhaencaradoaquelepontoespecíficonodiaanterior.OsdedosdeAeliancorrerampelacanaletaaoredordapedra,quesemexeunumcertoponto,nãoparecendomaistãofirmenolugar:aqueleeraseuesconderijoparaobjetosquepoderiamserconfiscadospelosAutoridadesoulhecausarproblemas.

Se Harun tem mesmo uma visão excepcional para detalhes e percebeu algo, talvez eu devesseencontraroutroesconderijo,pensou,tendoumaideiamelhorlogoemseguida.OupossovendertudonoMercadoeparardemearriscarcomessascoisastãoincriminadoras.

Aquela era a hora certa para se livrar de objetos e provas de delitos que com certeza lherenderiamoutraschibatadas—oualgoaindapior.AqueleeraseuDiadeLouvor,eele tinhaachancedeiratéosescambosnoMercadoAberto.

Tirouapedrasoltadolugareenfiouamãonoburaco,sentindoasferidasnegrasnascostas

tensionandoconformeosmúsculos se esticavamsobapele.Comumgemido, tateouo caboornamentadodeumpunhalkaorshqueeletambémconseguirainterceptar.Lâminavirgem,semMácula — a lei só permitia armas cortantes se fossem batizadas. Além disso, eram de usoexclusivodoaltoescalãomilitar.Porém,tentarimpedirqueaperiferiadeUntherakusassefacas,espadas e foices longe dos olhos dos Autoridades era amesma coisa que tentar impedir queventasseapósameia-noite.

Aelian pegou o punhal, os oito bakir e a meia dúzia de plumas que ele fazia questão deesconderjuntocomseustesourosroubados.Poiseramplumasdacorproibida.

Às vezes, penas daquela cor nasciam na cauda de Bicofino. Sempre uma por vez emuitoraramente, comoum fiodebarbabrancaque teimaemnascer sobreumamarcadenascença.Porém,umasimplesplumadetomcoloradoentreasoutrasmaisescurasseriaosuficienteparajustificar a execução de um falcão que já era considerado inapto por outrosmotivos. Aelianviviainvestigandoacaudadoanimal,quegrasnavairritadocomainsistenteinspeção.Contudo,quandohaviaumapenarebelde,BicofinosempreficavacalmoenquantoAelianaarrancava—algoanormal,poisoatogeralmenteenlouqueciaaave.

—Nuncavouentendervocê,sabia?—diziaAeliannaquelasocasiões,confuso,entãoguardavaapenanobolsoedepoisaescondiasobapedrasoltadacela.

Semprepensavaqueeraumagrande tolice colecionaraspenasdefeituosasde suamascote,masavidanoPoleiroerarepletademanias,víciosecostumesbizarros.

—Olhasóquemresolveudormiratémaistarde!—exclamouumavozatrásdeAelian,quenãopercebeuninguémseaproximandodoladodeforadacela.

Fingiuumatossedebilitada(oquenãoeradifícil,dadoseuestado)edobrou-sesobreositensincriminadores,escondendo-osnacalça,deixandoapenasasmoedasdefora.Aomenosaquilonãoeraalgoilegaldeserestocado.

Olhouparatráseviuumafiguraaltacomvestesescurasejustas.Umadesuasmãosrepousavanumaclavaquependiadocinto,reforçandoasuaposiçãodeAutoridade.Aoutraseguravaumamaçãverdepelametade.AqueleeraNiahkon,umkaorshquedevezemquandoacompanhavaHarunnasinspeçõesequecostumavafazerrondasnospavilhõesduranteatarde.Tinhaumafalarápidaeumalínguaferina,oqueeraumtantoincomumparaoskaorshs,emgeralsilenciososedistantes.OAutoridademexeunumdoscachosdocabelocomomindinho,levouamaçãàbocaparaumanovamordida,eumaondulaçãoacinzentadaatravessouseurostopálido—umtiquequeeletinhadevidoàhabilidadedecamuflagem.

—Suascostasestãofeias.FiqueisabendodoqueaconteceucomvocêecomovelhoKivan—disseele,comavozenroladaeumacareta.Elenãopareciamuitotristepelosacontecimentos,masestavasendoumpoucomaissimpáticoqueamédiaparaumAutoridade.Engoliuopedaçodemaçãfazendoumenormebarulho.—Penseiemacordarvocêduranteotoquematinal,masviqueestavaalucinando.ComosabiaquehojeeraseuLouvor,acheimelhordeixá-loempaz.

— O-obrigado — disse Aelian, surpreendendo-se ao ouvir a própria voz falhando sem

necessidadedefingimento.—Jáestoumelevantando.QuemabriuosótãodoPoleiro?Eu…Niahkoncuspiunochãoefezumgestodisplicentecomamãodamaçã,trocandoopesodo

corpodeumapernaparaaoutra.— Tem dois garotos lá cobrindo a sua folga. Eles trabalhavam num posto avançado de

correspondêncianoPalácio,sabemcomoéoprocedimentocomosfalcões.Amanhã,escolhaumdelesparaficarporaquiauxiliandovocê.

—Certo—murmurouAelian, temendopelotratamentoquedariamaBicofinoequerendoque Niahkon fosse embora logo. Aquela cordialidade era tão ameaçadora quanto otemperamento explosivo de Harun. Porém, daquela vez, o rapaz humano não bancaria odestemidocomqualqueragentedeUna;precisavareconhecerquenãoeraumbommomentoparablefeseapostas.—Então…vouindo.Querobeberumpouco,verseafogoessador.

—Claro.Fazbem.EnãoseesqueçadeapertarbastanteessesolhosnahoradelouvarUna.QueocadáverdeseuamigoKivansejapurificadonaMácula.

Aquiloeraprovocação.Aeliannão sabia comoeraa cerimôniadedissoluçãodeumcorpohumanonaMácula,maseradifícilimaginarKivancomo…lamanegra.Etudoporculpasua.

—Nãovouesquecer.Aelian se levantou, cabisbaixo,procurandoevitaroolhardokaorsh e sentindoosobjetos

proibidos escorregando pelas pernas da calça. Rezava em silêncio para que as faixas nas suascanelasestivessembemamarradasenãodeixassemosobjetoscaíremnochão.

O Autoridade ficou observando Aelian em silêncio, mastigando a maçã. Quando o rapazalcançouasescadas,eleochamoucomumassovio.

—Ei,primeirofalcoeiro.Suascalças!Aeliancongelou.Virou-sedevagar,prontoparasentirospregosdaclavadeNiahkonnomeio

dascostasaqualquermomento.Osobjetosarranhavamsuaspernas.Niahkonapertouosolhos,comcaradedesagrado,osolhosfixosabaixodacinturadoservo,

ocantodabocasujodepolpademaçã.—Estãolargasdemais.Deixamvocêmaismagrodoqueé.Qualquerdiadessesvaificarcomo

traseirodefora.Talvezprecisesealimentarmelhor,hein.Aelianassentiu,aliviado,masaindaassimquerendoamaldiçoarokaorshpordizerqualquer

coisasobrealimentaçãoenquantocomiaalgodeformatãodisplicente.—Fareiisso,Autoridade—respondeu,comumacenodecabeça.—Atémais,Oruz!— falouNiahkon, comaboca cheia eo rosto repletodeondulaçõesde

cores.—Emelhoras!

Adorcausadaporumaarmabatizadaerasingular,poiscontinuavasefazendopresentepordiassem retirar a integridade físicamínimanecessáriaparaqueo castigadocontinuasse comsuas

funções a serviço deUna.Umapunição que não prejudica a produtividade é o sonho de umsistemaquedependedeesforçoedemãodeobrabarata—e,casooservomerecesseumapenamaisdefinitiva,semprehaveriaobanhodeMácula.

Aeliansesentiacapazdeandar,aindaquecommovimentoscontidosetentandosuprimirascaretasdedor.FezseucaminhomargeandoorioAbissal,tendoporcompanhiaocheirofortedaságuasescuraseBicofino,quesejuntaraaodonoassimqueorapazbotouospésparaforadoPoleiro,semquefossenecessárioqualquerchamado.IriamatéapartesuldoMiolo,naestruturaconhecidacomoCofre,aoladodoCanil,parareceberostrêsgumusdepagamentopelaúltimasemana de trabalho. Com sorte, de lá pegariam carona em alguma diligência até oMercadoAbertodosCamposExteriores,naBordaNorte,ondeAelianpoderiavenderaflautaeaadagaeterminariaodia tãoentorpecidopeloálcoolqueesqueceriaporummomento todaadoreaculpaquelatejavamemseucorpoesuamente.

OCofreficavaaoladodoCanilpormotivosestratégicos.Afinal,quemfariaalgumaidioticeenvolvendoaapropriaçãodedinheiroalheioquandoosgnollsestavamali,rosnandonoprédioaolado?Oarvibravacomganidos,risosespasmódicoselatidos,eosservosqueaguardavamnafila para receber o pagamento o faziam com medo — além de terem que aguentar o fedorrepugnantequevinhadoCanil.MijodegnollfediatantoqueAelianàsvezesimaginavaseaquelanãoseriaumasubstânciamaisperigosaqueaMácula.

Porém, como sol jánomeiodo céu, o guichê gradeadodoCofre estava livre— todososservos em seu Dia de Louvor já haviam passado por lá o mais cedo possível para retirar ospagamentos. Era uma burrice não acordar cedo para aproveitar a folga. Aelian sabia disso, etambémsabiaquenãotiveraescolha.

— O que você quer? — perguntou o Autoridade no guichê, um homem bruto, moreno ecaolho, o hálito cheirando a rum. De fato, ele colocava uma rolha numa garrafa enquantoencaravaAeliancomimpaciência.

—Meupagamentosemanal—respondeu.—Poleiro,AelianOruz.—Sentiuumnónagargantaantesdecompletar:—Primeirofalcoeiro.

OAutoridadesorriucomtantoescárnioqueseuúnicoolhoquaserodopiou.Abriudenovoagarrafaderum,comose,naquelecasoespecífico,fosseaceitávelbeberemserviço.

— Aaaah, o novo primeiro falcoeiro. O Autoridade Harunme notificou! — Ele limpou osbeiços com as costas da mão e continuou: — Pois bem, veio tarde demais. Como vê, estouocupado.

Aelianrespiroufundo.Seucorpotododoeu.—Comtodoorespeito,Autoridade,mas,queeusaiba,opagamentopodeserretiradoatéo

pôrdosol.— É, é o que dizem os pergaminhos da legislação de Una — retrucou o caolho, com

indiferença.Apontouo gargaloda garrafaparao rostodo servodo ladode forado guichê eacrescentou:—Euseiler,aocontráriodevocê.

AvontadedeAelianeraprovarqueohomemestavaenganado,masumbomjogadordedadosnãopodiasairrevelandoassuasmaioresqualidadesnamesadeapostas.

—Certo.Então…?—Entãooquê?Porqueficoudormindoatétardeenãoveiocedo?Agoranãotenhogumuse

bakirdetrocado.Emesmoseporacasotivesse,nãopagariaagora,poisestouocupado!—disseele,balançandoagarrafinhaderum.

Aelianolhouparaoslados.Observouumafiladeanõescarregandotorasdemadeiraaalgunsmetrosdali,mastotalmentealheiosaoguichêdoCofre.Aquelajanelinhaproporcionavaapenasuma visão limitada a quem estava do lado de dentro, e, com umAutoridade caolho, a visãopoderiaserlimitadaatédemais…

—Ah,T-TenenteSureyya!—balbuciouAeliancomavoztrêmula,abaixandoacabeçanumamesuraexageradaemdireçãoaograndenadaaolado.

Quaseaomesmotempo,houveumbarulhodegarrafaseespatifandonochãoeumtilintardemoedas.

— Toma, toma seu dinheiro! — exclamou o caolho, alto demais, fingindo estar em plenaatividadeecheiodeboavontade.

Aelianconteveorisoerecolheuosseisbakirnamesmahora:omalditotinhatrocados,eoblefefuncionara.

—Obrigadoporcumprirseudever,Autoridade—disseelebaixinho,comumapiscadela,antesdedarascostasaoguichê.

O caolho só entendeu que fora ludibriado quando Aelian já estava a dez passos dali,assoviando para que Bicofino descesse do telhado do Canil até seu pulso. Os gnolls latiamensandecidosnasjaulas.

Vocênão temapreçoalgumàvida,Aelian,pensouconsigomesmo, lembrandoque,nanoiteanterior,haviapagadocaropelainsubordinação.Comumatristezaquesobrepunhaoêxitodeseublefe,lembrouqueoutrapessoatambémsofreraporisso.Vocênãotemapreçoalgumàvidadeninguém,Aelian,corrigiu-se,querendoirbebernosCamposExterioresomaisrápidopossível.

Conforme planejado, o jovem conseguiu um espaço na traseira de uma carroça vazia que sedirigiaaoMercadoAberto.Adiligênciaeraconduzidaporumanãoalcoolizado,queconversavacomasduasmulasmagrasàsuafrente—talvezaúltimageraçãodaquelesanimais,queacadadiasetornavammaisrarosemUntherak—comoseelasfossemumtaverneiro.

Setudodercerto,denoitevouestartãobêbadoquantoele,nobalcãodeumaespeluncaqualquer,pensouAelian, enquanto via o imponente Palácio ficando para trás e a carroça atravessava apassagemparaforadoMiolo,doladonordestedaestátua.

AvisãodoPalácioedaestátuadeUnafoiparcialmenteencobertapelamuralhadoMiolo.A

ArenadeObsidiana lançava sua sombra imponentenocaminhodacarroça.Aelian tinha seusproblemascomaArena.Elaoatraíaeorepeliaaomesmotempo—eleodiavaolocal,masaqueleeraoúnicopontodoUnificadoque,decertaforma,oconectavaaospais.OrapaznãotinhaumacasanosCamposExteriores.Nãotinhaparentesvivos.SeuspaisestavamlánoPalácio,diluídosemMácula, juntocomKivanetantosoutros.TalvezhouvessealgumapartedelesrecobrindoSureyya, ou talvez a Mácula erradicasse qualquer resquício de um humano morto,transformando-oapenasemmatéria-primaparaaCentípederealizarassuasexperiências.

AndaimesaltíssimosestavammontadosportodaaquelalateraldaArena,queeraumaespéciedequintaldoPaláciodoladodeforadoMiolo.Aeliansabiaque,desdeoFestivaldaMorteemqueopaihaviamorrido,olugarsóforautilizadoparaostreinosmilitaresdoGeneralProghon.

—SabeporqueestãoreformandoaArena?—perguntouAelianaoanãocondutordacarroça,queinterrompeuseudiscursoparaasmulasedeuumaolhadelaparaosandaimes.

—Nãofaçoamenorideia.SeriaótimoseosFestivaisdaMortevoltassem,nãoémesmo?HáquantotemponãotemumaboadiversãoaquiemUntherak!—Elechacoalhouasrédeas,comum suspiro desanimado e um menear de sua grande cabeça cheia de feridas e piolhos. —Antigamente,Unaerabemmaispropensaanosentreter…DevemosternoscomportadomuitomalduranteessetempoparanãomerecermosmaisosFestivais.Somosunspecadoresinfelizes,exatamentecomoosnossosantepassados,éoquesempredigo.Masessesboatosmedeixaramanimado!

Aeliannãoentendeuporqueoassuntotinhatomadoaqueladireçãonemsabiadequeboatosoanãoestavafalando.Porém,sempoderabrirmãodesuacaronaaindatãolongedoMercado,nãorespondeuecontinuouobservandoamovimentaçãoaoredordaArena, imaginandoseosujeitoatrásdasrédeasnãoforaumdosquehaviavibradoeaplaudidoamortedeAenochOruzvinteanosantes.

Acarroçaentrousacolejandonafeira,deixandoparatrásocheirodealcatrão,fumaçaeurinaqueoMioloexalavaatéalcançaroarumpoucomaislimpo(ecommenosmoscas)dosCamposExteriores.Nomeiodarua,umArautoliaaGênesisdeUntherakeaFúriadosSeisparaumgrupovendadoeajoelhado,queassimpermaneceriaduranteasseishorasdeescuridãodeseuDiadeLouvor. Desviando a carroça da liturgia, o condutor nem percebeu o carona saltar logo noiníciodaruaprincipal,cheiadetendasebarracas.Omovimentobruscodepulardeumacarroçaem movimento fez as costas de Aelian arderem ainda mais, o que o lembrou de que, seconseguisse vender suas tralhas, poderia comprar um unguento para aliviar a dor— se é queexistiaalgumremédioquecurasseferimentosdearmasbatizadas.

Começando se irritar com o movimento de pessoas ao redor, Bicofino, que até entãoaguardavademaneiraobedientenoombrodireitodeAelian,alçouvooepassouacircularaárea,à procura dos roedores que infestavam a carga desprotegida de alguns dos comerciantes. Damesma forma, seu dono se pôs a esquadrinhar o local, procurando barracas de escambo quepudessempagarumpreçorazoávelpelaflautaepelopunhal—aindamaisqueaarmaconservava

ofulgordeaçovirgem,oquedeixavaóbvioquenãotiveraorigemnasforjasdosÚnicoseque,portanto,eraumabelararidade.

Elefoiseembrenhandoentreamultidão,sentindooscheirosvariadosquesemisturavamaosuor do povo sob o sol quente. A voz dramática do Arauto o alcançava — ironicamente, ohomemliaaparteemqueUnatingiaoSoldepreto.Apesardeserdifícilcaminharsemesbarrarem ninguém, Aelian evitava isso aomáximo, já que o roçar da própria camisa causava umaardênciaatroz.

Aelianremexianaflautaenopunhaldentrodosbolsos,quando,derepente,levouumtapanascostas—fortedemaismesmosenãotivesseapelecheiadeferidasrecém-abertas.Orapazolhouparatrás,comumacareta,efoiderrubadoantesquepudesseentenderoqueestavaacontecendo.

Dois homens o imobilizavam, forçando seu rosto no chão de terra batida, enquanto amultidão abria espaço às pressas para que a briga se desenrolasse e todos pudessem ter umespetáculogratuitonumlugarondetudoeratãocaro.Oanãodacarroçaestavaperdendoseutipodeentretenimentofavorito.

—Olá,Sr.Oruz!—disseumsujeitocomumdadodedozefacestatuadonabochecha.Seu hálito lembrava o cheiro de carvão dos viciados, e Aelian o reconheceumesmo sem

enxergá-lo.— Oi, Barn — disse ele, gemendo e engasgando com a poeira que havia entrado nas suas

narinas.Depois,quaseganindo,Aeliansedirigiuaooutrohomem,queseguravasuaspernascomasmãosossudas.—Eoiparavocêtambém,Canivete.

Canivete,umhomembaixinho,resmungoualgoesentou-sesobreaspanturrilhasdeAelian.Barn,bemmaiorqueoamigo,agarrouocabelocompridodofalcoeiroeseaproximoudeseurosto,paraoazardopobreolfatodorapaz.

—Entãovocêseachaespertopordizerquevaidarumamijadaefugirdamesadeapostassempagaroquemedeve?

—Preciseisaircorrendoontem,masvoupagarvocê—disseAelian,tossindomaisumpouco.—Perdiahora,eeutinhaquevoltarparaoPoleiroantesquepercebessemqueeunãoestavalá!Penseiquevocêsentenderiam.

Barndeuuma risada forçada, olhandoparaCanivete, queo acompanhou comumaversãoasmática.

—Bom,estamosnosentendendo,não?Doisaltin.Agora!—Vimaquiparavenderalgumascoisasepagaravocês…semedeixaremlevantar…—Ah, querdizer queontemnão tinha a grana?—gritouBarn, enquantováriaspessoas se

juntavam ao redor da altercação. — Assim, as coisas mudam de figura, rapaz! Acha que estálidandocomosjogadoresfalidosdoPoço,Oruz?

—PensebemantesdetramarcontraoPâncreasdeGrifo,caloteiro!—bradouCanivete,comumavoztãoagudaqueAelianquaseriu,mesmoemmeioàdor.

—Porfavor,vocêsnãosãooPâncreas…Aquelaéaminhaespeluncapreferidanessagosmade

lugar,Canivete—protestouAelian,falandoentreosdentes.E era verdade: localizado na região dos Assentamentos, onde indivíduos de todas as raças

dividiambarracosemoradiasnumimpressionantecaosorganizado,atavernaeraumaespéciedeparaísoparaquemprocuravaporbebidasbaratasedegostoduvidosomasmuitoeficazesparaacabarcomasobriedade.Alémdomais,olocaleraadministradoporumadasúnicaspessoasqueAelianpoderiachamardeamigo.

—Semedeixaremrespirarporummomento,euexplico.—Primeiroagrana!—guinchouCanivete.—Eunãotenhodoisaltinaqui,precisoirnoescambo!Podemircomigo,sequiserem.—Vocêdariaumjeitodefugirdenovo,sabemosmuitobem!—falouBarn.—Jánotamosque

gostadepulardetelhadoemtelhadoquenempulganumbandodegnolls!Vamosérevirarseusbolsos…Canivete!

—Éprajá!ParaasortedaduplaeazardeAelian,obaixinhoenfiouamãobemnobolsoondeestavam

todasassuaseconomias,juntocomaflautadeJaenni.—Olhesó,Barn!—disseCanivete,felizcomotilintardasmoedastriangulareseignorandoa

flauta.—Osafadoestavacomquasetodoodinheironobolso!—Aindafaltamdoisbakir—falouBarn,irredutível,masafrouxandooapertoemAelian,que

estavatorcendoparaelessecontentaremcomaquiloenãoencontraremopunhal.—Aflautavalealgumacoisa?

Canivetea soprouváriasvezes semproduzir somalgum.Por fim,deudeombros, fazendoumacarapatéticaparaBarn.

—Deveestarquebrada!—Vocêémuitoburro,medá issoaqui!—gritouograndalhão, saindodecimadeAeliane

tomandooinstrumentodamãodocomparsa.Tambémsoprou,eoúnicosomqueaflautafezfoiodealguémsoprandonumcanudo:arsaindo,melodiazero.

—Queméoburroagora,hein?—Caleaboca,Canivete!—mandouBarn,voltandoasopraraflauta,agoracommaisforça.Aelianselevantou,dolorido,enquantoosdoisestavamentretidos.—Bom,achoqueumaltineseiseumaflautaresolvemtudo,nãoé?Vocêsdeveriamatéme

darumtroco…—disseAelian,comoquemnãoquernada.— Não! — exclamou Barn, abandonando a tentativa de produzir alguma música com o

instrumento.Comoesforçodesoprareafúriasomados,orostodeBarnestavadacorproibida.ElearremessouaflautaaospésdeAelian.—Umbrinquedodesinfoquebradonãovalenemumbakirrachadoaomeio!Vocêaindaestánosdevendo!

O falcoeiro balançou a cabeça, olhando para a multidão ao redor. Alguns começavam aincentivarumaluta.BarneCanivetepareciambastantepropensosaatenderaospedidos.

—Olha,levemagrana.HojeànoitepassonoPâncreas,pagooquedevoeaindaumcanecode

cervejadetrigo—falouAeliancomumsorrisodoloridoàdupla.—Umcanecoparacadaum,éclaro.

CaniveteolhouparaBarn,quefezumenfático“não”comacabeça.Aqueladeviaserapalavrapreferidadele.

—Quemsabepodemosaté jogarmaisumpouco?— insistiuAelian,vendoa resistênciadadupla.—Prometoquenãovoufugirhoje,sóvoltoparaotrabalhoamanhãdemanhã.

—Euqueroessetotemaínoseupescoço!—disseBarn,apontandoparaopingentedequartzoverdenocordãodeAelian.

Poucaspessoasusavamdadosdeoito ladosno jogo,poiseramaisdifícilatingirametadepontuaçãomínimacomumdaqueles.Aeliantentouusaressadesculpaparapersuadi-loadesistirdaideia.

—Eletemoitolados,aschancesdetirarumsãobemmenoresdoquecomumdadodeseis.Seriaummaunegócioparavocê.

—Foda-seojogo,édequartzoverde!—disseBarn,osolhosbrilhandoeorostoseabrindonum sorriso ressecado cheio de espasmos. —Dá para comprarmuito carvão com uma coisadessas!

Aelianapertouoslábioseagarrouodado.—Issonãoéquartzoverde.Naverdadeé,hum…sãofezesdearbopardovitrificadas.—Minhastripasqueé!—gritouBarn.—Merdadearbopardoécompletamentediferente!Canivetefranziuasobrancelhaparaocomparsa.—É?—Claroquesim!—respondeuohomemmaior,exultanteeorgulhosodeseuconhecimento.

—Euatéjácomi!HouveumbrevemomentodetréguaenquantoCaniveteeAeliantrocaramolharesenojados.

Obaixinhobalançouacabeçaeestendeuamãoparaofalcoeiro,impaciente.—Apalavradeleésuficiente.Vai,passaodado.Aquilo estava fora de questão. Tirar o trunfo de um jogador de dados experiente era

humilhantedemais—aindamaisparatrocá-loporcarvão,queeraoqueaquelesdoisiriamfazer.Aelianconheciaopesodaqueletotem,sabiaatéprevercomoelerolariadependendodolance.Eleerafamiliaraotoque,suaformaencaixavacomperfeiçãoentreosdedosindicadoremédio.

Por um instante, o punhal em seu bolso se tornoumais pesado.Uma dasmãos deAeliancontinuouprotegendoodado,enquantoaoutraseguravaocabodaarma.Talvezaplateiaganhemesmo um espetáculo, pensou, odiando-se por considerar aquilo. Se tivesse que ferir alguém,gostariaquefosseSureyya,nãodoisviciadosfalidos.

—Achoquenão.Minhapropostaamigávelaindaestádepé.Hojeànoite.Masmeutotemficaaqui,comigo.

Barn piscou um olho de cada vez, sequelado e furioso. Canivete sacou do bolso a armabatizadaquelherenderaaqueleapelido;umaferramentainventadapelosanões,masque,afinal

decontas,faziaomesmoserviçodequalqueradagaoufaca.Mesmoseparadosporcercade trêspassos,o cheirodecarvãoe suoralcançavaAelian,que

notou algumas pessoas ao redor fazendo apostas sobre quem sairia vivo da briga— e, comoesperava,ninguémpareciaestardandoumvotodeconfiançaparaele.

Ouviu-seumgritodistante,e todosseviraram, inclusiveBarneCanivete.AqueleseriaumótimomomentoparaAeliansairdaliemdisparadasemumnovoferimentoemsuacoleção.Noentanto, ele olhou estupidamentepara amultidãoque abria caminhoàspressas, enquantoosestampidossetornavamcadavezmaisaltos,comoalgopesadoseaproximandoagalope.

— Saiam da frente! — gritou um feirante, arrastando sua barraca de penhores para trás,enquantoaanãcomercianteaoseuladopuxavabarrisparaforadoalvoroçadocaminhodeterrabatida.

Osestampidosaumentaram,eAelianviufugiraduplaqueapenassegundosantesoameaçava.Outrapessoaberroualgoqueorapaznãoentendeudireito,emuitosnamultidãoecoarama

mesmapalavra ininteligível.Uma grande nuvemde poeira surgiu domeio da feira e algo dotamanhodeumboiseprecipitouparacimadofalcoeiro,rápidodemais,atingindo-odeladoeatirando-osobreumabarracadefrutas,quecedeucomoimpacto.

Tentandoaguentaranovaexplosãodedorquesentiaevendooanimalpateandoochãoàfrente,Aelianergueuacabeçaeentendeuoqueaspessoasestavamgritando:

Betouro.

Comfrequência,ossinfostrabalhavamnotransportedecargaspesadasaserviçodoPalácio.Éclaroqueissonãoocorriadevidoaosseusportesfísicosdiminutos—esseera,afinal,odomdosgigantes, porém havia poucos gigantes em Untherak, e eram outra raça quase extinta. Seexistiam dez, era muito. De nome, Aelian só conhecia o guardião do Portão Nordeste, umgigantebicéfalochamadoGrork.

Podendoatingiratéoitometrosdealtura,osgiganteshaviamsidoessenciaisnaconstruçãodasmuralhas.ApósaFúriadosSeis,elessetornaramleaisatéopontoqueseusintelectospoucodesenvolvidospermitiam—umantigodocumentodiziaqueo cérebrodeumgigante eradotamanho de um limão e que ficava localizado num calombo na parte de trás do crânio. OsúltimosdaespécietrabalhavamnosportõesdoUnificadoeeramconvocadosparaotransportedemateriaisdeescalamonumental.

Porém,otráfegodecargacomum,cereais,lenhaepedraseraquasetodofeitoporcarroçasevagõesconduzidosporsinfos,queencantavamanimaisdetraçãocomseusinstrumentos.Boisemulas eram a preferência dos humanos nessas atividades — kaorshs não eram habituados amontarias ou domesticação de animais, e anões pouco ortodoxos em relação aos velhosmétodospreferiamasmulas—,masossinfoserammuitoligadosàfaunadopântanooriginale

dasflorestasquehaviamcedidosobapedraemqueUntherakforaerguida.Assimcomoo lugarestavano limitedaDegradaçãocomosGrandesPântanos,osanimais

dos charcos e atoleiros pareciam ser uma espécie de intersecção evolutiva entre insetos,mamíferoseoutrosvertebrados—umaherançadaspragasqueassolaramoperíodoanterioraosurgimentodeUna.Eracomoseosdeusestivessemdecididonasorteaaparênciadascriaturas.Pássaros com ferrões, tatus com pinças e até ruminantes com carapaças duras como a debesouros—esseseramosColeoptaurus,maisconhecidoscomobetouros.

Commilharesdesubespécies,osbetouroseramascriaturascomqueossinfosmaistinhamafinidade,sendoqueumbetouroeumsinfomuitasvezesdesenvolviamumaespéciederelaçãosimbiótica, em que um cumpria tarefas como a coleta de frutos em árvores altas e o outroemprestavasuaforçaparaatraçãodecargaoutransporte.Amúsicadossinfossempreforausadacomoumaformadecânticoparaadomesticaçãodeanimaisdiferentes,masUnarecomendavaque apenas as melodias quemelhorassem o desempenho dos bichos fossem tocadas, pois asoutrasmúsicastinhamcertacadênciaerepetiçãosemelhantesaoinstrumentaldelouvores—eseumaartenãofossedirecionadaàsoberana,entãoeranocivaaUntherak.

Aeliannunca tinhachegadopertodeumbetouro,masacabaradesofrera investidadeumdeles como batismo de fogo. Eles costumavam ficar apenas nas áreas dos campos, eramarrebanhados próximo ao Segundo Bosque, e raramente eram vistos no meio do Mercado.Betouros em geral compartilhavam do temperamento bovino,mas podiam se irritar com obarulhoeaagitaçãodasmultidões.

Sementenderporqueoanimaloatacaraenotandoqueobetourocontinuavaextremamenteirritado e pronto para uma próxima investida, Aelian sacou o punhal, enquanto analisava acarapaçanegradereflexoazulado.

— Não sei o que eu fiz, mas é melhor se afastar — disse, levantando-se com cuidado eignorandoosprotestosdodonodabarracadefrutas.

Manteveosolhosnaspatas irrequietasda criatura, atento.Deualgunsgolpesnoar comopunhalparaverseespantavaobicho,masomovimentobruscocausouumzumbidodeirritaçãoquepareciavirdeasasnascostasdacarapaça.Aelianseassustoucomoruídoameaçador.

—Caramba,vocêvoa?NemacriaturanemAelianvoaram—masoanimalpareciaprestesafazerisso,poisavançou

em alta velocidade, pisoteando frutas ruidosamente, e o falcoeiro desviou do ataque,preparando-separarevidarsefossenecessário,opunhalemriste.

—Eeeeeeeei!Podeirparandocomisso!—gritouumavozesganiçadaeirritada,típicadeumsinfo.

Defato,umbaixinhocomcabelocordepalhaavançavadepressanadireçãodaconfusão,eAelianpresumiuquefosseodonodoanimal,chegandoparacolocardisciplinanacriatura.

Porém,osinfo,quebatianacinturadohomem,nãofoiatéobetouro,masatéohumano—edesferiuumtapatãofortenamãodeAelianqueofezderrubaropunhal.

—Masquegosma!—exclamouAelian,muitoindignado,osolhosarregalados.—Euéquedigo!VocênãovaimachucaroThrul!—Quem?— perguntou Aelian, perdido, um olho no animal e outro no sinfo, que parecia

esquadrinharohomemcommuitocuidado,àprocuradealgo.—Obesourão?—Thrul,obetouro!—corrigiuopequeno,impaciente.—Eabaixeessafaca!Cadêaflautaque

vocêtocou?—Doquevocêestá…—começouAelian,masseinterrompeuaoselembrardequehaviauma

flauta em jogo,naquelemomento esquecida emalgum lugardo chão.—Eunão toquei coisanenhuma,foramdoissujeitosquesaíramcorrendo.

—Cadêela?— insistiuo sinfo, sempaciência, levandoamãoàs costas e tirandode láumaespécie de alaúde de braçomais curto que o normal.Havia uma correia cruzada no peito do“garoto”,eelepuxouo instrumentoparaafrentecomhabilidade,enquantoseaproximavadeThrul.—Responda!Cadêaflauta?

—Calma,moleque!—Eunãosoumoleque,seutapado!—Tá,tá…Sópeçaparaessebichoseafastar,senãoelevaimeatacardenovo!OsinfogirounoscalcanhareseficoudiantedeThrul,encarandoseusgrandesolhosaquosos.

Dedilhouduasnotasrápidasnoalaúdeedepoisasrepetiu.OColeoptaurusparoudepatearochãoprontamente,comoseestivesseprestandoatençãonamúsicaeperdidoavontadedeatacarohumano.

—Bomgaroto,Thrul!Bomgaroto—disseosinfo,avozafinadanotomdasnotascristalinasdo instrumento.AtéAelian achava difícil parar de prestar atenção na cena.— Isso, está tudobem!Aquelacoisafeiaedesengonçadanãovaifazermalavocê,prometo!

—Ei!Osinfoolhouparatrás,irritado,semparardededilharascordas.—Aflauta!Cadê?Guardandoopunhalexingandoasimesmoporestarobedecendoaalguémtãopequenoe

petulante, Aelian saiu observando o chão ao redor, enquanto feirantes e comerciantesretornavam devagar aos seus lugares de sempre e o movimento da rua se normalizava. Ofalcoeiroencontrouaflautacobertadeterraapoucospassosdeondeestava.

— Achei! — disse Aelian, aproximando-se do pequeno, mas ainda assim ressabiado com apresençadacriatura,pormaisqueelaestivesseatentaaosomdoalaúde.—Masnãochegueiatocarnenhuma…

—Medáissoaqui!—falouosinfo,deixandooalaúdependernacorreiaaoladodocorpoetentandoarrancaraflautadamãodeAelian,quefoimaisrápidoeatiroudoalcancedooutro.—Medálogo!

—Elaéminha!—protestouAelian,comumrisoexasperado.—Ah,masnãoémesmo—retrucouosinfo,cruzandoosbraçoseencarandooinstrumento

namãodohumano.Namesmahora,obetourovoltouapatearochão, emharmoniacomoparceiro.—Possoatédizerdequemvocêaroubou:deJaenni,quetrabalhanoPoleiro.

—Nãoroubeinada—defendeu-seAelian.Eraumameiaverdade.ElenãoahaviatomadodeJaennideformadireta.Nervoso,segurouaflautaaindamaispróximodopeito.—EJaenniestámorto!

Osinfodeuumpassoparatrás,esuasfeiçõespetulantesdesmoronaramcomoseseurostotivessesidoatingidoporumaforçainvisível.

—Morto?…Aelianimediatamentesearrependeudeterdadoanotíciaaopequenodaquelamaneira.Depois

detantosofrimentoetantasperdas,seuspaiscomcertezaesperariamqueelefossemaissensívelcom assuntos de vida emorte. Infelizmente, aquele era o descaso que a servidão forjava noshabitantesdeUntherak.

—Olha,medesculpe…—Quandofoi?— Não sei bem. Há algumas semanas. Um duto cedeu e… — Aelian esfregou os braços,

arrepiado.Sentiaclaustrofobiasódeimaginarasituação.—AflautachegouparaJaenni,maseusabia que ele não estava mais no Poleiro. Preferi me apossar dela a deixar nas mãos dosAutoridades.

Osinfooencarava,olhandoparacima,masnãopareciacomraiva.Seusolhos,Aelianreparou,eram de cores diferentes: um, violeta, e o outro, azul. Aquilo o inquietava, assim como seustraçosfaciais,queeramosdeumacriançaandrógina.Ossinfoseramassexuadosehermafroditas.Sua reprodução envolvia árvores e um processo de difícil assimilação — pelo menos parahumanoseanões,poisoskaorshserammaisempáticoscomomododevidadossinfos.

Algunssinfosseidentificavammaiscomumcomportamentomasculinooufeminino,mas,agrande maioria estava em algum ponto entre os dois gêneros — ou além deles. O dono dobetourolembravamaisummeninonoquesereferiaàvoz,mastinhatraçosfemininoscomocílioslongoseumqueixofinoedelicado.Porém,nãoparecianemumpoucopreocupadoemparecerumacoisaououtra.Quandoosexonãoéumaprioridadenavida,muitasconvençõessociaisperdemarelevância.

—BemqueestranhamosquandonãoovimosnoSegundoBosqueduranteosúltimosDiasdeLouvor — disse, baixando a cabeça e deixando de sustentar o olhar de Aelian. Acariciou acarapaçadobetouro,melancólico,econtinuou:—ThrulatacouvocêporqueouviuaflautadeJaenniesaiuemdisparada.

—Maseunãotoqueiaflauta,foiBarn.Eelanemchegouafazerbarulhoalgum…— A frequência da flauta não atinge ouvidos humanos, anões nem kaorshs — explicou o

pequeno, coçando o nariz arrebitado. — Na verdade, mesmo para os sinfos ela quase passadespercebida…Masosanimaisaescutam,e,dependendodo jeitoqueelaé tocada,osouvidosdelesdoem.

Aelianolhouparaoinstrumentoemsuamão.Jáouvirafalaremapitoseclarinetesmaculadosfeitospelossinfosqueeramutilizadosparaincitaraviolênciaearaivanosgnollsouatémesmoparasilenciarseuslatidos,dependendodaintensidadecomquefossemtocados.

—Euiatentarvendê-la—disseorapazporfim,estendendoaflautaparaosinfo.—Masachoquenãopossomaisfazerisso.

O pequeno o olhou com surpresa, como se não esperasse aquele tipo de atitude de umhumano.Aelianchacoalhouaflauta,impaciente.

—Semedeixarpensardemais,voumudardeideia.Asfeiçõesdosinfosesuavizarameelegargalhou,comoumacriançasentindocócegas.Aelian

quaseoacompanhou,mas,naquelemomento,atérireradoloroso.—MeunomeéZiggy—disseopequeno,pegandoaflautacomamãoesquerdaecolocandoa

direita,pequenaeleve,dentrodamãocalejadaeossudadeAelian.—EvocêjáconheceoThrul.Elepediriadesculpassepudessefalar.

— Seria ótimo — disse Aelian, já imaginando o que faria para quitar a dívida com Barn eCanivete.

Naquelemomento,Bicofinopassousobrevoandoolocalcomumgrasnarirritado.—Umfalcão!—gritouZiggy,apontandoparaocéu,empolgado,comosenãoosvissetodo

dia.—Étãodifícilqueelesseaproximemdemultidões!—Ah,éoBicofino—disseAelian,erguendoobraçoparaqueaaveviesseaoseuencontro,o

que logoaconteceu.—Se elepudesse falar, perguntaria: “Oquevocê está fazendoaí comumsinfoeumbetourão?”

Bicofino fechou as garras ao redordopulsododono, e ficou comas asas abertas por uminstante,exibindo-se.Elesabiaquetinhaplateia.Ziggyseaproximoudaave,maravilhado,amãoestendidaparatocá-lo.

—Cuidadoqueelebica…Ei!Naverdade,ofalcãopareciaestaraproveitandoocarinhonaspenas.—Eleéincrível!—Eleéumtraidor,issosim—resmungouAelian,comumapontadadeciúme.Ziggyignorou

ocomentário,tocandooameaçadorbicodofalcãosemomenorreceio.—Eeleveioatévocêdeboavontade!—É,achoquesim…Masnãoésemprequeelesecomportacomoumpatinhocarente.Ziggy riu de novo, em seguida olhou para cima, a cabeça inclinada e os olhos díspares

brilhando.Elepareceumsujeitinhoquesecontentacompouco,Aelianpensou,sentindosimpatiapelosinfo.

—Ei,você!—gritouumhomemcomavozrouca.EraumÚnico,acompanhadodeoutrosdois soldados com gibão e armadura leve, apontando para Ziggy com uma maça enquantomancava na direção dele, truculento, o escudo balançando no outro braço. — Vocêmesmo,pirralho!Oqueessasuabestaestáfazendoaqui,tãolongedacolheita?

—Meubetourodesembestouparacáeomeuamigoaquimeajudouacapturá-lo,seuguarda—respondeuZiggy,falandoaltoefazendoumacenodisplicente,semumpingodetemornavozounorosto.—Jáestouvoltando.

—Ébommesmo,antesqueeumandemataressadeformidadedopântano!—disseoguarda,claramentepreocupadoemmanterumaboadistânciaentreeleeThrul.—Enãoquerosaberdelecagandopelocaminho!Sevirumasujeiraqueseja,levovocêparaaMácula!

—Claro,seuguarda.Podedeixar—respondeuosinfo,indiferente,virandoascostasparaoshomensesussurrandoparaAeliansemqueelespudessemlerseuslábios.—Thrulsócomeflor,frutaemato.AbostadelefedemenosqueouniformedoscachorrosdeUna…

Então,ZiggysubiunascostasdeThrulcomumsaltoágil.EmparelhadocomAelian,sorriuparaele.

—Vocêéumhumanobom.Nenhumanimalseconectaaalguémcommásintenções.Umelogio?Aeliannãosoubecomoreagir.QuemfaziaelogiosaumestranhoemUntherak?—Hã…obrigado?—Ei,cabeludo!Chegadepapo!Vocêtemautorizaçãoparaandarcomessepássaroporaí?—

gritouoguarda.Aelianrevirouosolhos,contagiadopelarebeldiadosinfo.Respondeusérioerespeitoso:—Éomeujantar,seuguarda.Jáestoutomandoomeurumo.Ziggy,comoseestivesseprotegidoporumaauradeinocência,nãodisfarçouorisoeapontou

parao“jantar”deAelian.—SeiqueofalcãosechamaBicofino,masnãoseiseunome!—ÉAelian.—Aelian—repetiuosinfo,levantandoaflautadeJaenni.—Muitoobrigadoporisso.Porse

importar.O falcoeiro ficouemsilêncio, sentindooaperto familiardasgarrasdaavenoprotetordo

pulso. Thrul se afastou a passos pesados pela rua central doMercado,mas Ziggy continuavasorrindoparaorapaz,contente.Fezumacenoantesdevoltaraatençãoparaocaminhoàfrenteegritar,semligarparaoqueosguardaseosoutrosaoredorpudessempensar:

—Lembre-se:vocênãoétãomauquantoparece,Aelian.Ninguémé!Vocêéumhumanobom.Etchau,Bicofino!

Aelianfranziuassobrancelhas.Eradifícilacreditarnaquelahistóriade“ninguémétãomauquanto parece”, ainda mais considerando seus últimos encontros com Sureyya e Harun,lembrando-sedeKivan,assassinadoporcausadoseuvícioemdados,etodaaatmosferacorruptadeUntherak,dosviciadosemcarvãoaosAutoridadescruéisetruculentos.Comoseouvisseseuspensamentos, o guarda gritouum “Circulando, cabeludo!”, aoqueAelian respondeu comumacenodecabeçaesepôsemmovimento.NãotinhaamesmasorteoudisplicênciaprotetoraqueZiggyemanava,quelhepermitiaseromissocomAutoridadessemsofrerconsequências.

Enquanto caminhava, observava Ziggy e Thrul sumindo aos poucos nomeio do fluxo já

normalizadodamultidãodoMercado.Malpercebiaque,pelaprimeiravezdesdeanoiteanterior,haviaesquecidodesentirasdoresdaculpaedosferimentos.

Sóquandoseuestômagoroncouéquelembrouqueprecisavaurgentementededinheiro.

4

Mesmoquandosevivepreso,nemtodosossonhossãodeliberdade.EmvezdereviverashorasdealegriaaoladodeYanishaoudeaproveitarumrevigorantesono

profundo,RaaziestavanotopodeumadastorresdoTear,paraondeteriaquevoltarquandoacordasse.

De pé perto do beiral, asmãos estavam ocupadas com o trançar dos tecidos. Centenas dekaorshsfaziamomesmotrabalho,decabeçabaixa,observadospelaestátuadeUna.

Raazi virou-se para a beirada, dando as costas aos servos concentrados nas suas funções.Abaixo, grandes faixas de tecido negro balançavam ao vento, da altura da imensa edificação,secando ao sol. Era como um enorme varal de echarpes para gigantes, Raazi pensava,imaginando os seres titânicos desobedecendo à ordem dos Seis Deuses e tentando tomar ascavernasdosanõesparasi,conformediziamosrelatosdaGênesisdeUntherak.Echarpesparagiganteseramumpensamentotão infantilquantoacrençanos taisdeusesenaquelemitodesalvaçãoeascensãodeUntherak.MesmonãosabendosequerumpoucodoqueYanishaeRaazicompreendiamsobreUna,osoutroskaorshsjátinhamatendênciaanãodançaremamúsicaquea deusa os obrigava a escutar — tanto no sentido figurado quanto no literal —, já que nãoexistiamcançõesparaservos.

Eramuito tecido para atender ao desejo de uma única soberana. Raazi concluía aquilo nosonhoetambémquandodespertava.QuilômetrosdetecidoerampenduradosdoladodeforadoTeartodososdias.Nãohaviaumlugargrandeosuficienteparaestocaraprodução,tampoucoademanda.Ela imaginavaseo trabalhoeraapenasparamanteroskaorshssobservidãoe seostecidos,nofimdascontas,eramqueimadosnasfornalhasdaBigorna.Afinal,servos,semilivresemaculadosnãovagavamporaíusandoseda.

A estátua deUna a observava, como se repreendesse aqueles questionamentos indignos. Epareciamaiorqueonormalnaqueleinstante.

Raaziestavaconscienteemseusonho.Tinhasonhoslúcidosquasetodasasnoites.Ocanväsdescansava, mas a mente continuava trabalhando, ainda mais afiada que quando em vigília.Mesmoassim,porém,viu-sepreocupadacomasnuvenstempestuosasqueencobriramosoldeumsegundoparaooutro.

—Ésóumsonho—disseasimesma.Umrelâmpagopulverizouumdosgrandesfeixesdetecidopróximo,iniciandoumincêndio

na mesma hora, numa velocidade que apenas a mente conseguiria produzir. Raazi seguroucontraopeitoasedaquehaviatrançado,apertando-a.

Outroclarão,eaestátuadeUnaestavaquasesobreoTear,oqueixoacimadeRaazi.Estátuas

nãosemexem,pensou,commenoscertezaacadainstante,poisocolossopareciasecurvarmaisemaissobreela.Osmuitosolhosdouradosrefletiamotomproibidodoincêndio.Trabalhadoresemchamassejogavamdasalturas.Unaaestavacondenandoporaquilo.Julgando-a.

Deumsegundoparaooutro,umsorrisosurgiuemcadabocadaestátua—eaquiloerapiorqueavisãodekaorshscaindocomoflechasincineradoras.Ascaretasdeescárniodiziam“aculpaésua”,mesmoqueoslábiosesculpidosnãosemovessem.

Eaestátuacrescia,crescia…—Nãoacreditoemvocê—disseRaazi,largandootecidoàfrentedocorpoedeixando-ocair.Elefoisedesenrolando,muitomaiordoqueeraenquantoestavaemseusbraços,percorrendo

oespaçoentreoTeareaestátuadeUna.Eeradacormaisodiadapelasoberana.OfogoconsumiaocentrodeUntherak.Aestátuaaindasorria,comoseaquilofossepouco

paradestruí-la.Otecidocaíaecaía,etalveznuncaterminassedesedesenrolar.Omonumentocontinuavacrescendo,assimcomooTear.

Raazideuumpassonadireçãodovazio.Abriuosbraços,aúnicakaorshquecairiaintocadapelaschamas—masnãocaiu.Aquelanãoeraarealidade,eamulherascendeuaoscéus,nadireçãodasnuvensnegras,acimadeUna,doTearedetudoomais.OMioloerapequeno.OUnificadoeraapenasumamaquetedetalhada,comoasqueosanõesconstruíamparaosfilhos.

Olhandoparabaixo,Raaziviaotecidodacorproibidaaindasedesenrolando,enfunando-seeretorcendo-seaovento,comoumagrandeferidaabertaemUntherak.

O despertar foi tranquilo, sem o sobressalto que acompanhava o emergir de um pesadelo.Yanishanemsequersemexeuemseusbraços,ressonandobaixinho.UmadastrançasdelacaíanorostodeRaazi, e tinhaohabitual cheiro adocicadoque lembravadiasde folga ededescansorestaurador.

OventouivavaentreasárvoresdoSegundoBosque.Achamadavelapróximaàcamahaviaseextinguido no início damadrugada, e o quarto estava imerso na escuridão — o que não eraexatamente um problema para kaorshs, já que eles enxergavam no meio do negrume tonsindetectáveisporoutrasraças.Aindaassim,Raaziesperouavistaseacostumarcomafaltadeluz,levantou-secomcuidadoparanãodespertaraesposaeolhouaposiçãodasestrelasporentreasripasdajanela:tinhaduashorasatéomomentodepartirparaseapresentarparaacontagememsuaceladoTear.AvontadeeradeacordarYanishaparaquedesfrutassemjuntasopoucotempoqueaindatinham,massesentiuculpadaporatrapalharosonodesuaamada.

Sentou-se na beirada do colchão, vendo a silhueta de Yanisha e admirando sua pele negracontra o fundo de sombras. Vê-la naquela tranquilidade a ajudava a acreditar no sucesso damissão,pormaisqueissoimplicasseofimdeseuscanväs.Existemoutrosmundostãoreaisquanto

este, onde nossas almas não precisam de invólucros, pensou ela, permitindo-se um pouco deconfiança e umpouco da crença de sua espécie. Ainda assim, de vez emquando pensava quesentiriafaltadeumcanväs—nãoopróprio,masodeYanisha.Sorriunoescurocomadualidadede seu pensamento, com amanifestação daquele desejo tãomaterialista e tão pouco kaorsh.Sempre a dualidade, refletiu, bocejando em seguida, mas nem sequer considerando voltar adormir.

Foiquandoumconhecidoruídometálicodespertoucadacentímetrodeseucorpo.Afechadura.Osomquenormalmentelhedavaasboas-vindasganhououtrosignificado.—Yan!—sussurrounoouvidodaamada.—Hummm…—ronronouela,emresposta.—Alguémestátentandoentraraquiemcasa.A outra kaorsh ergueu-se na hora, sentando-se ereta na cama como se não estivesse

dormindosegundosantes.Asduasaguçaramosouvidos,cemporcentoalertas.Eouviramoutrocliquenafechadura.EraaconfirmaçãodassuspeitasdeRaazi.Emsilêncio,Yanishaescorregouparaochãocomo

um felino, buscando algo sob o colchão. Raazi foi na ponta dos pés até o único armário docômodoetateouovãoentreomóvelrústicoeaparede.Agarroualançaqueficavaescondidaalieseposicionounumladodoportaldoquarto,enquantoYanishafaziaomesmodooutro,comtrês facasdearremessoemcadamão— facas semcabo,presasentreosdedoscom linhasqueficavamocultasnacordapele.Fezumacenocurtodecabeçaemurmurou:

—Vocêestávisíveldemais.Raazinivelouotomdapele,igualando-seomáximopossívelàssombras,enquantoYanisha

fazia omesmo— não sabiam quem estava invadindo a casa nem quantos eram. Assim, todavantagemserianecessáriaatéqueasituaçãoficasseclara.

Houveumcliquediferente.O invasorhavia enfimarrombadoa fechadura eparecia tentarabriraportamilímetropormilímetro, comoseaquilo fosseevitaro rangidodasdobradiças.RaazieYanishaseencolheramaindamaisaorepararemqueumaluzazuladacrepitantechegavadefora,iluminandooambientenomomentoemqueaportaseescancarou,deixandoumalufadadearfriodançarparadentrodacasa.Senãotivessemacordadocomobarulhodafechadura,askaorshs com certeza despertariam naquele momento. O invasor era bom com trincos, maspéssimoestrategista.

Aprimeirasurpresaveioquandoumgrupodehomensseespremeupelaporta.Seuspassoseram pesados, e, por mais que tentassem fazer silêncio, era nítido o som de corpos grandesdemaistentandoserdiscretos.

Raaziespioucomcuidadoevoltouàposiçãosegura.Levantouamão livreespalmadaparaYanisha.Cinco.Cincoinvasores,encapotadosecomrostoscobertospormáscaraselenços.Doisdeles brandiam espadas de aço virgem, outros dois pareciam estar com as mãos livres, mas

tinhambainhasnoscintos,eolíderdobandobrandiaummachadodelenha.Acrepitanteluzazulada do lado de fora continuou, o que significava que receberiam reforços a qualquerinstante.

Raazi eYanisha respiraram fundo.Contaramtrêsbatidasdocoração,o ritmocardíacodasduasquasenamesmafrequência:baixaetranquila.

Então,tudocomeçou.Asduasespadascaíramcomumestrépito,eosdoishomenslevaramasmãosàgargantaao

mesmo tempo, fazendo ruídos gorgolejantes. Os dois que tinham as armas embainhadasdemoraram a entender o que havia acontecido, até que o sujeito com o machado assumiuposiçãodecombate,olhandoparatodososladosnoambientehostileescuro.

—Elasestãoacordadas!Elasest…Oalertafoiinterrompidosemqueelesequerpercebessedeondepartiraoataque.Enxergou

apenasRaazisematerializandoàsuafrente,bemquandoahastedalançajáseencontravaunsvintecentímetrosdentrodeseupeito.Nãoteveforçasparacontinuarsegurandoomachadoecaiudejoelhos,quandoYanishaaproveitouparasaltá-loealcançarsuaterceiravítimaemmenosdedezsegundos.Estenemtevetempodetiraraespadadabainha,sendoapunhaladocomduasfacasaomesmotempo:umanopescoçoeaoutranoestômago.

Dentrodacasaaindahaviaumhomemdepé.Noentanto,passosquenãofaziammaisquestãodeseremsilenciosossoaramdo ladode fora.Raazichutouocapangadomachadopara trásepuxoualançaatempodebloquearogolpedeespadadoinvasorremanescente,queatacavaaosgritos.

Raaziaparouosegundogolpe,fintouparaaesquerdaechutouapanturrilhadohomemparabaixo,arrancandouminconfundívelsomdeossosquebradoseumgrito.

—Porta!—alertouYanisha,vendoumdosqueestavamàespreitaserevelaraoentrarnacasasegurandoumaespadacurva.Asduaskaorshsagiramemsintonia,umafacaatingindooolhoesquerdoealançaabrindocaminhoàforçanoestômago.Morreudesabandonamesa,sobreastaçasdelatãoeagarrafavaziadovinhodeamorasdaagoralongínquanoiteanterior,osanguesemisturandoaorestodebebidaquasedamesmacor.

Adupladeixouosoutroscorposbloqueandoaentradae recuoualgunspassos,ossentidostotalmentealertaseprontosparaoutralevadebrutamontesdespreparados.

— Eles não vão entrar. Não depois de perderem seis homens tão rápido — disse Raazi,meneandoacabeça.

Yanishatrincouosdentes,segurandoasúltimastrêsfacasdearremesso,duasdelasjásujasdesangue.

— Mas não podemos sair em campo aberto. Não sabemos quantos são ou se há algumaarmadilha.

Otropeldebotasseespalhouaoredordacasa.Pelasfrestasdajanela,viramqueosujeitodoarchoteforaparaosfundos.

—Estãonoscercando—falouYanisha,osolhoscorrendodeumaparedeaoutra,analisandoospontosemquepoderiamteralgumavantagem.—Eudiriaquetemmaisquatroláfora.

—Algoassim—sussurrouRaazi,escutandoumbaquesurdonotetoseguidodeumcrepitar.Alguémestavasubindonotelhado?Algunssegundossepassaramsemqueninguémsemovesse,nemmesmooardamadrugada,

quepareciatensocomoembate.Atéqueumdoshomensdetocaiapareceugritaralgo,avozabafadapelolençonorosto.

Eentãoocheirodefumaçaveiodotelhadodepalha.—Fogo!—gritouYanisha,arregalandoosolhosefazendomençãodecorrerparaaporta,mas

Raaziadeteve,segurando-apeloantebraço.—OourodainscriçãoparaaArena!Precisamoslevar!Yanishaassentiu,provavelmentepensandoomesmo:nãoimportavaqueperdessemtudo.A

fumaça começava a acumular no teto, a casa queimava, mas elas prevaleceriam. Seus canväsqueimariam,masasideiassobreviveriam.Amissãoeramaisimportante.

EnquantoYanishabuscavaosaltin,Raaziseincumbiudeenfrentaroshomensquecercavamacasa,mas sem sair daproteçãoda construçãodemaneira óbvia. Espioupor entre as frestas eesperouumdosinvasorespassarpróximoàjanela,contandocomavitóriaantecipada.Akaorshdeixou a pele da cor do gramado sob o céu noturno, do jeito que ela enxergava. Seria bomconfundi-loseganharalgumavantagem,mínimaquefosse.

A lança atravessou as ripas da janela e perfurou a lateral do corpo do homem, que tentougolpearahastecomaespadaparaimpedirqueaarmaafundassemais.Comaforçadeumaríete,Raaziseatirouatravésdoquehaviasobradodamadeiradajanelaederrubouosujeito,pisandoemsuacabeçaejágirandoemseguida,prontaparaumnovooponente.

Estava cercada por três homens de capa e capuz, o maior deles segurando um gnoll defocinheira tão apertada que o rosnado do bicho era completamente abafado. O maldito sópoderiaserdoCanil:apenasassimpoderiaterpegadoumdosmonstrosemprestadosparaaqueleserviçosujo.Herkvaitermuitoaexplicar,pensouRaazi,ligandoospontos.Aquilonãoeraumsimplessaque.

Ognollpuxavaacorrente,naânsiadesesoltar.Suapelepareciaestendidademaissobreosossospontiagudos: o animal comcertezapassava fomenamaior partedo tempo.Ohomemretiroua focinheira, eo latidodabesta,misturadoà suahabitual risadaconvulsiva, fizeramacamuflagemdakaorshoscilarporummomento.Raaziprecisariadetodaasuaconcentração.Nãoesperavaaqueletipodeperigo—mastambémnãoescolheriaodesafioqueenfrentarianaArenadeObsidiana.

O saqueador às suas costas investiu, achando que a kaorsh o havia esquecido. Ela tirouproveitodotamanhodesuaarmaegirouahasteparagolpeá-lo,comumaolhadelaporcimadoombroeenfiandoalançanavirilhadosujeito.Nesseexatoinstante,ognollavançoucomoumaflecha,arrastandoacorrenteatrásdesieerguendo-seemduaspatasnosmetrosfinaisatéapresa.

Raazitentouvirarapontadalançaparaafrenteatempoderecepcionarobichocomboas-vindas letais,maseleabocanhouoombroesquerdodelaantes.Akaorsh foiaochãocomumgrito de dor e bateu duas vezes na lateral da cabeça do gnoll, sem efeito. As patas traseirasrasgaramapeledoabdômendela,eosdentessefechavamcadavezmaisnacarne,chegandoaosmúsculos.

Acimadognolledakaorsh,labaredasrodopiavameotelhadodepalhatornava-seaospoucosumaimensapira.Erafogo“acidental”;dacornatural,portanto.Comumapartedistantedesuapercepção,Raaziouviuumavigacedendoealguémgritandologodepois—felizmente,nãoeraYanisha. Era uma voz masculina, ainda mais alta que o escarcéu que o homem de virilhaperfuradafazianochão,aalgunsmetrosdela,enquantosangrava.

Sentindoobraçoesquerdoadormecendoenquantoognollaumentavaaindamaisapressãoemseuombro,Raaziconcentrouaforçaquelherestavanopunhodireito.Cerrou-oedeuumúnicogolpepoucoabaixodoolho injetadodacriatura.Dessavez,arrancou-lheumganido,eentãodeuoutrogolpe,emaisoutro,emaisoutro,emaisoutro…

Justamente quando sua energia começava a se esgotar e Raazi pensava que o gnoll não alargarianemsetivesseocrânioesmagado,amordidaafrouxou.

Commovimentosespasmódicos,acriaturarolouparaolado,comumafacacravadananuca.Raaziseergueu,nãoquerendopensarnosferimentos,massemconseguirmexerobraço.Viuobrutamontes que havia libertado o gnoll morto na grama, com uma expressão de espantoiluminadapelas chamas.Yanisha lutava como último encapotado, que tambémbrandia umafaca,masumpoucomaiorqueadela.Eraimpossívelverorostodosujeito.Eleerahabilidosoe,comumgolpeabrangente,fezumcortepróximoaosolhosdaoponente.

Yanishasaltouparatrás,desequilibrou-seecaiusentada,levandoamãoaoferimentoqueporpouco não a cegara. O homem aproveitou a oportunidade para correr na direção dosAssentamentos, a capa brandindo atrás dele. Sem dar tempo para avaliar os ferimentos quesofrera,Raaziarrancouafacadanucadognolleaseguroupelalâminameladadosangueescuroeviscoso.Oúltimosaqueadorjáestavalongedemais,eelanãotinhaaprecisãodacompanheira.

Mesmoassim,levouamãodireitaacimadacabeçae,semdarmaistempoparaqueadistânciaaumentasse,lançouaarma.

A lâmina cravou-se logo acimado cotovelodireitodo fugitivo, que levou amão ao localatingidosemgritarouparardecorrer.EledesapareceunadireçãodolabirintodesconexoqueeramosAssentamentos,olugarperfeitoparaumassassinoemfuga.

RaazicambaleouatéYanisha,quecontinuavasentadanomesmolugar,ofegante—ocansaçodaação ininterruptahaviabatidodeumasóvez.Ajoelhou-sena frentedaamadaeasduas seabraçaram,iluminadaspelapiraqueacasasetornara.

—Seuombro…Vocêestáperdendomuitosangue.—Estoubem.—Vaiinfeccionar.

—Estoubem— repetiuRaazi, comuma caretaquedizia o contrário. Limpouo sanguedebaixodosolhosdeYanishacomascostasdamãodireita.—Sóestouchateadaportererradooarremesso.Vocênãoteriadesperdiçadoachance.

—Vocêfoiótima,elejáestavalonge—disseYanisha,desviandoosolhosdoombrolaceradoda esposa e olhando para os corpos espalhados no gramado ao redor. — Eram capangas docafetãodoTear,nãoeram?

—Comcerteza.Herknãodevetermelevadoasério,eestácomoorgulhoferido.Vouterumaboaconversacomelemaistarde.

—Vocênãopodeirtrabalharassim!—Tenhoquepelomenosmeapresentaremostrarasminhas“condições”antesdeiràPadiola

—disseRaazi,vendoaexpressãopreocupadadeYanishanorostoiluminadopelofogo.—Nãováfazernadaidiota.—Dotipo“VamosentrarnaArenaparamatarUna”?Podedeixar,voupouparenergiaspara

isso.Elassangravam,viamseularqueimandoeaindaassimconseguiramsorrirumaparaaoutra.

Tudoeratemporário,eafasedeconfortoeaconchegotambém.Tinhamassumidoaluta,nãoreclamariamdecoisasbanaiscomodoreseperdasmateriais.

— Você está com aquela mancha azul em volta do olho esquerdo — falou Yanisha. Raazifranziuassobrancelhas,tentandotrazerapeledevoltaàcornormal.Aoutrameneouacabeça.—Não,deixe!Eugosto.Elaaparecequandovocêestáirritada.

—Oupreocupada.Oestrondodealgodesmoronandonasestruturasdamoradiaemchamaspontuouofimda

frase de Raazi, fazendo línguas da cor proibida dançarem e arremessando fagulhas no céunoturno,quedesviaramaatençãodaskaorshsporuminstante.Haviacertabelezanaquilo.

—Yan…—Diga.—Vamosfazermesmoisso?MatarUna?Aquelanãoeraumaperguntasimples.Yanishaaencarou.—Sim,vamos.Vocêtemdúvida?—Talvezeutenha.Oquevamosfazerépelosqueficam,paraosvivos.—Elaolhouparaas

chamaseparaopoucodacasaaindadepé.—Evejacomoelesagem.Époressaspessoasquequeremosmorrer?

Yanassentiu,devagar,assistindoaoespetáculodofogo.—Sobretudoporelas.—Evamosnos tornarmártiresporquemgostariadenosveralidentro,queimando junto

comasnossascoisase…—Raazi—interrompeuYanisha,pousandocomcuidadooindicadornoslábiosdela.—Oque

aspessoasvãofazerdepoisquepartirmosjánãoestarámaisaonossoalcance.Vocêsabedisso.

— Eu pensei que soubesse. O que você acha que vai acontecer depois que mostrarmos averdade? A união de todos?Um levante?Que consciência será despertada em pessoas comoessas?—perguntou,apontandoparaoquerestavadacasa.

Yanisha se demorou olhando para o lugar queRaazi indicava. Pareciamais interessada nocontrastedamãodeladiantedaluzdaschamasdoquenofogoemsi.

—Nóssomosas fagulhasquedarão inícioà fogueira.Talvezoventonossoprepara longe,talvezpossamosiniciarumincêndio.—Elasegurouorostodaesposanasmãos.Ocalorentreasduaseramuitomaispoderosoqueaquelequeobliteravaseuantigolar.—Comofagulhas,oquefazemosdemelhorébrilhar.Queimar.

Nosilêncioqueseseguiu,colocandoatestacontraadeYanisha,Raazinãoconseguiadeixarderelacionarosonhoquetiveracomoqueacabaradeacontecer.

Sinfos e kaorshs sempre tiveram uma boa convivência, tanto pelas habilidades em música,pinturaetecelagemquantopelaformacomoentrelaçavamanaturezacomsuaexistência,emespecialquandoessaexistênciachegavaaofim.

Kaorshsacreditavamqueaencarnaçãonocanväseraapenasumperíodotemporáriodesuaessência,enquantoossinfos,comseushabituaistrezeanosdevida,preparavam-separaretornarcomoumaárvore,quedariaorigemaoutrosinfo,que,porsuavez,umdiasedesligariadavidaevoltariacomoárvore…numeternociclo.Issoeratãoimportanteparaaraçaque,quandoalgumpequenoeralevadoparaobanhodeMáculaouimpedidodeterotradicionalenterroaospésdeumaárvore—ritualconhecidocomoSemeadura—,ofatoeramuitopranteado.

A solidariedade entre sinfos e kaorshs era famosa ainda por eles compartilharem várioscostumes. Issoeraalgo raroentreas raças—osanões,porexemplo, eramorgulhososdemaispara ensinar técnicas de escultura a qualquer outro indivíduo pensante. Antigos ritos sinfos,comoakaita — espécie de dança rápida e repleta de acrobacias, uma performance perigosa equasecombativa—,haviamsidoabsorvidospeloskaorshsao longodotempo.Porém,apósafundaçãodeUntherak, akaita só podia ser dançadanapresençada soberana e commelodiascompostasemseu louvor.ApráticadadançaresistianoSegundoBosque, longedosouvidosdosÚnicos,aindaquedeformaquasequesilenciosa,paranãochamaraatençãodosAutoridades.Aoredorde fogueirasesoba luzda lua,sinfosdavampiruetasecambalhotas,comumritmoimaginário dentro das suas cabeças. Alguém batia apenas duas palmas, e o compasso estavaditadoparaorestantedadança.Àbocamiúda,aquelaeraconhecidacomoakaitasilenciosa.

Oskaorshshaviamabandonadoatradiçãopornãoteremamesmafacilidademusicalqueossinfos.Raazi,noentanto,praticaraakaitaquandoerapequena,enquantoamãeiatrabalharnoTeareadeixavanacompanhiadossinfosdoSegundoBosque.Eleslheensinaramqueamúsicatocadadentrodacabeçaeraumsegredoqueninguémpoderiatirardela,aocontráriodoouroe

detudoomaisquepoderiaserroubado,vendidooudestruído.—Quandoumamúsicaéensinadaaalguém,elasetornacapazdevivermaisqueosnossos

corpos—disseracertavezumasinfochamadaFrizzparaumapequenaeatentaRaazi,aindacommuitascoresparaaprender.Comuma flautacurta transversal, a sinfosabiaencantarpássarosparaqueelesvoassememcírculoselaboradosaoseuredor.Antesde lheensinarakaita, Frizzadaptou para a criança o ensinamento teórico sobre a antiga tradição: — E a música é umpresentequevocêpodelevarconsigodepoisquetiverabandonadoocanväs!

Entãoelasoprou,baixinho,umarápidamelodiadeapenasquatronotas,queRaazidecoroulogonas primeiras audições.Nomeio de um círculo de sinfos, que tinhampraticamente suaaltura, Raazi dançou a kaita pela primeira vez, frente a frente com Frizz, ambas semovimentandoaosomque tocavaapenasdentrodesuasmentes.Foiaplaudidapor todosaoterminar,ofeganteecontente,epresenteadacomumagenerosacumbucadecaahwah—umabebida forte e escura feitada infusãodo fruto roxodemesmonome,que,por suavez, eradeorigemkaorsheforaabsorvidapelossinfos.

Aquela noite foi marcante na existência de Raazi, assim como Frizz e a melodia simples.Todas as vezes que a kaorsh brigara ou lutara por algo, amúsica ditava osmovimentos e osataques,numakaitamortal.AflexibilidadeeaagilidadedeRaaziforamcultivadasdesdecedo,eelajamaisdeixariadesergrataporaquelepresentequenuncaseriaperdido.

Abraçandoosjoelhos,akaorshagoraobservavaacasaemchamas.Alutanãodeixaradeserumadançaemvoltada fogueira,afinal.Yanishaestavaaoseu lado,namesmaposição,o fogorefletidodemaneiraúnicanapelenegraeforjandoumaimagemnaretinadeRaaziqueseriatãoduradouraquantoasmemóriasdainfância.Asduasficaramassim,emsilêncio,comasarmaseosacodedinheironagrama,atéachegadadeumadúziadesinfosdoSegundoBosquealarmadoscom o incêndio. Solícitos, eles se ofereceram a trazer pipas d’água com seus betouros, masYanishameneouacabeça,pensativa.

—Nãoseránecessário.Deixemqueimar.Elesrespeitaramadecisãodakaorsh.Umdeles,delongoscabelosazuladoschamadoPryllan,

ofereceuabrigoàsduasentresuasárvoresnoSegundoBosque.—Vocêssempreserãoamigasdossinfos, fiquempor láotempoqueprecisarem.Ficaremos

felizesemrecebê-las!Asduasaceitaramaoferta,eRaaziapertouamãodePryllan.—Obrigada.Prometoquenãoserápormuitotempo.Pryllantrouxecaahwahforteparaasduas,eRaazisepreparouparavoltaraoMiolo.Ossinfos

improvisaram uma tala para o braço ferido dela e aplicaram uma pasta em seu ombromachucado:umunguentogeladoecomodormarcantedecânfora.RaazisedespediudeYanishacomumbeijo,ignorandoadoreocansaçoquedominavamtodooseucorpo,sentindo-semaisacordadaquenuncacomoefeitodabebida.

FoiumalongaeobstinadacaminhadaatéoTear,duranteaqualRaazisóconseguiapensarna

conversaqueteriacomHerk.

O Autoridade não deu as caras pelo Tear até cerca de cinco horas da tarde, quando enfimapareceu,andandodeformabastantecasual,peloscorredoresentreostearesqueRaazioperava,realocada para uma atividade em que pudesse trabalhar com um único braço. A licença paravisitaraPadiolaforanegadapelaMestraTecelã,sobaalegaçãodequeakaorsh“nãoestavatãoruimassimparafugirdotrabalho”.

—Alémdisso,vocêdeveriasermaisresponsávelduranteseuDiadeLouvor—falouavelhaMestraTecelã,comdesagrado.—Nãovamosficardesfalcadosporcausadesuaimprudência.

Raaziengoliuairritação,masdeixouescaparamanchaazulaoredordoolho,queaindaestavalá quandoHerk apareceu, asmãos cruzadas às costas emancando sem preocupação alguma,acompanhadodeoutrosdoisvigiashumanos.

— Ei!— gritouRaazi, apontando para o homem e disparando no corredor, causando umadistraçãoentreoskaorshsfiandeiros.—Vocêquebrouonossoacordo!

—Alto,serviçal!—bradouumdosguardasaoladodeHerk,erguendoamaçaesendoimitadopelooutrooficial.—QuempensaqueéparagritarassimcomumAutoridade?

—Acalmem-se, guardas—disseHerk, tranquilo, abrandando-os comumgestodisplicente,sem tirar os olhos de Raazi. — Posso lidar com ela, nos deixem a sós. Apenas façam osbisbilhoteirosvoltaremaotrabalho.

Os guardas pareceram frustrados por serem impedidos de entrar em ação, mas saíramdescontando a raivanos servos, gritandoparaque voltassemos olhospara seus teares.Raazicontrolavaavontadedeterminaroquehaviacomeçadodiasantes.

—Então…TanNurten!—exclamouHerk,tratando-apelosobrenome.Seusolhosrecaíramnoombrodakaorshenobraçoimobilizadopelatala,eohomemfezumacaretaexagerada.—Nossa,vocêestápéssima!Parecequefoiatropeladaporumgrilofante…

—Caleaboca,desgraçado—sibilouRaazi.—Vocêarmouumatocaiaparamim!—Eu?Não!—Ohomemfezcaradequemestavatremendamenteofendido,levandoamãoao

peitoefalandobaixo.—Entãoéporissoqueestánesseestado?Vejabem,entendionossotrato.Aliás,comopoderiaesquecer?NemaenfermariadaPadiolaconseguiudarumjeitonoquevocêfez no meu tornozelo… Ah, e tivemos sucesso! Tudo corre conforme o planejado. Já fiz arecomendação de sua luta na Arena para a comissão organizadora. O Festival daMorte seráanunciadoaindahoje,e…

—Caleaboca—repetiuela,interrompendo-o,eHerkarregalouosolhosdeumjeitocômico.—EuseiquevocêmandoumeseguiremparaforadoMioloatéolugarondepasseianoite.Masadivinhe? Vai ter que gastar aindamais do seu dinheiro sujo commercenários se quisermematar! Fale com o capanga que sobrou ou pergunte aos que viraram cinzas. Yanisha e eu

estávamosmesmoprecisandodeumtreinoparaoFestival.—Aaaaah,agoraestouentendendo…De fato,ouviosguardascomentandosobreumsaque

malsucedido no lar de um... hã... casal de mulheres. — Herk crispou os lábios, fingindopreocupação. — Ela é a “outra pessoa” que você quer com você na Arena, não é? Essa tal deYanisha?

—Vocêéumpéssimomentiroso.—Evocêéaindamaisburradoquepensei.Porqueeu,falidocomoestouapóssuaextorsão,

pagariaqualquerquantiaparaquealguémamatasse,sedaquiaduassemanasvocêserámortanafrentedeumaenormeplateia?

—Vingança.Orgulho ferido.Uma tentativade recuperar oouro fazendo tudoparecer umacidente.

Herkcruzouosbraçosediminuiuadistânciaentreelesemumpasso.Elesorria,ameaçador.—Sãoboasteorias.Eudeveriaterpensadonisso...Mas,sabecomoé,tambémtemmuitagente

poraíquenãoencarabemessacoisademulhercommulher.—Comoé?—Shhhh,nãoseexalte…Vamostentarparecercalmos.Nãomeforceasacaraminhaclava.De

qualquerforma,sempredesconfieiquevocêgostassedamesmacoisaqueeu,sabia?—Eununcaescondi,seumaldito.— Mas também nunca alardeou, como os homens fazem. O fato é que existem muitos

cidadãos por aí que consideram seumodo de vida pecaminoso. Una tolera,mas não aprova,comovocêbemsabe…Maseuachoquevocêécorajosa!Contantoquenãoseesqueçadadádivaqueasoberanalheproporciona,podefazeroquebementenderemseuDiadeLouvor.—Herkolhouparaoslados,comosedesconfiasseatédesuasombra,esussurrou:—Sónãováesquecerqueoperigorondaporaí!

Raazi engoliu em seco a provocação e continuou encarandoHerk sem piscar. Ela poderiaacabar com ele ali mesmo, quebrar o pescoço do homem, mas, muito provavelmente, seriaexecutadalogoemseguida.Conseguirialevaralgunsguardasantesdemorrer.Porém,sefizesseisso,Yanishaficariasozinhanamissão,oqueeraimpensável.

Herk segurouo cinto comasduasmãos e contemplouaproduçãoao redor, exalandoumsuspirodesatisfação.

—Bom,chegadepapo.Precisamostrabalhar.Estimomelhorascomseusferimentoseesperoquesuacompanheiraestejabem.—OAutoridadedeumeia-volta,chamouosguardasdevoltacomumassobioevoltou-sederepenteparaakaorsh:—Ah!EboasorteparaasduasnaArena.Estareitorcendoporvocês.

Raaziencarouospés,sentindoosanguefervereosferimentosarderem.Voltouatéseupostocaminhandoporentreascentenasdefiandeirosconcentradosemseusserviços,osomfamiliareaomesmotempoopressordostearesembalandooambiente.

Quando se sentou de frente para a máquina, reparou que havia um pequeno frasco

embrulhado em papel de pergaminho pardo. Reconheceu seu nome completo gravado emcaligrafiafina.

—Deixaramissoparamimagora?—perguntouelaàkaorshnotearaolado.Amulherdeudeombros,malolhandoparaRaazi,quedesembrulhouofrascoelogosentiu

cheirodecânfora:YanishaePryllandeviamterlheenviadomaisunguento,viafalcão.Elaficouimpressionadacomarapidezdaentrega;emgeral,asencomendasdemoravamdiasnatriagemdoPoleiro.

Raazi não esperava sorrir após tudoo que aconteceu,mas assimo fez.Abriu a tampa, queestavabemapertada,eosorrisoquemalhaviasurgidosefoi.Fechouofrascoomaisdepressaquepôdeeolhouparaoslados,alarmada.Esealguémtivessevisto?Umdosguardasquevigiavaosetorestavaperto,nafileiradetrás,masosolhosdeleestavamvoltadosparaoutradireção.

Alémdisso,oskaorshsestavamdecabeçabaixa,absortosemseusteares.Raaziabriuofrascodenovo,comcuidado,comosecontivesseumaserpente.

Ocheiroeradeunguento,masolíquidonãoeraverde.Eravermelho.

5

Ainda do lado de fora, Aelian notou que o Pâncreas de Grifo estavamais barulhento que ohabitual.

Otrajetoatéatavernaeratranquilo,semanecessidadedesubirladeirasouescadasíngremes,já que ela ficava no início do declive dosAssentamentos.O rapaz, porém, estava cansado detodososmodospossíveise imagináveis.Sóqueriaumacervejaouqualquerbebidaquefizesseseucorpoesuamenterelaxarem.

OsterrenosaoredordoPâncreasnãoeramosmaispopulososdosAssentamentos,aindaquetoda semana surgisse alguma novidade na paisagem: uma casa a mais, outra a menos, umcômodo espremido entre duas moradias, um deslizamento ou um barraco queimado. Sempercebernenhumdetalhediferente,Aelianseguiudiretoatéoestabelecimento.

Assim que abriu a porta, foi recebido pelo alvoroço familiar de conversas eufóricas etumultuadasetomouumsustoaoverBarneCanivetenamesamaispróximadaentrada.Antesdepensaremqualquerdesculpa,reparouqueosdoisestavamacompanhadosporumvelhodedentespodreseumanãomagro(algorarodesever).Osquatrocompartilhavamumcachimbomanchadoebaforavamumafumaçaocredecheiropungente:fumavamcarvão(oque,decertaforma,explicavaofenômenodoanãomagro).Tinhamosolhosinjetadoseestavamforadesi,os corpos fazendo omínimo esforço possível, simplesmente para que eles não colocassem aponta errada do cachimbo na boca. Aelian comemorou por dentro, pois ninguém naqueleestadolhecobrariaumadívida.

Foiatéobalcão,ondeummeninodecercadedezanosserviaaguardenteparaumkaorshqueoscilavaentreoazuleoverde,tentandoimpressionarumahumanaqueriaàtoa.

—Olhasó!Tomcontratouumsinfoparatrabalharparaele,foi?—disseAelian,bagunçandoocabelodogarotoerecebendoemtrocaumacaretaeumsorrisoenvergonhado.—Ouvocêéumanãosembarba?

—Muitoengraçado!Umdiavoutermaisbarbaquevocê!—respondeuomenino,colocandoumarolhanagarrafaecruzandoosbraços.

—Vaimesmo.Minhabarbasónãoépiorquemeufígado.Cadêseupai?—Láatrás.Foipegarumbarrilderum.—Hum,entendi.Mevêumacerveja,então!Preta.Odiafoidifícil,eachoqueumgolinhode

Máculavemacalhar.AcervejapretadeUntherakerachamadadeMáculaporcausadacordepicheedoamargor

acentuado.—Vocêvaipagar?—perguntouomenino,sorrindo,semdescruzarosbraços.

Aelianarregalouosolhoselevouasmãosaocoração,comosetivessesidoapunhalado.— Tomás, filho de Tomás, soberano do Pâncreas de Grifo… É assim que trata alguém que

segurouvocênocolo?Quesónãotrocouassuasfraldasporquevocêsecagavatodoantesdechegarmoscomostrapos?

—Olhaodrama.—Deixeeucontarissoparasuamãeevocêvaiseencrencar,mocinho.Taönmaestáaquiou

noMercado?—NoMercado.Foicomprarfarinha.Fazaqueletruquecomseutotemquetalvezeuarranje

umadosedealgumacoisaparavocê!—Aaaah,gostodoseu jeitodepensar,rapaz!Vocêéumnegociadornato,PequenoTom—

disseAelian,tirandodopingenteodadodeoitoladosefazendoomeninoseinclinarumpoucomaisnobalcão.—Não.Tireessassuaspatinhasdomeudado!Semtocarnototemalheio!

Ogaroto riu, eAeliancomeçouamovimentarodadoentreosdedoscomumahabilidadeimpressionante. Entãoouviu aporta se abrir e viuopai domenino entrar comumpequenobarrilnosbraços.ElesorriuparaAelian,queseguiufalandocomosenãootivessevisto.

—Então,seeutiraronúmeroquevocêescolher,ganhoumabebida.Certo?—Certo!—Ficasendoumsegredonosso?Seupainãovaisaberdenada?—Não!Euqueroquevocêtireo1!Aelianfranziuassobrancelhasefechouodadonamão,enquantoTomás,debraçoscruzados

atrásdofilho,riaebalançavaacabeça,oqueosdeixavamuitoparecidos,tirandoofatodequeotaverneirotinhaumabarrigaprotuberante,acabeçacalvaealinhadaservidãoprecocetatuadanorosto.OPequenoTomtinhaoolharvidradonamãodeAelian,quefingiuqueiajogarodadoe…

— Tom! Que bom que você chegou! Seu filho ia me dar uma bebida gratuita sem suaautorização.

OPequenoTomabriuaboca,surpreso;opaiestavaparadoatrásdele,àsgargalhadas.—Ah!—OgarotocorouedeuumsoconobraçodeAelian.—Seutrapaceiro!—Vocêouviutudo,nãofoi,Tom?Nãoachaquemereçoumabebidaporterdenunciadoesse

esquemadecorrupçãoterrívelqueaconteciabemdebaixodoseunarizdebatata?Ogarotoestavaenvergonhadodemaispararirjuntocomopai,quebagunçouocabelodelee

tirouumacanecagrandededebaixodobalcão,enchendo-adecervejapretaedeslizando-anobalcãoparaAelian.Quandoofalcoeirofoipegá-la,Tomásapuxoudevolta.

—Nadadeficarviciandoomeufilhonessaporcariadedados,ouviu?—Falouohomemquetemmesasdeapostasnaprópriataverna—retrucouAelian, irônico,

enquantoprendia seu totemdequartzoverdedevoltano cordão.—Mas tudobem,nãovouensinarnenhumtruqueaoPequenoTom.Vocêtemaminhapalavra!

— Disse o homem que é conhecido como o maior mentiroso do Miolo — respondeu o

taverneiroemtréplica,passandoacanecanovamenteparaele.Aelianaergueu,sorrindoparapaiefilhoàsuafrente.—Aspessoasfalamasmaioresbesteiras—disseAelian,sorvendoumlongoeaguardadogolee

estalando os beiços. Aquela leva estava bastante forte. — Nem acredito que enfim estoubebendo…Omovimentohojeestábom,hein?

Tom assentiu devagar, dando uma olhada geral no próprio estabelecimento apinhado degente. Ele também parecia surpreso com aquilo. Pediu para que o filho fosse servir asmesaspróximasàsjanelas,deuavoltanobalcãoesesentouaoladodeAelian.

—Achoquetodomundoficouanimadocomoanúncio.Estãoespeculando,discutindo…—Queanúncio?—Vocênãosoube?DoFestivaldaMorte,oras!Daquiaduassemanas.Nãoescutouninguém

comentandonasruasnempassoupornenhumArautolendooinforme?Fazalgumashorasqueanunciaram.

A cerveja subiu pela garganta de Aelian, duplamente amarga agora. Repousou a caneca nobalcão, sentindo evaporar a alegria que havia substituído seus pensamentos pesados. Agoraentendiaoqueoanãoquelhederacaronamaiscedoquisdizercom“boatos”.

—Euachoque…achoquenãopresteiatenção.—Ei,rapaz.—Tomrepousouamãorechonchudanobraçodofalcoeiro.—Seiqueissonão

traz boas lembranças para você. Também não gosto da ideia. Seu pai… Eu sinto falta deletambém.Eraumbomamigo,assimcomoPan…Masvocêsabe,aspessoasgostamdesangue!Ficam animadas! Poucos aqui têm laços verdadeiros com alguém, e são aindamenos os quesentem o peso da perda. Pelo contrário, eles se divertem com toda essa porcaria… até seremacusadosdealgumcrimepelosAutoridadeseprecisaremlutarpelaprópriavidanaArena.Masentãosurgiráoutroindivíduonolugarvagonasarquibancadas,prontoparariregritarcomoespetáculo.

—NãoachoquehojeemdiaalguémseriatãoburroapontodepagarparamorrernaArena—disseAelian,osolhosperdidosnaespumadacaneca.—Todaessagentejádeveteraprendidoqueéimpossívelvencer.

— AenochOruz podia sermuita coisa,mas não era burro, garoto. Se ele se inscreveu, foiporqueacreditavaterumachancerealdevenceredarumavidamaisdignaparavocêePan.

— É — falou Aelian, bebendo para afastar as imagens terríveis que despontavam na suamemória.—Masacreditouerrado.

—Nemtenhocomodiscutiresseassuntocomvocê,Aelian.Nãopossocompreendersuador.Sópossocontinuarlhedandocerveja,mesmosabendoquenãovouverummalditotostãodessasuamãofechada.

Osdoisriram,umcommenosintensidadequeooutro.—Olha,Tom…tenhoumpunhalbembonitoaqui,queeudeveria ter tentadopenhorarou

vender.Açovirgem.Coisaantiga,aoqueparece.Sequiser,éseu.

—Tsc.Deixaquieto.Vendaopunhaldepois,ouguardecomvocê.—Tomindicouamesamaispróximadaportacomummovimentodecabeça.—SoubequeteveumprobleminhacomBarneCanivetemaiscedo.Talvezprecisedealgoparasedefenderdeumataquetraiçoeiro.Fiquedeolho,hein?

—Podedeixar.Dequalquerforma,nãoachoqueeuestejaemperigocomelesnesseestado—disse, observandoBarnmordendo os dedos damão direita eCanivete acariciando o própriorostocomumolhardistante.

—Malditos viciados— falou o taverneiro,meneando a cabeça,mas contrapôs: — Bem, aomenostodosparecemestarsedivertindonoPâncreashoje.Quemnãoestádoidodecarvãoestáquasebêbado.

Aelianbebeuoutrolongogoleeseinclinounobalcão,olhandoportrásdeTomealémdokaorshexibidoeaparceiradele.Umhomemdebarbabifurcadaecapamarrombebia.Elepareciafurioso.Conformelevantavasuacanecaderum,erapossívelverumabandagemensanguentadaemaldisfarçadaemseubraçodireito,poucoacimadocotovelo.

—Nemtodos.AquelesujeitonãotrabalhanoPoço?—Hum.IdrazFaca-Cega.Sim,éorufiãodoPoço.Chegoucedohoje,bemenfezado.Emgeral

ficaaquiquandoquerevitaralgumaencrenca,jáqueporládevebeberdegraça…—Beberdegraça?Nemtododonodeespeluncatemomesmocoraçãoquevocê,Tom—disse

Aelian,observandooPequenoTomrecolhendocoposvaziosdeumamesaeequilibrando-oscomhabilidadenumabandejaenquantodesviavadeumsinfoestabanado.—Omolequepareceestarindomuitobem.Eleéesperto.

—Atédemaisparaomeugosto.Sóficofelizporelenãoterumalinhatatuadanorosto,comonós—murmurou o homem, olhando para o filho. —Não desejo oMiolo para ninguém. Euadorariaquevocêconseguissesuasemiliberdade,Aelian.

—Obrigado,Tom.Masaindaestouumpoucocurtodegrana—respondeuAelian,comumrisovazio.

PensavaqueoPequenoTomcresceriamelhorali,nosCamposExteriores,pertodaBorda.Nãoqueelefossetermenosproblemas,masseriamproblemasdiferentes.

Tomse levantouparaatenderumgrupodeanõesqueacabarade chegar—conversando, éclaro, sobre o Festival daMorte—, e Aelian se pegou pensando emKivan, que envelhecera emorreraàsombradaestátuadeUna.Jáhaviapresenciadomuitasmortesaolongodavida,masaquelaoinquietava.Principalmenteporquesesentiaresponsávelporela…

HaviaalgoqueAelianpoderiafazerquantoàsmortesqueoacompanhavam?Os anões expunham suas conjecturas para o Festival daMorte cada vezmais alto. Aelian

respiroufundo,virandoorestodacervejaelevantando-se.—Tom,voutomarumarejávolto.Deu um tapinha na cabeça do Pequeno Tom ao passar por ele, lançou um último olhar

piedosoaoscatatônicosBarneCaniveteesaiudameia-luzbarulhentaeabafadadoPâncreas.

Fazendojusàsuafamadementiroso,Aelianfoicaminharenãovoltoumais.

Sentindo que o álcool o deixara um pouco mais disposto, Aelian subiu os morros dosAssentamentosatéquaseapraçaprincipal,umaespéciedeclareiranomeiodosbarracosondeosmoradoresda região confraternizavamebrigavam.Durante todoo trajetonas ruas estreitas,olhavaparaopedaçovisíveldecéuentreas lajes,porentrevaraisebandeirolasestendidasemzigue-zague, procurando por Bicofino. Sabia que o falcão estaria se alimentando, e só entãopercebeuquedeveriaestarfazendoomesmo.

NãoqueriavoltarparaoPâncreasouiraqualqueroutrataverna,poissabiaqueesseslugaresestariamcontaminadospelomesmoassunto:oFestivaldaMorte.Atéosgruposdecriançasdeváriasraçasnasruasbrincavamde“Arena”.ViuumagarotinhaenrolandoumcachecolnacabeçaesaindodetrásdeummontedelixogritandoqueeraVenoma,amaiorassassinadeUntherak.Maiormenorassassina,pensouAelian.Aomesmotempoquechegavaaserengraçado,aquilosóoincentivavaaseisolar.

Conformeescurecia,suafomeapertava.ReconsiderouvoltaraoPâncreas,poisTomsempreodeixavadormirnodepósitoapósojantar.Contudo,sabiaquesesentiriamalcomasconversas,queemalgummomentosevoltariamparaseuspaisouparaKivan…

Ouviuumguinchovindodocéucrepusculareestendeuobraçoparao falcãopousar,comirrefutáveispenasnegraspresasaobico:comcerteza,aavehaviaenfrentadoumabutre,jáqueasujeiradosAssentamentosfaziacomqueocéufossedominadoporeles,enquantoochãoeraterritóriodosratos.

— Pelo jeito já jantou, hein? — perguntou ao pássaro, tirando as penas do seu bico compaciênciaenquantooanimalseesquivavacomoumacriançateimosa.—Issomedeuumaideiadeondeconseguiralgoparamataraminhafome…Ai!

Noalto,completouAelian,empensamento,apóslevarumabicadadeadvertênciadoprópriofalcão.

OSiloeraafortificaçãoquearmazenavaamaiorpartedacomidadestinadaaosservosdoMiolo.Por isso, o lugar também tinha lixo e restos estragados em demasia, recolhidos diariamentepelosesfomeadosqueviviamnosbecosaoredor.O lugareratãoabarrotadodesobrasqueosAutoridades sequer se esforçavam para vigiá-lo. Havia apenas gente rivalizando com ratos ecocatrizes, revirando as frutas e os legumes em estado deplorável. As paredes dos becospróximosaoSilodavamumavantagemaAelian,poiseramasmelhoresparaseremescaladas:deterioradas, semmanutenção, commuitos buracos causados pelo desgaste, perfeitos para oapoiodemãosepés.Eomelhor?Ninguémnuncaolhavaparaoalto.

Transpondo com cuidado as ameias reforçadas por lanças, Aelian chegou até a entrada doSilo,ondesacosdealimentoseramempilhadosemlongasfileirasaoarlivre,comotrincheiras,esperandoparaseremlevadosparadentropeloscarregadoresnamanhãseguinte.Eraassimquecomida aceitável se transformava em algo próximo a lavagem: aqueles alimentos ficavam àmercêdasintempériese,àsvezes,tinhamqueaguentartempestadesatéseremarmazenadosdaforma correta.Odesperdício era lamentável,Aelianpensava, quando imaginavaoquanto eradifícil conseguir comidanosCamposExteriores. Porém,não conseguiadeixar de sentir umagratidãoegoístaporaquelesistemafacilitarsuabusca.

Sacouopunhalecortouumdossacos:cebolas.Revirouosolhosefoiapalpandooconteúdodetodaafileira.Porfim,percebeuquetodaaquelamontanhadealimentoseramsócebolas—oquenão era exatamenteo tipode coisa que se desejava apósum longo jejum,mas aomenosforrariaoestômago.

Olhouporcimadatrincheiradesacosdecebolasparasecertificardequenãotinhanenhumperigoporperto.Então,escorregouatéochão,entreaamuradaeaúltimafileiradesacos,deondepoderiaterumavisãoparcialdopátioemfrenteaoSiloenquantodescansava.Erararoquealguémespiasseolabirintodecomidaduranteanoite,e,naquelelugar,Aelianestavaapoucosmetrosdasrotasdefuga,fosseobecoouotelhadodaconstruçãoaolado,aEstrebaria,queeraligadaaoSiloporumaestreitapontedepedraalgunsandaresacima.

Comosempre,AeliannãosabiaondeBicofinoestava.Eraatémelhorqueaavefossedarumavolta mesmo, pois ele não queria ter sua posição denunciada. Observou o pátio, poucomovimentado àquela hora da noite,mas não vazio: alguns homens doCanil rondavam comgnolls em correntes. Tanto os animais quanto os guardas pareciam inquietos, eAelian levouapenasalgunsminutosparaentender.

Umforterangidoenferrujado,seguidodeumaalgazarra,indicouqueoPortãoSuldoMiolohaviasidoaberto,oquenãoeracomumapósopôrdosol.Iluminadoporhumanosesquálidoscomtochasdefogobranconasmãos,umgrupodecercadequarentaanõesapareceuminutosdepois,acompanhadosporsinfos,queconduziamcarroçasbemcarregadasatreladasabetouros.Osanõestiravammaterialdedentrodelas,grandespeçasdeferroemadeira,easmartelavamnochão, construindo, com habilidade impressionante, uma espécie de trilho improvisado, bemparecidocomosquearaçautilizavanasescavaçõessubterrâneasparaotransportedepedraseminérios. No entanto, aqueles trilhos eram bemmaiores emais espaçados, tanto entre umatábuaeoutraquantoentreasduaslinhasmetálicasparalelas.

Um pouco afastado do grupo, um anão acompanhava a operação. Ele andava de costas,gritandocomosdemaisdesuaraçaeapontandoummarteloparaeles,corrigindooserrosquepercebia entre uma estaca e outra.Mesmo se não visse a pele escura e a barba branca, Aelianreconheceria o andar cadenciado de Harun a qualquer distância. O Autoridade havia sidodeslocadoparaaquelaatividadenacaladadanoite.

OavançodaconstruçãodostrilhoshipnotizouAelianpordiversosminutos,impressionado

comacoordenaçãoeovigordosanões.Apesardeostrilhospareceremsólidoseseguros,nãohaviaumacabamentofinonoserviço,comosefossealgotemporário.Elepensavanissoquandoum aflitivo rangido metálico arrepiou todos os pelos de seu corpo. As grandes formas queassomaramnopátioabaixojustificaramoexageronotamanhodostrilhos.

Eraumaespéciedecaixadeferromaciçosobrerodas,enormeeremendadacomcentenasderebiteseplacasmetálicas.Eramaisaltaqueumacasahumana,comalgunsfurosnotopoenaslaterais,paraqueacriaturaládentropudesserespirar.Doisgigantes,quetambémdeviamtersidodeslocados das suas funções como guardiões dos Portões, puxavam correntes atreladas aovagão,enquantoumterceiro—umaaberraçãodeduascabeçasnumsópescoço—empurravaaparte de trás sozinho. Era Grork. Aelian se lembrava dele cuidando do PortãoNordeste. Emgeral,ogiganteeravistogritandoconsigomesmo,jáqueassuasduascabeçaspareciamnãoseentendermuitobem.Naquelemomento,porém,ambasfaziamacaretamaismedonha,devidoaoesforço.

Era difícil imaginar algo que precisaria da força de três gigantes para ser carregado. Ascorrentesqueoslacaiospuxavameramformadasporimensoselosenferrujados.Davaatéparaverosangue,nasescápulasdosgigantes,regiãoemqueometalosferia.PorqueUnanãolhesordenavaumabalsaparaotransportedaquelacoisapeloscanaisquepermeavamoMioloouatémesmoorioAbissal?

Comoumtrovãoinesperadonumanoitecalmaequente,umurrodeflagrou-sepeloarefezAeliantamparosouvidosporinstinto.Osenvolvidosnaoperaçãoláembaixofizeramomesmo,eosbetourosquepuxavamascarroçasprecisaramseracalmadoscomurgênciapelamúsicadosseussinfosantesquedebandassem.

O rugido vinha de dentro do vagão. Era um grito entrecortado como os guinchossobrepostosdemilporcos.Logodepois,vieramgolpesdedentrodacelasobrerodas.Fosseláoqueproduzisseaquelesomhorrendo,eraummonstroforadaescaladequalquerbestaemqueAelian já tinha posto os olhos. O grito continuava, fazendo os betouros agitarem as asas eprecisarem ser contidos pelas flautas dos sinfos, que surgiramdo fundo da comitiva. A jaulachacoalhava bastante, obrigando os gigantes a largar as correntes para tentar estabilizar oveículoemantê-lonostrilhos.Ficouclaroqueoseralidentroteriafeitoumabalsaafundarnoprimeiroataquedefúriacomoaquele.Ostrilhoserammaisquejustificados.

Após acalmar os betouros, os sinfos se posicionaram ao redor do vagão e tocaram umamelodiaparaacalmara fúriadabesta.Noentanto,nadaestava funcionando,eatéosgigantespareciamterdificuldadedemanterajaulaestável.

AelianseseguravanasameiasdoSilocomforça,deixandoosnósdosdedoscompletamentebrancos. Quase podia respirar o nervosismo dos homens, anões, gigantes, sinfos, betouros egnolls…Mesmo estando a uma boa distância, sentia uma vontade enorme de se encolher oucorrerparalongedabocaqueproduziaumsomtãohorrendo.

Harungritavaparaqueosanõesvoltassemaotrabalhonostrilhos,maselespareciamhesitar,

provavelmente com medo de que o monstro se libertasse da prisão. O Autoridade tinha omartelonumadasmãose,comaoutra,buscavaummachadopenduradonocintomisturadoàssuas inúmeras ferramentas, como se aquilo fosse ajudá-lo contra aquelemaldesconhecido.Acanção dos sinfos continuava se provando ineficaz, e mais soldados vinham do final dacomitiva,lançaserguidaseapontadasparaovagão.Amaioriadeleseraformadaporhumanos,lideradosporumAutoridadequeAeliannuncatinhavisto.Elegritavacomosservosaoredor,dizendoqueeramumbandodemedrososindignosdapiedadedeUna.Tomoualançadeumdoshomensechegoumaispertodacaixametálicaquequalqueroutro.Estocoualançaporumadasaberturasderespirolaterais,parapuniromonstroefazê-losecalar.Uma,duas,trêsvezes.

Ohomem,defato,fezoquenemoencantamentomusicalhaviaconseguido.Masnãodeumaformaqueterminassebemparaele.

Naquartavezqueenfioualançapeloburaco,ahastefoipuxadaparadentrotãorápidoqueoAutoridadesóconseguiusoltá-laquandoobraçojáestavaenfiadoatéocotovelo.Eessefoiotemponecessárioparaqueacriaturaencontrasseumlanchinhoqueasossegasse.Ogritodelacessouaomesmotempoqueodohomem,agoramaneta,começou.Odesesperodeleeobarulhodeossos sendo trituradosalcançaramosouvidosdeAeliandooutro ladodapraça, acimadoSilo. Alguns soldados e guardas recuavam enquanto alguns poucos tinham a coragem de seaproximardajaula.

Comorostocoladoàaberturaeobraçosendodevorado,ogritodoAutoridadecessouderepente — com o som de uma abóbora sendo golpeada por uma lança, a cabeça dele foiatravessadaporalgovindodedentrodajaulaquepareciaumalâminacurva,masaindamaislargaqueumacimitarra.Eraumaespéciedeferrãoque,mesmonofulgorâmbardastochas,brilhava,emitindo um verde doentio, e derramava uma espécie de ácido nas costas do condenado. Ocorpotinhaespasmosconformeapelequeimava.

Oferrãoseretraiu,eohomemcaiuparatrás,comumburacofumeganteabertonocrânioeumbraçoamenos,esguichandosanguepelomembromutiladoederramandofluidocerebralemmeioaoácido.EnquantotodosseafastavamaindamaisdoAutoridade,comoseeletivesseummalcontagioso,Harunabriaespaçoentreossoldadosabestalhadoseembasbacados,avançandoatéocentrodasatenções.Então,comumúnicogolpedomachado,separouacabeçadorestantedocorpoespasmódico.

—Devoltaaotrabalho,enãotoquemnocadáveratéqueovenenoseque!—gritou,voltando-se para os construtores de trilhos, que tinham os olhos esbugalhados. Até os gnolls nascorrentespareciamamuados.—Estãoesperandooquê?Vamos!

Oestardalhaçonajaulaenfimcessou.Acriaturamastigavaseuaperitivonoturno.JáAelianlargouacebolamordidanotelhado,perdendooapetitederepente.

Acomitivasefoi,comumsegundogrupodeanõesaparecendoparadesmontarostrilhosapósapassagemdovagãometálico,seguidoporumcomboiodebetourosmontadosporsinfos,querecolhiamastábuaseasvigas,emaisumadúziadevassaloshumanossegurandoarchotes.AelianapertouosolhoseviuqueajaulatomavaadireçãodoPalácio,imaginandoseUnaseriaingênuaapontodeguardarumaarmatãopoderosalogoabaixodesuamorada.

AnãoserqueelesnãoestejamindoparaoPalácio,pensouAelian,comumacaretadepesar.Éclaro, aArena! Era tãoóbvio.A atrocidade grotescapresana jaula seria umadas atraçõesdoFestivaldaMorte,eosguerreirosquefossemenfrentá-laestavamcondenadosporantecipação.

Sua imaginação já conheciaaquele labirintoemocionaldecor e salteado:opaipisandonasuperfícienegradaArenaesentindoapressãodosgritos,dosxingamentosedosincentivosaoredor,doolharedapresençadeUna,domedopornãosaberoqueosportõescuspiriamnopalcodalutaequetipodedesafioenfrentaria…

Aelianfoilevadodevoltanotempo.

Osolpareciamaiorqueonormalnaqueledia.Aenoch,quedeveriaestaremseuDiadeLouvor,sedespediu do filho demoradamente, emotivo, alegando que faria trabalho extra no Miolo.Carregou-o nos ombros pelas ruas que levavam para fora dos Assentamentos,mostrando ospássaroseinsetosparaele,beijandoseurostoeoabraçandoforteacadaperguntatípicadeumacriançacuriosa.Atéentão,aquelecomportamentoporpartedopainãofaziasentido.Navoltaparacasa,PandissequetrabalharianascoletasdecaahwahparaconseguiralgumdinheiroextraeproibiuAeliandeseafastardosAssentamentos.Porém,todasascriançasdaruasófalavamdoFestival,doFestival…

AentradaparaassistiràslutasnaArenacustavacaro,masAeliansabiaaondeseuspésesuasmãos podiam levá-lo. Escalar a fachada da Arena de Obsidiana não seria tão difícil quantoaguentarosolescaldantequeimandosuacabeça.Empoleirou-senacoberturadeumdossetoresdestinadosaosAutoridadeseoutrosmembrosdistintos.Ali,eledividiaoespaçoapenascomospássaros, o sol e, de vez em quando, um diabrete-alpinista ou outro. Os únicos olhos que oenxergavamalieramosdaestátuadeUna—queAelianevitavaencarar.Eleslhedavammedo,comosenadaescapassedaquelasórbitasvaziasedouradas.

Permaneceu lá em cimapormais de três horas, sempre desviando o olhar quando alguémestavaprestesamorrer.Gnollsquepareciambemmaioresqueonormalnãofaziamdistinçãoderaçanahoradematar.Criminososecondenadossedigladiavam,eosquepermaneciamdepéenfrentavamleões-das-rochasearbopardos.

Nahoraemqueumdelesestavaprestesasucumbir,fosseservooubesta,AelianprocuravaaTribunadoTrono,asacadadoPaláciodeUnaqueeravoltadaparaaArena,deondeasoberanaassistia ao Festival, cercada por alguns Autoridades e os encapuzados da Centípede, sempre

tendoàsuadireitaoGeneralProghon,depé,tãoimóvelquantoaestátuadadeusa.Mesmodelonge, a presença imponente dele era uma espécie de mancha escura que saltava aos olhos,impossível de ser ignorada, aMácula queo recobria parecendomaisnegra a cada segundo.AcaveiradeouroqueeraamáscaradoGeneralbrilhava,numdesafiosilenciosoàluzdaquelatarde,assimcomoasjoiaseosadornosdeUna.

Apósquasetrêshorasdemortesemaismortes,Aeliansentiaumpoucodeinsolaçãoedornoestômago — não tinha se alimentado bem, e o apetite não viria fácil após tanta carnificinatestemunhada.Pensavaquetalvez fossemelhorvoltarparacasacomumtempodevantagemsobreospais, pois a caminhadaatéosAssentamentos seria longa.Porém,naquelemomento,trombetasanunciaramoprincipaleventodoFestival:osservosdoMiolodeUntherak,queseinscreveramnaesperançadeganharasemiliberdadelutando.

Aquiloaguçouacuriosidadedomeninoelhedeuenergiaextraparasuportarosoleafome.Eramcercadedezcombatentes,entreanões,kaorshs,sinfosehomens.Velhosenovos,adultosbemconstituídosejovensinquietos,todosarmadosatéosdentes.

Semavisoecomumintensoarroubodesurpresadasarquibancadas,osfossosnaslateraisdaArenavomitaramumaondadegnollsearbopardos.Logode início,metadedoscombatentestombou,enquantoogruporestantesejuntavanomeiodaArena,decostasunsparaosoutros,tentandoarmarumplanoàspressasconformeeramcercadospelasbestasselvagens.

Eramumanão,umaanã,umsinfo,umkaorsheumhomem—esteúltimo,deelmofechado,destacando-se conformeavançava coma lança, recuandoemseguidapara fortalecer aparedecircular de escudos que os cinco formavam. Ele gritava com os companheiros e pareciaempurrar os gnolls contra os arbopardos, uma estratégia inteligente, pois fazia com que ascriaturasatacassemumasàsoutras.

Opequenoespectadorclandestinoabriuumsorrisoaoperceberaespertezadoguerreiro láembaixo.Eleevitavaoconfrontodiretoeaindaassimnãosemostravacovarde.Aeliangostariadesercomoele,etorciaparaqueohomemconseguisseoprêmio.Elemerecia.

Otrabalhoemequipefuncionouatéoúltimoarbopardomorrer,aospésdocasaldeanões,queoabateramcommartelosmesmoferidosgravementepelacaudadobichoqueperfurousuascotas de malha. Os cidadãos foram à loucura, aplaudindo os cinco sobreviventes, quecomemoravam,exaustosejubilosos.

O homem, aclamado pelo público, tirou o elmo, e as arquibancadas gritaram o nome deAenochOruz,umservocomumquesobreviveraaosdesafiosdoFestivaldaMorte.

Aeliannãoconseguiaacreditarqueaqueleláembaixoeraseupai…Mas,sim,ocabelo,ojeitodeandar,apostura!Omeninoestavaentreochoqueeaalegria inesperadadesedarcontadetanta coisaaomesmo tempo, inclusivedo fatodequeopainãoprecisariamais trabalharnoMioloseisdiasporsemana:elesseriamumafamíliaunidaeficariamjuntosparasempre.

Então,astrombetassoaramdenovo.Todaaarquibancadasecalou,eAelian,mesmocomapouca idade, sabiaqueUna sepronunciaria. Ela estavadepé, quase tão altaquantooGeneral

Proghon,quepermaneciacercadedoispassosatrásdasoberana.Unaabriuosbraços,eAelianviuoscincoguerreirossobreviventes,seupaientreeles,ajoelharem-senochãonegrodaArena,emreverência.

Um Arauto gordo, que devia pesar o mesmo que um betouro, apareceu ao lado de Una,segurandoumpergaminhonegro.Suavozpodiaserouvidacomfacilidade,poiseleeraoúnicopermitido a falar naquelemomento.O silêncio era tão absoluto que umapessoano topodomonte Ahtul, do lado de fora de Untherak, poderia até ouvir o homem pigarreando paracomeçarsuafala.

—Odesafiodestesguerreirosaindanãoterminou—bradouele.HouveprotestosecomemoraçõesemtodaaArena.Aelianbalançavaacabeça,sementender.

Ossobreviventesolhavamparaoslados,confusos,massemsairdaposiçãodereverência.Unacalouatodosaocolocarumdosdedoscheiosdeanéisnafrentedoslábios,e,assim,oemissáriocontinuou,dizendoqueaquelasferasforamapenasaprimeirapartedodesafioequeumaúltimatarefaaindaseparavaoscincocombatentesdoprêmio.Dessavez,ninguémousouprotestaroucomemorar. O emissário informou que a soberana decidiria que criatura ou perigo elesenfrentariam,deacordocomsuavontadeeseujuízodivino.

Unanãopareciaseimportarcomoscincoindivíduosláembaixo.Elaencaravaoscéus,comoseolhardiretamenteparaosolnãofossedolorosoparaumadeusa.Porfim,abriuosbraçose,comsuavozquepareciacapazdefazermortosacordaremevivosdesistiremdesuasalmas,disse:

—OúltimodesafioseráProghon.Meubraçodireito,meuGeneral.Osilênciopersistiu.Namesmahora,ProghonsumiuentreoséquitoqueapinhavaaTribuna

doTrono.EledesceuasescadasatéoníveldaArena,seuspassosecoandonaacústicadolugar:metálicos,pesados,emcadênciafúnebre.Aelianfoiatéabeiradadacobertura,massuabocanãoconseguiaproduzirsomalgum.Queriagritaronomedopai,pedirparaelecorrerdali…Notouque os outros quatro combatentes pareciam confusos e desorganizados com a notíciainesperadae injusta.Aenoch,porém,estavaumpoucomaisafastadodogrupo.Pareciacalmoenquantorecolocavaoelmoelargavaoescudonochãoparaquepudessebrandiralançacomasduasmãos.

A porta logo abaixo da Tribuna se escancarou com um estrondo, e Proghon apareceu.Desarmado,emseupassolentomasconstante,avançounadireçãodocentrodaArenafazendosuacapaflutuaratrásdesicomoumamortalha.Aeliangritoucomtodaaforçaquepodia,eseuberroseperdeunoclamorquecomeçoucomoumaondanasarquibancadas.Ogarotocerrouospunhos, sentindo as unhas afundaremnas palmas das suasmãos e a visão clarear aindamais,comoseosolquisesseengolirtodooazuldoscéus…

O kaorsh e o anão avançaram sobre oGeneral aomesmo tempo, com espada emachado.Proghon parou os dois golpes juntos, segurando as armas pelas lâminas e arrancando-as dasmãosdosdesafiantes.Nummovimentocruzado,fezaarmadeumencontraropeitodooutroecontinuouavançando,implacável.Enquantoaanãeosinforecuavamsemnemmesmoperceber

o que estavam fazendo, apenas se deixando levar pelo instinto das suas pernas, Aenochaguardava, semmover os pés nem um centímetro. Aelian estendeu amão na direção do paicomosepudessealcançá-lo,esvaziandoospulmõescomumgritoasmáticoesentindoqueosoltinha ganhado a batalha contra sua lucidez…Revirou os olhos e desfaleceu, tendo apenas osabutresportestemunhas.

O que viu ao despertar foi a imagem que o assombraria pelo resto da vida, em sonhosperturbadosoudevaneiosdespertos:ocorpodopaisendoarrastadopordoisAutoridades,cadaum segurando uma perna. Não havia rastro visível da cor proibida no negrume do piso deobsidiana.Contudo,elaestavalá,aosmontes,camuflada.

Aelianvoltouaopresenteassustadocomosomdaprópriarespiração.OpátioabaixodoSilojáestavavazio,semnemsinaldostrilhos,eelenãosabiaquantotempohaviasepassadoenquantorevivia aquelasmemórias. Tentando acalmar as batidas de seu coração, ficou imaginando sealguémteriaacoragemdeseinscrevernoFestivalapóssaberemqueoúltimohaviaterminadocomaparticipaçãodopróprioGeneralProghon.Ea luzofuscantedesua lembrançatambémincidiusobreoutraquestão:

Casotivessesidoavisadoantes,seupaiteriasearriscado?—Você!Depé,invasor!Aelianestavatãoabaladoquemalperceberaospassosdovigia.Xingouasimesmoporter

baixadoaguardaecolocouasmãosacimadacabeça,aindadecostas…Enquantoosujeitonãovisseorostodele,haveriaumachancedeescaparsempuniçãoposterior.

— Vire-se devagar! — ordenou a voz, sublinhada pelo alerta inconfundível de uma maçabatendonumescudo.

Ofalcoeirofoisecolocandodepé,semsevirar.—Eusóestavadescansando,soudoturnodamanhãaquinoSilo—blefou,tentandoganhar

tempo.—Edormiunomeiodascebolas?Claro!—ironizouohomem,cutucandoomeiodascostas

do invasor com a ponta da maça. — Finalmente peguei você, Aparição! Sabia que não eramentira!

—Quem?—Vire-seagora!Aelianrespiroufundo…—Certo.Derepente…...Aelianderrubouduaspilhasdesacasdecebolaatrásdesi…—Seudesgraçado!

…ecorreu.Ovigiasoterradotentavaescapardaarmadilhaealardeavaaplenospulmõesapresençadeum

invasornoprimeironíveldoSilo.Aelian já escalavaa torre centralda fortificação, tentandochegaratéapontedepedraqueo levariaàEstrebaria.De lá,ele teriaacessoaostelhados.Nasalturas, o rapaz era como umpeixe na água, e os guardas jamais o pegariam— a não ser quetivessembonsarqueiroskaorshsparaatiraremnoescuro.

Ouviu o som de botinas e passos apressados ao redor. Ele só torcia para que ninguémimaginassequeoinvasorescalariaasparedes.Osreforçosquechegavamestavamalgunsmetrosabaixo,procurandonobecocheiodelixo,supondoqueofugitivohaviaarriscadopulardaquelaaltura.Quantotempoteriaatéquealguémresolvesseolharparacima?

Haviaalcançadoaalturadapontedepedraquandoalguémoavistou.Umaflechafoidisparadaemsuadireção,e,pelapéssimapontaria,ficouóbvioquenãoeraumarqueiroexperiente.Porém,paranãodarchanceaoazar,Aelianse jogoudequalquer jeitoporcimadaamuradadaponte,sentindoascicatrizesdecadachibatadanascostasgritaremdedor.

Emalgunssegundososguardasoalcançariam,entãoofalcoeiroprecisariachegar logoaostelhados.Jádolado“estrebaria”daponte,haviaalgumascaixasebarrisaorelentoqueserviriamdeapoioparaqueatingisseo topoda fortificação.Porém,umhomemcorpulentoedebarbadesgrenhadasurgiuàsuafrente,barrandoseucaminhoeempunhandoumamaçacompregosnaponta enquanto girava os ombros para trás, seus ossos estalando a cadamovimento. Pareciaestarsealongandoparaumaatividaderotineira.

—Vocêfazideiadotédioqueéficarvigiandocaixasecaixasdeselaseestribos,sendoquenemtem tantamula para tudo isso?—O sujeito estalou o pescoço e abriu um sorriso repleto dedentespretos.—Obrigadoporvirmorrernomeuturno.

Naquelemomento,Aeliannãotentoupensarnumarespostaounumpedidodeclemência.Oguardiãodasselasedosestribosavançouapassoslentos,sabendoqueotamanhodeseusbraçoseoalcancedesuaarmacompensariamavelocidade.

Aarmazuniu,eAeliansaltouparatrás.Tentouenganarosujeitoparapassarcorrendopelolado,masohomemocupavapraticamentetodaalarguradaponte.Vozesvinhamdaescadariaatrásdofalcoeiroemapuros;empoucotempo,eleestariaencurralado.Retrocedernãoeraumaopção.

Sacouopunhale,emseguida,deuumaboaolhadanaarmadoguardião,aquelaprofusãodecravospontiagudos.Aeliannuncahaviasesentidotãoimpotentenavida.

Ohomemgrunhiu,osgolpesseaproximandocadavezmaisdorostodoinvasor.Aelianquaseperdeuosjoelhosnumainvestidarasteira,masaproveitouparatentarapunhalaropescoçodobrutamontes.Atingiu-oderaspão,agoladogibãodecouroabsorvendoboapartedoimpacto.Nofimdascontas,oataquesurtiuomesmoefeitoqueumaestocadanotroncodeumaárvore.Aeliantentouludibriá-loparapassarporbaixodosseusbraçosconformeohomemsepreparavaparaoutrogolpefrontal,masacaboulevandoumchutenomeiodopeito.Osorrisodedentes

pretosvoltou,eofalcoeiroestavacompletamentesemfôlego,comosetivesselevadoumcoicede mula. O punhal havia rolado para fora de seu alcance, e o guardião ensaiava um golpefulminantecomobraçodireito,erguendoamaçaacimadacabeça…

…eentãonãohaviamaiscabeça.Arfando,Aelianrolouparaoladoantesdeorestantedocorpodesabaremsuadireção.Aarma

atingiuochãocomumestrépito,amãodireitaaindaagarradacomfirmezaaocabo.Acabeçafezobarulhodeummelãocaindodeumabancadadefeira,rolandoparaospésdafigurasorrateiraquehaviaseaproximadopelascostasdoguardião.

Seucorpoestavatodoocultoporummantojustonospulsosenostornozelos,envoltosporfaixas que cobriam até as pontas dos dedos. Nos pés, também enfaixados, usava um tipo desandália que Aelian nunca tinha visto. Apoiava-se numa gigantesca espada de duas mãos, alâminaaindatingidadosanguedoguardiãodasselasedosestribos.Enxergavaporumafendamínima no capuz, que mantinha os olhos ocultos mesmo para um observador próximo.Naqueleinstante,asnuvenspareceramdesvelaraluaapenasparatornarafigurasilenciosaaindamaisperigosasobaluz.

Omantoeradacorproibida.Sendoavaliadoemsilêncio,AelianbateunatestatrêsvezesparaseprotegerdoMalRubro.—Parecomisso—ordenouumavozabafada,comosefaixascobrissemtambémsuaboca.—É

vergonhoso.Aeliannãotevetempodesesentirmaisidiotaporqueafigurasinistraparoudeseapoiarna

espadacomosefosseumabengalaeseguiuadiantecomcalma,saltandoporcimadocorpodoguardião e passando ao lado do falcoeiro.Os vigias estavam subindo e chegariampor aquelecaminho,eoimprovávelsalvadordomantodacorproibidacaminhavanadireçãodoperigo.

—Entreevireàdireita,nosbarrisempilhados—disse,apontandoparaatorredaEstrebariaatrásdesi.—Háumalçapãoláquevaideixá-lonostelhadossemmaioresdificuldades.

Afiguraparounoiníciodaponte,defrenteparaoSilo,eergueuaespada,esperando.OlhouporcimadoombroecuspiuumaúnicapalavraparaAelian,queestavacongeladono

lugar.—Vá!Otomdevozotiroudotransedeestupefação,eeleseguiuasordens:direita,barris,alçapão.

ChegouaotelhadodatorredaEstrebariae,delá,comoacriançacuriosaqueforanoFestivaldaMorte,nãoresistiuàposiçãoprivilegiada:olhouparabaixo.

Omantovermelhoavançavacontraoshomensarmados.Umaespadacontradezmaças,nasmãosdedezhomensdezvezesmaissurpresosqueAelianequenãosedecidiamentreatacarumapessoavestidacomacorproibidaoufugirdela.Agrandelâminadançavacomvelocidade—umaimagemquenãopareciacorretaoucrível.Armasdaqueletamanhoeramlentas,masapessoaquea manuseava parecia saber usar o peso para impulsionar os devastadores golpes em arcos,emendandoummovimentonooutro, cadavezmais rápido, atéque fosse impossívelparaos

vigiasavançaremsemcorreroriscodeseremcortadosaomeio.Foioqueaconteceucomtrêsdoshomens,que,numlampejodeaço,estavamdespejandoas

tripasnaspedrasdaponte—oquefezoutrosdoislargaremasarmasebateremnatestamuitomaisvezesqueasuperstiçãolhesensinara.Oquartomorreuempaladoporumaestocadafrontal,efoinessemomentoqueosujeitonomantotirouamãoesquerdadaespadaealevantounoar,dramaticamente.

Por um segundo, Aelian teve a impressão de que a mão enfaixada lançaria uma praga ouclamariaporrelâmpagos,comonosrelatosdasbatalhasdosdeusesnomonteAhtul.Osvigiaspareceramsentiramesmaondadepodereseencolheramporummomento,receososdeatacaro invasor escarlate. Até que nada aconteceu, eAelian percebeu que amão, na verdade, estavaapontandoemsuadireção,mesmoqueacabeçadosujeitonãoestivesseviradaparaele.

—Vouterquerepetir?Saiadaqui!—mandouavozabafada.Aeliansabiaqueacoisaeracomele,jáqueomascaradohaviaficadoali,naponte,paraqueo

falcoeiropudessefugir.Levantou-secomosetivessesidoeletrocutadoeachoumelhorobedeceràordem,deixandoparatrásosecosdeumasituaçãomuitoraraemUntherak:umamaioriasevendoemdesvantagem.

Aelian pulou e escalou, evitando pisar em caibros desgastados e vigas apodrecidas que nãodeviamser trocadosdesdeantesdeseunascimento.Deupreferênciaàsparedesdepedraeaossaltosdelajeemlaje,reservandoasacrobaciasàsaterrissagens.

SóparoupararespirarquandochegouaotelhadodoPoleiro,muitoantesdeosolnascer.Eraa horamais fria damadrugada, e ainda assim seu corpo queimava, por causa do cansaço, daadrenalina e dos ferimentos nas costas. Era difícil atémesmodistinguir as dores. Ao lado daclaraboia,Bicofinooaguardava,calmo.AelianinvejouasasasdofalcãoeacapacidadedeledepercorreroespaçoentreoPortãoSuleoPoleirosemprecisarfazergrandesdesvios.Estariabemmenoscansadosepudessefazeromesmo.

Ecomcertezateriaencontradoumamaneiradesealimentardireito.Abriu a claraboia, e Bicofino voou até seu pulso, acostumado com o procedimento. O

falcoeiroaguardariaporumtemponaquelelugar,atéquefosseahoradesereapresentarparaoprimeirodiadetrabalhodasemana.Jáhaviafeitoissoantes,enãoseriatãodifícilapresentar-seemsuacelasemqueosAutoridadesnotassemqueelenãohaviaentradopelotérreo.OcontroledofluxodeservosalinãoeratãoeficientecomonoPalácio.

Comosolhosacostumadosàpoucaluzecontandocomalgunsfeixesdeluarqueentravampelosótão,caminhouentreosfalcõesencapuzados,sentindoocheirocaracterísticodeseulocaldetrabalho.LevouBicofinoatéopoleirodeleesentou-senabancadademadeiraemfrente.

—Voucochilarumpoucoaqui,sevocênãoseimportar—disse,sentindoasjuntaslatejando

comoesforçofeitohaviapouco.—Podemeacordarumpoucoantesdeosolnascer?Obrigado.Bicofinooobservavadeitadodeladoevoltadoparaseupoleiro,eAelianacaboupercebendo

quenãoeratãosolitárioassim.Tomeafamíliadele.Ofalcão.Algunsestranhoscruzandoseucaminhodeformainesperadaeotirandodeenrascadas…Sejalácomofuncionasseaforçaqueregesseavida,seriabomseelacontinuasselhedandoessesepisódiosdealívioemmeioatantador.

O cansaço começava a fazer as pálpebras pesarem, quando Aelian percebeu um embrulhoesféricodebaixodamadeiraondeBicofinoestavapousado.Umaencomendaesquecidaalipelosnovatos?Bempossível.

Comacuriosidadeespantandoosono,viuqueacoisaestavaenvoltaempergaminhopardo,sem nome de destinatário, sem cordão envolvendo o pacote e sem capricho algum noembrulho.Tinhaopesodeumamaçã,otamanhodeumamaçã…equandoabriuaencomenda,confirmouqueeraumamaçã.Oestômagoroncouaomesmotempoemqueamãofoidiretoàtesta.

Afrutaeraimpossivelmentevermelha.Aelianpensounapossibilidadedeestarenvenenada,comonoantigorelatodosseteanõesque

presentearamakaorshquetentavasermaisbelaqueUnacomumamaçãrecheadacomvenenodebasilisco-d’água.Contudo,à luzdosarchotesdocorredor, a frutanãoparecia terqualquermoléstia.Nemmesmoumarranhadonacasca.

Ofrutoeradacordacapadoestranhoquetinhasalvadoapeledelenapontedepedra.Duasvisõescarmesinsnamesmanoitenãopoderiamestardesconectadas…

Comafomevencendoosustoeadesconfiança,Aelianlevouamaçãàboca.Afinal,ninguémencontrariaaquiloporali.E,graçasàboaaçãodeumdesconhecido,nãoiniciariaumasemanadetrabalho com o estômago vazio. Essa boa vontade entre estranhos o lembrou de umquestionamentointerrompidoquefizeraasimesmonoSilo…

CasotivessesidoavisadosobrealutacomProghonantesdeseinscrevernoFestival,seupaiteriasearriscado?

Aelian devorou o fruto até omiolo, olhando para o papel pardo amassado do embrulho.Parou de mastigar por um instante, pensando que talvez pudesse salvar uma vida — ou atéalgumasvidas—,damesmaformaqueohomemnacapavermelhafizera.

Colocou a mão no bolso em que estavam as plumas vermelhas de Bicofino. Teria queaguardaralgunsdiasparadescobrirsealgumloucocheiodeesperançasvãsseinscreveriaparaoFestival, mas já poderia ir tomando providências quanto à situação e escrevendo um avisoanônimo.Tinha a habilidade da escrita, pergaminho, pena e uma informação valiosa. Faltavaapenasatinta.Sópodiatorcerparaquesuamensagemchegasseàsmãosdealguémquesoubesselerouconhecessealguémqueofizesse.Seuplanoeraumaflechadanoescuro.

Bicofinobicouascostasdesuamãoesquerda,commaisrapidezdoqueforça.Aelianretraiuopunho,soltandoumaexclamaçãodedoreolhandoofendidoparaofalcão.Porém,elenãofugiu

domovimentobruscododono,continuouencarando-ocomserenidade,comosenãotivesseacabadodeatacá-lo.

Aelianparoudepraguejarparaobservarofiletedesanguequeescorriadapeleferida.Entreosdedos damão direita, ainda segurava a pena. Então,molhou a ponta no próprio sangue. E aaproximoudopergaminhoamassado.

Sentia medo de prosseguir, justamente porque o plano se apresentara com tanta clareza.Surpreendeuasimesmoaoesconderopergaminhoeapenasujadesangue.Limpouaferidanascostasdamão.Talvezacoragemsurgisseemoutromomento.

6

UmasemanaparaoFestivaldaMorteMercadoAbertodosCamposExteriores,BordaNorte

—VocêviuaprogramaçãodoFestival?—Vi,sósefalanissonaBigorna.Aindanãoacreditoquetemdoisinscritos.Quemserãoos

imbecisquepagaramparateromesmodestinoquecriminosos?—Asimbecis,nocaso!Viquesãomulheres.DeacordocomosArautos,osnomessãoYanisha

eRaazi.Kaorshs.Inclusive,dizemqueacasadelasfoidestruídaequeumaestámorandocomossinfosnoSegundoBosque.

—Ah,foiaquelahistóriadoincêndioqueaconteceuporlá?PorqueumapessoaquemoraforadoMiolosearriscarianoFestival?

—Seilá.SeiqueumadelasédoTear.Masissonãoexplicaessaoutradefora…—Hum.NoúltimoFestival,tinhadoisanões,torciporeles.OGeneralProghonacaboucoma

minha aposta de que eles sobreviveriam. Eram parentes distantes meus, guerreiros de fibra.TambémdaBigorna.

—EuchegueiaconhecerumparentedoúltimosujeitoqueficoudepéepeitouoGeneral.—Humanoquenemvocê,nãoera?—Era.SóqueeunãoestavanasarquibancadasdaArenanaqueledia.Eranovodemais.—EssevaiseroterceiroFestivalaqueassisto.Jávimortessuficientesparaumavidainteira.

Quantoquerdecevada?—Duasmedidas…Podecolocarumpoucomais,aceitodecortesia.—Poxa,quepena,acortesianãoveiohoje.

SótãodoPoleiro—Temalgumfalcãoaí?

—Todosestãoementrega.Anãoseropequenoepulguento,maselesempretentamebicarquandoeuchegoperto…

—Ah,éobichodeestimaçãodoprimeirofalcoeiro.Deixapralá,então.—EsseAelianéestranhoàbeça…—Falemaisbaixo.—Eleestáseparandoencomendas,nãovaiouviragente…—Hum.Bom,elejáestáaquiháumbomtempo,dáparaentender.Nãoviualinhanorosto

dele,não?—Vi,masfiqueicommedodepuxarconversa…Achoqueeleémeioimbecil.— Pela Fúria, a Tenente Sureyya tirou a vida do chefe dele na semana passada. A gente

inclusiveveioparacáporcausadisso,eosujeitosetornouprimeirofalcoeiroacontragosto.—Mascustaserumpoucomenos ignorante?FuiperguntaroqueachavadoFestival, eele

respondeuqueeraumacoisaquenuncadeviateracontecido,quenemomeunascimento.—É,essafoidesnecessária.—DepoistomachibatadadaSureyyaenãosabeporquê.

MercadoAberto—Vocêachaqueduasmulheresdãoconta?

—Depende.Seosdesafiosforemfáceis…—Fáceis?Epensaquevãocolocarquetipodedesafioparaelas?Ummontedetecidoparaser

remendado?—Naverdade, achoque vão soltar uns gnolls famintos para cimadelas.Assim, as kaorshs

morremdandoumespetáculoparaagente.—Podeser.Masduasmoçasteriamtrabalhoatécomumenxamedediabretes…

SótãodoPoleiro—Vocêvaiassistirdasarquibancadasoudospórticos?Adiferençanovalordoingressoédedoisaltin…

—Quenada!AchoquevoupagarparapoderoperarumadaquelasbalestrasimensasnalateraldaArena!OuviNiahkonfalarquevaiteralgodessetipo,comonosvelhosFestivais.

—Ficoudoido?Gastardinheiroparadartirosnunscondenados?—Deveser legal! Jápensouatirarnumgosmento?Éaminhaúnicachancede fazer issona

vidasemsercastigado!—Nãosei,não.Asensaçãodeempalaralguémdeveser…—Incrível!TalvezessasejaaoportunidadeparaaTenenteSureyyaeoGeneralProghonme

notarem,veremaminhapontaria!AípossoentrarparaosÚnicose…—EterqueenfrentarcoisasquenemaqueletaldeAparição,quematouummontedeguardas

lánaEstrebarianomeiodamadrugada?—Ah,deviamserunssegurançasbemfrouxos.—Hã…—Quecaraéessa,Ollie?—Sr.Aelian…—Ah!Sr.Aelian!Eu…—Agenteestavafalandosobreo…hã…Notandoasurpresanorostodosgarotos,Aelianrespiroufundoantesdemandá-lostrabalhar

debocacalada.

MercadoAberto—Apostotrêsgumusqueaskaorshsnãovãofazertãofeio.

—Vocênemasconhece!—Poiséassimquegostodeapostar!Askaorshssãosempregrandalhonas,têmfibra.—Vocêquesabe, refugo…Eucubroaapostaedigoqueumadelasmorreemmenosdeum

minutonaArena.—Ah,estáapostado!Enquanto homem e anão selavam o acordo de forma nada silenciosa, uma incomodada

kaorshresmungavacomacomercianteanãnatendaaolado.

SótãodoPoleiroDepoisdeouvir tantabesteira cuspidaporbocasqueporpouconãoestavamainda cheiasdedentesde leite,Aeliannãopôdedeixarde sentir certoprazer aomandaraduplademolequeslimparoestercosobospoleirosdosfalcões.Laun,omaisirritadiçodosdoisequesonhavaserÚnico, fora oficializado como seu ajudante fixo, ao passo queOllie,mais lento porémmaissociável que o outro, vinha apenas nos dias em que havia muita correspondência para serseparadaouquandoo sótãoprecisavadeuma limpezamaispesada.Nomomento, aomesmotempoemquetinhavontadedeesfregaracaradeambosnamerda,Aelianqueriaagradeceraelespelainformaçãonova:apresençadebalestrasnamargemdaArena.

Aqueleeraumcostumeantigo,abolidoaindanosFestivaisdaMortehaviamaisdeumséculo,porcausaracidentesbemgraveseprejuízonamãodeobradeUntherak.Provavelmente,UnaqueriaassinalaravoltadoFestivalcomalgomarcante.

Comumasúbitacoragem,Aeliantateouobolsoembuscadopedaçodepergaminhopardoedapenadecorproibida.Resistiuàvontadededartapinhasnatesta—afinal,otalAparição,comoestava sendonomeadopor sussurros entreos servosdoMiolo, vestiaummantodaquela corquandoosalvaradeumdestinodolorosonapontedepedra.

—Vemcá—chamouAelian,eBicofinodeuumrasanteatéabancadaàfrente.Esticouamãoesquerda,eofalcão,comosejásoubesseoquefazer,obicouumaúnicavez.Foi

osuficienteparafazerbrotarsanguedeumpequenocorte.Aelianumedeceuapontadapenaeescreveucomlinhasnãomuitosegurassobreacriatura

venenosaeimplacávelqueforatrazidaparadentrodoUnificadoetambémsobreasbalestraseaspessoasquepagariamparaoperá-las.Tinhaesperançadequeaskaorshssepreparassemparatudoaquilo.

Sabia que uma delas era do Tear, mas não sabia qual. Não poderia mandar a carta para orecolhimentode lá, escrevendoRaazi eYanisha comsangue; achouque seriamelhormandarpara o Segundo Bosque e torcer para os sinfos entregarem para a que estivessemorando lá,comoescutaranaconversaentreOllieeLaun.

—Vocêjásabeoquefazer—disseAelian,enrolandoopergaminhoecolocando-onaspatasdeBicofino.NenhumoutrofalcãodoPoleiroconseguiafazerumaentregaparaumlocalquenãofosseopostoaquetivessesidocondicionadoavoar.—SegundoBosque,entendeu?SegundoBosque.Leveotempoqueprecisar.Dêumpioseentendeuparaondedeveir!

Bicofinodeuumúnicopioobediente.Aelianbeijouobicodofalcão—coisaquesempresearrependiadefazerdepoisdelembraro

tipodecomidaqueobichoprocuravaànoite—eoenxotoupelajanela,pressionandoapequenaferidanamãoesquerda.

Pensativoecuidandodomachucado,viuseuanimaldeestimaçãodarumavoltacompletaaoredordacabeçadaestátuadeUnaantesdedesaparecerentretorreseameias.

MercadoAbertoRaaziesfregouosolhos,nervosa.Oanãoeohomemquediscutiamsobreas “imbecis”queseinscreveramparaoFestivalaestavamirritandoprofundamente.

— Guarde a raiva para a Arena— disse Baeli, reparando na expressão da amiga. —Não vaiadiantarnadabrigarcomessesidiotas.

Raazisabiaqueaanãestavacerta,masestavaaumpassodedecepcionaraamiga.—Olha,éporcausadegenteassimquenãovouconseguirentrarnaquelasarquibancadas—

falouBaeli,debraçoscruzados.—Bandodeabutres,torcendopelamortedosoutros…VocêeYanisha que me perdoem, mas vou torcer por vocês daqui de fora. Não quero ver as duasmorren…Hã.Desculpa.

Raazifezumgestodispersocomamão.—Estátudobem,Baeli.SeiquepareceloucuraeseiqueUntherakinteirajátemcertezadeque

vamosmorrer.Decertaforma,issomeajudaamanteramentefocada.—Vamosmudardeassunto?—perguntouBaeliderepente,batendopalmasumavez.—Acho

queessapossibilidademeassustamaisdoqueavocês.Sempresoubequeasduaseramloucas,masnãotantoassim.

Raazisorriuparaaanã.Elaeraumaboaamigae,devezemquando,deixavatransparecerumapersonalidadezelosaporbaixodaasperezanaturaldesuaraça.

A kaorsh abstraiu do assunto e ajudou a outra a ensacar algumas mercadorias para doisclientes.Enquantocolocavaosfardosnocarrinhodemão,Yanishachegoupelooutrolado,apassosrápidosecomumaexpressãoindefinívelnorosto.

—Quecaraéessa?—indagouRaazi,apósbeijaraesposa.—Precisamosconversar—disseela,tirandoumpergaminhoamassadodacamisa.Baeliolhouparaocasal.—Queremprivacidade?Atendaéminha,maseusaiosevocêsquiserem.— Imagine, Baeli — falouYan com ummeneio de cabeça, desamassando o pergaminho.—

Talvez eu até precise da sua ajuda para ler o que está escrito aqui.Os sinfos receberam lá nobosqueemetrouxeram…

RaaziviuquenoversodafolhahaviaonomedelaeodeYanisha.—Issoestáescritocomsangue?A anã, de fato, tinha uma habilidade rudimentar de leitura, graças a alguns parentes que

haviamsidoAutoridades.Elaesticouopapel sobreobalcãoda tendae fezumacaretaaover

aqueletomcastanhoquaseproibido.Bateutrêsvezesnatesta,porviadasdúvidas,eaproximouonarizdopapel,apertandoospeitosvolumososcontraamadeiraeficandonapontadospésemcimadeumcaixote.

Soltouumaexclamaçãoindignada.—Oquedizaí?—perguntouRaazi,curiosa.—Temonomedequemmandou?Yanishasesentiadamesmaforma,masnãodemonstravatanto.Aanãdemorou-seumpouco

nasprimeiraspalavraseesfregouosolhosantesdesevoltarparaaskaorshs.—Parecequeéimpossívelnãofalardessagosmadeassunto,hein?

Astrêspassaramminutosdecifrandooqueaslinhastrêmulasnopapeldiziam.—Aquiestáescrito...venenoso?É,évenenoso.Éparecidocom“Venoma”.PelaFúria,eunãosei

lerdireito,masaletradequemenviouessacartaéumgarranchomaisfeioqueumbetourovistodebaixo!Tudobem,achoquejádáparaentenderquasetudodestaparte—disseaanã,parecendoentusiasmada.Pormaisquenãopraticassehaviaumbomtempo,aquiloeracomomodelarumvasoemargila:depoisdoprimeiro,dificilmenteumanãoseesqueceriadosmovimentosparacriarasalças,ogargalo…

Baelipigarreoueleuopergaminhodesdeocomeço.— “Retiremas suas inscriçõesdo Festival daMorte.Vocês corremperigo.Trouxeramuma

criaturaperigosae…”Aquieunãoentendidireitooqueestáescrito,masenfim:“…dospântanosque tem uma espécie de ferrão venenoso. Nunca vi nada igual. Retirem as suas inscrições efiquemvivas.Nãoqueroqueninguémsofracomamortedevocês.”—Aanãlevantouosolhosdopergaminhoeobservouasamigas.—Bem,agoraqueumcompletoestranhoestápreocupadocom vocês e diz que uma besta horrível espera pelas duas dentro da Arena de Obsidiana, aomenosconsiderariamretirarasinscrições?Porque,quandoeufalei,nãoadiantounada.

—Nãopodemos—disseRaazi,comoolharperdido.—Issonãomudaonossoplano.Vamoslutar.

— Tudo bem, mas vocês deviam ser gratas ao estranho que se arriscou para enviar estamensagem anônima — falou Baeli, num sussurro irritado. — Se sabe escrever, deve ser umAutoridade…Imaginemsóoperigoqueosujeitocorreu.

YanishaeRaazitrocaramumolhareumsuspiro.EstavamemplenacapacidadedeimaginarosperigosqueUntherakoferecianaquelesdias.

—Nóssabemos,Baeli–disseRaazi,apontandoparaopergaminho.Aindahaviamuitaslinhasaseremdecifradas.—Agora,podemoscontinuar?

7

TrêshorasparaoFestivaldaMorteNumamadrugadaemqueUntherakpraticamentenãoexperimentaraosilêncio,milharesde

servos foramconvocadosparaosúltimospreparativosnoMiolo, quenasprimeirashorasdamanhãabririaseusportõesparatodooUnificado.

Haviaumpreçoapagar—altodemaisparaamaiorpartedosservosdeUna—paraentrarnaArenadeObsidiana,massemprerestariaalgumaespéciedeentretenimentomesmoparaquemficasse do lado de fora. Os cadáveres resultantes das batalhas — aqueles que estivessem emcondições de ser reconhecidos como tal e não precisassem ser carregados empartes— eramlevadosparadarumavoltapelasruasdoMiolonaLiteiradosMortos,paraqueamultidãovissede perto o que havia acontecido com os perdedores. Essa atividade instigava certo frenesimórbido,comgritos,acenosexingamentosacompanhandoapassagemdoscorpossemvida,que,maistarde,eramjogadosnoPoçodeMácula,dentrodoPalácio.

Deitadoemseucatre,AelianplanejavairnacontramãodocidadãocomumdeUntherak.Jáquetodososservosganhariamfolganaqueledia,elepretendiaseafastardoMioloeenveredarpelosCamposExteriores,queficariamvaziosecalmosatéofimdasatividadesnaArena,ànoite.NãoqueriaparticipardotorpordeódioedaressacaqueUntheraksofriaapósaquelaembriaguezdeviolência.Inclusive,erabemcomumquealgunsespectadoressaíssemdelábêbados,sentindo-se heroicos demais e puxando briga com qualquer um nas imediações. O falcoeiro queria seafastardaquelesentimentoquetantoolembravadamortedopai.

Aomesmotempo,gostariadesaberodestinodeRaazieYanisha,asduaskaorshsquehaviampagadoparalutarnoFestival.Pordentro,orapazcarregavaumainquietação,imaginandoseelasteriamrecebidoseualertaanônimoeolevadoemconsideração.

—Autoridades!UmAutoridade,rápido!O grito, vindo de alguma cela, fez Aelian despertar de súbito. Um burburinho se alastrou

como uma colmeia despencando de uma árvore. Em alguns segundos, todos gritavam echamavampelosAutoridades.

O primeiro falcoeiro colou a cabeça à grade e tentou enxergar o máximo que podia. Osocupantesdacelamaispróxima,doishomenschamadosGheliseLennigan,fizeramexatamenteo contrário, afastando-se das barras de ferro com semblantes horrorizados, batendo na testaenquantorecuavamparaofundodeseuscubículos,osolhosencarandoalgonochão.

—Oqueestáacontecendo?—gritouAelian.Erainútil,poisavozdelenãoconseguiasesobreporaoschamadospelosAutoridadeseaos

clamorespelapiedadedeUna.Semconseguirentenderoquecausaratodaaquelacomoção,seu

olharfoipararnopisologoàfrentedaprópriacela…Umatigeladelíquidovermelho.Aeliannãobateu comamãona testa.Tambémnão recuou.Aquele tomesmaltadoda cor

proibida o encarava, parecendo tinta ou um tipo de unguento. Ambos teriam sido úteis nasúltimassemanas,masnaquelemomentonãoeramnadaalémdeumimensoproblema.

AportademadeiraaoladodaceladeAelianfoiescancarada,quasearrancadadasdobradiças.HaruneNiahkonirromperamnocorredor,marteloemaçaempunhos,algunssegundosantesdeumadezenadeguardasentrar,deprontidão.

Niahkonavançoupelocorredor,sempressa,passandoapontadamaçanasbarrasdasgradesefazendoumruídoirritantedepropósito.Harun,noentanto,haviacaptadonamesmahoraoquehaviadeanormalaospésdaceladeAelian.

—Acorproibida!—gritouumdosguardas,apontandoparaatigelaeolhandoparaAelian.Harunoencarou,eofalcoeirosustentouoolhar.Nãotinhanadaaesconder,apesardesaber

que comcerteza aquilo tinha a ver comAparição.Afinal, quemmais ficaria brincando tantocomosperigosqueacortrazia?

Niahkon foi até a cela deAelian e parou ao ladodeHarun.Olhoupara o companheiro detrabalho,depoisparaoprisioneiro.Soltouumarisadinhapesarosa.

—Oruz,Oruz…Jáesqueceucomodóiumchicotemaculado?—Eunãoseioqueéisso—disseAelian,afastando-seporinstintodasbarrasdeferro.O kaorshmexeu no cabelo cacheado, parecendo pensativo. Harun também estava quieto,

olhandoparaatigela.Ninguémousavatocarnela,ealgunsguardasnãoparavamdedartapasnatesta.

— Bom, então somos dois,meu amigo falcoeiro — falouNiahkon, suspirando, e logo emseguidaacrescentou,maldoso:—Aliás,primeirofalcoeiro!Issosempremeescapa…QueaMáculatenhasidoboacomovelhoKivan…

— O que você viu? — rosnou Harun, parecendo impaciente com os rodeios do outroAutoridade.—Quemdeixouessastigelasnopavilhão?

Tigelas?Entãotemmaisdeuma?Agoraabagunçaqueodespertarafaziamaissentido.—Nãosei—respondeuAelian.—Acordeicomumagritariaesódepoisviessacoisanafrente

daminhacela.—Vocêtocounela?—perguntouNiahkon,aindaenrolandooscachos.—Quê?Não,claroquenão!— Hum. — O kaorsh franziu as sobrancelhas, parecendo um tanto quanto descrente. —

AutoridadeHarun,umapalavrinhaemparticularantesdeprosseguirmos?O anão e o kaorsh se afastaram para além da porta, os soldados dando passagem para os

superiores.Falavambaixo;naverdade,pareciaqueapenasNiahkontinhaapalavra.Harunestavaintrospectivo,demonstrandocansaçoemcadafiodabarbagrisalha.Talvezotrabalhoextradepreparação para o Festival da Morte estivesse sendo pesado até mesmo para a privilegiada

constituiçãofísicadesuaraça.Niahkon voltou antes de Harun e passou direto pela cela de Aelian, estufando o peito e

falandoemaltoebomsom:—Não queremos atrasar ninguém neste dia tão importante… Que os gentis e incansáveis

servosdeUntherakpossamtestemunharavoltadoFestivaldaMorte!Guardas!Abramtodasascelas,excetoasdeOruzeadeGheliseLennigan,queficarãosobinvestigação.

— Isso não é justo! — protestou Aelian enquanto engrenagens, roldanas e trincos erammovidos.ElenãoseimportavaemperderoFestival,massabiaquesofreriaumcastigoporalgoquenãotinhafeito.Apariçãosalvarasuapeleumavez,masestaúltimaintervençãocomplicaraavidadeledeumamaneirainimaginável.—Eunemtoqueinessenegócio!

—Abaixeavoz!—bradouNiahkon,queerasempremoderadoecomedido.EleficoucomapeledacordochumbonumpiscardeolhosecolouocorponagradedaceladeAelianenquantoosservosdispensadosdeixavamopavilhãoempassosapressados,antesquesobrasseparaelestambém.—Poralgummotivo,vocêestánocaminhodosAutoridadesdenovo,AelianOruz!Evamosdescobriroqueestátramando!Entendeu?

Aeliansecalouantesqueascoisassecomplicassemaindamais.Niahkonvoltouàsuacoreàcalmacostumeiras.Harunoobservava,algunspassosatrás.

—Sim—respondeuoprimeirofalcoeiro,sentando-seemseucatre.—Ótimo—disseokaorsh, baixinho.—Mas todaaparteburocráticavai ficarparadepois.

TemosumFestivalparaver,enadavaiatrapalharacelebraçãodonomedeUna.Guardas!Querodoishomensvigiandoaportadestesetorotempotodo.AssimqueoúltimoeventodaArenaterminar,voltareiaquicomaTenenteSureyyaparadecidiroquefazercomostrêssortudos.

Eassimocorredorfoiesvaziando.AtigelanafrentedaceladeAelianfoideixadanolugar,intocada,eelesupôsqueaoutra,nafrentedaceladeGheliseLennigan,aindaestivesseporlá.

—Alguémviu alguma coisa?— gritouAelian, levantando-se e agarrando as barras da cela,tentandoenxergarosoutrosdoisservos.

Eles não estavamnapequena faixa de visãodo rapaz e tambémnão responderam.DeviamestarpreocupadoscomoqueSureyyadecidiria.

Aelianolhouparaorecipiente.Sentiuraivadacor,masnãomedo.Porquealguémdeixaraaquelaporcariajustoali,justonaquelediaejustonafrentedele,quejátinhatantosproblemascomosAutoridades?

Olhouparaapequenajanela,deondevinhaobarulhodamultidãotomandoasruasrumoàArena. Pensou queRaazi eYanisha tambémdeviam estar se preocupando comumproblemamisterioso,aindaquedeescaladiferente.Comoninguémtinhacomentadosobreadesistênciadelas, Aelian entendeu que as kaorshs não tinham recebido sua mensagem ou não tinhammudadodeideiamesmoassim.

Deitou-senocatre,observandoasmanchasnotetodepedra,conscientedapresençadatintadacorproibidaàsuaesquerdaedajanelaàdireita.Passouastrêshorasseguintestentandofazer

sua curiosidade se afogar no silêncio do pavilhão e convencendo a simesmo a não piorar asituaçãoemqueseencontrava.

AtéqueosomdemiltrombetasdebatalhafezoPoleiroreverberar.OFestivalestavaoficialmenteaberto.

Ofalcoeiroretirouopunhaldedentrodeumrasgonocolchonete,jáqueoesconderijonapedrasoltadopisojánãoeramaistãoseguro.Nãosedeuaotrabalhodecapricharnosósiadetraposelençóisemseulugarnacama,poisnãoesperavaquealgumdosvigiasfossecorajosoobastanteparaentrarnumlugaremquerepousavamtrêstigelasrepletasdetintadacorproibida.Aeliansepegoupensandoqueaquiloeraridículo,masqueeraarealidadedemuitos.Deumamaneiraumtantoestranha,via-securadodomedodoMalRubro.QuandoelehaviasetornadotãodiferentedocidadãocomumdeUntherak?

Agarrouabarradeferroqueficavabemnomeiodajaneladacela.Torcendo-adojeitocertoedandoumpuxãofirme,eleasoltou.Nodiaemqueforachicoteado,AelianpensouqueHaruntinhapercebidoqueaquelabarra estava serrada,maspoderia ter sidoapenas impressão, assimcomoadapedrasolta.

Seo rapaz tivesseumpoucomaisdemúsculosoudebarriga,nãoconseguiriaatravessaroespaço entre asbarras. Fez contorcionismo já comametade inferiordo corpopara fora e sependurounaparedeexterna,ospésbuscandoas irregularidades familiareseascavidadesentreumblocoeoutro.Lembravaquaispedrassalienteslhedariamoapoioparaospéseasmãos,esabia onde havia fixado ganchos estratégicos que roubara de alguns depósitos para que sefirmasseemcasodeventaniaoudesequilíbrio.

Por alguns momentos, seus pés perderam todo tipo de apoio, e seu corpo inteiro ficoudependentedoqueasmãos fariam.Deumapedra,umadasmãos foiparaumgancho.Deumganchoparaoutromaisàdireita,aumbraçodedistância.E,dali,paraumcantoemquedoisladosdasparedesexternasdoPoleiroseencontravam,formandoumaescadadecavidadesquejamaisserianotadadochão.Sealguémláembaixotivesseaideiadeolharparacima,veriaumhomemescalandoafachadadatorrecomoumaaranha.

Os dedos de Aelian doíam,mas era uma dor familiar, que o fazia se sentir vivo. Ele subia;apenasmaisalgunsmetros,easmãospoderiamdescansar.Nãoerahoradeficarpensandomuito,ouamentedeleoconvenceriadequeestavamaiscansadoquedefatosesentia.

Algunsminutosdepois,ofegante,alcançouotopodoPoleiroepensouemtirarBicofinodedentrodosótão…Contudo,oprocessodeentraresairpoderiaatrasá-lo,e,naquelemomento,elenãotinhatempo.

Foiatéabeiradadeumcaibrosaliente,apontadospésocupandotodooespaçovazioentreocéueochão.Porentreasondasdecalorquefaziamarealidadepróximaaostelhadosestremecer,

observouaestátuadeUnaedepoisoPalácio—seudestinonosminutosseguintes.EraporláqueelealcançariaacoberturadaArenadeObsidiana.

Tomouimpulsoedeuoprimeirodemuitossaltos.Acadaumdeles,maioreraoPalácio,emenorAeliansesentia.

8

Ficarali,naquelecômodoquadradoàesperadahoradeentrarnaArena,davaasasàimaginação.A cena se repetia sem grandes variações: algum infeliz acorrentado era arrastado pelo

corredor por um Autoridademusculoso. As enormes portas que davam acesso ao centro daArenadeObsidianaeramabertascomos rangidosdemil roldanasgirando.Osujeitoentravagritandoouchorando—ougritandoe chorando—enquantoasarquibancadas iamà loucura.Emquasetodasasdezenasdeocasiõesemqueissofoirepetido,haviaumrugido,umrosnadoouumsomseco,eumgrandelamentoemuníssonopreenchiaoar.Depois,vinhamasvaiasouosaplausos,emaisalgumcondenadoeraarrastadopelocorredor.

Enquanto Yanisha apalpava os tornozelos, Raazi contava o tempo que cada pessoa haviadurado lá fora. Poucas sobreviviam por mais de três minutos, e ela imaginava que os quepassavamdisso ficavamcorrendoemcírculos, fugindode seja láoque tivesse sidoplanejadopelascruéismentesdaCentípede,osverdadeirosorganizadoresdoFestival.Elaachavaqueerapedirdemaisqueumcondenadolutassecombravurasabendoquetudoalierafeitoparaqueelemorresse no fim — afinal, aquele era um espetáculo voltado para as vontades do público.Enfrentarperigosdepeitoabertoeraapenasparagentesemnadaaperderoucomumobjetivoclaroefixoemmente.

Yanisha segurouamãoesquerdadeRaazi, lembrando-adequeelaseramduaspessoascomobjetivos claros. Porém, naquele exato momento, sentindo o calor do toque da amada, eladuvidavadequetivessemmesmotãopoucoaperder.

—Estácomsede?—perguntouYanisha,osolhosfixosnaesposa.Raaziassentiuesevoltouparaooutroladodocômodo,ondehaviaumalongamesarepleta

dealimentosejarros.AsaladeesperaparaosinscritosnoFestivaleratodademármorenegro,compiscinaseluz

natural entrando por frestas nas paredes. Era um arrojado trabalho de arquitetura dos anões,quasetãoantigoquantoaestátuadeUna.Todoaqueleconfortoera irônico,comoseaquelesqueestivessemprestesalutarmerecessemumpoucodomesmoluxoqueasoberanaesbanjavaantesdeseremmassacradosdiantedeumaplateia.

Yanisharetirouocantildedentrodomantoescuroqueusava,ummantoigualaodeRaazi.—Você achaque envenenariama águaparanosprejudicar?—perguntouRaazi, dandoum

pequenogolenocantil,quejáestavaquasenofim.Apesardacomidaedovinhodispostosparaelasnumbanquetepré-combate,askaorshssóbeberiamaáguaqueelasprópriaslevaram.

Yanishadeuumarisadaseca.—Elessãosujoscomoadeusaencarnadaqueadoram.HerkZatoiffadorariagarantirnossa

humilhaçãodepoisdoquevocêfezaele.—Depoisdoquenósfizemosaobandodele—falouRaazi,e,emseguida,acrescentou:—Por

maisqueeletenhanegadoquefoiomandantedoataque.— Bem… vamos garantir que ele tenha um colapso nervoso de seja lá onde estiver nos

assistindo e assegurar nossa integridade física… por mais que todo esse banquete pareçadelicioso.

Raazi sorriu e abraçou a amada. Enquanto sentia o calor tão familiar do rosto deYanishajuntoaoseu,foitomadadeassaltoporumamelancoliaprofunda.Mesmosemdizernada,aoutrapareceusentiramudançadehumornoarentreelas,eaapertouaindamais.Asduascontinuaramassim,emsilêncio,receosasdequequalquerpalavraenfraquecessetodaavontaderesolutaquetinhamconservado.AquelesentimentoqueRaazipoucasvezessentiranavida,omedo,estavalá.Elaprecisavaaceitar isso.Noentanto,enquantonãoverbalizasseaexistênciadele, talvezasensaçãonãodominasseporcompletoseucanväs.

Desfizeram o abraço,mas asmãos continuaram unidas. Raazi observou a pele de Yanishacontrastandocomasua.TalvezUntheraktivessenubladoumpoucosuavisãokaorshsobreavida,algoquesempreafizerasesentirmuitosegura.Porém,assimcomoestrelas-do-pântanofloresciamnalama,omedotambémpodiaeclodirnomeiodaluzedaclaridade.Aqueleeraumensinamentotradicionaldesuaespécie,elembrar-sedelenaquelemomentofezamulherficarumpoucomaiscentrada.

Umclamorveiodasarquibancadase,logodepois,outroaindamaisforte.Pareciaqueahorado evento principal estava se aproximando. Aguardaram os passos soarem no corredor,masquemapareceusoboarcodeentradadapequenasalachegouemsilêncio,comoasombraqueera.

A Tenente Sureyya estava de braços cruzados, olhando para as duas, sem dizer nenhumapalavra.Raazi levantou-seporinstinto,sentindo-seameaçada.Yanishacolocouumadasmãosnoombrodela, comosepedisse calma.Akaorshmaculadadeuum risoà guisade escárnio etrocouapernadeapoio,aindadebraçoscruzados.

— Raazi Tan Nurten e Yanisha Azath, eu as levarei até a sala de armas — falou Sureyya,colocando-sedeladoparaqueascombatentespassassempelaporta.—Podemirnafrente.

RaazieYanishapassaramporSureyyadecabeçaerguida.Decantodeolho,perceberamqueelacontinuavacomosorrisozombeteiro,observandoasduascomoseachasseinteressanteaquelaaltivezanteoqueestavaprestesaacontecer.

Seguiramporumlongocorredor,eossoldadosimóveisdosÚnicosapareciamemintervaloscadavezmenores,esperandoapassagemdocasalparaformarumalongafileiraatrásdaTenente.A salade armas estava sendoguardadapor alguns lanceiros, que fizeramuma reverênciaparaSureyyaederampassagemparaastrêskaorshs.

Era um cômodo abafado, iluminado por tochas, que tinham seu brilhomultiplicado peloreflexoqueofogobrancolançavanometaldosescudosenaslâminasvirgensdasespadas—nos

Festivais da Morte eram permitidas. Raazi imaginou que, naquela luz, seria difícil para umapessoanormalnotarpequenas imperfeiçõese rachadurascapazesdecomprometerumaarma.Porém,Yanishaeelasabiammuitobemcomodriblarasarmadilhasqueavisãocomumpregava.

—Podemescolhertrêsarmascada,nãomaisqueisso—disseamaculada,apontandocomumgestovagoparaasparedes repletasde lançaseespadas,alémdebancadascomoutras lâminas,correntesearmasdeconcussão.—Vocêstêmdezminutos.Passadoessetempo,euaslevareiparaosportõesdeacessodaArenadeObsidiana.

Sureyyaseviroueseafastou,quasesefundindoàssombrasdocorredor.Derepente,paroueolhouparatrás,deixandoamãoesquerdarepousarcasualmentenopunhodochicote.

— É engraçado. Não vejo em vocês a cor de esperança que os tolos emanam quando seconvencemdequetalveztenhamumachanceláfora.

Raazificoutensa,mesmosemperceber.AondeSureyyaqueriachegarcomaquilo?—Talvezporquenãosomostolas—respondeuYanisha.ATenenteriu,seuscaninosbrancospontiagudoscontrastandocomonegrumedaMácula,

achandograçadapetulânciadeumapessoaqueestavaprestesamorrer.Depois,foiemboradevez.

—Vamos—falouYanisha,aindaolhandoparaoespaçovazioondeSureyyaestivera.—Nãoachoquevãonosdardezminutoscompletosparaescolherasarmas.

Eelatinharazão.Raazigastouquasecincominutosanalisandoashastesdediferenteslançaseespadas,sentindoopesoeobalançodelasatéencontrarumaqueseparecessecomaqueestavahabituada—equeficaranoSegundoBosque,aoscuidadosdePryllan.Comumarápidaolhada,notoupequenas rachaduraspróximasàbaseda lâmina.Contudo,para sua técnicade luta, eraimportantequeahastefossemaisresistentequeaponta.Quandoiaescolherumpunhalouumaarmamaislevecomoreserva,Sureyyajáestavadevolta,muitobem-humorada.

—Horadeentrarem.—Essesforamosdezminutosmaisrápidosdaminhavida—disseRaazi,seca,pegandouma

facaqualquerparanãosairdemãosabanando.Sureyyasorriu,deliciando-secomoclimadetensãoentreastrês,antesderesponder:—NãocreioqueduremmaisqueissolánaArena.Dessavez,Yanishanãoseenvolveu,continuoutestandoopesodeduasespadascurtas,com

movimentoscirculareshabilidosos.Sorriu,satisfeita,paraprovocaraTenente,enãoporsentirsatisfaçãorealcomarmastãosofríveis.

A kaorsh maculada voltou a dar passagem para as combatentes, e as três seguiram pelocorredor, sem todoopelotãodeguardasquecostumava flanquearosque iriamparaaArena.Sureyyaseconsideravaeficazapontodedispensaroserviçodeumpelotãointeiro.

Maisà frente,diantedoportãodeacesso, encontraramoAutoridademusculosoqueRaaziviralevandooscondenados.

—EsteéoAutoridadeRanakhar—disseSureyya,apontandoparaosujeitobemmaisaltoque

ela.—EleacompanharáumadevocêsatéoportãonooutroextremodaArena,poisoprotocolodizquedevementrarseparadas.

—Nadadisso!—bradouYanisha,desafiadora.—Entraremosjuntas.Nãovãonosseparar.—Ah,mepoupemdesseespetáculo—respondeuSureyya.—Sãoapenasalgunsminutoslonge

umadaoutra,vocêsaindavãopodermorrerjuntascomoumcarrapatonumgnollafogado.—EoquegarantequevãonosdeixarentrarnaArenaaomesmotempo?—indagouYanisha.Raazi, entretanto, colocou uma dasmãos nas costas de sua amada commuita delicadeza,

pedindocalma.—Vamos,Yan.ComcertezaaTenenteSureyyavaihonraroacordo,nãovai?AtensãoentreaTenenteeYanishaerapalpável.OAutoridadeRanakhar,quetambémdevia

tersentidoaeletricidadenoar, curvou-seumpoucoao ladodeRaazieanunciou,comavozbaixa:

—Elahonraráoacordo.Euacompanhareiasenhora.

Ocorredorseguiasempreparaaesquerda,acompanhandoaformacirculardaArena.Emalgunsmomentos, eles passavam na frente de aberturas na parede que permitiam uma entradaestratégicadeluz,alémdeumvislumbredasarquibancadaslotadasedeumgrupodesinfosquepareciamestar lustrandoopisonegrodopalcodas batalhas— e retirandoos restos das lutasanteriores.

Ranakhar, ao contrário de Sureyya, caminhava à frente de Raazi, um séquito de lanceirosÚnicos logo atrás da kaorsh, divididos emduas fileiras. Amulher carregava sua lança com aponta para baixo, preparada para tudo, prestando atenção a qualquer mudança mínima nocompassodasbotinasdeferroàssuascostas.

Apósumalongacaminhada,oportãoopostodeacessoàArenaapareceu,comumarchotedecadalado.

— Alto, guardas! — mandou Ranakhar, erguendo a mão do tamanho de um címbalocerimonial.Raazimanteveumadistânciaseguradohomem,quevoltouacaminharatéoportão,oslanceirosparadosamaisdevintepassosdosdois.—Vouabriroportãoparavocê—informou,quasenumsussurro.

Raaziassentiu.O homem girou umamanivela, e ummosaico de engrenagens semoveu na superfície do

portão.Aquilosópodiatersidoinventadoporanões.Poruminstante,Raazificouencantadacomosdetalhesdatecnologia,atéRanakhararrancá-ladoquetalvezfosseseuúltimomomentodedistraçãonavida.

—Vocêsabeporquedeixeiosvigiasparatrás?Akaorshseassustoucomotomdaconversa,masnãodeixoutransparecer.Apenastrouxea

lançaparaafrentedocorpo.—Não.Ohomemmanteveamãonamanivela,aschamasaoladodaportatremeluzindoelançando

sombrasemsuafacemarcadaporumalinhahorizontalquaseapagada.Orostodeleeraforte,eacabeçacarecatinhaumcalombochamativo.ParadoaoladodoportãodaArena,ele lembravauma réplica emminiatura dos gigantes que guardavam os portões de Untherak. Apesar dosângulosdurosdeseurostoedasinúmerascicatrizesnosbraçosmusculosos,haviaumadoçurainesperadaemsuavoz.

—Fizissoparalhedesejarboasorte.Raazi pensou que uma tentativa de agressão de Ranakhar seria menos surpreendente que

aquelas palavras. Ela lançou um olhar nervoso por cima do ombro para ver se os lanceirosestavamescutandoaquilotambém,masoAutoridadecontinuou.

—Mostrempara essesdesgraçadosqueas coisas estão começandoamudar.Vençam!—Astrombetasde guerra soaram logodepois, ameaçadoras. Era o anúnciodo eventoprincipal.Ohomemgirouamanivelamaisumpoucoatéosportõesseabriremporcompleto.—Ecuidadocomospaga-balestras.

—Cuidadocomoquê?OslábiosdeRanakharsemexeram,masaspalavrasforamabafadaspelobarulhodamultidãoe

dastrombetas.Raazipensouterentendidoeledizer“balestra”.Cuidadocomasbalestras?Eraomesmo tipodeavisoque chegaraanonimamente,no fimdaquela carta entreguenoSegundoBosque…SeráqueoAutoridadetinhalheescritoemsegredo?

Os lanceirosatrásdeRaazicomeçaramasemover,eakaorsh foi impelidaparaa frente.Ohomemlhedirigiuumdiscretoúltimoolhar.

Milharesdebraçoserguidosaolongodetodaaarquibancada.Osxingamentos.Osincentivos.Os Únicos armados com lanças e escudos, no círculo externo da Arena, voltados para osespectadores e prontos para contê-los se necessário.ATribunadeHonra estava à suadireita,ondetodosseencontravamdepé,menosasoberana,queaobservavaládecima.Haviatambémuma figura negra e dourada logo atrás do trono, facilmente reconhecível mesmo àqueladistância.

Tantacoisaparasever,eRaazisótinhaolhosparaakaorshqueentravapeloladoopostodaArena.

9

OsolnãoestavatãoescaldantequantonodiaemqueAenochOruzmorrera,masolugarsecretodeAelianeraomesmo.

Dessavez,eletomouocuidadodeseprotegerdeumanovainsolação,amarrandonacabeçaumabandeiraqueroubaradoaltodeumatorrenocaminhoatéaArena,comoalgunskaorshsantigamentefaziam.Infelizmente,nemtudoeraassimtãofácildeprevenir.Umexemplodissoeramaslembrançasdifusas—eaomesmotempopesadas—queaquelelugarlhetraziaàmente.

Com uma propensão mórbida e irrefreável, a visão do rapaz era atraída para a luxuosa eameaçadoraTribunadeHonra,nosfundosdoPaláciodeUna.Apertandoosolhosacostumadosa enxergar ao longe, o primeiro falcoeiro vislumbrava o ponto negro e dourado que era asoberana,aúnicaqueassistiaaoFestivalsentada,cercadaporlanceiroseAutoridades—alémdapresençaagourentadaCentípedelogoatrásdotrono,todoscomasmãoscobertaspelaslongasmangasdeseusmantos.OCabeçadaCentípede,oencapuzadoàfrentedosoutros,eraoúnicoquepodiaserdiferenciado,porcausadosadornosnafronte.

Otronoreluziacomoouro—ometalverdadeiro,nãoomescladoepoucovaliosocomoqual eram feitososaltin—, tantoqueeradifícil saberondeacabavaoassentodeUnaeondecomeçavaseulongovestido.

Contudo, ali, atrás da linha formada pela Centípede, havia algo que chamava aindamais aatenção de Aelian: o General Proghon. Com a mesma aparência segundo os relatos dequinhentos,cemoudezanosantes,oGeneraleraumapilastraprontaparaganharvidaaomenorcomando de Una, pronto para assassinar em nome dela e levar terror a qualquer um, semdistinção. O falcoeiro se recordou da criatura simplesmente torcendo pescoços enquantocaminhavaresolutonadireçãodopaidele,epensouque,mesmoquetodaaArenadeObsidianafossetomadaporumencantoeficassecontraUna,aindaassimasoberanaestariaprotegidaeemvantagem.ComoumacoisacomoProghonpodiaexistir?EcomoerainjustaavidadeAelian,apontodefazercomqueoassassinodeseupaifosseoGeneraldeUntherak,oquetornavaaideiade vingança algo absurdo e impossível. Aelian só não tinha uma tragédia heroica para sercantada porque era vítima das circunstâncias. Percebeu que suasmãos estavam transpirando,frias,apósmuitotempoperdidonomesmopensamento,entãodesviouosolhosdaTribuna.

Os condenados morriam de todas as maneiras possíveis, mas Aelian não teve qualquervontade ou curiosidade de olhar. Todo o risco que ele corria naquele momento era paratestemunhara lutadaskaorshse torcerparaqueseupergaminhoanônimotivesseajudadoasduas contra fosse lá o que saísse do calabouço. O sucesso delas era o mais próximo que ofalcoeiroteriadeumavingançacontraUnaeseuGeneral.

UmanuvemcinzentaqueapenasameaçavachoversobreoFestivalsuavizouaindamaisosolepermitiuqueAelianficassealgunsminutosdeolhosfechadosnacoberturadaarquibancada.Ele foi tirado de seumomento de calmaria por uma ferroada nas canelas e sentou-se rápido,apenasparatestemunhardoisdiabretes-alpinistasmordendosuaspernascomaquelesdentinhosafiados.

—Suaspragas!Saiamdaqui,coisasgosmentas…Ai!Tantotelhadoporaíevocêsvêmjustoaqui?Ai!

Enquantohomemediabretes travavama batalhamais ridículade suas vidas, as trombetasressoaram.Umadaspequenascriaturasatédesistiudemorderacaneladohumano,levantandoacaraazuladaparadescobrirdeondevinhaaquelesomameaçador.Nessesegundodedistração,um pé o chutou para longe. Aelian segurou o outro diabrete-alpinista pelo cangote e oarremessousobreoprimeiro,aindatontoedesorientado.Recebendoumasériedeguinchosemprotestoenquantomassageavaacaneladolorida,orapazsedebruçouparaobservarocentrodaArena.

Rangidos de portões se abrindo. Aelian aproveitou para vasculhar toda a orla da Arena, ereparounasbalestrasqueseusdoisassistenteshaviammencionado.Eramquatro,todasfeitasdemadeiraescura,eencontravam-sebemdistantesumadasoutras,emtorresquedavamacessoàaltura da grade das arquibancadas, que eram montadas a cerca de cinco metros do chão.Enxergoulanceirostomandocontadecadaumadelas,aoladodegrandesbarrisrepletosdesetasdo tamanhodevassouras.Ocidadãoquequisessesedivertirdeveria iratéo lanceiro,pagarovalor requerido e assumir amira da arma. Impossível encontrar uma diversãomais saudável,seguraecruel.

Viu uma figura alta e esguia como toda kaorsh entrando pelo portão logo abaixo dacobertura da arquibancada onde estava encarapitado. O cabelo volumoso tinha trançascomplexaseornamentadas,apeleeraquasetãoescuraquantoomantoqueelavestia.Doladooposto,viuoutra figuraalta e esguia,masessadepele clara.Empunhandouma lançanamãodireita,elatiroudopescoçoobrochequeprendiaomanto,deixando-ocairaosseuscalcanharesparaserpisoteadopelopelotãodelanceirosquemarchavademaneiracerimoniosalogoatrás.AeliannãosabiaquemeraRaaziequemeraYanisha,mas,a julgarpelaaltivezdasduas,podiadizerqueambastinhammuitomaispreparoqueoprópriopai—quefoiumlutadorhabilidoso.Aguerreiradepelenegratambémarrancouacapaqueusavaeaatirouparaolado.

As duas se encontraram no meio da Arena, e os dois destacamentos de lanceiros que asconduziramatéaliderammeia-voltaesaíram.Astrombetasdeguerrasoaramoutravez,masagoraprovindasapenasdaTribuna.

Asduassevoltaramnaqueladireçãocomacabeçaerguida—Aelianpercebeuqueakaorshdepele negra levara a mão ao maxilar. Una estava se levantando pela primeira vez no dia,caminhando até o parapeito do grande camarote. Proghon continuou atrás do trono vazio,imóveleaterrorizante.

OsolvoltouaaparecerentreasnuvensbemnomomentoemqueofalcoeiroolhavaparaoGeneral, cujamáscaradourada fulguroudemaneira ameaçadora, fazendoo rapaz se encolher,comoseobrilhotivessesidodirecionadoparaele,umfarolmandandoumsinaldeperigo.

Unalevantouamãodireita,amangadovestidobalançandoaovento.Elausavaamelhorsedakaorsh—eracomose suasvestes tivessemsidoconfeccionadascom fiosde sombra.Adeusabaixourapidamenteobraçonadiagonal,fazendoomovimentodeumcorte,aoqueosportõesdocalabouçoseabriramcomumrangido.

Nos breves segundos em que toda a arquibancada prendeu a respiração e nada saiu doscalabouços,Aeliansepreparouparaenfimbotarosolhosnabizarracriaturaqueestavanajaulade ferro naquela noite estranha e tumultuada. Sentindo-se culpado por ter as expectativasquebradas, testemunhouoito figurasbastantenormaisemUntherakatravessandoosportões.Eram guerreiros comuns, o que significava que, caso as kaorshs conseguissem derrotá-los,enfrentariam um desafio maior. Esperava que Raazi e Yanisha também deduzissem isso emantivessemainformaçãoemmente.

AsoitofigurastinhamaaparênciadosgosmentosquesaíamdoPoçodeMácula.Ostrêsmaisesguios deviam ser kaorshs, já que humanos não podiam sermaculados, pensou Aelian. Umdeles,oqueiamaisàfrente,usavaumcrâniodecavalocomoelmo.Obranco-amareladodoossocontrastava com a Mácula negra em seu corpo, e significava que aquele macabro elmoimprovisadohaviasidocolocadodepoisdobanhonopiche.

Haviaaindacincoanões—que,apóspassarempelaMácula,sóconservavamaaltura,jáqueaaparênciadaraçamudavaporcompletodepoisdobatizado, tornando-sedemoníaca,cheiadecalombose feridasquedeixavamasubstânciaescorrercomopusnegro.Tantoelesquantooskaorshsusavamarmasduplas,semescudos.Estavamláapenasparaatacarecausardor…

FoientãoqueAelianprestouatençãoàsvestesusadaspeloskaorshseanõeseteveumagrandesurpresa: aqueles pobres infelizes reduzidos a máquinas de matar eram a velha gangue dosDestrinchadores, que tinha desaparecido dos Assentamentos havia alguns meses, após umaconfusão generalizada com os Autoridades. Era um grupo que, inspirado pela Fúria dos Seis,pregavaquetodadesgraçaesujeiradasruaseramcausadaspelosrefugos.Vezououtra,atacavahumanossemmotivoalgum,apenaspordiversãoe lealdadeaseus ideais fundamentalistas.Seumrefugo fosse juradodemorte, tinhaduasopções:aceitar seudestinooupagarparaqueosmarginaismudassemdeideia.Aeliannuncatinhaseenvolvidocomeles,aindaquesoubessequeCaniveteeBarncertavezhaviamsemetidoemconfusãocomumDestrinchadorbêbadonoPâncreasdeGrifo—umabrigaquecustaraaTommuitasgarrafas,vidraçasecadeiras.

OsAutoridadesnuncatinhamacabadocomogrupoporquemuitasvezesprecisavamfazeruso de seus serviços sujos. Porém, de acordo com o informal serviço de fofocas entre apopulação,umdosDestrinchadorestentouroubarumacargamisteriosadestinadaaoPalácio.Assim,todaagangueacaboupagandopelospecadosacumuladosaolongodeanos.Aelianagoraentendiaoqueforafeitodeles.

Movidos pelo ódio cego que a Mácula proporcionava àqueles que se banhavam nela, osDestrinchadoresinvestiramcontraaskaorshs.

—Lávêmeles—grunhiuRaazi,preparando-separaaluta,ombroaombrocomaesposa.Yanishadeuumacusparadaparaolado,esuaesposaviuumvolumosoborrãodefluidodacorproibidaantesdeeleatingirochãonegro.—Oquefoiisso?

Em silêncio,Yanisha voltou umolhar cansadoparaRaazi, que enxergouum ferimentonabocadaesposa,cobertoporumacamuflagemfeitaàspressas.Comoelapodiaestarmachucadaantesmesmodecomeçaralutar?

Akaorshentãoselembroudosminutosemqueasduasforamseparadas,antesdeentraremnaArena.

—Yan,oqueaconteceu?—Oquevocêacha?—perguntouela,comumsorrisoensanguentado.—Sureyyaaconteceu.

Quandomeconduziaatéosportões.—Maldita!Aquela…—Nadadeterumacessoderaivaagora,Raazi!Sureyyaésóumcontratempopertodonosso

objetivoprincipal—gritouYanisha,fincandoumasdasespadasnoprimeiroDestrinchadorqueaatacou,umdoskaorshs.Comaoutralâmina,aparouumgolpedemachadodeumanão.Raaziaproveitouparacravarapontadalançanalateraldele,reparandoqueaquelenãosótinhadoismachadoscomo,naverdade,asarmassubstituíamsuasmãos,provavelmentedecepadasantesdomergulhonaMáculaoufundidasàsuapeleemalgumaexperiênciadaCentípede.

Segundos depois, ela perceberia que todos os Destrinchadores tinham armas no lugar dasmãos.

Aeliansoltouumgemidodeafliçãoaoverasduaskaorshsdeixaremosoponenteschegaremtãopertoantesdederrubá-los.Elaspareciamestardiscutindoentresi—oquenãoeraalgosensatoasefazernaArena.Porém,empoucossegundosRaazieYanishapareceramserecompor.Adepeleclarasemovimentavacomrapidez,exibindoumdinamismosemelhanteaodakaitadossinfos.Acrobacias,girosrápidosegolpesrasteiroscomocabodalançaeramseupadrãodeluta.JáosDestrinchadoresmaculados,essessimplesmenteavançavam,girandoosbraçostransformadosemarmascomapenasumpequenoecodoquetiveramdehabilidadede lutaemvida.Além demacularemossujeitos,queoutramerdafizeramcomeles?,Aelianseperguntou,espantado.

Oanãoeokaorshqueforamderrubadosnoiníciodalutaeesquecidosnochãodeobsidianacomeçaramasemexercomespasmos.Aeliansabiaqueummaculadonãomorreriaporcausadeumsimplesferimento,etorciaparaqueasduaslutadorastambémsoubessemdisso.

AatençãodelefoiatraídaparaforadaArenaporuminstante,quandoumabrigairrompeunoacesso a uma das balestras, quase abaixo de onde Aelian estava. Uma senhora de aparênciaenferma,comumlençocobrindoorostoeandandorecurvada,discutiacomumrapazbemmaisjovem.UmlanceiroÚnicocomcaradetédiotentavaapartaradiscussão,enquantoaspessoasseaglomeravamao redorda cena.Aparentemente, o rapazqueriapagarpelousodabalestra, e asenhoratambém—oqueeradesurpreender,considerando-seaaparênciafrágileostrajespuídosdamulher.

Crueldadenãotemidade,pensouAelian.Em seguida, percebeu que o rapaz que esbravejava com a idosa era Laun, o novo servo do

Poleiro,quesonhavaentrarparaosÚnicos.Essacoincidêncianãooespantava,poisogarotodeixara suas intençõesbemclarasdurante a conversaqueAelian escutara.Quandoo lanceirogritou por reforços para conter a aglomeração, Laun empurrou a velha, que caiu de um dosdegraus da arquibancada. Alguém deu um soco no queixo do assistente de Aelian, e umaconfusãogeneralizadateveinício,comguardasdistribuindogolpesatortoeadireito.Porummomento,aviolência transbordoudaArena, eo rapaz sentiuumapontade satisfaçãoaoverLauncomdoisdentesamenosnabocaecorrendoparalongedaação“pacificadora”dosÚnicos.

No entanto, a senhora que fora empurrada por ele parecia ter evaporado nomeio daquelazona.

Três dosDestrinchadores jaziam decapitados— a únicamaneira definitiva dematá-los.Umalâmina transpassandoo tóraxouqualqueroutra regiãovitaldaria apenasalguns segundosdesossegoparaaskaorshs.Cabeçasseparadasdopescoçopareciamserasoluçãocabalparaaquelesmortos-vivos.

Cinco deles ainda estavam de pé, e havia outros fatores preocupantes. Raazi notou umadiferençana atmosfera ao redor. Sempre atenta se alguémassumiria o controle das balestras,percebeu tumulto numa parte das arquibancadas e bateu no ombro da esposa após acertar opescoçodeumdosanões.

—Vamosrecuarumpouco.Precisorecuperarofôlego,nemquesejapordoissegundos!Semqueprecisassemcombinarosmovimentos,asduasabriramumbomespaçoentreelase

osDestrinchadores, dando golpesno ar emarcos ameaçadores que impediama aproximaçãomesmo daquelas criaturas sem qualquer instinto de preservação. Retrocederam, mas nãoviraramascostasparaosinimigos.Yanishacuspiudenovo,eRaaziviumaissangue.

— O maldito líder da gangue acertou um murro às cegas bem no outro machucado —reclamou ela, agora sem esconder o queixo ensanguentado. — Foi um golpe de sorte de uminfelizdescerebrado.

—Eles forammaculadoshápouco tempo—disseRaazi, apertandoumcortenoombro.—

Aindasãomuitoviolentos,maspoucocoordenados.Sortenossa.—Oproblemaéqueestamosficandocansadas.Esabemosquevemcoisapiorporaí.Esquecendo as kaorshs por alguns segundos, os Destrinchadores pareciam estar se

desentendendo entre si, empurrando uns aos outros e rosnando. Com sorte, eles poupariampartedotrabalhodeRaazieYanisha.Apausabem-vindapermitiuqueasduasobservassemcomoestava a confusãonas arquibancadas.A algazarra já havia praticamente acabado, commuitoslanceiroscaminhandoentreosespectadores,quevoltavamagritarxingamentoseincentivosnadireçãodaArena.

—FoisobreissoqueSureyyafalou—disseYanisha,comosepensandoalto.Raaziseinflamounomesmoinstante.—Comoassim?—Elateminstinto.DevesercoisadaMáculaoualgodotipo.Farejoualgodeconspiratóriona

gente,masdeveterimaginadoqueestivéssemosmancomunadascomotalAparição,planejandoalgumataqueduranteoFestival.Temalgumacoisaacontecendonasarquibancadas.

Raaziolhoumaisumaveznaqueladireção. Imaginouqueograndenúmerode soldados láfosse uma prevenção contra ações diretas do povo. Sentiu-se um tanto quanto acalentadasabendoqueoutrapessoaousavaseoporaUna,mesmoquearebeldiasemanifestassenaformade um boato. Uma ideia não eramais importante que uma ação,mas eramelhor que nada…Porém,parafalaraverdade,elasequeracreditavanaquelesboatosdeumencapuzadomisteriosoquetrajavaacorproibida.

OsDestrinchadorestinhamparadodebrigarentresi.Infelizmente,odesentendimentodelesnãoresultaranamortedenenhummembrodagangue.

—Lávêmeles—murmurouRaazi,apoiandoumjoelhonochãoeestendendoalançaàfrenteparareceberacargadeataquedosmaculados.

Sentiuotecidodacalçaumedecercomosangueviscosoqueencharcavaopisodeobsidiana.Yanishaseagachouaoseulado,asduasespadasjáquasesemfioprontasparacontinuarabatalha.

—Vamosacabarlogocomisso.

Apontadalançaatravessouabarrigadomaculadocomcrâniodecavalo,eakaorshdepeleclaraaproveitou sua arma longa comoalavancapara erguer o sujeito, que era aindamaior que ela.Aelianprendeuarespiraçãoduranteogolpe,enquantoolíderdosDestrinchadoresdescreviaumarcosobreaguerreira.Aoutrakaorshaproveitouparagolpearopescoçoexpostodoinimigoaindanoar,alâminaenterrando-sepoucoacimadaclavícula.Amultidãourrou,eofalcoeiroseviufazendoomesmo.

Apontadalançadakaorshsepartiunoestômagodoadversário,maselacontinuoulutandosó com a haste. Nenhuma das duas sequer parou para apreciar o resultado do ataque

sincronizado que arquitetaram. Enquanto o crânio de cavalo ainda rolava no piso negro daarena,osoutrosquatroDestrinchadoresforamexecutadoscomgolpeshabilidosos,akaorshdalançaosderrubandoenquantoadasespadasseparavaascabeçasdoscorposmaculados.

Amultidãogritoueaplaudiu.Aelianfezomesmo,massuaspernascomeçaramatremersemcontrole.Afinal,foradepoisdeumaparenteêxitoquetudoderaerradoparaopai.

Aproveitouparaolharasituaçãodasarquibancadasláembaixo.Aconfusãoforacontrolada,masgruposde lanceirosÚnicos faziamuma rondaostensiva, passandoentreos espectadorescomoavesagourentas.ViuNiahkondelegandoinstruçõesparaguardasenquantoperscrutavaasarquibancadas comolhos astutos.Aelian se encolheude volta para seu esconderijo, pois nãoqueriadaroazardeservistopeloAutoridade.Todocuidadoerapoucocomapercepçãoaguçadadeumkaorsh.

Enquantoaspessoaslouvavamasguerreiras,Aeliansentiucertoconfortoemverquehaviamaisgentetorcendoporelasdoqueclamandoporumbanhodesangue.Porém,elesabiaoqueissosignificavaparaoFestivaldaMorte:seupaiforaexaltadodamesmamaneiraapósaprimeiravitória,eUnasimplesmentecolocouseuGeneralnaArena.Asoberanapareciaquererprovarqueninguémerapáreoparaseupoderesuadivindade.Dessavez,elesabiaqueodesafiofinalseriaoutro,poisadeusanãopodiarepetirofeitodemandarProghonatéaArena—umadasgrandescaracterísticasdoFestivaleraadequeumdesafiofinaljamaisserepetiria,mesmoapósmilanos.TalvezfossemotivodeorgulhoparaUnaeaCentípedeprovarqueacrueldadedeleserabastanteversátil.Súditosqueencaravamoesperadopodiamcomeçarapensaremalgumamaneiradesevoltarcontraquemosacorrentava.

As trombetas soaramnaTribuna.Unaestavadepé,olhandoparabaixo,dessavez semqueninguém lhe servisse deArauto. Proghon estava do lado direito dela, e era possível enxergarSureyyamaisaofundo,osolhosperscrutandoamultidãoàesquerdadaTribuna.Enquantoisso,aCentípedesereuniaatrásdotrono,osencapuzadostrocandocomentáriosaossussurros.

Umsegundotoquedastrombetas.Mesmocomosolatrásdeumanuvem,Aeliansentiuumformigamentonocorpoqueerabemparecidocomossintomasda insolaçãodeduasdécadasantes.

OmaciçoportãodocalabouçodaArenacomeçouaabrirdevagar,osistemadeengrenagensdosanõestrabalhandonavelocidadepadrão.

Atéquehouveumestrondo,umurro,eumdosladosdoportãofoiarrancadodasdobradiçaspor uma abominação que não tinha amenor vontade de esperar todo aquele tempo para sealimentar.

—Quenegócioéesse?Raazi não sabia. Se Yanisha, que era a grande conhecedora de bestas e animais — tendo

trabalhadonoPalácioenoCanilantesdeadquirirsuasemiliberdade—,nãofaziaamínimaideiadoqueeraaquilo,comoelapoderiasaber?

Ametadedoportãoarremessadanoarcaiucomumestrondo,esmagandoocadáverdeumdosanõesmaculadosdosDestrinchadores.Ourromedonhoeentrecortadosooumaisumavez,emuitos espectadoresnas arquibancadas gritaramde terror,mesmo estando a umadistânciasegura. Raazi não podia julgá-los. O alerta anônimo voltou à sua mente; a mensagem quereceberaeramuitomisteriosa,elanãosabiaporqueosujeitoqueaescreveranãoabriraojogosobreafera.Sebemque,pensavaRaazi,seestivessenolugardapessoa,tambémteriadificuldadesdeexplicaroqueeraaquelemonstro.

Parafinsdeassimilação,suamentecompreendeuoanimalporpartes.Amaiorpartedeleerasemelhanteaumjavali;mas,umjavaliemescalaapropriadaparaumdosgigantesdosPortões—ouseja,obichoeramaiorquesuaantigacasaàbeiradoSegundoBosque.Quatrograndespresassaíamdaboca,duasmenoreseduasmaioresemaiscurvas,umadelasparecendoartificialmenteafiada e a outra em tamanho desigual, quebrada na ponta. A carranca era um amontoado deverrugas, os olhos bem afastados um do outro na face: o que, num exame rápido, fez Raaziimaginarseficardefrenteparaobichoeraseposicionaremseupontocego.

Patas com cascos fendidos, um pandemônio de dentes tortos. A corcova domonstro eramusculosaetinhamarcasdequeimaduras.Eraaíqueacoisa iasetornandomaispesadeloquemera aberração dos Grandes Pântanos: o couro grosso e escuro aos poucos ia se tornandoluzidio,comoacarapaçadeuminseto.Recurvadosobresuascostaseestendendo-senoarestavaumagigantescacaudadeescorpião,emvezdeumrabodejavali.

Omonstropercebeuoscadáveresdosmaculadosaoredor,eissofreousuaentradaraivosanaarena. Sempestanejar, abriu a boca, envolveu o braço de umdosDestrinchadores e passou amastigaraslâminasquesubstituíamasmãosdomaculadocomosefossemcapim.

—Aindanãoseioqueé—balbuciouRaazi,suandofrio,enquantooanimalpartiaparaooutrobraço.—Masele…comemetal?

—Achoqueobichoéatraídopelobrilho—respondeuYanisha,observando-o.—Olhacomoelevaideumaarmaparaaoutra.

Raazi ficouatentaaessefato.SeUnaesperavaumamatançadesenfreada logodecara,teriaqueaceitaroconstrangedorfatodequeaferasópensariaemlutarapóscomertodoobanquetedecadáverestemperadoscommetal.

—Oferrãoédomeutamanho—disseRaazi,pensandoemvozalta.—E,segundooavisodoanônimo,évenenoso.Nosbrevesmomentosdequeasduasdispuseramantesdeencararohorrordeperto,Raazi

apontou para a barriga e a caudada criatura, que davam espasmos conforme elamastigava ometaldasarmasedasarmaduras.Comoaçogolpeadonumabigornaaindaembrasa,apontadoferrão brilhou, fluorescente, um brilho verde e doentio que gotejou em cima das costas dobicho…queurrou,semparardedevoraroscadáveres.

— Ele é marcado pelo próprio veneno. Agora entendi as queimaduras nas costas — falouYanisha,vendoocourodojavalifumegar.

Edepoisdissoninguémfaloumaisnada,poisomonstroenfimreparounobrilhodasespadasdeYanisha.Comumgritodemassacrarostímpanos,aferapateouochãodeobsidiana.

OpúblicopresentenaArenagritouenquantoaspessoasqueestavamnasarquibancadasmaisbaixastentaramsubiralgunsdegraus,tudodamaneiramaisdesordenadapossível,éclaro.Aelianprecisavaadmitirque tambémestariadesesperado caso estivesse lá.A lembrançadomonstrodentrodajaula jáeraamedrontadoraosuficientesemassociarruídoseurrosaumverdadeiropesadelovivo.Ficouimaginandoquantostiposdecriaturasdesconhecidasviviamnospântanos—e imaginou também como tinhamcapturado aquele bicho. Se soubesse a respostapara essemistério,teriaditoàsduaskaorshs.Elasjáestavamsendoatacadaspelaferacolossalfaziaquaseumminuto,epareciaquenãodurariamoutro.

Era como se aquele javali gigante se alimentasse de metais para produzir o veneno quepingavadapontadacauda.Eleavançavaemgalopesensandecidos,easguerreirasesperavameleestarbempertoparasairdafrentecompulosemovimentosdakaita.Quebradanaponta,alançadakaorshruivasetornaraumavaradeapoioqueaajudavaarealizarossaltos.Aoutra,munidadeduasespadas,tinhagolpeadoaspernasmusculosasdobicho,quemalpareciasentiroscortes.Ocourodaferaeragrosso,outalvezasespadasjáestivessemcegasdemais.

Aelian tentavapensarpositivo,massemarmasdecentesouqualqueroutraperspectivaquealterasseo cursodocombate,pareciaqueo jogodegatoe ratoprosseguiria atéqueumadasmulheressecansasseefossedevorada.

Foi nesse momento que alguém no outro extremo da Arena assumiu o controle de umabalestra.

Raazicorreuparamais longedo javalieseagachou,tocandoaobsidianacomasduasmãose,lentamente,fazendoapeleassumironegrumedochão.Atentaàcompanheiramesmoenquantodavacambalhotasparafugirdoataquedacaudadeescorpião,Yanishatambémestavarebaixandootomdapele,massócompletariaacamuflagemdepoisqueRaaziconseguisseterminarasua.Mudar a cor de todoo corpo exigia a plena concentraçãodeumkaorsh, e a presençadeummonstrogigantenãoajudavaemnada.

Raazi olhou para as palmas dasmãos, já negras: não achava que era sua camuflagemmaisimpressionante, porém, era o melhor que podia fazer em pleno Festival da Morte, com suaesposa em perigo. Pegou a haste da lança do chão e olhou para Yanisha, dando um saltomagistralparatrásafimdeevitarumataquefrontaldacaudadaaberração.Acaudasefincouna

obsidianae,aoserrecolhida,deixouumapoçadevenenoborbulhante.Esquecidapelomonstroporuminstante,Yanishaterminavaoacabamentonapelequandoo

somdealgorasgandooarafezdarumpassoparaolado,porpuroinstinto.Umasetaquasedotamanho da lança de Raazi atingiu o ponto que ela ocupava um segundo antes, arrancandofaíscasaoatingirochão.Akaorshruivaolhouparaadireçãodeondeasetapartiraeviuqueumadastorresdebalestrasestavafuncionando,comumsujeitomuitosorridentearmandoasegundaseta.

Nãoacreditoqueessevermechegouaesseponto,pensouRaazienquantoobservavaHerkZatoiffdisparandoumasegundavez,agoranadireçãodela.Asetavoounumatrajetóriacomprometida,eakaorshnemsedeuaotrabalhodesairdolugar.

—Balestras!—gritouYanisha,golpeandoacaudadeescorpiãoerolandoporbaixodaspernasdoanimal.—Odesgraçadoconseguevervocê!

—Jápercebi!—bradouelaemresposta,pegandoaprimeirasetanochãoecorrendonadireçãodo javali, em zigue-zague, para dificultar amira deHerk.— Saia daí e termine a camuflagem.Deixacomigo!

—Não!— falouYanisha,umadesuasespadas fincando-senacoxadianteiradomonstro.Alâminasequebrou,eelaarremessouparaoladoopunhoinútildaarma.—Tenhoumaideiaque…urgh!

O coração de Raazi quase parou ao ver Yanisha ser jogada para o lado com um golpecompletamenteinesperadodacaudadaabominação.Porsorte,oferrãonãochegouaatingi-la.Raazi assoviou forte e correu,percebendoa confusãodo javali aoverumpedaçodochãodeobsidianaindoparacimadele.Akaorsharremessoucomforçaaseta,que,comumruídoseco,cravou-senopescoçomusculosodafera,massemencontrarumaveiaouumpontovital.Raazipraguejou,eomonstropareceuficaraindamaisraivoso.Herkgritouatrásdabalestraalgoquecontinhaaspalavras“morram”e“vadias”.Eledisparououtravez,easetaatingiuochãoantesdericochetearederrubarYanisha,queacabavadeselevantardoataqueanterior.

Raazi cerrou os dentes, concentrando-se no objetivo atual: o monstro. Com a visãoperiférica,viuYanishaselevantardenovo,comdificuldade,epercebeuqueHerkcolocavamaisumasetanaarma.

Pela primeira vez, pensouque todoo plano tinha sido umgrandedesperdício de tempo eesforço.

ComobomconhecedordosubmundodosCamposExterioresedesuasfigurasdepoder,Aeliantambémreconheceuosujeitoqueoperavaabalestra.Naquelemomento,adorariabotarasmãosnopescoçodeHerkZatoiff,aquelemalditoaproveitador.Não faltavacovardiaemUntherak,mas, ainda assim, eraumaatitude revoltante.Apostavaquemuitosdos espectadores também

deviamestarchocadoscomohomemquepagarapelodireitodeusarabalestrajustoquandoasduas guerreiras tinham conquistado a plateia. Depois de toda a contenda contra osDestrinchadores,askaorshsaindaprecisavamenfrentarumidiotaquetinhamaisdinheiroquecompaixão.

ViuumadaskaorshsseerguerecorrernadireçãodatorreondeHerkestava.Boaestratégia,jáqueaarmanãoteriaânguloparamirarlogoabaixo.OAutoridadedeuoutrotiroemvãoantesdeperderaúltimachancedeatingi-la.Pessoasgritaramquandoamulherconseguiuseprotegerdos tiros, e Aelian ouviu um grupo de kaorshs gritarem Yanisha em uníssono. Logo, a decamuflagemdeobsidianaecabeloacobreadocomoumbakirdeviaserRaazi.

Aelianestavafelizporpodertorcersabendoquemeraquem.Pegou-segritandoonomedeRaazi,quesaltavacomvigorenquantoaparceiratomavafôlego longedoalcancedomalditoZatoiff.Elainclusivehaviasentadodepernascruzadasnochão,oquecausouummurmúriodeespantonasarquibancadas.

Porém,cercadedezsegundosdepois, ficouclaroqueaquelanãoeraacoisamaisespantosaqueYanishafarianaquelatarde.

RaaziviuqueaesposahaviaseabrigadologoabaixodatorreemqueHerkestava.Garotaesperta.Minha garota. Ela até sorriria senão estivesseprestes a sermastigadapor aquela profusãodedentespodres.Então,mesmonomeiodetodaabalbúrdiaaoredor,escutouogritodeYanisha,gutural e raivoso. Se ela queria chamar a atenção da fera, não deu certo, pois o bicho sequerdesviaraosolhosdeRaazi.

Yanishagritoudenovo.—Aqui!Raazi!Façaessacoisamever!QualquerpessoaenxergariaYanishanaqueleinstante.Era um talento único deYanisha, reproduzir brilho na pele. Raazi se lembrava de como a

parceiraconseguiasetornarâmbar,fazerapelerefletirluzoumesmoreproduziremseucanväsoefeitodosolsobreaágua.Conseguia,inclusive,tornaropacoalgobrilhantequeatocasse.

Noentanto,naqueleinstante,dapontadastrançasatéoúltimodedodospés,Yanishaerafeitadeaçoreluzente.

Secontinuasseparada,passaria semproblemaalgumporumaesculturaemescala real feitapelasmãosdosanõesmaistalentosos.Eraumaimagemforte,eRaazisabiaque,casonãotivessetãopoucotempodevidapelafrente,lembraria-sedaquelaimagematéavelhice:Yanesuapeledebrilho ofuscante, mesmo que o sol não estivesse a pino. Fez-se um silêncio estarrecido nasarquibancadas, como se muitos ali presentes só tivessem descoberto naquele momento ahabilidade das kaorshs. Raazi sentiu orgulho, algo que não eramuito típico de sua raça. Aomesmotempo,ficougratapeloarroubodeespantodequemassistia:eraassimqueelasesentia

todososdiasaoladodeYanisha.Iluminadaeestarrecidaporumbrilhoúnico.Oanimalparouporumsegundoantesde investircontraa reluzenteeapetitosakaorshde

metal.—Venhamepegar!—berrouYanisha,segurandoapenasafacaquepegaracomoreserva.Raazinãopercebeuqueacamuflagemdeobsidiana(quenãotinhafuncionadocontraojavali

tãobemquantoplanejara)seesvaíra.Segurandoahasteda lança,partiuemdisparadaatrásdapoeiralevantadapeloscascosdafera,arriscando-sepertodemaisdacaudadeescorpião.ElasabiaqueobichosótinhaolhosparaYanisha…

Ouviuoestalosecoquesignificavaumdisparodabalestra.Herk,queporsegundospreciososfora esquecido, sorria, presunçoso.Todoodinheiro gastovaleria a vingança e ahumilhação.RaazisabiaqueelenãopoderiaacertarYanishadali,assimcomosabiaqueobandidonãofarianadaparaajudá-lascontraacriatura.

Otempoandavadevagar,eaquelasetaeratodadela.Perto demais. Viu a seta de frente, aproximando-se, rodopiando. Tudo acontecia tão

lentamentequeRaaziachouengraçadocomoassetasseencaminhavamatéoalvo,porvezesdescrevendoumatrajetóriacurva,enãoemlinhareta,comoaaçãoeocalordabatalhafaziamparecer. Aquela vinha torta, acanhada. E nessemomento estava perto demais. Impossível dedesviar.Comosefintavaumtirodebalestraàqueima-roupa?

As pernas da kaorsh responderam antes que ela tivesse consciência do que estavaacontecendo. Seu corpo havia colocado o raciocínio de lado e assumido o controle, comotantasvezesaconteciaembatalha.Quemassumiaotearemsuamenteeraumafiandeiramaisvelhaesempaciênciacomatecelãinexperiente.SuaflexibilidadeevelocidadeaocorrerfizeramRaazi dobrar o corpo para trás enquanto deslizava de joelhos pela obsidiana cheia de poeira,sangueeséculosdemortes.Asetaaindaaatingiria.Fortedemais.Raazisentiuocabelovarrendoochão.Queriaseachataromáximopossível,tornar-seumafolhadepergaminhocoladaaosolo,mas o canväs não se transmutava daquela maneira. Segurando a haste com ambas as mãos,ergueu-a na frente do rosto durante a derrapada e tocou a seta quase que de raspão,mas foisuficienteparaalterarseucurso.

Aplateiaurrou.Herktambém,masporummotivodiferente.Raazificoudejoelhos,aindaprendendooar.Delonge,viuorostovermelhodohumanoeo

olharincrédulonadireçãodela.Abaixo do Autoridade, Yanisha aguardava a aproximação da fera. Também estava perto

demais.Raaziestendeuamãoparaaamadacomosequisesseempurrá-laparalonge,salvá-ladoimpactocomaforçadamente.

Faltandocentímetrosparaaspresasdomonstroaalcançarem,Yanishasaltouparaolado,eRaazi quase pensou que sua vontade de fato a movera, como nos antigos relatos de magiaproibida.Comumacambalhota,akaorshrolouparaforadocaminhodoscascosdodemônio,suacoloraçãometálicajádesbotandoenquantoselevantava.Aferanãotevetempodeparare

enfiouacabeçanabasedatorredabalestra,querangeucomoimpacto.Umaríetetitânicoqueguinchavacomoumporcoeque,nãobastasseaforçaeosdentes,aindapodiaenvenenarcomsuacaudadeescorpião.

UmHerkZatoiffabestalhadofoilançadoparaafrenteapósoestrondodainvestida,atorredesabandoaospoucosconformeamadeiracedia.Omonstrosechacoalhavatodoconformeosdestroços o atingiam, procurando a imensa peça cromada que estava ali segundos antes. Osespectadoresgritavam.Algunsdeles,juntocomumpunhadodelanceiros,despencaramnaarenaporestarempróximosdemaisdatorre.

Jogandoalançasempontaparaolado,Raazipegououtradaspesadassetasnochãodaarenaeavançou em silêncio pela retaguarda do javali, que guinchava contra a fileira de lanceirosformadaaospésdatorredetirodestruída.Imprudente,umdosÚnicostentouatacá-locomalança,elogoteveacaixatorácicarasgadapeloferrãodomonstro.Poucossoldadosmantiveramaposiçãoaoveremosujeitoiçadoatéaalturadabocadojavali,quepassouadevorá-lomaispelofulgordaarmadurareluzentequepelacarne.Omonstroestavaentretidocomdiversaspresasaoredor,eakaorshachouquetalvezfosseburricechamaraatençãodobichonaquelemomento.Deveriaaproveitaraquelapausapararepensarsuaestratégia.

Então,viuYanishaseesgueirandoparapertodojavali,aproximando-sepéantepé.—Yan!Não!Volte!Como poucas vezes acontecera naquela existência, Yanisha a ignorou. Estava entre os

destroçosdatorredabalestra,levantandotábuasetoras,esóentãoRaazipercebeuqueaesposanãoestavaplanejandoumataquesurpresaàfera.

ElaprocuravaporHerk.Ohomemrastejavaentreosescombros,tentandosairdepertodacarnificinaqueseinstalara

entre o monstro e os infelizes lanceiros de Una. Yanisha o encontrou tentando passardespercebido,eofezpararcomumapisadacalculadaentreasescápulas.

Ele praguejou e tentou se virar. Yanisha permitiu, mas em seguida lhe deu um chute noestômago. Herk se curvou, xingando-a das piores coisas que conseguia imaginar. Raazi fezmençãodeavançar,masaoutrakaorshamantevelongecomumgestoincisivo.Entãosevoltouparaosujeitoembaixodesuabota.

—Vocêtentounosatrapalhar.Depoisdetudoqueenfrentamos,vocêtentounosatrapalhar!—Saiadecimademim,vagabunda!Asoberanaestánosvendoagora,eseutrabalhoédetero

monstro!Vaisercastigadasefizerqualqueroutracoisa!YanishasorriueseagachousobreHerk.Eledeviaestarodiandoaquelemomento,diantede

maisumakaorshseguradesi.—Aúnicaregraquevouquebraréaminha,homem.Ela ergueu Herk pelo cangote, colocando-o de pé. Raazi, que achava que conhecia o

temperamentodaesposa, ficoudequeixocaído.Yanishaestavatendopiedadedohomemqueincendiaraacasadelasedepoisaindahaviatentadoeliminá-lasnaArena?

YanishasecertificoudequeHerkestava firme.Olhoupara trás,nadireçãodeRaazi, e seuslábioscheiosdesangueformaramumapalavramuda:“Desculpe.”

Então,elatocouorostodeHerkZatoiff,bemdevagar.

Eradifícilconteraalegriaaoverqueasduassemantinhamnojogo.AeliansentiaumpoucodepenadosguardasdeUnamassacradospelogigantesco javali, sobretudoporquenãoeramunsgosmentosdesalmados,masprecisavaconfessarqueoprazerdeverumsujeitinhonefastofeitoHerkZatoiffcaindonaArenafezvalertodooesforçodefugirdacelaparachegaratéali.

Aguerreiraquehaviasetransformadoemmetalpuroestavadevoltaaoseutomdepeledeébano.ElaajudouoAutoridadea se levantar, tocouo rostodele e, emseguida, assoviouparachamaraatençãodomonstro.

Aelian não entendia muito bem o que estava acontecendo, mas teve a impressão de queYanishatinhaacabadodedeixarorostodeHerktodoprateado.

Raazinãoconseguiaacreditarqueaesposativessefeitoaquilo.Era…profano fazerarteforadeseucanväs.Eraerrado,imperdoável,iacontratodaatradiçãokaorsh.Sureyyanãohesitariaemfazeralgodotipo,maselaeraumamaculada,criadeUnaedeProghon.Era fatoquekaorshsbanhadosemMáculamanifestavamseusdonsforadocanväscomfrequência,mas…Yanisha?

OAutoridadeestavanomesmolugar,sentindoódio,semsaberoqueacontecia.Aindanãotinhapercebidoqueseurostoestavametalizado.Jáojavali,apósoterceiroassoviodeYanisha,pareciamuitoanimadocomavisãodeumhomemderostoapetitoso.

— Como pôde fazer isso? — perguntou Raazi, abalada, indo até uma ofegante Yanisha. Aalgunsmetrosdelas,Herktentavamancarparalongedafera,queresolveubrincarcomavítimaaferroandoomeiodesuaespinhadorsal.—Vocêmanipulouascores…numhomem!

—Tivemeusmotivos. Jávoupagarumpreçoaltodemaispor tudo issoparadeixaraquelemalditoescaparileso.

—VãojogaremcimadagenteaculpapelamortedeumAutoridadedeUntherakquetambéméorganizadordoFestival!—protestouRaazi.

Yanishadeudeombros.—NãoachoquemuitostenhampercebidooquefizcomHerk.Oqueamaioriaviufoiqueeu

tenteiajudá-loaficardepé.OqueaconteceudepoisfoiuminfelizacidentedoFestivaldaMorte.—Vocêsabequeaspessoasvãocomentar…—Assimcomovãocomentarofatodeeletertentadonosmatarduranteodesafio—falou

Yanisha,segurandoobraçodaesposaedepoisolhandoparaalgumpontoatrásdela.—Escuta,podemos até melhorar a nossa imagem com Una. Alguns poucos lanceiros sobreviveram…

Ajude-osasairdaArenaenquantofaçoobichovoltarparaocalabouço.—Mas…—Aestaaltura,comumorganizadordoFestivalsendodevoradodiantedetodomundo,eles

sóqueremretomarasrédeasdasituação.—Yanishalargouobraçodaparceiraetocouseurostocomcarinho.—Confieemmim.

Raazi correu,mantendo-se forado campodevisãoda criatura.Yanisha foi até a frentedoportãodocalabouçoeassovioudenovo.Omonstrovirouacabeçorranomesmoinstante,comumdosbraçosdeHerkaindapenduradoentreosdentes—seusinstintoshaviamassimiladoqueaquelesomeraoprenúnciodecoisasinteressantesparaseuapetite.

Eláestavaela,Yanisha,comocanvästodoprateado.Virando-seepisoteandooquehaviasobradodaúltimarefeição,aferadisparounadireçãoda

kaorsh,urrando.Raaziajudavaossoldadosasubirdevoltaparaaarquibancada,enquantoalgunsjogavam cordas. Ela parou para ver a investida do animal contraYanisha bemna entrada docalabouço.

—Preparem-separafecharosegundoportão!—gritou,semsabersealguémaouviaeestavadispostoacolaborar.

Otropelnaobsidianasónãoeramaisaltoqueoguinchoestridentequesaíadagargantadaabominação. Raazi começou a correr na mesma direção, sem saber aonde as suas pernas alevavam.

Paraoespectadorcomum,Yanishapareceusumirnoarassimqueomonstroestavaamenosdeummetrodedistância.Contudo,Raaziapercebeumudandodecornumpiscardeolhos—doprataparaonegrumedaobsidiana—erolandocomagilidadeparaforadoportão.

Comumestrondo,aferafoiencarcerada.

Aeliantentavaentenderoquehaviaacontecido.Amultidãoestavaemsilêncio,provavelmentepensandosobreamesmacoisa,quandoYanishaapareceudiantedeRaazieaabraçou.

Ainda assim, ninguém deu vivas de comemoração. Afinal, o monstro não fora vencido,apenascontrolado.Raazi,inclusive,prezarapelasegurançadeváriosguardaseespectadoresquehaviamcaídodentrodaArena.OjustoseriadaroFestivalcomoterminado,masAeliansabiaoquesepassavanamentedetodosnaqueleinstante:Unainventariaumnovodesafio.

UmsilênciopesadopairavasobreaArena.Eleimaginouaexaustãodasduasguerreiras.Observou-as,abraçadas,aguardandooveredicto

virdaTribuna.VoltouseusolhosparaUna.Elaestavadepénabeiradasacada.Proghonestavaaolado,apenasdoisoutrêspassosatrás.

Aelian notou omovimento ao fundo do camarote, a linha cinzenta daCentípede ganhandovida,asbatasdeslizandoumpoucoàfrente.

Apesardeserfeitodeseda,omantodeUnanãoseenfunavacomoventoporcausadetodaapedrariaeadornosdeouro.Omaisprovávelaacontecer,Aeliansabiaporexperiênciaprópria,eraqueasoberanamandasseoGeneraliràArena,paracompletaroquetinhacomeçadoedeixarclaro que aquele evento ainda era implacável.Nunca antes um Festival daMorte tinha saídotantodocontrole.

Ofalcoeirocolocouasmãosemconchaaoredordaboca.—Vencedoras!Vencedoras!Elegritouapenasduasvezes,masaspalavrasecoaramaquiealiemoutrasvozes.Aprincípio,

timidamente.Depois,osgritos foramencontrandoritmo,sendorepetidospelosespectadoresnasarquibancadas,comoumcorodesaudaçãoaUna.Eraalgobempróximodeumacelebraçãoaalguémquenãoeraaencarnaçãodivina,eAeliannãoserecordavadeaquilo játeracontecidoantes.

UnaolhouparaProghon,quevirouorostohediondoparaela.OCabeçadaCentípedefoiàfrente,easoberanaescutouohomemsemsequerolharparaele.

RaazieYanishaencaravamUna.Pareciamcansadas,maspreparadasparaqualquerdecisãodadeusa.AquilofaziacomqueAeliandesejassequeseupaiestivessealinaquelemomento,lutadoaoladodepessoascomoelasecomtodaumamultidãoclamandopelavitória.

Unaapontouparaaskaorshs,emumgestoquemaispareciaumaacusação.Eentãoapontouparaoscéus.

Aelianetodaaarquibancada,quejamaistinhamvistotaldesfecho,demoraramaentenderqueRaazieYanishaeramvencedorasdoFestivaldaMorte.

10

Aos pés da escada que levava à Tribuna de Honra, novos mantos negros e limpos foramestendidosparaaskaorshs,poisseriavulgarseapresentardiantedeUnacobertasdesangue,suore sujeira. Sureyya ia logo atrás dos pajens que ajudaram Raazi e Yanisha a se vestirem e doslanceirosque recolhiamasarmas.ATenentesorria,provocativa, tentandominaracalmadasduas segundos antes do momento mais glorioso do Festival — pois Raazi não estavaconseguindo esconder o ódio pela maculada. A mancha azul em volta do olho esquerdo adenunciava,assimcomooslábioscrispadoseospunhoscerrados.

—Controle-se—sussurrouYanisha,apertandoamãodeRaazi.—Nãopodemosestragartudoagora.

—Elaéminha—disseRaazi,emaltoebomsom.—Falebaixo,euimploro.Raazisuspirou.Ali,naquelemomento,aspalavrastinhamumpesodiferente.—Desculpe.—Tudobem.EumesmanãoestounadaansiosaparalidarcomSureyya,masnãoquerodeixar

araivamecegarparaoqueprecisofazer.Eolhaquetenhoosmeusmotivos.Elavaireceberseucastigo,assimcomoHerk.

OsÚnicosaschamaramparaquetomassemafrentedaformaçãoesubissemosdegrausqueaslevariamatéasacada.Raaziengoliuemseco.

—Talvez…talvezsejaaúltimavezque…Yanishanãoesperouqueelaterminasseafraseparabeijá-la.NemaTenentenemosÚnicos

tiveramcoragemdeinterrompê-las.

Outrofatoinéditoparaumdiacheiodelesfoiqueosespectadoresdasarquibancadaspuderamdescer àArena para ver o pronunciamento das vencedoras do Festival— e assim começou otropeldemilharesdebotas,sandáliasepésdescalçospisoteandoosanguecamufladonopalconegroapóshorasehorasdebatalha.

Aeliantevevontadedesemisturaràmultidãoparaassistiràsolenidade,gritarosnomesdeRaazi,Yanishaeodeseupai.Afinal,porquenão?Naquelemomento,estavasentindoalgobempróximo a uma represália concretizada. Não queria imaginar coisas ou atribuir demasiadaimportânciaapequenasações,masofatodeterenviadoaelasamensagemdealertaofaziasesentir merecedor de uma pequena parte daquela revanche — ainda que o mérito fosse, sem

sombradedúvida,dasduasguerreiras.Ainda havia Únicos fazendo uma ronda ostensiva nas arquibancadas, que se esvaziavam

conformeoscidadãosescoavamparaaArena.Algunsdeleschegavamainterpelarencapuzadosparafazerperguntaserevistá-losembuscadearmas.

AeliansabiaquetudoaquiloeraporcausadoalertageraldadocontraAparição,eagradeceuporestaracimadocampodevisãodetodos—seriamelhorirseencaminhandoparaoladodaArenaqueficavamaispróximoàTribunadeHonra,poisdalipoderiasaltarparaastorresmédiasdoPalácioe,delá,tomarorumoparaoPoleiroantesquealguémdessecontadesuaescapada.

Sacudindoaspernascomforçaparaselivrardosdoisdiabretes-alpinistas,agoramovidospelasededevingança,Aeliandisparoupelacoberturaacimadascabeçasdevigiasalertas,certodequeninguémconseguiriavê-loali.

Oqueprovariaserumengano.

Ranakhar estava lá para recepcioná-las e escoltá-las escadaria acima até Una. Ranakhar seencontravaumpoucoatrásdeSureyya,eRaazinotouqueeleaolhavacomcertodivertimento,maseraalgodiferentedoardeinteressecínicoecrueldaTenente:oAutoridadepareciafelizemver que as kaorshs tinham sobrevivido, mas tentava não deixar aquilo explícito em seucomportamento.EletinhaavisadoRaazisobreasbalestras.Ranakhardeviamesmoseroautordamensagemanônima.

—Poraqui,questionáveisvencedoras—falouSureyya,avozfriaeestalada,enquantoosolhosperscrutavamaskaorshs.

YanishasegurouumadasmãosdeRaazieaapertoudeleve,pedindocalmacomogesto.Nãoadiantou.—Oqueachadepedirumaprorrogaçãoàsuasoberana,apenasnósduas?Sureyyajogouacabeçaparatrás,mostrandooscaninos.Suagargalhadafoitãoassustadora

quantoforadehora.—Ah,infelizmente,aArenaagoraestáocupadapelaralédeUntherak.Maspodemosfazerisso

semplateiaaqualquerhoradessas,serva.— Eu adoraria, Tenente — respondeu Raazi, querendo acertar a boca de Sureyya o quanto

antes.A maculada se afastou, caminhando à frente dos Únicos e deixando-as na companhia de

Ranakhar, que indicou o caminho comumgesto e um sorriso fugaz. Era a primeira vez queRaazisentiaqualquerafeiçãoporumAutoridade,aindaquenãotivessecoragemdeperguntarporqueelepareciaquererajudá-las.SimpatiaporumdoscãesdeUna,pensouela.Aíestámaisumanovidade,elogoagoraquetudochegaráaofim.

Yanisha segurou firme a mão esquerda da esposa. Como ela é forte, pensou Raazi. Não

aparentava fraqueza, dor ou dúvidamesmo depois de tudo que havia acontecido na Arena emesmodiantedetudoqueviriaaacontecer.

E se aceitássemos a vitória e acordássemos juntas amanhã demanhã?OpensamentopassoupelacabeçadeRaaziporuminstante,imaginandoumaexistênciaemquenãoprecisariaesperarpeloDiadeLouvorparasentiraamadaaoladodelanacama,ondeasduasabandonariamalutaporumideal,masabririamosbraçosparaoamorqueportantotemponãopuderamvivenciardeformaplena.

Raazi lutoupara engolir o amargor que se acumulara de repente em sua garganta,mas eracomotentarengolirumaboladepelosemserumfelino.Yanishariubaixinho.

—Amanchaazul…—Ah…Elatentouseconcentrarparafazerosinaldesaparecer,masoolhoficoucomumasombra

mesmoassim.—Desisto—disse,suspirando,sentindoqueacamuflagemestavafalha.—Vocêsabequeeugosto—falouYanisha.—Deixeassim.

Com passos lentos que fizeram a subida da escada parecer mais demorada que deveria, elaschegaram à parte plana da Tribuna, onde entraram por um corredor cheio de lanceiros eAutoridades, muitos deles rostos desconhecidos, de outras regiões de Untherak. RaaziconseguiuenxergarboapartedamultidãoqueagoraocupavaaArena,etodospareciambastanteanimados,apontandoparaelas…

EdeUna,queestavadecostasparaasrecém-chegadas,encarandoossúditosabaixo.EntreasoberanaeaskaorshshaviaaindaalinhacinzentaqueeraaCentípede,que,aomesmotempoquese voltava para fora da sacada, não parecia estar enxergando nada sob seus capuzes vazios.Porém,asensaçãoruimqueapresençadelescausavapareciateralgoavercomofatodeaquelesindivíduosenxergaremsemolhos.Aindaassim,Unaeramaisaltaqueasfiguras,sobretudocomosadornosdeourogenuínoeônixemsuacabeça.

—Onde está Proghon? — sussurrou Yanisha para Raazi, que não o vira desde que haviamcomeçadoodesfileescadaacima.

SureyyatinhaseposicionadoatrásdaCentípede,comolídermilitarnaausênciadoGeneral.Ainda que amaculada fosse umproblema para amissão delas, eramelhor enfrentá-la do queencararoGeneral.

—Nãosei,maséestranhoelenãoestaraquiagora.Assim que Raazi acabou de responder, o levantar demãos repentino de Una fez o rumor

excitadodamultidãocessardeumsegundoparaooutro.Quemcaminhavaparaalgumlugaremquepudesseterumavisãomelhordasacadaparouondeestava.Asoberanaaproveitouosilêncio

absolutoparafazersuavozalcançarcadacurvadaArena.—Dejoelhos,FilhosdaDegradação!Eassimelesfizeram,comoseumaondainvisívelseespalhasselogoapósadissipaçãodesua

voz,obrigandotodosaplantaremojoelhodireitonochão.As kaorshs demoraram dois segundos a mais, como se a resistência dentro delas pedisse

aqueletempoparaseacostumaremcoma ideiaecomadissimulaçãonecessáriaparaoplano.Raazi olhou para a esposa de canto de olho e a viu levar os dedos ao tornozelo esquerdodiscretamente, como se estivesse apenas apoiando as mãos no piso. Não conseguia prestaratençãoaoqueUnabradava,poisomundoaoredorecoavaasbatidasdeseucoração.Sentiaolatejardosanguenacabeça,ossentidosmaisafloradosquenosmomentosdemaiorperigonaArena…atéqueasoberanadisseonomedelaeodeYanisha.EfoinessemomentoqueUnavirouascostasparaamultidãoeolhouparaasduasvencedorasdoFestivaldaMorte.

Raazi nunca chegara perto deUna. Os olhos dela eram tão frios quanto os da estátua nocentrodeUntherak, e amaquiagempesada, comcerteza feitaporumahabilidosaaiakaorsh,potencializava a palidez quase cintilante que aquele rosto de linhas duras exibia. O nariz erabonito,pensouRaazi,reparandoemcomoeraarrebitadonaponta.Seriaumabelamulher,senãofosseumatiranaquesugavavidas.

—YanishaAzatheRaaziTanNurten—disseela,imponente,masimpostandoavozparaquesoassemaisgravequeeradeverdade—, seusnomesserão lembradosnos relatosdeUntherakcomoasprimeirasacompletarosdesafiosdoFestivaldaMorte.Concedo-lhesasemiliberdade,equeambasatendamaomeuchamadoseassimeuordenar.

Yanishadeixouescaparalgomuitoparecidocomumrisodezombaria,queUnanãoregistrouporestarimersanoprotocolo.Umoudoisguardasmaisatentospareceramhorrorizados,masRaazisabiaporqueelaestavareagindodaquelamaneira:suaesposa já tinhaasemiliberdade,eUnasequersabiaqueumadasvencedorasnãotinhaquecumprirasobrigaçõesdiáriasdoMiolo.

Odiscursoseencaminhavaparaofim,eosnomesdaskaorshsforamrepetidosváriasvezes.Nãohouveaplausosoucomemorações,poisquaisquermanifestaçõesdurantepronunciamentosdeUnaeramsujeitasapuniçõesseveras,dependendodohumordooficialdemaiorpatentenasimediações.

—…eassimordenoqueselevantemerepitamojuramentodasemiliberdade,concedidacomoprêmio.

Raazivirouorostoparao lado,aindaagachada.SeusolhoseodeYanishaseencontraram.Não sorriram, não piscaram e não obedeceram ao comando. Os sussurros e rumores foraminevitáveis,masRaazinãoospercebeu.

Ela estava perdida na realidade que havia criado minutos antes, na qual as duas viveriamjuntas,construiriamumlarcomcheirodecomidasendofeita,longasnoitescomvinhoeluzdevelasrefletindonapeledeYanisha…

—Servas,levantem-se!—mandouaTenenteSureyya,avozcomoumchicoteembebidoem

óleoeacesoporumatocha.—Agora!As kaorshs desfizeram a ponte invisível que havia sido erigida para durar apenas alguns

segundos.ApossívelnovavidadeRaazitambémentrouemcolapso,comosesuacasaestivessepegandofogopelasegundavez.

—Até logo—foramaspalavrasqueos lábiosdeYanisha formaram,comextremocuidado,saboreandocadasílaba.

Raazi,porém,nãoescutousomalgum,enãosabiaseaesposadefatohaviaditoalgo,poisomundoemudecerajuntocomtudoqueviviadentrodela.

Osolhosdesuaamadaseestreitaram,entrandoemmododealerta,debatalha.Osdedosdamãoesquerdatocaramalateraldotornozelo,eacamuflagemqueocultavaumalâminafinasedesfez.Eraumafacadearremesso.NemSureyyahaviapercebidoaquilo.

Alguémdeve tergritadoalgosobreelaestararmada.Noentanto,não faziamaisdiferença,pois ninguém seria tão rápido e letal quanto Yanisha durante a grande realização de suaexistência.

A facavooudamãodela, eRaazi estava juntonaquelearremesso, seucoraçãonapontadalâmina.SabiaqueYanishanãoerrariaàqueladistância,muitomenoscomumaarmabalanceada.

Raazi reviu todos os momentos que passaram juntas diante dos seus olhos enquanto odestinodeUntherakmoldava-secentímetroacentímetro,noespaçoentreamãodeYanishaeocorpodadeusa.

AlâminaemitiuumbrilhofugazantesdeseenterrarlogoabaixodoqueixodeUna.Raazinãoviunadadedivinonosemblantepálidodela.AsoberanacambaleouparatráscomoumbêbadoqualquerdoPâncreasdeGrifo.OlhouparaYanishacomosepedissesocorroparaquemacabaradelheatirarumafaca.Tropeçandonoprópriovestidocomasmãosnagarganta,Unaparouaodar de encontro com a amurada da Tribuna, à vista de todos os fiéis que acompanhavam asolenidade.Numúltimoatoconsciente,arrancouafaca,eumjorrodesangueesguichounoar,alcançando, apósalguns segundos, opisodeobsidianamuitosmetros abaixo.Ospoucosqueentenderamacenadeimediatogritaram,horrorizados.Afontedecorproibidaqueirrompeudagarganta da soberanamanchou a fachada clara da Tribuna; o corpomole e ridículo de UnadesfaleceunobalcãodiantedasvencedorasdoFestival.

—Adeusaestámorta!—gritouumavozdesesperada,quejamaisseriaidentificadaemmeioaosinúmerosberrossemelhantesquetiveraminício.

Una morria como qualquer ser. Morria como Raazi e Yanisha morreriam: com os olhoscintilantes arregalados, engasgando no próprio sangue, o encerramento definitivo daqueleevento,amortemaisinesperadadetodas.

—Adeusaestámorta!—repetiuoutravozincrédula.PorummomentoqueseriaumgrãodeareiadiantedodesertoqueeraaDegradação,ospapéis

foraminvertidos,easoberanaseprostrouaospésdeumaserva.Milanoschegavamaofim.

Oprimeirogritode“Adeusaestámorta!”veiodosqueestavamlogoabaixodasacada,osquereceberam os respingos do sangue divino. Aquilo se repetiu com muita histeria nasarquibancadas,eoschoroscontinuaramreverberandoatéquehouvessebemmaisdeumapessoamortanaTribunadeHonra.

Talvezquemestivesseláembaixo,naArena,comoqueixoerguido,nãotivesseenxergadoaevoluçãodoassassinato,apenasasoberanacaindodecostasnasacada,osangueescorrendonaparede. Entretanto, nas arquibancadas, que estavam nomesmo nível da Tribuna, foi possívelenxergarpassoapassooatentadocontraasoberana.Aelianteveumavisãoaéreadetudoqueaconteceu,poisestavaacercadequinzemetrosdasacada.

Levou uma dasmãos à boca, incrédulo.Havia demorado para conseguir chegar até aquelapartedotelhadodoPalácio,quelheconferiaumavistaprivilegiadadasolenidade—contantoquepermanecessedeitado,comopeitocoladoàlajedotorreão.

ViuYanisha,aautoradogolpecerteiro, cair, eviuRaazi tentandodarcabodomáximodeÚnicosaoredor,lutandocomoseestivessepossuídapelaspragasdosSeisDeuses.Enquantoocaos se desenrolava, Una permanecia no balcão, a poça vermelha em torno de seu pescoçocrescendoacadasegundo.

Nadadeimortalidade.Unasangrava,derramandoacorproibidaemmaisdemilanosdeseugovernoemUntherak.

Ofalcoeirotremia.Sentia-sesujoporestarassistindoàquilo.RaazieYanishanãoeramservasnormais?Como conseguiramderrubar a deusa? E omais importante:por que matar a deusa,afinal?

Os Únicos que estavam na Arena começaram a expulsar as pessoas horrorizadas portõesafora,comtruculência.OsAutoridadesgritavamordensdequeolugarfosseesvaziado.Sentiaaeletricidadenoar,demilharesde servos tentandoentenderoque significavaaquedadeumasoberana imortal. Via a abominável Centípede se ajoelhando ao redor do corpo de Una eerguendo-a como formigas, quebrando pela primeira vez sua formação em fila. O corpo foicarregadoparadentrodoPalácioàspressas,comoseaindahouvessealgumtipodesalvaçãoparaaqueleatoirreversível.

AelianselembroudopaisendoarrastadopelaArena.Naqueleinstante,Unaestavatãomortaquantoele,pensou.Igualdade,enfim.

RaazieYanishaesperavamque lanças, flechasegolpesviessemde todosos lados logoapósoataque, semdar tempopara elas fazeremmais nada. Porém, lá estavamas duas, flutuandonoentorpecimento coletivo daqueles poucos segundos que passaram tão devagar, mas quevoltaramacorrernormalmenteassimqueamissãofoiconcluída.

OchãodaTribunareverberoueoarpareceuesquentar.Únicosapontavamlançasparaelas,aomesmotempoemquerecuavamparaaslaterais,abrindocaminho.

O General Proghon, que havia se ausentado durante a solenidade, retornou, mãos nuas,passadas largas e lentas e todo o horror que ele carregava com sua aura opressora. A caveiradourada no lugar do que seria seu rosto derretia, como se o interior fosse uma grande forjaimpedindo o metal de se solidificar. Mácula e ouro ficavam pelo chão, um rastro escuro efumegantedoqualninguémousavaseaproximar.

Raaziseatirouparaolado,agarrandoaespadadeumguardaestupefato.TorceuopulsodoquedeviaserumhumanosoboaçoescovadoeemendouomovimentoparatentararremessaremProghon.Prontaparaabatalha,YanishachutouumÚniconorosto,quecambaleoucomforçaparatrásatébatercomacinturanoparapeitodasacadamanchadadesangueemergulharrumoaopisodaArena.QuandoRaazirecuouobraçoparaoataque,suarespiraçãofoicortadadesúbito,eelacaiudejoelhos.

Sureyya segurava o chicote com as duas mãos enquanto o pé direito prendia metade daextensãodatira,trazendosuapresaparaochãocomosefosseumgnollviolentoedesobediente.

—Matem a outra! — ordenou a Tenente, enquanto Raazi lutava para aliviar a pressão nopescoço.

No entanto, quem teria coragemde atacarYanisha quandoProghonmarchavanadireçãodelacomtantaveemência,praticamentereivindicandoakaorshcomoalvo?

Comospulmõesardendopela faltadear,Raazi enrijeceuopescoçopara tentar retardaroefeitodo sufocamento…e levouumchutenomeiodas costas.Estava sufocando, viradaparaYanisha,que,porsuavez,eraerguidapelamãodireitadeProghon.Yanishachutavaopeitodelecom toda a força,mas de nada adiantava. Os dedos do General se encontravam ao redor dopescoçodakaorshassassina,osgolpesdelaficandomaisfracosacadasegundoquecontinuavacomosanguebloqueado.

ComaTribunasaindodefoco,Raazicomeçouadesmaiar,comacertezadequeSureyyatinhafeitodetudoparaqueelavisseaesposa,amigaecompanheiradebatalhaperecerprimeiro.

Mesmoestandometrosacimade todaaação,AelianescutouoestalodopescoçodeYanisha.PareciaqueoGeneral tinhadeformadoanucadakaorsh, jáqueamãodeleenvolvera todoopescoçodavítima,osdedoschegandoaafundarnaraizdocabelo.Acabeçapendeuparaolado,eProghoncontinuouencarandoosolhossemvidaporalgunssegundosantesdelargaramulhercomolixoparaserrecolhidopelalimpezadoPalácio.

Sureyya,poroutrolado,estavaagachadaaoladodeRaazi,quehaviadesfalecidocomoaçoiteenroladonagarganta.ATenentemexeunocinto,eaadaga longaquecarregavafezumruídoagudoaoserdesembainhada.

—Acabocomestaaqui?—sibilouelaparaoGeneral,avozansiosaporconfirmação.Foi então queAelian agradeceu o fato de estar deitado no telhado, pois com certeza teria

cambaleado e se estatelado entre as duas pessoas mais poderosas de Untherak ao ver o queaconteceuaseguir.

ProghonapontouparaSureyya.Nomesmo instante,o rostodamaculadasecontorceudedor. Como se o efeito daquela bruxaria tivesse uma área de ação, Aelian sentiu como se ascicatrizesnegrasnascostasfossemreabertas,causando-lheumanáuseainstantânea.

—Não—disseSureyyacomumtomdiferente,arranhado,umaversãoguturaldaprópriavoz.OfalcoeirolevoualgunsinstantesdolorososparaentenderqueProghonestavafalandoatravésdaTenente.—Tranque-anoAnel.Querodescobriroporquêdesselevante.

Derepente,orostodeSureyyavoltouaonormal.Anáuseaeadornosferimentosdascostasde Aelian também passaram de um segundo para o outro. Proghon parou por um instante,olhando para o chão. Virou a máscara perturbadora para os lados, como se procurasse poralgumacoisa.

Logo acima, Aelian sentiu como se uma unha dançasse sobre suas cicatrizes. Uma unhacomprida, que raspava as longas estrias negras. Encolheu-se no telhado do torreão, suando,perdendooGeneraldevista.Quandoreuniucoragemparavoltaraespiaracenaabaixo,viuqueProghonmarchava para fora de seu campo de visão e já nãomais deixava o rastro de ouroderretidonocaminho.Elehaviaesfriado após liberara raivae cumprir aobrigaçãoque tinhacom Una. Levando uma das mãos à garganta e parecendo esconder o fato de estar abalada,SureyyadesenrolouochicotedopescoçodeRaaziegritoucomos lanceiros—comsuavozhabitual—paraquelevassemaprisioneiraatéoAneldeCelas,fosseláoqueaquilosignificasse.Enquantoalgunsguardasbatiamnatestaaovertodoosanguederramado,Aelianseencolheunumpontodotelhadoemquenãoenxergavamaisnada.

AindaconfusoeamedrontadocomamortedeUna—oqueaquilosignificariaparaUntherakdaliemdiante?—elamentandopelaskaorshs,ofalcoeiroenfimselevantou,transpondocomcuidadootelhadodeumtorreãoparaooutro,planejandoumavoltarápidaatéoPoleiro,antesqueosAutoridadesfossemaocorredordele.

SubiuparaumtelhadodetelhasescorregadiasqueoobrigaramaengatinharatéopontoemquesaltariaparalongedoPalácio,umlugarqueapartirdeagoratrariaoutramemóriaterrívelparaele.Porém,parasuasurpresa,otelhadodatorreaoladoestavaapinhadodeguardas,muitosdelesusandolunetasparaenxergarotopodasoutrasconstruçõesemvolta.

Aeliansejogouatrásdeameiaspróximas,alarmado.Porpouconãotinhasidovisto…Aquelelugarsempreestavavazio,eeraaúnicarotapossívelparaforadoPalácio.

—Agoravaificardifícilparavocêfugir.Aelianolhouparatrás,assustadocomaaproximaçãodealguémquenãosefizeranotar.Avoz

abafada, o manto vermelho, as mãos enfaixadas… e uma situação bem parecida com a doprimeiroencontro.Apariçãoestavaali,depé,olhandocomtranquilidadeparaoperigonaoutra

torre,aimensaespadanabainhaàscostas.— Eles estão atrás demim.Devem achar que eu tenho algo a ver com o atentado— disse

Aparição.—Abaixe-se!—implorouAeliannumridículosussurrogritado,osolhosarregalados.Apariçãocontinuouali,omantobalançandoaovento.— A atenção deles não está voltada para cá no momento — respondeu o encapuzado,

sentando-sedepernascruzadasnafrentedofalcoeiro.—Masseissofordeixá-lomaistranquilo,tudobem.

Aeliantinhaomedoestampadonorosto.—Vocêmeajudouafugirdaúltimavez.AcabeçadeApariçãoassentiuquasequeimperceptivelmente.Asombradocapuznãodeixava

versesorriaousedemonstravairritação.Incomodado,Aelianretomouapalavra:—Eamaçã…tambémfoicoisasua.—Vocêestavacomfome.—Opotedetinta?—Ah,conseguiupegar?—Nãoacredito.Foivocê.—Vocêopegou,então.—Quediferençafaz?VocêmeincriminouaindamaisparaHaruneNiahkon,quesãoloucos

por um motivo para acabar comigo. Só tenho que voltar para a minha cela antes que medescubram.

—Vaiserdifícil.Nãorecomendo.—É,eusei!Obrigadopormeavisar!Ostelhadosestãocheios.Elesestãoemalertadepoisda…

—Naquelemomento,Aelianhesitou.Aquelaeraumafrasequeelenuncapensouquediria.—…mortedeUna.

—Seráofimdeumaera,AelianOruz?—Porqueestáperguntandoissoparamim?Vocêdevetervistooqueeuvi:gargantaaberta,

litros de sangue derramado— respondeuAelian, sem perceber que omisterioso interlocutorsabiaonomedele.—Mas,decertaforma,devetermuitagentebemmaisconfusaounervosaqueeuagora.

Nasombradocapuz,Apariçãooanalisava.Aelianficavacadavezmaisnervoso.—Gostariadelhemostraralgo.ApariçãoselevantouecomeçouapercorreromesmocaminhoqueAelianacabaradefazer.—Espera!—chamouele,tentandonãogritar.—Ei,estoufalandocomvocê!Paraondeestá

indo?—Paraomesmolugaremquevocêestavaagorahápouco—respondeuAparição,semolhar

paratrásnemdiminuiravelocidadedospassosesaltos.Aelian,noentanto,arregalouosolhoseparouporuminstante.

—Vocêmeviunotelhadodotorreão?—Foioqueeudisse.A figura encapuzada chegou primeiro. Sentou-se mais uma vez de pernas cruzadas,

observando a sacada da Tribuna de Honra ser lavada por servos apressados. O parapeito eraesfregadocomafinco,masamanchavermelhateimavaemnãosair.Aeliandeitou-sedebruçosnotelhado,observandoacena.

—Acabeidesairdaqui.Vocêqueriaqueeuficassevendoos lacaiostentandolimpartodoosangue?

—Espereumpouco.—Nãodáparamedizerlogooqueé?Precisomuitovoltarparaaminhacela.—Neste exato instante, oAutoridadeNiahkon está se encaminhandopara o seu andar do

Poleiro — informou Aparição, ainda olhando para baixo. — Querem interrogar os servospróximos às tigelas de tinta para tentar extrair informações sobre mim, pois supõem que amortedeUnafoiarquitetadaporummovimentoorganizado.Vocênãopodeestar lá,ouvãopensarqueestámancomunadocomigo.

—Eunãoseinemoquevocêé,enãomeimporto.—Mastenhocertezadequeseimportacomsuavida.Sequisercontinuarvivo,nãovoltepara

suacela.—Seeunãoestiverlá,nomínimovãometorturardenovo—protestouAelian,mudandode

posiçãoesesentando.—NuncamaisvoupoderpisarnoPoleiro.—Erajustamenteissoqueeuiasugerir.Eleriu,exasperado.—Eoqueeufaço?Começoalevarumavidacomoasua,delendamascarada?Apariçãoergueuoindicadorcheiodeatadurasnafrentedorostocoberto,emumgestoque

pedia silêncio, e depois apontou para baixo. Aelian viu que um anão e um humano, ambostrajando uniforme deArauto, aproximavam-se da sacada carregando grandes chifres escuros.Seráquefariamumpronunciamento?AArenajáestavabemmaisvazia,masboapartedaplateiaaindaestavasendoexpulsacomtruculênciapelosÚnicos.

Os Arautos sopraram as trombetas nomesmo timbre que soaram durante a abertura e oencerramentodoFestival,eaconfusãoláembaixoteveumatrégua.Oficiaisouservos,todossevoltarampara a sacada daTribuna. Aelian tentou adivinhar o que viria a seguir.No entanto,falhariamesmosetivessemilchances.

Lanceirosmarcharamatéoparapeitodasacada,dividindo-seemduascolunas—umaatrásdecada Arauto — e deixando um corredor para a passagem de alguém. Em seguida, eles seagacharamnojoelhodireito.

Emuníssono,osdoisemissáriosexplodiramemlouvores.

—Assim,elesdecidiramtornar-sealgonovo,semfalhas.

Se havia alguma dúvida quanto à divindade de Una entre osmilhares de servos confusos láembaixo,elacomeçouaruirnaqueleinstante.Algunspoucosquepareciamatordoadostambémpassaramamurmurarorelato,fervoroso.

—Assim,elesdecidiramtornar-seumsó.Assim,surgiuadeusadeseisfaces,adeusaUna!

SeguidadepertopelaCentípede,UnaentrounocampodevisãodeAelian,arrastandoolongovestidonegropelocorredordesoldados.

Nãoparecianemumpoucomorta,sequerferida.

Nesímlargouaarmaeoescudoecorreu.Vero filhoalistadonosÚnicos forao sonhodopaidele.Edesdeaqueledia fatídico, tudo

haviamudadoemUntherak.Eraofimdeumaeraeofimdasverdadesabsolutas.OsÚnicosnãoexistiammais,eeleseviupresoaumtrabalhoqueodiava.NãohaviamaisolendárioconfortoqueosAutoridadestinhamnaVilaA—aliás,nãohaviamaisAutoridades.

Nesímcorreuantesqueeleprópriotambémdeixassedeexistir.Quasevintesoldadostrucidadosporumsóhomem,oforasteirocomacapadacorproibidae

aespada imensa.Despediram-sedavidadeumjeitooudeoutro:osquetentaramenfrentá-lo,sofreram;osquehesitaram,receberamadádivadeumamorterápida.

Nesímnãofeznemumacoisa,nemoutra.Apenascorreumorroabaixo,enãofaziaquestãodedescobrircomooestranhotratavaosmaiscovardes.

Emboranãotivesseouvidopassos,osoldadoolhouparatrás,semparardecorrer,paraverseestavasendoseguido.Nada.Apenasaruavazia,ladeadaporcasasdeterioradas.

Quandovoltouaolharparaafrente,foiatingidoporalgoemplumado.Nesímcaiufeio,rolandomuitasvezesantesdealadeiradosAssentamentosresolverqueele

poderiaparar.Ouviuograsnardeumpássaro,sentindoorostoarder.Umfalcãooualgumaavedemesmoporteoatacara.Logoemseguidaoencapuzadosurgiuemseucampodevisão.

—Tenhoduasperguntas—disseele.—Nãomemate!—Issodependedoquevocêresponder.Compreendeu?Nesímassentiucomvigor,mesmotrêmulo.—Muitobem, lávaiaprimeira:dáparaentrartãofácilpelaMuralhadoMiolocomoentrei

pelaMuralhadaBorda?Nesímhesitou,tentandoidentificarseouviradireito.—A-achoquenão…E-eleabriumãodaBordaparafortificaroMiolo.OsSilenciosospodem

alvejá-lomeioquilômetroantesquevocêcheguepertodeumdosportões.—Entendi.Estadomínimo.Achoquevouterqueirporcimamesmo—falou,acrescentando

logodepois,emvozbaixa:—Naminhaformadefalcão…Nesímchoramingava.FezatéosinalcontraoMalRubro,herançadevelhostemposcheiosde

velhos medos. Talvez já tivesse até ouvido alguma história sobre encapuzadosmetamorfoseando-seemavesecometendoassassinatosasangue-frio.

O forasteiro fincou a espada imensa bem próximo da cabeça do homem e apoiou oscotovelosnaguardadaarma,comoseestivessedescansando.

—Asegundapergunta…—Porfav-vor,n-nãofaçanadac-comigo…

—Qualoseunome?Oqueixodosoldadoparoudetremer.—Essaéa…—Segundapergunta?Sim.—Meunome?—É!Ouseuchefetambémtirouissodevocês?—EumechamoNesím,senhor…—Entãolevante-se,Nesím.Rápido,deixadepreguiça.Precisodeumfavorseu.Nesímficoudepé,arespiraçãoofegante.Mesmosemverorostodentrodocapuz,sentiao

pesodeolhosoencarando.—DigaparaseuGeneralqueoApariçãovoltou.Compreendeu?Afirmativo,respondeuacabeçadeNesím.Emseguida,seuspéscorreram.Suaalma,nocaso,já

deviaterchegadoaoPalácio.Aparição esperou que o soldado sumisse de vista, correndo destrambelhado. Até que

voltassem com reforços, ele teria tempo de vasculhar osAssentamentos. Talvez encontrassealgo relacionado à sua vida anterior.Relacionado a temposhorríveis,masnem tanto. Então,voltoupelocaminhoquehaviafeito,assoviandoumamelodiacristalinaquelheagradavamuito.Um falcão emergiu da escuridão e mergulhou até pousar em seu pulso, e ele foi ficar nacompanhiadoscadáveres.

11

—Não—disseAelian,baixinho.Edepois,maisalto:—Não,não…elamorreu,sim!Euvi!Apariçãopermaneceuemsilêncio,emposiçãomeditativa,olhandoasoberanasereapresentar

aopovo, conformemais emais pessoas se ajoelhavamem reverência, nas arquibancadas enaArena. Grande parte delas estava de olhos fechados, repetindo frases soltas da Fúria dos Seis,agorasemharmonianenhuma.

—Akaorshcortouagargantadela!—falouAelian.—Sim…—Euvi!—Você jádisse isso.—Apariçãofezumapausa, indicandoasacadacomummovimentode

cabeça.—Eagora?— Eu… não estou entendendo mais nada. — O falcoeiro arrancou a bandeira que havia

amarradonacabeçaàguisadeproteçãoepassouamãopelocabelosuado.—Minhacabeçadói.Aparição suspirou ruidosamente. Era como se tivesse apenas umapequena abertura para o

nariznamáscara.—Talvezvocênãoestejaprontocomopensei.—Prontoparaoquê?—Volteparaasuacela,Aelian—disseAparição,emvezderesponder.—Concluaoquequer

queestivesseprestesaconcluirantesdeeuaparecer.SeiquevocênãoquersesentiraindamaisculpadoporoutrasmortesnoPoleiroequevaitentarajudarGheliseLennigan…

—Sim,inclusiveporquevocêferrouosdois.— Seus dois companheiros do Poleiro estãomais enroscados em assuntos escusos do que

podeimaginar—respondeuAparição,secocomoumgolpedemachado.—TráficodecarvãoesubornodeAutoridades.Issosóparacomeçar.Penseiemoferecerminhaajudaparatirá-losdeláantes que descobrissem tudo o que estão fazendo. Pois sempre descobrem.Queria dar a elesminhaproteçãoemtrocade informaçõeseserviços,masosdois tambémnãoestãoprontos,pelovisto.

Aelian hesitou. Queria insistir para saber o que significava “estar pronto”. Foi quando oslamentoselouvorespararamdesúbito.Nasacada,Unacomeçouafazerumdiscursocomavozimpostada.Tomadaporuma ira fria, adeusadeclarouguerraaosque tentassemseoporaela.Falou sobre todas as vezes na história de Untherak em que levantes foram esmagados sempiedade.Dissequenãocairiapelasmãosdepecadoresinfiéis,equenãohaviapoderquepudesseanularsuasoberania.

O pior ainda está por vir, pensouAelian. A truculência, a violência dos Autoridades, tudo

aquiloiadobrar,triplicar.RaazieYanishatinhamacertadoumvespeiroenemestariamaliparaenfrentaroenxame.

Amelhordecisãoseriaseisolardisso,lidandoapenascomaviolênciadocotidiano.—Eunãopoderiaviverrefugiado,comoumasombra—disseAelianparaAparição.—Você

parece saber o que está fazendo, e eu nem mesmo sei o que está acontecendo. Por algunssegundos,acrediteiqueumadeusatinhasidodestruída,masagoraestoumaisperdidoqueantes.

—Ecommaismedo—afirmouooutro.Aeliansemostrouenvergonhado.—Tudobem.Omedonosdizcoisasquenãoouviríamosemdiasdecoragem.Esperoqueestejadispostoaouvi-lo.

O falcoeiro não sabia se deveria se sentir melhor com aquele augúrio sombrio. Contudo,talvezestivessemenospior.

— Corra para chegar ao Poleiro antes dos Autoridades — disse Aparição, em despedida. —AproveiteenquantoosguardasnostelhadosestãoatentosaopronunciamentodanovaUna.

—NovaUna?—perguntouAelian,semsemover.—Válogo,meurapaz.Eseretirou,deixandoofalcoeirosozinhocomosprópriosmedos.Aelianfoitomadopelaurgência.Niahkon.OkaorshdisseraquevoltariacomSureyya.Lidar

comelesseriacorreroriscodereencontraroaçoitebatizadodaTenente—etalvezaquelafosseumaverdadequeomedodeAelianlhecontava.Aindaassim,eraumapossibilidademelhordoqueviverescondido,sendocaçadoporumadeusaimortal.

Ele entrou pelo sótão, ofegante. Estava comos pensamentos tão turbulentos que vários dossaltosperigososentreastorreseostelhadosforamdescuidados,mesmoaquelessobreosquaistinhamaisdomínioetécnica.FoidiretoparaopoleirodeBicofino,quegrasnouaoverodonoevoouatéseuombro.

—Nãovoupoderficarcomvocêagora…Ah,nãoreclame!Vouabrirajanelaparaquesaia!Aeliandestrancouumadasaberturas laterais,masBicofinopareciahesitar, semafrouxaro

apertodasgarrasnapeledodono.Oanimalsóobedeceuquandooprópriofalcoeirocolocouospésparaoladodefora,paraescalaraparedeexternadatorreatésuacela.

—Vácaçaralgumacoisa—mandouAelian, tentando firmaropénuma fissura.—Mas,porfavor,fiquelongedoPalácio!

Com um pio resignado, Bicofino apanhou a primeira corrente de ar que lhe serviu,circundandoacurvadoPoleiroedeixandoAeliansozinhoparaaúltimaetapadesuavoltaparaacela.

BicofinocircundouoPoleiroeduasvezespassouporcimadoprédioemfrente,oBalde—assimchamadoporque,surpreendentemente,eraláquesefabricavamosbaldesdeUntherak—,antesdeseencarapitarnumadesuasjanelas.Delá,podiaverofalcoeiroarrancandoabarradeferrosoltanajanelaecaindodiretonacela.

Nocorredorquecortavaasduascolunasdecelashaviaduastigelasdetintavermelhacomumbomespaçoentreelas,oquesignificavaquenenhumAutoridadehaviapassadoporlá.GheliseLenniganestavamemsilêncio,maisaosfundosdopavilhão;entretanto,oanimalpodiasentiromedoqueosdoishomensemanavam.

Aelian, atentoao falatórioatrásdaportaquedavaacessoà escada,não tinha reparadoqueestava sendoobservadopor seu falcão.Aquela era amesmaportaque era trancadadenoite eabertaaonascerdosol,amesmaqueSureyyaeHarunhaviamatravessadoantesdecastigaremsuas costas.Dessa vez, parecia que duas vozesmasculinas discutiam.Umavoz,mais fria, nãoparavadese justificar, enquantoaoutravoz,maisgravee irada, repetiaquenãodeveriamtertrazido“aquelacoisa”.AspenasdeBicofinoseeriçaram,comoaconteciaquandotempestadesseaproximavam.Umarecém-crescidaplumadacorproibidadespontounacaudadoanimal,masninguémestavaporpertoparaveraquelablasfêmia.

As celas começaram a se abrir, as grades deslizando nas engrenagens de tecnologia anã,operadaspeloladodeforaporalgumAutoridade.Asvozesaindadiscutiam.Umadelasgritou,masaoutranãosedeuporvencida,aconversaaltercadasempreesbarrandonasmesmasfrases.“Foiideiasuatrazeressagosmaparacá”,“Vocêéfrouxodemaisparafazerissocomasprópriasmãos”,“VounotificaraTenente”ecoisasdotipo.

Aeliandeuumpassoparaforadacela.Sabiaqueaquilonãoeraapenasoretornodosservos,quealgodiferenteestavaacaminho.GheliseLennigancolocaramacabeçaparaforadocubículodeles,curiososcomagritaria.

—Nãomearranjemaisproblemas!—Fiqueatrásdalinhadagrade,seumaluco!Aportademadeiraseescancarou.OsolhosdeBicofinosentiramdificuldadeemdistinguiro

que era aquilo parado sob o batente. Tinha a cabeça de um cavalo—mas um cavalomorto.Corpodeumhomemoukaorsh…quedeveria estarmorto.Ebraçosquenãoterminavamemmãos,masemlâminaspontiagudas.

OcheirodeMáculaerapiorqueodesangue.Sozinho,ocheiro ferrosodoplasma jáerabemruim,maspelomenoseramaissuportávelqueodopichedecadáveres.Contudo,nadasuperavaofedordesanguetornadoMácula—issoconseguiauniropiordasduasessências.

DoisÚnicosseguravamlongasvarasdecontençãocomtirasdecouronapontaaoredordopescoço do líder dos Destrinchadores, que se debatia ao ser impelido pelo corredor. Sob as

coleiras de couro, um ferimento logo abaixo do pescoço vertia Mácula aos borbotões,exatamenteondeYanishaogolpeara.Noestômago,umpedaçopartidodalançadeRaaziaindaestavaespetado.

Como essa coisa ainda consegue andar?, perguntou-seAelian, voltandoparadentroda cela,amedrontado. Alguém estava querendo reciclar aquela máquina de matar para outrospropósitos.

AtrásdolíderdosDestrinchadoresedosÚnicosqueoconduziam,orapazteveumvislumbredeHaruneNiahkonavançandoumcontraooutro,contidosporumpelotãodeoutroshomensuniformizados—issoconfirmavaqueadiscussãonaescadaeraentreosdoisAutoridades,quedeviamteropiniõescontráriassobreousodomaculado.Comosbraços imobilizados,HaruntentavachutarNiahkon,quesorriacomescárniodiantedasridículastentativasdegolpescomaquelaspernascurtas.Asgengivaseosdentesdokaorshestavammanchadosdesangue,oquesignificava que o anão saíra na frente antes de serem separados pelos guardas. Harun nãoapresentava nenhum ferimento aparente, eNiahkon parecia não se importar nemumpoucocomosseus.

Depois demuito esforço, oDestrinchador foi enfim empurradopara o corredordas celas.Trancaramaportaemseguida,àspressas,antesqueacoisasevoltassecontraosqueseguravamasvarasdecontenção.Aeliansedeucontadequeaquiloeraumatentativadecontrolededanoseuma resposta imediata ao atentado contra Una. Quaisquer agitadores — ou mesmo merossuspeitos de uma conspiração— seriam tratados combrutalidade desmedida.Os reflexos dasaçõesdeRaazi eYanisha semanifestaramnamesmahora, e osmais fracospagariamopreçoprimeiro,seminterrogatóriosoujulgamentos.

Aindaencolhidocontraaparededosfundosdacela,Aelianpensouquenãopoderiafugirpelajanela, pois deixar suas costas expostas naquele momento não seria uma boa ideia. Sacou opunhalvirgem,parateralgumachancemínimacontraaquelemonstro.

Porém,semvoltarocrâniodecavalonadireçãodele,oDestrinchadorpassoudiretoporsuacela, sem parecer notá-lo. Com o pé direito, esmagou a tigela de tinta com um ruído seco,parecendonemregistrarofato,eomaculadocontinuouamarchacambaleanteatéofundodocorredor,deixandoumrastrodecorproibida.

Aelianouviugritosdevozes familiaresvindosdo finaldocorredore saiudacela:Ghelis eLenniganesmurravamaportade acessoao sótão.Trancada, comodepraxe.Osdois estavamdesesperadoscomavisãoestarrecedoraqueavançavanadireçãodeles,eeraaqueleestardalhaçoquehaviafeitoogosmentopassardiretopelofalcoeiro—outalvezocrâniodecavalolimitassesuavisãoperiférica.

Lenniganfoioprimeiroaperceberqueseudesesperonãoabririaaporta,eseviroudefrenteparaohorrorqueoencurralava.Semencontrarmeiodefugiroualgumobjetoquelheservissedearma,elesimplesmentepuxouGhelisàsuafrente,comoumfrágilescudovivo. Estarrecidocomacovardiadohomem,AeliancorreunoencalçodoDestrinchadorecravouopunhallogo

abaixodaaxiladireita,procurandoalgumapartemole,quenãofizessealâminaresvalar.Oaçodeslizoupelacarnecomfacilidade,atéabainha.Porém,omaculadoapenasmoveuo

ombronummovimentocircular,comoseumamoscavarejeirativessepousadonele.Aeliancomeçouatorcerepuxaraarmaemtodasasdireções,tentandoinfligiromáximode

dorpossível,masnadaimpediuomonstrodeatravessaroescudovivocomsuamãodelâmina.Aelian gritava e golpeava aquele corpo maldito. De repente, o monstro desferiu uma

cotoveladadoloridanorostodorapaz,eelecaiudecostasnochão,aindasegurandoaadaga.AcoisaqueumdiaforaumkaorshusouooutrobraçoparadeceparacabeçadeGhelisepassouaapunhalarLenniganrepetidasvezes,demaneiraautomática,nopeitoenorosto,atéqueaarmaatravessasseossos,mioloseatémesmoamadeiradaportaquelevavaaosótão.

Comumdosbraçospresonamadeira,oDestrinchadorurroude irritaçãoedescontousuafúriadesenfreadanoscadáveresàfrente,usandoobraçolivreparapicotá-los.

Aelian se arrastou até o início do corredor, os olhos arregalados observando aquela cenaatroz.Jáhaviatestemunhadomatançademaisparaumsódia,masemnenhumdoscasostiverapraticamenteaperspectivadoassassino,comosanguetãopróximo.Talvez tivesse tempodeescaparpelajanelaantesqueosguardasentrassemparaconteromaculado—depoisdisso,elescomcertezadariamordensparaqueosservoslavassemosangueeastripasdochãodepedra.

Àspressas,voltouparasuacelaesóentãopercebeuquesequertinhacolocadoabarrafalsadevolta ao lugar. Se Harun e Niahkon tivessem entrado ali, ele estaria condenado de qualquermaneira. Porém, naquelemomento, tantomelhor: largou o punhalmelado de sangue negro,tentouapoiaropénocatreparaalcançarasaídaeagarrouasoutrasbarrasfixas.Suasmãos—tambémviscosas—escorregaram,eorapazcaiudecostas,desabandonochãodemaujeito.

Entãooruídodeossossendotrituradosfoiouvidocommaisclarezaqueantes,seguidopelacadênciaapressadadospassosdoDestrinchador.Eletinhasesoltadodaportaeenfimperceberaquenãoprecisavadescontarsuaraivaapenasnosdoiscadáveresdestroçados.

Aelian começou a enxugar asmãos na camisa, desesperado, enquanto praguejava contra aideiaidiotadetentarsalvarosoutrosdoishomens.Esforçou-separatrepardenovonasbarras,masagoraelasestavamescorregadiascomsangue.Aaproximaçãodomaculado foisinalizadapelalâminanobraçoraspandoasgradesdascelas,comumbarulhoagourentoqueofalcoeironãosabiaseeradepropósito.Lembrou-sedeNiahkon fazendoamesmacoisamaiscedo.Nofundo, não parecia que aquele gosmento tivesse a intenção de brincar com as vítimas, nãoquando seu cérebro tinha sido, na maior parte, liquefeito. Ele só estava ali para matar, semdistrações.

Acoisaapareceudeperfil,eAelian—congelado—percebeu,comumhorrorcrescente,queacriaturanãotinhamaismetadedobraçodireitoequealâminadoladoesquerdoestavatodasujadeMácula.Aquiloexplicavacomoelehaviaconseguidoselibertardaporta.

Agoraerasuavezdeseverencurralado.NãomorreriademaneiracovardecomoLennigan—masissotambémnãosignificavaqueseentregariagentilmenteparaseresquartejado.

ODestrinchadorparounaentradadacela,ascavidadesocularesvaziasdacaveiradecavaloencarando o falcoeiro. A maldita arcada dentária parecia estar sorrindo, amarelada, numazombaria eternae involuntária.Aelian se colocouemposiçãode combate, a lâminadaadagaapontadaparabaixonamãodireita.Lembrou-sedeRaazieYanishalutandocontraacoisaqueagoraoacuava…Erapossívelneutralizá-lo,masseriamaisfácilsenãoestivessesozinho.

—É só uma luta de facas—murmurouAelian para simesmo, inquieto, respirando rápido,tentandonãopensarqueaquilo só seriaverdade sea armado inimigonão tivessequaseduasvezesotamanhodasua.

Omaculadoatacou.Aeliandesvioudeumgolpefrontaleemendouumainvestidarápida.Suaadagaapenasriscouobraçodoadversário,eeleduvidouqueaquilotivessealgumefeitomesmonum inimigo vivo.Outro ataque, dessa vez na horizontal,mas o rapaz conseguiu passar porbaixo da criatura e ganhar espaço.Agora, oDestrinchador estavanomeio do caminho até ajanela.Aelian aproveitouque a criaturademoroupara se virar e esfaqueou suas costas.Quasetomouomesmogolpedecotovelodeminutosantes,masconseguiuprotegerorostoeagarraro Destrinchador pelas costas, apunhalando o estômago do inimigo com uma das mãosenquanto a outra afundava umpoucomais o pedaço de lança quebrado em seu estômago.Acriaturagemeuesedebateu,eAeliansentiuaMáculajorrandonasprópriasmãos,semperceberqueestavagritandodurantetodooseuataquedesesperado.

A lâmina do Destrinchador desceu, desajeitada, e o falcoeiro sentiu a ponta da espadarasgandosuacoxa.Elesoltouoinimigoerecuou,mancando.Omaculadoavançoudeimediato,vendoapresafugindodacela.EfoinessemomentoqueAeliansentiualgopassandoderaspãoporeleeindodiretoparaacaradecavaloàfrente.

Bicofino havia afundado as garras na cavidade nasal do crânio, e batia as asas com vigor,gritando sem parar. Aelian arregalou os olhos, surpreso, e viu que o Destrinchador sedesequilibrara, cambaleando para trás com o ataque do falcão. O monstro estava prestes agolpear o animal, e o falcoeiro agiu antes que tivesse que presenciar amorte de um de seusmaioresamigos.

Ele avançou, estabanado, segurando o braço do maculado e o derrubando. Bicofino nãosoltouocrânionemduranteaquedado inimigo.Aelianusouumdos joelhosparaprenderocotovelodooponentenochãoe,sempensarduasvezes,tratoudeconcluiroqueYanishatinhacomeçadonopescoçodolíderdosDestrinchadores.

Descarregandosuaadrenalinaemgolpessequenciais,Aelianfinalizouooponentesemnemmesmoperceberqueestavabanhadodepreto,orostoselvagemrespingadoporgrandesgotasdesanguetransformadoemMácula.

Ofalcãobicavaacabeçarevestidapelocrâniodecavaloquetinhaenfimsedesprendidodocorpo,certificando-sedequeelanãosevoltariacontraohumano.Ofegante,Aelianenxotouaavesemconseguirdizernada.Bicofinosalvaraavidadele.

Osguardasdo ladode foradaportapareciamternotadoosúbitosilêncio,ecomeçarama

discutirsedeveriamentrareverseoserviçoestavafeito.Aelianguardouopunhalevoltouatiraroexcessodesanguedasmãosnacobertapuídado

catre.Bicofinograsnou,avisandoquemaisinimigosseaproximavam.Aelian foi até a janela, dessa vez sem escorregar, e atravessou o buraco, deixando a parte

inferiordotroncoparafora.Bicofinoestavapousadonocrâniodecavalo,observando-o.—Fujalogo!—exclamouAelian,numaordemesganiçada.Aúltimacoisaquequerianaquele

momentoeratersuamascotemortadepoisdesobreviveremàcoisamaisimprovável.—Saiaporondeentrou!Vai!

Bicofino bateu as asas para ir até a janela onde Aelian se encontrava. Estava vigiando-o,garantindoqueelenãofossecair.

—Euestoubem,nósnosencontramosdepois!—disseAelian,sentindoumaimensagratidãoporseupássaroteimoso.—Ficodevendoumaavocê,suagalinhacorajosa.

Aelianseesticouatéoganchomaispróximo,afastando-sedajanela.Suasmãosestavamsecaso suficiente. Bicofino piou, como se pedisse cautela, e o ruído da porta de madeira seescancarandopôdeserouvidodoladodeforadoPoleiro.

Adespeitodaimponentearmaduraqueusavam,osdoisÚnicosentraramnocorredordascelascomo crianças amedrontadas. Seguravam as hastes de contenção à frente, enquanto outropelotãovinhalogoatrás,apassoscurtos,atentosaqualquersinaldemovimento.

Umdelesapontouparaofimdocorredor,paraaobscenidadedesangueespalhadoportodasasparedeseopiso.Namesmahora,diversasmãosderamtapasnatesta,eossoldadosevitarampisarnosrastrosespalhadospeloandar.

Então,umdosguardasolhouparaadireita,paraaprimeiraceladocorredor.Lá estava o maculado, a cabeça separada do corpo. O sorriso do crânio de cavalo estava

voltadoparaosrecém-chegados,fazendoopelotãoexperimentaromesmoarrepioqueAeliansentirasegundosantes.NiahkoneHarun,numatréguaforçada,perguntavamondeestavaolíderdosDestrinchadores.O guardaqueprimeiro viu a cena começou a gaguejar: não sabia comoinformarqueacriaturahaviasidodestruídaenemporquem.

Atremedeiradohomemaumentouquandoelepercebeuumfalcãoencarapitadonajaneladacela. Faltava uma barra na abertura, e a ave agourenta torceu o pescoço para encará-lo, comdesprezo.

Nacaudadopássaro,notava-seumaúnicapenadacorproibida,despontandoentrecentenasdeoutrasmarrons,comuns.

Aavedeuumpioentediado,virouacabeçaparaafrenteelevantouvoo.AlgunscorreramdevoltapelocaminhoatéosAutoridades,inclusiveoqueprimeironotaraomaculadodecapitado.

—A-autoridadeHarun…AutoridadeNiahkon…—disseele,decabeçabaixa.Seurostoestava

lívido de terror, e o pelotão se acotovelava para espiar o que tanto havia amedrontado oshomensqueseguiamàfrente.—Omaculadofoiderrotado!FoioAparição!

Com nariz e bocamanchados de sangue, Niahkon agarrou o Único pelo pescoço. Haruncruzouosbraços,irritado.

—Expliquemelhor,soldado.Faledevagar.Tentando conter o pânico,mas, no fimdas contas, sendo tomado por ele, o guarda falou

comoviraoexatomomentoemqueAparição,transformadonumaavenefastacomumaúnicaplumadacorproibida,deixaraparatrásoPoleiroe,dentrodele,umbanhodesangueeMácula.

Doladodefora,umfalcãoplanava,vigiandoohomemqueescalavaasparedes.

—Vocêparecepéssimo.Aeliannãosedignouatecernenhumcomentáriocretino.Sendoassim,Apariçãocontinuou,

menos ácido e com o máximo de sinceridade que um rosto encoberto e uma voz abafadapoderiamtransmitir:

—Masficofelizportervoltado.Osoljátinhaseposto.Cobertodesanguemaculadoelongedeparecerumhumano,Aelian

conseguiraseocultarcomfacilidadenassombrasduranteoperigosotrajetoatéostelhadosdoPalácio. Ele não acreditava que tinha voltado para o lugar de onde fugiramais cedo, muitomenosqueApariçãoaindaestivesseporlá,comosesoubessequeelevoltaria.

—Oquevocêé?—perguntouofalcoeiroparaafiguramisteriosa,sentindoumadiferençanaprópriavoz.Dealgumaforma,elesabiaquenadavoltariaasercomoantes.Porém,aomesmotempo,sentiaqueprecisavadealgumsentidoparamergulhardecabeçanaquilo.

—Eusouumahistóriadiferente,Aelian—respondeuAparição.—DotipodequeUntherakjamaisouviufalar.Eprecisodeajudaparacontaressahistóriaatodos.

—Euconhecioinfernohoje—disseAelian,seco.Elenãosabiaporquefalaraaquilo,jáquenãoerabemumaresposta.Sóprecisavadesabafar,

tirarosentimentodopeitodealgumamaneira,lavaraquelasujeiraquepareciacorrompê-lopordentro.

AfiguraolhouparaaestátuadeUna.—Algunsinfernosdurammilanos;outros,umdia.Masnenhumémelhorqueoutro.Aelian também olhou para o monumento colossal. Era algo grande demais para ser

enfrentado. Porém, a vida anterior dele tinha acabado. E era surpreendente como conseguirasobreviveraprovaçõesquederrubariamatéguerreirosexperientes.Talvezfossepossívelvivercomoumpária,procuradoportodaUntherak.EraumaalternativaàservidãoeàhumilhaçãoqueUnaoferecia.

— Diga-me o que preciso fazer — falou ele, sem desviar o olhar da estátua.Mesmo assim,

percebeuosolhosdeApariçãofixando-senele.—Paracomeçar,meajudeasalvaroutrapessoaqueestáconhecendooinfernohoje.

12

Apesar do calor, a armadura era mais confortável do que parecia. O talho estreito no elmolimitava boa parte da visão periférica, e aquilo dizia muito sobre como proceder dentro doPalácio:presteatençãonoqueestáfazendoenãoolheparaoslados.Aelian,comaclaustrofobiaamil,precisavalembrarasimesmo,otempotodo,quenãoestavapresonumlugarapertado,queerasóumcapacete.

Tudobem,pensoueleenquantovestiaaarmaduradodefunto.Éporpoucotempo.Encontroakaorshpresa,soltoela,saiodoPaláciosemproblemanenhumesigoparaosAssentamentos.OrapazsabiadealgunscasosdeindivíduosqueconseguiamsobrevivercomoforagidosemUntherak—todoscriminososecomacabeçaaprêmio.

Tentouolharparasimesmo,paravercomoestavadearmadura,efezumacaretainvoluntária.QuandotopouajudaromaiorcriminosodeUntherak,recebeuinstruçõesbrevesediretassobrecomoinvadirolugarporaquelajaneladatorreemqueagoraestavaesobrecomoencontrarialáumlugarparaselimpardosanguemaculadoevestiraarmadura.

Eraumasaladebanho,comumagrandepiscinadeáguaquente,massemluxoalgum.ViutrêsÚnicoslá,mortosepelados.Suasarmadurasestavamempilhadasnocorredorquelevavaàporta,paraqueovapordaáguanãoenferrujasseasjuntaseascotasdemalha.

OscadáveresnãohaviamsidoderrotadospelaimensaespadadeAparição,constatouAelianao observar as feridas e os cortes letais, que não eram grandes. Os dedos dos soldados aindaseguravamclavasemaças,tantoqueforadifícillutarcontraorigormortisparatomaraarmadeumdosvigias.Aonotarafiguraencapuzadainvadindoobanho,oshomensdeviamtercorridoatéasarmasparasedefenderem…eláestavam,mortosdojeitoquetinhamchegadoaomundo.

Dados e triângulos de bakir se espalhavam pelo chão. Provavelmente, Aparição plantaraaquelas provas ali. Mesmo assim, Aelian não ousou tocar nelas: dinheiro de jogatina queterminavaemmortecostumavatrazerazar.Quandooscadáveresfossemencontrados,pareceriaque os homens tinham se desentendido durante uma partida de dados. Alguém poderia atéquestionarofatodeelesestaremapostandopelados,mastalveza investigaçãonãoquisesse irmaisafundonosmotivosenascausas.

Jáuniformizado,Aelianrespiroufundoedeuascostasaosmortos,paradodiantedaportademadeira. Quando a atravessasse, seria um Único. Ele hesitou. Lembrou que não era tãosupersticioso assim e voltou para pegar as dez moedas triangulares do chão. Fosse lá quemtivesseinventadooazar,nãodeviatrabalharnoPoleiroporseisbakirasemana.

Averdadeeraque,pormaispessimistaqueAelianfossecomrelaçãoaoresgatedeRaazi,eletinhaemmenteque,emalgummomentoapósoanoitecer, teriaaoportunidadeperfeitapara

conseguirentrarnoAneldeCelase,logodepois,sairdali.ElesónãosabiacomoeramconfusososmilharesdecorredoresdoPalácio, tampoucoque

demorariaquasedoisdiasatéquesurgisseaoportunidadeparafugir.

—Eucubroaapostadonovato—disseoÚnicosentadoàsua frente,batendocommaisdoisgumusnobarrilondeelesrolavamosdadosecolocavamasapostas.—Aliás,canseidechamarvocêdenovato.Qualéoseunome,soldado?

—Kivan, senhor — respondeu Aelian, soando respeitoso demais com um soldado que, emteoria,tinhaamesmaposiçãohierárquicaqueele.

Foioprimeironomeque lheveioàcabeçaquandopediramsua identificaçãoenquantoelepassava por um corredor procurando alguma saída para aquele labirinto. A cada vez queinventavadeseenveredarporalgumcaminhoachandoquechegariaaoAnelouaqualqueroutrolugar, alguém omandava fazer alguma coisa— limpar a estátua deUna e oDragão, carregarcaixasdemantimentosporinfindáveisescadariaseexterminarpragasemarmazénsemasmorrasúmidas.EleacharaqueavidadeumsoldadodoPaláciodariamenostrabalho.

Porém, toda a atmosfera opressiva do lugar pareceu amenizar um pouco quando Aeliandescobriuqueossoldadosjogavamdadosàsescondidasemhoráriodetrabalho.

—Senhor—repetiuironicamenteojogadoràdireita,fazendoumbakirpassearentreosdedos.—Onovatosófaltabatercontinênciaacadadadorolado,Norm.

—Gostodisso,Cal—disseooutro, rindoeencarandoAeliancomseuúnicoolhobom.Ooutrogloboocularficavaviradootempotodoparaoteto,oquedeixavaseurostopresonumameiaexpressãodeenfado.Osguardasqueassistiamàpartidariram,eAelianestreitouosombros.—OKivanaquijáreconheceaminhasuperioridade.MasumdiavoumetornarTenente,etodosvocês vão bater continência até quando estiverem fornicando com as suas esposas e selembraremdaminhafuça.

QuesonhosdegrandezatinhamoshomensdescartáveisdeUna.Pordentro,Aelianestavaachando toda aquela conversa entediante e típica dos descerebrados deslumbrados quepensavamexistirespaçoparaascensãoemUntherak.Porfora,continuoumantendoumacarade assustado e um jeito nervoso. Ser subestimado e diminuído durante as partidas de dadossempreforasuamelhorestratégia.

—EsevocêvirarmesmoumTenente,noimprovávelcasodamortedeSureyya—perguntouCalparaNorm,entrandonaapostacomdoisgumus—,vaiacabarcomasnossas jogatinasnoPalácio?

—Dependedequantopagarempelomeusilêncio—respondeu,provocandorisadasaoredor.Então,voltouoolhobomparaonovato.—Eaí?Vaientraroupagarparaver?

Aelian espiou a jogadano caneco e crispouos lábios quaseque imperceptivelmente—um

movimento calculado. Norm pensaria que ele estava preocupado com a mão ruim. Aelianadoravainflarosoponentescomesperançaantesdeestourá-loscomumaagulhapequenamasbemafiada.

—Estoudentro—disse, trêmulo.Então, tirouo totemdequartzodopescoçopara rolaroúltimoresultado.

—Osujeitoestásecagandodemedo,Norm—disseCal,crentedequetinhaumaexcelentemão.Seguravaumdadodeseislados,assimcomoNorm.

Jogadorescomunsdemaisequesearriscamdemenos,pensouAelian.Fáceisdeenganar.Norm jogou o dado — saiu o 2 — e não comemorou, mas sustentou um sorriso de

superioridadenocantodos lábios.Osqueassistiamàpartidaassoviaram,eCalpareceuperderbastantedaconfiançaantesdejogaroprópriototem.

6.—Filhodaputa!—gritouCal,arremessandooelmocontraaparededosfundosdoarmazém.

Aquilo anularia até amão boa dele, eliminando-o por antecedência, a não ser queAelian (ouKivan,nocaso)tirasseumoito.Nessecaso,Calpelomenosreceberiaaapostainicialdevolta,queeraomenordosmales.—Vai,novato!Setirarumoudoiscomessedadodeoitolados,vocêvaiestarbemfodido.

—Ah,vêseaprendeaperder,Cal— falouNorm,confiante,ajeitando-senocaixoteque lheserviadebanco.—Ficardandochiliquenãovaiajudarvocêarolarumdadodecente.

Aelianseesforçouparamanterorostoconsternado.Feztodaasuapreparaçãoritualísticaderodar o totem entre os dedos por quase umminuto antes de rolá-lo. Aquilo irritavamuitosjogadores,masasregrasnãodefiniamumtempomáximoparalançarodado.

Enquantoisso,Caltirouumcachimbodedentrodaarmaduraeoacendeucomumpalitodeenxofre.Carvão.Baforoufumaçaocreeviciadanadireçãodonovato,supondoqueaquiloiriaatrapalhá-lo.

Aelian,porém,conseguiriajogarseudadodeformasatisfatóriaatédebaixod’água.Eleoarremessoucomummovimentodopulso.1.—Seucudevermecheiodemerda!—gritouNorm,chutandoobarrilparalongeeespalhando

dadosemoedaspelochão.Osoutrossoldadosqueassistiamaoredorrecuaram,sobressaltados,enquantoohomemarregalavaoolhoecuspianadireçãodeAelian,queaindaestavasentado,mascomamãopróximadocabodamaça.

—Opa,deisorte.—Sorteéomeupaunãotercoçadohojedemanhã!Vocêroubou!—Não,não roubei—disseAelian,agoracaraacaracomNorm.Nãoconseguiamais fingir

medodoÚnico,entãoseabaixouparapegarseudadodabagunçafeitanochão.—Viusó?Oitolados,numeraçãocorreta.

—Queroveressedado!

—Claro.Masnaminhamão.Tocarnototemalheiodáazar…—Essedadoéocoouéviciadoparadaronúmeroum!—gritouele.Aquelaacusaçãopareceu

fazercomquealgunshomensaoredortambémpensassemnapossibilidade.—Jávitrapaceirosquenemvocê!

—Oqueaconteceucomo“aprendeaperder”?—perguntouCal,botandolenhanafogueira.—Calaessaboca,Cal!—gritouNorm,apontandoparaorostodooutro.Aproveitando que os dois começaram a se estranhar, Aelian passa a recolher o dinheiro

esparramadonochão.A porta do lugar se escancarou com um estrondo, trazendo uma bem-vinda lufada de ar

frescoparamovimentaroarestagnadocheirandoasuorecarvão.—Distribuiçãodetarefas,seuslambe-botasviciados!Eébomquepartedessasmoedasesteja

naminhamãoantesqueeuconteatécinco.Nahierarquiamilitar da cidade, o cargomais alto era o deGeneral. Abaixo de Proghon, a

Tenente comandava os Autoridades e osÚnicos. Enquanto osÚnicos eram forças especiais,responsáveisporprotegeradeusa,osAutoridadestinhamfunçõesmaisburocráticas,decunhocivil, embora também pudessem arregimentar soldados rasos se necessário. Apesar das rixas,AutoridadeseÚnicostinhamalgoemcomum:osonhodesetornarAltin.Comseusbraceletesdourados,damesmacorqueamoedadevalormaisaltodeUntherak,osAltineramacúpuladoGeneral,responsáveisporcuidardaslinhascomandadaspelaTenente.OsquechegavamaessaposiçãopodiamdarordensaosÚnicoseatémesmoaoutrosAutoridades.

OhomemqueirromperanolugaraosgritoseraumAltinqueAeliannãoconhecia.Osujeitotinhacabelolongoaoredordeumaclareiranotopodacabeça.Seguravaumlongopergaminhoeparecianãodaramínimaparao jogoilegal—contantoquerecebessesuaparteemdinheiroparafazervistagrossa.Alémdisso,comocaosdoatentadoaUna,elepareciaquereromenornúmeropossíveldeproblemas.

Cal e Norm interromperam a briga e olharam para Aelian. Na verdade, todos os outrosguardasemvoltaolharamparaele.

—Esseaífoiocaraquelimpouamesa—faloualguémàssuascostas.—Meu tributo, anda! — ralhou o homem, dando à propina um nomemais bonito. Ficou

observandodepertoenquantoAelianacabavaderecolherodinheirodochão.—Nãomelembrodoseurosto.Qualéoseunome?

—Kivan,senhor.—Vocêtemalinhadaservidão.Foitransferidodeonde?—DopostoavançadodoCanilnoPortãoSul,senhor—respondeu,enfimusandoafalaque

tantohaviaensaiadomentalmente.Eraumlugarafastado,quedificilmentealguémisoladonaloucuradoPalácioconheceria.

OAutoridadefezumgrunhidodesconfiado.— Não fui informado da sua transferência. Vou pedir para reenviarem o documento e a

solicitaçãodoCanil.—Talvez tenha se extraviado, senhor.O ataque doAparição no Poleiro que todos andam

comentando…—É,talvez.Issocagoutodoosistemadedistribuição…Bem,oqueimportaéquevocêénovo

aqui, e o primeiro tributo émaior que o valor costumeiro. —O Altin estendeu amão livre,movimentandoosdedossemparar.—Metadedoquevocêganhoudamesa.Vamos,novato!

— Metade é muito, senhor — disse Aelian, sem querer criar caso, mas também nãoconseguindoesconderaraiva.

Dequalquer forma,dividiuosgumus eosbakir a olho eos colocounamãoestendida.Eramelhorcooperarcomacorrupçãodosoficiaissenãoquisessequelhefizessemmaisperguntas.

—Verdade—respondeuohomemenquantoguardavao“tributo”numalforjepresoaocinto.EleolhouparaosÚnicosaoredor,queriamdedeboche.—VocêdeveriameagradecerporeunãomandarlevaralavagemparaosprisioneirosdoAnellogonoprimeirodia.Akaorshloucaquetentouassassinarasoberanajámatoudoisguardasquetentaramvê-la“umpouquinhomaisdeperto”…

Aelianficoualertanomesmoinstante.—Normand,JaaredetodososquetêmLouvoramanhã:cuidemdoAnel.—Incluindoaceladamaluca?—perguntouNorm,indignado.Oshomensqueoacompanhariamnatarefanãopareciamnemumpoucofelizescomaquilo.—Eufalei“CuidemdoAnel,menosdaceladamaluca”?—zombouoAltin,passandoparao

itemseguintedopergaminho.—Cal,NajideShen,vocêsvãoparaotérreo.PassemnainterseçãocomaAlaOesteeencontremosujeitoque foi transferidodoPoleiroequeestácuidandodamanutençãodasestátuas.Novato,vácomeles.

IrparaotérreoerameiocaminhoandadoparacairforadoPalácio,aindaqueprometesseserdifícil tirarosoutrosdosseuscalcanharesportemposuficientepara fugir.Noentanto,haviaduasquestões: agoraAelian sabia que alguémali poderia levá-lo até oAnel, e sua intuiçãodeapostadorpareciaquererlhedizeralgumacoisasobreotalindivíduotransferido.

—QuemveiodoPoleiro?—perguntouAelian,atraindoaatençãodetodos.Começouacolocaroelmoenquantoesperavapelaresposta,tentandofazersuacuriosidade

parecerpassageiraetrivial.OAltincomeçouaenrolaropergaminho.—Fazdiferença?Orapazhesitou.Umaespéciedesinotocouemsuamente.Cuidadocomoquevaidizeragora.—Sóqueriasaberquemfoitransferidodepoisdabriga—arriscou,lembrando-sedacontenda

entreHaruneNiahkon.Se ele fosse um guarda de verdade, teria omínimo de conhecimento sobre os boatos e as

bisbilhoticesenvolvendoosoficiaisdeUntherak.—ParecequeaqueleAutoridadekaorsh,ode cabeloenroladinho, levouumDestrinchador

gosmentoparaoPoleiro.Dissequeiaconterumindíciodemotim—respondeuohomem.

Normdeuumarisada,aparentementemuitobeminformadosobreoassunto.—Aquelesvermesnuncaaprendem…FiqueisabendoqueooutroAutoridadedeládoPoleiro

nãoconcordoucomaquiloequis impediramatançadosservos.MasaíoAparição invadiuolugar,matouoDestrinchadoreosamotinadoseaindafugiutransformadonumfalcãoqueeratodinhodacorproibida…

—Nãopodeserquevocêacreditenisso,Norm—falouJaared,rindo,erecebeuumsafanãonopeito,comumclangordemetal.

—Temtestemunhas,suabesta!Falaparaele,Kolt!—Nãoseidenada—respondeuKolt.AgoraAelianconheciaonomedoAltin.—Sóseiqueo

transferido foi o anãonegro, que umasdécadas atrás vivia dandodor de cabeçanosCamposExteriores.Nãolembroonomedele.

—AutoridadeHarun—disseo“novatoKivan”,sóparaobteraconfirmaçãodosuperior.Pordentro,estavaimaginandoquealutaentreNiahkoneHaruntinhacontinuadodepoisdafugadele.Torciaparaqueosdoistivessemsemachucadobastante.—É,eleécasca-grossa.

—Essemesmo.Harun— respondeuKolt, cutucando o nariz e dandomeia-volta.—Muitobem,vocêsjásabemoquefazer.Sumamdaqui.

Houve o estardalhaço apressadode armaduras sendo afiveladas e elmos sendo erguidos dochão.Aelianestavaprontoparairemfrente,semconseguirtirardacabeçaqueanotíciadesuafuga se tornara uma lenda sobre Aparição. Transformado num falcão. Quase riu daquelepensamentoridículo,imaginandoossoldadoscommedodeBicofinoeimpressionadocomasproporçõesmonstruosasqueaquelahistóriaganharaemapenasdoisdias.Umfalcãotodinhodacorproibida?Bicofinotinhaumaúnicapenaqueteimavaemnascernaqueletom!

Aquiloolevouaimaginarsesuamascoteestariabem.Aavesabiasevirar,mas,aindaassim,Aeliansepreocupava.QueriareencontrarBicofinooquantoantes.

Se fosse para agir e se ver livre daquele labirinto fedorento, deveria ser rápido, antes quesurgissemcartazesdePROCURA-SEcomseurostodesenhadopelasparedesdaAlaLeste.EAeliansequerpodiasonharemdardecaracomHarunporali.Seriaseufim.

—Ei,Norm.— Não fale comigo, trapaceiro de tripa solta. Depois resolvemos o assunto pendente —

respondeuohomem,regulandoaalturadabainhadamaça.Oex-falcoeiromostrouapalmadamão,pedindocalma.—Naverdade,achoquecomeçamoscomopéesquerdo.Queriasabersenãopreferemandar

umdeseushomenscomogrupodeCal,eeuficocomvocê.MeofereçoatéparaentrarnaceladamalucalánoAnel.

Normoolhoudecimaabaixo.—Eporquefariaisso?—Nãosei.Sinaldeboavontadedaminhaparte?—respondeuAelian,inseguro,sabendoque

não soara nem um pouco convincente. Então, tratou de usar algo que tinha aprendido nos

últimosminutos.Deuumrisocontidoebaixouavoz:—Naverdade…euqueroéverakaorshmaluca“umpouquinhomaisdeperto”,seéquemeentende…

Normdeuumrisomalicioso.Atéseuolhoparadopareceuganharumbrilhocruel.—Mesmosabendoqueosoutrossujeitosquetentaramissosederammal?—Eutenhopreparo,aocontráriodosdoisdefuntos—respondeulogo.—Deixaqueeulevoa

refeiçãoparaela,evocêeseushomensselivramdisso.— Para ser honesto, gosto da ideia— falouNorm, coçando o queixo.— Faça a vagabunda

sofrer.Queelapagueopreçoporteratentadocontraanossasoberana.Cal!Ei,Cal!QuertrocarobostadoJaaredpelobostadonovatoaqui?

Ohomemdeudeombros.—Tantofaz,osdoisfedem.Aelianriucomgosto.DepoisdedoisdiastentandopermanecermisturadoaosÚnicosapós

umbanhorápidoparatiraracrostadesanguemaculadodapeleedocabelo,elesabiaqueCaldisseraumaverdadeincontestável.

Aelian imaginaraqueamaiorpartedoPaláciodeUna tivesseumaatmosferadivina, sublime.Contudo, o lugar era uma cidadela com uma complexidade particular, assim como osAssentamentoseoMiolo.AAlaLeste,comseuarindustrial,eraaquerecebiamenoscuidados.PoralieraqueAelianhaviaseinfiltrado.SabiaqueaAlaSuleraadevisualmaisassépticoequetinha revistas e checagens a cada portão; afinal, era onde se localizavam os aposentos dasoberana,aTribunadeHonraeafins.TalvezApariçãotivesseconseguidooacessopelaAlaLestedecasopensado—alificavaosetorresponsávelpeladistribuiçãoderaçãoeáguadosÚnicos,ospavilhõesdecatresparaosquedormiamnoPalácioetambémosresponsáveispelosprisioneirospessoaisdeProghon.

Ouseja,oAnel.Aausênciade janelasemtodaaAlaLestese faziamuitomaisperceptívelnoníveldoAnel,

com seus corredores estreitos e claustrofóbicos. Aelian começava a se arrepender do planoimprovisado,sentindoocoraçãobatermaisrápidoeapressãocair.Preferiapulardequalquertorreaseembrenharcadavezmaisnum lugarqueseafunilavaeque tornava impossíveldoishomenscaminharemladoalado.

Ao levaras “refeições”—atéosgnollsdoCanil comiamcoisamelhor—paraosprimeirosencarcerados,Aelianconseguiu terumanoçãodecomoeraoAnel:umcorredorcircularqueficavaaoredordeumconjuntoespecialdecelas,tãoestreitasquenemmesmoumsinfopoderiaabrirosbraçossemtocarnasparedes.Oscubículoseramconectadosporváriastubulaçõesdagrossuradeumbraçoquetraziamosgemidosdedoreoarviciadodosvizinhosparalembraraosprisioneirosqueelesnãoestavamsozinhosemseusofrimento.

—TodososqueestãonoAneltiveramvozdeprisãodadaporProghonempessoa—explicouNorm, como se o conceito de “pessoa” se aplicasse ao General. — Muitos chamam essesprisioneirosde“faíscas”,poispodemcomeçarumincêndioe incitargrandes levantes.Temdetudo aí dentro: vigias quediscutiramcom superiores, semilivres quenão se curvaramdeboavontadeàpassagemdeUnaoudealgumoutrooficial…eporaívai.Quasetodososquenãosãohumanos,eleafundanaMáculaantesdeencarcerar.Àsvezes,oGeneralsónãovaicomacaradealguémemandaosujeitoparaalgunsmesesnoAnel,hehe…Vaientenderoqueele farejaporbaixodaquelacaveiradourada.AMáculadevecontaralgoparaele,seilá.

Ao trancar uma porta de aço fundido e partir para a cela ao lado, Norm chacoalhava umimensomolhodechavespesadas.Oprocedimentoserepetiaacadacela:ohomemabriaaporta,outrosdoisguardasbemarmadosflanqueavamoacessoeoquartoguarda—nessecaso,Aelian—entravacomatigeladeração.

Aelianjáhaviatestemunhadodorparaumavidainteiranumaúnicamanhã.Osprisioneirosmal notavam a presença dele e recuavam até os fundos da cela sempre que o rapaz entrava,trazendoaraçãoeoarchote.Ocheirodesangue,merdaemijoquaseoderrubounaprimeiracela,comoumblocodearsecoconcentrado.Pensouqueosdutosnãotraziamsóosgemidosdos vizinhos do cárcere, mas também o odor da sujeira que eles produziam, para que todadesgraçafossecompartilhada.ApesardeAelianaindanãosabernemumdécimodetodoousoedamecânicadoAneljáestavahorrorizadoemdetectarcomoacrueldadepodiaserengenhosa.

Semconseguirresistiraoverumkaorshsemumadaspernasrastejandonosprópriosdejetos,Aeliansussurroualgoaodesceratigelaatéochão,àfrentedoprisioneiro.

—Aguentefirme,amigo.Okaorshvirouorostocadavéricoparaeleeoencaroucomolhosfundos.Ohomemnunca

tinharecebidodosguardasnadaalémdedesprezoeviolência.Oex-falcoeirolhedeuascostasantesquesentissevontadedecarregaroprisioneiroparafora

dali.Nãopodiaajudartodomundo.Masbemqueeugostaria,pensou.Calma.Umacoisadecadavez.Primeiroakaorshmaluca.

—Proghonsempredeixoualgobemclaroarespeitodosencarceradosdaqui:querecebamomínimodecomidaparasobrevivereo limitedetorturaquepuderemaguentarsemmorrer—falou Norm, ao trancar a cela do kaorsh aleijado. — O General quer que os prisioneiroscontinuemvivos,quesofram.—OÚnicodeuumarisadinha.—Eéaíquenósentramos.Sesentirvontadede chutar a bocade umdesses vermes, fique à vontade.A sessãode tortura oficial éformada pela Centípede e conta com a presença dos Arautos, mas não precisamos ficartotalmentedeforadadiversão.

Diversão.AideiadeentretenimentodeAeliannaquelemomentoeraenforcarNormcomasprópriastripasdele.

—Certo—concordou.NãopareciaanimadocomoqueNormlhedizia.—Oquefoi?Estáamarelando?—perguntouele,indoparaaportaseguinte,marcadacomum

Xemcarvão.—Ah!Émelhornão,poischegamosàsuanova…amiga.AceladeRaazi.—Não,eu…querovê-la.Osoutrosguardasriram.Normcolocouachavenaporta.—Seupervertido.Eudeviaficardebocacaladaedeixarvocêseferrar,masvoulhedaruma

dica:osdoisinfelizesdeantesacharamquepoderiamseaproveitardelaporqueamulherestavacomosbraçospresospelascorrenteschumbadasnaparede.Esabeoqueakaorshfez?Quebrouopescoçodeumcomumachavedepernaemordeuajugulardooutro…comoumaselvagem!

Aelianengoliuemseco.EsperavaquetivessetempodeinformaraRaaziqueestavaaliparadarumjeitodeelaescapar.

—Certo—falouAelian.Eraaúnicapalavraqueconseguiadizernomomento.Quandoaportafoidestrancada,umdoslanceirosqueestavamaoladodaentradasegurouo

braçodeAelian.Elefalavabaixo,mastinhaumsorrisodeorelhaaorelha.—Quandovocêacabarcomoserviço,seelaestiverdesacordadaoudesmaiada…mechame!Qualoproblemadessagente?,pensouAelian,assentindo.Malhaviaentradonaescuridãopútridadacelaeaportabateuatrásdele,oferrolhofazendo

barulho.Estavatrancadocomalguémquetinhamatadomuitagentenosúltimosdias.Levantouoarchote,masaluznãoalcançavaosfundosdacela.Ouviuasvozesdosguardasdo

lado de fora, seguidas pela risada de Norm. A porta abafava quase todo o som. Deu passoshesitantesadiante,comatochaerguidabemaltoeatigeladeraçãoapoiadanabarriga.

—Raazi?—chamouaossussurros,tentandofazeralgumcontatoprévio.Entãoaluzatingiuaparededosfundos,eAelianviuumpedaçodecorrentechumbadoemapenasumdoslados,ondeakaorshdeveriaestar.—Masoque…?

Assombrasacimadorapazsemovimentaram,tremeluzirameganharamcoresclaras,rápidodemaisparaqualquerreação.AkaorshdespencoulogoatrásdeAelian,traiçoeira,enrolandoumacorrentenopescoçodeleepuxandocomvigor.

OarchoteeatigeladecomidacaíramantesdeAelian.

13

Ela jáhaviaacabadocomdoisÚnicosematariaquantos fossemnecessáriosatéqueProghonviessevê-laemsuacela.SetivesseconseguidosemexerduranteavisitadaCentípede,tambémteriaassassinadoaquelascoisascaquéticasfantasiadasdeanciões.

O guarda caiude joelhos, e a kaorsh aproveitoupara chutar o archote, evitandoque ele ousassecomoarma.

—Achave—grunhiuRaazi,comumavozquenemelareconhecia.Pareciaquenãoarticulavaumapalavrafaziadias.—Equerosaberquantoshomensestãoláfora.

Ohomemergueuamãoespalmada.Elaafrouxouoapertodacorrenteparaqueelepudessefalar.

—Argh…ajudar…—Vocêquermeajudar?Quandosoueuqueestouemvantagem?—Eu…aaaargh…nãosou…guarda…Ele tentava sevirarde frenteparaRaazi.Amulherdeuoutropuxão,mas sempreque fazia

aquilo,machucavamaisopulso.Aalgemaquetinha forçadoparaescapardeixarasuapeleemcarneviva.Umdoshomensquetentaratocá-larevidoucomumgolpedeumaclavaenorme,mas,emvezdeacertá-la,acabouatingindoumdoselosdacorrentechumbadaàparede.DepoisqueRaazimatouossujeitoseelesforamrecolhidos—claro,comumaboareprimendadequemfoi buscar os cadáveres —, a kaorsh percebeu que o pedaço de corrente atingido ficaraenfraquecido. Então, puxou até que entortasse de vez. Com um dos braços livres, conseguiucolocartodoopesonaoutraparedeearrancarochumbodapedra.Asmarcasemsuapelenãosairiamtãocedo.

—Sevocênãoéguarda,oqueéentão,verme?—…Euescrevi…paravocê…Arena…Elacongelou.Afrouxouoaperto.—Você…arf…recebeu?A…carta…dealerta…Nãopodeser,pensouela.Noentanto,comoaquelehomempoderiasaberaquilo?—FoiumAutoridadechamadoRanakharquenosescreveu.Elaenfimolivroudoenforcamento.Elesorveuumaenormequantidadedearecaiusentado.

Suasmãosestavambemlongedaclava.Aindaassim,akaorshficoualertaparadeterqualquermovimentobrusco.

—NãoconheçonenhumRavengar—disseele,avozrasgada.—Ranakhar—corrigiuRaazi,sementendernada.—Quemévocê?Eleergueuodedo,pedindouminstantepararecuperaroar.

—SouAelian.AelianOruz,doPoleiro.Querdizer,eueradoPoleiro…Batidasnaportadeaço,seguidasdavozdeNorm.—Vocêsestãomuitoquietinhosaí.Precisamdeajuda?Osguardasriram,fazendoumaalgazarra.Aeliansuspirou.—Temtrêshomensláfora.UmdecadaladodaportaeNorm,queéomaisperigosodetodos.—Qual é o seuplanoparadepoisquepassarmospor eles?—perguntouRaazi, entendendo

rápidoasituação.Eledeudeombros.—Vocêtemmedodealtura?—perguntouAelian.—Vejasóomeuestado.Porqueeuteria?—Desculpa.Bom,telhados?…—Paramiméosuficiente—disseela,pegandooarchotedochãoeodevolvendoparaorapaz.

—Chameosguardasaquiparadentro.Aelianselevantoucomdificuldade.Akaorshapoiouascostasemumaparedeeaspernasem

outra,escalandocomtremendahabilidadeatéassombrasdotetoefundindo-senoescuroacimacomacamuflagem;omesmotruquequeusarahaviapouco.

—Oquevocêvaifazer?—Chameoshomens!—respondeueladoalto,numsussurrofirme.Norm bateu na porta de aço, com mais impaciência. Aelian se voltou para a frente,

iluminandoaentrada.—Entrem!Barulho de chaves e do ferrolho sendo destrancado. A cabeça de umÚnico que devia ser

Normapareceuporumafresta.Aelianfezsinalcomasmãos,eosujeitoempurrouoguardadoladodaportaparadentro.

—Vailá,vocêprimeiro.O homem entrou com um sorriso doentio iluminado pelas chamas do archote. Largou a

lançano chão e foidesafivelandoo cinto, apressado.Raazi, observandodas sombrasnoalto,adorariavomitarnacabeçadele.Mastinhapreparadoumasurpresaaindamelhor.

—Podevirtambém—disseAelianparaNorm,comastúcia,enquantoseguravaaporta.—Euficoaídeguardanoseulugar.

Osujeitopermaneceualguns instantesolhandoparaoguardaqueoconvidavaparaa cela.Entãoentrou,empurrandoAelianàfrente.

—Vocêpareceabalado.—Elaresistiuumpouco,sabecomoé…Normpareciadesconfiado.—É,seibem…—Ei!—gritouoÚnico,jádecalçasarriadas.—Quetaljogarumpoucodeluzaqui?Nãoestou

enxergandoumpalmoàfrente…Porra,quemerdaéessa?

O ruído indicava que o homem tinha pisado na tigela de comida. Aelian se virou para oguarda,e foinesse instantequeRaazisaltoudoteto,bememcimadosujeitodesarmado,quetentavaenxergarnoquehaviapisado.

EladesaboucomumdosjoelhosnomeiodascostasdoÚnico.AelianseviroucorrendoaoouvirobarulhodamaçadeNormsendobalançada.

—Novatofilhodaputa!—exclamouNorm,erguendoosbraçosparaumataquefrontal.Desajeitado,Aelianergueusuaarma,massóconseguiuapararogolpe.Aproveitouparajogar

oarchotenorostodeNorm,quecambaleouparatrásatébaternaportadeaço.Raazi segurou a testa do homem abaixo de si e puxou a cabeça dele para trás com força,

produzindoumestaloalto.RoloupelochãosujoparaalcançaralançabatizadadomortoeseposicionouatrásdeAelian,quemantinhauma inseguraposiçãodefensiva contraNorm.Nãohavia espaço para os dois ficarem lado a lado e também não havia vantagem alguma em seenfileiraremcontraumÚnico.

—Guardas!—gritouNorm,esmurrandoaportaatrásdesi.—Reforços!Agora!—Abaixe-se—falouRaaziàscostasdeAelian.—Oquê?—perguntouAelian,aparandomaisdoisgolpesdeNorm.—Abaixalogo,inferno!Orapazobedeceu,eRaazigolpeoucomalançaopeitodoÚnico.Antestardedoquenunca,

Aelian percebeu os tornozelos expostos de Norm e os golpeou com a clava num únicomovimento.Umtrabalhoemequipecompletamenteinvoluntárioeatrapalhado.

—Deu…certo!—Porpoucotempo—disseRaazi,ultrapassandoAeliane indoparaaportaqueseabria.O

últimoguardamaltevetempoderegistraroqueaconteciaantesdeserpuxadopelagoladacotademalhaeteracabeçaprensadapelaportaváriasvezes.—Maissoldadosvãochegarembreve.Indiqueocaminho.

A kaorsh arrancou a lança do peito do homem. A lâmina batizada, padrão das armas dosÚnicos, saiu sem derramar sangue. Raazi viu Aelian se levantar devagar, com os olhosarregalados—nãodeviaestaracostumadoalutarematar.

ComeçaramapercorreroAnel,e,apósviraremalgunscorredores,orapazjogouoelmodaarmaduranumcantoescuro.

—Essacoisamesufocaemeimpededeveroscantos—disseAelian,arfando.—Fiquesemele,então—falouRaazi,alerta.—Paraondevamos?—Agorahápoucoviumaescadariaquepareciavazia…talvezpossamossubirporlá.—Rápido,estououvindopassos.Entraramporumaportademadeiraechegaramaumaescadariaescura,comoquasetudoque

havianaAlaLeste.Elaeracircular,comarchotesdefogobrancodébileportasdespontandoemalgunscantos,sempadrãonenhum.Estavasilenciosa,eaquilodeualívioimediatoparaosdois.

—Você tambémmemandouaqueleunguentovermelho?—perguntouRaazi,quebrandoo

silêncioapósalgunslancesdeescada.Aelianvoltouosolhosparaela,intrigado.—Não.Sómandeiacartaatravésdomeufalcão,oBicofino.TalveztenhasidooAparição.Raazisoltouumarisadafria.Elanãosabiaquealgodentrodesiaindaconseguiarir,mesmo

quedeformazombeteira.—Aquelalendaparaservosmedrosos?—Moça,eutambémachavaqueoApariçãoerabesteira,maseleexiste.Jámeincriminou,mas

tambémmeajudoua fugireatémearranjoualgoparacomer.Nãoseisegostoouseodeioosujeito.

—Vocêtrabalhaparaele?Éumassassinodealuguel?EntãofoiavezdeAelianrir.—Não.Souapenasumfalcoeiro.Pelomenoseuera.Masnosúltimostempostenhofeitoas

vontades do Aparição commuita frequência. Ele é queme orientou a tirar você do Anel. —Aelianparouevoltou-separaRaazibemnahoraemquepassavamnafrentedeumarchote.—Eu…euestavaláquandovocês…Bem.Foibastantecorajoso.

Por um instante, Raazi não respondeu. Apenas pensou em Yanisha e em quãoirremediavelmentedistanteestavamumadaoutraagora.Nãoconseguiaevitarsesentirculpadaportersidocapturadaviva.

—Ondevocêestava?—perguntouela.Aelianvoltouasubirosdegraus.—Observando,escondido.EuviUnamorrer…eressurgir,minutosdepois.—Elasereergueu?—indagouRaazi,maissériaqueantes.Emquestãodesegundos,suamente

focounesseassunto.—Nãopodeser!Aspessoasaviramsangrar,não?—Impossívelnãover…elalavouaTribunadeHonracomsangue!—EntãoUnanãosereergueu,trouxeramoutraládedentro.— O quê? Não, ela foi retirada do camarote pela Centípede — respondeu Aelian,

desconfortável.—Evoltoudepois,dedentrodoPalácio.Curada.—Hum—resmungouRaazi,dando-lheascostasevoltandoasubirasescadas.—Éassimque

elesfazem,então.Esperoquealgunspercebamafarsa.Aelianficouparado,sementender.—Quefarsa?Doquevocêestáfalando?Quemsãoeles?—Yanishateriapaciênciaparaexplicar,maselanãoestáaqui—disseRaazi,cortante.Subiram em silêncio. Raazi percebeu que Aelian se retraíra, evitando dizer qualquer coisa

sobre aquilo, com medo de tocar em alguma ferida. Apesar de não conhecer o rapaz que aajudava, a kaorsh sentiu pena dele. Ela o atacara achando que era só mais um malditoaproveitador… e elemal parecia guardar ressentimento. Raazi era péssima com palavras,masresolveuarriscar.

—Soumuitogrataporestarmeajudando,Aelian.Vocênãomepareceserumhomemtão

ruim.Medesculpepelo…ataque.— Tudo bem, você só estava se defendendo. Eu ouvi como os guardas falavam de você. É

compreensível.—Eleolhouderelanceparaobraçodakaorshqueaindaestavacomaalgemaligadaàcorrente.—Temosquedarumjeitonesseferroaínoseubraço.Elefazmuitobarulho.

Raaziestacounolugar.—Ei,fazbarulhomaspodemoscontinuarandando,nãofoioquequisdizer…—Shhh!—Oquê?—Quieto!Elaapontouparaumaportaumpoucoacimanaescadaria.Vozesvinhamatravésdela;alguém

iapassarporalienãohaviatempodeseesconder.Eraavançar,retrocederousejogarnofossodaescadaria.

—Fiqueencostadonaparede—ordenouRaazi,empurrandoAeliandecaraparaostijolos,semdelicadezaalguma.

Ohumanofezmençãodeperguntaroqueamulherestavafazendo,maslogopercebeuqueelatocava a parede e ia absorvendo as cores. Em seguida, a kaorsh o abraçou por trás, tentandocobri-locomseucorpoetorcendoparaqueninguémolhassepormuitotemponadireçãodeles.

Sempodersemexernemolharparatrás,Raaziouviuaconversadosguardas.—Viu?Nada.Elanãosubiriaporaqui.—Masagentetinhaqueolhardequalquerforma.—Seamulherestáfazendoalguémderefém,euprocurariano…—Saiamdafrente,refugos!—gritouumaquartavoz,eouviu-seochoqueentrearmaduras.Raazificoualerta:quemchamavahumanosderefugooueraanão,ouerakaorsh…Ekaorshsnãoseenganariamcomumacamuflagemfeitaàspressas.—Praga!—sussurrouRaazi.Aelianpareciaterseguradoarespiraçãoatéaquelemomento.—Oquefoi?—Prepare-separalutar.Asvozesàentradadaportafaziamsilêncio.—Comodissemos,ninguém.—Evêsesossegaumpouco,meuamigo…Antesdesairchamandoqualquerumde refugo,

você…—Refugos—disseavozqueofenderaoshomens.—Exatamentecomovocês,comessesolhos

quenãosabemdiferenciarumporodeumcu.Nãorepararamnaquelesdoiscoladosàparede?—É,éumkaorsh—declarouRaazi,empurrandoAelianparaoladoevoltando-separaaporta,

prontaparaabriga.—Éela!Acriminosa!—Eestácomumdosnossosderefém!

Oshomenspareciamapavorados,masokaorshquetinhaencontradoRaazieAeliandesciaosdegrausnadireçãodelescomumsorrisotriunfante,certodequeganhariaumapromoçãoparaAutoridadeporcapturaramulherquetentaraassassinarUna.Eleavançavafazendofirulascomaespadabatizada,enquantooshumanosvinhamlogoatrás.

—Vocêestácomumaaparênciapéssima,querida…masvoudeixá-laaindapior.Proghonquervocêviva,infelizmente.

Elarecuoudoisdegrausparatertempodepensarnumaestratégia.Okaorshalargouosorriso,achandoqueamulherestavacommedo.Raazisentiuummovimentobruscoàscostas,eavozdeAelianirrompeunofosso:

—Raazi,abaixa!Elaobedeceusemquestionar,eviuumaclavarodopiandonadireçãodopeitodokaorsh,que

maltevetempodedesfazerosorrisopresunçosoantesdeserarremessadoparatrás,tropeçarnosprópriospésedesabarnovãodaescadaria.

—Impressionante—disseela,comummistodesinceridadeeraiva.—Masnemtodaarmaédearremesso,eexistemoutrasmilformasdecombatequenãoenvolvemagachamentos.

Aelian parou ao lado dela e tirou um punhal de aço virgem da bota.Um punhal kaorsh,observouRaazi.Elemantinhaoslábioscerradoseosolhosfixosnostrêshomensàfrente,quepareciam completamente desencorajados em enfrentar a fugitiva e o Único que tentavadefendê-la.

—Desculpe.Nahorapareceuumaboaideia.—Foiumaboaideia,nãomeentendamal.Alémdisso,achoqueessessoldadosnãovãonos

atacar.Nãoasério.—Éque…nãoseisesabedisso,masvocêdámedo—confessouAelian.—Aindamaiscomo

cabeloassimecobertadesangue…Raazinãoconsideraraaquilo.DesdeaArena,comosangue,osuorealamaacumulados,devia

estarparecendoumacriaturadosGrandesPântanos.Comaquelainformaçãoemmente,elaseguroualançacomambasasmãoseabriuumsorriso

pavorosonorostoimundo.Aideiaeraassustareaproveitarapequenavantagemqueomedolhedaria.Os trêshomensrecuaram,gritandopor reforços.Oprimeiro teveacorrentedaalgemaenroladanopescoçoeseguiuokaorshpresunçosofossoabaixo.Osegundofoigolpeadopelalança, e o terceiro foi derrubadopelo punhal deAelian, que golpeouo soldadobemnaparteexpostadavirilhaemqueaarmaduranãooprotegia.Todosmergulharamnofossoemseguida,comumempurrãozinhodeRaazi.

— Temmais gente vindo— disse Aelian, segurando o punhal com a lâmina para baixo. —Vamos,rápido.

Raazi não sabia como estava conseguindo se movimentar tão depressa após dias deencarceramento,péssimaalimentaçãoetodaumavariedadedemaus-tratos.Apenasfocavanumdegraudecadavez,ecuidariadasdoresquandoestivesselongedoPalácio.Sabiaquetinhamuito

oquesentireorganizarnacabeçaenoespírito.Aelian,porsuavez,pareciabem—apesardecarregaroolhardequem já tinhavistomuita

coisanavida.Raazireparounalinhadeservidãonorostodorapaz,eficouimaginandocomqueidadeeletinhacomeçadoaservirnoMiolo.

Amentedenenhumdosdoisestavaali,naquelaescadariacircular.Porém,quandochegaramaoladoopostodofosso,jáalgunsmetrosacimadeondesurgiramosúltimosguardas,aportafoireaberta.

Aelian e Raazi olharam aomesmo tempo. Era apenas um indivíduo dessa vez, o que fez akaorsh suspirar aliviada, mas, pela maneira de se portar, o anão de pele negra devia ser umAutoridade.

Eleencarouosdoisacima,brandindoummartelodecombate.—Ah,não—lamentouAelian.Raazinãoentendeualamúria.UmagentedeUnaeraumagentedeUna.Sefossemsequeixar

semprequeumdelesaparecesse,nãohaveriauminstantedepaz.—Oquefoi?—perguntouela,sentindoopesodalançanamãoeponderandosevaleriaapena

tentarumarremessodali.AntesqueAelianrespondesse,oanãopassouosdedosdamãolivrepeladensabarbabrancae

perguntou,comvozgrave:—AelianOruz.Porquedemôniosestáindoparaostelhados?

14

Nãopodeser,pensouAelian.JáeraruimdemaisqueHaruntivessesidotransferidoparaoPalácio,masestavafugindodolugar.NãoesperavaserencontradojustamentepeloAutoridade.

—Raazi,vamos—disseAelian,puxando-apeloantebraço.Elaolhoudoanãoparaorapaz,tentandoentenderaquelatensãoestranhanoar.—Vamos para onde, idiota?— gritouHarun, olhando para cima, para o degrau em que os

fugitivosseencontravam.—Desdequealutanosaguãocomeçou,ostelhadosetorreõesestãoapinhadosdeguardascomarcosebestas.Vocêsnãodurariamcincosegundosláemcima.

Aelianestavaindeciso.Raazi,confusa.—Oanãoestánosajudando,éissomesmo?—perguntouela.—EleéumAutoridade!—informouAelian,impaciente,segurandoopunhalcommaisforça.—EusouAutoridadeeestoutentandoajudarvocês!—rebateuHarun,aindamaisirritado.—

Só que vocês precisam vir logo, antes que alguém nos veja, senão seremos três perseguidos.TemosqueaproveitaradistraçãoqueoApariçãocriou.

Aelianengoliuemseco.—OAparição?—Sim—disseHarun,respirandofundoparaseacalmar.—Paramiméosuficiente—falouRaazi,descendoaescadanadireçãodoanão.Aeliannãofoiatrás.ComopoderiaconfiarnosujeitoquebrandiraoaçoitedeSureyyacontra

eleequeportantosanosrepresentaraopunhoopressordeUntherakparaostrabalhadoresdoPoleiro? Conteve o ímpeto de segurar a kaorsh, mas também não sabia para onde ir se ostelhadosestavamsendovigiados.

—Últimachance,garoto—falouoanão,impaciente.—Nãomechameassim.—Paremcomisso,vocêsdois—bradouRaazi.Observandoorostoferozcobertodesangueeumvislumbreazulaoredordoolhoesquerdo

dela,Aeliansentiu-secompelidoaobedecer.TeveaimpressãodequeHarunpensavaomesmo.Elarespiroufundoecontinuou:

—Vamossairdaqui.Vánafrente,anão.Euficoentreosdois.Ninguémvaisemataratéqueestejamostodosasalvo.

A frase não faziamuito sentido. Confuso, Aelian franziu as sobrancelhas enquantoHarundavaascostasparaaescadaeabriaaportadevoltaparaoscorredoresdoPalácio,gingandocomsuaspernascurtas.

—Pormim,tudobem.Sigam-me.

Os corredores daquele andar estavam vazios, apesar de botas ecoarem em algum ponto nãomuitodistante.Tambémnãohaviajanelasali,comonamaiorpartedaAlaLeste.

Haruncaminhavaà frente,numamarcharápida.Raazi ia logoatrás,atentaacadacurvaeacadaportaentreaberta.Aelianprestavaatençãoemtudo,alémdenãoconseguirdeixarparatrása sensação de que o anão os levava para uma emboscada. Observava as cicatrizes nas partesexpostasdobraçodoAutoridade,maisnumerosasque as ferramentas em seu cinto.Alémdeestacasecinzéis,haviamachadinhaseoutrasarmas,semmencionaromarteloqueelelevavanamão direita— pela tensão do homem ao brandi-lo, ou ele tambémnão confiava emRaazi eAelian,ousabiaquepodiaencontrarencrencaaqualquerinstante.

—Vocêmencionouumalutanosaguão—disseRaazi,olhandoparaocabelogrisalhonanucadeHarun.

Ohomemassentiu.— Foi só alguém dar o sinal de que um prisioneiro fugira do Anel, que poucos segundos

depois,oApariçãodeuascaras,pertodaestátuadeUnaeoDragão.—Evocêestavalácomaequipedelimpeza—falouAelian.Harunolhouderelanceparatrás,detectandootomdeprovocação.—Estava,eescapeiassimqueosanguecomeçouaserderramado.—Chegourápidoaquiemcima.—Paravocêver.—Nãotemmedodequealguémodedureporterfugidododever?—perguntouRaazi.Não

pareciadesconfiadadaspalavrasdeHarun,masdefatopreocupadacomele.— Quem me viu fugindo não está mais em condições de abrir o bico sobre nada neste

momento. Aquele encapuzado endemoniado acabou com uma dúzia de soldados bempreparados.Sozinho.Nuncavinadaigual.

RaaziolhouparaAelian,comosebuscassenosolhosdelealgumsentidoparaaquelerelatoabsurdo.Eledeudeombros.Comoakaorshpoderiaacharqualquercoisaestranhadepoisdeterderrotadoumbandodegosmentos, lutadocomummonstrogigantesco,tentadoassassinarasoberanadeUntherakeaindaestaralidepé?Paraele,RaazieratãoassombrosaquantoAparição.

Harunparouaoladodeumaescadadepedraquelevavaaumalçapãonoteto.Elecomeçouaapalparosladosdaescada,comoseprocurasseporalgonapedralisa.

—Vocênãodissequesubireraestupidez?—provocouAelian,erguendoopunhalàalturadopeito.

ImaginavaqueumbatalhãodeÚnicosdesceriapeloalçapão.Raazipareciamaistranquila,masAelianreparouqueelaassumiuumaposiçãodedefesa.

Harunnadarespondeu.Apenaspareceuencontraroquequeriaedeuummurronumapartealeatóriadaescada.

Aelianouviuumcliquesobospésdele.Olhouparabaixo,alarmado,eviuqueumapartedo

pisorochosopareciasolta.—Subiréestupidez.Então,sepudertirarospésdaminhapassagemsecreta,euagradeço.Aelian deu um passo para trás, e o anão usou um cinzel como alavanca para erguer uma

escotilhaatéentãoinvisível.—Poraqui—disseele,indicandooburacoabertonochão,nomesmoformatoirregularda

tampa.—Ecuidadocomacabeça.Éumtúnelfeitoporanõeseparaanões.Raazi foi primeiro, talvez por achar que qualquer possível armadilha fossemelhor emais

confortável que a cela noAnel. Aelian encarou oAutoridade antes de segui-la, e recebeu umolhartãoduroquequasechegouadoer.Desfezocontatovisualprimeiroesumiupeloburaconochão.

Houveummomentodeescuridão,atéobarulhodepederneirassechocandoprecedera luzbrancadeumavelademagnésio.Harunseguravaaúnica fontede luznaquele túnelquemaispareciaumgrandeescorregadorparadentrodaescuridão.Raaziestavaencurvada,comascostasbatendonoteto.Asparedesdalitambémnãopermitiamqueduaspessoascaminhassemladoalado.Aelianvoltouasentirintensamentecadagotadesuordescendopelascostas.

—Vocêestábem?—perguntouRaazi, osolhosvoltadospara ele.Aelianachouaperguntabastanteirônica,tendoemvistatudoqueelatinhasofrido.—Suarespiraçãomudoubastante.

—Eunãogostode…lugaresfechados.Masestoubem.—Nãovouconseguirpassarà frenteatéo corredor sealargarumpouco—disseHarun.—

Então,precisoquevocêssigamparabaixo.Mesmoporquenãoexisteoutraopção.Elesforamemfrente,RaazieAeliansempreencurvados,Harunempertigado.Ocorredorfazia

diversas curvas fechadas para depois continuar por vários metros em linha reta, sempredescendo.Raaziquestionouaexistênciadaquelecaminhoeperguntouomotivodenãohaverescadasali.

— Foi construído pelo meu povo em segredo, enquanto o Palácio era erguido. Como ocaminhonão tem iluminaçãonatural, preferiramumpisoplano, paraqueninguémcaísseoutivessedificuldades.

—Eatéondeelevai?—indagouAelian,maisparaafastaropensamentodasparedesfechadasdoqueporquererfalarcomoAutoridade.

—OsanõesfizeramcaminhosportodoosubterrâneodeUntherak.Vocêsesurpreenderiaatéondepodemosirporbaixodaterra.

—Ecomoninguémpercebeuessestúneissendoconstruídos?—perguntouRaazi.—MesmoosprimeirosanõesfiéisaUnamantinhamsuastradiçõesemprimeirolugar,graças

àherançaoraldonossopovo.Elesqueriamteralgumagarantia,umarotadefugacasoadeusaresolvesse dizimar os construtores e arquitetos, assim como fez com os responsáveis pelaestátua.—Ohomempigarreou,sobressaltandoAelian.—Nota-sequemesmohámilanoselajátinhaatitudes…aleatórias.

—Nós,kaorshs,tambémtentamosmanternossasraízes—disseRaazi.—Masmesmoassim

perdemosmuitasdasnossastradiçõesnestesmilanos…—Admirável. A verdade é que os anões também não resistiram pormuito tempo. Fomos

engolidosdepressapelosistemadeUna,logonosprimeirosséculos.Quasenenhumclãcontinuatransmitindoasmemórias.Omeu,porexemplo,nãomedeixouquasenada.Tudoqueseiveiodoqueconseguiencontrarnomeutempo livre,escondidoporUntherak,procurandoporpistasdeixadasemestátuas,pedras,runaseadinkrasinvisíveis.—Eleremexeunumdosbolsosdecourodocintoetiroualgocircularquebrilhouporuminstanteàluzdavela.Pareciaummonóculodevidro,decorâmbar.Harunocolocounoolhoesquerdo,fechandoodireito,eolhouatravésdeleparaoteto.—Estamoschegandonumapartemaisespaçosa.

—Sãosinaisinvisíveis?—perguntouRaazi,jáqueaolhonuotetonãotinhanadadeespecial.—Sim.Elesaparecemnumacoloraçãoquesódáparaenxergarcomessetipodelentefosca…

Existemlinhasemdiferentescoloraçõesparasabermosaondecadacaminhobifurcadonosleva.—Os kaorshs não deveriam conseguir enxergar isso?— questionouAelian, estreitando os

olhosparaoteto.Raazimeneouacabeça.—Algunspadrõesepigmentospermanecemocultosparanósatéqueosenxerguemoscom

ajuda artificial pela primeira vez. Depois, sim, nossos olhos os reconhecem sem ajuda. Ficoimaginandoquaistécnicasdepinturaecoloraçãoosanõesantigoscriaramecomodevemterseperdidonotempo.Adorariaaprendercomooutrasraçasdesenvolviamtintas.

— Aposto que era bem difícil criar algo que ficasse oculto do olhar de um kaorsh —concordou Harun, guardando a lente de volta no bolso. — No passado, tínhamos nossastradições,mastambémhaviamaisrivalidadeentreasraças.

—Decertaforma,amisériaacabounostransformandoemiguais,deumamaneiraqueUnajamaisconseguiu—sussurrouRaazi.

—Paramim,Unaéamiséria—respondeuHarun,comargrave.Foiaprimeiravezqueostrêsconcordaramemalgumacoisa.

Não era possível saber o quanto haviamdescido pelo caminho secreto. As partes planas nãoacompanhavamosandares,eeramtantascurvasimprevisíveisquemesmoumapessoadotadadeótima localizaçãoespacial ficariacompletamentedesorientadaali.Talvezosanõespensassemcomoformigas,localizando-secomfacilidadeemseustúneissubterrâneosinconstantes.

Chegaramnuma parte onde o caminho perdeu a inclinação, uma intersecção entre várioscorredores.Opé-direitonaqueletrechoeraumpoucomaisalto,permitindoqueRaazieAelianseerguessem.Haruntiroudenovoalentedobolsoeolhouparaoteto.

—Estamosacimadosaguãoprincipal—anunciouoanão.—Precisodarascarasemalgummomentoouvãoestranharomeusumiço.Tambémtenhoquecumpriralgoqueprometiao

Aparição.Mas,antes,vamospararparadescansar.Aelian coçouanuca e continuoudepé.Amudançade lado repentinado carcereironãoo

convencia,easensaçãodequeestavaentrandonumaarmadilhaserecusavaadeixá-lo.Raazisentounochãoporuminstante,segurandoopulsoqueaindaestavapresonacorrente,

fazendo uma careta de dor.Harun levou asmãos à parte de trás do cinto, e Aelian ergueu opunhalemreflexo.

—Calmalá,falcoeiro—disseoAutoridade,irritadiço,tirandoumaestacadepontaestreitadagama de ferramentas e ajoelhando-se na frente de Raazi. — Daqui a pouco você vai ver queestamosdomesmolado.

Aelianbaixouaarma,umtantoenvergonhado,umtantomaisdesconfiado.Akaorshlançouumolharsignificativonadireçãodele,comosedissessequetinhatudosobcontrole.

—Estendaobraçoaqui,assim.Isso…Raazitambémestavaajoelhada,comocotoveloapoiadonarochafriadochão.Harunpassou

quase umminuto alisando a algema demetal e buscando um ponto fraco para posicionar aestaca.Aelianobservavaosdoisdebraçoscruzados,afastadodadupla.

Então,oanãopareceusatisfeitocomalgoetrouxeomarteloparapertodacabeçadaestaca.—Voutentarnãorasparapontadaestacanoseubraço.—Nãoestoureclamando—disseRaazi,apática.Umaúnicaecalculadabatida,umafaíscafugaz,eRaaziestavalivredacorrente.Levouaoutra

mãoaopulsoemcarnevivaevirouacabeçaparaHarun,agradecendo-o.Eleselevantou,atirouacorrenteparaumcantoeguardouaestacaeomartelonocinto.

—Poisbem.Quandonosreencontrarmos,voutentartrazeralgumacoisaparacicatrizaressesferimentos.Etambémumpoucodecomidaparavocês.

—Vamosficaraqui?—perguntouAelian,ranzinza.Seutomdevozdeixavaclaroque,fossequalfossearesposta,elenãoficarianaquelelugar,esperandoumaemboscada.

—Não, vocêsprecisam ir andando— respondeuo anão, pegandoa lentemais umavez e aestendendoparaumcontrariadoAelian.—Olheparaotetoatravésdela.

Aelianhesitouemtocá-la.Harundeuumsuspiroalto.—Qualperigoumalentemonocularpoderiaofereceravocê,Oruz?Omáximoqueeupoderia

terfeitoeraterpassadoissonomeusaco.Raaziquebrouoclimadetensãodeixandoescaparumrisorápido.Elanãopareciaacostumada

aachargraçadascoisas.OhumanopegoualentedamãodeHarun,semdeixardeencará-lo.Aeliansegurouoobjetonafrentedoolhodireitoesesurpreendeucomaquantidadedecores

queotetoguardavaemsegredo.Váriaslinhasseramificavamnadireçãodosdiversoscorredoresquesaíamdaquelaclareira.Dourada,azul,cobre,prateada,esmeralda…

—Estáenxergando?—Sim.—Sigamalinhaprateada.Éumdoscaminhosmaislongos.Nãodesviemdeleenempensem

empegarumatalho.—Paraondeelenoslevará?—indagouRaazi,parandoaoladodeAelian.— Para fora do Miolo, aos Campos Exteriores. Lá, alguém vai receber vocês, mas espero

reencontrá-losnocaminho.Nomáximo,alcançovocêsdepois.Aelian ficou impressionado. Aqueles túneis eram muito maiores do que ele imaginara.

EntregoualenteparaRaazievirou-separaoanão.—Vocêtemoutradessas?—NãoécomoseessaslentesfossemvendidasnoMercadoAberto,Oruz—retrucouHarun.—

Lentesfoscassãoraras.Portanto,tratedenãoperdê-la.Eujádecoreiocaminho.Raazibaixoualente,devolvendo-aparaAelian,econtinuouolhandoparaoteto.—Consigo reconheceropadrão,nãovouprecisarmaisdela.Ébemengenhoso.Sãopedras

rarasmisturadascomâmbardesalgueiro-invisível,nãosão?Essasárvoresnemexistemmais…Harunconfirmoucomacabeça,parecendopesaroso.— Semeus antepassados soubessem que confirmei isso para você, colocariamminha cara

numabigornaquente.—Oanão se remexeu, entregandoavela acesaparaakaorshe indonadireçãodaparededeumcorredoratrásdesi.—Poisbem:linhaprateada.Nãodesviemdela.Atémaistarde.

Harun tirou do cinto, cujas surpresas pareciamnão ter fim, algo que se assemelhava a umpequenochifre,comumapontaparecidacomadeumaflordecincopétalas.Colocouapartemaisestreitanoouvidoeencostouobocalnaparede.Pareciaestarescutandosealguémestavapassandodooutrolado,parapodersairdoesconderijosemproblemas.

—Aáreaestálimpa—murmurouoanão.Eleempurrouumblocodepedra,liberandoumaportaestreitamaisàdireita,semfazerruído

algum— o que era impressionante para ummecanismo commais demil anos de existência.Harunencolheuabarrigaparaconseguirpassar,eentãoaentradasefechoutãosilenciosamentequantoseabrira,deixandoumalufadadepódançandonoar.

—Bom,nósouvimosoAutoridade—disseAelian,amargo.—Linhaprateada.Vamos?Raazi seguiu em frente, brandindo lança e vela. Aelian seguiu a seu lado enquanto o túnel

permitiu, lente numa das mãos, punhal na outra e uma sensação nas entranhas de que algonaquelestúneisestavamuitoerrado.

15

Emalgumaspartes,otúnelnãoeratãobaixo.AscostasdeRaaziagradeciam,aomesmotempoem que ela pensava que podia ser pior — aqueles caminhos secretos poderiam ter sidoconstruídosporsinfos.RastejardoPalácioatéosCamposExterioresseriabemdesagradáveledoloroso.

TalvezosantepassadosdeHarunplanejassemtrazermáquinaseanimaisdecargaatravésdealguns pontos específicos. Aquela parte do túnel era larga o suficiente para isso. Aeliancaminhava ao lado dela, a cada poucos segundos dando uma espiada na lente queHarun lheentregara.

—Nãoprecisaficarolhandosempre—falouRaazi.—Euconsigoenxergaralinha,lembra?—Aham—respondeuele,desatento,aindacomosolhosvoltadosparacima.—Essasoutras

linhas…paraondeseráqueelaslevam?—OPaláciointeirodeveestarrepletodetúneisepassagenssecretas—sugeriuRaazi.—Seria

ótimodescobrirondeProghondormeepodermatá-loduranteosono.—Vocêachaqueeledorme?—Boapergunta.TalvezmergulhenaMáculaduranteanoite.—Nãoconsigopensarnele fazendonadacomum.Comendo,dormindo, trepando…—disse

Aelian,aomesmotempointrigadocomalgoquea lente lhemostrava.—Essa linhapretaquecomeçouháalgunsmetros…ondeseráqueeladá?

Raaziencarouotetoebalançouacabeça.—Nãoestouvendonenhumalinhapreta.—Aqui,quaseaoladodaprateada.Olhepelalente,essapodeterescapadodasuavisão.Não,

espera…consigoveralinhamesmosemalente.Devesertintacomum.Akaorshficouquaseumminutoemsilêncio,tirandoecolocandoalente,olhandoparaonde

Aelianapontavacomodedo.—Nada.Você…temcertezadequeestáenxergandoalgumacoisa?Mesmosemalente?—Estábrincandocomaminhacara?Juraquenãovê…—Aelian,nãoestoucomamínimavontadedebrincarenãoprecisojurarporumabesteira

dessas,minhapalavraésuficiente:não,eunãoenxergoalinha.—Tábom,tábom.Nãoprecisaficarirritada…Masporqueeuestouvendo?—Nuncaouvifalarnumapigmentaçãoquesóoshumanosenxergam.Elepassouodedopelalinhapreta,olhandoparaRaazi.Akaorshergueuosombros,comalgo

veladonoolhar.Ótimo,pensouAelian.Agoraelavaiacharqueeusoulouco.—Àsvezes,afomenosfazenxergarcoisas—disseele,desconversandoevoltandoacaminhar.

Naquelemomento,seuestômagoroncoualto,dandomaisverossimilhançaàfala.Noentanto,Aelianaindanãoacreditavaqueestavavendomiragensemfunçãodabarrigavazia.Jápassaraporperíodosmaislongossemsealimentar—efazendotrabalhobraçal,aindaporcima!

Porém, o caminho que só ele enxergava continuava lá, lembrando-o de que havia algo deerrado.

RaazisesentiuumtantoculpadaportersidoríspidacomAelian.Elepareciaumbomrapaz—mesmoqueelaprecisasseadmitirparasimesmaqueaindanãooconheciahátemposuficienteparatirarconclusõesprecipitadas.Contudo,apósadiscussãosobrealinhapreta,akaorshnãosaberiadizerseeleestavavendocoisasouseeramosolhosdelaqueestavamfalhando.

Elescontinuaramandandoatésedepararemcomumabifurcação.Umagrandecurvasurgiuàfrente,inclinada,quasemergulhandonochão.Alinhaprateadaiadiretoparaela.

Aelianestacounafrentedabifurcação.—Alinhapretavaipelooutrocaminho—disseele.—Vocêaindanãoconseguevermesmo?—Aindanão—respondeuRaazi,maisumavezpegandoalenteemprestadaetirandoadúvida.Elesuspirou.—Euqueriasaberatéondeelaleva.—Nãoachoquesejaumaboaideia.Harundisse…— Harun já açoitou as minhas costas e vivia buscando motivos para me incriminar —

interpelouAelian.—NãodáparaconfiarnumAutoridade!—MaselenossalvouenosdeuumachancedefugirdoPalácio—disseRaazi,comcalma.Aelianmeneouacabeça,estendendoavelaparaakaorsh.—Voudarumaolhada.Queroentenderporquesóeuenxergoessalinha.Podeir,encontro

vocêdepois.Raazinãoaceitouavela.EncarouAelian,pensativa,medindoopesodaspalavrasqueviriama

seguir.—Euesperoaqui.Porém,seocaminhoparecerlongodemais,volteparaseguirmosemfrente.

Efiquecomavela,enxergobemnoescuro.Aelianpareceu contente como votode confiança, e desapareceuna curvada ramificação.

Raazi,porsuavez,sentounochãogeladocomascostasnumadasparedesea lançaapontadapara a frente. Olhou para o teto, para a linha prateada… Aquela cor lhe lembrou Yanishametalizada,desafiandoaimensaferanaArena.

Sozinha, escutando a cadência de uma goteira em algum lugar próximo, Raazi enfim sepermitiu cair em lágrimas. Aquilo era algo mundano, e ela não achou que viveria temposuficienteparaderramá-lasporsuaamada.

Aelianesperavaqueaquelaespiraldescendenteolevasseparamuitolonge,massesurpreendeuquandoapassagemterminouabruptamentenumaparedelisa,logonaterceiracurva.Olhouparaalinhapretaeviuqueeladesciapelaparede,parandonumpontologoàfrentedeseusolhos.

Ergueuavelaeestendeuosdedospara tocaro fimda linha.Umcomichão fez suascostascoçaremporbaixodapele,umasensaçãoquasecomoademúsculosadormecidos.Recuouporuminstante,sentindoospelosdobraçosearrepiarem.Então,encostouapalmadamãointeiranaqueleponto.

Alinhafoiseestendendopelaparede,formandoumaporta.AscostasdeAeliancomeçaramquaseavibrar,eelepercebeuqueeramascicatrizesmaculadasqueestavamcoçando.SeráqueaquelatintapretatinhaalgumarelaçãocomaMácula?

Comumcliquebaixo,aportasedesenhouinteiraepareceuabrirparaumnovocaminhoalémda parede. Aelian a empurrou, mas a passagem não se moveu. Então, colocou o punhal napequenacanaletaquehaviaserevelado,eelaseabriuparadentro,paraumnovocorredor—dessavezenorme, emqueumhumanoouumkaorshpoderiaandardepernasdepau sema cabeçatocar no teto. O rapaz olhou para ambos os lados e não encontrou nenhuma linha preta.Colocoua lentedeHarunnumdosolhose tambémnãoencontrououtra linha.Dessa forma,resolveuseguiroúnicocaminhodisponível,emfrente,dispensandoumaolhadatemerosaparaaportaentreaberta.Tomaraquenãofeche,pensou,dandoalgunspassosparatrásecalçando-acomopunhal.A curiosidade e as cicatrizesque coçavampareciam impeli-lopelo caminho, comoumanovalinhainvisível,rastreávelapenasporalgumsentidoadormecido.

Seuspassosestalaramnoescuro,eelebaixouavelaumpoucomais,afimdeiluminarseuspés.Umbarulhoaltodemaisescapoudesuabocaaoperceberqueasbotasafundavamemesqueletosderoedoresecriaturasrastejantes.Pensoutervistocrâniosdeserpentesmisturadosàquelaorgiadeossosamareladosetriturados—e,aquieali,umcrâniohumano.

—Muitobem,chegadeexploraçãoporhoje.Virou-se para voltar pelo caminho que fizera, mas a dor em suas costas explodiu. Aelian

gritou, e sua voz foimultiplicada dez, vinte, cinquenta vezes. Ainda ouvindo o próprio eco,arrastou-senadireçãodaportaentreaberta,agoranoescuro,poisavelacaíranomeiodosossoseseapagara.Pareciaquealguémapunhalavasuascostascomlâminascurtas—elesentiaosangueescorrendoparadentrodascalças,ensopandootecidodacamisasobaarmadura.Desorientado,levantou-seecambaleounadireçãocontráriadaporta,maisparaofundodocorredor.

De um segundo para o outro, a dor cessou. Era como se o corpo de Aelian nunca tivesseexplodidoempunhaladasfantasmas,voltandoasentirapenasadormêncianascicatrizes.Aindaconfuso, o rapaz entendeu o recado: fosse lá o que existisse naquele vazio subterrâneo, nãoqueriaqueelefosseembora.

—Oquevocêquer?—disseemvozbaixa,sentindo-seidiotaporperguntaralgoparaonada.Recebeumilvezesamesmaresposta:Oquevocêquer?

Continuouandando,triturandoossossobospésedesejandonuncamaissentiraquelador.

Elaouviupassosseaproximandopelo túnel.Raazienxugouas lágrimasese levantou,a lançapreparada nas mãos. Mesclou-se às sombras, esperando fosse lá quem estivesse vindo pelocorredor.Se fosseum inimigo—ouseHarunseprovasseum—,elaqueria teraomenosumapequenavantagem.

Umaluzforteapareceu,ofuscandoquemseguravaatocha.Algunssegundosdepois,oanãoficouvisível,segurandoumarchotequedeviaterroubadodealgumcorredordoPalácio.

—Vocêestásozinha?—perguntoueleaoseaproximar,mostrandoqueacamuflagemdeRaazifalhara.

Elarespondeuapósumabrevepausa,imaginandoseohomemtinhabonsolhosouseeraelaquemestavamuitorelaxadacomsuashabilidades:

—Aelianfoiinspecionarooutrocaminho.Saiuháalgunsminutos.Harunarregalouosolhoseapontouparaoteto.— O que eu falei sobre seguir a linha prateada? Tenho certeza de que mandei vocês não

desviaremdocaminho!—Elepareciabemobstinado,eeuestavacansada.Nãoenche.—Obstinadocomoquê?—perguntouele,deolhosfechados,massageandoastêmporas.Comopolegar,Raaziindicouocorredorcurvoatrásdesi.—Aeliandissequeviaumalinhapretanoteto.Nãoconseguienxergá-la,mesmocomasua

lente…maseleteimou.Achoqueorapazestávendocoisas.Harunolhouparaoteto,balançandoacabeça.—Bem,minhalenteestácomOruz…maspossogarantirquenãohánenhumalinhapretanos

túneis secretos. Há algumas lendas de anões batizados do passado que misturaram as tintasinvisíveiscomMáculaefizeramalgumasinscriçõeserunasmaléficasportodooPalácio,masAelianprecisariasermaculadoparaenxergaralgodotipo.—Nessemomento,Harunarregalouosolhos.—Anãoserque…Ah.Tripas.

—Oquefoi?—Aelian tem cicatrizesmaculadas— respondeu ele, descendo rápido pelo caminho curvo

enquantoapertavaosolhoscomoindicadoreopolegardamãodireita.—Elepodeestarvendoumadessastintasbatizadas,poistemMáculanocorpo,mesmoqueumaquantidadeínfima.

—Tem?—perguntouRaazi,noencalçodoanão.Foiavezdeelaarregalarosolhos.UmhumanonaMáculadeveriatersidocorroído.—Tem,einfelizmentefuieuquemfezisso.Éumalongahistória.—Vocêoaçoitoucomumaarmabatizada?—Hum.Parecequevocêsconversarambastante.

—Fiqueisabendodarixa.SónãosabiaquevocêotinhaaçoitadocomumchicotecheiodeMácula.Eledeveestarmorrendoaospoucos!

— Existe uma quantidade segura, que só afeta a parte mais superficial da pele. Estudos daCentípede—disseHarun,fazendoumapausaeumacareta.—Eledevemeodiar,ecomrazão.Maseuestavaapenasseguindoordens.SequisesseacessoapartesdoMioloembuscadesinaisdosmeusantepassadosepassagenssecretas,eramelhorfazerissocomoAutoridadequecomoumservoqueficaamaiorpartedotemponumacela.

—Ah, então é por isso que você está aqui?Antepassados, encontrar passagens secretas…ÉalgumtipodeDívidaFamiliar?

—Sim—suspirouele,cansadoeirritado.—Nãoqueeudevaalgumaexplicaçãoavocê,kaorsh.—Nãoestoubrigando,anão—retrucouRaazi,acentuandoaraçadooutronamesmamedida.

— Só acho curioso que tantas verdades tenham sido reveladas durante uma caminhada noescuro.

—CuriosoéalguémteroassassinatodeUnacomopropósito.Quetipodecarvãovocêfuma?—Como falei,nãoestoubrigando.Noentanto,você se espantaria comquão rápidoposso

mudardeideia.—Tudobem.Vocêtocounaminhaferida,eutoqueinasua.Trégua?—Trégua—concordouela,apósumsegundodehesitação.—Quebom.Enfim,eucontariaavocêtodaapartecríveldaminhahistórianumamesade

tavernaacompanhadodedoiscanecosdecerveja—disseHarun, semolharparaRaazi.—Mastenhoa impressãodequevocênãoteriatemponemparapuxarobancoesesentarantesquetodososÚnicosdeUntherakcaíssememcimadevocê.

Os dois chegaram na passagem entreaberta que aparecia de repente na terceira curva docaminho.RaaziapontouparaopunhalkaorshdeAeliancalçandoaportasecreta.

— Esperto da parte dele. Deixe aí até voltarmos — disse Harun, balançando a cabeça compessimismoeparandonolimiardapassagem,iluminandoocorredordooutrolado.—Oquemepreocupaéqueeleentroudesarmado.

—Oquepodeteraídentrodetãoperigoso?O anão a trouxe para seu lado, em silêncio. Raazi vislumbrou a câmara alta e sinistra, tão

diferente das passagens secretas construídas pelos antepassados de Harun. Então, o homemabaixouoarchoteparaqueelapudesseveropiso,cobertoporcamadasecamadasdeesqueletosvariados.

—Sealgummaculadoconstruiuesse lugaremalgummomentodetodosessesséculos,nãopodesercoisaboa.

A fala modorrenta de Harun ecoou, como se os fantasmas de mil de seus antepassadosestivessemassombrandoaquelacâmara.Raazipisounosossos,eoanãofoiatrásdela,segurandoomartelocomogarantia.Assim,ambosseguirampelocaminhoquebradiço.

Aelianquaseescorregouaochegarnumpontoinundadodocorredor.Comtodaaquelacamadadeossosflutuandoeagorasemaluzdavela,nãonotouaáguaenchendoaquelapartemaisbaixadopiso. Seusolhoshaviamse acostumadocoma escuridão, epareciamdivisarumpoucooscontornosdasparedeseescadas.

Masissonãodeveriaacontecer,certo?AlgoestavadeixandoAelianinquieto.Nãohánenhumaluz aqui. Eunão deveria conseguir enxergar nada. Era comoseamesma forçaqueo impelia aseguiremfrentetambémoajudasseaenxergarnonegrumecompleto.

Porfim,sentiuopisoseinclinardeleveedeixouaparteinundadaparatrás,ouvindoasbotaschafurdando.Uma correntede ar assoviava contra seu rosto. Ele ia ao encontroda fontedovento,aindaquenãosoubessequantosmetrosfaltavam.Dez?Cinquenta?Suanoçãodeespaçoera horrível naquele lugar. Porém, conseguia ver um leve brilho por uma estreita fendahorizontal,comoumcortenumaparededistante.

Nocaminho,ouviualgo sedebatendonaáguaeolhoupara trás, assustado.Suas cicatrizesarderamcomoumalertaparaqueprestasseatençãoaoqueestavaàfrente.

Chegando à fenda, sentiu no rosto uma corrente de vento com cheiro acre. De início, osolhosdeAelianarderam,mesmocomaluzescassaquevinhaládedentro.Elepiscoualgumasvezes,lacrimejoueentãoconseguiuenxergaroqueacontecianagrandecâmaravizinha.

Noentanto,nemdelongeconseguiuentender.Eraumacâmaraamplaedepé-direitoalto,iluminadaportochasazuladasefantasmagóricas.

O primeiro susto de Aelian foi a presença da Centípede. Os mesmos mantos e capuzes,arrastandoascapascinzentasnomeiodeengrenagensenormes,comoosmecanismosdosanõessóquedez,vintevezesmaiores.Eraestranho,pois,pelaprimeiravez,Aeliannãoosviaemfila,masandandoseparados,cadaumcomumafunçãodiferente,ounomáximoconversandoemduplas,ascabeçaspróximas,sussurrando,comodecostume.NãoconseguiuencontraroCabeçadaCentípedealientreostanquesdelíquidopretoeborbulhanteespalhadosportodaparte.

Mácula.Aeliansabia,suascicatrizesreconheciamasubstânciaeoformigaremseucorpoconfirmava

aquilo. Como todomundo emUntherak, ele acreditava que os únicos lugares na cidade quearmazenavamopichemalditoeramoPoçodeMácula,nosaposentosdeUna,eoFosso,redutodoGeneralProghon.Estavacompletamenteenganadoenãotinhaamenorideiadafinalidadedaquelelugar.

Roldanas e ventoinhas giravam e um sem-fim de traquitanas ligadas por tubos semovimentavaentreostanques,comosetransportassemaMáculadeumlugaraoutro.

Paraquê?,pensouAelian,muitomaisdoqueapenasincomodado.Umgemidofezaatençãodo humano ir além do maquinário e de toda a tecnologia que ele não conhecia. Havia umdesnívelnomeiodacâmara,umburaco,quesóagorachamavaasuaatenção.Ouviumaisumgemido, como se fosse em resposta ao outro. Então, uma sinfonia de lamúrias foi iniciada, e

antesquedesistissedeentender,eleviu.—PelaFúria…No centro da câmara, haviamulheres kaorshs amarradas, nuas e de braços abertos. Havia

tubosligadosàscostelasvisíveissobapele,aospescoçoseaosventresprotuberantes,poistodasestavam grávidas. Algumas em estágio mais avançado, outras nos primeiros meses, ao queparecia.

Aeliannuncasentiratantarepulsa.Tinhavontadedeabriraquelabrechacomasmãoseentrarláparalibertaraskaorshs.Quetipodevilaniaeraaquela?PorqueUnaprecisariasubmetergenteàquilo?

Ascicatrizesnascostasdelepulsavam,mornas;queriamqueeletestemunhasseacena.Aeliansentiuvontadedegritar,interromperacomunhãodedorcomaskaorshspresas,masseconteve,tapando a boca com amão. Imaginou que aMácula estivesse sendo injetada para dentro dabarrigadasgrávidas,eseguiuostuboscomosolhos.Apósmuitasvoltas,oscanosqueestavamconectadosàsbarrigasdesembocavamnostanquesdasubstância,masosqueseencontravaminjetadosnascostelasenospescoçosiammaisparacima.

Num patamar superior daquela câmara escura, havia sinfos, também amarrados —inconscientes,esqueléticoseazuladosàluzpálidadofogo.Nucas,pescoçoseventresestavamconectadosàskaorshsabaixo,comoseelesfossemsacosdesangue,quelogosecariameseriamtrocadosporoutros,aindarepletosdeforçavital.

Aeliansentiuasentranhasserevirandoemaltevetempodetiraramãodaboca.Vomitounochãoenasbotasopoucoquetinhanoestômago.Caiudejoelhos,perdendoasforçasporummomento.Mesmosemolhar,continuavavendoacenamacabra,etinhaaimpressãodequeelaficariagravadaemseucérebroparasempre.

Enquanto recuperava as forças, não reparou nas dezenas de olhos fosforescentes que oespreitavamacima,aproximando-semaisemaisacadasegundo.

Raaziviuascriaturasquedesciampelasparedes,prontasparadaroboteemAelian,quesequerasnotara.Osmuitosolhospareceramsearregalar,alertas,esubiramalgunsmetrosquandoRaazieHarunchegarammaisperto.Osbichosseassustaramcomaluzdoarchote,masissonãodurariamuito.

— Aelian! — chamou ela, pé ante pé, sem tirar a atenção das coisas que os espreitavam. —Levante-se,temosqueir!

—E-eu…Temumacoisaaliatrás…—balbuciouele,apontandoparaaparede…—Temumascoisasaquitambém!—gritouHarun,nervoso,erguendooarchoteparaqueos

escaladoresdeparedesseassustassemcomofogo.—Eelasvãoatacarassimqueperceberemqueestamosemmenornúmero.

RaazipassouumdosbraçosdeAelianporcimadeseusombrosecomeçouarecuar,comalançaemriste.

—E-estoubem—disseele,parecendoabaladoeconfuso,massedesvencilhandodoapoiodakaorsh.—Quemvaiatacar?

Amulher fezummovimentocomacabeça, apontandoparaoalto.Aelianacompanhouoolhardelaefezumacaretaaoverospontosverdesluminososnaescuridão.

—Oquesãoessascoisas?— Não sei, mas estão descendo! — falou o anão, movimentando o archote para tentar

afugentar o que os espreitava. — Fiquem atrás de mim! Vamos tentar voltar pelo mesmocaminho!

RaazieAeliandispararampelotúnel,esmigalhandoossos,enquantoHarunrecuava,semdarascostasparaascriaturascomosolhosquecintilavamnoescuro.

—Oquesãoessascoisas?—repetiuAelian.—Perguntedepois!—respondeuRaazi.—Agora,corra!Umruídoquepareciasercaptadonumafrequênciadiferentefezosouvidosdotrioestalarem

comoseestivessementupidoscomumamudançadepressão.Raazipensouqueaquilosópodiaseraformadecomunicaçãodascriaturas.Harundeuumgritoquesobressaltouakaorsh,queaprincípio pensou que o anão havia sido ferido.No entanto, ela logo percebeu que ele estavaamaldiçoandoosoponentesacadagolpedemartelo.

Mesmo refazendo um caminho percorrido havia pouco, parecia que o corredor tinhadobradodetamanhoagoraqueelesfugiamdeumperigomortal.Porém,RaazisentiualívioaoveraportacalçadapelopunhaldeAelianaindaentreaberta,eoempurrouparaafrente.

—Vai,sai!—gritou,parandosobobatenteesevirandonamesmahoraparaajudarHarun.Largando o archote sobre umapilha de ossos e sacandoummachadodo cinto, o anão se

tornouumamáquinadecontusãoemutilação.Coma luzdofogo iluminandoascriaturasdebaixoparacimaelançandosombrasimensasnasparedes,Raaziviucoisasquesepareciamcomgafanhotosdotamanhodecãesdegrandeportesaltandoaoredordele,apenasparamorrerempelalâminadomachadoouporgolpesdomartelo.Nãotevetempodecontarquantoseram,massupôsquefossemmaisdequinze,issosemfalardoscincoderrotadosaoredordoanão.

—Venha,volte!—gritouela,trespassandoumdosinsetoscomalançanumboterápido.Elespareceramclicarcomaspresas, comunicando-secomo restantedogrupoatravésdas

antenas;aqueleeraoruídoqueinibiaosouvidosdeRaazi.ElaarrancoualançadacascaduradobichoenquantoHaruntomavalugaraoseulado.

—EssasporcariassãocoisadosGrandesPântanos,sópodeser!Eestãosereproduzindoaquinaescuridão!

—Recue,Harun!—insistiuela.—Nãodáparaderrotarmostantos!Embora parecesse relutante em abandonar até mesmo uma briga em que estava em clara

desvantagem numérica, o anão obedeceu. Raazi golpeou outro inseto, chutou o punhal que

calçavaaportadepedraparapertodeAelian,etevetempodeverorapazfechandoapassagembemnomomentoemqueumgafanhotosepreparavaparasaltarnocorredor.

Aportavedava completamenteo somquevinhadapassagemsecreta. Semo archoteparailuminarolugar,ostrêsdesabaramnochãoeláficaramarfandoporquasecincominutos,atéHarunquebrarosilêncio:

—Eufaleiparanãosairdocaminhodalinhaprateada,seutripamole!

16

AscostasdeAelianhaviamparadodeformigar,masoincômodopersistia.Talvezcontinuasseali,àespreitaemsuamente,pelorestantedavida.Comcerteza,nãoconseguiriamaisverumagrávidasemselembrardoshorrorescometidosnosubsolodoPalácio.

— O que era aquilo? — perguntou o rapaz, ainda arfando, pressionando um ponto poucoabaixodotórax.Seucorpodoíaempontadas,depoisdetercorridotanto.

Harun,aindadecostasnochão,respondeu,semdeixardeencararoteto:— Como eu disse, acho que são pragas dos Grandes Pântanos que de alguma forma

infestaram…—Nãoestoufalandodosgafanhotos—interrompeuAelian,meneandoacabeçaepassandoos

dedosnocabelo.—Euviumacoisa…horrível.Láatrás,antesdevocêsaparecerem.Raaziselevantousemfazerbarulho.TocouoombrodeAelian,sentando-seaoladodele.Seu

toquefezohumanosesobressaltar.—Doquevocêestáfalando?AsmãosdeAeliandançaramumpouconoarantesqueeleconseguisseacharaspalavras.—Tinhaumasala imensacom…kaorshs.Kaorshsgrávidas, comtubosnabarriga. Inferno!

EstavamcolocandoMáculadentrodelas,esanguedesinfos!Foiacoisamaishorrendaquejávi…—Aelian!—disseRaazi, firme.Eletremiaepareciaestartendoalucinações.—Vocêestáem

pânico.Respirefundo.—KaorshsgrávidascomtubosdeMácula?—falouHarun,comosetestasseaquelaspalavras

semsentidonapróprialíngua.—Fumoucarvão,Oruz?Raazisevirouparaoanão,furiosa.—Agoranão,Harun.—Olha,ogarotoestátendoumdiadifícil,mas,paraserhonesto,todosnósestamos.—Elese

levantou, ainda com uma ponta de condescendência. — Deve estar em choque por ter vistoaquelasmonstruosidades,nãoestáacostumado…

Aelianse levantoutãorápidoquenemRaazi foicapazdecontê-lo.FoidiretoparacimadeHarun,osolhosarregalados.

—VocêachaqueascelasdoPoleirosãoumaespéciederedomaquemeprotegedarealidade,anão?

—Paratrás,Oruz…!—Achaquenãovejotudodepodrequeacontecenestelugar, inclusiveamigosmeussendo

mortos? Eu não tenho direito a uma casa na Vila A parame isolar dessas coisas de vez emquando,Autoridade.Ah,masbemquegostaria!

ElenãohaviatocadoumdedosequeremHarun,masRaazitratoudesemeterentreosdoisaonotarqueambosestavammuitodispostosaresolveranosdediferençasnumacertodecontasrápido.

—Todosnósvimos,fizemosesofremoscoisashorríveisemalgummomento,entãoparemcomisso—disseela,empurrandocadahomemparaumladosemmedirforças.—Atésairmosdaqui, estamos juntos. Se outra coisa nos atacar, vamos precisar agir em conjunto de novo.Então,controlem-se!

Harunvoltouasesentar,massemtirarosolhosdeAelian,queficouencarandoapassagemsecretalacradaatrásdesi,asmãosnacintura.

—Eusóqueriaentenderoqueeraaquilo.— Certo. Você disse que eram… kaorshs grávidas sendo torturadas, não foi? — perguntou

Raazi,tentandoentenderoraciocíniodooutro.—Temcertezadoqueviu,Aelian?—Sim.Haviaumafendanaparede.ACentípedeestavalá.—Se isso fosseverdade…— falouHarun,mas logo se interrompeuao receberoolharmais

durodesuavidavindodeRaazi.—Certo.Nessecaso,essasaladetorturaseriadeconhecimentodeUna.ACentípedecompartilhacomasoberanatudoquedescobre.

—Eissomefazpensarquetipodedeusapermitiriaalgoassim—comentouAelian.Harundeudeombros.—Pareceruim,masoprocessodebatismonaMáculatambémnãoé?— Issonãodevese tratarapenasdepuniçãooudeumamedidaparaaumentaras fileirasde

Una, Harun — observou Raazi. Ela estava muito curiosa com a possibilidade de outrascompanheiras de sua raça estarem sendo usadas como cobaias em algum teste hediondo. —Pareceumexperimento.TodossabemqueaCentípedefazcoisascomodissecarprisioneiroseenfermosparaestudaraestruturadoscorposdoshabitantesdeUntherak.OqueAelianviudeveseralgoaindaalém.

Harunsecalou.Algoaliohaviaatingido,enfim.FoiAelianquemquebrouosilênciodessavez.

—Euvi vocêsderrubaremUna. Ela sangrou, o que foi inesperado.Mas,minutosdepois, láestavaela,depé— falouo rapaz, gesticulando,apontandoparabaixocomoseaindaestivesseencarapitadoemseuesconderijoduranteapremiaçãonaTribuna.Então,osombrosdelecaíramesuasmãospenderamaoladodocorpo,desanimadas.—Sómeperguntoporquealguémcapazdeevitaramortenãofariaamesmacoisaporquemaidolatra.

HarunencaravaochãoepareciaestarnomesmolabirintomentaldeAelian.Raazitambémestavapensativa,maspareciaestarcomacabeçaemoutrolugar.Ummaisdistante.

—Yanishateriaumarespostaparaessapergunta—disseela,batendonosombrosdeambosetomando adianteira.—Ela…descobriu uma coisa. Semquerer, assim comoAelian acaboudefazer…Eéporissoqueacreditonele.

—Oquê?Oqueelaviu?—perguntouHarun,selevantando.Aeliantambémficoumaisalerta.

Raaziesfregouosbraços.Pareciadesconfortável.—Vamossairdaquiprimeiro.Nãogostodesselugar.—Faledeumavez!—bradouHarun,impaciente.Raaziperdeutodaararafragilidadequehaviaacabadodedemonstrareencarouoanãocom

raiva.Seurostoficoumaisduroqueasparedesdaquelestúneis.—Nãoéotipodeverdadeparaserreveladaduranteumacaminhadanoescuro.Akaorshtomouadianteira.NotandoqueAeliannãoentendeuoqueRaaziquisdizernaquele

embateparticular,Harunarrumouocintoedirigiuapalavraaeleantesdesegui-la:—Jápasseiporissomaiscedo.

Caminharamemsilêncio,orientadosporRaaziesuavisãokaorsh, jáquea fontede luztinhasidoabandonadanocorredordosinsetos.Permaneceramassimatéalcançaremumareta—oquesignificavaqueenfimhaviamdeixadoossubterrâneosdoPalácio.Eraumcorredormaisamplo,úmido e um bocadomais fresco. Aelian pensou que pequenas tropas poderiammarchar poraquelapassagemeinvadiroPalácio,seumataquefossebemorquestrado.

—Vamospararumpoucoparadescansar, ainda temosumbompedaçopela frente— falouHarun, tirando o cinto com os acessórios, colocando-o no chão com um ruído pesado erecuandoumpoucopelocaminho.—Precisomijar.

Aelianouviuoanãoseafastando,masnãoconseguiaenxergá-lomuitobem,suavisãojánãotão boa quanto nomomento em que suas cicatrizes estavam formigando. Enquanto fugiamdaquele lugar, oAutoridadedisseque semprepensouque aquele corredor fosseumbeco semsaída. Aelian pensou sobre isso e também considerou o fato de Raazi não ter conseguidoenxergar a linha negra que o levou até lá. Era como se as pessoas aprisionadas na câmaraestivessempedindosocorro,masapenasAelianpudesseescutá-las.

—Ei—disseRaaziaoladodele,assustandoorapaz.—Calma,estátudobem.—Desculpa,aindaestoumeio…vocêsabe.—Écompreensível.Aelianassentiu,esquecendoqueestavanoescuro.Raazioenxergavamesmoassim.—SobreYanisha,agorahápouco—falouele,hesitante,olhandonadireçãoemqueosruídos

indicavamqueHarunesvaziavaabexiga.Oanãonãoestavalonge.—Oquevocêquisdizer?— Ela serviu como aia, no Palácio. Pormuito tempo— explicou Raazi, desconfortável. —

ConheceuUnadeperto,maisqueamaioriadaspessoasquesedizeminfluentesemUntherak.Enadaétãobonitodeperto.

Ohumanopareceupensativo.Yanishae ela tinhamchegadobempertodadeusaduranteacerimônia.

—Unanãoreconheceuaantigaaia?Comtodoorespeito,Yanishanãoeradotipofácildese

esquecer.Raazi o encarou, com a boca entreaberta. Aelian percebeu tarde demais que talvez tivesse

tocadonumaferidarecente,ecomeçouaensaiarumpedidodedesculpasqueacabounãovindo.—Não,nãoeramesmo—disseakaorshporfim,comavozgrave.Harun, alheio ao pequeno diálogo que tinha se passado ali, se aproximou para pegar suas

coisas.—Muitobem,melhorseguirmosemfrente.Temospelomenosmaisumahoradecaminhada

atéofimdalinha.Raazi se levantousempestanejar.Aelian, sentindo-secompletamentesemgraça,nãohavia

sequercomeçadoadescansar,masnãoqueriadiscutir.Estavaexaurido,enãotinhaaresistêncianatural dos anões ou o ímpeto de guerreira de Raazi. Apesar de ser um sujeito ágil e quesobrevivera a provações que poucos teriam aguentado, precisava admitir que estava maiscansadoquenavezemqueprecisou trabalharnovesemanasseguidassemLouvor,quandoseendividounumamesadeapostas.

Elesandarampormuitomaisdeumahorae,numcertomomento,desceramváriosmetrosparadepoissubiremdenovo.Aquilo,segundoHarun,significavaquehaviampassadoporbaixodomurodoMiolo.Naparte final da linhaprateada, o caminho se transformounuma rampaíngreme,atéqueogruposedeparoucomumaescadadecordaeumalçapãodemadeirasimplesdemaisparaserumapassagemsecreta.

—Chegamos—disseHarun,tomandoafrenteesubindosemcerimônia.Eleempurrouaportadoalçapãoealuzinvadiuaescuridão.Mesmofraca,foiosuficientepara

fazerAelianpiscarváriasvezes.Elesesentiuummorcegosobosoldemeio-dia.OalçapãoficavadentrodeumasalacheiadevelasparecidascomaqueHaruntinhacarregado

notúnel,quandorevelouestardoladodeAelianeRaazi.Aquelasvelasduravamdias,feitascomceradeabelhaelascasdosminériosquealteravamacordofogo,muitocomunsentreosanões.Haruntirouumadasvelasdo lugareentãoaparedesereveloucomummecanismosecretoeumaportaquaseinvisívelcamufladanapedra.

Depararam-se com o que parecia uma cozinha improvisada num pequeno cômodo comapenasumajanela.Jáeranoiteláfora,eAelianpodiaverapenasumpoucodascasasamontoadasnaruaestreita,masosuficienteparasaberondeestava:nosAssentamentos.

TodasascasasdosAssentamentoserampobresecheiasderemendos.Aelianestavaacostumadocomaquilo.Ali,poucasconstruçõeseramfortesosuficienteparasemanterpordécadas,sendocomumosbarracosseremdestruídosportempestadesouincêndiosdeorigemduvidosa.Porém,estavamnumlugarquetinhaparedesdepedraeumapassagemocultaparaoscaminhossecretosdosanõesdemilanosatrás…AquelacomcertezaeraumadasprimeirasconstruçõesdosCampos

ExterioresdeUntherak,oquesignificavaque,nopassado,oterrenocomeçaraaserinvadidoehabitadoaoredordaqueleponto.

Haviaumaescadademadeiraparaosegundoandarealgumasalmofadasnochãoaoredordeumamesabaixa.Algunshumanosdeolhosamendoadosepuxadosmantinhamaquelecostume,quepelojeitohaviasobrevividoàhigienizaçãoculturaldeUna.OambientenãochegavaateroluxodeumamoradianaVilaA,emesmoassimcontrastavacomamisériadorestantedomorroapenasporestararrumado.Simples,masorganizado.

Umasenhoracorcunda,usandoumlençoaoredordacabeça,encontrava-senacozinha,decostasparaosrecém-chegados.Elaacenoucomimpaciênciasemsevirarcompletamente,comose já os conhecesse e estivesse ocupada demais com seus afazeres. Aelian ficou um tempoencarandoa corcundadavelha, reparandoqueelaparecia estar fazendochácomumagrandevariedade de folhas e flores diferentes. Até que Harun o cutucou no ombro, sem nenhumadelicadeza.

— Coma alguma coisa — disse, indicando amesa baixa com ummovimento de cabeça. —Senãoelasóvaideixarmigalhas.

Raaziabriuumpãoenorme,ajoelhadadefrenteparaamesinha,eAelianficouperplexocomaformacomoelatinhaseesgueiradoatélásemfazerbarulhonenhum.Amulhercomiacomosenãohouvesseamanhã—etalvezpensassequeparaelanãohaveriamesmo,jáquetodaUntherakaprocurava.

—Sepreferirselavarprimeiro,temumatinadeáguaquenteláemcima.Deixeitoalhaslimpasparavocês—falouasenhorinha,defrenteparaumabaciacheiad’água,aindasemsevirar.Suavozerafirmedemaisparaaposturafragilizada.

Aelianachavaquenuncaseenxugaracomumatoalhanavida,enãoesperavaqueaquilofosseacontecernumbarracoassobradadonosAssentamentos.

Nãosabiaquantotempoficounomeiodovapor.OlugarerabemmaisapertadoqueasalaondeconseguirasuaarmaduradeÚnico,maspelomenosagoranãoprecisavaseapressar.Aáguaestavaescaldante,mas issoerabom.Eracomoseprecisasseseresterilizadodetudoquehaviavistoepassado.Águasalobraescorriadocorpoedocabelo,alémdeumtantodesanguedosferimentosreabertos,quepareceramvencerasuturanaturaldaMácula.Encontrouumpoucodesangue seco em alguns pontos do corpo. Parou por um instante para observar o vermelho-escurosedesfazendonaáguaempoçada.Àquelaaltura,Aelianjátinhavistotantosanguequeotemor criado pelo costume de Untherak já não o afetavamais. Aquela era uma cor normal,comotodasasoutras.

Sentiu cada fibra da toalha na pele, e parecia que nuncamais na vida conseguiria relaxar.Queriaficaraliatétodoocalordoquartosairpelajanelaminúscula,aproveitarobanhoàluzdevelaseimaginarcomoseriamashoraslivresdeumDiadeLouvornovilarejodosAutoridades.Enquantodeixavaoolharperdidona chamadasvelas refletidanaarmaduraamontoadanumcanto, ouviu o ranger da escada de madeira e se apressou para colocar as roupas limpas e

dobradasqueestavamsobreumbancodemadeira.Porincrívelqueparecesse,eramdotamanhodele,semsobraroufaltar.

Raaziiatomarbanhologodepois,entãoasenhoraqueosrecebeunacasaentrouparatrocaraágua da tina.O rapaz aproveitou para descer, sentar-se nas almofadas e comer pão com chá.Harunestavaà janela, fumandoseucachimbo.Quandovoltou, a senhora seacomodounumacadeiradebalançodejunco,mobíliatipicamenteencontradanasbarracasdesinfosnoMercadoAbertoetomouseuchá,orostocompenetradonasuperfíciedolíquido.Apósumtempo,Raazivoltou para a cozinha e os encontrou assim, dispersos e concentrados em suas atividadessilenciosas.

Aeliannotouqueapeledakaorsheramuitoclara,agoraqueelaestavalivredetodaasujeira,equeoolhoesquerdotinhaumamanchaazul.De início,pensouque fosseumhematoma,masferimentosnãotinhamaqueleaspectoaquarelado.

— Você tomou banho rápido — observou ele, tentando puxar assunto. Estava um tantodeslocadocomosilênciodasenhoraedeHarun.Raazinãorespondeu,apenasoencarouporuminstante e passou a desembaraçar o cabelo acobreado, que ficava bem mais escuro quandomolhado.

—Elevaidemorarmuito?—perguntouHarunparaasenhora,sempaciência.—Quem?—questionouAelian,seintrometendo.—OAparição?—Eledissequenosencontrariaaqui—falouoanão,falhandomiseravelmentenatentativade

sopraranéisdefumaça.— Ainda falta gente — respondeu a senhora, com leveza, segurando o chá perto do rosto

encoberto.—Maselesjádevemestarchegando.Aelianjamaissesentiratãoperdidoquantonaquelemomento.Paraqueestavamali,senão

parafugirdeAutoridadeseoutrosinteressadosemlhesdarumbanhodeMácula,afinal?—Quemmaisprecisavir?Asenhoracolocouochánamesinhaaoladodacadeira,emsilêncio,evirou-separaaporta.—Ah,bemnahora.AelianolhouparaRaazi.—Eunãoouvina…Aportaseabriucomumrangido.Umajovembaixaentroucommovimentosrápidos,seus

olhosoblíquoseatentos.Vestiaroupasescuras,sapatilhasdepano,umcintocomumafivelaemVeluvasqueiamatéoscotovelos.Commovimentosladinos,tirouumcapuzdepontacurvaeodeixoucaídoàscostas.Aelianreparounãosóemseurostomiúdoeemseus lábiosfinos,mastambémnapeledamoça,de tomdeoliva comoa sua.Ocabelonegroe liso estavaatrásdasorelhas.

ElaencarouAelianporuminstante,percebendoaatençãoqueelelhededicava,eentãolargouumfardopesadoaoladodaporta.Peloformatodoembrulhoepelopoucoqueerapossívelverpelosburacosdalonavelha,pareciaumaaljavarepletadesetas.

—Hã…poracasojánosconhecemos?—perguntouele.Amoçalheerafamiliar.TalvezbebessenoPâncreasdevezemquando.

Elaestreitouosolhosefranziuassobrancelhas.—Não.—Ah.Certo.—Aelianseretraiu,acuado,masmudoudeideianumsegundo.—Penseiquevocê

frequentasseoPâncreasouquetalvezjogasse…—Poispensouerrado—dissearecém-chegada,passandoaoladodasenhoraepegandoobule

dechá.—Estáquente?Hum,chádelança-verde…Aidosaconfirmoudacadeiradebalanço,eaoutraseserviuumaxícaradechá,afastadado

grupoparaevitarmaisconversas.Aeliandesistiudepuxarassuntoeresolveuficarcomadúvidaplantadanacabeça,semnemsequerperguntaronomedamulher.Talvez sejaa filhaouanetadessasenhora,pensou.

Harunsevoltouparaaporta,mordendoocachimbo.—Temmaisalguémaífora.Amoçadeudeombros.—Faleiparaobaixinhoqueobichodelenãoiapassarpelaporta,maseleinsistiu…—Eu…urgh…consigo!—disseumavozaguda,eaportaseabriuumpoucoconformealguéma

empurravacomascostas,comoseestivessepuxandoumburroempacadonaentradadecasa.Noentanto,Aelianreparou,surpreso,que,emvezdeumburro,eraumbetouroempacado.E

quemopuxavaeraZiggy,osinfoqueeleconheceranumdiaqueagorapareciamuitodistante.EBicofinoestavanoombrodosinfo,comportadocomonunca.—AelianOruz!—disseZiggy, feliz, acenandoparao falcoeiro antesde falar comqualquer

outrapessoa.TinhadesistidodepuxarThrulparadentrodacasa,eobetouroseacomodounafrentedaporta,comoumcachorrogigantesco.—Estoucomoseuamigopenado!Olha!

OpequenoapontouparaBicofinonopróprioombro.Aelian estavadequeixo caído eumpoucoindignado.

—Como…vocêsseencontraram?—Ah,fazunsdoisdias.AchoquevocêaindaestavaescondidonoPalácio,entãoeleveioaté

mim—explicouZiggy,fazendocarinhonobicodofalcão.Pelovisto,estavaatualizadosobreoque havia acontecido com Aelian. — Ele é muito esperto, me encontrou lá nos campos decolheitasozinho.Ei!VaifalarcomotioAelian!

Bicofino pareceu se lembrar da etiqueta e voou até seu dono, bicando-o de leve atrás daorelha.Aelianoencaroucomoseavaliasseseaquelenãoeraoutrofalcão.

—Agoraeusouseutioevocêresolveuserdócil?— Espere — disseHarun, limpando o fornilho do cachimbo e apontando para Ziggy. —O

miúdotambémestánajogada?Osinfosorriuparaoanãoeestendeuamão.—ZiggyMuzak,muitoprazer!VocêdeveseroAutoridadetraidor!

Aeliandeixouescaparumarisada.Harunpareceubemirritado,masosinfonãodemonstrouterpercebidoapéssimaescolhadepalavras.

Haruncumprimentouacriaturaaindamaisbaixaqueele,bufandoacontragosto.—Umcasorarodeumsinfocomabocamaiorqueacabeça.—Bom—falouamoçaladina,dandoumbocejoruidoso.Elapegouosacodesetasaoladoda

porta.—Agoraqueestãotodosaqui,vouassumirmeupostoevigiarosarredores.Esperonãoterquematarmaisninguémestanoite.

Elacorreuosolhosportodos,comoseoquetivesseacabadodedizertambémseaplicasseaeles,esaiudacasa,espremendo-secomdificuldadeentreThruleobatentedaporta.Ziggyestavaconcentradoemsuasmãos,tentandomediraprópriacabeçaeabocaempalmos.Raazidesabounasalmofadas.AelianpousouBicofinonumdosdegrausdaescadademadeira,eHarunabriuosbraçosnadireçãodasenhoraanfitriã,queseviravaparafazermaischá.

—Queméagarota?Suafilha?—Algoassim.—Elaentra,vêagente,desovaumsinfoaquievaiembora…Eseelacontarparaalguém?—Elanuncacontarianadaparaninguém,Harun.—Eunãoconheçoagarota, comoposso tercerteza?Aliás,nemseiporqueestou fazendo

maisperguntassenemcomeceiaterarespostadasprimeiras.Vocêdissequeaindafaltavagente.Quem?

—Vocêestámuitonervoso.Tomeumpoucodechá…—Eunãogostodechá!—Tudobem,nãovouservirmaisparavocê—disseasenhora.—Agorapergunteoquetem

queperguntar,mas…comcalma.Harunrespiroufundo,deolhosfechados.Aqueleeraomaiortestedepaciênciadavidadele.

Abriuosolhoseperguntou,numavozcontroladaeartificial:—OndeestáoAparição?Elefalouquenosencontrariaaqui.Devagar, a senhora foiatéamesae serviuochá.Ziggycomeçouabebernamesmahorae

queimoualíngua.Raaziagradeceucomumgestodecabeçaevoltouadirigirsuaatençãoparaaschamasdecornaturaldavelamaispróxima, tentandoreproduzirobrilhonascostasdamãodireita.

—Bem, essa éuma festa silenciosa.Vou tomarumar— resmungouHarun, gingandoaté aportaesedeparandocomobetouroobstruindoasaída.—Comotiroessacoisadaqui,sinfo?

—Ih,eledeveestardormindo—respondeuZiggy,comabocamole.—Vaiserdifícil.—Tirelogooseubichodaqui!—Elenãoéomeubicho.Aelian sabiaqueZiggynãoestava fazendoaquilopormal.Naverdade,o sinfo só falavaas

coisassempensar.Harunestavairritado,abocatãocrispadaquesumianomeiodabarba.Nessemomento,asenhoraparounomeiodorecinto.Todomundosecalouparaobservá-la,

pois a mulher parecia ter crescido cerca de dois palmos de um segundo para o outro — acorcundanãoexistiamaiseaposturaeraaltiva.Elalevouasmãosaolenço,eAelianpercebeuqueapenasseusdedosficavamàvista,poisasmãoseosbraçosestavamenfaixados.

O pano caiu. O cabelo era curto, rebelde e grisalho. Prateados, na verdade, pensou ele,percebendoquerefletiamaluzdasvelas.

Contudo, foi o rosto dela que fezHarun sacar omartelo eAelian levar amão ao cabodopunhal,mesmoantesdeentenderemporqueestavamfazendoaquilo.

Elatinhatatuagens,masnadacomoa linhadeservidãodeAelian.Erampadrõesdiferentes,comcores…

Eelasorria.Tinhaumapequenacicatriznaboca,enviesada,quaseumaponteesbranquiçadaentreosepto

eolábiosuperior.ComoerararoveralguémsorrirsemmotivoemUntherak.Porém,tudoissoseriaapenassingelose,portrásdocabeloprateado,dosorrisoedastatuagens,nãofosseporumdetalhe…

—Olá.EusouaAparição—disseela.Aquelaerauma facemarcadapelas linhasqueo tempo tatuavaemquem lutavacontraele,

mas,indiscutivelmente,eraorostodeUna.

17

–Podembaixarasarmas.Decertaforma,jánosconhecemos,enãohámotivoparaataques.Raaziestavaboquiaberta,comotodosali.OrostodeUnasempreestiverapresentenocentro

deUntherak,esculpidoemescalacolossal,multiplicadoporseis—amenosquesefossecego,eraimpossível não reconhecê-la. Crianças se esqueciam dos rostos de seus pais, mas jamais seesqueceriamdaquelaface,graçasaoimensolembreteempretoedouradonomeiodoUnificado.Porém,apesardetudoisso,ninguémjamaissequerhaviaimaginadoUnaenvelhecida.

Raazifoiaospoucosligandoospontosechegandoaconclusões,lembrando-sedosrelatosdeYanishaemseustemposdeaia,queporincontáveisvezesforamoassuntodosmomentosquepassavamjuntas.Seaindaassimeraconfusoparaela,nemconseguiaimaginaroquepassavapelacabeçadosoutrostrês.

—Oqueestáacontecendoaqui?—rosnouHarun,semguardaromartelo.Aelianpareciaestaremumraromomentoemqueconcordavacomoanão.—Vocênãoqueriarespostas,Harun?Souocomeçodelas.—VocêéacaradeUna—confessouosinfo,semconseguirevitar.—Seidisso,Ziggy—respondeuela,divertidaepaciente.—Elogoissotambémseráexplicado.Ela se sentoudepernascruzadas, semdificuldadealguma.Eraatléticae tinhamovimentos

ágeis.Emeenganoumuitobemcomoumavelhacorcunda,pensouakaorsh.—Eumelembrodetervistovocênomeiodamultidão!NoFestivaldaMorte—disseAelian,

ressabiado.—Vocêestavacomodisfarcedevelha.Causandoconfusãonumadasbalestras…— E depoismais um pouco de confusão dentro do Palácio— acrescentou ela, tomando a

palavra de volta.—Não consegui evitar que aqueleAutoridade odioso conseguisse assumir abalestradooutrolado…MaspelomenosRaazieYanishaderamcabodele,nofimdascontas.

—Vocêestava…meajudando?—perguntouakaorsh,desconfiada.—Queriaterconseguidoevitaramortedasuaesposa,mas,quandoestavaespionandoAelian,

descobrioquevocêspretendiameinicieiaconfusãonaarquibancada.Depois,tireiProghondaTribunanahoradapremiação,paraquetivessemachancedematarUna.

—Como?— Digamos que existe um objeto de valor inestimável que lhe é caro — disse Aparição,

bebericandoochá.—Deiaentenderqueiriaroubá-loparaqueelefosseatémim.—Evocêoenfrentou?—indagouAelian,desconfiado.Elanegou.—Nãofoinecessário.QuandooGeneralmeencontrou,viuqueeunãoestavacomotesouro

deleequenemsequersabiacomoafaná-lo.Apenasconversamosumpouco,apesardeelenão

confiarmuitoemmim.Harundeuumarisadacanastronapavorosa.—VocêbateuumpapocomoGeneralProghon,foiisso?—Elefala?—Ziggyfezumacareta.—Nãoseisepodemoschamardefala.Maseleéumbomouvinte—respondeuAparição.—E

uminimigoformidável.Raaziselevantou.Osolhossedescolaramdasenhorapelaprimeiravezdesdearevelação.A

kaorshestavadepunhoscerrados.—Elematouaminhaesposa.Nãovouficaraquiouvindoelogiosaummonstroinominável.—Acalme-se,querida.NãonutrosimpatiaalgumaporqualquerfiguradepoderdeUntherak.

Tambémperdimuitacoisanomeucaminho,eboaparteporculpadeProghon.Sóaprendiareconhecerumaboabatalhaquandoelaseapresenta,sejanocampofísicooumental.Alémdomais,osquasemilanosqueelepassoucomobraçodireitodeUnageraramcertainsatisfaçãonoGeneral, seme permitem uma explicação simplista. E insatisfação é o primeiro passo para arevolta.

Akaorshcontinuoudepé.Apariçãonãopareciaseincomodarcomaposturaagressivadela,eesperouosânimosdeRaaziacalmarem.

—Esperoqueestaraquinãosejaperdadetempo.Asenhorafezoslongosdedoscorrerempeloprópriorosto.—Ah, sei bemo que é isso, o tempo. Sei quando ele começou a contar paramim. Sei que

dependodelepararealizaromeuplano.Eseiquenãotenhomuitomaispelafrente.Ziggydeudeombrosefungou,chamandoatençãoparasi.—Cadaumreparadeumjeitonaareiaquecainaampulheta,sejagrãoagrãoounumfluxo

contínuo.Otempoérelativo—disse,paradepoisficaremsilêncio.Asenhoraassentiu,parecendosatisfeita,olhandoparaopequeno.—Conhecisábioscomodobrodaminhaidadequetinhamtodaumafilosofiabaseadanesse

tipodepensamento.Ficofelizdeencontrá-lonumsinfo,quesabemuitobemoquãoefêmeraéanossapassagempelavida.

—SótentamosviverumpoucoalémdoqueUnanospermite.Porissotemosanossamúsica—falouZiggy,nãoagindomaiscomoacriançaqueaparentavaser.Raazisabiacomofuncionavaafilosofiasinfoeconheciasuassemelhançascomalinhaderaciocíniokaorsh.

—Bonito,muitobonito—falouHarun,impaciente.—MasporqueestamosescutandoumamulhercomacaracuspidaeescarradadeUnadizendocoisastocantes?

—Vocêé…ela?—indagouAelian,entreaconfusãoealgoqueelenãosabianomear,masquelheavisavaqueaquelaperguntaeraabsurda.

—Não—respondeuamulher,commenoslevezaqueemtodaafalaanterior.—Noentanto,jáfuilevadaaacreditarqueseria.Queseríamos.Nascemoseesperamosemcativeiroparaumdia,quem sabe, sermos agraciadas com o espírito soberano. Que nada somos até que o dever de

assumirotrononoschame.Sementenderoqueamulherqueriadizer,Aelianriudenervosismo,acabeçacomeçandoa

pesareasmãosficandogeladas.Eledescobriuqueexistiaumestágiodecansaçomuitoalémdaexaustão física, que começava a esbarrar na insanidade. Harun não estava experimentando omesmo cansaço e, de certa forma, parecia até estar se divertindo. Ele meneava a cabeça,descrente.

—ElaestáquerendonosdizerqueexisteumestoquedesósiasdeUna.—Eleolhoudiretamentepara Aparição. — Você tem uma imaginação tão fértil que eu plantaria milho nessa cabeça,senhora.Paranãodizerqueécompletamentemaluca.

—Nãosepreocupe,Harun—falouela,tentandotranquilizá-lo.—Justovocêpensarqueeusouloucaéalgoquemediverte.

Oanão,atéentãotãosegurodesi,donadapareceuseincomodareficarnadefensiva.—Nãoentendioquequisdizercomisso.—Sósias—balbuciouAelian,encarandoamulher,esquecendoHarunnamesmahora.Raazi

observouAelian,esabiaoqueeleestavaimaginandonaquelemomento:orapaztinhaomesmosemblante aterrorizado de quando relatara os experimentos macabros que ocorriam nosubterrâneodoPalácio.—Sósiasemcativeiro?

—Umpoucomaisquesósias,Aelian—respondeuamulher.—Etalvezalgomaisassustadorqueummerocativeiro.

—Eujávicativeirodegnollsedearbopardos—disseZiggy,torcendoonariz.—MasdeUnas?Nãoqueeuestejachamandovocêdementirosa,senhora!Nuncafariaisso.Mascomoumacoisadessaspoderiaexistir?

—ÉumapartedoPalácio,naAlaOeste.Repletademulheres—falouRaazi.Aelian,HaruneZiggyviraramacabeçanadireçãodelaemsincronia,surpresosportersido

Raaziaresponder,enãoAparição.ElaolhouparaAelianantesdecontinuar,comumleveacenode cabeça. Ao mesmo tempo em que contava um segredo, estava continuando a conversainacabadadostúneis.Eraomomentooportuno,oquetalveznãoserepetisse.

—YanishaserviuporumtemponoPalácio,comoaia.Umdia,descobriuumadaspassagensocultas dos anões. Foi sem querer, domesmo jeito que acabamos fazendo hoje. Lá, viu umaespéciedeestuário, comdezenasdemulherespraticamente idênticas.As sósias.Yanquase foipega,masconseguiusilenciaroÚnicoqueaflagrou.Semanasdepois,comprouasemiliberdadegraçasaodinheiroquehavia juntadoao longodosanose seafastoudoPalácio sem levantarsuspeitas.Masissomexeucomela…mexeuconosco.Parasempre.

Raazisentiuorostoquenteaoterminardefalar.PercebeuApariçãoaencarando,anuindodeforma quase imperceptível. Havia no ar um tipo de empatia entre as duas que só podia sercultivadacomarepulsapelasmesmassituações.

—Vocêsforambastantecorajosasaopensarnaquelasmulheres—disseaanfitriã.— Tentamos seguir com a vida. Yan procurou esquecer o que tinha visto… mas ela não

conseguiadeixaraquilodeladosabendoquealgoassimestavaacontecendo.Enemeu.Aelianmeneouacabeça,virando-sedecostasparaogrupoeseaproximandodeseufalcão.

Raazisabiacomoeraaprimeiratentativadedigerirtudoaquiloeachouqueofalcoeiroestavaatésesaindobem—aimagemdeumaUnaquenãofossecolossalcomoaestátuaeradifícildeacreditar.OqueorapazpassaranoPalácioanteseduranteaoperaçãoderesgatedeviaterabertoalgumcaminhoàforçanomeiodesuacrençaparaqueeleaomenosdesseouvidosaela.

Harun,porsuavez,mantinhaorostoneutro,coçandoabarbavezououtra.Nãodavaparaimaginaroqueeleestavapensando.Ziggymantinhaosolhosarregalados,nadireçãodochão—estavaprocessandoasnovidades,aexistênciadeumcativeirodeUnas.Raaziobservouqueeledemonstravaareaçãomaisinesperadadostrês:emvezderaiva,dúvidaounegação,pareciaquasetriste.Foielequemquebrouosilêncio,olhandoparaAparição.

—Elesmaltratavamvocês?—perguntou.—Comofazemcomosgnollseosarbopardos?Apariçãofoiatéosinfoesegurouamãodele.Raaziachouacenaquasematernal.—Nósnãosabíamosqueaquiloeradorequeascoisaspoderiamserdiferentes,meuamigo.

Elesnãopodiammachucarnossoscorpos,poisprecisávamosserperfeitascasochegasseahoradeassumirmos.Porém,crescíamoscomumaespéciedeferidaabertanaconsciência,semtermosamenorideiadequeéramospessoas.

—Masvocêtemumamarcanapele.—ZiggyapontouparaorostodeAparição.—Forameles?— Isso foi resultado do que uma pessoa chamaria de acidente. Uma taça de cristal, um

momentodedistração…—Amulherfezumapausa,passandoumaunhapelacicatrizacimadaboca.—FoiporcausadissoqueaCentípedequismedescartar.Efoiquandoeufugi.

—Paraonde?—perguntouHarun.—Vocênãoficounostúneisessetempotodo.Suapeleécurtidapelosol.

—Bemobservado—disseAparição.—Masfuiparalonge.Paraalémdosmuros.—VocêvagoupelaDegradação?—questionouRaazi.Elanuncapensariaemencararodeserto.

TantoqueseuplanocomYanishajamaisenvolveraumafuga.—Porumtempo,sim.Preciseidescobriramimmesmaantesdedescobrirtudoqueosmuros

deUntheraknosimpedemdever.Preciseiquasesersacrificadaparadescobrirqueeusentia,queeueraalguém,enãoapenasumapeçanumamentiradeslavadavestidadeimortalidade.Eutemiamorte,entendem?—Elaolhounosolhosdecadaumetocounoprópriopeito.—Preciseitomarconsciência demim para descobrir que existe ummundo lá fora, e que aDegradação parecemuitomaiordaquidedentrodoquedefatoé.GarantoavocêsqueUntheraknãoéoceleirodetodaaexistência.Estelugarnemsequeréoúnicomaldomundo.Euvi,vivi,aprendicoisas…Equeroqueoutrostenhamamesmaoportunidade.

AelianpareciaestarevitandoolharparaqualquerumnaquelerecintoquenãofosseBicofino.Semtirarosolhosdaave,elefalou:

—Édifícildeacreditar.AUnaquevocêmemostroudiscursandominutosdepoisdamorteseriaumasósia,então.

—Sequiserumexemplodecomoacoisafunciona,Aelian—disseAparição—,pensenasuacarreiranoPoleiro.Quantaspessoasvocêviumorrerduranteotempoqueserviulá?

—Nemdáparasaber.—Ealgumavezalguémdeixouumavagaemaberto?OPoleiroficoudesfalcado?Eleficouemsilêncio.—VolteagoraparaoPoleiroeapostooquevocêquiserquejátemalguémocupandoasua

antigacela.Ascoisasaquisãofeitasparafuncionarparasempre,umafornalhaquenuncaparadequeimar,quenunca ficasemcombustível.Esseéoúnicotipode imortalidadequea figuradeUnatem.

Todosvoltaramaficarquietos,pensativos,assustadosechocados,cadaumàprópriamaneira.Apariçãoeraaúnicaquetinhacoragemdecontinuarapunhalandoosilênciopalpável,poishaviamuitoafalararespeito.

— Eu fugi, mas não tenho conhecimento de outra que tenha conseguido fazer omesmo.Nunca soube de uma que sequer tenha questionado o sistema. Aliás, não é possível obtersabedoriadeverdadeemUntherak.Una,aCentípede,Proghon…elescontamahistóriaqueforprecisoparacontrolarvocês.RepetemataldagêneseedaFúriadosSeisàexaustão,chamamrelatosdefatos,eproíbemapopulaçãodeperpetuarasprópriastradiçõesememórias…Matamopassado,emodelamopovoàmaneiraqueforconveniente.Proíbemosservosdelereescrever,paraquequalquerformadecontradiçãoànarrativadeumasoberanamilenarsejaevitada.—AmulherolhouparaAelian eHarun edeuum sorriso rápidoparaBicofino, quevooupara seuombro.—Felizmente,temosasnossasexceções.Elesaindanãopodemcontrolaroqueéfeitononossosilêncio.

Aelian pareceu que resmungaria algo para o falcão, mas desistiu. Aparição se afastou parapegar o bule de chá e trazê-lo até amesa.Quandovoltavapara buscarmais xícaras, Ziggy seadiantouparaajudá-la,semdizernada.Amulhersorriuparaele,eHarunresfolegounocanto,censurandoocomportamentodopequeno.Todos,menosele,beberamocháemsilêncio.Semamesmadistraçãodosoutroseparecendoirrequieto,foioanãoquemvoltouaoassunto.

—Vocêteveumbomtempoparapensarlongedaqui.Deveterumplano,não?Apariçãoassentiucomacabeçaerepousouaxícaranamesa.Estavavazia,comresíduosdas

folhasaofundo.—Untherak é essa xícara. Raazi eYanishamataramuma sósia, ou seja, beberamo chá que

estavaaquisegundosatrás.—Elapegouobuleeencheuaxícaracommaislíquido.—Foiapenasumaquestãodecolocaremmaischá.

—Vamosquebraraxícara,então?—disseZiggy.—Nósestamosnessaxícaratambém,seusestrategistasdearaque!Issonãoserianadaesperto

—interviuHarun,chegandomaispertodamesa.AelianeRaaziseirritaramcomocomentáriodoanão,masApariçãoconcordou.—Harunestácerto.Oqueachamquedeveriaserfeito,então?

Osquatro ficaramali, olhandopara o chá fumegante.Raazi foi paramais perto damesa etomouaxícaraparasi, segurando-acomasduasmãos.Bebeutudodeumavez,semassoprar,semreclamar,ebateucomaxícaranamesa,comumpoucomaisdeforçaqueonormal.

—Bebemosochádenovo—disseakaorsh,determinada.—É,masemseguidaalguémvaivoltarapreencheraxícara—disseAelian.—Jáentendiqueé

assimquefunciona.MinutosdepoisdevocêsassassinaremUna,outraapareceu.Raaziencheuaxícaramaisumavez.Depoischacoalhouobule,eoruídoqueveiodedentro

eraodepoucolíquidoseagitandonofundo.—Umahora,ochádobuletemqueacabar.— É uma forma de agir. No entanto, estaríamos promovendo uma matança infinita —

observouAparição.Raazificouenvergonhadaporuminstante.Suaraivaahaviafeitoignorartudoquea senhoracontara sobre suavidaemcativeiro.Apariçãocontinuou:—Seria sóumaquestão de tempo até a Centípede providenciar alguma coisa, e são eles que devemos deter.Precisamosdeixá-lossemsaída,anteciparasdesculpasquepodemcriarparaa imortalidadedeUna.ContaranossaversãodosfatosparaUntherak.Dominaranarrativa,comofazemhámilanos.

—Comtodoorespeito,senãoéfácilconvencerquatropessoasaabandonarassuascrençaseosseusconceitos…imagineumacidadeinteira—falouAelian.

Raaziconcordava.ElasabiaqueAelianestavaseesforçandoparaacreditarnoquelhediziam,aocontráriodeHarun.Porém,ambasasreaçõeseramesperadasnumasituaçãocomoaquela.Elamesmaselembravadecomoforaouvirtudoaquilodabocadesuaamada,eaindaassimduvidardasanidadedapessoaquemaislheimportavanomundo.

IssoalevouapensaremtodooidealismoetodaaforçadevontadedeYanisha,apontodequererenfrentaroFestivaldaMorteparatalvez—eapenastalvez—terachancedeconcretizarum plano que, no fundo, tinha por meta a verdade. O objetivo delas era trazer uma novaperspectiva para o povo de Untherak. Uma narrativa! Raazi riu, surpresa consigomesma. AessênciadeYanishaestavalivredocanväsepareciaterencontradoumbomlugarpararepousar.Porironia,eranocorpodeumaUnarebelde.

RaaziselevantoueestendeuamãonadireçãodeAparição.—Meu nome é Raazi Tan Nurten. Pormais que você saiba bastante sobremim, não nos

apresentamoscomodeveríamos.Apariçãosorriu,erguendoosolhos.ElaenvolveuamãoestendidadeRaazicomassuas,com

umadoçuraacolhedora.—PodemechamardeAnna.SóAnna.Raazinãosorriu,masassentiucomumgestodecabeçaeumpiscardeolhosmaisdemorado.—Poisbem,Anna.Meucanväseminhalançasãoseusatéondeconseguirmosir.Anna, a Aparição, beijou amão de Raazi. A kaorsh adoraria ver Aelian, Ziggy e Harun se

entregandoàcausaemseguida,inflamadospeloseudiscursoeporsuainiciativa.Contudo,não

foi o que aconteceu.Havia silêncio ali.Dúvida, talvez atémedodoque aquilo acarretaria.Oshomensestavamcommedodesevoltarcontraomaiorsímbolodepoderqueconheciam.

—Certo,certo—disseHarun,apósumtempo.Raazipercebeucomoele,paranãodemonstrarfraqueza, ironizava o que não entendia ou o que lhe causava estranheza. — Ainda usando asalegoriasdoiníciodaconversa…Vocêsvãobebertodoochásozinhas?

Aelianbateucomapalmadamãonatesta,resmungando:—Nãodáparaacreditarqueaindaestamosfalandodechá.Annadeudeombros.—Parasersincera,todosvocêstêminteressesemcomumcomigo.Ealgunsnemtêmescolha

melhor.—Nós, sinfos,não somosdebrigar—disseZiggy,olhandoparaaxícaravazia.—Masuma

coisaaconteceuunsdiasatrás,eudescobriqueumamigomeu…sefoi.Aelianergueuacabeçaporuminstante.Sabiadoqueopequenoestavafalando.Oex-falcoeiro

encarouasprópriasbotas,parecendomuitotriste.—OdeiosaberqueocorpodeJaennifoiparaaMácula,enãovoltouaospésdaárvoreemque

elenasceu—falouZiggy,abrindoumsorrisoque,nocasodele,nãopareciaforadehora,apesardoassuntomelancólico.—Etambémtenhoummotivoumpoucomaisegoísta:confessoqueadoraria ver um pôr do sol diferente do que temos aqui, onde o astromergulha nosmuros.Adorariaverumhorizontedeverdade!Verosolsepondoentremontanhasverdeseumriacho…comojáouviemlendasdaminharaça.Nãovouvivertantoquantovocê,donaAparição.Digo,donaAnna!Etambémnãoestouchamandovocêdevelha,nãomeentendamal…

—Estouentendendobem,meuamigo.—Certo…—Ziggyvoltouaficarcontemplativo,olhandoparaaxícara,eentãobateucoma

mãonojoelho.—Ah,perdiofiodameada.Porcaria,semprefaçoisso.Queriaverumpôrdosoldiferente.Sóisso.

Raazinãoseaguentoueriualto,eAelianfezomesmo.AtéHaruntinhaumsorrisinhonoslábios.Maldição, talvez nem o General Proghon conseguisse ficar sério na frente desse pequeno,pensouakaorsh.

—Jávimuitosporesdosoldiferentes,meucaro—disseAnna.—Egarantoqueencontraráosmaisbelosimagináveis,quevalerãoportodososqueaMuralhajáescondeudevocê.

—Certo— disseZiggy.—Bem, eu estou olhando aqui para o fundo da xícara e ficamunspedaçosdefolhinhasnaborra…Querdizer,mesmoseeuajudarvocêsabebertodoochá,ficaumasujeirinha.

—Sim,Ziggy.Ealguémsemprepodeencherumaxícaravazia…comalgoquenãosejachá.Essetambéméumperigo.

Aelianseinclinouebateucomabocadaxícaranamesa.—Então,vamoscolocarUntherakdecabeçaparabaixo.Todosolharamparaele,surpresos.Eleosencaroudevolta,portrásdacortinadecabeloque

caiuemseurosto.—Euestouentreaquelesquenãotêmescolhamelhor.—Sempreháescolha,AelianOruz—disseAnna.—Masconfessoquenãoselecioneibemas

palavras.—Não,vocêtemrazão.Querolutar,ousejaláoquevocêstiverememmente.Nosúltimos

trêsdias,descobriumaUntherakquenãoimagineidurantetodaavida…Osuficienteparaquerermeverlivredoqueestiveracontecendonestelugar.Vamoscortarosuprimentodechádeles.

EleolhouparaRaazi,buscandocumplicidade.NãoestavaàvontadeparafazeromesmocomHarun,apesardeterempassadopormausbocadosjuntostambém.Então,continuou,comvozexausta:

—Canseideficarparadoatrásdasgradesdacela,meagarrandoàideiadequepossofugirpelajanelanahoraquequiser.Nãoaguentomaisvergentemorrendoàminhavoltaenãopoderfazernada.Nãoaguentomaischá.

Harunaplaudiu.Comironia,paravariar.—Estou pasmo comigomesmo,mas concordo como primeiro falcoeiro.Onde podemos

beberalgomaisforte?—Estácomagenteentão,Harun?—perguntouRaazi.Elemostrouaspalmasdasmãos, comosepedisse calma, e elapercebeuque lhe faltavaum

dedo.—Depoisdealgumascanecas,quemsabe?Aparição se levantou, ágil, flexível, empolgada e ainda assim parecendo calma. Engraçado

comoempoucosminutosRaazitinhadeixadodeassociá-ladiretamenteaUna.Mesmoqueelatenhaorostodafalsadeusa,pensou.Annatinhaaeloquênciadasoberana.Aimponência.DeviatertreinadomuitocasoprecisasseassumirolugardaoutraUna.

—VocêsmeajudariamairritaraCentípedeeoGeneralProghon—disseela,vivaz—apontodeencontrarmosumabrechanosdisfarcesdeles?Vamosplantaradiscórdia,vamosfazeropovoduvidardopoderdeUna,eentãodevolveremostodaa raivaquecultivaramemnósapósmilanosdedomesticaçãoecastração!

Ninguém verbalizou nada. Porém, se não tivessem achado aquela ideia boa, com certezateriamfeitoalgumaobjeção.

—Entãovenhamcomigo!—gritouAnna,dando-seporsatisfeita.— Para fazer o quê? — perguntou Ziggy, tentando olhar para todos ao mesmo tempo e

parecendoumabirutanumatempestade.—Celebrar,pequeno—respondeuela.—E,aomesmotempo,enviarumamensagemparaUna.

18

Bicofinofoioprimeiroaatravessaraporta,disparandoparaanoiteacima.ZiggyacordouThrulparatirá-lodapassagemeemseguidamontounobicho,quejácarregavanascostasumgrandefardorepletodasmaisvariadascoisas—entreelas,erapossívelverobraçodoalaúderústicodosinfo.

Agarotasinistraaguardavanotelhadodacasaemfrente.Ajovemtentouocultarumabestadebaixodacapa,masAelianconseguiunotaraarmaantesdeelasumirdesuasvistas.AmoçafezumsinalparaAnnaesaltoudiretoparaochãodeterrabatida,caminhandoaoladodelanafrentedogrupo.Aelianvinhalogoatrás,ouvindoaconversadasduas.

—Foimaisrápidodoquepensei.—A lenha foi entregue onde pedi?— perguntouAparição, amarrandode novo o lençona

cabeçadeformaqueorostoficasseencoberto.ElasabiaquenãoseriamuitobomterumaUnaenvelhecidaandandopelosAssentamentos.

—Sim,senhora.OdonodoPâncreasdeGrifodissequetrariaalgunsbarrisdebebidasparaajudar.

— Tom? — indagou Aelian, apertando o passo e se intrometendo entre as duas. — Vocêsconhecemele?Éamigomeu.

AgarotaolhouparaAeliancomassobrancelhaserguidas.—Seurecrutaémuitoempolgado,Aparição.—Vocês não são recrutas, querida— respondeuAnna.— Perdoe-a, rapaz. Ela é um tanto…

bélica.—Percebi—disseele,osolhosindoparaovolumequeelaocultavasobacapaedevoltaparao

rostodamoça.—Qualéoseunome?—Nãosomosamigos,recruta— falouela,puxandoacapasobresuaarma,comoseolhá-la

fossealgoindiscreto.—Certo…Bem,vocêsmencionaramoTom.Eleestáenvolvidoemalgo?—Não,elenemmeconhece.Apenaspediparaqueespalhassemporaíquehojeànoiteum

carregamentodemantimentoseoutrasiguariaschegariaaosAssentamentos,desviadodaVilaA.

AeliannotouqueHarun,caminhandologoatrás,pareciaresmungarconsigomesmo.SeriaoladoAutoridadedelefalandomaisforte?

— Isso não é incomum — falou a Garota Sinistra, alerta a cada esquina e beco enquantodesciamasruasiluminadasporarchotes.—Carvãoearmaschegamaquitodososdias.Inclusivearmas maculadas, que só podem vir de um lugar. Apesar de essas coisas sempre causarem

problemas…jásetornoubemnormalporaqui.—Aindaanonimamente—continuouAnna—,pediaoseuamigodoPâncreasqueorganizasse

umamaneiradedistribuira comidade forma justa.Ele sugeriuuma festa, e falouque trariaabebida.

—É bema cara dele—disseAelian.—Mas você quer assumir a autoria da doação ou algoassim?Paraarregimentarsoldadosou…

—Não!—falouAnna,ofendida.—Ésóumafesta,AelianOruz!—Depoiseuéquesoubélica—reclamouagarota.—Desculpe,équenãovejosentidonissodepoisdetudoquefalamos…Raaziapertouopassoparaemparelharcomosoutrostrês.—Paradizeraverdade,eutambémnão.Porquedaríamosumafesta?—Paracomemorar.Celebrar.Mostrarquenãotemosmedo.Cadaumfestejapelospróprios

motivos.—Comtodorespeito,nomomentonãoquero festejarnada.Eexatamenteparaquem você

querdemonstrarquenãotemosmedo?—perguntouRaazi.—PoracasoProghon,aCentípedeeasmilharesdeUnasdoPaláciovãosaberdisso?

—Nãoqueromostrarcoisaalgumaparaeles,Raazi—disseAnna,olhandoparaoMiolo.Aestátuarefletiaaluzdalua,umadasfacesvoltadaparaosAssentamentos.—ÉparaaquelaUna.Pormedo,aspessoasevitamfazerqualquercoisadivertida.EolhaqueoGeneralnemperdeotempodelemandandoguardasparaosAssentamentos,poissabequeestelugartemasprópriasregras.Aindaassim,amaiorleidaquiaindaéotemorpelasoberana.

—EaestátuaéumvigiatãoeficazquecontrolaUntheraksemprecisarquealguémestejaportrásdaquelesolhos—falouagarota,olhandoparaRaazi,bemmaisaltaqueela.—Naverdade,estourepetindoarespostaqueaApariçãomedeuquandopergunteiamesmíssimacoisa.

—ElanuncavaiparardemechamardeAparição—sussurrouasenhoraparaRaazieAelian.—Nãodá.VocênãotemcaradeAnna—disseamoça.—Olha,achoqueafogueiraestáali.Haviacercadequarentapessoassentadasaoredordofogo.Aquilosignificavaqueanotíciade

comida de graça não fora levada a sério pelamaioria dos habitantes. Aelian achava que faziasentido.Afinal,quemfariaumacoisadaquelasemUntherak—oupior,nosAssentamentos?

Olhoupara trás e viu queHarun eZiggy—montado emThrul— estavamvindo,mais aolonge,numpassolento.Oanãopareciaestarcontandoaosinfosobresuaexperiênciaemirritarbetouros na adolescência, o que para Aelian tinha um significado muito forte: que Ziggyconseguiadesarmarqualquerpessoa.

Enquanto voltava a atenção para o caminho à frente, Aelian perdeu o fôlego por ummomentoaosechocarcomumacriançaemaltavelocidade.

—PequenoTom, atévocê estáquerendomematar?— falouAelian, arfando, levantandoogaroto por baixo dos braços e fazendo-o sorrir. — Tenhamisericórdia deste corpo de tripascansadas,porfavor.

Omeninooabraçoueapontouparaondeopaiestava:subindoaruaoposta,trazendobarrisdecervejacomaajudadaesposakaorsh,Taönma,edealgumaspessoasqueAelianconheciadevista. Crianças corriam por ali, divertindo-se por estarem na rua tarde da noite com aautorização dos pais. Aelian pensou que precisava escutar o som das risadas delas commaisfrequência.

— Pensei que alguma coisa tivesse acontecido com você, seu trapaceiro — disse Tom,colocandonochãoosdoisbarrisquetraziasobreosombros.

Acenou para que os ajudantes levassem os outros para uma grande mesa de madeiraimprovisadapróximaàfogueira,enquantoaesposadeletambémiaabraçarAelian.

—Tiveunsprobleminhas…Oi,Taönma.—Vocêestáumlixo,querido—falouela,dandoumtapinhanorostodeAelian.—Masestá

cheirandomuitobem.—Ah,tomeiumbanhonacasadeamigos—falou,indicandoogrupo,quejáhaviaseafastado.— Olha só! — gritou Tom, rindo. — Outro motivo para comemoração: Aelian Oruz fez

amigos!SãodoPoleiro?—Hum…não.Eumeioquefuiremovidodelá.—Ah,foitransferido?—sugeriuTaönma.—Nãoexatamente.Akaorshtorceuonarizefoinadireçãodafogueira,abraçadaaoseubarril,dizendo:—Depoismeexpliqueissodireito.Estámecheirandoaencrenca.—Ébomvervocê,Taön.O sorrisodeTomarrefeceuumpoucoquandoa esposa já estava longe.Aelianpercebeu, e

começouatagarelarantesquequalquercoisafossedita.—Nãoacreditoque sópercebi agoraquevocêsnascerammesmoumparaooutro.Tome

Taön,atérima.Sópodeserodestino…—Oquevocêfez,Aelian?Osombrosdorapazmurcharameelecoçouonariz,incomodado.— Olha… depois explico direitinho. Vamos esquecer os problemas por hoje? Não quero

estragaranoitedeninguém.Tomsuspirou.—Certo.Bom…Sónãoseesqueçadequevocêtemamigosaquifora,estábem?—Seidisso.Dáumabraço.—Saiparalá!PelaFúria,vocêestácheirandobemdeverdade.

Mais pessoas se sentaram ao redor da fogueira ao longo daquela noite. Aelian questionou oprejuízodeTomcomtantacerveja“doada”,masotaverneiroexplicoumelhorqualeraopapel

delenaquelacelebraçãosurpresa.—Foialgumloucocheiodagrana.Pediramparaummolequemeentregarumrecadocomo

localdafestaeumsacodepanocheiodealtin.Dissequeeraparaasdespesascombebida.—Tomvirouofinalzinhodocanecodecervejaeconteveumsoluço.—Mesmoqueeutenhaquebuscarmaisláembaixo,vousairnolucro.

AelianolhouparaAnna,numtroncopróximo,sentadaentreZiggyeaGarotaSinistra.Ficouimaginandodeonde ela teria roubadoodinheiroparapagarTom.Aparição estava lá, comopanosemcobrirorostoporinteiro,semfingiracorcundaqueadeixavamaisvelhaeindefesa.Talvez ela se sentisse mais relaxada naquele lugar, onde ninguém estava preocupado comAutoridades e Únicos. Se a festa fosse anunciada muito tempo antes, sem dúvida elesapareceriamparainvestigar.Porém,atéanotíciadesceromorroechegarnoMiolo,todosnosAssentamentosjáestariamdormindo,felizesebêbados.

Taönmachamouomaridoparaajudá-lacomascarnesassandonafogueira,eAelianobservouos arredores por um tempo.Nada deBarn eCanivete para incomodá-lo, comida farta…nempareciaqueaindanaquelemesmodia,horasantes,elepassaraportantoshorrores.Chacoalhouacabeça tentando afastar a lembrança das kaorshs gestantes quando outra kaorsh o trouxe devoltaaomomento.

—Tudobemcomvocê?—perguntouRaazi,despejandopartedacervejanocanecodeAelian,queestavavazio.SeTomchegasseaultrapassaracotadopatrocínioetivesseprejuízocomabebida,Raaziseriaaculpada.

—Sim,sim.Ésóque…—OlharparaelaofaziarevisitaroembustedeUna,askaorshsgrávidas.TinhavontadedecomentaraquilocomRaazi,masagorasabiadofardoqueamulhercarregara,de guardar um segredo apenas entre duas pessoas por tanto tempo…Ela já tinha os própriosdemônioscomquelidar,eAeliannãotrariaoutralegiãodelesparaosombrosdakaorsh.—Équeparecemuitosurrealestarmosaqui,tranquilos.

—Todomundodeveestarsentindoamesmacoisa.Tantoqueninguémdeixoudeagarraressaoportunidade.Etemmaisgentechegandoacadaminuto.

—É…achoque essa festavai longe—disseAelian, rindoparaoPequenoTom,quepassoucorrendoentreosdois,comcriançasdeváriasraças.

—Sãoparentesseus?—perguntouRaazi,apontandoparaTom,aesposaeofilho.Aelianmeneouacabeça.—Não,maseramamigosdosmeuspais.Esãomeusamigos,porconsequência.—Paishumanos,certo?—Sim,atéondeeusei.NãosoumestiçoquenemTom.—OuafilhadeAnna.AelianolhouparaRaazi,surpreso.—AGarotaSinistra?Elaémestiça?—Sim,eeuarriscariadizerqueékaorshporpartedepai.

—Elacontoualgumacoisaparavocê?—Nemprecisa.Nósreconhecemosnasoutraspessoasaporçãoqueseassemelhacomagente.

Nãoseiexplicar,éalgonatural.Umacaracterísticadiferentenapele.—Certo…Bom,vocênãoémestiça,presumo.—Não. Pai emãe kaorshs, ambos do Tear.Não passávamosmuito tempo juntos, passei a

maiorpartedainfânciacomossinfosdoSegundoBosque.Eosseuspais?—Umtrabalhavanosalambiquesdecaahwah.Pan,eraonomedele.Faleceupoucodepoisdo

meuoutropai,Aenoch.Raazidemorouumpoucoaentender,masdepoissorriu.—Yanishaeeuchegamosapensaremterfilhos.Untherakéumamáquinadeproduzirórfãos,

epensamosquepelomenospoderíamosaliviaradordequantospudéssemosabraçar.Masissofoiantes…deosplanosmudarem.

—QuandoYanishadescobriuafarsa—concluiuAelian.— Aquilo mexeu com ela. Conosco. Enfim, sempre fomos mais guerreiras que mães. A

descobertasóconfirmouisso.—Dá para ser as duas coisas.Meu pai, Aenoch…Vocês se dariammuito bem. Ele lutou na

Arena.O rosto de Raazi brilhou por um instante, literalmente. Muitas cores oscilaram em seu

semblantesurpreso.—Aenoch,osujeitoqueenfrentouProghonnoúltimoFestivaldaMorte?—Penúltimo,naverdade.— Yanisha procurou por pessoas que tivessem assistido à luta dele para perguntar sobre

estratégiasemodosdesobrevivêncianaArena!Eleéumalenda!Quecoincidência…—Comoeudisse,vocêsteriamsedadobem.Ele lutoupormim,paraconseguirescapardo

Mioloeficarmaistempoemcasa.AindaachoquehouveoutrosfatoresqueofizeramentrarnaArena,maseusótinhaseisanos.Meuoutropaifaleceupoucodepois,eninguémmeexplicoumuitacoisanaépoca.Comonãotenhooutroparentevivo, fuimandadoparaoMiolopoucotempodepois,parapagaraDívidaFamiliarcomUna.

—Sintomuito—disseela,colocandoamãonoombrodeAelian.—SintomuitoporYanishatambém.Euestavalá.Vocêsforamincríveis.Os olhos de Raazi se perderam na direção da fogueira. A mancha azul no olho esquerdo

pareciamaisfortequenunca.—Eunemdeveriaestaraqui.Trocariatudoissoparatercaídojuntocomela.—Mas está— falouAelian, umpouco impressionado coma friezadeRaazi ao revelar seus

sentimentos. — E, enquanto estivermos aqui, vamos continuar sentindo muito. Mas talvezpossamosacabaroqueYanishaemeupaicomeçaram.Quetal?

Raazideuumabreve risada evoltouoolharparaAnna,Ziggy e aGarotaSinistra.Os três,percebendoqueeramobservados,acenaram,chamando-os.Pareciamanimados.

—Aindaachotudomuitoestranho.Agiremgrupo.Comgentequenemconheço.—Raazifezumapausaparabeberacerveja.—MasalgomedizqueAnnanãoestáaquiporacasoequeelapodemeajudaracompletarminhamissão.SintoamesmaintensidadeeomesmoidealismodeYanishanaquelamulher.

— Tem alguma coisa ali — concordou Aelian. — Além da estranheza de um rosto queaprendemosatemer.

—Vocêsdois!—gritouZiggy,comavozestridente.AnnaeaGarotaSinistrapareciamestarsedivertindodeverdade.—Venhamaqui,queroperguntarumnegócioparavocês!

RaazibateunascostasdeAelian.— Aliás, se tem outra coisa que aquela mocinha não precisa me contar é que os olhos

amendoadosdelapassamumbomtempoolhandoparavocêenquantoestádistraído.—Talvezportermosapeleumpoucoparecida?—Nãoéporisso.Époroutromotivo.Aelianfezcaradeespanto.—Sério?—Aham.—Vocêachaque…?—Eudiriaquesim.—…elaquermematar?Porquê?Raazirevirouosolhosefoiandandonafrente.—Não,Aelian.—Ah,vocêestáfalandonooutrosentido?—Estou.Vocêéumsujeitobemlento.—Maselafoitãoríspidacomigo…Nãoseiseelaestámesmoafimdemim.—Oquevocêqueria,umbuquêdeflores?—rebateuRaazi,olhandoparatrás.Aeliancorou,e

sabiaqueakaorshnotariaaquilomesmoàluzdafogueiraedalua.—Nãosejatãoexigente.Vocênãoétãobonitoassim.

Dando-se por vencido, Aelian foi em silêncio ao encontro dos outros três, pensando quedeveriaestarparecendoumgarotinhodeseisanos,inseguroepequenoparasuasbotasgrandesdemais.

AnnaencheuocanecodeAelianenquantoZiggyarregalavaseusolhosdecoresdiferentesparaRaazi.

—Ésérioquevocêsabedançarakaita?Raazi foi pega de surpresa.Quem tinha contado aquilo para o pequeno?Anna conversava

comAelian,masaGarotaSinistrafezcaradeculpadaeergueuasmãosespalmadasparaakaorsh.

—PareceubemóbviopeloquepudevernaArena.Seusmovimentosetal.—Hum— resmungouRaazi, sem jeito.Aquelaspessoas estavamsendo simpáticas comela.

Logoela,quetinhamatadotantagenteemapenasdoisdias.—CrescinoSegundoBosque,masjáfazquaseduasdécadasquesaídelá.

— Nossa, nessa época eu devia estar encarnado em alguma árvore! — disse Ziggy, no queobviamenteeraumjargãosinfo.AGarotaSinistrafezcaradequemnãoentendeueselevantoupara pegar algo para comer, agora carregando a besta a tiracolo, mesmo durante aquelemomentodedescontração.Osinfocontinuou,girandooalaúdenacorreiaetrazendo-oatéopeito.—Agentepodiadançarumpouco.Estátudoperfeito,sófaltaumaboarodadekaitaemvoltadafogueira.

—Nãoseiseéumaboaideia…—falouRaazi,virando-separaAnna.ApariçãointerrompeuaconversacomAelian,comosetivessesentidooolharnanuca.

—Vãoemfrente.Apostoquetemmuitagenteaquiqueestámorrendodevontadedefazeramesmacoisaesónãotemcoragem.

Ziggycomemoroucomumassobiolongoecomeçouadedilharumritmorápidonomesmoinstante.Imediatamente,cabeçasseviraramnadireçãodele.Ascrianças,jáumpoucoentediadasde tanto correr, foram as primeiras a se aproximar da fogueira, atraídas pelomagnetismo damúsica.Jáboapartedosadultos,nemtanto.AelianseaproximoudeRaazi,parecendoalarmado.

—Olhaotantodegentefazendocarafeia.Achaquealguémpodenosdedurar?Raazi entregou o caneco para Aelian e tomou o cuidado demudar a cor de seu cabelo e

escurecerapeleemalgunstonsantesdeentraremevidência.Amanchaazulcontinuouaoredordosolhos,maspelomenosninguémaassociariacomapecadoraqueatentaracontraavidadeUna.

—SealguémquisercorreratéoMioloeavisarosAutoridades—clamouela,emvozalta—,saibaquevaiperderomelhordanoite.

Ditoisso,Raaziemendoutrêssaltosmortaisaoredordafogueira,aumentandodevelocidadeacadavirada.Ziggyuivou,animado,emuitosoimitaram—inclusiveAnna,quepareciaradiante.A velocidade dos saltos da kaorsh forçaramo sinfo a aumentar a velocidade damúsica, poisaqueleeraumdosmuitosdesafiosdakaita:quemconseguiadançarrápidotestavaoslimitesdequem conduzia a música, embora fosse o trabalho dos músicos ditar o ritmo. Quando umdançarinonãoaguentavamaisoritmoimposto,pulavaparaforadocírculoeoutrapessoacommais fôlego entrava na roda. Raazi já havia entrado aumentando o ritmo, e Ziggy estavaadorandosertestadologodecara.

Outrosdois sinfos se aproximaramdo troncoondeZiggy se sentava, umcarregandoumaflauta e o outro um instrumento de cordas semelhante a um alaúde. Eles trocaramcumprimentosdecabeça,parecendoempolgadíssimos,elogoamúsicaganhounovascamadas.

Logo,aspalmascomeçaram.Raazifezumasériedemovimentosmaislentos,defrenteparaotrio que tocava, e chamou Ziggy com o indicador. As pessoas em volta soltaram uma

exclamação em uníssono com o desafio, e o sinfo apontou para si mesmo, fazendo-se dedesentendido.

—Vailogo!—gritouAeliancomasmãosaoredordaboca,causandorisadasemaisgritosdeincentivo.Ziggypassouacorreiadoalaúdeporcimadacabeçaefoiseaproximandodaroda,aosom de aplausos. Os outros dois sinfos continuaram com a música rápida, enquanto osoponentesdakaitasecumprimentavam.

Sem aviso, ambos deram saltosmortais para trás, fazendo as pontas de seus pés passaremperigosamentepróximasdoqueixoumdooutro.Aquiloeraumaprovocaçãoconhecida,eeraprecisoserbastantehabilidosoparaerrarumgolpedepropósitoenãoacertá-loporpouco.

Agoraemdupla,akaitaficaramaisacirrada.Ziggyianumsentido,Raazinocontrário.Acadavoltaqueseencontravam,umapernaouumbraçosobravaparatentarinterceptarapassagemdo oponente, e eles precisavam se safar da melhor maneira que pudessem. A cada desvioacrobático,umgritodearroubosubiacomoasbrasasrodopiantesdafogueira,queaospoucosqueimavaosminérioscoloridosemostravalínguasdefogodacornatural,estalandocomaluzmaisalegrequeosAssentamentoshaviamvistoemmilanos.

Boquiabertos, os espectadores presenciaram incríveis cinco minutos de kaita em queninguémfoiaochãoeninguémdeuobraçoa torcer.RaazieZiggy,empurasintonia, foramdiminuindo os saltos aos poucos, e os doismúsicos entenderam a deixa, respeitosos com oespetáculoqueaduplatinhaoferecido.Elesdeixaramarodasobaplausosegritos,dandolugaràscriançasempolgadasquecomeçaramadançardojeitoquesabiam,comoseuscorposqueriamseexpressar.AkaorshseagachouparadarumabraçosuadoemZiggy,quevoltouaoseu lugarepegouoalaúde.

Aelian devolveu o caneco para Raazi quando ela se aproximou, ofegante, mas com umaexpressão de satisfação que a deixava bem diferente da guerreira soturna que ele haviaencontradonoAnel.

—Evocêfeztudoissodepoisdeunsdezcanecos—disseofalcoeiro,abismado.Raazifezumacarade“mepoupe”antesdetomarumlongogole.—Eumalcomecei,AelianOruz.Maistardequertentarakaita?Pegolevecomvocê.Orapazgargalhoucomoseaquelafosseamelhorpiadadahistória.—Sóseipulardeumatorreparaoutra,eolhelá.Seeutentarfazeroquevocêsfizeram,écapaz

demequebrartodo.Annachegoupertodosdois,comaGarotaSinistralogoatrás.—Vocêfoimaravilhosa.Fiqueicomumaimensavontadededançarakaita—disse,sorrindo,

os olhos refletindo o brilho da fogueira. — Mas sabem como essas coisas são, não sei seconseguiria.

AelianobservouApariçãodospésàcabeçaedeixouumruídoinvoluntárioescaparpelonariz.AchavadivertidoAnnademonstrarhumildadeapósvertudooqueamulhereracapazdefazer,incluindolutarcomumaespadatãogrande.

—Ficocontenteemverqueakaitanãosumiudocoraçãodopovo—disseRaazi,enxugandosuordatesta.

—Falandoemsumir—falouaGarotaSinistra,terminandodemastigaralgumacoisa—,ondeestáHarun?

—Jáfazumtempoquenãoovejo—respondeuAelian,escrutinandoamultidãoatrásdele.Raazifezomesmo,esóentãopercebeucomoolugartinhaenchido.— Vou procurá-lo — disse a Garota Sinistra, se afastando. Então parou e olhou para trás,

demorando-seumpoucomaisemAelian.—Vocêsvêmounão?—Achoquevoupegarmais…Ai!—Aelianolhouparaakaorsh,quelhederaumacotovelada

nascostelaselhelançavaumolharsignificativo.Elegaguejouerecomeçou:—Digo,voucomvocêprocuraroanão.Jáfaleiparavocêsqueelemeodeia?

—Ótimo.Émelhornosdividirmos.Assim,aproveitoparatirarumasdúvidassobreakaitacomRaazi— falouAnna, ligeira, levandoakaorshparaadireçãocontráriaenquantoagarotaacenavaparaAelianseapressar.Quandojáestavamlonge,riudasituação.—Essacelebraçãoestásaindobemmelhordoqueeuplanejei.

— Eu achava que a única coisa que me deixaria feliz seria a vingança — falou Raazi,surpreendendo-secomaasperezadasprópriaspalavras.

— Entendo, querida. Mas não deixe isso guiar a sua vontade. Sei que ainda é recente, essesentimentodeperda…Epossodizerquenãovaipassartãocedo.—Amulhersuspirouenquantoseafastavamdopovo,entrandonumbecosemsaídadeondepodiamvertodaamovimentação.— Vingança é só uma forma de tentar preencher o vazio com a coisa mais óbvia ao nossoalcance.Emvezdisso,deveríamostentarcompreenderporqueperdemosalgumascoisasparacertaspessoas.

—EstamosfalandodeUna?—Sevocêaindaachaqueperdeualgoparaela…Naverdade,podemosdizerquetodaUntherak

levoualgoqueeraseu.AlémdeProghon.EaCentípede,queéamaiorculpadadetodos.Unaéapenasumanarrativausadaparadominarquemviveaqui.

NãoeraaprimeiravezqueAnnamencionavaumanarrativa.Noentanto,aquilonãoentravabemnacabeçadeRaazi.TalvezAelianeHarun,quesabiamler,compreendessemmelhoraquelahistória.Elaestavamaisinteressadaemcoisasquehaviamficadosemrespostas.

—ACentípede…oquesãoeles?Annasesentounosdegraustortosnafrentedeumbarraco,oslábiosapertadosnumalinha

fina.Raazifoiparaoladodela.— Gostaria de poder responder a essa pergunta com exatidão, minha cara. Porém, meu

conhecimentosobreelesnãoégrande.ExcetoasquatromáximasquetenhoemmenteporterobservadoaCentípededepertoduranteomeutemponocativeiro.

—Equaisseriam?—Eles nunca falam, nunca comem e nunca bebem.A não ser quando estão perto uns dos

outros.—Vocêsódissetrêscoisas.AnnaolhoudeesguelhaparaRaazi.—Elesnãosangram.—Comosabedisso?—Durantea fugadoPalácio conseguimatarumdeles.Nãoderramouumagotade sangue

sequer.Raazideudeombros.—Penseiquepudessemsermaculados.—ElesparecemconheceraMáculacomoninguém.Conduzemosrituaisdebatismoesabem

quantotempocadaraçatemqueficarmergulhadanotanqueparasofreratransformação,sejaparamanteraconsciência,comonocasodeSureyya,ouparasetornaremmortos-vivoscomoosquevocêenfrentounaArena.Noentanto,osmembrosdaCentípedenãosãomaculados.

Raazisabiaquebatizados,mortosouvivos,ganhavamimunidadeàacidezsolventedaMácula— tanto que os corpos dos gosmentos mutilados e derrotados em batalha em geral eramqueimadosnos fossos.Ela se imaginouarremessandoumdosencapuzadosno líquido,apenasparaveroquepoderiaacontecer…

—Talvezsejamvárioshomensserevezandodebaixodaquelescapuzes,pormilanos—sugeriuRaazi,saindodasuacatarsecriativa.—Nãoseriabemumasurpresa,certo?

Annasorriu.— Isso não explicaria por que eles não sangramnemnenhuma das outras coisas que você

citou.Alémdisso,eutenteidarumaolhadadebaixodocapuzdohomemquematei.—E?…Annapareceuincomodada.Eraaprimeiravezqueelanãodemonstravaestarnodomíniode

umasituaçãooudeumassunto,Raazipercebeu.—Sentiomedomaisirracionaldetodaavidaerecuei.Elemecausouaquilo,mesmomorto…

comosefosseummecanismodedefesa.Penseimuitonissoduranteosanosseguintes.Faltavaalgonorostodele.

—Acheiqueelesfossemapenas…sacerdotesvelhos.Ousacerdotisas.Nãosei.—Velhossim,comcerteza!Naminhaopinião,aCentípedeéacabeçadeUntherak,mantendo

oGeneralProghonnacoleira,inventandoaslendaseanarrativa.Elesmanipulamsangueegenesparafazercomquemulheresnasçamparecidasumascomasoutrasháummilênio!—Annafezumapausa,eRaazificouseperguntandooqueseriamgenes.Comoestavamuitocuriosa,decidiuguardaraqueladúvidaparadepoisedeixarApariçãoseguirseufluxodepensamento.—Aordemobscuradelesétãoantigaquedeveterregistrosdecoisasesquecidasdetemposidos,muitoantesdafarsadeUna,muitoantesdesequernomearemomonteAhtul.Coisasqueprecisamcontinuarescondidasparaanossasanidade,masqueelesseencarregamdeguardarumaamostra.

Raazi tentou pensar naquilo tudo. Gostaria também de perguntar o que era o General

Proghon. Contudo, parecia que o álcool enfim estava começando a fazer efeito, e suasconjecturassobreaCentípedeficaramilhadasnumapartedamentequeaindanãoforatomadapelaenchenteetílicaquesubiacadavezmaisacadacanecodecerveja.

Permaneceramemsilêncioporumtempo.Annaolhavaparaoalto,paraasestrelaseparaalua.Sobtodoobrilhoqueteimavaemaparecerentreasnuvensescuras,amúsicacontinuava,alegre.Raazicomeçavaasentirsono,eestavaadorandoaquelasensaçãodecalma.

—Jávolto—disseAnna,minutosdepois,cravandoosolhosnumlugarespecíficodafesta.—Surgiuumassuntoqueprecisadaminhaatençãoimediata.

Raazi a observou caminhar em linha reta através da multidão até algumas pessoas quediscutiamde formaexaltada.Umgrupo formadoporhumanos,anõesekaorshs,algunsdelesarmados,cercavaoamigodeAelian,Tom,quepareciatentaracalmaratodos,acuado.Acoisapareciaprestesadescambarparaaviolência.

Comaposturaereta,AnnatomoupartidoaoladodeTomedaesposadele,quetambémtinhaseaproximadoparaveroqueestavaacontecendo.Logo,umanovarodapareciacercaraquelacena,tirandoofocodosdançarinosdekaitapelaprimeiraveznaquelanoite.

Raazi,deixandoaembriaguezeosonodelado,disparounadireçãodacenaeconseguiuatéouvirumpoucodaconversa.

—TudoquevemparacátemquepassarpelaFacçãodeRaeth,velha—diziaumhumanodecabelodesgrenhadoedentesdourados,aparentementeolíderdogrupoquecausavaaconfusão,pelomodo comoapontavapara simesmo enquantomencionava a tal facção. Ele tinhaumasoqueirademetalenferrujadonumadasmãos,eficavaflexionandoosdedosaoredordaarma.—Vamoslevarmetadedessasbebidas,éanossataxa!

—Eagradeçampornãopedirmosmais,seusingratos—rosnouumanãocomummachadoduplo de lâminas negras. Arma batizada, quase com certeza traficada para os AssentamentoscomamãozinhadealgumAutoridadeouÚnicocorrupto.

Odonodataverna,comumtompacifista,falou:—Pessoal,vamoslá.Issotudoestásendodistribuídodegraça!Ninguémestálucrando!—Entãoapessoaqueorganizouessacoisatodaémuitoburra—disseolíder,eseupunhadode

seguidoresgargalhou.—Agorasaiadaminhafrenteou…—Ouoquê?Harun irrompeu no meio da discussão, empurrando os espectadores curiosos para abrir

passagem.Seuspassosfaziamtodaagamadearmasdeseucintotilintardemaneiraameaçadora.Raazi se espremeupelamultidão e tomouo ladodele nahora emque três dos seguidores deRaethfizerammençãodeavançar.Nomesmoinstante,atrásdogrupoqueameaçavaTom,umcliquealtofeztodossevirarem,eumasetasecravouaospésdotrio,quecongelou.AGarotaSinistra,agoracomocapuzpontudonacabeçaeapenasabocafinaàmostra,apontavaabestaparaacabeçadolíder.

—Senãoseafastarem,aúnicacoisaquevãoganharhojeéumagangrena—disseela,firme.—

Caso estejam duvidando, perguntem para a maioria dos Assentamentos o que uma seta deVenomapodefazer.

Aelianestavadoladodela,segurandoumpunhalquepareciapequenodemaisparaumabrigacom aqueles sujeitos. Estava confuso, olhando para a tal Garota Sinistra e esquecendo porcompletoaFacçãodeRaeth.

—Esperaaí,vocêéVenoma?—perguntouAelian.—Evocêéumlerdo.—Agorafaztodoosentido,suabocaéigualàdoscartazesde…—Aelian,agoranão.Elesestavamcercados.—Equemvocêsachamquesão?—perguntouohumanocabeludo,comescárnio.—Quem

achamquesãoparasubiratéaquinosAssentamentosequestionaromeupedágio?—Meusamigos—disseumavozaguda,vindadebaixo.Ziggypedialicençaaomardepernas

que o separava da discussão. Ao longe, amúsica tinha parado.—Deixa eu explicar: toda essacomidaebebidaestásendodistribuídadegraça,ouseja,vocêstambémestãoconvidados!

Osinfoficouparadonolugar,comosbraçosabertoseumsorrisoqueameaçavaengolirsuasorelhaspontudas.

—NinguémzombadaFacçãodeRaeth,seuvermezinho!—gritouolíder,partindoparacimadeZiggyedesferindoumsoco.

Outentandodesferirumsoco.Annasemoveucomoumraio.Aliás,aquelaeraAparição.Seulençosedesenrolouumpouco

da cabeça com o movimento brusco e, num piscar de olhos, antes que inimigos e aliadospudessemteralgumareação,Raethestavanochão,comobraçonumângulomuitoestranhoesendoesmagadopelavelhadequemelehaviazombado.

—Sequiseranossabebida,Raeth—disseela,comcalma,masolhandoparaoscomparsasdohomem—,façacomoomeuamiguinhosugeriu:bebaecomaconosco.Comoconvidado.Comoigual.

—Ourecuseaoferta—rosnouHarun,batendocomomartelodelevenaprópriacabeça.—Paramim,tantomelhor.Tereioprazerdevervocêsdiscordando.

RaaziencaravaAnnacomcuriosidade;eraaprimeiravezqueestavacomoespectadoranumasituação daquelas. Normalmente, era ela quemmantinha alguém sob a bota, quem precisavaensinar bons modos a sujeitos violentos ou abusivos. Herk Zatoiff era um dos últimos quepoderia atestar isso, se não fosse pelo pequeno detalhe que o impedia de ser testemunha dequalquercoisa.

AnnasoltouobraçodeRaeth,maspermaneceucomopénopescoçodele.Osseguidoresdohomem olhavam nervosos para seu líder, subjugado por sandálias empoeiradas, e tambémlançavam olhares aterrorizados para Venoma. Assim como Aelian, eles reconheciam doscartazesocapuzpontudoesabiamqueelamatariasempestanejar.

—JátemosmuitagentetentandocontrolaraspessoasdeUntherakvindasdelá—disseAnna,apontandoparaaestátuadeUna.—Emvezdetentarircontraosseusiguais,tratedesevoltarcontraquemooprime.Entendeu?

OhomembalbuciouqualquercoisaqueAnnajulgousuficiente.Então,elatirouopédecimadeleeofereceuamãoparaqueselevantasse.Raazinuncaseimaginariafazendoaquilo.

—Querumacanecadecerveja,Raeth?EleaencaroutãoincréduloquantoRaazietodososoutrosemvolta,eassentiudeleve.Não

davaparasaberseestavaenvergonhado,aterrorizadoouarrependido.Dequalquerforma,Annabateupalmas,animada.

—Tom!Arrumeumascanecasparaosrecém-chegados!UmburburinhotomoucontadolugarenquantoVenomaabaixavaaarma,massemtiraros

olhosdoshomensdeRaeth.Agora,elespareciamdivididos,discutindoentresi.Quasemetadedafacçãovirouascostasparaafestaeretirou-semorroabaixo,semolíder.Oanãocommachadobatizado partiu. Aelian guardou o punhal, mas Harun não parecia convencido da tréguaarranjadadiantedesi—tantoque,comoRaaziobservou,permaneceucomomarteloaoalcancedamãopelorestantedanoite.

Ziggyvoltouadedilharoalaúdenoinstanteseguinte,fazendoacelebração—maischeiaqueantes—voltaraonormal.

Raazitevevontadededaranoiteporencerrada.TalvezporcausadaaltercaçãocomatrupedosAssentamentos,quealembroudequeomundotambémerafeitodeviolênciaecorrupção,enãosóde risadasekaita em tornodeuma fogueira crepitante.Claroqueaquele foraumdia felizcomo jamais poderia imaginar diante dos últimos acontecimentos. Então, quebrando umapromessapessoaldenuncamisturardoistiposdebebidanamesmanoite,pediuparaumgrupodeadolescentesanimadosencherseucanecocomovinhodeamorasqueelescompartilhavamnogargalo.Beberiasozinha,umbrindeaYanisha.

—Vainocanecomesmo—murmurouela,sentando-senumamuretaquejáserviadeencostoparaasprimeirasbaixasdanoite,umabarragemparaosderrotadospeloálcool.

Amulhermaispróximadelaestavacomorostoenfiadoentreaspernas,sentadanaterraenapoeira.Raazilogoaesqueceueolhouparaabebida.Daúltimavezquetomaravinho,haviasidoemtaçasdelatão.Umsuspiroinvoluntárioescapouporsuabocaantesdogole.

—ÀmortedeUna.Emgeral,aqueleeraumvinhodoce.Nãofoi.Ficoucomvontadedechorar,mastambémdese

manterfirme,mesmoqueninguémaobservassenaqueleinstante.Ouassimelapensava.—Falandosozinha?

Raazi olhou para o lado. A voz veio da mulher sentada, que, no fim das contas, estavaacordada.Achou-afamiliar,masdemoroulongossegundosparaserecordardequemera.Seusolhosacabaramrepousandonosinaldoladoesquerdodorostoenocabelocastanho:eraLahina,acortesãdoPoçodosDesejos.Raazinãosabiaseamulherareconheceriacomotomdecabelodiferentee coma luzdifusado fogodistante.Dequalquer forma, agiu comosenãoa tivessereconhecido.

—Apenasmelembrandodealgumascoisas.—Bebendoparalembrar?—perguntouLahina,rindo,apoiando-senamuretaàssuascostas

paraselevantaresesentardomesmojeitoqueRaazi.—Estamosbebendopormotivosopostos,então!Seeuacordarsemlembraromeunomeeondeeuestou…missãocumprida.

Raazi ficou calada. Emalgunsmomentos, era omelhor a fazer.Muitas vezes, escutar valiamaisdoquedizermilpalavrasdealento.

—Mastemalgumascoisasquenãoconsigoesquecer—falouLahinadepoisdeumtempo.—ComooqueescuteidosAutoridadesqueforammevisitarhoje.Querdizer,dosAutoridadesquenãoforamdevoradospormonstrosdosGrandesPântanos.

ElaencarouRaaziesorriucomastúcia.Lahinasabiacomquemestavafalando,oálcoolnãolimitara sua sagacidade.Contudo,prosseguiu comoseaqueleassunto tivesse chegadoali sempretensãoalguma.

—Elesestãobemputoscomafugadakaorsh.ProghonestárevirandooMioloagoramesmo.PelasSeisFaces,nuncaviosAutoridadestãoagitados.

—Écompreensível.—Nãoé?Bom,ouvidizertambémqueelesfecharamosmurosdoMiolo.Disseramquesenão

encontrarem a cúmplice do atentado contra a soberana ainda nessamadrugada, vãomandarmuitosguardasparaosCamposExterioresembuscaderespostas.IncluindoosAssentamentos.Jáatécolocaramumpreçopelacabeçadakaorsh…Trezentosaltin.

Raazivirouacabeçadevagar.Pordentro,chegavaaacharaquiloengraçado.—Nossa,émuitacoisa.Seráquevaleoesforço?—Esforço?—Lahinagargalhou.Raaziobservoumaisumavezqueelaeradefatobelíssima,mesmosemofiltroqueoálcool

colocavanosolhosdeumapessoabêbada.—Pelosdemônios,todomundoviuoqueaconteceunaquelaArena,nãoseriaesforçoalgum:

amulhermataria qualquer umque tentasse chegar perto dela antes que o pretenso assassinopercebesse!Não, obrigada. Seriamais seguro beijar oGeneral Proghon. Reclamo bastante daminhavida,masaindanãoestouprontaparaabrirmãodela…Podemedarumgoledissoaí?Oqueé?

RaaziestendeuocanecoparaLahina,quebebeuquasemetadedovinhodeamoras.—Delícia!—exclamouela,devolvendoeenxugandooslábioscomascostasdamão.—Hoje

eumediverti.Jáfaziaanosquenãovíamosumgentildesconhecidodesafiarasleisparadarum

poucodealegriaparaumbandodemiseráveis.—Naverdade,achoqueissonuncaaconteceu.—Bem,éumapenaqueamanhãaessahoranãoteremosresquícioalgumdetudoisso.—Evocêculpaakaorshdoatentado?Lahinafezumacareta.—Euagradeçoaelaporchacoalharascoisasumpouco.Talvezsejanecessário,detemposem

tempos.PelaFúria,esperoqueadeusameperdoeporpensarisso…masficogrataquetenhamosvividoessanoitena fogueiraantesdemergulharmosdecabeçanasdificuldadesqueestãoporvir.Cutucamosumvespeiro,enãodáparasairdessasemalgumaspicadas.

Raaziabaixouacabeça,olhandoparaovinhoquerestava.Guardouaquelaspalavrasemalgumlugarjuntocomasaudadequesentia.

19

Eledesciaaruaapressado.Acabeçadoíacomonunca,enemtinhabebidotantoassim.Harunestavaprestesacontornarobetouro—queaindadormiatranquilamentenomesmolugarondehaviasidodeixado,agoraapenasumpoucomaisafastadodaporta—eentrarnobarracoemqueogruposeencontraraantes,masprecisouseapoiarnaparedeantesqueperdesseoequilíbrio.Atontura e a impressão de que algo em seu crânio era pinçado começava a acontecer comfrequênciamaior…

—Tripas—praguejou,dandoumtapanoar.—Nãopossoficarotempotodo…—Vocêestábem?Harunreconheceuavozesecalou.Annaseaproximava,tirandoolençodacabeçaeolhando

para os lados, certificando-se de que nãohaviamais ninguémpor perto.Como ela consegue?,pensou o anão. Acabara de vê-la absorta em conversas longe dali. Foi por isso mesmo queresolveusair semsedespedir.Ele tambémtinhaosprópriossegredosparase locomovercomagilidade,levandoemconsideraçãotodasaspassagenssecretasqueconhecia.MasAparição,não.Amulher parecia encontrar atalhos nas sombras e no silêncio. E lá estava ela, fazendo jus àalcunha.

—Estou.Só…bebiumpoucodemaisecomidemenos.Nãotemporqueseempanturrardecomidaquandosetemumpaladaramaldiçoado—disseele,empertigando-se,osolhosinjetadose cansados. — Cheguei a falar para a sua ajudante sorumbática… Digo, cheguei a falar comVenoma,quandoaleveiparaostúneis,queeuprecisoestarnaVilaAantesdoamanhecer.Vãomeprocurarporlá.EeuprecisopensarnumadesculpaparatersumidonahoradafugadeRaazi.

—Evocêvaiconseguir?—Tenhoalgunsquilômetrosdetúneisesilêncioparaisso.Creioquesim.ElapousouamãocompridanascostasdeHarun.—Noteiquevocêàsvezesfalasozinho.Temcertezadequeestátudobem?Harunaencarouporumtempo.—Éumamaniaminha.Pioraquandoeubebo.—Peçodesculpaspelaindiscrição,dequalquerforma.Seiquevocêprefereagirsozinhoeque

nãogostamuitodemultidões.Masagradeçobastanteporhoje.Epor ter ficadoaomeu ladoagorahápouco.

—Ora,nãofoinada.Euentendoumpoucosobrefacçõesemilícias,seicomolidarcomessestipos.

Annaassentiu,compreensiva.— Também vou pedir para Ziggy não faltar aos afazeres dele na colheita. Assim, não

levantaremossuspeitas.ApenasRaazieAelianvãoficarporaqui.Contudo,gostariaquetodosvocêsestivessemaquinapartedanoite.

—Eudouumjeito.ÉomeuLouvor,ficamaisfácil.Elaassentiu.—Tenhocertezadequeamanhãavançaremosbastantenadireçãodosnossosobjetivos.Seus

antepassadosteriamorgulhodevocê,Harun.Elepassouamãopelabarba, tentandonãopareceransioso, irritadooudebilitado.Fezuma

mesura para a senhora e entrou no barraco, procurando uma vela para iluminar o longocaminhosubterrâneorumoàsuacasa.Desceupeloalçapãoeolhouatravésdomonóculoâmbarparaencontrara linhano tetoqueo levariadiretoatéaVilaA,porbaixodasbarreiras edosÚnicosqueguardavamosportões.

Após alguns minutos envolto pelo halo de luz da vela de cera, notou que estava sendoacompanhadoporalguémquenãofaziaruídoalgumaocaminhar.

Naverdade,ospésdoseuacompanhantenemchegavamatocarochão.—“Seusantepassadosteriamorgulhodevocê.”Quemelapensaqueé?—falouumanãoidoso,

flutuandonamesmavelocidadedamarchavigorosadeHarun.Amboserambemparecidos,comamesmapelenegraeomesmocabelogrisalho.Adiferença

era que o anãomais velho tinha uma cor desbotada translúcida em alguns pontos, além delongas e grossas tranças no cabelo e na barba. Os olhos eram de um azul leitoso que, numprimeiro vislumbre, tornava difícil saber se era por causa de catarata ou se simplesmente eleestavamorto.

Harun,noentanto,sabiaqueeramasduascoisas.— Anna temme ajudado bastante, meu avô — respondeu, respeitoso, mas já cansado por

antecipação.—Descobriváriaspassagensdosistemadetúneisgraçasaela.— Conversa fiada — disse o espectro, cuspindo por entre os poucos dentes restantes na

gengiva lisa. — Se prestasse mais atenção nas falhas e nos relevos das paredes que eu vivoapontando…

—Sim,eaíeuvirariaHarun,oAutoridadeque,alémdefalarsozinho,saitocandoemtodasassuperfíciesporondepassa.Vocêtemqueparardeaparecerquandoestoubebendo!Elaquase…pareceunotar.Devepensarquesoudoido.

—Vocênãoédoido,meuneto—disseovelho,indignado.Harunsuspirou.Sabiaaondeaquiloia levar.—Eu tambémnão,apesardoque falavamnaépoca.Masvocê?Talvezsejaumpoucoparvoeimprestável,nãohonraosanguequecorrenasveias…masdoidonãoé.ÉumOkodee!Suamenteéforte…

Harunqueriasercapazdebateremfantasmas.Ouemalucinações.Elenãosabiamaiscomoqueestavainteragindo.Tinhachegadoaosnoventaecincoanos—oque,paraosanões,aindanãoeraaterceiraidade—conversandocomumantepassadomortohaviamaisdemeioséculoenãoconhecianenhumprecedentedecontatocomdefuntos,dentroouforadafamília.Sópodia

acreditarquesuapromessanoleitodemortedoavôforalevadamuitoasério—porambasaspartes.

—Prometo,meuavô—disseumjovemHarun,decortedecabeloagressivoemenoscicatrizes,masmuitasdelasaindafrescasnapele.

Ajoelhadoaoladodamaca,eleseguravaamãofriadeBantuOkodee,sobavigíliadosÚnicostotalmentealheiosaqualqueremoçãoqueestivesseacontecendoali,masaindaassimatentos.Seuavôoencaravacomumolharintenso,comoseenxergasseatravésdanévoaesbranquiçadadadoençanosolhos,piscandoapenasaotossir.

—Prometeoquê?—ralhou,comosenãoestivessemorrendo.—QuevoumanteralinhagemdosOkodee…—Eoquemais,seuimprestável?Aliás,quecabeloéesse?Pediuparaumsinfobêbadotosara

suacabeça?Harunbufouefezumanotamentaldequegostariademorrerantesdeficarranzinzadaquele

jeito.Eentãorepetiupelaenésimavezsuasdiretrizes:—EquevoucontinuarabuscapelaÚltimaArmaduradosOkodeeeporoutrosvestígiosdos

nossosancestrais.—Achobom!E,seencontrar,nadadevesti-lasóparaficarseolhandonoespelho!Elacarrega

a forçadosOkodeeedeveserusadaapenasembatalha,ouviu?—berrouBantu,emendandoafrasecomumatossetuberculosa.

Harunsepreocupoucomosguardasqueestavamali.AquiloiaclaramentecontraacastraçãoculturalqueUnaimpuseraaUntherak,eseumdelesresolvessedarcomalínguanosdentesparaumdosAutoridades…

—Podedeixar,meuavô.—Bom,bom…—sibilouelecomavozfraca,nemparecendooidosoexplosivodesegundos

atrás.—Podenãoparecer,maseuamovocê…Harunsorriu,emocionado.—…seumerdinha…Elesuspirou.—…assimcomoameioseupai.Gostariaqueele tivesse levadomaisasérioanossa...—ele

voltouatossircomviolência—busca.HarunficoudemãosdadascomBantu,ambascalejadaseásperasporforjas,cinzéiseservidão.

Atéquearespiraçãoruidosadelecessou,eassimqueosguardasperceberamamortedoenfermo,logovieramsepararoanãodoentequerido.

—Vocêjásabeporondedescer—disseoÚnico,brusco.—VamoslevarocorpodeleparaaavaliaçãodaCentípedeeládecidirãosevaiparaocrematórioouparaaMácula.

—Certo—disseHarun,olhandoparaosladosevendoquantastestemunhashavianolocal.Deumlado,muitosenfermoseferidosnopavilhão,todosmaisparaládoqueparacá.Dooutro,ocorpodeseuavôetrêsguardasmunidosdelanças.—Sobreisso…possoconversarcomvocêsporuminstante?

—Nãotemostempo.Setiveralgumaobjeçãoouseforsobreademênciaqueeleapresentou,falecomumresponsáveldaPadiola.

—Não é isso. Prometo que será bem rápido— disse ele, fechando a porta demadeira e jásacandoomartelodocinto.

Harunnãopodiacorreroriscodeserrepreendidoporsuastradiçõesfamiliares.

Ofantasmadeseuavôtossia,mesmojásempulmões.Aquilosópodiasignificarduascoisas:ouBantu tossia só para irritá-lo, ou Harun tinha enlouquecido naquele dia, impressionado epressionadopelapromessafeita,criandoumaalucinaçãonaformadoavômoribundo—comadiferençadequeoespectrodovelhosempreusavaaarmadurada família,comoum lembreteparaoneto.Harunacreditavanasegundahipótese.

—VocêconcordacomosplanosdessaloucacomafuçadeUna?—Nãoseiseconsigodefatoconcordar,meuavô.Mastambémnãodiscordo.—NemumvigiadaBorda ficamaisemcimadomuroquevocê—murmurouo fantasma,

deslizandoaoladodoneto.—Comofalei,elamemostroumuitosdoscaminhossecretosdostúneise…—Harunparoude

falar, olhando para o lado por um instante. —Você sabe como essa coisa agourenta de ficarflutuandomeirrita!Nãopodepelomenosfingirqueprecisacaminhar?

Bantuentãorevirouosolhoscegosepousou,agorasimdandopassossilenciosos.—Elanãomostrouavocênenhumcaminhoqueeunãotinhacitadoantes!—Nãoéumacompetição,meuavô.—Sim,masfuieuquemostreiparavocêaprimeirapassagemporbaixodopoçodaVilaA!E

asfalhasnopisoenasbarrasdajanelanaceladofalcoeiro?Foiasoberanavelhaquemostrou?Hein?

Harunseguroualíngua.Iadizerquehaviareparadonaquelascoisascomapercepçãonaturalda raça, que encontrava erros e fissurasnuma superfície comonenhumaoutra emUntherak.Porém,ofantasmadeseuavôcostumavagritarasdicasaomesmotempoemqueahabilidadedeHarunsemostravaútil,entãoelenemconseguiamaisdizeroqueerapalpitedodefuntoouoqueeramseussentidosmaismundanos,porassimdizer.

—Nãofoi—disse,porfim.PelaÚltimaArmaduraOkodee,pensou,estoubrigandocomumparentemorto.Nãoeraaprimeiraveznemseriaaúltima.

Harunviuofeixedeluzazuladaentrandopelotetodapassagemmaisàfrente,naqueletrechoesculpidoabaixodeestalactitesmilenares.Gostavadepassarporalipertodameia-noite,quandoaluzdaluaserefletianofundodopoçodaVilaA.Entrandonolençoldeáguaquelhebatiaquasenacintura,atravessouapartedocaminhoquepassavabemabaixodaabertura,muitosmetrosacima. Era um trajeto que ele deveria evitar em dias de chuva, pois o nível da água subia einutilizavaapassagem.Porém,haviaumavelhacordapassandoporganchospresosnaparedequejáosalvaraváriasvezesemvoltasdesesperadasnascheiasdopoço.

—Heh. — Bantu riu, voltando a flutuar logo atrás deHarun, que chafurdava na água comesforço.—Nessashoras,apostoquegostariadepoderplanarcomoeueficarcomasmeiassecas!

—Prefirocontinuarvivoeúmido—rosnouoanãodecarneeosso.—Jáestamoschegandoeachoquenãoprecisolembraravocêparanãofalarcomigoquandoeuestiveremcasaenocasodeeuencontraralguémpelocaminho.Vocêsabeque…

—...queeumedesconcentro!—zombouBantu,comalínguaparafora.—Jásei!Depoiseuquesouranzinza!—Então,elesumiunumabaforadaespectral.

Harun subiu os degraus gastos que o levavam à saída, parando para encostar o ouvido naparede para saber se havia alguma movimentação lá fora. Puxou a alavanca, que moveu asengrenagens silenciosas como só os anões de séculos antes conseguiamproduzir, e saiu pelaportaqueserevelounosmúsculosdapanturrilhadogiganteesculpidobemnocentrodaVilaA.Eleolhouparatrás,paraobelotrabalhodeperfeiçãoeprecisãodeseusantepassados:aobra,comcerca de quinzemetros de altura, retratavaUna decepando a cabeça de um gigante ancestralduranteabatalharesultantedaRebeliãodosGigantes, travadanomonteAhtul.OlhouparaorostodemármoredeUna,comumasensaçãodequemuitascoisashaviamperdidoosentidonasúltimashoras.Nãoqueseusantepassadosjánãoodiassemaquelafiguradeautoridadeportodoosofrimentoqueela lhes trouxera,comonocasodaconstruçãodomonumentonocentrodoMiolo.Aolongodosanosemqueaestátuaforaerigida,onúmerodeanõesmortosnoprocessoultrapassava—emmuito—aquantidadedeanõesemUntherak.

Esgueirou-sepelospontoscegosdasguaritasespalhadaspelaVila,evitandoospostesdeluzque poderiam lançar sombras incriminadoras num anão ensopado em plena madrugada.Atentouaosconjuntosindividuaisdemoradia,aosjardinscomgramacortadaeàcalmariadolocal.Pelaprópriaexperiênciarecente, foi impossívelnãocompararo lugarcomamisériaeaprecariedade dos Assentamentos. Se os Autoridades podiam ter uma vila só deles, com certadecênciae infraestrutura,porquemaisninguémemUntherakpoderiadesfrutardaquilo?Porque o Miolo precisava ser tão caótico, cheio de celas, em vez de oferecer horas de sonotranquilizadoras em moradias individuais para todos? Tinha certeza de que servos quedescansavamdemaneiraapropriadatrabalhavammelhor.

Pormaisque fossemuitasvezes “convocadopara fazerhora extra” emseuLouvor,Harunsabia que os pertences e tesouros dele estavambem seguros num lugar só seu— pelomenos

enquantocontinuassesendoAutoridade.Reforçoumentalmentequeelenão fazia issoapenaspor simesmo, e que a busca pelos tesouros dos ancestrais poderia continuarmesmo que eletivesseoutrocargoemUntherak.Claroqueperderiamuitosdosprivilégioseacessosqueeramessenciaisparasuacirculação.Contudo,seatéumfalcoeironotopodeumadasmaiorestorresconseguiacircularcomliberdadeporlá…

Evitou pensar no rapaz. Não gostava de lembrar que o açoitara com aquela arma odiosa.AmaldiçoavaSureyyatodososdiasportê-lofeitoferiralguémcomMácula. Jáodiavaterqueusartermoscomorefugo para se referiraoshumanos;mesmoqueabominasseaatitude, eleofaziaapenasparaquenãoquestionassemsualealdadeesuaintegraçãocomocomportamentopadrãodosAutoridades.Enquantoabriaaportadecasa,voltouapensaremseucargoenoqueproporcionava.Nãoparasimesmo.

—Harun?—Eleescutouavozdooutroladodasala,aoladodeumagrandevelaqueiluminavaorecinto.Umaanãnegraselevantou,sobressaltada,segurandoumbebêenroladoemcobertas.Amulherseaproximouparaabraçá-lo,comolhosdequemnãocaíanosonohádias.—Estavacomtantomedodequevocênãovoltasse…

Harunabraçouaesposa.Beijousua testaeadobebê, esse simdormindocomosenadanomundoopreocupasse.

EentãolembrouporqueeraumAutoridadecomregalias.

Apósquaseumahora semconseguirpregarosolhoseainda sentindoa cabeça latejar,Harundecidiusairdacamaesentar-senapoltronanocantodocômodo.Avontadeeradeacenderocachimbo para desanuviar a mente, mas o cheiro dentro de casa poderia acordar Cora, suaesposa,quedormiaprofundamenteapesardetodaapreocupaçãorecente.Ea fumaçatambémnãofariabemparaobebê.

Ônixdormianumberçoque tinhamuitomaishistóriaqueelepróprio.Erabruto,pesado,feitodeumpedaçodetroncodecarvalhoecomváriosadornosdiscretos;antigosadinkras,ossímbolosdosanõesnegros.Harunohaviaesculpidoparaseuprimeirofilho,queteriatrintaecincoanosseestivessevivo.

Gostariadeacenderocachimboetomarseurummaisencorpado,mesmodepoisdetodooálcoolconsumidonafestadeAparição.Lembrar-sedamortedoprimogênitosemprefaziasuaalma — que já não tinha uma estruturamuito firme — ruir mais um pouco. E pensar numadesgraçasempreofaziapensaremoutra,atéqueumcomplexodeteiasdememóriasentretodasasmazelasdavidaficavapresente,comaconsciênciaperdidaemalgumlugarnomeiodetudoaquilo.

Harun não acendeu seu cachimbo nem bebeumais. Porém,munido de uma vela, resolveudescer até o porão que ele mesmo havia construído naquela casa sem pedir autorização de

ninguém.Amoradianãoeraexatamentesua,jáqueascasasdaVilaAeramdoadaspeloPalácioaosAutoridades,masseriamtomadasdevoltasemcerimôniaseooficial fosseenvolvidoemalgum escândalo ou cometesse alguma desobediência. Abriu o alçapão camuflado no piso eiluminouotúnelsemsaídaesculpidonapedra:umcompartimentofeitoparaguardararelíquiadeseuavô,quandoenfimaencontrasse.OespaçoparaaÚltimaArmaduradosOkodeejáestavareservado.Nãosesentiatãosozinhopensandonisso—naverdade,sentia-semaisconectadoaosancestraisdaquelaformadoquefalandocomoespectroranzinzadoavô.

Sentou-senochãofriodeseuvazioparticular,fixouavelanochãosobreaprópriaceraeláadormeceu, pensando em fantasmas, túneis, complôs, golpes e coisas que eram perdidas emlugaresde onde era impossível retornar.Harunmal teria tempodepensar emquão triste eraconseguir pegar no sono apenas pela exaustão, pois já acordaria no caminho para outroproblemainevitável.

—Querido!—chamavaCora,ajoelhadaaoseulado.Harun se levantou rápido, com um ruído rouco saindo da garganta, completamente

desorientadoaoveraluzdodiaentrandopeloalçapãoaberto.Aesposajáestavaacostumadaaencontrá-loláembaixoquandodavaporsuafaltapelamanhã.

—Ônix?Eleestábem?—perguntouenquantoseerguia,apoiando-senaparede.Avisãodeleestavaturva,eCorapareciadifusa.

—Sim—respondeuaesposa,tranquilizando-o,masaindaassimalarmada.—Algunshomensestãoprocurandoporvocê…Autoridades.

—Vocêosdeixouentrar?—Claroquenão,elesestãoàporta…Faleiquevocêestavadormindoequeiriaacordá-lo.Haruncomeçouasubirosdegraus,bufando.—Devoficarpreocupada?—perguntouaesposa.Elaconcordavacomabuscapelostesouros

dosancestrais,massemprepareciaaflitacomasatitudesdomarido.— Está tudo bem — mentiu ele, tentando imaginar quem poderia tê-lo visto nos

Assentamentosnanoiteanterior.A tentativadenão ficar emevidênciadurantea festahaviafalhado.

Noberçodecarvalho,Ônixacordaraechoravaalto.Harunteveo ímpetode irvero filhoantesdeverificaraporta,masCoraoultrapassoucompassosrápidos.

—DeixeÔnixcomigo.Vá.Harunolhouparaocintodeferramentaseparaomarteloaoladodaporta.Pensousedeveria

deixarsuaarmaaoalcancedasmãos,casoaconversatomasserumosindesejadosetivessequedefenderesposaefilho.

—Convideosmalditosparaodesjejumemate-os!—sugeriuBantu,aparecendoentreeleea

porta.—Agoranão,meuavô—respondeuHarun,entredentes,abrindootrincodaporta.Apoiado no batente e com um sorriso com o qual já estava familiarizado — para sua

infelicidade— estava umAutoridade, com dois soldados rasos aguardando nos degraus atrásdele.

—Desculpeinterromperseusono,carocolega—disseNiahkon,simpáticodemaisparaaquelahoradamanhã.—SeiqueéseuDiadeLouvor,mastenhoalgumasperguntasafazer.Prometoquesereibreve.

PassarapelacabeçadeHarunapossibilidadedeserinvestigadoporseusumiçodoPaláciologodepoisdafugadeRaazi,masotorpormatinalofezesqueceraquilo.Porém,nãoimaginavaqueNiahkon, que ficava no Poleiro na maior parte do tempo, fosse o Autoridade que faria aauditoriadealgoquetivessesepassadonoPalácio.

Nofundo,HarunsabiaqueSureyyatinhaoAutoridadekaorshcadavezmaisemaltacontaeque o recomendara para a transformação na Mácula — eram da mesma raça e pareciam seentenderbemquandooassuntoeracrueldade.Logo,oanãotambémimaginavaqueaTenentenãonutriaumagrande estimapor ele, sobretudodepoisde transferi-loparaoPalácio após abriga comNiahkon.Metadedo rostodeNiahkonapresentavaumamancha roxo-esverdeada,hematomacausadopelopróprioHarun,masaquilopoderiatersidoescondidocomfacilidadepelashabilidadesnaturaisdooutro.Eleestádeixandovisíveldepropósito,pensouHarun.

—Eleestádeixandovisíveldepropósito!Estátodomagoadinhoporvocêterquebradoacaradele!—BantuecoouopensamentodeHarunefoialém.

Oanão,levandoosdedosàstêmporas,fezforçaparanãoolharparaofantasma,tentandosemanterimpassíveldiantedooutroAutoridade.Suacabeçacomeçoualatejardenovo.

— Olha, entendo que ultrapassei alguns limites naquele dia — disse Niahkon, de braçoscruzadoseainda recostadoàparededavarandadeHarun.—Fiquei furiosocomoatentadoeachoquedescarreguei aminha raivamandandoabrir as celas e soltandooDestrinchador emcimadaquelesmiseráveis…Seiquevocênãoconcordavacomigo.Mastambémnãofiqueifelizcomafugadofalcoeiro.

—Foiporissoquediscordeiemabrirascelasesoltarabestaládentro—respondeuHarun.—Oruz deve ter se escondido em algum canto durante amatança e se passou por umdos seusguardasquandovocêsentraramdepois.

—Voltoadizeroquedisseentão:impossível.Nadaescapadomeuolhar—sibilouNiahkon,sempresorrindo.

Haruncruzouosbraços.—TalvezvocêdevessetersidotransferidoparaoPalácio,então.Dessaforma,akaorshnão

teriafugido.— Ah, obrigado por retomar o fio dameada! Bem, ali a coisa parece ter sido bemmaior,

orquestradaporumgrupo.OApariçãoestavaenvolvido.ATenentetemprovassuficientesdequeháinfiltradosentreosÚnicos.

—Nesseponto,nãotenhonadaaacrescentar.ÉcomvocêqueSureyyaconversa.Niahkondeixouosorrisocongelado.Acornapeledorostodeleapresentouumaoscilação

rápidaeondulanteantesdeohomemsemanifestardenovo.—Porondevocêandouodiainteiroontem?—Fiza conferênciadascelasnosoutrosníveis,paraver sealgumoutroprisioneiroestava

sendo resgatado. Você sabe que existemmais celas e calabouços naquela ala que no Poleirointeiro.

—Hum.Alguémoacompanhouepodeconfirmarisso?—Muitagentepodeconfirmar,massóestouhádoisdiasnaquelapocilgaenãoseiosnomes

de quem está dentro das armaduras — falou Harun, com firmeza. — Mas eu estava sozinhoduranteaverificação.Nãoprecisodeescoltaparaverificarseascelasseencontramabertas.

—Certo—disseNiahkon,assentindo.—Então,numdosdiasmaisconturbadosnoPaláciodeUna,vocêresolveusairnohorárioparacomeçarasobrigaçõesdoDiadeLouvoresequerpensouemficarmaisumtempoparaajudar?

—Ajudar em quê?—Harun deu um passo à frente. Niahkon, semmover um cílio, apenascontinuou o encarando.— Para recolher a trilha de corpos que a assassina deixou para trás?Deixe que os recrutas façam isso! Nunca vi você carregando cadáveres por aí. E sou umAutoridadecomovocê.

— Entendo. Peço desculpas. — Niahkon colocou a mão na cintura e olhou para baixo,pensativo,sériopelaprimeiraveznaconversa.—Écompreensívelquetenhasaídonohorário.Afinal, você devia estar com saudades da sua simpática esposa, tão solícita! E do seu filhopequeno.Tão…frágil.

HarunconheciaNiahkon.Sabiaqueelenão falavanadaporacasoequesuaspalavraseramcortantesevenenosas.OsimplesfatodeaquelalínguaferinatersereferidoaCoraeÔnixfezseusangueferveresóaumentousuavontadedepegaromarteloaoladodaporta.

—Estamosconversados,AutoridadeNiahkon?—Claro,claro.DesculpeatrapalharseuLouvor.Vocêsabe,sóestoucumprindoordens.—O

homemvoltou a sorrir, já se virandoparaos guardasnosdegraus. Então, eledeumeia-volta,erguendo o indicador. — Na verdade, temmais uma coisa… As guaritas da Vila não têm seuregistrodeentrada.Vocêsaberiamedizerporquê?

Harun demorou alguns segundos para dar uma resposta. Foi tempo suficiente para ver aspupilasdeNiahkonsedilatando,comoseeletivesseencontradoalgoali.

—Osguardasdasguaritasdeveriamprestarmaisatenção.Éclaroquedeientrada,poisestouaqui,comovocêpodever.

Niahkonconcordou,descendoosdegrauseacenandoparatrás.— Farei uma observação aos Autoridades competentes. Bom descanso, Harun. Una seja

louvada!Oanãofechouaportacommaisforçadoqueonecessário.

Coraabraçouomarido.Elenotouqueaesposaestavagelada,trêmula.—Estátudobem,querida.—Mesmo?—Sim.Nãoeranadademais.Elaseafastoudoabraçoparapoderfitaromarido.Harunnotouqueosolhosdelaestavam

úmidos.—Vocêprecisacontinuarasuaprocuraporhoje?Ônixsenteasuafalta.Euperceboisso.HarunpassouasmãospelocabelodeCora.—Evocênãosente?Elalhedeuummurronabarriga.Aqueleeraumgestodecarinhoentreanões,massefeitoem

alguémdeoutraraça,poderiadeixarapessoasemarporalgunsminutos.—Sóumpouco.Harun,quesorriapouco,reservouumdaquelesrarosmomentosparaaesposa.—Precisosair,massódenoite.EvoltoparacáantesdeirparaoPalácio.Coraoabraçoudenovo.—Easuacabeça?—Nãoestámaisdoendo—mentiu.—Quebom.Eumepreocupocomvocê.Seupai,seuavô…—Nãoprecisamelembrardisso.Foramatéoberçodofilhoeficaramaliabraçados,emsilêncio,osolhoscerrados.ParaHarun,

amençãoaopaieaoavôeradesnecessária,poisaqueleerao tipodecoisaqueera impossívelesquecer:antesdemorrer,ambosdisseramvercoisas,passaramafalarsozinhos…

Porummomento,Haruntemeuabrirosolhos,veroavôecomeçaraseperguntarseoqueacontecia com ele era um privilégio da ligação familiar entre eles ou apenas a demênciaatingindomaisumdesualinhagem.MasentãoCoravoltouafalar,quasesussurrando:

—TambémfiqueipreocupadacomafugadaquelamalditainfieletodaamatançanaAlaLeste.AsesposasdealgunsAutoridadesandaramdizendoqueotalApariçãofezummassacreporlá—murmurou ela, o rosto afundadono pescoço deHarun.— Pelas Seis Faces daDeusa, essa suabuscamedeixatãoaflita.MasgraçasaUnavocêestábem.

Aindadeolhosfechados,Harundeuumsuspiroprofundo.

20

Annaianafrente,carregandoaespadaimensanabainhaàscostaselevandoumarchotenumadas mãos. Aelian vinha logo atrás, conversando com Venoma. Raazi e Ziggy estavam naretaguarda;enquantoelepareciainventaralgoaodedilharseuinstrumento,solfejandoasnotasquereorganizavainúmerasvezes,elapareciasedivertircomaconversadaduplaàfrente.

—Seacertarotipodevenenoqueeuuso,pagoumbarrildacervejaquevocêquiser.—Agorasim!—falouAelian,animado,esfregandoasmãos.—Senãoédevespa-peluda,doque

é?—EleapontouparaassetasdebestadispostasnumatiradecouronoantebraçodeVenoma,queafastouamãodelecomumtapa.

—Vocênãoiriaacreditar.—Medáumapista!—Vocênemtentoudireitoejáquerumapista!Para akaorsh, estavabemclaroque eleshaviamse atracado emalgummomentodanoite

anterior.Aassassina—eRaazitambémforapegadesurpresacomaverdadeiraidentidadedaatéentão “Garota Sinistra” — nãomudara nada de sua expressão corporal, mas Aelian, em geraldiscreto,andavaexpansivoecomgestosquenãoeramseus.AtéBicofino—pousadonoombrodo dono e incomodadíssimo como qualquer ave se mostraria debaixo da terra — pareciaperceberqueorapaznãoestavaemseuestadonormal.Deviafazerumbomtempoqueelenãosedeitavacomalguém,pensouela,sedivertindo.

Naquele momento, estavam debaixo do Balde e haviam combinado com Harun de seencontrarememcertopontodotúnel.Raazitentavadecoraraspassagens,maserabemdifícil,mesmoseorientandopelaslinhasdoteto.

—Cocatriz?—Não.—Shurala?—Não.—Basilisco-d’água.—Não…—Desisto!—Tábom,umapista—disseVenoma,levantandoasmãos.—Euextraíaovenenodeumúnico

animalnoPântano,eagoranãopossomais fazer issoporcausadoFestivaldaMorte,e—elaolhouparatrás,sorriuparaRaaziecompletou—porcausadela.

—Vocêextraíavenenodaquelacoisacomcaudadeescorpião?—perguntouRaazi,parecendoespantada.

—Temosumavencedoradobarrildecerveja—falouVenoma.—Esperaaí,elanãoestavajogando!—Separardereclamar,douumgoleavocê—disseRaazi,piscandoparaVenoma.—Queseja—disseAelian,coçandooqueixo.—Mascomovocêextraíavenenodaquilo?—Eudistraíaobichodandoarmasenferrujadasparaelecomerenquantosubianumaárvore

comtenazesevidrosespeciaisecolhiaoveneno.—Vocêfazparecersimples—resmungouAelian.À frente,Anna levantouamãodireita, ea fila foiparandoaospoucos,emumabifurcação.

Harunvinhaporumdeles,segurandoumavelae,Raazipensououvir,murmurandoalgo.Ziggyperguntouparaondeestavamindo,eAnnapediuquetodosaacompanhassemmaisum

pouco,caminhandoàfrentecomHaruneparandodiantedeumaparededeblocosdepedracheiadelimo.Osdoisficaramapalpandoaspedrasediscutindocomespantoporalgunsminutos,atéque algumas semoverame revelaramumapassagem.Quando a porta se abriu, uma lufadadeventopegoutodomundodesurpresa,inclusiveatirandoaochãoumgrasnanteBicofino.

Umfeixedeluziluminavaumtabladoelevadosobrealgunsblocosdepedrabruta.Emcimadaplataforma,engrenagenscordecobre,alavancasequatrocorrentesqueseestendiamaperderdevistaparaoalto,numtúnelverticalqueparecianãoterfim.

Raazi,boquiaberta,tentavaselocalizareparecianãoacreditarqueestavamnaquelelugar.—EstamosdevoltaaoPalácio?Porquê?Harunpareciatãosurpresoquantoela.—Seomeusensodedireçãoestivercerto,nãoestamosnoPalácio.—Elepareciamuitomais

brando que na noite anterior, e soltou um assovio. — Eu só não sabia que ainda tinha acapacidadedeficarsurpreso.

—Nãoestouentendendonada—disseAelian,comumpoucoderaiva.—Nemeu—falouZiggy,feliz.—Láemcimaeuexplico—disseAnna,comumolhardecumplicidadeparaVenoma.Elasubiu

noelevador,parandobemdebaixodapartemaisfortedofeixedeluz,defrenteparaogrupo.—Vamos?

Apesar do cansaço visível,Harun fazia declarações de amor para as engrenagens a cada voltasilenciosaqueacorrentedavanaroldanadoelevadordosseusantepassados.OtransporteeramaisrápidodoqueRaaziesperarae,segundooanão,aguentariaenormescargas.

Anna informouqueoelevador iaatécertopontoequedepoisaindaserianecessáriopegarvelhas escadas ocultas— com degraus feitos em segredo por anões durante a construção dolugar,ouseja,namedidaparaindivíduosdepernascurtas.

O único tranco que o elevador deu foi na hora de parar, o que fez toda a plataforma

chacoalhardeumamaneiraameaçadora.Harunfoioprimeiroadesembarcar,passandoasmãospelas paredes do corredor à frente e elogiando cada detalhe que encontrava. Raazi tambémestavasurpresaemverqueumaestruturaclandestinapodiasertãocomplexaecaprichada.FicouimaginandoosesforçosparaosconstrutoresconseguiremdesviarmaterialdasobraseocultarosplanoseasplantasdoprojetooriginaldoprédioaprovadoporUna.

Harunparouna frentedeumaportadepedrade tamanhonormal, esculpidadeumaúnicarocha.Havia um símbolo gravado logo acimada aldravaprateadaqueparecia ter sidopolidapoucashorasantes.

—Jáviessesímboloemalgumlugar—falouAelian.—Enãofazmuitotempo.—Nafiveladomeucinto—respondeuVenoma,atraindoaatençãodetodosparaacintura

dela.—Verdade!—disseorapaz,demonstrandomaisempolgaçãodoqueasituaçãoexigia.Venomarevirouosolhos.—Então,esseéoesconderijodaprocuradaVenoma?—perguntouRaazi,percebendoqueo

símbolosepareciacomsuainicial.Aassassinabalançouacabeça.—Sóencontreiessafivelanomeiodascoisasaídentro.Foiumacoincidência.Anna se aproximou da porta, colocou a mão em cima do símbolo e esperou por alguns

segundos.Quando todos emvolta já estavamachandoquenadaaconteceria, aporta se abriucomumclique,ecentenasdecandelabrosseacenderamaomesmotempodo ladodedentro.Apariçãofoilogoentrandonolugarqueserevelavamaisacadapontodeluzqueseconflagrava.

— Me desculpem por todo o mistério — falou, abrindo os braços para a direção de seusconvidados.—Mascreioquevocêsprecisavamverestelugarenãoouvirsobreele.Sejambem-vindosaoCoraçãodaEstátua!

Raazinãosabiaparaondeolharprimeiro.Deinício,pareciaumlugarcheiodecorredores,mas,naverdade,eraadisposiçãolabiríntica

dasmuitasestanteseprateleirasquecriavaessaimpressão.Pergaminhoselivrosencadernadosemcouro—todossemprebemlongedaschamasdoscandelabros—eramamaioriadositensàprimeiravista,masasparedesestavamrepletasdearmas,escudos, capacetes, cotasdemalhaepeçasdearmadura.Haruncorreuaoverumescudo redondocombordasafiadaseumgrandesímbologravadonasuperfície.Otetoerabaixoecurvo:pareciatersidopensadoparaanões.

—Oqueéisso?Umarsenal,umdepósito…?—perguntouRaazi,vendoZiggytirandoopódeumaflautacurtaeespirrandoapóstestá-la.

Annaassentiu.—Umpoucodecada.Seráanossabasedeoperaçõesparaamissãoqueinutilizaráosistemade

Untherakpoucoapouco.Tambéméum lugarondehistórias jamaiscontadaspermanecemasalvohámilanos.—Elaapontouparaumaimensacoleçãodepergaminhos.—Recomendoqueváatéaparededooutroladodestesalão.

Raazi passou por um absorto Aelian, que abria um dos livros encadernados, colocando-osobre uma mesa de pedra e balbuciando as palavras conforme as lia. Harun dava risadasexpansivas, gritando “Encontrei!” enquanto passava os dedos pelos machados de anões nasparedeseemsuportespróximosàsestantes.Venomapermaneciapertodaporta,observandoatodos de braços cruzados. Ziggy havia parado de espirrar e enfim conseguia tirarmúsica doinstrumento.Raaziolhoualarmada,dosinfoparaAnna,apontandoparacima.

—Ninguémpodenosescutar?Digo,nãoreverberaparaopostodevigianosolhosdaestátua?—A acústica é perfeita, o som é isolado de umamaneira que construtores de hoje emdia

jamaisconseguiriamfazer.— E de qualquer jeito eu me surpreenderia se houvesse alguém nos olhos da estátua —

acrescentouVenoma.—Osvigiassóvãolápradormirouusarcarvão.RaaziatravessouoCoraçãodaEstátuaapassoslentosecontemplativos.Viuumaimagemde

uma mulher humana, esculpida em mármore branco, e pensou que nunca tinha visto umaesculturaquenãofossearepresentaçãodeUnaeseusfeitos.Viutapetesdetecelagemkaorsh,pequenoselongos,algunsenroladosearmazenadosemprateleiras,outrosestendidosnochão.Tinhamcoresvivas, permeadosporornamentosdourados,prateados e algunsatévermelhos,como se rubis proibidos tivessem sido transformados em fios para se juntar àquelas peçasmaravilhosas.

Havia mais passagens para outras salas ligadas por corredores estreitos, mas Raazi lutoucontraaprópriacuriosidadeparanãodispersarsuaatençãoeconseguirchegaratéooutrolado,comoAnnalhehaviadito.

Então,elaencontrou.Alémdahabilidadecomtecelagem,oskaorshstambémeramfamososporseutalentocom

desenho,maselanuncatinhavistonadaalémdosretratosfaladosdecriminososefugitivosquese espalhavam nos Assentamentos. Aqueles quadros, porém, eram como cenas congeladas.Memóriascapturadaspelospincéisdealguémeenquadradasemmolduras.Aprimeirapinturaque ela viu era de homens de mantos vermelhos, sentados ao redor de uma mesa de pedraredonda, muito parecida com aquela em que Aelian estava naquele momento. Eles eramhumanos,carecas,esedebruçavamsobreumpergaminho,segurandopenaseparecendodebateralgoimportante.Aperfeiçãonasexpressões,nasrugas,nocabelo…

Outroquadromostravaumsinfotrocandoascordasdeumalaúdecombraçomaiscompridoque o normal. Estava compenetrado, sentado num tronco enquanto o sol brilhava sobre aMuralhadaBordaaindaemconstrução.

Umamulhersorrindo.Criançasbebendoágua.Umsenhoreumasenhorakaorshsegurandolançasnafrentedeumaplantaçãodecenteio.

Raaziviaaspinceladasdatintaaóleoeconseguiaimaginarosmovimentosdopulsodequemtinhafeitoaquelasimagens.

Sónãoenxergavamelhorpoisseusosolhosteimavamemseencherdelágrimas.

HarunpegavaaquelasarmassecularescomomesmozelocomqueseguravaÔnix.Comotemoreaadmiraçãocomquehaviaseguradoseuprimeirofilho…

—Éumbeloarsenal—disseBantu, interrompendono inícioaespiraldepressivaemqueonetoseviaaoselembrardeMalaquite.—MasaindanãoéaÚltimaArmaduraOkodee.Procurepelosnossosadinkras,vamos!

—Estouprocurando—sussurrouoanão,colocandoasarmasdevoltaaolugar.—Dequalquermaneira,grandepartedestasfamíliasemalgummomentosemisturouànossa.

—Vocêporacasoquermeensinarausarumcinzeltambém?—perguntouBantu,irado.Harunnãoentendeu.—Oquê…?— Não, só pode ser! Porque se quer me explicar como as famílias e os clãs de anões se

misturaram,talveztambémqueirameexplicarcomoseesculpeumblocodegranito!Bantu continuoupraguejando, impedindooneto de escutar as reações dos companheiros

vivosespalhadospeloCoraçãodaEstátua.Ignorouofantasmafuriosoresmungandoaoseuladoenquanto continuava andando, procurando por algumpadrão ou símbolo que remetesse aosadinkrasdosOkodee.

Então, nomeio de vasos e um sem-número de ferragens empilhadas, viu um reservatórioquadrado,praticamentedoseutamanho,talhadocomtécnicasancestrais—antigasatémesmoparaBantu.

Notandoagrossacamadadepoeira,Harunpassouaabrirasfivelaseospinosdesegurançadacaixa;foiquandosedeucontadequeseabriamparafora.

Bantusecalouassimqueasportasseabriram,masHarunnãooescutariamesmoseovelhocontinuassefalando.

Absorto, o anão tocou o conteúdo da caixa, a ponta dos dedos calejados percorrendo opeitoral demetal e os adinkras gravados nele — osmesmos signos que também estavam noberçodeseufilho.Oelmo.Oescudo.Acotademalhafeitadeanéisescuros…Harunsesentiaconectadoatudoquehaviacaminhadoantesdelesobreaterra,comoseescutassecadapassodadoporseusancestrais,aomesmotempo,juntocomasbatidasdocoração.

—Encontrei!Pelosnoveclãsepelasimetriaancestral,euencontrei!AÚltimaArmaduradosOkodee.

Aelian queria ler tudo o que encontrava à sua frente,mas, aomesmo tempo, não conseguiaprestar atenção em nada, tamanha a empolgação de poder deitar os olhos em tantosmanuscritossemprecisarfazerissoàsescondidas.

Otextoqueele tinhaemmãosnaquelemomento falavasobreoutras terras,outrospovos.Falavadecidadesqueerambanhadaspelomareoutrascercadasdeágua,demontanhasnevadasquejamaisperdiamomantobrancoemsuasencostas,depovosquedormiamembarcosequasenuncacolocavamospésemterrafirme,anãoserparapilharesaquear.

—Euqueria saber ler—disseZiggy, sentando-se ao ladodo rapaz e arrancando-odaquelesmundosfantásticos.

Elegiravaumaflautafinaentreosdedos,enquantoaoutramãoesfregavaodedoindicadornuma das letras do pergaminho amarelado. Aelian puxou o papel para si com cuidado,procurandosereducado.

—Bem,possotentarensinar.Emtroca,vocêmeensinaatocarumamúsicacomaflauta.Oqueacha?

—Conheçoalgumasmelodiasqueatéumalesmaconseguiriaaprender.Aelianarregalouosolhos.—Certo…—Eoqueestáescritoaí?—Hum.Pelopoucoqueli,faladeoutrascidades…emtemposantigos—disseAelian,confuso.

—Ou talveznemtãoantigosassim.Annamencionouquepassoupor lugares inimagináveis…FicomeperguntandoquantascoisasUnaescondeudenós.

ElefezumresumoparaosinfodetudoquelerasobreasterrasalémdeUntherakeopoucoquehaviaabsorvidodaqueleturbilhãodeinformações.Ziggypareceupensativo.Aelianestavaquaseretornandoàsualeituraquandoopequenodisse:

—Sabe,nós,sinfos,temosaterraRaiz.—OSegundoBosque,vocêquerdizer?—Não,não.—Elecruzouaspernasnacadeiraondeestavasentado.—OSegundoBosqueé

ondenosderampermissãoparaficar.Masexisteumlugarondepodemosviverparasempre,criarraízes.NãooparasemprefalsodeUna—falou,comumgestodisplicentedemão.

—Umparasempredeverdade?Imortalidade?—Atémelhor.Porquevivereternamentenomesmocorpodeveserhorrível.Semofensas.—

Ziggydeudeombros.—Masnós temososnossosciclos.Nascemosdeumaárvore.Secamos.Vamosparaaterra.Nossacarneétragadaporela,eassimdamosorigemaoutraárvore,quedaráorigemaoutrosinfo—elegiravaumdedoindicadoraoredordooutro—e,nofimdascontas,somossemprenós,voltandoevoltando…oraárvore,orasinfo.Sempreconectados.

—Deve ser bem triste quandoUna toma alguma parte do bosque de vocês e arranca umaárvore.

—É,sim.Nósnossentimoscomoseestivéssemossendoexpulsosdonossoprópriociclo.Aárvore que nos deu a vida, que nos forneceu amadeira para o nosso primeiro instrumento…queimada ou derrubada a golpes de machado. — Ao dizer aquilo, Ziggy pareceumurchar detristeza. Aelian queria mudar de assunto, para um que não deixasse o pequeno tão abatido.Porém,antesquedissessequalquercoisa,orostodosinfofoiseiluminandoaospoucos.—EmRaiz, issonãoaconteceria.Sabemosqueumdiavamosencontrá-la e começardenovo.Nadainterromperia o ciclo. Campos verdes cem, duzentos, mil vezesmaiores que o bosque ondeficamosconfinadosaqui,dentrodemuros…Frutasfrescasotempointeiro!Águasemprelimpa,comodeveriaser!NãoesselíquidocomgostodefuligemdeUntherak!

—Parecebom.Gostariadeacreditarnasuaterratambém.—Nossaterra!Suaraçaébem-vindalá,mesmocomessespelosdebaixodosbraçosquevocês

têm.Ziggylevouaflautaàbocaesoproualgoquepareciaumtrinardepássaro.Bicofino,daquina

daprateleiraonderepousava,respondeuàmelodiacomumgrasnarirritado.—Achoqueelequerirláparafora—disseAelian,chamando-oatéseupulso.Ofalcãoplanou

atéamesadepedracomsuavidade.OlugarnãotinhanenhumajanelaouaberturaparaqueeleliberasseBicofinoparadarumavoltinhanoturna.E,dequalquerforma,nãoarriscariaqueumguarda visse um falcão saindo da estátua de Una. — Ele fica inquieto em lugares fechados eapertados…eeutambém.

— Sei uma melodia que pode acalmá-lo — falou Ziggy, soprando algo mais grave, que separeciacomumpiotrêmulodecoruja.

Bicofinocoçoucomobicoapartedebaixodeumadasasas,eentãopareceuirseacalmando,fechandoosolhos.Aelianriu,impressionado.

—Eledormiubemrápido!Eédifícilvê-loassim,comosdoisolhosfechados.— É, esse tipo de falcão pode dormir com um olho aberto. Sempre alerta— disse o sinfo,

fazendocarinhoemBicofino,quenãomexeuumapenasequer.—Sabiaqueelesconseguematédormirvoando?

—Émesmo?—Sim!—Vocêparececonhecermaisdomeubichoqueeumesmo.—Aelianestavaimpressionado.—Mesmodurante aminha servidão, tenhomais contato comanimais e plantas que você,

isoladonumatorre.Masnãosejaporisso.—Ziggylheestendeuaflauta.—VouensinaramelodiaqueusoparachamaroThrul.Aíficamosquites!

—Nãosei.—Aelianhesitou,encarandooinstrumentocomoseelefossealgoperigoso.—Elevaichegarcorrendodaquelejeito,pateandoochão?

—Naqueledia,oThrulestavaassustado.Emgeral,eleémaisdócil…Vai,colocaessededonesseburaco.Esseoutroabaixa,nãoprecisaficarcomelelevantado.Não,abaixaessetambém!

—Achoquenãolevojeitoparaisso.

— Você aprende fácil, são só três notas… Deixa a boca mais relaxada e assopra de leve…Caramba,foihorrível.ParecequevocêestáreproduzindoosomdaalegriaedaesperançadeseafogarnaMácula!

Apesar do começo desastroso, Aelian levou apenas dez minutos para conseguir tocar amelodiadeThrul.Aindaestavaumpoucomecânica,semalevezaqueossinfosconseguiamdaràsnotas,massemdúvidaeraumamelodia.Ziggycorreuatéosinstrumentosantigosevoltoucom uma espécie de flauta mais grossa, com um bocal parecido com o de uma flor. Oinstrumento fazia um som mais potente que a flauta nas mãos de Aelian, mas não menosdelicado. Humano e sinfo tocaram a mesma melodia, sendo que Ziggy improvisava outrasescalasenquantooex-falcoeiromantinhaabasedetrêsnotas.Venomaseaproximoudamesapara ver o espetáculo instantâneo que havia se formado, e depois Anna e Raazi. Haruncontinuavalonge,cadavezmaismaravilhadocomaspeçasqueiadescobrindo.

—Muitobem,Aelian!Vocêtemtalento!—…Ah,depoiseuéquesoumentiroso.—Estoufalandosério!—Ziggysorria,repousandooinstrumento.—Bom,seunomejáébem

musical.AelianOruz.A-E-I-O-U.Todasasvogaisnonome,naordem…sóessesegundoAqueestraga!Apostoqueissoajudouvocêaaprenderaler,não?

—Muitosagaz,pequeno—disseAnna,apoiando-senamesa.—Vocêvaiadorarsaberqueumdos povos queme acolheu duranteminha caminhada pelaDegradação tinha a capacidade dearmazenarmelodiasempequenascaixas.

O sinfo ficou boquiaberto, imaginando como funcionaria aquele mecanismo. AnnaaproveitouparaseaproximarumpoucomaisdeAelian.

—Sãobelosrelatos,não?—Incríveis—concordouele.—Eomelhordetudo:nãosãosobreUna.Imaginoqueporisso

tenhamsidobanidos.—Naverdade,aCentípedeordenouqueesses registros fossemqueimados.Acreditoqueos

encarregadosdedestruiressascoisasjátinhamconhecimentodoCoraçãodaEstátua.—Annaapontouparaalgunsbarrispróximosaoarcoquelevavaaoutrosalão.Eramcercadeumadezenadeles,manchadosdevermelhoporfora.—Todaaquelatintatambémdeveriatersidodestruídaeveiopararaqui.

—Aquiloétinta?—Ondemaisvocêachaqueeuconseguiriapigmentodacorproibida?—Elanãosecounessetempotodo?—Foram feitas apartirdeuma fórmulakaorshque foiperdidano tempo—disseRaazi.—

Dificilmentedescasca,epermanececomonovasearmazenadadentrodebarrisdamadeiracerta.Échamadade tintaeterna, apesardeninguémmais ter ideiade como fazerumcorantedurartantotempo.—Amulherse levantouparaanalisarosbarrismaisdeperto.—Nomáximo,seifazercomqueatintanãosequeporalgumasdécadas…

—Bem,senãomeengano,existemalgunsregistrossobre tintaeternanaquelaprateleira—disse Anna, se levantando. — Já que você e Aelian não precisam voltar para os seus dias deservidão,ambosterãoumbomtempoparalerosdocumentosjuntos.Masagora—elaapontouparao outro salão, alémdos barris de tinta—, tenhooutras coisas que gostaria demostrar avocês.

Raazi e Ziggy acompanharamAnna,mas a kaorsh olhou para trás ao perceber que Aeliancontinuavasentado.

—Vocênãovem?—Querolermaisumpouco,senãoseimportam.Raazi aquiesceu. Anna chamou por Harun — que devia estar absorto na seção onde se

encontravam os artefatos de anões —, e assim Aelian foi deixado em silêncio, os cotovelosapoiadosnapedrafria.

Aelianvoltouaatençãoaopergaminho,mas,apóscercadequinzelinhas,percebeuquenãohaviaabsorvidonadadoquelera.Osolhoscorreramotextodetrásparaafrente,procurandoondetinhaperdidoofiodameada,quandopercebeuquenãoestavadaquelejeitoporcausadaleitura.

Eraporcausadosbarrisdetintavermelha.Seusolhoseramatraídosdevoltaparaeles,nãoimportavaoquantotentasseseconcentrar

nosrelatos.Setinhamatinta,ondeestáoquefoiescritocomela?Aelian foi até a prateleira, procurando pelos pergaminhos escritos na cor proibida. As

cicatrizesemsuascostasformigavam.

21

AnnaprecisouchamarHaruntrêsvezesantesqueeleaescutasse.Oanãofalavaconsigomesmo,bastanteeufóricocomtodasasdescobertassobreseusantepassados.Apenasquandosoubequehaviaumapeçaanãnossalõesseguinteséquefoiatrásdogrupo.

—Peçodesculpaspelabagunça láatrás,muitascoisasestãoabarrotadasdequalquer jeito—falouAnna,tomandoafrenteeentrandonumsalãomenorqueoanterior,massemmobíliaoucoisasestocadas.Tinhaopé-direitoumpoucomaisaltoeerabemiluminadopeloconjuntodecastiçaisqueseacendiamcomaaberturadaporta.Algumasarmasestavamdispostasnasparedeseopisoeraliso,refletindoobrilhodofogo.—Reorganizeimuitascoisasdesdequedescobriessasala.Separei livrosepergaminhosporassuntoe época.E limpei e esvaziei esse salãoparaqueservissecomoumespaçodetreino.

—Treino?Dequê?—perguntouHarun,comcertaacideznavoz.Elepareciaansiosoporvoltaraescarafuncharasantiguidadesdeseusantepassados,comose

todoorestantedoCoraçãodaEstátuafosseumaperdadetempo.Annaassentiu.—Luta.Demãoslivres,comarmas,práticadetiroaoalvo…—Eunãoachoqueprecisoaprenderalutar—falouoanão,taxativo.—Vocêsdevemaprenderalutarunscomosoutrosparaquepossamsaberoquesãocapazesde

fazerjuntoseindividualmente.Precisamsertemidos,precisamsertodosAparição.TransformaroboatodasruasnoterrordoPalácio,atéqueelestropecemnasprópriasmentiras—respondeuAnnasemseabalar,arrumandodoisbastõesdemadeiranossuportesdaparede.—E,paraisso,conheceraslimitaçõesdequemestácuidandodasuaretaguardapodeseradiferençaentreverumfilhocrescerouverumalançaatravessandoopeitodele.

Harunapertouos lábios,eRaazisepôsa imaginarseAnnatinhadadoaquelesexemplosdepropósito.

—Vocêstambémvãopoderdormirnessesalão—continuouAnna.—Venomaeeutrouxemosmantas.

—Eaqueleoutro?—perguntouZiggy,apontandoparaocômodoapósapróximapassagem.—Euodeixeiporúltimo—disseela,sorrindoechamando-oscomumgestodecabeça.—Não

liguemparaocheirodeálcool.Trouxetodososdestiladosparacá.Decidiusarestelugarcomoumasaladeestratégia,jáqueseriaimpossívelmoveressapeçaparaqualqueroutrolugar.

Apeçaàqualelasereferiaocupavametadedorecinto,queeramenorqueosanteriores,masquepoderiaabrigarcercadecinquentapessoasseestivessevazio.LáseencontravaumaespéciedeminiaturadeUntherak,bastanteprecisa,montadasobreumaplataformadepedraelevadaacercadeummetrodochão.RaazieZiggyseaproximaramdabeirada,semconseguirdizernada.

EraincrívelteràfrenteumavisãodecomoeraUntherakmilanosantes.Eomaisassustadoreraquenãotinhamudadomuito.

Monocromática,todafeitaemgranitoacinzentado,aimagemmostravaemdetalhesprecisosoPoleiro,oPalácioeasMuralhas,tantoadoMioloquantoadosCamposExteriores.AestátuadeUnaseelevavanomeiodamaquete,epelaprimeiravezRaazipôdecompararorostodeAnnacomumdosdasoberana,ladoalado.

Harun,porém,nãoreagiucomomesmoarroubosilencioso.—Éacoisamais…mais...—balbuciavaele,deolhosarregalados,enquantoseaproximavacom

tanta cautela da Untherak em miniatura que parecia que ela era feita de areia e poderiadesmoronaraqualquerinstante.—Issoémelhorquequalquercoisaqueeupudesseencontrar…

Raazi não entendeu e olhou para Venoma, que fez um gesto rápido com o indicador,apontandoparaHarun.

—Coisadeanão.Claro, pensou ela, entendendo enfim.Os antepassados dele. Ou os anões tinham planejado

Untherak,ouaquiloeraumaespéciedecópiaparaestudoemcasode revoltaou tentativaderebelião.

—Imagineiquevocêfossegostar—disseAnnaparaHarun.Oanãonemsequerpiscava,olhandoparaapeça.—Vocês não fazem ideia do que isso significa— falouHarun, levando asmãos ao cinto e

tirandoumaestacadeferroeseumartelo.Ziggy demorou a entender o que ele estava fazendo, até que Harun apoiou a ponta do

instrumentosobrearéplicadatorredevigiadeumdosportõesdosCamposExteriores.RaazieVenoma,quetinhammaispresençadeespírito,seadiantaramparasegurarobraçodo

anãoqueerguiaomartelo.Noentanto,eleeramaisfortequeasduasjuntas,e,porfim,golpeouatorreemminiatura,querachouaomeio.

—Porquevocêfezisso?—gritouRaazi,inconformada,levandoasmãosàcabeça.Qualeraopropósito de ficar com os olhos brilhando por encontrar uma relíquia de sua raça e depoisdestruí-la?

Venomaseafastou,olhandoparaoburacoabertonaréplicaenquantoumacascatadeareiasederramavanochão.

— Pensei que isso significasse muito para você — disse Ziggy, sem parecer nervoso ouassustado,apenasintrigado.

Annaobservavaumpoucoatrás,debraçoscruzados,demonstrandoaindamenosemoção.—Sesignificamuitoparamim?—perguntouHarun, largandoomarteloeaestacasobrea

maquete.Eleapagouasvelasdocastiçalmaispróximocomapontadosdedos,umaauma, edepoisseabaixounolocalemqueaareiaseamontoava.—Não,miúdo.Issovaialémdemimoudaminharaça.—Ohomemselevantou,segurandonapalmadamãoumpunhadodoqueZiggytinhapensadoserareia.

Noentanto,aquelepódouradonãoeraareiacomum.—Pólvorade ouro,meus amigos— anunciouo anão comum sorrisoquepareciamais de

loucuraquedealegria.—Significamuitoparanós.

—EssaUntherakzinhaestácheiadepóexplosivo?AvozdeZiggyecooupelosalãoenquantoAnnaentregavaaoanãoumrecipienteparaque

guardasseapólvoraderramada.—Muitomaisconcentradoquepólvoracomum.Foiissoquepermitiuqueamaiorpartedo

Palácio fossemoldadanapedra—respondeuHarun.—Existemhistóriasdeanõesqueabriamtúneis em montanhas com pólvora de ouro. Sempre foi de produção, armazenamento emanuseiodifícil…Umatradiçãoquenãocontinuoupoisnossaraçanãogostadeterpartesdocorpoincineradaseexplodidas.

—Achoquenãoqueromaisdormiraqui—sussurrouZiggy.—Nãopensei que ainda fosse capazdeme surpreender comoCoraçãodaEstátua— falou

Anna,caminhandoao redordosalãoeapagandoo restantedasvelas,deixandoapenasamaispróximadoarcodeentradaacesaemergulhandoolugarnumapenumbraagradável.Emseguida,parou ao lado de uma pequena adega empoeirada.—Ah, sim. Aqui também temos destiladosenvelhecidosematuradospormilanos,entãosugirotercuidadocomessasgarrafas.

Harunparouderecolherapólvoraeolhouparaaadegacomosolhosbrilhando.—Espera—disseVenoma.—Vocêvaibeberisso?Temmilanos!Euestavapensandoemusar

comovenenonasminhassetas!—Masesseachadomereceumacomemoração!—bradouHarun,seadiantandoatéaadega,

tirandoarolhadeumadasgarrafascomdificuldadeecheirandoogargalo.—Hum…envelhecidopormilanos!Quantaspessoasjátiveramesseprivilégio?

—Nãosei,porquequembebeunãoficouvivoparacontar?—zombouVenoma.—Euvoutomaroprimeirogoleemostrarparavocêsquenãotemperigo.—Adorariaacompanhá-los—disseAnna,olhandoparaaréplicadoUnificado.Harunnotou

queelaencaravaoPalácio.—Masprecisofazeralgoaindahoje.—Voupegaraminhabesta—falouVenoma,seadiantando,masAnnaapoiouumadasmãos

noombrodajovem.—Nãoseránecessário.—Temcerteza?—perguntouaoutra,franzindoassobrancelhas.—Absoluta.Aproveiteparasedivertirumpoucohoje.—Eujámedivertibastanteontem,possomataralguémhoje.Annariuefoiseafastando.—NãoseesqueçademostrarparaelesaoutrasaídadoCoraçãodaEstátua.

— Não quer nem um golinho? — gritou Harun para as costas de Aparição, emendando aperguntacomumagargalhada.

Elaapenasacenouantesdesairdosalão.—Bem,euvouaceitar—disseRaazi,aproximando-sedasgarrafase fazendoumacaretaao

cheiraraquelaqueoAutoridadeabrira.Ao lado de Raazi, de braços cruzados, estava Bantu Okodee, observando o neto e não

podendoserobservadopormaisninguém.HarunpensouemÔnixeCoraepensouque,emvezdeficarbebendo,deveriavoltarparaaVilaAparapassarasúltimashorasdoLouvoraoladodeseusentesqueridosvivos.Osorrisodoanãosedesfez,masumapareceunorostodofantasma.

—Vocêencontroumuitomaisqueumarelíquiadosnossosantepassados.HonrouonomedosOkodeeeapeledosnossosantepassados—disseoavô,parecendoorgulhoso.—Aproveiteanoite,meuneto.

Harunabaixouacabeçaefechouosolhos.—Obrigado,meuavô.—Oquevocêfalou?—perguntouRaazi.—Avô?Harungaguejou.SeusolhosfugiramparaondeBantuestava,masoespectrohaviasumido.—Sómepasseagarrafa.

22

Aelian nunca tinha visto uma caligrafia tão bonita e floreada. Ele sabia que sua letra era umgarranchomaisenroladoqueosarbustosespinhososquefloresciamnosGrandesPântanos,mastambémsabiaqueaquiloeramaisdoqueesperadoparaalguémquepraticamenteaprendeualereaescreversozinho.

Todososregistrosestavammarcadoscomoanodesuaescrita—ano14daEradosFilhosdaDegradação,ano42daEradosFilhosdaDegradaçãoeassimpordiante—,maspoucosestavamem bom estado de conservação, diversos estavam rasgados. Alguns eram apenas fragmentossoltos.Eradifícilassimilarostextospegando-ospelametadeouapenasexcertos,masdavaparaperceberqueeram…pessoais.Diferentesdosrelatosfriosquepontuavamosfeitosdasoberana,de maneira concisa e direta. Aelian bateu os olhos numa linha que falava sobre dezenas demortosnaquedadeumandaimeduranteumaobrademanutençãodaestátuadeUna.Namesmahora,orapazselembroudeJaenniesentiuaangústiaqueexperimentavasemprequepensavanopequeno. Aqueles textos em tinta vermelha eram repletos disso, como se alguém quisesse selivrardasensaçãodeimaginaradoralheiacolocando-asnopapel.

Talvezescreversobreosmeussentimentostivessemeajudadoanãomesentirtãomal,pensou.Orapazsentiaumsonoestranhodebruçadonaquelashistórias.Ascicatrizesescurasemsuas

costas latejavam,mas, em vez de incomodá-lo, pareciam apenas empurrá-lo para um estadomenosalertaacadapulsar.

Bocejou, lacrimejou, viu as linhas vermelhas duplicarem através de olhos marejados.Observounúmerosentrandoesaindodefoco,masodocumentopareciaserdoano215daEradosFilhosdaDegradação.Eentão—semsaberseo textoera tãobemescritoqueo faziavercoisas ou se era apenas sua imaginação dividida entre uma sala na penumbra e omundo dossonhos—,apósumapiscadaprolongada,Aelianseviunumrecintodiferente.

E,aomesmotempo,familiar.

Virou-seaospoucos,tentandodescobrirdeondese lembravadaquele lugar.Achouarespostaempoucossegundos.Haviamaisvelasearchotes,enenhumakaorshousinfotorturados,mascomcertezaeraasalaquetinhaespiadonapassagemsecretanodiaanterior.Acenaestavamaisclara, ediversaspessoas sedebruçavamsobre livrosepergaminhoscompenasnasmãos.Elasusavamtúnicasvermelhasepareciambastanteconcentradasnoquefaziam.Houveumtempoemque o vermelho foi permitido em Untherak, então, constatou Aelian. Ao pensar nisso, sua

concentraçãoe,porconsequência,a imagememvoltacomeçaramadesvanecer.Elepercebeuquequantomaisdeixavadepensaremsi,maisfácilvisualizavaaquela…lembrança?

Todososhomensetodasasmulheresdetúnicavermelhapareciamhumanos,deváriasetnias.Cadaumestavasentadoaumamesa,dispostas ladoa ladoedivididasemduas fileirasporumcorredor.ACentípededesfilavaporaquelecaminho,devagar,asmãosescondidasnasmangasdasvestes,osrostosocultos,osmesmosmantoscinzentos.Aprocissãoparavanumamesaouemoutra,oCabeçaseinclinandosobreosmanuscritosdosescribas.Contudo,elenãooslia.Eramaiscomoseestivessefarejandoopapel…Não.Asletras!Elespodiamlercomoolfatooualgoassim,Aelianpercebeu.

Acenacomeçouaseesvanecerdenovo,eorapaztentouseesquecerdesimesmo.Olugarsetornou um borrão, mas antes de se desfazer por completo Aelian conseguiu ver que ostornozelosdetodososquevestiamtúnicasvermelhasestavamacorrentadosepresosàsmesas.

Ocenáriomudou.Maisluz,menosespaço:aSaladoTrono.ACentípedeestava lá também,comoumacortinacinzentanos fundosdasala.Una,altiva,

olhavaparabaixo,ondedoisescribasseajoelharam,e,emseguida,foramconduzidosporÚnicosatéduasmesascolocadasdiantedeumagrandepiscina retangulardeáguaquente.Suaspenasestavam dispostas ao lado de pergaminhos negros e dois vidros de tinta dourada. Um dosescribaseraumidosonegro,esuapenatrabalhavacomrapidezconformeasoberanaditavaumdecretoqualquersobrealgumassuntooficialquedeviatersidoesquecidoemalgumaprateleiradabibliotecadoPalácio.Ooutroescribaeramais jovem.Seurostoeraangulosoetinhaumamarcabrilhantedequeimaduraantigaportodoo ladodireito.Suasmãos fortes,quetambémexibiamoinegáveltoquedofogo,detãoferidaspareciamembrutecidasdemaisparaumofíciodelicadocomoacaligrafia.

Elenadaescrevia.SeusolhoscinzentoseramsóparaUna.Perdendo-senasdobrasdomantoluxuosodadeusa,

bebendo cada sílaba que escapava dos lábios pintados com a habitual palidez proposital. Ohomemeraumdevoto,apontodenãoconseguir realizarseuofíciocomapersonificaçãodesuaspreceseseusdesejossentadaàfrentedele.

Porém,umescribaprecisavaescrever.Oaçoiteestalounascostasdohomem,rasgandoomantovermelhoefazendoumfiletede

sangue correr por suas costas. Sem reclamar, ele deixou a pena cair de cima da mesa, e umsegundogolpeveioenquantoeleseabaixavaparapegá-la.Unainterrompeuoqueditavaporuminstante, atéqueo escriba se recompusesse—nãoque elaprecisasse fazer isso.No entanto, asoberanapareciacuriosasobreoquehaviafeitoosujeitoseperderempensamentos.Enquantoisso, o escribamais velho nem sequer levantou os olhos durante a pausa, a pena aguardandomilímetrosacimadoúltimofloreiodouradonopergaminho.

Acenamudouparaumatardeensolaradanumagrandesacada.ATribunadeHonra,masaindasemtervistaparaaArenadeObsidiana.Osescribasaproveitavamosolapinodepoisdedias

trancafiadosnasprofundezas.SuasfamíliasaproveitavamoLouvoraoladodosesposos.Osdoisescribasdavisãoestavamemmeioaosoutros.Daquelavez,ninguémestavapresocomcorrentesnostornozelos.Ohomemmarcadopelofogo—comascostasenfaixadasporbaixodatúnicadevidoaocastigoquesofrera recentemente—brincavacomo filhomodelandoumblocodeargila,próximoaumgrupodequatroescribasquenãotinhamvisitadafamília.Estespassavamotempoescrevendo.

Comtintavermelha.Mostravamoque tinhamescritounsparaosoutros.Sugeriamrimasmelhores.OHomem

MarcadosabiaqueelesnãoestavamescrevendosobreUna.Eaindaporcimausavamumatintaquenãoeraaprovadaparausooficial.Vermelha,comosuastúnicas.

Seu filho, sem perceber a repreensão nos olhos do pai, puxou a barra da roupa dele paramostraracriaturaquehaviamodeladonobarro.Ohomemoparabenizou,distraído,enquantoouviaoqueseuscolegasliamemvozalta.

Falavamsobremaus-tratos.Sobrecomosentiamfaltada luzdosolnosoutrosseisdiasdasemana.Sobrecomoeles,escribassemfamília,sentiam-seregozijadosapenasporpresenciaraalegriadoreencontrosemanalentrepais,mãesefilhos.

Diziam que Una exagerava nas descrições de seus feitos, que exigia que os registroscorrigissemfalhasdeadministraçãodelaedossoldados,paraquetudoparecesseperfeito.

Comentavam também sobre as diversas experiências que a Centípede realizava em anões,sinfosekaorshs—nuncaemhumanos,queeramfracosdemaiseporissomorriamantesmesmoquealgodignodenotafossedescoberto—esobrecomoosescribaseramobrigadosaanotarosprogressos em busca de alguma coisa que pudesse aprisionar alma emente de um indivíduo,comoseservidãoemedonãofossemsuficientes.

Descrever crânios serrados, membros amputados e órgãos vasculhados por tenazes erarevivertodososgritosdedoreagoniaquevinhamdostúneisdosubsolo.Porqueumadeusapermitiaaquilo?

Os homens escreviam sobre a imperfeição de Una, e o Homem Marcado mal conseguiadisfarçaravontadede repreendê-losporaquelasalegaçõesabsurdas.Ela eraadeusaunificada.Jamais falhava, nemmesmoquandopermitia que alguém semachucasse, pois sabia o que eramelhorparaseusservos.

Seufilhoochamouemvão.Haviafeitoumbraçoamaisnohomúnculodebarro,eopaioparabenizousemnemaomenosdispensarumolharparaapeçaenvoltanaquelasmãospequenas.

A cena mudou mais uma vez para o subterrâneo. Os escribas trabalhavam em seuspergaminhosamareladosepretos.ACentípedeentrounorecinto,atraindooolhardoshomensedasmulheresdetúnicavermelha,massemavançarpelocorredorcentralentreasduasfileirasdemesas.DezenasdeÚnicosinvadiramolugardemaneiracaótica,derrubandopapéisepenasearrastandoosescribascomtruculência,desferindogolpesegritandopalavrasdeordem.Apenasumescribanãosofreuomesmotratamento.

Incólumeeconduzidopelosguardasdemaneirapacífica,oHomemMarcadoobservouseusparceirosdeofícioseremlevadosatéaSaladoTrono.Subiramescadasepassarampelosaguão,ondeo filhodelebrincava comoutras crianças.Ogarotoparounamesmahoraaoveropaisendoconduzidoportantossoldadoseochamoucomumavozagudaedesconfiadaqueecoouno salão. O homem fez sinal para que ele ficasse longe da escolta, dando o melhor sorrisotranquilizadorqueconseguiu.Mentindoparaumacriança—acriançadele.

Unaestavadepé,olhandoparaosescribasajoelhadosdiantedotrono.Umdeleschoravaerecebeuumchutedeumabotinadeferrobemnorosto.OHomemMarcadochegouporúltimoe,porordemdolíderdaguarda,permaneceupertodaporta.Outrogrupodesoldadoschegou,àfrentedaCentípede,trazendopergaminhosapreendidosnosbraços:materialescritocomtintavermelha.

Una pediu para que o autor de cada um dos relatos fizesse a leitura do próprio material.Hesitantes,duranteumatardeinteira,osescribascolocaram-sediantedasoberanaerecitaramsuas linhas carmesins frente ao motivo vivo de todas as angústias transcritas. A maioriagaguejavanahoradasmetáforasmaisgritantesequemaiscriticavamogovernodeUntherak.Poucos semantiveram firmesdurantea leitura.Unaagradeceua cadaumdeles, comosenãotivessesidoofendidaequestionadaporhorasafio.OHomemMarcado,aofundo,nãoconseguiaencarar os outros escribas. Diante das portas fechadas da Sala do Trono, ladeadas por doisguardas, ele ouviu toda a leitura encarando ora o piso de mármore, ora a piscina de águasvaporosasàfrente.

Por fim, não haviamais escribas que não tivessem exposto seus textos diante de Una. OCabeçadaCentípedesussurroualgonosouvidosdasoberana,queassentiueordenouquetodososescribas entrassemnapiscina retangular.Eles se entreolharamepareceramnãoentenderaordem.Umaçoite estaloueosÚnicosapressaramos servos.Dessa forma, eles correramparadentrodapiscina.Otecidovermelhodastúnicasflutuavanaáguaquente,eaindaassimquasetodostremiam,abraçandoasimesmosepressentindoopior.

UmÚnico parecia pronto para aumentar a potência da caldeira e ferver os escribas até amorte, mas a ordem para isso nunca veio. Em vez disso, Una pediu que a Centípede seaproximassedabeiradaágua.

—Façam.Amente,aalmaeacarne.Quebremasbarreirasentreelas.Próximoàsportas,oHomemMarcadoviaascostasdetodososescribas,mergulhadosatéa

cintura.OCabeçadaCentípedeestavanoladoopostodapiscina,voltadoparaele,comasmãosparadentrodasmangas,eorestantedoshomensdecinza,emumafileiraperfeitaatrásdele.

Como rostoocultopelomanto,oCabeça tirouasmãosdedentrodasmangas.Apeleerapodre.

Atrás dele, braços surgiram como um leque se abrindo, um leque demãos apodrecidas. OCabeçaestendeuasmãosparaos lados,comoumacruz.Asmãosatrásdelemoviam-secomoumaonda.ArespiraçãodetodaaCentípedeerasincronizada,profundaeruidosa,esobrepujava

atémesmoosmurmúriosamedrontadosdequemestavanapiscina.Osgritoscomeçaramderepente.Teriamsidomenosaflitivosseaáguaestivessecozinhando

os escribas vivos. Porém, algo pior estava acontecendo. As mãos da Centípede dançavamenquanto a agonia preenchia a sala. Una observava, interessadíssima. Os primeiros escribascomeçaramaafundarnaságuas,comoseseusmembrosinferioresestivessem…sedissolvendo?Umlíquidopretocomeçouaborbulharnasuperfície.Nãopodiasersangue.Eraescurodemais.Oúnicovermelhoalieraodastúnicas.

Alguns tentaram fugir da água, os braços agarrando as bordas. No entanto, os guardas osempurravamdevoltacomocabodaslançasecomapontadospés—embora,portrásdoselmosdesuasarmaduras,elestambémestivessemassustados.

OHomemMarcadofechouosolhoseteriafeitoomesmocomosouvidossepudesse.Seustímpanoseramapunhalados,enadapoderiaimpedira lâminaafiadaqueeraogritodealguémperdendoavidamembroamembro,centímetroacentímetro.

Derepente, tudoacabou.OHomemMarcadoabriuosolhoseviuaCentípedeescondendosuasmãoshorrendasdentrodasmangas,contemplandodassombrasdeseuscapuzesoquehavianapiscina.

Umlíquidopreto,semondulações.Eracomoseumespelhoretangulardeobsidianativessesidousadoparalacrarumavala.

EntãooHomemMarcadofoichamadodiantedotrono.Contornou o tanque, os olhos procurando alguma bolha de ar na superfície escura, sem

sucesso.A Centípede recuou até o trono e o circulou, ocultando a soberana por alguns minutos.

Então,ocírculosedesfezeUnaselevantoudenovo,ordenandoqueumamesafossecolocadaàbeira do reservatório, e que trouxessem uma pena, pergaminho negro e tinta dourada eentregassemaohomem.

—Sougrataporsuadevoção.VocêéumservohonradoeagoraoúltimoescribadeUntherak.Ele sorriu, nervoso. Curvou-se diante da deusa, proferindo palavras desconexas. Lágrimas

vieram aos seus olhos. Ela é tão misericordiosa! Como seus colegas podiam ter conspiradocontraasoberana,mesmoquecomobjetostãoinofensivosquantopapelepena?SeobedecesseaUna,nadademaupoderiaacontecer.Amaldiçoouosamigostransformadosem…tinta?Piche?Nãosabiadizer.Porém,amaldiçoou-oscomdornocoração,poisnãoqueriavê-losmortos.Sepudessevoltarnotempo,gostariaquecadaumtivessefeitoacoisacerta.

Una lhe apontou a mesa. O homem se sentou de pronto, molhando o bico da pena eesperandooqueseriaditado.

—QuandoosdeusessucumbirameseuspoderesforamunificadosnaformadeUna,oscéustambémprestaramseutributo.

Oúltimoescribaencarouabocaqueproferiuaquelaspalavras.Perfeita.Contudo,porqueelaestariadescrevendoalgoquejátinhaacontecido?ABatalhadomonteAhtuljáeradescritaem

dezenasderelatos…Antesqueeleterminassedeescrever,comamãotrêmula,Unacontinuou:—Osolparounomeiodocéu,esperandoapermissãodasoberanaparaquecontinuasseseu

caminhorumoaoeste.Então,duranteareverênciadaluzdodia,adeusaordenouqueoastroescurecesse.Eassimfoifeito.

Elehesitou.SabiaqueoSolescureceranodiadosurgimentodeUna,masaquilo tinhaumsignificadoconhecidoportodososescribas,eatémesmoumtermo.Eraumeclipse.Todoselesconheciam o movimento dos astros, da Lua e do Sol — inclusive haviam batizado cadaconglomeradodeestrelas.

Elacontinuouoditado,eoHomemMarcadoacrescentouasprópriaspalavras,quevinhamdo coração. Queria demonstrar que sua lealdade não se resumia apenas a dedurar pecadores.EscreveuqueoSolresolveupresentearUnacomaprópriasombraequeelareceberaopresentedebomgrado,deixando-odefrenteparaotrono.Nãohaviaacontecidodaquelamaneira,masohomemqueriaqueasoberanasoubessequesuaféerainexorável.

Una pediu que um guarda lhe trouxesse o documento. Sorriu ao ler as linhas criadas pelohomem,quechorouaonotaroslábiosarqueadosdelaesentiuquetodaadorpresenciadavaleraapena.Aquelemomentoeraopropósitodesuaexistência.

Então,adeusaselevantou.—Você fez bem ao denunciar a heresia,mas sabe quantomaterial profano foi produzido.

Passamosumatardeinteiraescutandoosrelatosvermelhos.NãodenunciouantesenãoevitouqueoPalácio fossedesrespeitadocomdisparates, toliceseblasfêmias.Ouvi todasasmentirasqueaquelaspenasredigiramequeaquelasbocasproferiram.MeucoraçãodóitantoqueabatalhacomosgigantesnomonteAhtulemnadasecomparaaessadesgraça.

Oescribaseajoelhou.Pediuperdão.Dissequedariaamãodireitaparaquefossedecepada,queelemesmoacortariafora,seadeusapudesseperdoá-lo.Elanegouedissequeohomemprecisariadamãoumaúltimavez.

—QueroumdecretoqueexaltemeupoderecondeneousoeaexistênciadacorvermelhaemUntherak.Acordomantodostraidores.Escreva-ocomsuasprópriaspalavras.

Era um elogio vindo da deusa. O reconhecimento final antes da sentença de morte. Eleobedeceuchorando.Suapenamarcouasprimeirasdasmuitaspalavrasnopergaminho.

Noprincípio,nãohavianada,somenteosSeisDeuses…

OHomemMarcadoescreveudezenasdelinhasexaltandoopoderdasoberana,reforçandosuasuperioridadeemaldizendoacordosangue,acordastúnicasdospecadores,acordatintaquetentaramancharareputaçãodasoberana.JáhaviaumagênesequecelebravaauniãodosSeisnocorpo de Una,mas a rebeldia dos escribas deixava claro que ela já não funcionavamais. Eraprecisoumareleitura.Umanovanarrativa.

Unaselevantoudotrono,desceuosdegrauseparounafrentedamesa.Primeiro,ordenouque

umgrupodeanõesÚnicosentrasseerecolhesseosescritosmalditosparaqueencontrassemoesquecimentonofogo.Depois,tomouopergaminhonegroemsuasmãoseleuoquetinhasidoescrito.Estavasatisfeita.NãoexistiahonrariamaioremqualquercantodeUntherak,sequernomundoantigoquesetornaraaDegradação.

—Vocêfoiumbomservo,masaindaassimpecou.Seráomaiorexemplodeservidãoquejáviveu emUntherak, o celeirodomundo.Permitirei que entrenas águas escuraspor vontadeprópriaeassistireidepertoàdissoluçãodesuamente,deseuespíritoedesuacarne.

Àslágrimas,oHomemMarcadoseergueu,maslogoseajoelhoupelaúltimavez.Gostariadebeijarasmãosdasoberana,massabiaquetocaradeusaunificadanãoerapermitidoanenhummortal.Então,decostas,tãopróximodela,entrounolíquidoescuroefoiseafastandodevagaratéomeiodapiscina.Deinício,pareceunãosentirnada.Olíquidonegroborbulhou,eoescribafoiseafastandoatéapartemaisprofunda,ondepodiasubmergirtotalmente.Antesdeolíquidotomarosseusolhos,seuspésjánãoexistiammais.

Tudodeixoudeexistirparasetornarumaescuridãosufocante.Assim,sentindoumadorlancinantenascostas,Aelianvoltouaterconsciênciadesi.Nomeio

da dor e da claustrofobia, viu algo saindo do líquido negro. Alguém emergiu da Mácula,enquantoumavozdecriançaexplodiaaoseuredor.Eracomosearealidadeestivessesofrendoelamentassecomumchoroinfantil,contínuo,soluçado…

Derepente,oaromadeálcooldançouemseussentidoseotrouxedevoltaàmesadepedraeaos pergaminhos. Gritando, Aelian se endireitou na cadeira, vendo um assustado Ziggyafastandoumagarrafadedebaixodesuasnarinas.

—Desculpa—disseosinfo,deolhosarregalados.—Vocêpareciaestartendoumpesadelodeolhosabertosenãoestavarespondendo.Acheique—eleolhouparaagarrafaquetinhanasmãos—vocêfossequererbebercomopessoal.

O rapaz demorou mais alguns segundos para conseguir se situar. Respirou fundo e serespaldounacadeira,suandoembicas.

—Estátudobem?—perguntouZiggy.Aeliannãotinharesposta.Apenasumpensamentoflutuavanacabeçadelenaquelemomento.—Acho…achoquedescobrideondeveiooGeneralProghon.

—Aelian!Ziggyestalouosdedosnafrentedorostodorapaz.Elehaviasedistraídonomeiodafalapela

terceiravezdesdequecomeçaraaexplicaravisãoquetiveradurantealeituradospergaminhos.Malconseguiaexporque,peloqueentendera,otextosagradoquecontavaaFúriadosSeiseosurgimento de Una fora escrito muito tempo depois, como uma retificação, atualizadaconformeosinteressesdadeusa.

—Desculpa,eu…Minhacabeça…dói.—Vocêestavadizendoqueumescribadedurouosoutros.—Quantotempoeufiqueiapagado?—Agora?—Não,não.—Aelianpassouamãonorostoedeuumgolenodestiladomaisenvelhecidoque

tomarianavida.Eletossiuquandoolíquidopassoupelagarganta.—Tripas,issoaquiéforte…Euquisdizerquantotempofiqueilendo.Aliás,nemseiseestavalendomesmo…

—Bom,achoquedeixeivocê sozinhoporquaseumahora.Logoemseguida,Annasaiu—respondeuZiggy.—OquesignificaqueHarun,VenomaeRaazi ficarambebendoduranteessetempo todo.Quando o papo deles começou a não fazer sentido nenhumparamim, vim vercomovocêestava.

—Vocênãobebeu?—perguntouAelian,dandopequenastossidasesentindoopeitoqueimar.— Ah, sinfos não se dão bem com esse tipo de bebida. Mas temos as nossas, com álcool

extraídodefrutas!Elepensouqueumsinfobebendopareciatãoerradoquantoumacriançafumandocarvãoou

umcoelhocomendocarne.Dequalquermaneira,seguiuZiggyatéosalãoondeosoutrostrêsestavamdiante de uma espantosa réplica deUntherak.Venoma estava sentada em um barril,observandoRaaziestrangularHarunpelascostas.

—Oqueestáacontecendoaqui?—gritouAelian.—Estáerrado,nãoéassim—falouVenomacomvozmoleparaosdoisoponentes,alheiaao

rapaz.ZiggyfezsinalparaqueAeliandeixasseosdoisresolveremaquilosozinhos.—Essaéapiorchavedebraçoqueeujávi!

—Seelaétãoruim…ungh...—rosnouRaazi,entredentes—talvezvocêqueiraserapróximaatentarescapardela…poisesseanãoaquinãoestáconseguindo!

—Issoéporque…aaargh…prefironãolargaragarrafa,kaorsh—respondeuHarun,comavozespremida,tentandoencontrarumpontonobraçodeRaaziondepudesseafrouxaroaperto.—Estoupoupandoasminhasenergias!

— Poupem energia para outra coisa! Para o General. os Únicos, sei lá! — bradou Aelian,procurandoapoioemZiggy.

— Cale a boca, garoto do galinheiro! Anna disse que tínhamos que lutar! — falou Harun,descontandonohumanoaraivaquesentiapornãoconseguirselivrardeRaazi.

—Sim,masnãoexatamenteaqui—disseZiggy,baixinho.—Oquê?—perguntouAelian,sementendermaisnada.Venomarevirouosolhosparaele.—Nãosejaestraga-prazeres,ésóumabrincadeira.Alémdisso,estamostodosbêbados.—Ela

parouporuminstante,tentandoconterumarroto.—Oquemaispoderíamosfazerdeútilagora,tardedanoite?

Aelian,dando-seporvencido,deuumgolenagarrafaqueosinfolheentregara.Raazilargou

Harun, dizendo que estava começando a sentir cãibras nas costas por ficar tanto tempoencurvada. O anão falou que ela tinha desistido, e que ele ganhara a briga. Ninguém lhe deuatenção.

—Ah, finalmente resolveu se juntar a nós!— disseRaazi, as palavras saindo sonolentas.Orostodakaorshestavacomdiversascoresmisturadas,comoseelativesseseesfregadonapaletadeumpintor.—Umbrindeaisso!

Aelian brindou com a garrafa, mas em sua cabeça ainda permanecia a última pergunta deVenoma:Oquemaispoderíamosfazerdeútilagora,tardedanoite?

Lembrou-sede tudoquehavia lido.DaorigemdeProghon.DecomoaquelaUna (quantashaviamvividoapósaquela?)fizeraoescribamanipularahistória;alteraropassadoesubjugaroshumanos muito antes de eles sequer terem cometido erros, culpando-os pelas mazelas edesgraçasdomundo.Annaestavacerta:tudoeraumaquestãodenarrativa.ACentípedecontavaahistória,opovoacreditava,emaisumamentiraseperpetuava.

Aoqueparecia,oinimigojamaisforacombatidonessestermos.Osbarrisdetintavoltaramàsuamemória,alémdetudoquedescobriraminutosantes.Ele

adoraria compartilhar aquilo com os amigos, mas apenas Ziggy estava em condições deconversarsemgritarouencararqualquercoisacomoumaprovocação.

Aelianrespiroufundo.Sementenderseeraumacoragemsúbita,oálcoolouoambiente—naverdade,deviaseruma

somadostrês—,Aeliantossiudenovoantesdesepronunciar,sentindoagargantaqueimando.—Ei,Harun.Existealgodeútilqueaindapodemosfazerhoje.

AlgunsminutosdepoisdeAeliancontaroquetinhaemmente,haviaumaespéciedeestáticapermeandoosalão.Harunapontouparaamaqueteàsuafrente,indignado.

—Olha o tanto de pólvora de ouro que temos aqui! Por que não podemos simplesmenteexplodiracabeçadaestátua?

—Éarriscado—falouRaazi.Aelianlhelançouumolhardeagradecimento.Ziggyconcordou,enfático.—NãopodemosarriscardestruiroCoraçãodaEstátuaagoraqueacabamosdedescobriresse

lugar!—Destruir?—Harundeuumtapanoar,balançandoacabeça.—Mesmoqueconseguíssemos

racharaestátuaaomeio,todoessesetorficariainteiro!Asparedesdesselugarsãoobradosmeusantepassados,nãoumaconstruçãoqualquer,mulher.

—Comcerteza.SeoCoraçãodaEstátuacaíssedessaaltura,éclaroquenãoracharia—disseVenoma, irônica.— E todas asmaravilhas e relíquias daqui continuariam arrumadinhas, cadaumanolugarcerto.

—Aquestãoéqueseriaumaexplosãocontrolada,arrancandoapenasacabeça—retrucouoanão,avozperdendooarrastarbêbadoenquantodefendiasuaideia.—Estessalõessóseriamumpoucochacoalhados.

—Mascomafissuraqueaexplosãocausarianaestátua,aspassagensatéotopodelaficariamexpostas,assimcomoasnossasprópriaspassagenssecretas—disseRaazi.—Porquantotempoeste lugar resistiria às investidas de todo o exército de Untherak, mesmo sendo obra dospoderososanõesdopassado?

—Olha,aívocêestácomplicandodemaisascoisas—observouHarun,olhandoparaAelian.—Falcoeiro!VocênãoqueriamandarumamensagemparaUna?Achaqueseuplanopassariaumamensagemmaispoderosadoqueaimagemdasoberanadecapitada?

—Sim.Maspodemosfazerumavotação.Quemaquipreferiromeuplano,levanteamão,porfavor.

Raazi, Venoma e Ziggy levantaram asmãos. Aelian também, por via das dúvidas. Quandobaixaramasmãos,Harunjáestavagingandonadireçãodoprimeirosalão,irritado.

—Vamoslogocomesseplanosempólvoraantesqueoefeitodoálcoolpasse.Orapazolhouparaosoutros,comardivertido,numagradecimentosilencioso.—SeráqueAnnavaificarbravaseagirmossemconsultá-la?—perguntouVenoma,asmãos

nosquadris,parecendoemdúvida.RaazideuumtapinhanascostasdelaantesdeseguirHarun,acenandoparaAelianeZiggy.—ElanãoqueriacausarmedonoPalácio?Vamosdescobrircomofazerissonaprática.

23

HaviacentenasdecelasesalasdetorturaportodooPalácio,masnenhumadelaseraconstruídadeformaqueoprisioneiropudesseouviroslamentosdosvizinhos,comonoAnel.

Porém,o lugar foraconstruídocomumpropósitoque iamuitoalémda intimidaçãoedoterrorismomental.OsdutosdeecocirculavamoAnel,masemcertomomentosedirecionavamparaumnívelinferior,nomeiodocírculodascelas.

Era um salão com o pé-direito alto, sem desníveis ou janelas. Archotes queimavam noscantos, deixando a sombra azulada tingir o recinto sem fazer distinções.O somde todos oslamentosdascelasdoAneldesembocavaali,distorcidos,fantasmagóricos.Haviaumacadeiradepedra de espaldar alto voltada para uma vala que quase transbordava deMácula, exatamentecomonaSaladoTrono.Porém,aquelapiscinanãoeraretangular,esuasbordaseramirregulares,quebradas, rachadas. No meio, uma espada era banhada numa fonte do líquido negro,movimentadaporummonjolodemetalfundido.Aposiçãodacadeiraindicavaquequemalisesentavaeraobrigadoavigiaraarma.

Erauma celamuitomais espaçosaque as outrasdoAnel,mas tambémmais aterrorizante,graçasaosgritosegemidosquevinhampeloduto.SeriaapiordasmasmorrasdaAlaLeste,seoGeneralProghonnãotivesseescolhidoaquelelocalcomoseuaposentoparticular.

Elesesentou,oscotovelosapoiadosnosdesconfortáveisbraçosdacadeira.Afinal,porqueoGeneralprocurariaconfortoenquantoobservavaoobjetoquelhetrouxeratantador?OFossolhe lembravaque a dor existia, e nadamelhor que pedras e lamentos para o corpo e amentejamaisseacostumaremcomcomodidadeoualívio.

Noentanto,nemtodososlamentosvinhamdosdutos.AospésdoGeneral.duasformasseencontravamestiradasnochão, imóveis.Eramkaorshs,

apesardeocorposeconãoconservarvestígioalgumdovigornaturalda raça.Osmaculadosesquálidosestavamacorrentadospelopescoçoàcadeira,enãoerapossívelsequerafirmarquedormiam. No estado em que se encontravam, o corpo apenas ficava no lugar em que foradeixado,aMáculaobrigandoocoraçãoaoperarcomomínimodeesforçopossívelporbaixodapeleestiradasobreosossos.

Proghon,quenãotinhapálpebrasenãodormia,encaravaaespadacobertapelolíquidopreto.Nãopodiatocaralâminaqueumdiaohaviaferidodeformatãointensa;masvê-laimóvelali,emrepouso,eradecertamaneiratranquilizante,poisseelepodiadeitarosolhossobreela,aquilosignificava que ninguém a estava brandindo. A verdade era que gostaria de descobrir umamaneiradedestruí-la…Porém,nemaCentípedetinharespostaparaaquilo,etalveznãoquisesseselivrardaúnicaarmaqueumdiasurtiraefeitocontraoterrívelGeneraldeUna.Proghonsabia

queelestinhamumplanodecontingênciacasoelesaíssedocontroleoudecidissenãomaisficarsobojugodaquelesnecromantes.

—Nãofossemessesdutos,tenhocertezadequeachariaesselugarumbocadorelaxante.Proghonnãotinhareparadonaconvidada.Quandosedeuconta,láestavaela,paradaàbeira

dapiscinadeMácula.Ofogofriodistorciaacordomanto,mas,dessavez,elaescolheranãousarasfaixasnorosto.Nãohaviaporquê,realmente.

—Claro,eutrocariaa iluminaçãoparatiraresseazuladoespectral.Masachocompreensívelvocênãousarfogonatural—continuouAparição,comasmãoscruzadasàscostas.

Entrelaçandoosdedosdiantedosdentesexpostosemseucrânio,Proghonnotouqueelanãoestavacomagrandeespada.

Oskaorshs acorrentadosno chãodespertaramcomumarquejo asmático.Apariçãoolhouparaeles,eseuslábiossetornaramumalinhafina.Amulhersabiaoqueestavaparaacontecer.Umdelesergueuamãocadavéricanadireçãodela,comosepedisseparaqueaintrusaaliviassesuadorantesqueaquiloacontecessedenovo.

Eentão,dabocaescancaradadomaculado,umfiapoconfusodevozesganiçadasaiu.—Vocêveiosemaespada.Aparição sabia que os acorrentados serviam apenas como uma canalização para a voz do

General. Maculados descartáveis, que já haviam exaurido sua utilidade como mão de obra.ApariçãojáhaviapresenciadoProghonfalandoatravésdedezbocasaomesmotempo—bastavaqueeleestivesseaoalcancedemaculadosemcondiçõesdereproduzirsons.Ascordasvocaissevoltavamaserviçodele,e,emmeioàvozsecadequemera forçadoacuspirpalavrasquenãoeramsuas,avozdeProghontambémeraouvida:cheiadeecos,comoseusalão,efriacomoofogoazuladoqueoiluminava.

—Oquenãosignificaqueeuestejadesarmada—respondeuela,sorrindo.—Minhamaiorarmanãoéaespada.Evocêtambémnãoédeficarexibindoasuaporaí.

—Qualé suamaiorarma, soberanaesquecida?—disseProghon,dessavezatravésdooutromaculado,noladoopostodotrono.—Aseduçãodetolos?

—Seria,seeutivessecumpridoomeudestinocomoaUnaquevocêinsisteemveremmim.Elenãorespondeu.Osacorrentadosfizeramruídossecosdeengasgo.Apariçãoseaproximou

dosdegrausemfrenteaotrono,olhandoparaeles.— Mas você peca em falar sobre a minha arma como sendo a sedução de tolos. Ficaria

espantadosesoubessecomosouapartemenosimportantedetudoqueestáacontecendo.Os batizados fizeram as correntes no pescoço chacoalharem. Eles também pareciam

experimentarasemoçõesdeProghonatécertoponto,eissoeraosuficienteparaagitá-los.Eledemoroualgunssegundosatéfalardenovo.

—Estavisitaéumanovadistração?—Demaneiraalguma.Masnãosefaçadeofendido…Seiquenãoachoudetodoruimvero

poder de Una ser questionado por algumas pessoas. — Aparição girou nos calcanhares,

observandoaespada.—Comofalei,aexecuçãodoplanonãofoitodaminha.Etenhocertezadequejáestáadiantandoospróximospassos.

—Oquevocêquer?—Seiquetemosessa…trégua?Nãoconsigo imaginarapalavracertapara isso,masenfim…

Porissoquebreipartedanossaconfiançamútua.ResolveramvoltarcomoFestivaldaMorte,evocênãoprecisavapermitirisso.Minhaparticipaçãonosplanosdeoutremfoiaminharesposta.

—Comoseoplanonãofosseseu.—Nãofoi.Sódeiumempurrãozinho.Vocêconheceasduasmentespor trásdissoe jádeu

cabodeumadelas.Os dois acorrentados riram, e aquele sinal de emoção de Proghon saindo da boca de dois

maculadosinexpressivoseraalgoqueassustavaatémesmoAparição.—Imaginoquetambémnãotenhanadaavercomafugadela.—Você se espantaria se soubessequeo livre-arbítrio aindavive emUntherak,mesmoque

precário.—Ouassimvocê fazparecer.Manipula indivíduos,planta ideiasnacabeçadelese fazcomque

acreditemqueestãoagindoporvontadeprópria.Apariçãoponderouaspalavras,semsorrir.— Não transfira para mim sua péssima experiência de dar e receber confiança, meu caro.

Lembre-sedequesouafiguramaisprocuradadeUntherak,enósdoisqueremosnoslivrardeUna.

Proghonse levantoueparouao ladodeAparição,nabeiradavala.Comoosacorrentadospermaneceramaoladodotronodepedra,avozdoGeneralveiodetrásdele.

—Nãopodemosnosprecipitar.—Enãovamos.Adiferençaéquenãoqueroqueopovosofracomatransição.Nemminhas

semelhantesescravizadas.Ouquemnãotemculpaporcrernoquesemprelhesfoicontado.—Minhasprioridadessãooutras—disseavoz,enquantooGeneralmantinhaosolhosvazios

naespada.—QuerotodaamemóriadaMácula.MesmoquandoconsigomeocultardainterferênciadaCentípede,elaaindanãomedeixasaberdetudo.Écomose…

Ele silenciou seus acorrentados de repente, com um estalo demaxilar, antes de finalizar afrase. Aparição assentiu com a cabeça, olhando para trás em seguida. Depois, encarou osmiseráveiseconcluiu:

—ÉcomoseaMáculanãoconfiasseemvocê.Talvezfosseporouvirumaverdadetãoabsolutanoprópriosalão,ouporquenãoconseguia

permanecertantotempoemtrégua,masoGeneralaencarou,suamandíbulacaiueourolíquidocomeçou a escorrer por seu rosto, de dentro do elmo. Os lamentos dos prisioneirosaumentaram,dissonantes,eo fogofriotremeutantoquedeua impressãodequeasalaestavachacoalhando.Apariçãodeuumpassodeprecauçãoparatrás,ficandoforadoalcancedosbraçosdeProghon.Quandoosbatizadoscaíramnochãoemsilêncio,derramandoMáculapelaboca

aberta, ela entendeu o que tinha acontecido. O ambiente esquentou e a superfície da piscinaborbulhou.Annaencaravaseurival,impassível,sentindoqueatréguaestavaporumfio.

—Você temmilhõesdevozesdentrodevocê,Proghon.Eaindaassim,nãopode falar semtorturarousemtirarvidas.—Amulherfezumapausa,talvezpensandoseummaculadopoderiaserconsideradoumservivente.—Gostariaqueasnossasverdadesnão fossemtãocontrárias.Dessaforma,poderíamosconversarsemessas…interrupções.

Ocaloremanavadocorpogigantescodohomem.Impossibilitadodedizerqualquercoisaatéque lhe trouxessem novos batizados, ele parecia tentar controlar a raiva para que parasse dederramar ouro e Mácula. Aparição, que poderia ir embora a qualquer momento, lhe fez umconviteinusitado.

—Osolnascerádentrodealgunsminutos.Algumapossibilidadedeovermosjuntos?Ele voltou o crânio dourado para ela. O movimento lento parecia completar a falta de

expressãodeseurosto.—Nãovoufalarnada.GarantoqueninguémnosverácaminhandonoPalácio.Seiserdiscreta.OsilêncioeraaúnicarespostacivilizadapossívelparaProghonnaquelemomento.Aparição

considerouaquilocomoumsim,eesperoudefrenteparaaparede,aguardandoqueoanfitriãoacionasseaportaquaseinvisíveldoFosso.

OscorredoresforampreenchidospelacadênciapesadadospassosdoGeneral.Apariçãoiaàfrente,umvislumbredacorproibidasempredobrandoocorredoreevaporandoaqualquersinaldeguardaspelocaminho.Ospoucosquemarchavampeloscorredoresàquelahoraabaixavamacabeça para Proghon — como o Autoridade Ranakhar, responsável pela verificação docontingentedaquelapartedoPalácio—,obviamentesemquestionaraondeobraçodireitodasoberanaia.

E então, os dois chegaram a uma das sacadas da Ala Leste, com os primeiros raiosdespontandonohorizontealémdaMuralha.Proghontrancouaportaatrásdesieparouaoladodafigurademantovermelho.Aexpressãonorostodelanãoeraaesperadaemalguémqueapenasbuscavacontemplaraaurora.

Elanemsequerolhavanadireçãocerta.—Achoqueestoumesurpreendendodemaisnosúltimosdias—disse,voltadaparaaestátua

deUna.—Eisoutroexemplodelivre-arbítriopostoemprática.OGeneralvoltouoolharvazioparaaUnacolossal.A temperaturaesquentouao redordo

corpodele,masnãoapontodederreteroourodamáscara.Asprimeirasluzesdodiarevelavamalgodenovonaestátua.Algoque jamaisestiveraaliequedificilmentepoderiaserencobertoantesquetodaUntheraknotassetamanhaheresia.

Unasangrava.Suas mãos estavam manchadas de vermelho. E da garganta… escorria sangue. Uma linha

horizontal, comose tivessesidocortadaabaixode trêsdosseis rostos.Alguns fileteshaviamescorridoatéaalturadopeitodaestátua,outrosmaisfinoshaviamdescidoalém.

ProghonvoltouamáscaradouradaparaAparição,devagar,otroncoaindaviradoparaforadasacada.Elaoencaroucomtodaafranquezadomundo.

—Ascoisasestãoacontecendo.Vocêsestãobatendosempararempedrabrutapormilanos.Emalgummomento,algoiaacontecer.

Desprovidodesuavoz,elenadapôderesponder.—Não fui eu, se é o que está pensando. Estou tão surpresa quanto você. — Ela cruzou os

braços.—Umahoraaspessoascomeçariamaquestionar,mesmocomtodooterroraquevocêsassubmetem.Adiferençaéqueeuestouaquinoexatomomentodamudança.—Apariçãosorriu,olhandoparaopiso.—Achoqueescolhiumabelahoraparavoltar.

Saindodeumestadomaisinertequeodaestátuadepredada,eleabaixouamão,que,Apariçãonotou, estava fechada. O elmo emitiu um brilho intenso ao ser atingido pela luz do sol, e amortalhatremulouaosopraraprimeirabrisadodia.Proghonnãopodiafalar,massuaposturanaquelemomentofaziacomquepalavrasfossemdesnecessárias.

—Talvezissoacelerealgumascoisas.Paranósdois—disseAparição,subindonoparapeitodasacada.—Vousentirfaltadasnossasconversas,meucaro.

EladeixouocorpodespencarparaforadoparapeitoedesapareceudavistadoGeneral.SemapressaeoespantodeumservocomumdeUntherak,Proghonestendeuasmãossobreaguardadepedra,inclinando-sedeleveapenasparaconfirmaroquejáimaginava:mesmosemnenhumapoioparadescer,nãohaviarastrodeAparição.

Olhouumaúltimavezparaaestátua.Paratodaatintavermelha.Apertouoparapeitocommaisforça…Estariaoventotrazendoocheirodetintaouseriamapenas…lembranças?RecolheuamãoevoltouparadentrodoPalácio,escancarandoasportascomumgolpeseco.Nãovoltariapara o Fosso tão cedo, apesar de precisar solicitar novos maculados da Vila B para seremacorrentados.

Noparapeito,nopontoemquetinhacolocadoasmãosporpoucosinstantes,apedraestavarachadaemanchadadeouroeMácula.

Aindaestava longedeamanhecer,oquesignificavaqueApariçãocontariacommaisalgumashorasdeescuridãoaseufavor.

Olhandoparaocéucordechumbo,ondeumbrilhopálidosugeriaapresençadaluaatrásdasnuvens,perguntou-secomotinhasidocapazdepassartantotemposemverofirmamentodamaneiraquedefatoera,enãodaformaqueUntherakqueria.

Aschaminésdasforjas,aneblinaquevinhadospântanos:tudoaquilofuncionavacomoumvéuencobrindoasruas.

Havia mais estrelas do que os olhos podiam enxergar. E Aparição esperava que nosAssentamentos não houvesse apenas os usuários de carvão e osmiseráveis encontrados nosbecos.

Quantoa isso,umsinal:numadasparedes,apalavraDESORDEM forapintadaàspressas,compinceladasdesajeitadas.

Masoimportanteeraqueestavaemvermelho.Ele sorriu, certo de que aquilo tinha sido feito às escondidas. Alguém ainda resiste aqui,

pensou,passandoaunhapelacamadadecorproibidaecheirando.—Tintaeterna—murmurou.Oprotestolhedavamaispistasdoquepoderiaesperarnaquelanovavelhacidade.Realmente,

erasóumaquestãodetempoparaqueosistemacomeçassearuirpordentro.Opensamentolhelembroupessoasqueestavammuitodistantes e coisasbemmaispróximasdoquegostaria—dentrodele,fazendo-odesmoronar.

Então, um estampido compassado se fez ouvir. O tropel de botas de ferro. Estão maisorganizados, pensou, enquanto subia na laje de uma casa e observava o disciplinadoblocodeÚnicosmarchandonadireçãodosopédomorro.Doalto,escutouograsnardeumfalcão.

— Sim, estou vendo— disse, sem tirar os olhos das tropas e puxando a enorme espada dabainhagrandeemaltratada.—Fiqueatento,talvezeuprecisedevocê.

Esquadrinhando o pelotão, não viu Tenente nem General, mas contou quarenta sujeitoscaminhando na direção dele.Nesím, seu imprestável, pensou, divertindo-se consigomesmo eestalandoa língua.NotouqueosÚnicoseramumtantodiferentesdaquelescomquemlutarahaviapouco.Osescudoserammaiores,retangulares,comaberturasparaosolhos;asarmaduras,maisagressivas, cobertasdeespinhos.Restavaver semorriamembatalha tão fácilquantoosoutros.Carneeracarne,eeraapenasumaquestãoderetiraralataquearevestia.

Destavez,nãoestavanumlugarestreito,entãoprecisavadeumaestratégiadiferente.Decimadalaje,levantouumadasmãos.OsÚnicosinterromperamamarcha.

Apariçãopigarreouantesdefazersuavozressoar.—SósaiodaquiseTenenteouGeneralvieremmebuscar.Qualqueroutratentativateráminha

resistência.Issoéumaviso.Nãohouverisadasdeescárnioouqualqueroutrocomentário.OsÚnicosapenasvoltarama

marchar.São bemmais disciplinados também, pensou.De certa forma, torceu para que ignorassemo

aviso. Saltou da laje para o chão, esperando, e recuou para dentro do labirinto de ruas,certificando-sedequeopelotãovisseporondehaviaentrado.

Oshomensdearmadurasedividiramemdoisgrupos,depoisemquatro,poisoencapuzadoparecianãoestaremlugaralgum.Quandoumdosdestacamentoschegouàpraça,queumdiaforaumlocaltantodecomemoraçãoquantodetristeza,umaneblinabrancainexplicávelcobriuaregião.

Então,alguémencontraraAparição.Suasmemóriasdaquelapraçaeramhorríveis.Lembrou-sedamúsicaalegre,da rodadekaita eda fartura.Lembrou-sedoafetoque recebeu,aindaqueinesperado.Lembrou-setambémdoscorpospelochãoedosilênciodecriançasquenuncamaisbrincariam.

Afastou todas as lembranças que poderiam amolecê-lo e guardou consigo apenas as queserviamcomoumlembretedequeeraahoradepreencheraquelelugarcomoscadáverescertos.

24

TrêsmesesdepoisdaprofanaçãodaestátuaOtempoatudomuda.Ações ousadas provocam respostas cruéis, que, por sua vez, geram mudanças drásticas,

sobretudoemUntherak.Aelianpercebeu issoquandoestavanosubsolodoPalácio, reunindocoragempara levar umapessoa ao lugar que abrira uma ferida purulenta em sua consciência.Imaginava se a açãodepintar a estátuahaviadespertadouma força implacável— e até entãoinédita—nogovernodeUntherakouseestariaenlouquecendo.

—Tem certeza de que era aqui?— perguntouAnna, olhandopara o salão vazio através daaberturaestreita.

Aeliannãosabiaseficavafuriosopornãoencontrarolocaloualiviadopornãoprecisarbotarosolhosnovamenteemumacenatãoaterrorizante.

—AnãoserqueoPaláciotenhasalasquemudamdelugar,sim—respondeuele,irritado.—Jáouvihistóriasdeumcasteloquefaziaisso.Anna não agia como se Aelian tivesse enlouquecido,mas não havia nemmesmo tirado a

espadadabainhaaochegaràportaemque,segundoele,terminavaalinhanegra—queelanãoconseguia enxergar.Apariçãopresumiuque apenaspessoas comcontatomais intenso comaMáculaviama indicação,e,aparentemente,ascicatrizesnascostasdeAeliano incluíamnessacategoria.

—Estoumesentindoumidiota—disseele,olhandoparaosladosfreneticamente.—Todasasnossas incursõesnoPalácio sãoum treinamento também,Aelian— respondeu

Anna, parecendo distraída. —Vocês precisam estar prontos paramissõesmais difíceis, comoentrarnosantuáriodassósiasouemlugaresaindapiores.

—Ésério—falouAelian,parecendonãoterescutadonada.Estavapreocupadoealerta,compunhaletochanasmãos.—Quasemorremosaqui,fiquecomaarmapreparada.

—Se forpreciso,consigopegá-laemsegundos—disseAnna, tranquila,olhandoaoredoreespiandopelabrecha.—Nãovejonadaalémderatos.

—Tiraramtudo—falouele,notandoqueapenasasossadasnochãoaindaseencontravamnocorredor.—Asprisioneiras,ossinfos,osmecanismos…Ondeseráquecolocaram?

Anna apenas pediu que Aelian lhe passasse a tocha. Vasculhou o lugar com o olhar,direcionando a luz do fogo para as sombras, omanto vermelho parecendo desafiar as trevasdaquelapassagemsecretaequalquercriaturaquevivesseali—tantoquenenhumdosgafanhotosgigantessaltoudaescuridão.

—Achoqueeusoumesmoumfodidoquesóconsegueatrairmerdasdessetipo.

—Ah,vocêpodeatéatrair—disseela,devolvendo-lheatochacomumsorrisoiluminadopelofogonatural.—Maseuprefiroacreditarquetodososqueenfrentamcoisasalémdacompreensãosentem-seassim.Atédefatodominaremas“merdasdessetipo”.

Elenãoentendeudepronto,masnãofezobjeções.Enadadisseduranteotrajetodevoltaparao Coração da Estátua. Aquele dia foi inútil e angustiante, mas a noite seria de uma intensajogatinadedados.

—ExplodiroPoleiro?—perguntouAelian,incrédulo.Apostarsetornaraumhábitoentreeleeoanão.Começaracomoalgosempretensõesenão

significava muito mais do que realmente era: um jogo. Os dois não eram amigos, apenasdiscutiamoqueasmissõesexigiame,nagrandemaioriadasvezes,discordavamumdooutro.Asapostassetornavamcadavezmaisousadas.

—Nãorestariapedrasobrepedra—explicouHarun,apontandoparaapeçacorrespondenteaoprédio na Untherak miniaturizada. — Conheço a estrutura da torre. Se conseguirmos fazerfissurasnoslugarescertos,opesodelaterminaoserviço.

Outros ataques liderados por Aparição causaram incêndios e confusão.Uma das torres daEstrebariahaviacedido,otelhadodeumpaiolforaabaixo,masnenhumaconstruçãotinhasidodestruídaporcompleto.Ofocodetodososataquesatéentãoeradesestabilizarossuprimentosou armamentos dos Únicos e dos Autoridades. Destruir o Poleiro seria um duro golpe nacomunicaçãodoUnificado.

—Láécheiodemadeira,pergaminhoefeno—disseAelian,olhandoparaaminiaturadolugarquepormuitotempoforaseucárcere.—Vaipegar fogofácil,eosótãovairuir.Masderrubaraquilo,queétododepedra.

HarunolhouparaAnna,sempaciência.EladeuumsorrisodecantodebocaeseafastouparafalarcomRaazi,queamolavaapontadeumalançanofundodosalão.OanãoestendeuamãoparaAelian.

—CincoaltinquemetadedoPoleirovaiprochão.—Oqueaconteceucomo“nãorestariapedrasobrepedra”?— Digamos que minha confiança foi abalada pela sua fervorosa falta de conhecimento

arquitetônico. Vamos lá, você falou que causaríamos um incêndio e alguns danos… Apostecomigo.

Aelian olhou para Venoma, que oleava sua besta. Ela deu de ombros, como se não seimportassenemumpoucocomaqueladiscussão.Ziggyparecia entretido,masele sedivertiacomqualquerconversa,pormaisdesinteressantequefosse.

—Quemapostacinco,apostadez—provocouAelian,aumentandoomontante.Eraseuvelhovíciosemanifestando.

Harunergueuassobrancelhas,comoseovalornãofizessediferençaparaele,eapertouamãodeAelian,selandoaaposta.

—Esperoquevocêtenhaessapequenafortuna.—Nempreciso.Vocênãovaiconseguircolocarumprédiodaquelesnochão.— Issomesmo, elenãovai—disseRaazi,de longe, interrompendoa conversacomAnnae

assoprandoapontadesuaarma.—Nósvamos.Etemosquetraçarumplano.Osinfoconfessouemaltoebomsomquenãoviagraçaemapostasnementendiaporque

alguémperderiadinheiro tentandoadivinharoacaso.Aeliannão soubeoquedizer, poisnãofaziaideiadecomoexplicarporquegostavatantodeapostar.

CincomesesdepoisdaprofanaçãodaestátuaCom frequência,Harun pensava nos servos que dormiamdentro das celas e se lembrava dosAutoridades,quedormiamnumacama,comsuasesposas,oudaformaquelhesaprouvesse,emcamasconfortáveisesembarrasdeferro,setediasporsemana.EramuitofácilserfielaUnacomtantas regalias— e,mesmo assim, ele colocou tudo a perdermuitas vezes nos últimos cincomeses,demolindopontosimportantesdoMioloeaospoucosminandooinimigopordentro.

Era por causa de pensamentos como esse que nada fizera quanto às escapadas de AelianduranteseutemponoPoleiro:elepodiasairpelajanela,retirandoabarrafalsa,mas,sevoltasseantesdeodiaraiar,quemalhavia?AssimcomoHarun,queprecisavadeixaraVilaA,CoraeÔnixtodasasnoites,paramantera fachadanotrabalhoenquantoconspiravacontraaquilo.Harunnãoseenganavacomsuacondição.Nãohavialiberdadeparaninguém.Eleestavaapenasnumacelamaisampla.Untherakeraumagranderatoeiraarmada:maiscedooumaistarde,sefechariacomumestalo.Elanãosesustentariaparasempre,emilanosjáeratempodemaisparaumpovoquepraticamentecomiaoquedefecava,quetrabalhavasempararapenasparaquenãotivessetempo de se rebelar. Bom, aquela parte do sistema tinha falhado com ele: Harun era umAutoridadedeposiçãoconfortáveltramandocontraUna,quenãoerasóuma,masumgrupodeprisioneiras. No fim das contas, uma soberana escravizada só poderia governar um povoescravizado.

E, como prova de que todo criminoso voltava à cena do crime, lá estava ele de novo noPoleiro,paradonafrentedeumdutodecorrespondênciasaomesmotempoquevigiavaambososladosdocorredor.

— Você está parecendo suspeito — disse Bantu Okodee, balançando a cabeça. — Relaxe.Ninguémvaiestranharvê-loporaqui.Provavelmentevãopensarqueseucastigoacabouequetransferiramvocêdevolta.

Harunsuspirou.Responderaoavôsógeravamaisbroncas,censurasefalatório.—Nãoadiantafazeressacaradebunda!Ah,comoeuqueriaterumpunhoqueatravessasse

essasuacara,moleque!— Mas você tem — disse Harun, indiferente. — Atravessa minha cara, as paredes, meus

pensamentos…—Estáfalandocomigo?—perguntouumavozecoandodentrododuto.Oanãoolhouirritadoparaofantasmadoavôeaproximouabocadoburacopararesponderà

perguntadeZiggy.—Não,eu…sócumprimenteiumvelhoconhecido.Conseguiu?—Sim…urgh…jáestouvoltando.Engatinhardecostasédifícil.Harunolhouparaospacotesnochãoaoredor: trêscantischeiosdepólvoradeouro,mais

dois rolos de pavio. Ziggy, fingindo estar limpando os dutos, deixara dois lá dentro e estavavoltandocomumpavioque,deacordocomoscálculosdoanão,queimariaporcercadequinzeminutos. Ou seja, teriam menos que isso para dar o sinal para Venoma, tocar a trompa deemergência, colocar o restante da pólvora no andar onde ocorria a triagem de pacotes ecorrespondênciasesairdali.Pormaisimprovávelquefosse,pareciaqueoplanoiadarcerto.

—Muitobem,miúdo—resmungouHarun,enquantoajudavaatirarosinfododuto.Eleestavaimundo,ocabeloparecendoumtraposujo.—Vocêamarroubemopaviojuntodapólvora?—Sim—ofegouZiggy,tossindo.—Molhoucomodestilado?—Sim,sim…Enquantobuscavaaspederneirasnocinto,oanãodeixouescaparumrisocurto.—Aquelefalcoeirodeumafigavaiversó.Vaiserodinheiromaisfácilquejáganheinavida.

Depoisdeacenderopavio,osdoisseafastaramrapidamentedolocal,descendoumandar.Assimquesaíramdolancedeescadas,Ziggyfoiatéumajanelapróximaechacoalhouumtrapodoladodefora,apertandoosolhosparaoBalde.

—Venomadeveestarbemcamuflada,nãoavejo—falouopequeno.Então,umzunidoeumbaqueseco:umasetasecravandoaoladodajanela.Osinfodeuum

saltoparatrás.—Bem,elaviuvocê—disseHarun.EradaquelaformasuaveediscretaqueVenomaconfirmariaquecaptaraosinaldadupla.Com

cuidado,oanãopegouosúltimosfardosdepólvoradeouro,pesadíssimos,masbemmenosqueosdaprimeiraleva.

—Vamos.Temosquesoaroaviso.

Aeliandeuumpassoparatráseconteveumxingamentoquandoasetasecravouamenosdeumpalmodorostodele.EstavaescondidoatrásdeumadaschaminésdaBigorna.

—Issofoiumavisooualguémtentandomematar?—perguntou,enxugandoosuordatesta.Sempestanejar,Raazifoiatéabeiradadoprédio.—Oprimeiropaviofoiaceso.Temosmenosdequinzeminutosparaentraresair.AeliantentouavistarVenomanotelhadodoBalde,masemvão.Lembrou-sedairritaçãodela

aoouvirquesuapartenoplanoseriasóficaresperandosentadanotelhadodoBalde.Eopioreraqueelatinharazãoemreclamar.Naqueleexatomomento,umadasassassinasmaistemidasdeUntherakestavaservindocomogarotaderecados—recadospontiagudosemortais,masaindaassimrecados.

—Muito bem— disse Aelian, chegando à beirada e olhando para o beco abaixo. — Comotreinamos,certo?Tomeimpulso,pule,puxeaspernas,aterrisserolando.Euvouprimeiro.

Raazi fezumgestodisplicentecomamãoedeuascostasparaele,afastando-sedabeirada.Virou-separaafrente,séria,eentãodisparou,deixandoAeliansemaraosaltarderepente.

—Ouignoreoqueeudisse.Tudobem.Alémdepularantesdele,Raazideuumacambalhotanoar,oque,duranteasmuitassemanas

detreino,Aelianlhedisseraparanãotentarfazerenquantonãoseacostumassecomossaltos.ElaoimitoucomperfeiçãoemalfezbarulhoaopousarnasacadadoPoleiro.

OlhouparaotelhadodaBigornaeabriuosbraços,comosedissesse:“Vocênãovem?”Aelianriu e tomou impulso para o salto, adorando o espírito competitivo de Raazi nas últimassemanas.

Comoeradeseesperardeumapostador,Aeliannãoperdeuachancedeseexibircomumacambalhotaduplaantesdeaterrissarnasacada,aoladodeRaazi.ElafezapenasummuxoxodedescasoecomeçouaescalaroPoleiro.

Quando chegaramao topo, Bicofino já estava ao ladoda escotilha do sótão, com cara detédio.

— Ele veio se despedir da antiga casa? — perguntou Raazi, conferindo as pederneiras quetrouxera.

—Nãosei,elepareceumpoucomelancólico—respondeuAelian,fazendoumcarinhorápidonoanimalantesdeerguera tampa.—Achoquesabeoqueestáparaacontecer.Nãosei seeleodeiatantoesselugarquantoeu.Afinal,foiaquiquenosconhecemos…UmadasúnicascoisasboasqueoPoleirometrouxe.

Raazi o seguiu para dentro do sótão, que, mesmo vazio, conservava o habitual cheiro deexcremento de falcão. Enquanto isso, Bicofino preferiu ficar do lado de fora, parecendo umtantoafetado.Conformeplanejaram,Aeliandesceuprimeiroatéoandardascelas,desertoàquelahoradatarde,esurrupioudaparedeumdosarchotesapagadosparaajudá-lonatarefaquetinhaàfrente.RevisitandopelaprimeiravezolugardesdeoterrorvividocomoDestrinchador,sentiaumgrandealívioaosaberqueofimestavapróximo.Eracomoseasparedesaindaecoassemos

gritosdeGhelis,Lennigan,KivanedetodososoutrosquehaviammorridoduranteotempoemqueserviranoPoleiro.

Levandoalgumasmadeirasgrossasdosótãoparabaixo,Aeliantravouaportaquedavaacessoàsescadas,paranãosersurpreendidoduranteaexecuçãodoplano.Bateuaspederneiraspertodoarchote,easlascasdemagnetitafizeramobrilhobrancodofogoiluminarorostodorapaz.

Raazioapressou.Emboraentendessequeeleprecisavafazeraquilocomcalma,otempoeracurto.Então,eleacelerouseuritodepassagem,iniciandoumafagulhadentrodolugarquelhecausaratantador.

Enfiouobraçoentreasbarrasdesuaantigacela,comoarchoteaceso.Oprimeirocolchãodepalhaardeucomfogonatural,easchamaseramvermelhas.

Ospoucos falcõesqueaindaestavamnoPoleiroalçaramvooaosentira fumaçanoandardebaixo.Enquantosubiam,AelianeRaaziaproveitavamqualquerpalha, fenoepergaminhoqueencontravamparaalimentarofogo.Tomandocuidadoparanãoficaremencurralados,recuaramaté a saídapela velha escada retrátil, que seria engolidapelas chamas emquestãodeminutos.Largaramosarchotesnochãoantesdedeixaremosótão,jácomeçandoasentirtontura.

QuandoenfimvoltaramaotelhadodaBigorna,suadosecomocheirodemadeiraqueimadaimpregnadonocabelo,ouviramoressoargravedatrompadeemergência.Namesmahora,asportas do Poleiro se escancararam e começaram a cuspir dezenas de servos, numa açãotumultuadaebarulhenta.Aelianpensouqueaconstruçãosetransformaranumagrandetocha.Mentalmente,rebatizouolugardeArchote.

HarunsóhaviaescutadoatrompadeemergênciadoPoleiroumavezdurantetodaasuavida,algunsanosantes,numasituaçãosingular:umandardecelasentrouemconflitocomoutro,eosservosorganizaramumamatançaemtemporecorde.Paraevitarmaisbaixasdemãodeobra,oalarmesooueosÚnicosforamacionados,matandotodosqueencontravampelafrente.Alémdomassacre,pelomenosvinteindivíduostomarambanhodeMáculanaqueledia.

Elenãoesperavaterquetocaratrompaalgumdia,assimcomonãoimaginavaquetentariacolocarabaixoseuantigolocaldetrabalho.

— Ainda não entendo por que você quer fazer isso — falou Ziggy, entrando no salão detriagemapósteremesperadoosretardatáriosfugiremdali.

EstavamnosegundoandardoPoleiro,numcômodo imensoabarrotadodeencomendasecorrespondênciaseiluminadoporjanelasestreitasealtasparaeliminaranecessidadedemuitosarchotesnumlugarrepletodepapeleoutrosmateriaisinflamáveis.

—Atéagora,sócausamosumaconfusãoeoutraoudestruímospartedosedifícios.Esseaqui

vocêquerderrubar,masnemtemostantopódouradoassim…— Não vamos precisar reduzir pedra a cinzas. Quem faz isso é o tempo — disse Harun,

aproximando-sedoimensopilarnomeiodosalão,deixandoosfardosdepólvoradeouronochãoe sacandoomartelodocinto.—Precisamosapenasabalarumacolunadesustentaçãoedeixaroprópriopesodolugartrazê-loabaixo.

—Desculpa,estavaolhandoparaotetoenãopresteiatenção—respondeuosinfo,parecendoumacriançaimpressionada.—Esselugaréenorme!Poderepetir?

Oanãosuspirouecomeçouamartelaracolunacentraldosalão.Depois,usouumcinzelparaabrirburacosdotamanhodepunhosnopilar,comoseele fosseum imensotorrãodeaçúcarsendoroídoporformigas.

—Imaginequeestáenfrentandoumsujeitobemmaiorquevocê.Umkaorsh,porexemplo—disseele,encaixandoascargasdepódouradorapidamenteempontosestratégicos.Cadagolpeseuarrancavaenormeslascasdepedra.—Mas,éclaro,vocêésóumsinfozinho.Oquefariaparaderrotá-lo?

OrostodeZiggyseiluminou.Elepareciatercompreendidoametáfora.—Jásei!Euexplodiriaosujeito!—Não!Vocêésóvocê,ummiúdosempólvoranenhumaenfrentandoumgigante.—Maseutenhopólvora…—Sim,nóstemos,massevocêenfrentasseumkaorshmusculoso,semarmaalguma…—Issoseriaumaestupidezdaminhaparte.Harunsuspirou,exasperado.—Vocêfazissoparameirritar,nãoé?Oqueestouquerendodizeréquevocêdeveriachutaro

saco do kaorsh ou se aproveitar de algum outro ponto fraco dele. —OAutoridade voltou amartelare lascarapedra,balançandoacabeça.—Algumacoisadotipo.Nemlembrodireitooqueiadizer.

—Tá,entendi.EstamoschutandoosacodoPoleiro.—Elesesentounotampodeumamesagrandedemadeiraeficoubalançandoaspernas,observandoHaruntrabalharenquantoagritarialáforaaumentava.—Possoajudaremalgumacoisa?

—Fiquedeolhonaentrada.Duvidoquealguémvolteparacácomoprédioemchamas,masnãocustaprevenir.

—Temosunscincominutosainda.Haruncomeçouadisporascargasdepólvoradentroeaoredordopilar,quandoopequenose

aproximouparaobservá-lasdeperto.DesdequeHarundescobriraqueaminiaturadeUntherakestavarecheadadaquelasubstânciaexplosiva,osinfomostraraumaimensafascinação.

Umestrondosacudiua construção, eo sinfoolhouparao teto comosepudesseenxergaratravésdele.

—Aprimeiracargaexplodiuantes?— Deve ter sido alguma parte do sótão desabando com o fogo — respondeu Harun,

concentrado.—Aexplosãonãovaiserleve.Ziggynãopareciaterachadoaquelaexplosãotãoleveassim.Outrosruídosvieram,ecoandopeloprédioevacuadoàspressas,eHarunnemsequerparecia

estarescutando.—Hã…Harun?—Issotambémnãofoiumaexplosão,Ziggy.—Eusei,éque…—Jáestouacabando.—Temgenteaqui!Oanão,parecendoterlevadoumapedradananuca,olhouparatrás,alarmado.—Eu esperava encontrar algumdos responsáveis por esse incêndio criminoso,Autoridade

Harun—disseNiahkon, parado sob o umbral do salão de triagem.Umdestacamento de seisÚnicosestava logoatrásdele,algunssegurando lançasearchotes,outros, lançaseescudos.—Confessoquenãoestousurpresodevê-loaqui.

Oanãoselevantoueseposicionouàfrentedosinfo,comoseoestivesseprotegendo.—Acendaopaviocomaspederneiras,Ziggy—disse,tirandoomarteloeomachadodocinto.

—Teremostrêsouquatrominutos.Cuidadocomasfagulhas,acendaopavionaponta.— Então, não é apenas um incêndio. — Niahkon apoiou a maça no ombro, um tanto

displicente.Umcinza-chumboonduloupelorostodokaorsh.—Queousadiaadevocês!—Sumamdaqui—grunhiuHarun.—Permissãoparaatacá-lo,AutoridadeNiahkon?—disseumdosÚnicos,queseguravaum

archoteeapontavaalançaparaopeitodoanão.Niahkonfezumgestoparaconterohomem.— Ainda não, Bahas. Quero que dois de vocês avisem ao Palácio que temos um traidor.

Ozhan! Tarih! — ordenou ele a uma humana e um kaorsh que estavam mais ao fundo dodestacamento.—Vão,agora.Vamosprendê-losedepoisoslevaremosparaascelas.

—Nãoestoudispostoaserpresosembrigar,Niahkon—disseHarun,enquantoouviaosomdepedrinhassendoriscadasatrásdesi.

—Vamoslevá-lomesmoassim.—Elepegouamaçanosombroseagirounafrentedocorpo,emulando um golpe lateral. Niahkon estava se aquecendo. — Peça para seu escravo aí atrásinterromperatentativaouserãomortosnestelugar,semachancedeumjulgamentojustoporpartedeUnaedoGeneralProghon.

HarunriuaoverosÚnicosquepartiamàspressasparaadiantaraoPalácioanotíciadequeeleeraumtraidor.

— O mais justo seria você me enfrentar aqui e agora, Autoridade — provocou o anão,colocandotodoodesprezopossívelnaúltimapalavra.—Mas,sequisermandaressesseuscãessarnentosparacimademimantes,tudobem.

OsÚnicosseagitaramcomaofensa,masNiahkonoscontevecomumolharfrio.Harunos

provocou de novo; porém, o segundo disparate passou despercebido, pois Ziggy se colocouentreosdoisAutoridades,talvezolugarmaisperigosodeUntheraknaqueleinstante.

—Quer saber?Não queromorrer!— exclamou ele, levantando os braços.— Eume rendo,senhorAutoridade.

Haruncuspiuumapraga.Niahkongargalhou,surpreso,eosÚnicosoacompanharam.

VenomapediuaRaazieAelianqueseafastassem,poisestavamatrapalhandooserviçodela—que,basicamente,eraobservaroPoleiroemchamas,dooutroladodarua.Jáfaziaalgumtempoqueogrupotinhaentendidoqueamercenáriasetornavaumbarrildepólvoradeouroprestesaexplodirduranteasmissões.Aduplasecolocouatrásdeumaameiaafastada,osolhospregadosnasjanelascompridasdosegundoandar,enquantoaspessoasquesaíramàspressasdolugarseacumulavam nas ruas, afastando-se cada vez mais conforme pedaços do telhado caíam nopavimento.

— Imagino que eles estejam no salão de triagem, certo? — perguntou Aelian para Raazi,percebendoondeestavaaatençãodela.

—Jádevemtersaído.Ouaomenosdeveriamter feito isso—respondeuRaazi,semtirarosolhosdosegundoandar.Haviaumbrilhoesbranquiçadovazandopelasjanelasquepareciaseraluz de archotes, o que não estava ali até umminuto antes. Aquilo a deixou inquieta. — Temalgumacoisaerradalá.

AelianestavaprestesaperguntarqualeraadesconfiançadelaquandodoisÚnicosdeixaramoPoleirocorrendo,pelaportadafrente,reconhecíveisàdistânciaporcausadasarmaduras.Raazipareceuficartensaaoveramovimentaçãodossoldados.

—Venoma,achoque…—Jásei—retrucouela,erguendoabestacomasetapreparada.Eramarcadacomumapena

verde,ouseja,tinhaapontaenvenenada.—Essasarmadurasnãomedãoumabrechafácil!Aeliannãoentendeudoqueelaestavareclamandoesesurpreendeuquandoumasetavoou

comum zunido.OÚnico de viseira levantada levou asmãos ao rosto, praticamente a únicaparte descoberta em seu corpo, e caiu de joelhos. O outro interrompeu a corrida ao ver oparceirocaindo,mas,emquestãodesegundos,tambémfoiaochão,estrebuchandojuntocomoprimeiro.Amortedosdoisfoirápida;algunssegundosdeagonia,eoscorposficaramimóveis.VenomaabaixouabestaefoiparapertodeAelianeRaazi.

—Acabeidenunciandominhaposição.Precisamosirparaoutropontodotelhado.Aelianergueuodedoparacontestaraquelanecessidadeparanoica.Contudo,algoaconteceu

nosegundoandardoPoleiroantesqueelepudessefalarqualquercoisa.

Harunestavanochão, cobertodepoeira, tentandocolocar emordemosacontecimentosdoúltimominuto.

Primeiro,ZiggyresolveuseentregaraNiahkon.Assim,donada.Oanãojápreviaqueomiúdonãoteriaacoragemnecessáriaquandoasituaçãoapertasse,eaquelaeraapenasacomprovação.

Então,BantuOkodeeresolveuaparecer.Agoranão!,pensouHarun,comtantoardorquenãoestranhariaseoavôoescutasse.—Confienomiúdo, seupedaçodegosma inútil— falouovelho, indicandoo sinfocoma

cabeça.Harunolhouparaele,indignado.—Nãoésóvocêqueéesperto,deixedeserarrogante!Comumandarcabisbaixo,ZiggyparoudiantedeNiahkonesevirouparaoanão—que,aos

olhosdosguardas,pareciadesnorteado,olhandodeumpontovazioàdireitaparaoparceiroseentregandoaosguardas.

Bantudesapareceutãorápidoquantosurgira,eHaruncomeçouasuspeitardequeasituaçãonãoestavatãoforadecontrolequantopensava,afinal.Aindacomosbraçoserguidos,osinfomantinhaumadasmãosfechadas.

—Oque...?Então,ZiggydeuumapiscadelaparaHarun.E,tãorápidoquantoumaserpente,arremessou

umpunhadodepólvoradeouronoarchotequeoÚnicomaispróximosegurava.Niahkono tinha chamadodeBahas, e aquela seria a últimavezqueo soldadopoderia ser

reconhecido. Ao entrar em contato com o fogo branco, o pó dourado causou um lampejoimenso,queeclodiunosalão,fazendoasbalançaseosutensíliosmetálicostremerem.OÚnicoabriuabocaparacensuraromovimentobruscodoprisioneiro,masoavisomorreujuntocomele.

Quandooclarãopassou,Bahasquasenãotinhamaiscabeça.Umburacodecarnefumegantetombou no chão, assim como os outros soldados. Dois deles gemiam de dor, enquanto umterceiro,arremessadodecostasnaparedecomoumabonecadepano,estavaimóvel.

Niahkoncaiudebruçosaumadistânciadecincometros,amaçaforadeseualcance.Osinfoconseguira se jogar para o lado e também voou algunsmetros, impulsionado pela explosão.Harun havia saltado sobre o corpo dele, procurando protegê-lo. Suas roupas estavamchamuscadas,eZiggytossiadebaixodele.

—V-vocêestábem?—perguntouHarun,sentindoacabeçadoer.Uma lasca de alguma coisa o acertou na testa e piorou a sensação de deslocamento que a

explosãotinhacausado.Ziggyapenastossiuemresposta,eoruídodeNiahkonselevantandofezcomqueHarunseforçasseafazeromesmo,sóquemaispreocupado.

O kaorsh pegou amaça a tempo de bloquear um golpe domartelo deHarun destinado àcabeça dele. O choque de metal contra metal era agudo demais para aqueles ouvidossensibilizadospelaexplosão.Rolandoparaoladoejásecolocandodepé,foiavezdeNiahkoninvestirnumgolpe,obrigandoooponenteabloqueá-locomsuasduasarmascruzadassobreacabeça.

Ziggyse levantouenquantoosdoisAutoridades lutavam, indoparaosfundosdosalão.OsdoisÚnicosaindavivoscomeçavamarecobrarossentidos.Opequenotomouoescudodeumdelesegolpeouacabeçadeamboscomforçamaisdeumavez.Doisproblemasamenos,pensouosinfo,queaprenderaapotênciarealdapólvoradeourodojeitomaisdoloroso.

Nessemomento,todooPoleirochacoalhou.

Osqueestavamnasruascomeçaramacorreromaisrápidopossívelquandoumdosandaresnomeio do Poleiro explodiu com um estrondo ensurdecedor, fazendo escombros e pedaços depedra choveremno pavimento. Raazi protegeu os olhos da poeira que atingiu o Balde e viuAelianfazeromesmo.Venomaquasenãosemexeu,apenaspuxouapontadocapuzumpoucomaisparabaixo.

—Nãocaiu—resmungouAelian.UmasériederangidoseestourosvinhadoPoleiro,comoseoandardaexplosãoestivessecedendoaospoucos.— Játinhaquetercomeçadoacair,nãoé?Algumacoisadeuerrado.

—Estáreclamandodoquê?—falouRaazi,tentandosuprimiraprópriapreocupação.—Porenquanto,vocêestáganhandoaaposta.

—Sóqueroveresselugarhorrívelruir.E,comoseobedecesseàspalavrasdele,oPoleirocomeçouadesabar.

Harun e Niahkon continuavam a dança brutal de ataque e esquiva como se não tivessempercebidoqueoaltodoPoleiroestavasedesfazendo.Osomdoschoquesdasarmassediluíanomeiodocaossonoroqueolugarsetornara,eZiggyprotegiaacabeçacomoescudoroubado,paradoàentradadosalão.

—Harun!Temosquesairagora!Oapelofoicomoumsussurronomeiodamultidãoe,talvezelenãootivesseescutadonem

selutassenumlugarcalmosemaiminênciadedesabar—muitosanosdedesavençasentreeleeNiahkonpareciamestarsendopassadosalimponaquelemomento.

Acuadocontraaparede,okaorshusouumaesquivalateralparaescapardasarmasdoanãoedeixouobraçogiraraclavaduranteomovimento.Comoobraçodeleeranaturalmentemaiorqueodooponente,apontadesuaarmaatingiuatêmporadoanão,quecambaleouparatrás.SeHarun fosse de qualquer outra raça, aquele golpe teria amassado seu crânio e encerrado ocombate alimesmo—mas lá estava ele, chacoalhando a cabeça ensanguentada e retomando,resfolegante,aluta.

—Vamossersoterradosaqui,AutoridadeHarun—provocouNiahkon,abrindoosbraçosesorrindonomeiodachuvadepoeiraedetritosquecaíaaoredordele.—Oquemeconfortaé

que,mesmo semorrermos, osÚnicos vão passarmeu recado para o resto da guarda, e a suafamíliavaipagarpelasuatraição.

—Caleaboca!—Voudeixarmeucanväsdeconsciênciatranquila,sabendoqueasuaesposavaiserarrastada

pelocabeloenquantoopequenoÔnixserápisoteadoporbotasdeferro.Masvocêjádeveestaracostumadocomisso.Nãovaiseraprimeiravezqueperdeumfilho,certo?

Haruntinhaparadodeescutarnapartedo“suafamíliavaipagar”.Aquilo jáeraosuficienteparaguiarsuaraivanumainvestidacegacontraoinimigo.

Elecorreu,erguendoomarteloacimadacabeça.Niahkonoesperou,parado, saltandoparatrásnoúltimosegundoedescendosuamaçanoombrodireitodooponente.Harungritoudedor,masusouomachadonaoutramãopararevidar,mutilandooinimigo.Amaçafoiaochão,comosdedosdeNiahkonaindafechadosaoredordocabo.

Em choque ao vermetade do braço separado do corpo, o kaorsh não percebeu omartelovindodeencontroàsuamandíbula.Mesmocomoombrodestroçado,Harunconseguiuerguerobraçoparafinalizarooponente.

Ziggyfechouosolhos.Quandovoltouaabri-los,viuHarunchutandoooutroAutoridadee,nopilarcentral,opaviopróximoàcargadepólvora.

—Temospoucomaisdeumminutoparasair,eeunãovousemvocê!Enxergandocomapenasumdosolhos,poisooutroestavacegopelosanguequeescorriado

ferimento na lateral da cabeça, Harun encarou Kaorsh, protegendo-se com um escudo dosÚnicos,masparecendonãoligarparaofatodequeotetopodiadesabaraqualquermomento.Precisaria de pelo menos mais um instante com o homem que ameaçara sua família. Quereavivaratantaslembrançasdolorosas.

Com omaxilar deslocado, Niahkon cuspia dentes emmeio a sangue. Na poça do líquidovermelho, direcionou o olhar para o anão, e depois para o sinfo, que se aproximava com oescudosobreacabeça.

—Pelaúltimavez,temosqueir!—gritouZiggy,puxandoHarun.Niahkonfezumsomgrotescoqueoanãodemorouaperceberquesetratavadeumarisada.

Forçadaemoribunda,massemdúvidaumarisada.—Umaveztraidor—disseokaorsh,comdificuldade,paraosinfo—,sempretraidor.Lembre-

sedisso.Harun apertou os lábios, cogitando separar também a cabeça do restante do corpo do

Autoridade,quetentavaenvenenarZiggycomsuasúltimaspalavras.Noentanto,osinfomalpareciaterregistradoaquiloereservavatodaaforçaquetinhaparafazeroanãosegui-lo.

—Agora,Harun!—gritou,tentandomanterosolhosabertosnomeiodapoeira.—Elenãovaisobreviver!Temosqueiragora!

O anão finalmente o olhou, engasgando no próprio sangue, e só então sentiu a urgênciatomarcontadeseucorpo.Aduplacorreuomaisrápidopossívelcomsuaspernascurtas,e,por

maisqueZiggycorressebemmaisqueHarun,continuouaoseuladoduranteatravessiadosalãoeadescidadoúltimolancedeescadasparaotérreodoPoleiro.

Vestindoummantoencardido,AeliandesceupelaparedelateraldoBaldeatéarua,infiltrando-se na multidão amedrontada, que encarava o Poleiro a distância. Num momento em queninguém prestava atenção naquele lado da rua, tirou do bolso uma cabaça repleta de tintavermelhaeaestourounaparededaqueleprédio:depoisdetodoaqueleataque,umamarcadacorproibida seriauma imensadúvidaplantadanosÚnicos.Coma tinta ainda escorrendo,olhouparacimaeviuRaazieVenomadeolhosfixosnaentradadoprédioquedesabavaaospoucos—ambastãopreocupadascomZiggyeHarunquantoele.

Então, duas figuras cruzaram a entrada do Poleiro, provocando um arquejo de alívio emAelian:estavamcomorostoocultoporumescudo,masnãohaviadúvidadequeeramumsinfoe um anão. Aelian apontou para os retardatários do Poleiro e correu na direção deles,certificando-sedequeseurostoestavaoculto.Assimqueosalcançou,ofereceuobraçoparaoanãoseapoiar,poiselepareciacaminharcomdificuldade,deuumaolhadelanotopodoBaldeeviuVenomaerguerabalestra,dandocoberturaparaocasodeostrêssereminterpelados.Raazisinalizoucomamão—aetapafinaldatarefa,aextração,estavaconcluída.

Então,osegundoandardoPoleiroexplodiu,jogandootrionochão.Todaapartesuperior,que até então desabava aos poucos, terminou de ruir de uma vez só, como se tivesse setransformadoemareiaescura.

Umapoeiragrossaavançousobreoscuriososadistância,comoumapragadivinaquetentavaalcançarinfiéisdesesperados.Aelianusouomantoparaprotegerosamigos,eotrioaproveitouqueasruasficaramcobertasporfumaça,poeiraecinzasparasemisturarnamultidãoantesdeseguirparaopontodeencontro:oCoraçãodaEstátua.

Mesmoespremidopelaaglomeração,umexaustoHarunpareciaquererdizeralgoimportanteaAelian,queseinclinouparaescutá-lo.

—Vocêmedevedezaltin.Comocorpotensoeaadrenalinaàflordapele,Aeliandemorouparaentenderdoqueoanão

estavafalando.Masentãoolhouparatrás,porentreapoeiraquesedissipava,nadireçãodeondeoPoleirocostumavaficar.

É,eledeviamesmo.

25

Retornar de uma incursão direto para o Coração da Estátua sempre causava uma espécie dechoque: o grupo saía do meio da sujeira e do sangue para terminar naquele lugar calmo,iluminadoeaconchegante.AlieraoúnicopontodetodaUntherakemqueconseguiamacalmarosânimos.ErairônicoquefossedentrodeUna.

Anna estava sentadadepernas cruzadasnomeiodo cômodoqueusavampara treinos. Elacostumavaficarmuitotemponaquelaposição,meditando,e insistiaemquetodosfizessemomesmo. Pormotivos diferentes, Aelian e Harun tinham dificuldade em permanecer quietos,“deixandoospensamentoseasmemóriasescoarem”,comodiziaAnna.ZiggyeRaazi,porém,sempreacompanhavamamentoraporhorasdecontemplaçãosilenciosa.

AelianentrounosalãoeviuAnnameditando,observadaporThruleBicofino,quepareciamadorar a companhia da mulher — ou estavam extremamente curiosos com aquela humanaimóvel.Elaabriuosolhosquandoouviuogrupochegandoeselevantoucomcalma.

—Estãotodosaqui?AelianassentiuenquantoelesseagrupavamaoredordeAnna,parecendoexaustos,mascom

certobrilhoexultantenoolhar.Venomafoiaúnicaquenãosejuntouaogrupo,poisparouemumbalcãoparalimparabalestraecomeçaramanutençãoquesemprefaziaapósasmissões.

— Vocês estão com umas caras péssimas — disse Anna, sorrindo, enquanto fazia carinho,distraída,emBicofino,pousadoemseupulso.—Masficocontentequetenhadadotudocerto.Harun,venhaatéaqui,voupassarunguentonoseumachucado.

—Vocêprecisavermeuombro.—Vouveragora.Tireacota,porfavor.—Teria sidomelhor se você tivesse ido conosco— disse ele, largando o cinto de armas e

ferramentasnochãoparacomeçaratiraraproteção.Raaziseaproximouparaajudá-lo,jáqueosmovimentosdoanãoestavamlimitados.—Nomínimo,teriasidomaisrápido.Nãoentendoporquenuncavai.

—Porquequandoelavai,ascoisasfogemdela—resmungouAelian,baixinho,lembrando-sedosubterrâneodoPalácio.

—Vocêsnãoentendemmuitascoisas.Nãopodereiajudá-losparasempre—disseAnna,indoatéumaestanteevoltandocomumpinceleumacumbucacheiadapastavermelha:seueficazunguentovermelho.—Queroquesejamtãoeficientesquantoeunahoradeentraresairdeumlugar.SeumaApariçãocausaincômodoemUna,queroquesejamosseisAparições.E,sobretudo,queroqueestejampreparadospararetaliações.Poiselassemprevêm.

—Eficamcadavezpiores—falouZiggy.

—Estáardendomaisqueonormal—reclamouHarun,semfazercaretadedor,enquantoAnnapincelavao líquidono cortena lateral da cabeça enoombrodele.—OmalditodoNiahkonquasemematae…Ei!Camaleoa!Nempensenisso!

Ziggy se sentou na frente de Harun. Aelian foi retomar a leitura de um documento querelatavaomovimentodasestrelasnocéu, chamadopelosantigosescribasde cartas estelares.RaaziestavaparadanafrentedaminiaturadeUntheraknosalãoaoladoecongelounolugar,osolhosarregalados,sementendernada.

—Oqueeufiz?—Nada,mas ia fazer! Ia tirar oPoleirodaminiatura, não ia?—disseHarun, erguendoum

indicador.MudançasnageografiadoUnificadoeramsempreatualizadaspeloanão,quetratavaaquelaUntherakcomoumbrinquedoquesóelepodiatocar.—SeaverdadeiraUntherakédeUna,deProghonedaCentípede,essadaíéminha!

—Vimsóolharquantodepólvoradeouroaindatemos,seumaluco!—Acredite,háosuficienteparaumataquedosbonsaoPalácio.Agorasaiadepertodaminha

maquete!— Daqui a pouco vamos ter que incluir outro tirano nos nossos planos — disse Raazi,

revirandoosolhoseseafastandoparaooutrosalão.Annasorriucomcumplicidade.—ContantoquefaçamissonaspróximastrêssemanasetenhamfôlegoparaaUntherakde

tamanhorealnonossograndedia,nãovejoproblemas—falouela,pedindoajudaparaZiggynahoradeamarrarumaespéciedeemplastrodefolhaseunguentonoombroferidodeHarun.

—Otempopassoutãorápido—disseZiggy,queesperavacombastanteansiedadeporaquelemomentodesdequeAnnarevelaraoplanoaeles.

Claro,pensouAelian,desconcentrando-sedascartasestelaresporumsegundo.Eletambémestavabastanteansiosoparaverofirmamentodesabar.

AestranhaimersãonosescritosantigosqueAelianexperimentounaprimeiranoitedentrodaestátuaomarcoudediversasformas.EracomumqueelesonhassecomacriaçãodaMácula,comohomemquesetornariaProghon,comaCentípedefazendosuaestranhadançademilbraços.

Porém,umadascoisasquemaislhemarcoufoiterpercebidoquegrandepartedopoderdeUnavinhadeumahistóriacontadaàsavessas.DuranteaconstruçãodeUntherak,aCentípedetinhausadooeclipsecomoumademonstraçãodepoderdadeusaunificada—e,anosdepois,anarrativasetransformaranotextodaFúriadosSeis,conhecidoportodos.Noentanto,Aeliansabiaaverdadeagora:adeusanãocobriraoSolcomMácula,poisasubstânciasófoiinventadamuitotempodepois.Comfrequência,ashistóriaseramreadaptadasàsnecessidadesdoPalácio,incluindoumnúmerocadavezmaiordedetalhesabsurdos.OrioAbissaljáhaviatransbordado

algumascentenasdevezesaolongodemilanosem“acessosderaiva”dadeusa,enãoporqueriostransbordamnaturalmente.Opovocompravaaideiaquelheeravendidaporqueeraaúnicaideiavendida.

A Centípede conhecia omovimento dos astros damesma forma que os antigos escribas.Aelian sabia disso. Porém, ao longo daquelesmeses de ações porUntherak, ele percebeu queAnnatambémtinhagrandepartedaqueleconhecimento.

Adivinharoclimadamanhãseguinteatravésdaneblina,saberquandochoveriaapenaspelocheiro do vento: sinfos podiam fazer isso. Saber em quanto tempo uma tempestade de areiaatingiriaasMuralhasdaBordadoladovoltadoparaodeserto:oskaorshsconseguiamfazerisso.Contudo,sabercomexatidãoodiaeahoraemqueocorreriaumachuvademeteoritos:talvezAnnafosseaúnicacriaturacapazdepreveressetipodecoisa.EfoioqueelafeznumanoiteemqueZiggy tocava seualaúdeeAelian tentavaacompanhá-lo comumaocarina, esforçando-separa não estragar a música. Anna meditava perto deles, nem um pouco incomodada pelobarulho.

—Vocêdesceuotom—avisouosinfonummomento,semparardededilhar.—Essaparteémaisaguda.

—Ah—disseAelian,tentandomaisumavez.Soprouoinstrumento,eumsomengraçadosaiu,talvezpelaposiçãoerradadaembocadura.

Ziggycomeçouarir,maisdasituaçãoemsiquedoerrodeAelian.Opequenonãotinhaotipodesensodehumorqueviagraçanasfalhasdosoutros.

—Deixeoslábiosmaisfirmes,vocêestáparecendoumavelhinhachupandoumfavodemel—disseele.

EssecomentárioconseguiufazerAnnasairdeseuestadodeabstração.—Pronto,agoraaApariçãoriudemim,eaculpaétodasua—reclamouAelian.—Estou rindomaisdoqueZiggy faloudoquedevocê,Aelian—disseela, levantando-see

pegandoumpoucodeáguanumajarrapróxima.Amulherdeuumlongogoleeolhouparaosinfo.—Vocêteriasedadobemcomumvelhoamigomeu.

—Ah,é?Quem?—NósochamávamosdeAbsinto.—Deixeeuadivinhar:eleeraumbêbadoinveterado?—perguntouAelian.—Nãopossonegarqueelepassavamaistempoembriagadoquesóbrio.Noentanto,aorigem

donomedeleeraoutra.Vinhadeumaestrela.Ziggybaixouoinstrumentomusicalnamesmahora,interessadonoassunto.—Elesabiaomovimentodascoisasládecima,quenemvocê?—Naverdade,foielequemmeensinouosprincípiosbásicosdoestudodosastros.—Bom, se umapessoapode aprender amecânicadomovimentodas estrelas, ainda tenho

esperançasdeaprenderatocarumaflautadireito—disseAelian.—Então,comecechamandoacoisapelonomecerto. Issoaíéumaocarina!—falouZiggy,

dandoumtapanascostasdohumanoepiscandocomcumplicidadeparaAnna.AmbossabiamqueAelianestavaindomuitobemnapráticamusical,apesardetercomeçadotarde.—Bom,eudariatudoparaverapassagemdeumcometa.Sóqueissoétãorarodeacontecerqueumsinfoprecisariatermuitasorteparanascernahoracerta.

— Considere-se sortudo, então — disse Anna. — Em algunsmeses, teremos uma chuva demeteoritosquepoderáservistaaolhonu.

— Você está brincando! —O pequeno se levantou, deixando o alaúde cair com uma notadesastrada.—Ésério?Sériomesmo?

—Eunãomentiriaparavocê,pequeno.— E como vai ser? — indagou Ziggy, bastante empolgado. — Como é uma chuva de

meteoritos,exatamente?Annapareceusevoltarparadentro.Elaencaravaochão,maspareciaestarbuscandoalgoem

algum ponto profundo da própriamente. Aelian pensou em como era estranho que naqueleinstante, no interior do Coração da Estátua, houvesse uma pessoa muito parecida com omonumentotambémvoltadaparaseu interior.Eracomoumadaquelasbonecasumasdentrodasoutrasqueosanõesfaziamparaseusfilhos.

Depoisdealgumtempo,quandopareciaqueAnnatinhasedesligadodaconversaevoltadoameditar,elarespondeuàperguntadosinfo:

—Serácomoseocéuestivesseaonossoalcance.Ziggysorriu.Eraosuficienteparateralgopeloqualesperarpelosmesesseguintes.Efoientão

queAelianpercebeuumacoisa.—Espera…vocêsabeexatamenteodiaeahoraemqueachuvademeteoritosvaiacontecer?—Bom,éexatamenteparaissoqueestudamososastros—respondeuela,pensativa.Aelianselevantouderepente,batendoaocarinanapalmadamãolivresemparar.—SeUnatomouopoderquando“tingiuoSoldenegro”—disse,abrindoumsorrisoquase

febril—,entãovamosderrubá-lajuntocomasestrelasecontarahistóriaqueUntherakmerece!Ziggy demorou a entender. Anna sorriu de imediato, e Aelian ficou exultante em ter

conseguido pensar em algo assim. Com um evento grandioso daqueles, seria mais fácilconvencerumpovodomesticadodequeumagrandemudançatinhachegado.

Anos depois, sob a luz da memória que pode tanto nublar quanto clarear momentosimportantes,Aelianselembrariadaquelesorriso—quenãoeraodealguémqueouviraumaideianova ou que estivesse surpresa. Aquele era o sorriso de alguém que chegara ao ponto queplanejavaequesabiamuitobemoqueestavafazendo.Eraosorrisodeumaestrategista.

—TudoderuimacontecenosmeusDiasdeLouvor.Nãopossodeixarqueelaperceba—falouHarun,tentandoesconderoemplastroeolíquidoavermelhadodebaixodasroupas.Nosúltimos

tempos,eleviviapreocupadocomoqueaesposapensariasecomeçassealigarospontossobresuas escapadas para as missões. — Vou voltar para casa assim mesmo, e invento que memachuqueinaquedadoprédio.

—NinguémvaiinterrogarvocêsobreseuparadeiroduranteoqueaconteceunoPoleiro?—questionouRaazi.

Eledeudeombrosefezumacaretarápidadedor.—QuemsempremeinterrogavaeraNiahkon.Agoraachoquesóprecisomepreocuparcom

Cora.—ElaaindaédevotadeUna?—ElaaindaédevotadeUna—respondeuele,bufando.Aqueleassuntosempreoirritava,ea

mudançadaconversafezcomqueeleseapressasse.—Atébreve,então.AlguémvaiparaoPortãoSul?Miúdo?

— Preciso levar o Thrul para pastar, vou para o Segundo Bosque pela saída dosAssentamentos.Aelianvaicomigo,acho—disseZiggy,olhandoparaorapaz,quelevantouosolhosdascartasestelaresporuminstante.

—Sim,daquiapouco.Jáestouterminandoaqui.—Voucomvocês—disseRaazi,mostrando-seumpoucoanimadacomosucessodamissão.

—Querobeberalgumacoisa.Vemcomagente,Venoma?—TenhoassuntosatratarcomAnna—respondeuamercenária.AelianobservouamoçaantesdeHarunirgingandonadireçãodasaída.— Tudo bem. Fico feliz em poder fazer uma longa caminhada silenciosa por longos e

sombrioscorredores,semninguémtagarelandonomeuouvido.Efoiembora.Apósalguns segundos,osque lá ficaramseentreolharam,de sobrancelhas franzidas.Ziggy

olhouparaAnna,aúnicaquenãopareciaintrigada.—Seissofoiumaindiretaparaalgumdenós,achoquenãoentendi.

26

Raazipensavanosilêncio.Cinco meses antes, quando a convivência com aquele bando de desgarrados se tornara

inevitável,asrefeiçõesàsescondidaseasnoitesdentrodoCoraçãodaEstátuaerammarcadaspelatimidez,desconfiançaetristeza.Ziggyeraoquemaisconseguiaseaproximardelescomsuainocência,mastambémsabiaquandosecalar—asensibilidadedeleem lerossentimentosdopróximoerainvejável.Talvezescutassealgonavozouatémesmonaquietudedosoutrosquelhedizia ahoradedeixá-los sozinhos.Os frequentesdesentendimentos entreAelian eHaruneramresolvidoscomcomentáriosdesinteressadosdapartedosinfo,queacabavammurchandoosânimosafloradosdohumanoedoanão.Raazipensavaqueocomportamentodopequenoeranamaior parte do tempomuitomenos infantil que o dos outros dois — os fatores idade etamanho talvez fizessem as outras espécies subestimaremos sinfos como criaturas imaturas.Elesconseguiamoquequeriamsemabandonarumtraçopueril.Osadultosdeoutrasespéciesenterravam a infância debaixo das responsabilidades e dos sofrimentos, e os sinfos pareciamfazersentimentoscontraditórioscoexistiremdentrodocurtotempodesuasvidas.

A kaorsh ainda notava longos silêncios entre os aliados, mas agora nenhum deles geravadesconforto.Naverdade,essesmomentoseramcheiosdeconfiança,confidênciaousejaláoquealgunsmesesdecombatefurtivocontraumregimetiranopoderiamconstruirentrecúmplices.

ApenasVenomaaindaeraumaincógnitaparaRaazi.Nummomento,amoçafaziaquestãodecompartilhardasrisadasdogrupoe,nooutro,nemsequeraceitavabeberdomesmogargalodeumagarrafadevinhoproibido.Adualidadediscrepantedelanãovinhasódeseusanguemestiço.ConfirmandoassuspeitasdeRaazi,Venomaconfessaraqueera filhadeumahumanacomumkaorsh.NemAelian—quecomfrequênciadividiaacamacomela—saberiadizermuitosobreseu passado, nemmesmo o nome verdadeiro damulher, supondo que Venoma devia ser suaalcunhademercenária.

—Vocêsnãoconversamapósocoito?—questionavaHarun,comasensibilidadedesempre.Aelianreviravaosolhosquandooassuntodebandavaparaaqueleslados,comose,nofundo,

nuncafosseseacostumaracompartilharcoisastãopessoaiscomseuex-carcereiro.—Eu…játentei.Maselanuncaresponde.Oudizqueestácomfomeeseafasta,oudorme.Foi num desses momentos que Ziggy perguntou para Aelian se era verdade que Venoma

dormiadeolhosabertos,efoientãoqueRaazidescobriuquesim,mascomapenasumdosolhos.AkaorshvoltouaopresentequandochegaramnoporãodoesconderijonosAssentamentos.

ZiggyeThrultinhamsaídodostúneisumpoucoantesdofimdotrajeto,jáqueobetouroeragrandedemais para os caminhos apertados até o casebre.Aelian saiu primeiro pelo alçapão e

Raazioseguiu.Vestiramsuascapasparapoderemcircularpelasruassemseremreconhecidos.Ambostinhamdeixadoalgumasroupasalinocasebreporprecaução,pormaisqueRaazipudessealteraracordoscabelosedapele.Amanchaazulsefixaraaoredordeseuolhoesquerdo,eumcapuzsempreeraútilparaafastaroscuriosos.

Aelian concordou em passar no Pâncreas para beber algo. Contou para Raazi que já faziaalgumassemanasquenãoviaTomesuafamília.

—Pormaisqueaestátuatenhaumbomestoquedebebidas—disseele—,achoquesintofaltadetomarcervejaoualgoquenãoestejaarmazenadohácentenasdeanos.

Atavernanãoestavacheia,oqueeraruim,poisquantomaisgentehavianumlugar,menosatençãoosrecém-chegadoschamavam.

— Estranho — sussurrou Raazi. — O Pâncreas deveria estar cheio, como todo e qualquerestabelecimentoquevendeálcoolapósumacontecimentoestrondoso.

—Éverdade.PenseiqueteriaummontedegenteaquidentrocomentandosobreoPoleiro…Akaorsholhouaoredor.Algunsanõesquepareciamcansadosjogavamdadoscomapostas

baixasnamesa,eramaisparasedivertirdoqueparatentar faturaralgumagrana.Umhomemroncava no balcão, de frente para um caneco de cerveja escura pelametade. Eram os únicosclientes.Naquelecasoespecífico,osilêncioestavaincomodandoRaazi.

Seguiram para os fundos, onde Taönma os recebeu com um sorriso, varrendo a poeiraacumuladanopisodemadeira.

—Quebomvervocês!—Elaabraçoutodos,deixandoavassouradelado.—Querembeberlánodepósitoparaficaremmaisàvontade?Tomestálá.

Foramparatrásdobalcãoenquantoobêbadodorminhocosoltavaumroncoalto.Assimqueentraram,viramo taverneiroeo filhoempilhandoalgunsbarrispróximoàporta.Dentrodoambienteseguro,AelianabaixouocapuzeabraçouoPequenoTom.

—Ora,ora—disseTom,opai.—Penseiqueteriaquefazertodootrabalhosozinho!—Nãonosleveamal,Tom—disseRaazienquantoohomembeijavaamãodelacomternura.

—Masviemosbebermesmo.Foiumdiacheio.Tenhocertezadequevocêsabe…Otaverneiroriu,dandoumtapinhanascostasdeAelianevoltandoaosbarris.—Ah,sei,sim…Masmeajudemalevarosbarrisatéafestae,então,todospoderemosbeberpor

lámesmo.Acarnevaiestarnopontoquandochegarmos.AelianolhouparaRaazi,sementender.—Quefesta?OdonodoPâncreasdeuumrisofrouxo.—Vaisefazerdedesentendidoparanãomeajudar,né?Tudobem,oPequenoTomjáestámais

fortequevocê.Mostreomuqueparaele,filho!Aelian, embora não perdesse uma chance de brincar com o filho do amigo, nem prestou

atençãonogarotoenquantoeleflexionavaobraço,mostrandoummuqueminúsculo.—Nãofiqueisabendodefestanenhuma,estoufalandosério.Vocêresolveudaruma?

—Rapaz,vocêestámedeixandopreocupado.—TomolhouparaRaaziedeuumapiscadela.—Elebateuacabeçaoualgoassimduranteopasseiodestrutivodevocês?

—Tom—começouakaorsh,séria,acordapeleedoscabelosvoltandoaonormal—,quefestaéessa?

Desconcertado,otaverneiroolhouparaosbarrisempilhados.— Vieramme avisar há umas duas horas que vocês dariam uma festa e que mandariam a

comida por Raeth, aquele bandidinho que tentou arranjar encrenca com a dona Aparição,lembram? Enfim, ele estava todo empolgado. Pensei em contribuir com a bebida, como daúltimavez…Quecarassãoessas?Nãosabiamdisso?

—Nósnãoplanejamosnada,Tom—disseAelian,sombrio.—Comoassim?Annanãoavisouavocês?Raazicobriuorostocomocapuz,jáseencaminhandoparaforadodepósito.—Vamos.Algumacoisaestáacontecendo.

Eles seguirampelasvielas,nadireçãodo local emquea fogueira foi erguidanaquelanoitedefuga,comemoraçãoekaita.Taönmaresolveuacompanhá-los,mesmocomTompedindoqueelaesperassenoPâncreascomofilho.Elanãolhedeuouvidosesaiudepressaatrásdomarido,AelianeRaazi,deixandoatavernaaoscuidadosdeumconfusoPequenoTom.

Ogrupoouviuvozesantesmesmodechegarnaclareiraentreascasas.Entretanto,aquiloemnadasepareciacomoburburinhodeumacomemoração.Naverdade,ossonseramlamentos,chorosepedidosdesocorro.Aeliandesembestouacorrer,eRaazioultrapassou,derrapandonaterraaochegarnacenaqueosaguardava.

—Não…Haviamuitagentecaídaaoredordafogueira.Olhosarregalados,sangueevômitoescorrendo

pelosqueixos.Humanos,anões,kaorshs…criançasdastrês raças. Idosos.Rostosconhecidosedesconhecidos. Aelian congelou ao lado de Raazi, que levou a mão à boca. Tom abraçouTaönma,queafundouorostonoombrodeleecomeçouachorar.Maistarde,elacontariaqueoprimeiromortoquetinhareconhecidoeraumamigodofilho,umacriançadamesmaidadequeoPequenoTom.Eleestavacaídodelado,umadaspernasdobradaembaixodocorpoeaoutra,esticada.Haviaumafatiadecarneassadaemsuasmãos,pelametade.

Quase todos os mortos estavam próximos a pedaços de carne. Muita gente vomitava oudesfalecia ao redor da fogueira, enquanto pessoas que não entendiam o que estava havendotentavamacudi-los.

— O q-que está acontecendo? — perguntou Aelian, saindo do torpor e correndo de umcadáveraooutro,checandoaspulsações,tentandodespertaroscaídosquenãoestavamdeolhosarregalados.

Próximoaofogoquequeimavacomacornatural,elereparouqueopróprioRaetheraumdosmortos.O ex-falcoeiro reconheceu o homempela soqueira enferrujada pendurada numacorrenteemseucinto,poisorostoestavainchado,commarcasestranhas.Seusdentesdeouroapareciampelabocaentreaberta.

Raaziolhouaoredor.Umakaorshdecercadetrêsanoschoravaaoveramãecaídadebruços.Aquelacena fezumacorrentedeadrenalinapercorrerseucorpo,eelaseadiantoupara tiraracriançadepertodocadáver.Ameninacomeçouaespernear,eaquelesomerapiorqueavisãohorríveldaquelelugarqueforapalcodemomentostãoagradáveis.

Raazi a segurou forte comapenasumdosbraços, tentandoacalmá-la,masemvão.Comaoutramão, virou o corpo da kaorsh, deixando-a com o rosto para cima.Havia um fiapo desangue saindo pelo canto da boca damulher morta, e um estranho desenho no pescoço dafalecida,comoveiasestouradas.

—Veneno—balbuciouRaazi,emmeioaochoque.Aelian,queestavaapoucosmetrosdaaliada,interrompeuoprocessodechecarseoscaídos

aindaviviam.Aquelaúnicapalavraressooudemaneiradesconfortávelnacabeçadele.

ApesadaportadoCoraçãodaEstátuabateucommaisforçaqueonormal.Aelianirrompeunosalão a tempo de verAnna eVenomadobrando ummapa daVilaA, como se o assunto nãopudessesercompartilhadocomeles.

—Vocêsnosdevemexplicações!—exclamouele,apontandoodedoparaasmulheres.Raaziseguialogoatrás,eaexpressãodelatambémnãoeradasmelhores.

—Perdão?—Venomaestranhouotomdevozdooutroecruzouosbraços.Aelian se adiantou na direção da mercenária como uma carroça desgovernada, mas foi

interpeladoporAnna,quesecolocouentreosdois.—Acalme-se,Aelian—disse, pousandoumadasmãosnopeito dele, que parou.Venomao

encarouumtantosurpresa.—Porquevocêsvoltaram?—TempelomenoscinquentamortosnosAssentamentos—grunhiueleentreosdentes,o

olharindodeAnnaparaVenoma.—Envenenados.Amoçaarregalouosolhosedeixouosbraçospenderemaoladodocorpo.Annaolhoupara

elaporuminstante,semalteraraexpressãosevera,eentãosevoltouparaAelian.—Venomaestácomigoháhoras,desdequevocêssaíram.Elanãoteriacomotersaído.—Enemmotivo!—gritouamercenária,ofendida.—Eoqueasduasestavamplanejando?—perguntouAelian,forçandoocorpoumpoucopara

afrenteaindasemconseguirsairdolugar.EleseesqueciadecomoAnnaeraforte.—Nãoédasuaconta!—retrucouVenoma.—Porquenão?Nãoestamostodosjuntosnessa?

—Calados,vocêsdois—disseAnna,semumpingoderaivanavoz.Elesobedeceram.—Aelian,vocêtemrazão,estamostodosjuntosnessa.EueVenomaestávamosdiscutindoumpróximopassobastanteimportanteparaamissão:aneutralizaçãodealgunsAutoridadesecomandantesdeUna.Euapenasdiziaqualsãoospróximosalvosdela.Agora,meexpliquemessahistóriademortosnosAssentamentos.

—Nãoacreditoquevocêdesconfioudemim,idiota—balbuciouVenoma,oslábioscrispados.Aelian ia começara falar, aindacomosnervosaflorados,masRaazi,queaomenosparecia

maiscalma,tomouapalavra.—Alguémanunciou umanova comemoraçãonosAssentamentos, como se fossenossa.A

carne estava envenenada. — Ela fez uma pausa. — E osmortos tinhammarcas e hematomasparecidoscomassequelasdoseuveneno.

—Absurdo!—protestouamercenária.— Eu não estou acusando você, Venoma — disse a kaorsh, e de fato não havia indício de

desconfiançanavozdela.—Apenasviemosatéaquiparatentarentenderoocorrido.—Tinhacriançasmortaslá.Portodaparte—grunhiuAelian,dandoascostaseseafastandode

Anna.—Eununcafariaumacoisadessas!—respondeuVenoma,oindicadoremristenafrentedo

rosto.—Enãoteríamosmotivoparatal—explicouAnna.—Hámuitaspessoasquesãosimpáticasà

nossacausanosAssentamentos,vocêssabemmuitobem.Estamosdoladodopovo,nãocontraele.

—Eusei—falouRaazi.—Aindaestamostentandoentender.Vocêperdeualgumaaldravacomsetasenvenenadas,foiroubadaoualgoassim,Venoma?

— Não sou uma camponesa que sonha acordada no Mercado Aberto, Raazi — retrucou amercenária,afiada.—Euteriapercebido!

— Venoma — disse Anna, em tom de reprimenda —, acalme-se. Temos que chegar a umaconclusão.Aelian,vocêsabequeovenenodelajáestavaquasenofim…

—Esperem—interrompeuamercenária.—Éisso!Aeliansevirouparaela,nervoso,maspermaneceuemsilêncioaonotaroolhardeAnna.—OmonstroqueRaazieYanishaenfrentaramnoFestivaldaMorteestásobopoderdeUna.

Eleeraaminhafonte!—disseVenoma.—Devemteraprendidoaextrairoveneno…— … e forjaram a festa como se fosse nossa, para nos incriminar e nos jogar contra os

simpatizantesquetemosnosAssentamentos.—completouRaazi.—Fazsentido.—AlémdeserumarespostaàaçãonoPoleiro.Annacongelouporuminstante,osolhosdesfocados.Aelianaencarou,nervoso.Apóstodoo

horror que testemunhara comRaazi, estava pronto para reagir imediatamente.O cansaçodamissão no Poleiro parecia ter evaporado e ele se sentia capaz de derrubar o Palácio de UnainteirosobreacabeçadoGeneralProghonedaCentípedecomasprópriasmãos.

Como se ouvisse os pensamentos dele, namesmahoraAnna saiu de seu transe e puxou ocapuzdomantovermelho,indoparaondesuaespadarepousava.

—Proghonnosmandouumrecado.Quebrouatrégua.—SevocêvaiparaoPalácio,voucomvocê—disseAelian.—Eutambém—disseVenoma.Annaosencarouenquantoamarravaasfaixasnorosto,avozabafada.—Euvouprimeiro.Vocêsdevemdescansar.Aelian,mandeBicofinocomumamensagempara

Ziggy,paraqueeleencontrevocê,RaazieVenomanostúneissoboPalácioaonascerdosol.—EHarun?—perguntouakaorsh.AnnacolocouaespadanascostasenquantoVenomarespirava fundo,visivelmente irritada

portersidocontrariadaeforçadaaesperar.—ElevaiestarnoPalácioamanhã,nósoencontraremos.Deixe-oficarcomafamíliahoje.

Harunvaiprecisardisso.Semdizermaisnada,afiguradevermelhodeixouosalão,deixandoostrêscompanheirosem

péssimohumor.

27

Corarepetiuseuritualdedespedidadetodamanhã:tocouacabeçadomaridoefezumapreceparaqueasSeisFacesdeUnaobservassempelasegurançadele.

Harun aquiescia. Por dentro, porém, desligava amente durante as demonstrações de fé daesposa.Não imaginavaumamaneiradeapresentarsuaverdadeiravisãoa respeitodeUnasemdevastá-la por completo, mas também não conseguia imaginar Ônix crescendo com aquelamentalidade—amaiscomumemUntherak.

—Omesmoblá-blá-bládesempre—diziaBantuOkodeeduranteofalatóriofervorosodaanã.Haruntambémtentavasedesligarquandoavozdofantasmacomeçavaafalarcomele.

A carruagem que transportava os Autoridades parou na frente da casa dos Okodee. Seisbetouros patearam a terra enquanto o condutor humano ordenava ao assistente sinfo quetocasse uma melodia a fim de acalmar os animais. Fazendo uma careta de dor ao sentir oferimentododiaanteriornoombroinflamado,HarunsubiueseacomodouaoladodosoutrosdoisAutoridadesqueconversavamdentrodotransporte.

EfoiassimqueficousabendodoenvenenamentoemmassanosAssentamentos.SegundoosAutoridades,tudoaconteceuamandodeAparição.

Completamente perturbado, Harun passou muito tempo tentando encontrar um motivoparaAnnaterfeitoaquilocontraosmoradoresdolugarquetantoprezava.

AmovimentaçãonoPalácioeraincomum.OsÚnicospareciamirrequietosemaisagressivosque o normal, e os Autoridades se reuniam pelos cantos, cabeças próximas em conversassussurradasepreocupadas.

Harunouviufalarque,apósosacontecimentosdanoiteanterior,ProghonfoiparaaVilaB,coisaquequasenuncafazia.SeussumiçosparadentrodosmurosmaisperigososdeUntheraksóaconteciamquandooGeneralestavainsatisfeitocomosmaculadosenviadosparalheserviremdevoz.Quandoissoacontecia,eranormalqueelemesmofosseprocurarescravosqueaMáculanãotivesseconsumidoporcompleto.

Sobre tudoque estava acontecendo— inclusive asmortesnosAssentamentos atribuídas aAparição—,Harunqueriaapenasouviraoutraversãodosfatos,depreferênciadabocadaprópriaAnna.Aprimeiraconclusãoquetiroufoidequeaquiloeraumacalúniaóbvia,umnovoataqueorquestradopeloPalácioparaqueopovonãoapenastivessemedodo“encapuzadovermelho”,masquetambémoodiasse.Aindaassim,oanãosabiaqueaquelaerasuacabeçatrabalhandoparaencontrarumaexplicaçãoquenãoodecepcionasse.

Imaginava que, em algum momento, conseguiria encontrar alguma atividade que lhepermitiriadarumaescapadaparaostúneis,etinhacertezadequeencontrariaAnnaporlá.

OprimeirocorredorsilenciosoemqueHarunentroujácontinhaumafiguracomomantodacorproibidaparadanomeio.

Annaindicouumaportacomummovimentodecabeça,eoanãoolhouporcimadoombromaisdeumavezantesdeentrar,tentandosecertificardequeninguémoviranacompanhiadeAparição.

Era um velho depósitomofado, sem janelas, com caixas e barris em péssimo estado peloscantos.Assimqueentraram,Venomapassouoferrolhopeloladodedentroeosfechoujuntocomosoutrosaliados, reunidosem tornodeumcandeeirode fogobranco.OanãocoçouonarizaosentirocheirodaquelecômodoquedeviaestartrancadohaviapelomenosmetadedaexistênciadeUntherak.

—Háquanto tempoestão escondidosaqui?—perguntouHarun,olhandopara a expressãogravenosrostosdetodos,massobretudonodeAelian.

—Algunsminutos—respondeuele.—Eestousegurandoumespirrodesdequeentrei—disseZiggy,comumacareta.—Então,seguremaisumpoucoemeexpliquetudoqueaconteceuontem.—Depois.Agoraprecisamosagir—disseAnna,comavozabafadapelasfaixas.—Proghonnão

estánoPalácio.Aelianeeuvamosnosinfiltrarnosaposentosdeleepegaraarmaquepodeferi-lo.

—Porquenãofizemosissoantes?—perguntouoanão.—NãoétãosimplesquantoderrubaracomunicaçãodeUntherak—falouAnna.—Oplanode

roubaraespadaeraapenasparaumasituaçãoextrema,oqueéexatamenteoquetemosagora.OrestantedevocêsprecisaencontrarosantuáriodassósiasdeUnaetirá-lasdelá,daformaquetreinamos.Tentemaomenosresgataromaiornúmerodelasqueconseguirem.

Aspessoasjáhaviamrecebidoaquelasinstruçõesantes,entãoaincredulidadefoiexclusivadeHarun.Eleriu,exasperado,enotouaexpressãoabaladanorostodeRaazi.Poralgummotivo,aquiloofezevitarqualquercomentárioácidosobreaprovaçãoqueviriaaseguir.

— E como vamos chegar nesse lugar se você está indo para o outro lado do Palácio comAelian?—perguntou.

—Euseicomochegaratélá—respondeuVenoma,recostadaàportademadeira.—Claroquesabe—disseHarun,esfregandoastêmporas.Duranteosúltimosmeses,repetidasvezesAnnaospreveniradeque,emalgummomento,eles

talvezprecisassemencontraroesconderijodassósias.OanãosabiaqueaideiaeraprovarparaopovoquehaviaumafarsanaimortalidadedeUna,masalgoalinãoseencaixavamuitobem.AtéporqueeleaindanãotinhaentendidooqueaconteceranosAssentamentosenãosabiadeondevinhaaquelahistóriade“únicaarmaquepodeferirProghon”.

—Tenhomuitasdúvidas,masvouresumiremapenasuma:paraondelevaremosasUnas?Seriaperigosodemaisdeixá-lasnoCoraçãoda…

—NósalevaremosparaoCoraçãodaEstátua—disseRaazi,comimpaciência,mostrandoque

eles já haviam repassado o plano diversas vezes nas últimas horas. — Proghon agiu nosAssentamentos,entãoolugardeveestarsendovigiado.

—Queremsaber?Tantofaz.Vamoslevarumbandodemulheresquenuncaviualuzdodiaparaonossoesconderijo,porquenão?—falouHarun,enfiandoamãonomeiodabarbabrancaepuxandoospelos,irrequieto.—QualquercoisaparaconvencerminhaesposadequeUnaéumembuste.

O grupo ficou alguns segundos em silêncio. Estavam todos ali, juntos, experimentando atensãounsdosoutros.HarunpercebeuqueAelian estava cabisbaixo e que evitavaoolhardeVenoma.OanãoencarouZiggy,queotranquilizavamesmonosmomentosmaisdifíceisgraçasasuaincapacidadedeaparentarnervosismo.Porém,atéomiúdoestavaarmado:elebrandiaduasferramentasagrícolasnosantebraços,adaptadascomlâminasmaioresqueonormal.

—Oquefoi?—perguntouosinfo,notandoqueestavasendoobservado.—Venomafezparamim.

Umdiaquecomeçavacomumsinfoarmadoparaabatalhanãopodiaterminarbem.

AelianseguiaospassosdeAnna,seéqueaquelespéstocavamopiso.Elanãofaziaruídoalgummesmoemcorredoresestreitoseempoçadosecomaquelaespadaimensanascostas.Talvezelaconsigaflutuaraalgunscentímetrosdochão,pensou.

EstavamnumaregiãodaAlaLestedoPalácioqueAelianconhecia:asimediaçõesdoAneldeCelas,deondehaviaresgatadoRaazi.Elereconheciamuitosdoscaminhossemjanelas,algunspelosquaishaviaseesgueiradonaquelediaemqueosdoisagiramjuntospelaprimeirademuitasvezes.Oscenáriospodiamserrepetidos,masagrandenovidadealieraverAnnaseagachandodiantedeumaminúsculaaberturagradeadanaparededepedra.

—Issoéumrespiradouro—disseAelian,constatandooóbvio.Annaretirouagradecomumpuxãoejogouaespadaládentro.—Tambéméumapassagem—falou,antesdesumirpelaabertura.Nos meses anteriores, Aelian aprendera que qualquer refúgio de ratos e baratas também

poderiaserumarotadefugaouinfiltração.Mesmoassim,nãodeixoudebalançaracabeçaaoversuamentoraengatinhandoatrásdaarma.

—Coloqueagradedevoltaquandopassar—disseavozládentro,jádistante.Havia um túnel damesma largura do respiradouro,mas que algunsmetros depois se abria

numaespéciedeclareirasubterrâneacheiadeburacos.Aeliansearrastoucomoscotovelosatépoderficardepé,umventoagourentozunindoemseusouvidos.

—EstamosnosdutosdeardoAneldeCelas?—perguntouele.—Numaintersecçãoentreeles,sim—respondeuAnna,procurandoumburacoespecífico.Aoencontrá-lo,maisumavezelaempurrouaespadanodutoantesdeentrar.

—Então,essesmurmúriosnãosãosóvento—disseAelian,numaquasepergunta.Annaolhouparaeleantesdesumirpelaabertura.Umalacraiapassouporcimadamãoqueela

mantinhaapoiadanabordadotúnel,maselapareceunãoseimportar.—Não,nãosão.Aelianesfregouosbraçosedecidiuficaromenortempopossívelsozinhonaquelelugar.

RaaziestavaaalgunsinstantesdetestemunharoqueYanishaumdiavira.Aquilo a fazia se sentir mais próxima da esposa. Não como se o canväs dela estivesse

acompanhando o grupo na Ala Oeste, isso era impossível, mas a porção de Yanisha queimportava,aqueelaguardavadentrodesi…Eracomoseagoraabraçassesuaalma,envolvendo-a,dizendoque ficariatudobem.Yanishapareciamaispertodasuperfície,apontodeRaazi teraimpressãodequeaveriaacadacurvanoscorredoresdoPalácio,masasensaçãosumiapoucoantesdeviraracabeçaparaolhá-la.

—Nãoestamossendoseguidos—disseVenoma,notandoqueRaazipareciaestarprocurandoalgumacoisa.Amercenárialideravaogrupo,parandodevezemquandoparatentarselembrardocaminho.—Naverdade,faremoscontatocomÚnicosdaquiapouco,maselesestarãoànossafrente,nãoàscostas.

Raazinãosedeuaotrabalhoderesponder.QueVenomapensassequeelaestavapreocupadacom a retaguarda do grupo; eramelhor assim. Harun, porém, observava-a de outramaneira.EnquantoZiggyajeitavaaslâminasnosantebraçoseVenomaerguiaabesta,oanãodesacelerouospassosparaficaraoladodakaorsh.

—Vocêviualgumacoisa?—Não.Sóestavaolhandoporforçadohábito.Melhorprevenir.—Não,digo…Vocêviualgumacoisaquenãoestavaaqui?Raaziinclinouacabeça.—Comoassim?—Deixapralá—desconversouoanão,escolhendoumaarmadocinto.Aofazerisso,eleolhou

paraakaorsh,quetinhaasmãosvazias.—Voudemartelo.Porquevocênãotrouxenenhumaarma?

Eladeudeombros.—Nãotinhaporquecarregarpesoextrasepossosimplesmentetomaraarmadealguém.Harun riu, voltando-separa a frente.Gostavadakaorsh comogostavadeummachadode

duaslâminascomcaboreforçado:armasdaqueletipocostumavamserconfiáveis,assimcomoRaazi.

Venoma ergueu amão, sinalizando perigo à frente. Estavamdiante de um salão compridoiluminado por centenas de tochas de luz branca em dezenas de pilares. No centro havia um

corredorqueterminavanumaportagrandeepesada,tambémladeadaporarchotes.OitoÚnicosguardavamaentrada,comaslançasapoiadasnochãoeposturaseretas.

—Esseshomensnemdevemsaberqueguardamumsegredotãotenebroso—sussurrouZiggy.Raazificouquieta,imaginandoqualdaquelaslançasterminariaemsuasmãos.—Usemospilaresparaseproteger—aconselhouVenoma.Elaprópria fezexatamenteocontrário: seguiupelomeiodocorredor,numa linharetaem

direçãoaosÚnicos.— Ei, você! Pare! — gritou um soldado, já assumindo posição de combate. Os outros o

imitaram.Venomaergueuabestacomumadasmãosedisparouenquantoandava,fazendoasetaacertar

opescoçodosujeitopelaminúsculabrechanaarmadura.Buscouabrigoatrásdeumacoluna,recarregouaarmaeacertouosegundohomemnopeito,umestampidometálicoressoandopelocorredor.Entãoseatirouparaoladojustoatempodeevitarqueumalançaatrespassasse.

Haruncorreupelaesquerda,atrásdospilaresmaispróximosdaparede.Atacandocomobraçoesquerdo,surpreendeuoÚniconapontadalinhadedefesadispostaàentrada.OqueestavaaoladodosoldadoatacadosevirouparaimpedirosplanosdeHarun.

Raazi ziguezagueou entre os pilares, com Ziggy logo atrás. Ela se jogou para a frente eemendouumasériedecambalhotastípicasdakaita,eosinfoaimitou.AquilofoiosuficienteparaqueosÚnicosseesquecessemporuminstantedeVenoma,queaproveitouparaabatermaisdoisdeles.Daqueladistância,dificilmenteerraria.

TrêsÚnicos ainda estavamde pé, umdeles enfrentandoHarun. Raazi deu uma rasteira nooutro e aproveitou para roubar a lança dele. Ziggy gingou na frente do terceiro soldado edesvioudeumaestocadaquepassourenteaseurosto.Umsegundogolperesvaloupelaarmaemseuantebraço,masRaaziacaboucomosujeitoantesdemaisumainvestida—elaseguroufirmeocapacetedoÚnicoetorceuopescoçodele.OestalofoimaisaltoqueosgolpestrocadosentreHaruneseuoponente.

Oombroferidoeraumadificuldadeparaoanão,esóporissoeleaindanãohavialiquidadooÚnico.Estavaesperandoomomentocerto,eeleveionaprevisívelformadeumgolpefrontal:Harundeixoualançapassaraoladodocorpoepuxouahaste,fazendoosoldadotropeçarparaafrenteeirdecaracontraomartelo.

Ofegante,Harunolhouparaoscompanheiros,quesereuniamnafrentedaporta.—Esperoquetenhamtrazidoachave.VenomaassentiuparaZiggy,queretiroudocintoumembrulhodotamanhodeumamoedae

oentregouaHarun.Oanãolevoualgunssegundosparaentenderdoquesetratava:umpunhadodepólvoradeouro,retiradodoqueaindarestavadoCoraçãodaEstátua.

Oanãobalançouacabeça,mostrandoopacoteparaosinfocomosenãotivesseacabadoderecebê-lodele.

—Vocêestavamesmodandocambalhotascomissonobolso?

Rastejando pelos metros finais até a saída do duto, Aelian foi praticamente cuspido para ocalabouço, desabando na pedra fria como se tivesse sido parido por um quadrúpede — bemdiferentedeAnna,quetocouochãocomaelegânciadeumfelino.

—QuemaneiramaisindignadeseentrarnasaladoGeneral—disseele,esfregandoosbraçoscomasensaçãodequeestavamcheiosdelodoeinsetos.

— Chegamos até aqui porque não temos medo de rastejar — falou Anna. — É isso o queacontecequandoseéforçadocontraochãoportantotempo.Aprendemosanãotemê-lo.

NaopiniãodeAelian,osarroubos filosóficosdamulher sempreerambem-vindos.Porém,naqueleinstante,eleestavasendoesmagadopelaatmosferaopressoradorecintocomfogoazulnas paredes. Havia também uma cadeira de respaldo alto, uma espécie de trono esquelético,voltadaparaumrioartificialdeMácula.Nomeiodorio,umafonte;nela,umaespadaqueerabanhadapelolíquidomortosemparar.Vezououtra,oaçobrilhantereluzianomeiodaMácula— mas, tirando isso, a capa de Anna era a única coisa que parecia se destacar na morbidezmonocromáticadolugar.

—Estaéaespadaqueviemosbuscar.Aelianolhouparaaarma.Suapelepareciacobertapormilinsetosasquerososesuascicatrizes

formigavamnascostas.—Asuajáébemgrande,porquequeroutra?—MinhalâminateriapoucoefeitoemProghon.Nãopodemoscontarsócomela.—Certo…EcomoparoojorrodeMáculaparapoderpegaraespada?—Tecnologiaanãmilenar.Nãovaiserfácilpararasubstância,e,paraserbemhonesta,eunem

saberiacomo.—VendoaindignaçãonorostodeAelian,elaacrescentou:—Antesquepergunte,Haruntambémnãoconseguiria.

Aelianengoliuoprotesto.Osdutosecoaramalgunsgemidosaoredordeles,vindosdoAneldeCelas.Aelianenfiouos indicadoresnosouvidos—apresençadaMácula jáeraagourentaosuficienteparaoseugosto.

—Então,oquevamosfazer?—Vocêdevesercapazdepegaraespada.—Ah,claro.Devoser.Talvezdêerradoeeupercaamão,mastalvezdêcerto.—Nãoéamelhorideiaquejátive,confesso—falouAnna,comumsorriso.—Mastenhoas

minhasteorias.—Ah,estouloucoparatestá-las—esbravejouAelian.—Talvez,seeuforrápido,aMáculasó

corroaminhacarneedeixeosossos…Amulherrevirouosolhoseapontouparaaparededooutroladodasala.—Oquevocêvê?—Paredepreta.Fogoazul.—Essaéarespostaqueestánasuamente,enãooqueosseusolhosveemdeverdade—disse

Anna,sentando-senochão,naposiçãoemquecostumavameditar.—Olhedenovo.Aeliannãoqueriasesentar,mastentouficarnamesmafrequênciaqueela.Respiroufundoe

fechouos olhos por um instante. Era difícil se concentrar com tantos lamentos vindos pelatubulação,comocheirodaMáculaecomaquelefrioasquerosoquepermeavaacâmara.

Foi emalgummomento entre esses pensamentosqueAeliannotouqueo lugarnão tinhaportas.CômodossemjanelaseramcomunsalinaAlaLeste,masaquilojáerabemdiferente…

—Comoeleen…?—Concentre-se—ordenouAnna.Aeliansevoltouparaaparedevazia.Pensouveralgosurgindoaospoucosnela,umaespéciede

linha…atéqueumaportasedesenhounapedrafria,riscadanacordeobsidianaesetornandovisívelaospoucos,comoalinhaqueAelianviranosubterrâneo.

—Vejoumaporta.—Eeunão—falouAnna,conclusiva.—HáumaquantidadedeMáculasignificativadentrode

você,oqueofazconseguirenxergaroquesomenteosmaculadosveriam.Eleafastouoolhardaparede,ondeagorahaviaumaportariscadanalustrosasuperfícienegra.—Eporqueelanãomemata?Eudeveriaestardissolvendoaospoucos,não?— Isso tem a ver com a forma com que você recebeu o veneno. Suas cicatrizes. Talvez a

Máculaestejadissolvendovocê,masnumavelocidademínima,damesmamaneiraqueavidafazcom qualquer um. Creio que exista uma comunhão entre sangue, dor e Mácula. Algo que acontenhaenãoadeixeavançar.—Anna se levantou, ficandodepénabeiradapiscinanegra,viradaparaaespada.—Sangueedornãosãocoisasdasquaisoshomenssãoprivados,e issoaMáculaencontraemtodasasespécies.Venhaatéaqui.

Aelianobedeceu,sentindoosuorfrioescorrendopelascostas.—Olheparaaespada.PortrásdetodaaMácula,elaestáíntegra.Olíquidoescorreporela,mas

nãoaafeta…Façaomesmocomosseuspensamentos.Comomedododesconhecido.Comascoisasqueaconteceramontem,nosAssentamentos.Otempopassaporvocê,sobrevocê…

Antes de assumir a voz de Aparição, Aelian teve medo de desmaiar e dar um mergulhoinvoluntárioàfrente.Algunssegundosdepois,porém,jáhaviaseesquecidodetemerqualquercoisa.ViuaespadaeparoudeenxergaraMácula…Comoelabrilhava!Pareciarecém-forjada.Opunho era semelhante a uma taça de vinho, e isso lhe lembrou Raazi. A kaorsh gostava devinho…

Não.AqueleeraotipodepensamentoqueoancoravanotempopresenteedoqualAelianprecisava

ficarlonge.Elequeriaveraespada.Estavavendoaespada.Empunhadaporumhomemdecabelolongo,presoemumnóapertadonanuca.Tinhaolhos

amendoados e estreitos. Sua armadura era prateada e ornamentada por… dragões?Ou seriamserpentes?Pareciaprontoparaenfrentaralguém.

Acenaperdeuobrilho.Comoumeclipse,umasombraimensasurgiudiantedohomemquecarregavaaespada.

Proghon.Ele estava diferente. Não era possível ver a caveira dourada, pois o elmo era fechado. Os

movimentosdeletambémnãopareciamrealistas:oGeneralsemoviacomagilidade,rapidezedesenvoltura.OProghonqueAelianconheciaeralento,aindaqueferoz.Acenatremeluziu,eeletevequeseesforçarparaenxergarocenárioemqueosdois seencontravam—algodifícildediscernirumavezqueoambienteestavaapinhadodemortos.Poderiaserqualquerlugar.

Proghoneocavaleirocomarmadurapareciamalheiosaosgritosaoredor.Estudavamumaooutro.Empunhavamasespadas,tentavamfazerfintas—easfintasdeProghoneramumtantoquantoexageradas—edavampassoslaterais,procurandoestarsemprebemàfrentedoinimigo.

Oslamentosaumentaram.Acenafoitomadaporumaventania,eAeliansepegouprotegendoosolhos.Quandotirouasmãosdafrentedorosto,percebendoquetinhaacabadodefazeralgobobo, também notou que o tempo dera um salto, como se a realidade houvesse soluçado:Proghon,segurandosuaespadamonstruosamentegrande,pareciabastanteferido—umimensotalhoenviesadoemseutroncopeloqualMáculanegraefumeganteescorria.Seuelmotambémestavarachado,eourosederramavaporuma fenda,deondeerapossívelverdentesdouradosarreganhadosnumesgardiabólico.

Noentanto,ocavaleiroestavaemcondiçõespiores.Aelianviuaespadacaídaao ladodele…As lâminas tinhamcanaletas, sulcosondeaMácula

escorria,vazandopelobotãoemformadecálicenopunho,formandoumapoçanegracrescenteaoladodamanchadesanguedebaixodocorpodohomem.

Aelianesticouamãoparaaespada,eacenamudoumaisumavez.Umchorodecriança.Gritos.Lamentos.Umpunhoemergiadeumpoçodepichenegro.Osdedosseabriam,trêmulos.Aeliantentavaalcançá-los,sentindoapeledascostasprestesarasgarcomoumtrapovelho

sendo puxado numa brincadeira de cabo de guerra. Seja lá quem fosse, estava desesperado,pedindoajudaparasairdelá.

EletocouaMáculanosdedosquedelasurgiam.Aeliansentiudor,maseraadordooutro.Dosoutros. Era o sofrimento alheio impregnando-se em sua pele, como sanguessugas quetransmitiamumadoençaincurável,capazdefazerocoraçãoeaalmapesarem.

Ele se viu de volta ao campo de batalha, entre Proghon e o cavaleiro morto. O GeneralcambaleavanadireçãodeUna.AdeusaestavacercadapelosmantoscinzentosdaCentípede.

Aelian, incapaz de mover as pernas na atmosfera densa daquela visão, estendeu a mão nadireção da espada do cavaleiro. Se ele a alcançasse, talvez pudesse matar Proghon. Quantasdesgraçasseriamevitadas!Yanishaestariaviva…Seupaiestariavivo.

Então, alguém segurou o braço dele com força. Era Aparição, trajando a cor proibida.Impossível!, pensou ele. Aquela memória era muito antiga para Anna estar lá, nos trajes da

inimiganúmeroumdeUntherak…Acenasedesfez,masAnna,não.EstavamdenovonamasmorradeProghon.Aelianestava

comamãoesticadanadireçãodaespadadentroda fonte.Apontadeseusdedos fumegava.EAnna,puxandoocapuzparatrásedemonstrandoumaurgênciainéditanopoucosemblantequeeravisívelatrásdasfaixasebandagens,apertouaindamaisoantebraçodoex-falcoeiro.

—Corra!—disseela.Aelianolhouparatrás,nadireçãodaslinhasnegrasnaparede.Proghonestavaàporta,emMáculaeouro.

Após o estouro, Raazi, Harun, Ziggy e Venoma deixaram a proteção que as colunas lhesproporcionavam,tomandoocuidadodenãopisarnosÚnicosmortosaosseuspés.Aportanãohavia se escancarado como esperavam, mas a pólvora de ouro abriu um rombo grande osuficienteparaqueelespudessemseesgueirarláparadentro.

—Umasaladearmas?—perguntouZiggy,olhandoparaasdiversasclavasdispostasali.Elepareciadesapontado.—AcheiquedaríamoslogodecaracomassósiasdeUna.

—Aentradaéapartirdessearsenal—disseVenoma,tomandoadianteira.Raazi,queouviradeYanishaqueaquelaeraumadasentradaspossíveisparaosantuáriodas

sósias, olhava por cima do ombro, perguntando-se quanto tempo teriam até que reforçosviessemverificaroquetinhaacontecidoinstantesatrás.

—Casofiquemosencurralados,precisamosterumarotadefuga—disseela.—Dooutroladodosantuário,háumapassagemquelevaatéumasalaondeestãoguardados

osperfumespreferidosdeUna—respondeuamercenária.Raazi ficou mais tranquila, pois aquela tinha sido a entrada que Yanisha descobrira por

acidente.VenomalhecontouqueAnna,emseustemposdecativeiro,escaparaatravésdasaladearmas onde eles estavam. Combinaram então que não sairiam pelo mesmo lugar por ondeentraram.

Chegaramaumdosdiversossuportesdearmas,feitodemadeiramaciça.Venomaretirouumamaçaespecíficadolugar,eumburacodotamanhodeumpunhoserevelounofundodaparede.Apartirdali,elacomeçouapuxarosblocosdepedra,queestavamapenasencaixados,semnadaqueosfixassenolugar.Harunajudouamovê-los,pensandoqueaquelaeraumapassagemsecretabemdiferentedasdosanões,queinvariavelmentetinhammecanismosocultoseroldanas.Elesiriamapenasengatinharporumburaco.Fim.

Ziggytomouadianteiraquandooespaçosetornougrandeosuficienteparaqueumsinfoengatinhasse.VenomaesperouqueHaruneRaazipassassem,vigiandoasaladearmasantesdesegui-los.

Eracomoseumcupimdotamanhodeumgnolltivessecavadoumburaconamadeira,mas

comadiferençadequeasgrossasparedesqueestavamaliparaisolarosantuáriodassósiaseramdepedra.Oquartetoengatinhouatéenxergarluzsolarnofimdotúnel.Raazieragrandedemaispara a passagem estreita e ficou aliviada com a perspectiva de deixar aquele aperto, mas, aomesmotempo,temiapeloencontrocomasoutrasUnas.Seráqueelasseriamhostis?Estariamamedrontadas?Chamariampelosguardasoucoisapior?

Ziggyfoioprimeiroasair,etantoHarunquantoRaazinotaramoscalcanharesdopequenoparadosnafrentedotúnel.

—Oqueestávendo,miúdo?—gritouHarun—Muitassoberanastricotando?Opequenonadarespondeu,eaquilogerouumasensaçãoruimnoanão.Akaorshoapressou,e

osdoiscobriramosmetrosfinaisdotúnelnoscotovelos,ignorandoosalertasdeVenoma,quevinhaporúltimo.

HarunsecolocouaoladodeZiggyetambémficouemsilêncio.Raazi,percebendoquealgoestavaerrado,gritouparaosdoisatéveracenacomosprópriosolhos.

Eradifícil imaginarumlugarnoPalácioquenãofosseescuro.Ali,noentanto,a luzdosolpreenchia cada canto do cômodo. Aquele certamente devia ser o lugar mais belo de todaUntherak.Havia longasmesas com frutas, carnes e bebidas, assim como plantas, cortinas deseda,colunasepisosdepedrabrancacruzadosporcanaisecascatasdeáguapotável.

Porém, todas as colunas estavammanchadas de vermelho. Cada folha de planta carregavagotascoloradas,comoorvalhotingidodacorproibida.Ascortinasestavamencharcadas,eopiso,repletoderastrosborradosquedesapareciampeloscorredoresdosantuário.

—Chegamostardedemais—balbuciouRaazi,semperceberqueestavafalandoemvozalta.Harun seguiu o rastro de sangue, e Venoma foi atrás dele, pedindo que esperasse. Ziggy

chamouakaorshpelonome,eelapareceusairdotorpor.Elesseguiramosoutrosdois.Assimqueviraramnocorredor,viramoprimeirocadáver.Estavacaídocomorostoviradoparaochão,embaraçadonasvestestransparentes,parecendo

afogadonoprópriosangue.Comcuidado,Venomatentoudesvirarocorpo.Raazi,doispassosatrásdamercenária,arquejouaoverorostodamulhermorta—oumelhor,oquedeveriaestarnolugardorosto.

Era como se sua face tivesse sidomastigadaporumacriatura terrível o suficientepara terdentesanimalescosetambémconsciênciadecomoretalharumrostoeapenasele,deixandoorestante do corpo sem nenhuma moléstia. Aquela era uma maneira eficaz de passar umamensagem.

—Éumasósia—falouVenoma.Harunencaravaacenaemsilêncio,eZiggytapavaabocacomumadasmãos,semlargaraslâminas.—Digo…era.ChacinaramassósiasdeUna—acrescentou,comumanotávelfúriacrescendoportrásdosemblantedematadorafria.

—Nopróximosalão—sussurrouHarun,trocandoomartelopelomachado.—Temalguémlá.Apenastrêsdosquatroavançaram,asbotasgrudandonosangueespalhadopelochão.Ziggy

permaneceuencarandoocadáver,nummistodepenaeespanto,parecendoincapazdeseguirem

frente.Harunacelerou,comoseestivesseemplenacargacontraum inimigo invisível.Aurgência

tomoucontadeVenomaeRaazi,queoseguiramdeperto,armasdeprontidão.Trêsparesdepésderraparam e escorregaram numa poça de sangue, e três pares de olhos viram o verdadeirosignificadodohorror.

ACentípedeestavalá.Completa,masnãoenfileiradacomodecostume.Poucasvezestinhamsidovistosdaquelamaneira,separados.Espalhadospelosalãobrancotingidodevermelho,seusmantoscinzentosabsorviamacorproibidaconformesearrastavampelochão.CadaumdossacerdotesdeUnasedebruçavasobreumadascópiasdadeusa,comoseestivessemacariciandoos buracos feitos em seus rostos. Porém, não eram lamentos — não quando o Cabeça daCentípedemastigavaafacedeumadassósias,nosdegrausmaispróximosdeHarun,VenomaeRaazi.

AkaorshselembravamuitobemdeterestadopertodeleduranteacerimônianaTribunadeHonraedesentiramesmaaversãoquesentianaquelemomento.Dessavez,noentanto,Raazificouparalisada,vendo-oinclinadosobreumamulherseminua.OrostodoCabeçacontinuavaocultopelocapuz levementediferenciadodosoutrosmembrosdaCentípede,maso ruídodedentesmastigandocarneeossopermanecerianamentedamulherporumbomtempo.

—Quecoisaéessa?—gritouHarun,forçando-seasairdotorporquepareciateracometidoostrês.Eracomoseospésdetodostivessemsidopregadosaochão,esuaspernas,congeladasnumsoprodeinvernoantecipado.

Nisso,maisdeumadezenadeencapuzados—nenhumapessoadogrupojamaisconseguiriaserecordardonúmeroexato—ergueuovazioabsolutodosrostosnadireçãodosrecém-chegados.OCabeça largouo corpoda sósia, e, nesse instante, foi possível ter umvislumbre—ouumaimpressão,talvez—deumapeleesverdeadaeputrefataeumagrandebocacommaisdentesqueumhumanoteria…

Porém,nãohaviaaliolhos,narizouqualqueroutraprotuberâncianaface.Apenasbocaepeledeteriorada.

Amesmatexturase repetianosdedosenospulsosmagros…SangueescorriapelopeitodoCabeçanumfiletegrossoepreguiçoso,pingandonochão.

Umúnicodedopodrefoierguidonadireçãodotrio.Raazi sentiu vontade de vomitar — um mal-estar súbito, como se de repente um punho

pútridotivessesurgidoemseuestômagoecomeçasseaflexionarosdedos.Ovômitoparounagarganta, e um espasmo involuntário sacudiu seu corpo. Ela ouviu o engulho de Venoma eHaruneescutouoruídodeummachadoeumabestaindoaochão.

ACentípedeseenfileirouatrásdoCabeçarápidodemais,comosehouvessemtrapaceadocomotempo,saltadosegundosedispensadoapassagemnormaldosinstantes.Raaziseguroualançacom força, pois o ímpeto de soltá-la era muito mais forte que ela. Também era impossívellevantá-la. Os sacerdotes moviam os braços podres em algo bem próximo de uma dança

macabra, e visualizar aquelemovimento hipnótico fazia suas pernas formigarem a ponto deperderem toda a sensibilidade. O joelho esquerdo dela cedeu, e a kaorsh o plantou no chão,cerrandoosdentesparanãoperderocontroleevomitarasprópriastripas.

Nomeio da dor e da agonia, um ruído agudomachucava seus ouvidos. Tudo ao redor setornoudifuso,eostímpanosdelapareciamprestesaromperesangrar.Naqueleinstante,RaazipareciaestarsecomunicandocomaverdadeiravozdaCentípede,agudacomoocantodeumacigarra.Compreendeu comoo ritual deles funcionava: oCabeça se alimentava, o restantedocorpo recebia o que precisava e a força vital era compartilhada com os outros encapuzados.Assim,seoCabeçafossemorto…

Elagrunhiu.Seunarizsangrava,eoarpareciapesaremseusombros.Harunestavacaídonochão,orostoafundadonosanguedassósias.Venomacambaleavaenãodemorariamuitoparaencontraromesmodestinodoanão.Ziggyacabou ficandopara trás…Estou sozinha, pensou,rosnando,tentandoreunirforças.Olhouparaafrente,tentandomaisumavezenxergarorostodentrodocapuz,aquelaaberraçãoquetalveztivessesidoimaginada.

Sendoumamirageminduzidaporhipnoseounão,atémesmoanulidadetotalemquedeveriahaverumrostopareceusejustificar:elacomiafaces,poisnãotinhauma.Ela,aCentípede.Todosformavamumsersó,oCabeçaeosoutrosencapuzados.

Raazireuniuapoucasanidadequelhesobravaparaatiraralança.Odisparofoilento,eaarmacaiunochãomuitoantesdeoferecerqualquerperigoaoCabeça.Akaorshapoiouaspalmasdamão à frente, o barulho infernal se intensificando. Algo dentro dela estava se partindo parasempre…

Então, um vulto saltou a kaorsh. Sua respiração não era laboriosa, tampouco pareciaamolecidopela feitiçariadacriaturademuitosbraços.EraZiggy, rodopiandonumakaita queapenas ele poderia ouvir, e se precipitando na direção doCabeça. Com um grito enérgico, opequenocorreunadireçãodaparededemármoreàesquerdadosencapuzados,eossacerdotesoacompanharam.Deumahoraparaaoutra,Raazisentiuoapertonasentranhasdiminuir,poisaatençãodelessefocounosinfo.

ZiggyusouaparedeparatomarimpulsoericocheteounadireçãodaCentípedenumataqueaéreoqueapenasumcorpoleveseriacapazdeerigir.Aslâminasdelebrilharamporuminstantequandoosinfoabriuosbraçosegritoumaisumavez,comoumanimalselvagem,atacandoosdoisladosdopescoçodoCabeçaaomesmotempo.

Oruídofoicomoodeummachadopartindolenhaúmida.Emseguida,Ziggycaiudecostasnochão,pertodeRaazi.Oataquehaviaparadofosseláoqueossacerdotesestivessemfazendo.O Cabeça abaixou os braços, e sua cabeça real parecia pendurada para trás por um pedaçoprecário de músculo e pele… mas nenhum sangue saía do ferimento. Uma espécie de vaporcomeçouaserexpelidoporbaixodomanto,enquantooruídoinfernaldecigarrarecomeçou,agoraforadecontroleecheiodedissonâncias.

ACentípede fora feridacomotalvez jamais tivessesidoantes—e,aindaassim,continuava

comaformaçãoenfileirada,tentandoavançarmesmocomoferimentonoCabeça—oprimeirodafilaandavacomasmãosàfrente,tentandotatearalgonocaminho.

Raazi se ergueu. O vapor tinha um cheiro acre, que fazia sua garganta arder. Por via dasdúvidas,prendeuarespiraçãoe,alcançandoalança,deuumaestocadaàfrente,tentandofazerosencapuzadosinterromperemoavanço.

Ziggyficouaseuladoesepreparouparaoutroataque.Nãofoinecessário.ACentípedeestavacom medo e começou a recuar de maneira um tanto atrapalhada, como se nunca tivesseaprendidoaandarparatrássemdesfazerafila.Misturando-seaumacortinamaisdensadevapor,eles recuaram na direção da sacada por onde a luz do sol entrava. Mesmo com toda aquelaconfusão, Raazi notou que estavam num dos pontos mais altos do Palácio, já que não erapossívelveroutraconstruçãopróxima.

EentãoasilhuetadaCentípede,noarembaçado,pareceuseagitaresemodificar,comoseossacerdotesestivessemselivrandodosmantos.Umacobratrocandodepele,masumacobracompernas.Harun,quedespertavaaospoucosnomeiodafumaçaclara,teveaimpressãodetervistouma grande lacraia de corpo sinuoso sumindopela sacada,mas achouque era sua cabeça lhepregandomaisumapeça.ZiggyeRaazi,porém,descreveriamcoisasparecidasdepois.

Ovapor sumiupela janela, juntocomos sacerdotesdeUna.Venoma tambémse levantou,bastantedevagar,tentandoentenderoquetinhaacontecido.

—FomossalvosporZiggyenquantoestávamosestuporados—disseRaazi.Enquantolevavaasmãosaoestômago,Harunresmungou,amargo:—Quemdiria.—Nãohádequê—respondeuosinfo,dandodeombros.Eleeraoúnicodosquatroquenãopareciaabalado.Todososoutrossesentiamcomosesuas

tripas tivessem sido viradas do avesso por uma enormemão invisível. Raazi traduziria a dordizendoque era comose seu canväs tivesse começadoa se liquefazer, dedentropara fora, aocomandodaCentípede.

Olhandoparaacarnificinademulheresque jamaiscumpririamseusdestinoscomodeusas,elesresolveramfugirdolugaroquantoantesrumoaopontodeencontro,oCoraçãodaEstátua.No caminho, nada falaram, torcendo silenciosamente para que Aelian e Anna tivessemmaissortenamissãodeles.

Às costas,Mácula. À frente, Proghon. O único detalhe ali que não transformava tudo numatragédiaanunciadaeraAparição,aoladodele,segurandosuaespadaimensa.

Usandoamãolivreparatirarasfaixasdafrentedaboca,AnnadeixouavozsoaraltaeclaranoFossodoGeneral.

—Vocênãofugiu.

Aeliantentoureunirforçasparaavisaràmentoraquepessoasnormaisgeralmentetravavamdiantedoperigo.ComoGeneralseaproximando,elenãoconseguiasemover.Logo,eraumavitóriaqueestivesseapenascongeladodiantedacriaturaqueavançava.

Proghon parou a cerca de dez passos de distância, asmãos imensas pendendo ao lado docorpo.Emcontrastecomacalmadele,osdutosdistribuídosao redorda salaexplodiramemgritos,quecomeçaramepararamemuníssono.Aeliansentiua línguaformigar,sementenderporquê.

Então,elesouvirampelosdutos:—Vejo...quenossatrégua...foirompida.Eramvozesentrecortadas.Engasgadas.Numasincroniaaterradora.—Foivocêquemcomeçou,Proghon—falouAnna.Seucapuzescorregouparatrás,masela

conservava a energia que a tornava assustadora e intimidadora. Aelian se sentia pequeno napresençadelaedoGeneral.—Envenenarpessoasfoitãobaixoquenemmeparecealgodoseufeitio.

Proghon parecia estar avaliando as palavras que escutara, sem pressa. Enquanto ele semantinhaemsilêncio,asvozesnosdutoschoramingavam.Pediamparamorrer.Aeliansóqueriaperfurarosprópriosouvidose,sepossível,fugir.

—Enãoé—sibilaramasvozes.Então,afacedouradaseviroudevagarnadireçãodeAelian,comoseProghonsóotivessenotadonaquelemomento.—Trazerpessoas...atéaquitambémnãomeparecealgoquevocêfariaemsã...consciência.Porqueachouqueum…umhumanoconseguiriaretirá-ladaqui?

AeliansabiaqueProghonestavafalandodaespada.ApontadosdedosquehaviamtocadoaMáculaaoredordaespadaardiaesualínguaagorapareciagrossademaisparaaboca.Seriaefeitodoolharvaziodaquelecrânio?

Annanãorespondeu.OGeneralinclinouacabeçadeleve,aindaolhandoparaAelian,comoseestivessepensando.Algocomoumsussurroveiodetrásdosdentesdeouro.Asalaficoumaisfria,comoseumabismosuspirasse.

—Entendo—disseramasbocasnoAneldeCelas.—Eleéaisca.Aelian não ousou desviar o olhar de Proghon. Anna não pareceu incomodada com o

comentário.Talvezo silênciodela fossede concordância?Aeliannuncahavia se sentido tãominúsculo quanto naquelemomento. Ele era só um joguete nasmãos de Aparição, amaiorcriminosade…

—Oqueeuestoupensando…?—murmurou,alínguacoçandoeformigandoaindamais.—Nãosedeixeafetarpeloqueelediz—sussurrouAnna.—Corraassimqueencontraruma

brecha.Quebrecha?,pensouAelian.DamaneiraqueProghonestavaposicionadonasala,pareciaque

poderiaalcançarqualquer lugarnoFossocomumúnicopasso.Alémdisso, aportadelineadapelaslinhasnegrasdeMáculaestavafechada.Aelianaviacomperfeição,masprecisariaempurrá-

laparasairdali—eseriadifíciltertempodefazeraquiloantesqueProghonsurgisseatrásdeleequebrasseseupescoço.

OGenerallevouamãoaopeitoraldaarmadura.Porummomento,Aelianachouqueelefosseprestarumjuramento,oquenãofaziasentidonenhum,masoterrordeestarconfinadonaquelelugarmexiacomsuacabeça.Proghonenfiouapontadosdedosportrásdeumaprotuberânciada placa de metal e um ruído molhado indicou que se afundaram na carne. A mão estavaentranhadadentrodopeito,eelecomeçouapuxá-laaostrancos,comosequisessearrancaroesterno. Mácula escorreu pelo chão. Um ruído de galho se partindo ecoou pela sala, e, emseguida,todososdutosgritaram.AscicatrizesnegrasnascostasdeAelianexplodiramdedor,e,poruminstante,elepensoutervistoumbrilhofrioqueimandonofundodasórbitasvaziasdoGeneral.

Proghoncomeçouapuxaroossoparafora.Apariçãocontinuoucomsuaespadanaposiçãode guarda. Aelian não conseguia desprender os olhos do inimigo, sem entender o que elepretendiainfligindo-seaqueletipodedor.Osentidoficouclaroapenasquandoseuesternofoideslocado para fora. Uma lâmina estava conectada à extremidade inferior, o osso era aempunhaduradeumaespada, quenão era reta euniforme comoa armadeAnna; o gumeerarecortado,deaçonegroeirregular.

—Oqueeufaço?—balbuciouAelian,vendooinimigosedeslocandoemsuadireção.Asduasmaioresespadasqueelejátinhavistoestavamali,namesmasala,eumadelasqueria

seusangue.—Nempenseematacarourevidar—respondeuAnna,osolhosnospésdeProghon.—Revidar?—Aelianficoudesesperado,pensandoemsuaadagaembainhada.Elacontinuaria

assim,pelovisto.—Oqueeupossofazer?—Escapar,Aelian.Eujáfalei.AespadadoGeneralsearrastavapelochão, riscandoapedraescuradoFossocomumsom

aflitivo.Nãoporqueelenãoaguentasseopesodalâmina,masporque,aoqueparecia,esseeraseuestilo de luta. Entre os passos cadenciados e pesadosde suas imensas botas cabiamquasedezbatimentosdocoraçãodeAelian.Osgemidosdedorcontinuavamsendocuspidospelosdutos.

OpulsodeProghonseenrijeceu.Aespadaseelevoualgunscentímetrosdochão.Seumgolpefossedesferido,atingiriaprimeiroAelian,queestavaàesquerdadeAparição.

Comumarcohorizontal,ogolpeveio.Annasemoveucomoumraioparaolado,entrandonafrentedeseualiadoeerguendoaprópriaespadacomfirmeza.OarcodogolpedeProghonfoiaparado, e as sandálias de Aparição nem sequer deslizaram no chão com um impacto quearremessariaqualquersoldadocomumdooutroladodoFosso,diretoparadentrodaMácula.

AelianviuaaberturadaspernasdoGeneraleenxergouumcaminhoinesperadoparaescapardali.Quando sedeu contadoque estava fazendo, já estavamergulhandoparaum rolamento,pensandoquequeriasairdaáreadeperigo,masaomesmotemponãoqueriaabandonarAnnaali—mesmoquenãosoubessecomoajudá-lacontraaqueleinimigo.

Antesdecompletarorolamento,porém,Proghonochutoucomforçanomeiodopeito.Elenão era tão rápido e ágil quanto namemória que aMáculamostraraminutos antes,mas eraeconômiconosmovimentosesabiausá-losnahoracerta.Nomomentodogolpe,Aeliannemmesmo entendeu o que estava acontecendo: apenas sentiu um coice enorme na direçãocontrária,fazendo-obaternaparedeantesdedesabarnochão.

Aelianficoutontocomoimpacto,eumaporçãodesuamentebuscavaseequilibrarparanãoperderanoçãodoqueestavaacontecendo.Seusouvidosnãoestavamfuncionandodireitoeoambiente não ajudava.O som demil forjas em sincronia não seria tão incômodo quanto asespadasdeApariçãoedoGeneralsechocando.

Anna fazia suaespadaparecer leve, tamanhaamaestriacomqueusavaoprópriopesoparaconseguirgirá-la.Proghonatacavacommovimentosdevastadores,e,namaioriadasvezes,suaoponente usava a força do golpe alheio para deixar sua lâmina ir para trás, sem oferecerresistência, e ganhar impulsoparaumcontragolpena sequência. Foi assimque ela conseguiutalharaarmaduradoGeneralnaalturadoombro.Qualquerumteriatidoobraçodecepadonomesmoinstante,masProghonapenasabsorveuogolpe,semsequerolharparaomachucado.

Aelian se levantou, cambaleante. Proghon, defendendo uma saraivada de golpes, estava decostasparaelenaquelemomento,mas,depoisdoquehaviapresenciado,oex-falcoeirosabiaqueapunhalá-lopelascostasseriatãoeficazquantoatacá-locomumaplumadeBicofino.PercebeuoolhardeAnnacravadonele,eentendeuqueamulherestavaganhandotempoparaquefugisse.Mesmopreocupadocomamentora,foitropeçandoatéaparede,encostandonelaeesperandoque algo acontecesse, que uma porta se abrisse. As linhas negras ficaram um pouco maislustrosasnapedra,eumapassagemcomeçouaseformar.

A porta na pedramal tinha se aberto quandoAelian foi empurrado de costas para dentroassimquetentouescapardoFosso.Umamultidãoestavadooutrolado,prontaparainundarasalaassimqueapassagemfosseaberta.

Todoserammaculados.

28

Oprimeiro ano deAelian no Poleiro foi cheio de crises de tonturas e desidratações.MesmoantesdecomeçarapagaraDívidaFamiliar,nãoestavaacostumadoacomercomfartura,masseuspaisgarantiamnomínimoduasrefeiçõespordia—e,sefossepreciso,passavamodiasemcomernadaparagarantiraalimentaçãodofilho.Porém,ali,noMiolo,chamarasduasporçõesdiárias de mingau e grãos de alimento seria um exagero. Era apenas o mínimo para que ostrabalhadorescontinuassemvivose fazendofuncionarograndeorganismoqueeraa terradeUna.

Untherakeraumcorpodoente,comoamaioriadeseusmoradores.Depois de tantas idas à Padiola e tantas crises de vômito e diarreia, aquele Aelian carente

passaria a imaginar oUnificado como um organismo e separaria cada um dos poderes e dasfunçõescomodoenças,infecções,feridasetumores.

Paraele,aVilaBeraopiordostumores.Numdiacomoqualqueroutro,umAutoridadekaorshmagroecorcundapassoupeloPoleiro

epediumãodeobraemprestada.OprimeirofalcoeiromandouAelianacompanhá-lo,semnemsaberoquedeveriaserfeito.Algunsminutosdepois,ogarotoestavaemumacarroçapuxadaporbetouros,acompanhadodeoutrascriançasealgunsidosos.

—VocêsvãolimparascasasdosAutoridadesnaVilaAatéopôrdosol!—gritouokaorshcorcunda.—E,sedeixaremumamanchaquesejanovidrodasjanelas,amanhãlevovocêsparalimparaVilaB.

OsguardasqueacompanhavamoAutoridaderiram,eAeliannãoentendeuagraça.Umanãoidososentadoaseuladonacarroçapercebeuaconfusãonorostodomeninocomumalinhadeservidãoaindabemforteerecente.

—ElequisdizerquevãonosjogarparaosmaculadosnaVilaB.Masnãosepreocupe,nãovãofazerissodeverdade.

Tímido,Aelianolhouparaospés.JáouvirafalarqueaVilaAerachamadaassimporcausadosAutoridades,masnuncatinhaentendidoosignificadodoBatéaquelemomento.

—VejoquevocêénovonoMiolo—disseoanão,falandobaixoparanãoserrepreendido.—Eumelembrodosmeusprimeirosdiasaquidentro.

Nocaminho,assimquepassarampeloCofreedeixaramoPortãoSuldoMioloparatrás,osujeitofoiapontandoalgunslugaresparaAelianeexplicandoasfunçõesdecadaconstrução.

—Aquelalinhaescuraecalcinadalálonge,estávendo?Eraumbosque.—Aelianacompanhouodedodo anão, comvergonhadenão saber oque significava “calcinada”.—Mas elemorreudepoisquedesviaramaságuasdorio.Ossinfostiveramquesemudarparaaliperto,naquelalinha

verdedeárvores…Dáparaver?Algunsminutos depois, o homem se virouna carroça e apontoupara ummurode pedras

sujas, cheio de ameias espinhentas. Parecia um lugar perigoso e abandonado, com o topo dealgumascasasvelhasaparecendopor trásdabarreira.Umportãodemadeirae ferro, cheiodeplacasderemendoetábuasdereforços,eraguardadoporalgunssoldadosderostotenso.

—AliéaVilaB.OsgosmentosquepassamtempodemaisnaMáculaacabamficandooumuitoviolentos,oumuitoburrosevagarosos…Porisso,sãoconfinadosnaquelaparte,comosefosseumcanilparaanões,kaorshsesinfos.Dizemqueládentroéumaterradeninguémeque,devezemquando,oGeneralfazumavisitaaolocalparabuscarescravos.

Aelianficoucontenteporencontraralguémcomboavontadenocaminhoparaseupróximodever.Aindanãosabiaonomedoanãoeestavaprestesaperguntarquando,derepente,oportãoremendadoseescancarou,eumaturbademaculadoscorreuparaasruas,comognollsfamintosecomraiva.

Eramcorpossecos,decostelasmarcadasepelepálidaoucheiadehematomas.Ogarotonãoconseguiavê-losmuitobemàqueladistância,entãonãoencarouosolhosafogadosemlíquidopreto. Apenas observou alguns deles tropeçando para fora da Vila B, e outros atacando osguardasque—comrazão,agoraelesabia—tinhamossemblantespreocupadosporestaremali.

A carroça parou, e a comitiva que conduzia a equipe de limpeza para aVilaA foi ajudar acontrolarafugadosmaculados.Naqueledia,Aelianviumuitosangueebateudiversasvezesnatestaparaafastaromaldacorproibida.Maistarde,jánasmoradiasdosAutoridadesemunidodeumtraposujoedeumbaldedeágua,eleseassustavacomqualquerbarulhorepentino,achandoque era algummaculado fora de seus limites, correndo para atacá-lo. Osmomentos em queprecisavaentraremdespensasapertadasecômodosestreitoseramospiores,poisnesseslugaresopânicooatingiacomforçaredobrada.

O temor se prolongaria por dias,meses e anos, até que se tornasse parte da rotina. Aeliancresceu e substituiu o medo de maculados por outros mais imediatos. No entanto, sempreguardouumtemorsecretodeprecisarenfrentarumaturbadeperseguidoresdesmiolados.

Duas décadas depois, ele se deparava com uma turba de desmiolados à frente e o GeneralProghonàscostas.

Ficouclaro,paraele,queaquiloeraumaarmadilha.ProghonesperouqueApariçãotentasseroubaraespadanafonteparafazersuaentradasurpresanoFosso.Provavelmente,jádesconfiavadeAnna,apesardaestranhatréguaqueexistiaentreosdois—e issocomplicavaaindamaisoparcoentendimentoqueAeliantinhadaquelarelação.Jáprevendooriscodealguémfugirdali,oGeneraldeixaraseusservosdoladodeforadaporta.

Amultidãoarranhavaemordia.Aeliansacouopunhalkaorsh,masnemsequertinhaespaçoparausá-locontraamultidão,queoempurravaparatrás,nadireçãodeProghon.Enquantoseatracava com alguns maculados, outros o contornavam como água ao redor de uma pedra,agrupando-selogodepoisparaatacarAparição.

Quantomais tempo um batizado passava dentro daMácula, mais selvagem se tornava. Equantomaisselvagem,menosresistenteeraseucorpo–assim,aúnicacoisaqueAelianpodiacomemorar naquela situação era não precisar enfrentar um exército de Sureyyas, fortes,inteligentesevigorosas.

ProghonobservouAnnaseafastaraoserenfrentadaporseusmaculados.Aespadadelapassouafuncionarcomoumaceifadeira,cortandoalgunsdosmaisraquíticose ferozesaomeioparaquenãofosseempurradanadireçãodoFosso.

AsvozesnosdutospareciamterperdidoaconexãocomoGeneralenquantoelecombatiaApariçãoecomandavaamultidãodentrodoFosso.Osprisioneirossussurravamnascelasacima,eAelianconseguiucaptarumafraseououtranomeiodoschorosegemidos:“Medeixemorrer”,“Por favor, me mate” e coisas parecidas eram as mais recorrentes. Enquanto lutava com osmaculadostentandonãoseateraofatodequeaquelascriaturasjátinhamsidokaorshs,anõesousinfos — de sangue quente e vermelho, como seus amigos e aliados —, Aelian reparou queProghonbaixaraaespadaeapenasobservavaAnnalutarcomtodaasuafúrianomeiodeumaclareirade inimigos,sendoempurradacadavezmaisparapertodaMácula.Erammuitasmãossocando, arranhando e tentando agarrá-la, e o grande volume de oponentes os tornavaperigososmesmodesarmados,incapazesdesegurarqualquerarmanaqueleestadodeselvageria.

O manto vermelho de Aparição foi arrancado, mas Anna continuou lutando, enquantooutrosbatizadosentravamnoFossojáapinhadodegente.Aelianchutava,socavaeperfurava,escutandoapenasoruídodaespadadeAnnaevendoProghonparado,observando-a,comoummonólitonomeiodocaos.

Estáesperandoqueelasecanse,pensou,comumnovoassombrocrescendoemmeioatantosoutros.E,naqueleritmo,comaVilaBinteiradentrodoPalácio,issonãodemorariaaacontecer.

Proghon caminhou devagar na direção de Anna, a cabeça do General muito acima domaculado mais alto. Conteve-se por um instante ao ver o manto vermelho dela no chão,esfarrapadoepisoteado,epegou-ocomapontadaespada,analisando-ocomcuriosidade.

Aelian,cadavezmaislongedabatalhaprincipal,cravouopunhaldebaixodoqueixodeumbatizadodesfiguradoetentouabrircaminhoàforçapelamultidão,percebendoquemuitosdosmaculadosoignoravametambémqueriamirparaomesmolugarqueele.

—Anna!—gritou,temendoqueelanãoestivessepercebendoaaproximaçãodoGeneral.Semdesviaroolhardosinimigosaoseualcance,elagritouacimadorebuliçodegrunhidos,

murmúrioselamentos.— Preste atenção! — Anna ergueu um kaorsh sem braço com a espada e o arremessou na

Mácula.—Suaúnicachanceépegaraespadanafonte!Sóvocêpodefazerisso.Proghon estava próximo, Anna sabia. Com as costas damão que ainda segurava omanto

vermelho, ele acertou um batizado que parecia ter dificuldade de locomoção e que estavaatrapalhandosuapassagem.Enquantoomaculadovoavaparalonge,oGeneralergueuaespadaacimadacabeçaparamatarAnna,queestavaacercadetrêspassosdotanquedepichenegroe

encurraladapelamultidão.Elaergueuaprópriaespadaparabloquearoataque,apoiandoamãonaparteachatadadalâminaparaaguentarotrancoqueviria.

AespadadeProghondesceu.Quebrouoaçodalâminadaoponenteecontinuoudescendo,entrando na clavícula direita. A mulher gritava, e a espada continuava descendo. ApariçãodesafiavaoGeneralaparti-laaomeio.Porfim,aespadaparounaalturadopeito,acimadoseiodireitodeAnna.

De repente, os maculados pararam e as vozes nos dutos silenciaram. Proghon estavacompletamente ali, concentrado, sem dividir sua atenção commais ninguém. Aelian gritousozinhonosilêncioquesefez,estacandonolugar,asmãosnocabelo,desesperado.

Anna soltou o cabo da espada quebrada, que foi ao chão com um estrépito, aterrissandopróximo à outra metade. Continuou encarando Proghon, a respiração pesada, os lábiosfechados. Ela só havia gritadonahora do golpe,mas agora segurava a dor na boca, como seestivessecompensandoosangueemprofusãoquejorravadoferimentoenorme.Naausênciadeseumantoatéentãoinseparável,seucorpoestavasetingindodevermelho.

Semdesviarosolhosdoinimigo,Annagritou.Eraumdesafio,eapenasumdesafio,poistinhadeixadoclaroquejásentiratodadorquepodiasentirnavida.

Proghonretirouaespada,eAnnanemsequercambaleou.Opassodadoparatrásfoifirme,porvontadeprópria.Annanãocambaleariaenãoquebrariao

contatovisual.Preparou-separaadorouparaoqueviessedepioraotocaro“sumodoeclipse”.ApariçãoestavadispostaatudoparaacabarcomtodaamentirachamadaUntherak—inclusiveir,semmedo,aoencontrodamorte.

E foi assim que ela mergulhou no Fosso de Mácula. De costas, punhos cerrados e olhoscravadosnacaveiradouradadeProghon.

O líquido era tão espesso que mal fez ruído ao engolir o corpo. Aelian, ainda paralisado,começou a gritar.Havia um quê de raiva em seus gritos, bem parecidos com o deAnna.Noentanto,algofaziasuascordasvocaisvibraremdemaneiradiferente,etalvezestivessegritandopelosmesmosmotivosdesuamentora,mascomalgoamais,algoqueelanãosentiraantesdecair.

Pavor.Proghonolhouparaele.Foiapenasumtorcerdepescoço,mastodososmaculadosfizeramomesmo.AeliancaminhounadireçãodoGeneralcomumacoragemquenemelesoubedeondesurgiu.

Segurouopunhalcomoumaespada,comalâminaparacima,esepreparouparatentaraomenosumaesquivaeumaestocadaantesdemorrer.PerscrutouaarmaduradeProghonembuscadealgumpontoemquealâminapudesseentrarcomfacilidadeeperfurarsuacarne—oufosseláoquerevestisseseusossos.

OGeneraldefendeuoataquequasequecomdisplicência,nummovimentomínimodaespada.Emseguida,usouopunhodaarmaparaatingironarizdeAelian,quecambaleouparaumlado.

Emseguida,Proghoncravouaespadanochãodepedra,ealâminapenetrounopisocomosefosseareia.Comamãodireitalivre,segurouAelianpelopescoçoeopuxouparaperto.

OndasdecaloremanavamdeProghon.Ohomemeracomoumforno.Aelianestavapertodoassassino do pai comonunca estivera, e agora enxergava detalhes da armadura de que jamaisouvira falar.Nas placas e no elmo, havia desenhos em linhas negras, e alguns deles pareciamdançaràluzazuladadosarchotes.Porém,antesquepudesseprestaratençãoemqualqueroutracoisa,osbatizadososcercaramecuspiramaspalavrasdoGeneraldesuasgargantas:

—Quemévocê?Aelianseengasgou,ealínguaformigava,parecendoquererdizeralgocontraavontadedele.

Talvezfosse“clemência”.Asórbitasvaziasportrásdamáscaradeourooencaravam,eelesentiuosdedosdoGeneralsefechandoemseupescoço.Eracomoseestivessebuscandoarespostanosolhosdesuapresa.

Semsaberdizerquantotemposepassara,Aelianouviusussurrosportodaasuavolta.Umacriançachorouaolonge,masaquelavoznãopareciavirdosdutos.

—Poleiro—disseramosmaculados,porfim.Proghonolargounochãoaodescobrirdeondeelevinha.Aelian arquejou em busca de ar, sendo observado de cima para baixo por dezenas de

maculadosepeloGeneral.Asvozescontinuaram,sememoção:—Irônico.Vocêlevaráminhamensagem.Umdosbatizados,umsinfopálidocomascostelasmarcadasquepareciasemovercomouma

marionete,buscouaparteinferiordaespadaquebradadeAnna,trazendo-anasmãos.—Leveisto.Aeliannãoentendeu.EracomoseProghontivesseconseguidoasrespostassobrequemele

era apenas ao olhá-lo de perto… e agora queria que ele fosse embora, levando o símbolo daderrotadeAnna?

Pegandoaespadaquebradadamãodosinfobatizado,AelianolhouparaapiscinadeMácula,paraasuperfícieparada,vítrea,comosenadativesseacontecido.Afonteaindacobriaaespada,quecontinuariaali,longedeoferecerperigoaoGeneral.

Depois,AelianencarouProghon.AindasegurandoomantovermelhodeAnna,oGeneraldeuascostasparaorapaz,deixandobemclaroquenãooconsideravaumaameaça.Nemdelonge:Aelianeratãoinsignificantequelheserviriadefalcãoderecadossemqueprecisassedominarsuamente,comofaziacomosmaculados.

Conformeelepassava,osmaculadosabriamcaminhoparaforadoFosso,aportanaparedeabertaesemnenhumobstáculo.

Sentindoadordaderrota,aperdadeAnnaeahumilhaçãoportersidodispensadoemvezdeassassinado como um oponente digno, Aelian saiu dali mancando, procurando a primeirapassagemsecretadaqualserecordava.

Sentiaquealgodentrodesihaviasidomorto.

29

Eraumsilêncio incômodo.Osquatroali, lambendoas feridas, semaomenossaberseaoutrapartedoplanotinhafuncionado.

Raazipensavanassósiasdilaceradas.NacoisarastejanteemqueaCentípedesetransformaranomeioda fumaça.Comode fatoaquilopareciaumagrandecentopeia.NosenvenenadosnapraçadosAssentamentos…

MorreraoladodeYanishanaArenaateriapoupadodealgumasvisõesterríveis.Venomaserviucháparaeles;nãodisseraumapalavradesdequevoltaramdaAlaOeste.Ziggy

era quem parecia estar melhor, e Harun conversava bastante com ele sobre o que todospresenciaram.Atéoanão,queemgeralnão tinhamuito tatoparaassuntosdelicados,pareciabastanteabaladocomoquevira.

Umbarulhonaportafeztodosolharemparaamesmadireção.Noentanto,ninguémentroudeimediato.

—Anna?Aelian?—perguntouRaazi,comummaupressentimento.Nãohouveresposta.Osquatrotrocaramolharesnamesmahoraepegaramasarmas.Raazifoi

nafrenteatéaentrada,queseabriuerevelouapenasAelian.—OndeestáAnna?—perguntouakaorshantesdeoaliadodarumpassoparadentrodaluz,e

elanotaroestadodele.Todoosanguenegronasvestes,asferidas,amãoenegrecida.Eaespadaquebradanamão.—Oqueaconteceu?OndeestáAnna?—gritouela,segurandoosombrosdoamigo.Osoutrosseaproximaram,masAelianencaravaapenasRaazi,parecendoperdido.Seusolhos

iamdeumladoparaooutro,frenéticos,eabocanãoformavanenhumafrasecompleta.—Ela…eu…Aexpressãodele foise tornandomais lívida.As lágrimasenfimbrotaram,depoisdetodaa

caminhada até oCoração da Estátua.Nãohaviamais esperança.Nãohavia por que esperar achuva demeteoritos para retomar o Unificado. Os planos, as incursões que foramminandopoucoapoucooexércitodeUntherak…tudoemvão.

OsrestosdaespadadeAnnaforamaochão.— Ela foi para outro lugar, Aelian? — perguntou Venoma, quase com raiva, ignorando a

evidênciagritanteaospésdele.—Porqueelanãovoltoujuntocomvocê?Harunolhavaparaochão.Ziggytambém,dandoumlongosuspiro.Raazi,sempreprontapara

encararamorte,levouumadasmãosàboca.Venomaaindaagiacomosenãotivesseentendido.— Proghon a matou — disse Aelian numa voz rouca, olhando de Venoma para a espada

quebrada.—Éofim.

Era como se o interior da estátua estivesse repleto de um líquido grosso que impedia osmovimentosnavelocidadenormal.Tudopassava lentamente.A informação iaa caminhodocérebrodevagar,masfazendoumestragoenorme.Atristezaerapalpável.Todosaderramaram,namesmahoraoudiasdepois,nosprimeirosmomentosdesilêncioquetiveram.

Bicofinopareciasesentirdamesmaforma.Piavabaixinho,cutucandooscabelosdeAeliancomobico,comoseoacalentasse.Osdoisficaramassimpormuitotempoejamaissaberiamquantashorasaqueletorporlhesroubou.

Aquilo se encerrou nomomento em que o falcão bateu as asas, fazendo estardalhaço e seafastandododono.TodosficaramsobressaltadoseolharamparaAelian,achandoqueelehaviadadoumsafanãonobichooualgodotipo.Contudo,elenãotinhafeitonadaaoanimal.Asmãosdeleestavamnaprópriagarganta:pareciaestarengasgando.

Ziggy saltou uma caixa no caminho até Aelian, que agora se ajoelhava no chão, o rostocontorcidodedor.

—Oqueestáacontecendo?—perguntouosinfo,quasesentindoadordoamigo.Aelianlevantouacabeça,respirandopesado,abocaarreganhada.Seusolhosestavamcompletamentenegros.—PovodeUntherak—começouele,oumelhor,alguématravésdele.—Prestematençãoameu

pronunciamentoecontemplemofimdeumaera.AvozdeProghonalcançouoCoraçãodaEstátua.EtambémcadapontodeUntherakemque

haviaummaculado.

SureyyahaviarecebidoerepassadoasordensdeabrirosportõesdaVilaB.Elaobservavaaondade andarilhos rotos e errantes inundando as ruas. Por cerca de meia hora, aguardou que osbatizadosseespalhassempeloMioloepelaBorda.Osmaisviolentosatacavamoscidadãos,eonúmerodeocorrênciasdotipojáeratãograndequeosAutoridadesnemtentavammaisimpedi-los.

ATenente tinhadeixado claroqueosbatizadosdeveriamcorrer e se espalhar.É claroqueninguém se atreveu a contrariá-la. Já era fim de tarde quando ela atravessou o Portão Sul,acompanhada de sua escolta pessoal de Únicos, impedindo apenas os ataques dos queatrapalhavamocaminhodelaatéaTribunadeHonra,ondesuapresençaforasolicitada.

OsAutoridades, que emgeral sóprecisavamadministrar avoltados trabalhadores às celasduranteopôrdosol,receberamtarefasdiferentesnaqueledia:elesdeveriamconduziromáximode servosdoMiolo até aArenadeObsidiana.Assim, o local começoua ser preenchido, comfogueiras brancas enormes sendo acesas nomeio da arquibancada, afastando a escuridão quevinhaapósocrepúsculo.Opisonegrotambémestavaliberadoparaosquechegavam,e,assim,

osservosdeUntherakforamseposicionandoabaixodaTribuna,aguardandocomummistodecuriosidadeemedoopronunciamentoextraordináriodasoberana—e,enquantoasolenidadenãocomeçava,conversavamsobreosmaculadosqueestavamsoltosportodoolugar.

Quando a Arena já estava tão apinhada de gente quanto no dia do Festival da Morte, osArautosanunciarama chegadadeProghon—enãoadeUna.Sureyyaaguardoua entradadadeusa e da Centípede logo após o anúncio, o que não aconteceu. Em vez disso, a formaperfeitamentereconhecíveldoGeneralassomounaTribuna,carregandoumfardoembrulhadoemtecidodacorproibida.

OsÚnicosnaTribunafizeramosinalcontraoMalRubro.Sureyya,quequasenuncaperdiasuaposturaarrogante,estavaconfusa.OlhouparaumpontoatrásdafiguranefastadoGeneral,aguardandoaentradadeUnaedaCentípede,quesimplesmentenãoapareceram.

ATenente se aproximoupara fazer a costumeira continência paraProghon, aproveitandoparadarumaolhadanoqueelecarregava.Eraumcorpo.

OGeneralProghonparounabeiradasacadadaTribunaevirouacaveiradouradaparaela,enquantoumzumbidoindistintodecentenasdepessoasenxergandoalgovermelhologoacimaseespalhavapelaArena.ATenenteseaproximoudeseulíder,aindasementenderoqueestavaacontecendo.

Então,oGeneralergueuocadáveràfrente,paraforadasacada,segurando-opelopescoço.Eraumamulhervestindoummantodacorproibida.Elatinhaumferimentoqueiadoombro

aopeito,comoseumalâminalargaativessetrespassado.O rostopálidodamorta fezSureyyasentirapelequeimar,mesmonão tendomais sangue

quentenasveiashaviamuitotempo.Éclaroquequemestavaláembaixonãoenxergavaorostodamulher.Belaealtiva,pensouaTenente,mesmoinerte.OrumornaArenaenasarquibancadasficouaindamaisalto,ealgunsjáapontavamparaaTribunadizendoque“oApariçãotinhasidocapturado”.

ATenente,sentindoagargantasefechardeuminstanteparaooutro,caiudejoelhos.ElajánãoengasgavamaisquandoaconteciadeserumamplificadordoGeneral,masasensaçãonuncaeraagradável.

—PovodeUntherak— falouSureyya, levantando-se e escutandoasmesmaspalavras sendoreproduzidas abaixo da Tribuna e atrás de si, pormaculados presos em correntes. —Prestematençãoameupronunciamento,econtemplemofimdeumaera.

OsdedosdeProghonseabrirameumborrãocarmesimmergulhounoarestagnadodofimdodia.OsservosabaixodaTribunaabriramcaminhoàspressasparanãoserematingidospelocorpo,quecaiucomoumespantalho.

NaArena,opovoestavahorrorizado.Algunspoucoscuriososiamcutucarocadáver—claro,semdeixarde fazero sinal contraoMalRubro.Poucossegundossepassaramatéoprimeirogritoecoar:

—ÉUna!Unaestámorta!

AFúriadosSeiscomeçouaserentoadaaquieali,masnãocomforçasuficienteparasetornarumcorouníssono.

EassimProghonretomouapalavra,comasprecesmorrendonagargantadosservosdeUna,a deusa morta. O General começou dizendo que desmantelara a grande organização queconspiravacontraopovodeUntherak,chefiadaporAparição—queeraumamulher,masessamulhertambémeraUna,tãocorrompidapeloMalRubroquesetornaramalignacomoasforçasquecombatiahaviaséculos.

—Ela se tornou o Mal e queria acabar com a própria criação — falou Proghon através dediversas bocas, abrindo os braços e abrangendo toda Untherak. — Envenenou os fiéis nosAssentamentos.Chacinouopróprioexércitoemmaisdeumaocasião.Alguémprecisavaimpedi-la.

Nasarquibancadas,choroserostosincrédulos.Porém,todospodiamverocorpoenvoltonomanto:sim,eraUna,semsombradedúvida.Comoelapoderiatertraídoseupovo?Umadeusapoderiaenlouquecer?

Então, Proghon avisou que Aparição tinha formado uma enorme resistência e cativadomuitossimpatizantes,masqueelesnãoteriamespaçononovoregimedeUntherak.

—Mas não farei o massacre que a traidora do próprio povo planejava. Farei diferente, sereisuperior.Destemomentoatéopôrdosoldeamanhã,todososquecompactuamcomaApariçãoouquetenhamalgumasimpatiapelasuafiguraterãoasrecompensassobresuascabeçascanceladasepoderãoseretirarpeloPortãoNorte.—ProghonapontouparaalémdaArena.—Saiam,livresderetaliações,mas deixem o povo viver honestamente, sem a sombra de assassinatos e conspirações.Aquelesqueaquificarem,saibamqueterãotolerânciazeroparaomalquesepropagoudebaixodenossasvistas.ReservareiapenasterroreviolênciaparaosquedeclinaremdaDegradaçãoeoptaremporminhaira.Untheraknãoconviverámais…

—…comquempretendevê-ladestruídapordentro.Vocês estarãoà própria sorte—disseAelian,ajoelhadonomeiodeseusaliados.—EqueaDegradaçãoosabrace.

Elefechouosolhos,tossindo,quasecolocandoospulmõesparafora.Quandoosreabriu,porpoucossegundosantesdedesmaiar,Raazinotouqueosolhosdeletinhamvoltadoaonormal.

30

VinteetrêshorasparaofechamentodoPortão—Elaconseguiuirsozinha.Comtantagente,seriabemmaisfácil.

—Achoarriscado.—ArriscadoéficaraquiesperandoProghonnosdizimar,Harun.—Tudobem,masoquecomeríamosnodeserto?—Poderíamoslevaralgunsmesesdeprovisões.—Como?Todaaquelaareia,osolescaldante…—Thrulpodecaminharporsemanasnocalorounofriosembeberágua.Elecarregarianossas

coisas.—Masiríamossónós?— Temos que perguntar quem mais quer ir. Aposto que alguns sinfos nos seguiriam.

PoderíamosprocurarpelaterraRaiz…—Eunãopossoir.Dejeitonenhum.Tenhoesposa.Tenhoumfilhopequeno!—QueresperaralguémligarospontosedescobrirquevocêajudavaaAparição?—AchoqueAelianestáacordando…As pálpebras doíam, os olhos ardiam. Piscou várias vezes enquanto o Coração da Estátua

entrava em foco aos poucos. Todos olhavam para ele, mas um Ziggy de contornos difusosestavamaispróximoqueosdemais.

—Ei.Melhorou?—Oque…aconteceu?—Éofim,comovocêmesmodisse—murmurouHarun,sombrio.Aeliancomeçouaselembrardoterrordeperderocontroledascordasvocaisedetudoque

aconteceunoFosso…Aparição.—Anna…—Morta—falouVenoma,seca.Pareciaquererprovarqueestavadevoltaaoautocontroledos

instintos,comoaassassinaqueera,masosolhos inchadosatraíam.—EProghonfezalgumacoisacomvocê…

—Eunão…—Vamosparardeenrolar—disseHarun,vindomaisàfrenteepostando-seaoladodeZiggy.—

Contaparaagentecomovocêsetornouumhumanomaculado.

RaazinãogostoudotomdeHarunaofalarcomAelian,mastambémnãoentendiacomoumhumanoserviradevozparaProghon—eaumaenormedistância,aindaporcima.QuandooGeneraltinhaestendidoseupoderdaquelamaneira?

Ou talvez ele tenha passadomil anos escondendo a extensão de seu domínio sobre aMácula,pensouakaorsh.

Aeliancomeçouabalbuciare,aospoucos,foiretomandoocontrole.Elecomentousobreascicatrizesnascostas,queeramcauterizadasporarmasbatizadas,econtoucomohaviatentadopegaraespadanoFosso.Olhavaparaapontadosdedosdasmãoscomoseprocurassealgo,massuapeleesuasunhaspareciamapenassujas,semmarcaalgumadopichemaldito.

—Issoexplicaporquevocêenxergavaalinhanegradapassagemsecreta,conformesuspeitei—disseHarun,maiscalmo.Segundosantes,elepareciaprestesaesmagaracabeçadeAeliancomomartelo, como se o rapaz ainda estivesse sob o domínio do General. — Mas não consigoentendercomonãosedissolveutodopordentro.Nãovejocomoseucorpoaguentaria.

Paraumhomemdespreparadoparaaideiadamorte,umaperspectivadaquelasnãoerafácildeaceitar,mesmo que fosse apenas uma conjectura. Aelian ficou em silêncio, sentado no chão,olhandopara a espadaquebradadeAnna.Ziggynão se afastoudoamigo,mantendoumadasmãosnascostasdele.Venomasedescobriuatarefadaderepenteefoiparaasaladearmas.

—VouenfrentaraDegradação—disseAelian,pegandoosoutrostrêsdesurpresa.Nofimdascontas,elehaviaescutadoaconfabulaçãodeles.

—Issoéloucura,rapaz—respondeuHarun.—Nãovamosdurarmaistempoláforaqueaqui,lutandoounosescondendo.

—Annaconseguiusozinha,nóspoderemosjuntos!—gritouosinfo,esperançoso.—Vocês já pegarama rebarbade uma tempestadede areia?Não é uma gosma?E olha que

temosasMuralhasdaBordaparanosproteger!—disseoanão.— Imaginemcomoéestarnomeiodeuma!

—NãovaisermuitodiferentedeestarnessanovaUntherak—falouRaazi,mesmoquenãoquisessetomarpartido.

—Raazi,euachavaquevocêeraumakaorshsensata.—Poisnãodeveria,anão.NãoesqueçaquetenteimatarUnaepagueiparairàArena.—Masvocêsepreparouparaisso!Nósnãopodemosnosprepararpara…paraoquequerque

tenhaláfora!—Eunãotinhamepreparadoparasobreviver,masaquiestou.—Issoédiferentede…—Eupossomorreraqualquermomento!—berrouAelian.Ogritoecooupelacâmaraeacaboucomadiscussão.Asatençõesestavamcentradasnelemais

umavez.Elecontrolouavoz,mesmoqueumpoucotrêmula,aocontinuar:—Eseissoacontecer,queroquesejatentandomeafastardoquevemmematandoaospoucos

equematouatodoscomquemjámeimportei.

Raaziassentiu.ElasabiaqueAelianestavafalandodeUntherak.

VintehorasparaofechamentodoPortãoCarregandosacosdecomidaecantisdeáguaeoutrasbebidas,elesseguiampelotúnelemdireçãoaosAssentamentos.VenomatambémlevavaaespadaquebradadeAnna.

—Foioquesobroudela—resmungou,enquantoenvolviaopunhodaarmaemlonasetecidospara carregá-la junto com as bugigangas e não chamar tanta atenção. Harun tinha consigoapenas as armas e ferramentas de sempre, enquanto Ziggy parecia sobrecarregado deinstrumentos.

Enquantocaminhavam,apenasakaorsheoanãofalavam.Adiscussãoacabouindoparaoquedeveriam fazer como resto da pólvora de ouro.Harun era a favor de explodir oCoração daEstátua para que ninguém encontrasse o local,mas Raazi o convenceu a deixar as coisas aliintactas. Se o lugar tinha permanecido escondido por tantos séculos, talvez ninguém oencontrasse.

—EtambémnãoteremostempodeexplodiroPalácio,antesquetenhaoutraideia—disseakaorsh,indoàfrentedetodosnocaminhosubterrâneo.—Éissooufugir.

— Eu sei, demoraria semanas para posicionar a pólvora nos pontos certos.Mas ainda nãodecidi se voumesmo com vocês— falouHarun.—Meu filho não vai sobreviver no deserto.Minha esposa não aceitaria essa ideia nem se ainda bebesse tanto quanto na época em que aconheci.Então,seeuficar,vouderrubaraporcariadoPaláciobememcimadoGeneral.

—Apólvoraéumaherançadosseusantepassados—disseRaazi,apertandooslábios.—Façaoquebementendercomela.

Osdoisseguiramnumsilêncioconstrangedoratéofimdocaminho.AeliancaminhavaentreZiggyeVenoma,queenfimquebraraosilênciorancorosoaoperguntarcomoelesesentia.

—Usado—respondeuele.—Comosetivessemmeviradodoavesso,meespancadoedepoismecosturadodevoltanoladocerto.

—EvocêquermesmoirparaaDegradação?—EuvioqueProghonfezcomAnna.Sósaívivodeláporqueelequeriaqueeutrouxesseo

recado. A existência de Una fazia com que ele se segurasse, e agora o General quebrou essabarreira.Ninguémvaiconseguirresistiraoqueestáporvir.

Venomasuspirou.—Talvezfuncione—disseela,porfim.— O quê? — perguntou Aelian, estranhando que alguém visse algo de positivo naquela

situação.Elaaindaestavafalandodoexílio?—Afuga.EssahistóriadesairparaaDegradação.Talvezsejamospioresdoqueascoisasque

existemláfora.

Ziggypareceuumpoucomenospreocupadoqueantes.—FicoatémaistranquilodeprocuraraterraRaizcomvocêmedandocobertura.—Nãocontecomisso,pequeno—disseVenoma.—Vousozinha,garantindoapenasminha

sobrevivência.—Certo.Então,nãomepeçaparatocaralgoquesuavizeseuspesadelosànoite—falouosinfo.Venomafezumruídodedesdém.—Eporquepediriaisso?Eunãotenhopesadelos.—Naverdade—disseAelian—,vocêquasesempregritaquandodormenoCoraçãodaEstátua.Elalançouumolharconfusoaorapaz.Ziggyconfirmoucomacabeça.—Eolhaqueeunemdurmotãopertodevocêquantoele.Venomapareceuofendida,nãopelaindiretainocentedosinfo,maspordescobrirqueaquelas

pessoasjáatinhamvistodespidadesuafriezademercenária.Aelianpensouemdizeraelaquedemonstrarfragilidadenãoerafraqueza,mas,depoisdeserpossuídopelavozdeProghoneestarnoestadoemqueseencontrava,talvezelemesmonãoacreditassenisso.

DoalçapãoparaointeriordeumbarracoedeláparaasruasapertadasdosAssentamentos,ogrupo deixou o lugar que umdia abrigou o primeiro encontro deAnna com seus aliados.Omorroestavaempolvorosa,oarcarregadodegritos,xingamentoseurgência.Todosestavamalertas, certos de que, em algum lugar próximo, os Únicos estavam investindo contra osmoradores.

Raazimudouacordoscabeloseescureceuotomdapeleantesdepararumamoçaquepassavacorrendoàsuafrente,demãosdadascomumagarotinhaquechorava.

—Oqueestáacontecendo?—perguntouakaorsh,largandonochãooquecarregava.Amoçatrouxeafilhaparamaispertodesiantesderesponder:— As pessoas estão deixando Untherak! Todos estão debandando! Estou atrás do meu

marido,queaindanãovoltoudoMiolo…Raazipediucalmaaela.Ziggyolhavaemvolta,paraasfamíliasdeixandoseusbarracoscom

trouxasfeitasde lençóisremendados,epareciaprocuraroquefazerparaajudaraquelemardegente.AelianeVenomaauxiliaramumasenhoraanãquedeviaterunsduzentosecinquentaanoseperguntavaparaqueladoficavaoportão.

— Não vou ficar aqui para ver mais morte! Já basta a minha, que está bem próxima —resmungavaaanã,comsuabengalinhademadeiranodosa.

Harunregistravatudoaquilo;gentecomfilhos,decididaaenfrentaraDegradação.IdososquepoderiammuitobemseacomodareesperaronovogovernodeProghonbateremsuasportas.Miseráveis com fomeedoenças, pessoas coma fé abaladaapós escutaremabsurdos sobre suasoberana,masque,mesmocomseumundoerodindo,nãohaviamdesistidodavida.

Sem que nenhum de seus colegas notasse, ele voltou para os túneis, sentindo a cabeçafuncionandocomoasvelhasengrenagensdosantepassados.

DezoitohorasparaofechamentodoPortão—Atenção,todosvocês!

Raazi estava no alto de uma das maiores construções ao redor da praça principal dosAssentamentos.Aelianestavaláembaixo,aoladodeZiggyeVenoma,lembrando-sedaspessoasmortas que vira ali. Agora, o lugar parecia o Mercado Aberto num dia movimentado, compessoascorrendodeumladoparaooutrocheiasdebagagens;umpovoquenuncasaíradaquelasmuralhas e que agora descobria que talvez tivesse que caminhar a esmo. Em poucas horas,Untherakhaviasetornadoumformigueiroatingidoporumapedra.

Raaziberroudenovo,comasmãosemconchaaoredordaboca.Incentivadasporseustrêsaliados, algumas pessoas que já estavam paradas começaram a clamar para que os outrosprestassematençãonakaorshde cabelospretos emanchaazulnoolho esquerdo.Emalgunsminutos,elatinhaumaplateiaconsiderávelnapraça.

— Se pretendem sair de Untherak como eu, vamos nos juntar numa só caravana. Assimteremosmaischances!

Algumas pessoas começaram a voltar para suas correrias pessoais, deixando de prestaratenção.Outrasxingaramakaorsh.Noentanto,haviaalgumasquecomeçaramabradarparaqueelacontinuasseodiscurso.

—Senosunirmos,poderemossuportarasprovaçõesdodeserto.Nofrio,ocalordosnossoscorpos vai nos aquecer. Debaixo do sol, vamos marchar juntos e ajudar aqueles que nãoestiverem em condições de continuar. Vamos nos revezar e até nos empurrar adiante, se fornecessário.Vamoslevaroquepudermosderoupas,águaecomida,eencontraremosumlugarondepoderemoscontinuarnossavida!

—Nãoexistenadaláfora!—gritoualguém.—Apenasdoresofrimento!—bradouumavozfeminina.—Issofoioquenoscontaram—falouRaazi,retomandoapalavra.—Estouaquiparavercom

meus próprios olhos o que há lá fora. Estou aqui para enfrentar o que quer que exista alémdaquelesportões.

— Enfrentar como?— gritou um kaorsh demeia-idademas de boa compleição física, quepareciaestaralisóparaverocircopegarfogo.—Comcantisdeáguavazios?

Muitosriram,outrosovaiaram.Raazifalouacimadasvozes:—Levareiarmasparatodos.Evouensinarausá-las.—Ah,é?Equemévocêparasaberusarumaarmatãobemassim?—gritouokaorsh,sedento

por mais plateia. — Uma ex-Única desempregada? Trabalhei para tantas facções na minhajuventudequeapostoquepossoliderarumbandodemaltrapilhosmelhorquevocê,mocinha!

Raazicerrouoslábiosedeixouacorverdadeiraretomarseucanväs.Seucabelofulgurounotomoriginal,acobreado.Algunsperceberamquemelaeraecomeçaramamurmurar.Então,seupeitoestufouesuavozexplodiunanoiteagitada:

—EusouRaaziTanNurten,vencedoradoFestivaldaMorte,aprimeirapessoanahistóriadeUntherakasobrevivernaArenadeObsidiana!Quermetestar,kaorsh?—Elasaltoudotelhadoparaochãodeterrabatida,comumalevezaquefezAelianficarboquiaberto,tantopelamanobraquantopelaatitude.—Eu,demãosnuas,contravocêcomaarmaqueescolher!Oqueacha?

As pessoas abriam caminho para sua passagem. Ela marchava altivamente na direção doagitador,queerapelomenosdoispalmosmaisbaixo.

—Senemuma“deusa” foicapazdemedeter, imaginooquevocê terianessassuasmangaslargasquedêconta.Maisfalácia?

O kaorsh murmurou algumas coisas à guisa de desculpas e se retirou, misturando-se àmultidão. Raazi continuou onde estava, olhando ao redor. Lembrou-se de Anna no dia dobanqueteemquetodaaquelagentehaviabebidoedançadoaoredordafogueira.DecomoAnnacontrolaraasituaçãocomRaeth,edopoderemsuafala,desuaaltivez.Agora,Annasefora,masdeixaraumpoucodesiemcadaumdeseusaliados.

Raazi,naqueleinstante,eraavozdeAparição.Elaergueuopunhodireito.—Eusouumasobrevivente!Edareiavidaparaquevocêstambémsobrevivam.Aelian,rememorandooocorridonaArena,queriatersidooprimeiroagritarparaincentivar

osoutrosaoredor.Felizmente,porém,nãofoipreciso.Ocoraçãodakaorshpalpitavafortequandoelafoiaoencontrodosaliados.—Achoqueestoumuitoimpressionado—disseZiggy,aplaudindo.—VoutrazerTomeTaönmaparacá—falouAelian,guardandoparasioselogiosquegostaria

de fazeràamiga.Seuhumordemorariaparavoltaraonormal.—Elestêmumacarroçaeumamula,tenhocertezadequevãoquererircomagente.

— Preciso que você e Harun busquem mais armas no Coração da Estátua — disse Raazi,preocupada.

VenomarespondeuantesdeAelian.—Oanãosumiu,paravariar.DevetervoltadoparatrásdosmurosdaVilaA.VoucomAelian

buscarosamigosdeleedepoisseguimosatéaestátua.—Tudobem—falouRaazi,voltando-separaZiggylogodepois.—Vocêvaiterqueiratéo

Segundo Bosque para avisar Pryllan e os outros. Veja quantos querem nos seguir, quantosbetouros podem trazer. E traga também grãos e cereais, coisas que durem mais tempo nodeserto.NossopontodeencontroseráoMercadoAberto,nafrentedoPortão.Vamosusartodootempodisponívelecruzarapassagemquandoestivermostodosjuntos.

—Voltoantesdeosolnascer—disseopequeno,respirandofundoedisparandomorroabaixosemdizermaisnada.

Raazi observou o pequeno indo embora até onde seus olhos alcançaram, e continuouolhandoparaomesmopontomesmodepoisdeeleterdesaparecido,pensandoseossinfosiriamcom eles. A viagem rumo ao desconhecido seria bem mais fácil com a música e osconhecimentosdeles.AelianeVenomaseocuparamapartandoalgumabrigaquetinhasurgido

ali perto, que começou por causa de comida. Raazi só conseguia olhar, sem tomar atitudealgumadepoisdaquelaexplosãodeadrenalinaqueafizeragritar.Seusangueesfriava,seucoraçãodesacelerava.Atéqueumavozconhecidasoouàssuascostas,tirando-adaqueleestupor.

—Gosteidodiscurso!Queriaquetivessememostradotodaessalábiaantes,parameajudaravenderascoisaslánaminhabarraca.

Olhouparatrás,eumaanãsorridenteedebochechassalientesaencarava,parecendobastanteorgulhosa.

—Baeli!—exclamouRaazi,curvando-separaenvolveraamiganumabraçoforte.—Étãobomvervocêviva,garota—sussurrouaanã,umpoucorouca.—Tinhameesquecido

decomovocêéalta.—Medigaqueestávindocomagente.— Depois desse seu espetáculo? Eu seguiria você para dentro do Palácio de Proghon, se

pedisse!Raaziriu,quasederramandolágrimas.Baelinãotinhaaverdadeiranoçãodoqueacabarade

dizer.

DezessetehorasparaofechamentodoPortãoAnotíciacorriacomofogonumpavioembebidoemdestilado.AspessoasecoavamoassuntoportodososcantosdoAssentamento,ecadaumdessesmensageirosinvoluntáriosacrescentavatoquesparticularesàfaladeRaazi:algunsdiziamqueavencedoradaArenadeObsidianaestavaali para derrubar Proghon, outros alardeavam que ela lhes prometera encontrar comida naDegradação.Quantomaisparaosopédomorro,porém,maisdifícileraespalharamensagem:osmaculados da Vila B vagavam por aquela região, e algumas pequenas batalhas e altercaçõesaconteciamporlá.Aspessoastrancavamasportasejanelasdeseusbarracoscomtábuaseplacasdemetal,paraevitarainvasãodosmaisviolentos.NenhumÚnicoeravistonasruas,epareciaquetodostinhamsidochamadosparadentrodoMiolo.Pelovisto,Untherakseriaumaterrasemleiatéopôrdosolseguinte.

OPâncreasdeGrifoestavafechado.Doisbatizados,umkaorsheumsinfoavançaramsobreAelianquandoelefoiparaosfundosdataverna,porondeescalariaatéumajanelanosegundoandar.Orapazconseguiuderrubarumdelescomumempurrãodesajeitado,masosegundo,osinfo,pulouemsuascostascomoumanimalselvagem.Antesqueeledesseoprimeirogritodesocorro,Venomaderrubouomaculadocomumasetanopescoço.

— Entre e fale com seus amigos — disse a mercenária, arrancando a munição da pele domaculadoelimpandoosangueenegrecidonostraposdopequenocorpomorto.Ofardocomametadedaespadaembrulhadabalançavanascostasdela.—Vouficaraquiforavigiando.

Aelian assentiu, e perdeu alguns segundos olhando paraVenoma antes de subir em alguns

caixotesvaziosparacomeçaraescalada.—Oquefoi?—perguntouela,alerta.Aelianengoliuemseco,sentindo-seculpadoporterdesconfiadodelaaindanodiaanterior.—Medesculpepeloquefaleiontem.Euestavanerv…—Não precisa disso agora, tá?— cortou ela, trocando a besta demão.Aelian nunca havia

percebidoqueelaeraambidestra.—Vailogo.Elesubiueemsegundosencontroua janela—destrancada,parasuasorte.Caiunomeiode

algunsfardosdetrigoenostonéisemqueTomeTaönmapreparavamacerveja.Emqualqueroutrodia,elepegariaumcanecoetomariaumlongogoledoconteúdodaquelesrecipientes,masnaquelemomentonãosentiasedealguma,apenasurgência.

—Tom!Taönma!—gritouele,pisandocomcuidadonaescadaquelevavaaosalãocomumdataverna.—ÉAelian!Ondevocêsestão?

Praticamentesedescolandodassombrasdebaixodaescadaebaixandoumlongocutelodecarne,Taönmavoltouàcornormalerespiroufundo.

—Penseiqueumdaquelesgosmentostinhaaprendidoasubirparedes—disseela,enxugandoosuordatestacomobraçoe,emseguida,voltandoacabeçaparaacozinha.—Podemsair,éAelian.

Tomeo filhosaíram.Omaisvelhocarregavaumaespadaenferrujada,enquantoomeninotremia,parecendoassustado.

—Venhacá—disseAelian,abaixando-seeoabraçando.—Vocêestátremendo,nãoficaassim…Vocêjáfalougrossocombêbadosmaisperigososqueessesmaculadosaídefora!

—PapaidissequevamosterqueirparaaDegradação—disseogaroto,orostoafundadonocabelodeAelian.

Orapazobservouocasal,quetinhaosolhosmarejadosaovê-loconsolandoTom.—E vamos precisarmesmo—disse ele, dando tapinhas nas costas doPequenoTom e em

seguidaafastando-o,segurandoseusombroscomfirmeza.—Masvaidartudocerto.Sabeporquê?

Parecendo muitos anos mais novo com os olhos injetados de tanto chorar, o meninobalançouacabeça.Aeliantiroudopescoçoocordãocomseudadodequartzoverde.

—Porqueagoravocêvaificarcommeutotemdasorte.Lembra-sedele?OPequenoTomparecianãoacreditar.Elehaviavividoamaiorpartedavidadentrodeuma

tavernaesabiaaimportânciaqueumtotemtinhaparaseujogador.Eraproibidoatéqueoutrapessoatocasseodadopessoaldeumapostador,eAelianestavatirandooseudopescoçoparacolocá-lonele.

—P-paramim?—gaguejouomenino,enxugandoaslágrimas.—Claroquenão,espertinho—disseAelian,fingindo-seofendidoebagunçandooscabelosdo

menino.—Estouemprestando!Quandotodaessaloucuraacabar,vocêmedevolve.Tábom?OPequenoTomsorriuemresposta,olhandoparaodadocontraaluzdeumavelaemcima

dobalcão.—Obrigado— falou Tom, aproximando-se do amigo e dando-lhe um abraço. —Nunca o

tinhavistodessejeito.EleaindanãoentendeuoqueestáacontecendoemUntherak…—Nemeu,Tom.Sóseique,seasprimeirashorasda“EraProghon”estãosendoassim,não

queronemverospróximosdias.—Aelianfezumsinalabrangendotodooestabelecimento.—Járecolheuoquequeria?Raazi conseguiuorganizara retiradadealgumaspessoasparaamanhã,quaseumacaravana.Outrasvãoseadiantaresairaindaestanoite,peloqueouviporaí.

—Ficofelizemsaber—respondeuTom,comumolharcúmpliceparaaesposa.—Estamosempacotando o que podemos de comida e salgando a carne para durar algumas semanas naestrada.

— Vamos ter que sair para buscar amula e a carroça, que não estãomuito longe — falouTaönma.—Apesardequenãocreioqueacoitadavádurarmaisquealgumasnoitesnodeserto.

— Já estávamos organizando uma comitiva com outras famílias da região, então nosjuntaremosavocês.—Tomfoiatéatrásdobalcão,pegouumagarrafadelicorquejáestavaquaseno fime três copos.Começouapreenchê-los igualmenteaté zerara garrafa.—Vocêacreditanessenegóciodequevamospodersairdaquisemproblemanenhum?

Recebendosuadose,Aelianmeneouacabeçaerespondeubaixo,paraqueoPequenoTomnãooescutasse.

—Sinceramente?Eunãoacreditoemmaisnada.

—Penseiquevocênãoviesse.Essa foia frasequeHarunescutouaoentraremcasa,naVilaA.CoraestavacomÔnixnos

braços, de pé. Ao redor deles havia três grandes fardos de roupas e comida. Seu rosto estavamarcadoporrastrosdelágrimas,algumassecas,outrasrecentes.

—Você…querirembora?—perguntouoanão,descrente.Elejátinhaaceitadoqueficariaalicomaesposaatéofimdeseusdias.Noentanto,elatomava

ainiciativa.—Sónãoembrulheiaarmaduradasuafamíliaeassuasarmas,poisnãoqueriatocarnelas—

disse Cora, embalando o sono do bebê. Parecia profundamente atordoada, mas resoluta emrepararasrachadurasemsuasconvicções.—NãoseioqueessesinfiéisqueremcomessahistóriadequeUnaeraoAparição,mastenhocertezadequetemcoisaerradaaí.AdeusaunificadanãoiagostarqueficássemosnumlugartomadopeloMaleporumtraidorfeitoProghon.

Elacontinuou,dizendoquemilanosantesUnaderaabrigoaoquerestaradecadaumadasraçasapósabatalhanomonteAhtul,atéomomentoemqueHarunnãoconseguiaprestarmaisatençãoalguma—acabeçalatejava,eelenemimaginavacomoconseguiriaexplicartodaasuahistóriaeaverdadesobreadeusaparaaesposa.

Eletinhaqueenfrentarumproblemadecadavez.—Vouembrulharaarmadura—disseHarun,descendoasescadasatéoporão.Bantuaguardavaonetoaoladodarelíquia,sorrindo.—Quereviravolta,não?

31

DezesseishorasparaofechamentodoPortãoRaazi jáhaviaapartadomaisdedezbrigasporcomidanapraça, issosemcontaroscasosquechegavamaosseusouvidos,umavezqueaspessoaspassarama reportarcoisasaela, comoseprecisassemdeumalíder:mães—anãs,kaorshsehumanas—quenãoencontravamosfilhos,umhomem morto por um baixinho armado com um canivete, que, por sua vez, teve o braçodecepadopeloirmãododefunto.

— Se formos em direção aoMercado e acamparmos por ali, perto dos portões, acho quevamossairdessaaglomeração—disseBaeli,comoa“conselheiradalíderdosqueescolhiamoexílio”.—Quantomaisjuntasaspessoasficarem,maisvãoseestranhar.

—E lá teremos espaçopara contarmosquantos somos— falouRaazi, concordando comaamiga.

Após a kaorsh subir de novo no telhado do prédio mais alto e gritar algumas ordens, acaravanacomeçouasemovermorroabaixo.

QuinzehorasparaofechamentodoPortão—AutoridadeHarun—disseoÚniconoPortãodaVilaA.

Ohomemestavatendoumanoitedifícil.Acadavezqueapassagemeraabertaparaaentradadeumdosmoradores,umbandodemaculadostentavapassarà forçaeacabavatendoqueserabatidospelosguardas.

Porém,naquelamadrugadaatípica,poucascarroçasestavamsaindodaquelelugar.— Abra paramim — comandouHarun, no banco da sua carroça coberta puxada por dois

betouros.Como eu queria o miúdo por aqui agora, pensou ele, enquanto os bichos resfolegavam e

seguiamemfrentedemaneirairregular.— Autoridade, não tenho registro de nenhum carregamento saindo daqui hoje — falou o

Único, tentando buscar apoio nos outros três soldados da guarita. Contudo, eles só tinhamolhosparaoladodefora.—Oquetemaí?

—Armas.SãoordensdaTenenteSureyya—respondeuele,curtoegrosso.—Que eu saiba, a Tenente pediu apenas umamovimentação do arsenal do Palácio para a

operaçãodehoje—respondeuoÚnico.Bantu,sentadoacimadacarroceriaevisívelapenasparaoneto,deuumassobiolongo.

—Aíestáalgodequenãosabíamos!— Ela precisa demais armas— falouHarun, sem pestanejar, escondendo a surpresa de que

SureyyaestavausandooarsenaldoPalácio,omaispesado.—Abralogooportão,soldado.—Medesculpe,senhor.Precisoverificaracarga.Harunficoutenso.Revirouosolhos,tentandodemonstrarapenasirritação.—Eoquemaisachaqueeupoderiaestarlevandonomeiodessaloucuratoda,seuidiota?—

rosnou.—Éoprocedimentopadrãodeentradaesaídadecarga,osenhordeveriasaberdisso.—Ah,sim,porquehojeéumdiacompletamentenormalparaprocedimentoscompletamente

normais.Abralogoessaporcariadeportão!—ordenouHarun.Osbetouroscomeçaramapatearochão,nervosos,eosoutrostrêsÚnicostiveramaatenção

atraídaparaocoche.Bantugargalhava.—Deixeospaspalhosverificaremacargadeumavezeacabecomisso.Vocêdeveriaconfiar

maisnasuaesposa,sabia?—Caleaboca!—respondeuHarun,numlapso.OÚnicomaispróximofranziuocenho.—Senhor…?—Nada,nada…Válogo,então!Harunsaltoudacarroça,comosefosseacompanharainspeção.Tossiualtotrêsvezeseparou

entreosoutrostrêssoldados,asmãospróximasaocinto.O Único que foi verificar a carroça abriu as portas traseiras e mal teve tempo de ver os

mantimentos e as armas saqueados do arsenal e do silo particular da Vila A antes de Coraderrubá-lo comumamarretada certeirana lateraldo elmo, amassandoometal e levando-oanocaute.Ônix,emseuoutrobraço,nemmesmoacordou.

Mesmocomumombroferido,Harunaproveitouparaneutralizarosoutrostrêsguardas:doiscaíramcommarteladasnosjoelhosenoselmoseoterceirorecebeuummurronatraqueiaantesdeapagar.

Mandando Cora se trancar de novo na carroceria, Harun entrou na guarita e girou omecanismoqueabriaoportão.

Enquantoacarruagempuxadapelosbetourosnervososseguiapelas ruassinuosas rumoaoPortãoNorte,maculadosinvadiramaentãointocadaVilaA,masHarunnãoseimportou.

AquilomanteriaÚnicoseAutoridadesocupadosdemaisparaperseguiremumdesertor.

CatorzehorasparaofechamentodoPortãoAelianeTompraticamentelimparamasredondezasdoPâncreasdapresençadosbatizadosmais

selvagens.Venomaevitaragastarpontas,masfizeraboapartedoserviçocomumarcodecaça,decimadotelhadodataverna.OresultadoeraqueagoraerapossívelorganizararetiradadosmoradoresdopédomorroeTaönmaconseguirairbuscaracarroçadecargaeamula.

—Achoqueacoisaestámaistranquilaporaqui—disseVenomaaAelian,enfimindoparaochãoecolocandoabestaàscostas.

O ex-falcoeiro colocou um barril demaçãs verdes na carroça de Tom e se voltou para amercenária.

—Vamosláparaaestátuabuscarmaisarmas?—Eupossoirsozinha—falouela.—Vocêestásendoútil,eseusamigosvãogostardetê-lopor

perto.—Mascomovaiconseguircarregartudosozinha?ElarevirouosolhosedeuumsoconobraçodeAelian.—DifícileratirarvenenodaquelejavalihorrorosonosGrandesPântanos.Jáarrasteimortos

maispesados,possodarumjeito.Venomalhedeuascostase,semolharparaAelian,apontouparaotelhadodataverna.—Seuoutroamigochegouháalgunsminutos.Bicofino estava encarapitado lá em cima e aproveitou a deixa para planar até o pulso de

Aelian.—Oi,garoto—disseele,fazendocarinhodebaixodobicodofalcão.—Parecequenãovejo

vocêháséculos.Preparadoparaficarsemtelhadoporalgumtempo?A ave deu um grasnar indiferente. Aelian percebeu que aquela era uma pergunta que, na

verdade,deveriater feitoasimesmoantes.Afinal,eleestavapreparadoparaficarsemtelhadoporalgumtempo?

Olhou ao redor e viu toda amovimentação. Até o PequenoTom fazia o que estava a seualcance,ajudandoospais.Taönma,inclusive,conversavacompessoasquevinhamdapartemaisaltadomorro.AsnotíciaseramdequeumacomitivaestavaacampadanoMercadoAberto,equemaisemaispessoaschegavamacadaminuto.

—ParecequeaquelakaorshmalucaquelutounoFestivaldaMorteéquemestáorganizandotudo—disseumaconhecidadeTaönma,dandodeombros.—Aindanãoseisevouficarousevou embora,mas, se tem alguém que eu gostaria queme defendesse naDegradação, é aquelamulher!

AliestavaarespostadeAelian:elenãoestavaprontoparaficarsemtelhado.Noentanto,haviaquemestivessepreparadoporele.

TrezehorasparaofechamentodoPortãoRaazi enxergava a linha vermelha começando a borrar o horizonte. Muitos fizeram o sinal

contraoMalRubro,eelapensavaemcomoamentedaquelepovodeviaestarconfusanaquelemomento, tendo sido tirados da coleira havia tão pouco tempo que ainda não tinham seacostumadoaandarsemumlaçoapertadonopescoço.

Raazi lembrouqueprecisavarecomeçararecontagem:atéomomento,calculavaquehaviaoitocentos cidadãos dispostos a deixar Untherak. Ziggy ainda não tinha retornado, e elaimaginavaqueopequenopoderiaestarencontrandoresistênciadosoutrossinfosparadeixaremas árvores e seguirem em frente sem garantia alguma. Seu peito se apertou ao pensar em iremborasemoamigo.

Alguém gritou o nome dela, tirando-a das conjecturas. Algumas pessoas apontavam paralonge, na direção de uma carruagem negra dos Autoridades que vinha a toda velocidade nadireçãodaaglomeraçãodepessoas.

—UmaúnicacarruagemdeAutoridadeparatudo issodegente?—perguntouBaeli.—Queestranho.

— Não parece ser de um Autoridade — falou Raazi, vendo que os betouros praticamentearrastavamoveículoatrásdesuasgrandescarapaças.

Elatiroualançaespetadanochãoefoinadireçãodacarruagem,comBaeliaolado.Segundosdepois,Raazitevequeadmitirqueestavaerradaaoperceberque,atrásdosbichos,

umsuadoHaruntentavacontrolarasrédeas.OanãonãodeixavadeserumAutoridade.Akaorshlargoualançaeabriuumgrandesorriso,coisaqueachavaimpossívelfazernaquele

dia.Algumaspessoasmaisexperientescombetouroschegaramparaacalmarosanimais,eoanãosaltouparaochão,praguejandocomonunca.

—Seaquelemiúdotivessemeensinadoatocaramúsicadeacalmaressasferas,nadadissoteriaacontecido!

Raazi gargalhou e abraçou o amigo enquanto ele estava no meio de outro xingamento.Harun, envolvido pelos braços fortes da kaorsh e desacostumado com afeto, deu-lhe algunstapinhascontidosnascostas.

—Quebomvervocê.Nuncaacheiquediriaisso.—Certo,certo…Achoquevamospassarmaistempojuntosdaquiemdiante—disseele,dando

umsorrisodiscreto.Então,fezumgestocomacabeçanadireçãodacarroça.—Trouxealgumascoisasparaaviagem.Querdarumaolhada?

—Comida?—Hah!Sim—disseele,gingandoatéapartedetrásdacarruagemeachamandocomasmãos.

—AssalteiadespensaeoarsenaldaVilaA…Eleabriuasduasportastraseirasdacarruagem.Raaziarregalouosolhos,surpresa,nãosópela

quantidadedecaixasdemantimentos,escudos,clavas,maçasemartelosempilhadosládentro—haviaatéumaarmadura—,maspelaanãdepelenegraqueamamentavaumbebêemmeioatodosaquelesobjetos.

—Ah,eessaéminhaesposa,Cora.Cora,essaéRaazi.

DezhorasparaofechamentodoPortãoAelianvinhacomacarroçapuxadapelamuladeTom.JáeraasegundaviagemqueelefaziaatéoacampamentodoMercado.Na anterior, ele se surpreendera ao verHarun ali,mas eles apenasassentiramumparaooutro,orgulhososqueeram.

Venomaapareceulogodepois,trazendoumaboaquantidadedearmasdointeriordaestátua—açodeconfiança,lâminasquehaviamresistidoàpassagemdotempo.

VendoquemuitosÚnicoscomeçavamaseagruparnasameiasdaMuralhadaBorda,Raazipediuqueasarmasfossemdistribuídasaosquetivessemcondiçõesdelutar.

—SóparaocasodeProghonnãocumprircomoacordo—disseelaparaHarun.Enquantodizia isso,percebeuumhomemdecapaecapuzmarronsebarbabifurcadaquea

observavaaalgunsmetros.Elenotouque foravistoenemassimrompeuocontatovisual.Akaorsh terminou de passar as instruções e então caminhou na direção do sujeito, que nãodemonstroureaçãoaovê-laassomandoasuafrente.

—Vocêquerfalarcomigo?Porquejáestámeencarandoháhoras.— Não exagere, compridona — disse o homem, com a voz mole. O termo despertou nela

alguma lembrança distante. — Estou aqui só faz algunsminutos. Vim ver se os boatos eramverdadeiros.

—Queboatos?—rosnouRaazi,asmãosnacintura,semeconomizarnaintimidação.Aquelesujeitoerafamiliar.

—QueavencedoradaArenadeObsidianaestavamontandoumexército—falouohomem,roendoumaunha.

—Issopareceumexércitoparavocê?Embreveseremosrefugiados.Sóisso.—Claro,comoquiser.Apropósito,jánosconhecemos.MeunomeéIdrazFaca-Cega.FoientãoqueRaazise lembroudeondeoconhecia:doPoçodosDesejos.Ohomemerao

rufiãodo lugar, que controlava a subida aos aposentosdas cortesãs.Tinha sidohostil comakaorshporcausadeumamoedaderrubadaoualgoassim.

Idrazestendeuamão.—Oquequer, Idraz?—perguntouela,semretribuiroapertodemão.—Seforapenaspelos

boatos,podevoltarparaoPoçoecontaraosseusamigosqueviuakaorshdaArena.Fiquemàvontadeparasedeliciarcombisbilhoticeseespeculações.

—Ah,maseunãovouvoltarparaoPoço,compridona—disseele,sinuoso.—VimatéaquiporquequerodeixarUntherak.NãovaisobrarmuitoprazernumlugarcobertodeMácula,seéquemeentende.

Raazioencarou.Ojeitodaquelehomemairritavabastante.Nenhumdosdoispiscoumesmocomoventotrazendopoeiradodeserto.

—Sequerpartirconosco,ajude—disseela,dando-lheascostas.Entãoacrescentou:—Nãovoudizerparapegarumaarma,poistenhoaimpressãodequevocêjátemuma.

Idrazsorriuesemisturouàmultidãoquedividiaossacosdemantimentosentreascarroças.Raazi,jáumpoucolonge,tentouimaginarporqueaquelesujeitoaincomodavatanto.

OitohorasparaofechamentodoPortãoNuvensnegrasforamtrazidasporumaventania,comoseaDegradaçãoastivessesopradoparadesencorajar aqueles dispostos a desbravá-la. Lamentos e desistências foram ouvidos, comalgumasdezenasdepessoasdizendoquea tempestadevinhaparaquemduvidavadopoderdeUna,queretornariaaUntherakembreve,mesmodepoisdetentaremprofanaronomedela—parapartedopovo,Proghoneraumtraidordadeusaunificada.

Nomomento emque umnúmero considerável de pessoas pegava suas trouxas de roupa evoltavaparaosAssentamentoseoutros lugaresdeUntherak,umatrompasoouao longe—enãoeraosomdosArautosdoPalácio.

Raazi,queestavapertodeAelianeHarunnaquelemomento,sevoltounadireçãodosom.Ostrêslevaramumgrandesustoaoveracomitivaquevinhanumagrandefiladebetourosaperderdevista.

—Nãoacredito—murmurouHarun.De dois em dois, eles se encaminhavam ao acampamento devagar, com Ziggy e Pryllan à

frente.— É impressãominha ou ele convenceu o Segundo Bosque inteiro? — perguntou Aelian,

imaginandoseumdiatinhavistotantosbetourosjuntos.Numtrotarvagarosoeconstante,osanimaisseaproximaram,amaioriacarregandoimensos

fardosdemantimentos,cestasdevimeseatémesmomudasdeplantas.ZiggysaltoudeThruleseaproximoudosamigos,parecendopreocupado.

—Desculpemademora—disseele,comumacareta—,masdemorouumtempãopara falarcomtodomundo.

—Quandovocêdiz“todomundo”…—começouAelian,masfoiinterrompidoporHarun.—Quantosvieramcomvocê?—Hum,deixaeuver…dois,quatro,seis,oito…hã…Bom,foramtodos,naverdade.RaazirecebiaoscumprimentosdePryllan,quepareciabastantecontentedeverakaorshali.

HarunnãosecontentoucomarespostadeZiggyealardeouapresençademaisdequatrocentossinfos e suas mascotes. Se haviam sofrido com a desistência de algumas dezenas, toda apopulaçãodoSegundoBosque, trazendoalimentoseanimaisde tração, supriae superavaemmuitoabaixasofrida.

—Fico feliz emvervocês—disseZiggy, sorridentee cansado.EleabraçouPryllaneoutrosinfoquepassavaporalisemaviso.—Juntos,vamosencontraraterraRaiz!

—Ziggy— falouRaazi,quepareciapreocupadacomtodaaexpectativacriadaporpartedo

sinfo. — A caminhada vai ser difícil e não podemos garantir nada para seu povo. Vocês têmcertezadisso?

—Nossa decisão foi tomada— respondeuPryllan no lugar do outro, fazendo uma grandemesura. — Acreditamos que essa reviravolta toda aconteceu por um propósito. Jáprocrastinamosnossabuscaporcentenasdegeraçõesdesinfos,eestánahoradeseguirmosemfrente.Deespalharmosassementesnovento.

Os aliados trocaram olhares em silêncio, observando a massa miscigenada que eram osfuturos exilados deUntherak.O silêncio perdurou por um bom tempo, até que as primeirasgotascomeçaramacairdasnuvens.Ossinfos,aocontráriodetodos,pareciamencararofatocomoumbompresságioparaa jornadaqueseaproximava:achuvaeraboaparaacolheita, eaqueleeraumsinalbomosuficienteparatodoseles.

—Ficofelizporestarmostodosaqui—disseopequeno,porfim.Naqueleinstante,nomeiodovéucinzentodachuva,aestátuadeUnanãopareciatãogrande

assim.

SetehorasparaofechamentodoPortãoAchuvacastigavaoacampamentoeocultavao soldamanhã.Raazi,Baeli eAelianergueramestacas e lonaspróximas à carroça roubadadaVilaA e usavamo local comoumaespéciedecentrodecomando.Ziggyestavadentrodacarruagem,comCora,HaruneopequenoÔnix.Eletocavaumamelodiaparaacalmarobebê,apósoberreiroqueelehaviacomeçadoafazercomosrelâmpagoseostrovões.

—Segure-oumpouco—disseCoraparaZiggy,apósofilhoadormecer.Osinfolargouaflautanamesmahora,comoseaanãtivesselheoferecidouminstrumentomusicalraro.

—Eleseparecemaiscomamãe—falouZiggy,olhando-ocomternura.—Agradeçotodososdiasporisso—respondeuHarun,observandoacena.Nomeiodotemporal,poucossejuntavamaoacampamento.

CincohorasparaofechamentodoPortãoOcéudeuumatrégua,masasnuvenscontinuaramàespreita.Comsua lentedeaproximação,HarunparavadetemposemtemposparaverificaramovimentaçãonoMioloounoscaminhosque levavam aoMercado. Venoma, com seus olhos aguçados, fazia a mesma coisa, mas semequipamentoalgum.

—HáÚnicossemovimentandopertodaArena,vindoparacá—disseoanão,preocupado.ElejáhaviademonstradoestranhezacomoquetinhaescutadodosguardasnaentradadaVilaA,sobreaTenentetersolicitadoarmasdedentrodoPalácio.—Duvidoqueestejamvindoatrásde

umAutoridadedesertor,seriamuitagentesóparamim.—Melhornosmexermosentão—falouRaaziapóssereuniremnatenda.—Vamoscomeçara

retiradaeaguardardoladodeforadoPortão,casoresolvamnosatacaraquinoMercado.—NãomeespantariaqueProghonfizesseisso—dissePryllan,sentadosobreumacaixaque

dividiacomZiggy.— Mas não podemos ficar muito próximos da Borda. — Venoma apontou na direção da

Muralha,quenuncaestiveratãoapinhadadesoldados.Untherak jamaisprecisousepreocuparcom invasões. — Se estivermos abaixo dela na hora em que o Portão se fechar e Proghonresolverencararissocomo“resistênciaaoregime”,seremosmassacradospelosarqueiros.

—Esperar coerênciadoGeneral será sempreumperigo—disseRaazi.—Elepode inclusivefazerchoverflechassobrenósnahoraemquepassarmospeloPortão.

— Então teremos que aguardar cerca de quinhentosmetros adiante para ficarmos fora doalcancedasflechas—falouHarun.

Aelianseagitounolugaremqueestavaeverificouseupunhal.—VouapressarTomcomo finalda comitiva.Cuidaremosdosque ficaremporúltimona

retirada.—Certo—concordouRaazi.—Nãocarreguemtantoasúltimascarruagens,poisnãosabemos

seoterrenodaDegradaçãopodesetornardifícil,casoprecisembateremretirada.Outracoisa—ela arrancouuma fiveladas vestes e a entregou ao amigo—,mande issoparamimatravésdeBicofinoatéafrentedacaravanaquandocruzaroPortão.

Aelianguardouafivela,assobiouparaBicofinoepartiunadireçãodosAssentamentos,semmaioresdespedidas.

32

MenosdequatrohorasparaofechamentodoPortãoTom e Taönma estavam correndo desde a noite anterior, e enfim tinham se permitido

observaroPâncreasdeGrifopelaúltimavez.AtéAelian,queosapressava,passouosolhospelotelhadodolugarque,apóssuasprimeirasperdas,foiomaispróximodeumacasaqueeleteve.

—Vamos—disseTom,oprimeiroasairdotranse.—Jásintosaudadedessaespelunca.Masprometoabriroutra,tãosujaquanto,sejaláondeformosparar.

Aelianriu,cansado,evoltouosolhosparasuacomitivadequarentapessoas.Aquelegruposejuntariaaoutro,maior,queàquelaalturajádeviatercruzadooPortão.

Começaramasemexer,e,nomesmoinstante,Aeliansentiuosouvidoszumbirem.

ADegradaçãoestavaaumpassodeRaazi.Ao lado do portão estava Grork, o gigante de duas cabeças da saída nordeste que fora

realocadoparaaquelelugarprovavelmenteparafecharoPortãoassimqueaordemdoGeneralchegasse.Elegrunhiudesaforoscomumadasbocas,masaoutraselimitouaobservaraspessoasquepassavamabaixo.

NasameiasdaMuralha,acimadacaravana,RaazinotoumuitosmaculadosentreosÚnicos.Venomacaminhavaaoladodela,comabestaarmadaeolhossemprevoltadosparaoalto,casoos guardas resolvessem colocá-los numa armadilha. O silêncio na enorme fileira que seencaminhavaparaforadeUntherakeratãodesoladorquantotodaaareiaqueosrecebia,numhorizontetãoprofundoquantoofirmamento.

—Atéaqui, tudobem—murmurouHarun,ao ladodeCora, carregandoo filhodebaixodeumamantagrossa.

Sua esposa também carregava ummartelo de guerra e um escudo nas costas, por via dasdúvidas. A carruagem roubada da Vila A agora era conduzida por um sinfo bem maiscompetente,quenãodeixavaosbetourosandarememzigue-zague.

Acimadavelocidademédiada fila,ZiggyatiçouThrulparaqueelechegasseatéa frentedacaravana,emparelhandocomRaazi,Baeli,Venoma,HaruneCora.

—AindanãotivemossinaldeAelianedosseusamigos—falouele.—Jádevemestarchegando—deduziuakaorsh,olhandoparatrás.Pelomenosumacentena

depessoasjáhaviaatravessadooPortão.Ziggybalançouacabeça.

—Vou colocarminha carga numa carroça para o Thrul ficarmais leve— disse ele, dandotapinhasnacouraça luzidiadobetouro—edepoisvouvoltarparaver seeleprecisadeajuda,certo?

—Tudobem—disseRaazi.—Masnãopercatempo.Casonãoalcanceofimdafila,estaremosàfrente,esperandoporvocês.

Ziggyassentiu,deumeia-voltacomobetouroepediuparaqueumadascarroçasmaislevessaíssedafilaporuminstanteparaqueelecolocasseseusfardosnela.Eentãopartiuagalopenosentidocontrárioatodavelocidade;eraoúnicoqueiacontraamarédeexilados.

—Vocêsnãoestãosentindo?—perguntouAelian,abrindoefechandoaboca,tentandoestalaromaxilar.—Comoseosseusouvidosestivessemempurradosparadentro?

Tomnegoucomacabeça,masTaönmafalouquetambémsentiuumamudançadepressão,como quando se estava muito abaixo da terra, nas minas. O ex-falcoeiro estremeceu diantedaquelepensamentoclaustrofóbico.

Bicofino,fazendocírculosemcimadaúltimaremessaquesejuntariaàcaravana,grasnoudeumjeitoqueAelianreconheceucomoumalerta.

Atrásdeles,saídadoMiolo,vinhaumatropadeÚnicoscomosescudosàfrente.—Tudobem,pessoal.—Aeliantentoutranquilizaraspessoasquecomeçavamaseassustar.—

Elesestãotentandonosapressar,entãocontinuemandando.Vamos,semolharparatrás!Algunsindivíduoscorreramparaforadafilaorganizadaqueelestinhamformado,eAeliania

deumladoparaooutro,incentivando-osaseguiremfrente.Porém,osÚnicoscontinuavamvindo,eagoraerapossívelverumagrandemassanegraatrás

deles. Os olhos de Aelian eram bons, mas ele não conseguia entender o que os soldadoscarregavam…

TomeTaönmatambémgritavamincentivos.Aospoucos,todosforamacelerandoopassoparaqueosoutrosacompanhassem.OPequenoTom,umadasmãossempresegurandoodadodeoito lados, iaà frentecomospais.OgarotonãoparavadetorceropescoçoparaverondeAelianestavaindo.

—Vamos,pessoal!Sóestãotentandonosassustar!—gritavaorapaz,comosetocasseumaboiadaemfrente.Noentanto,sentiaqueestavamentindoparatodasaquelaspessoas,poissemdúvidaacoisaestavaficandomaisagressiva.

OsÚnicospararamcomosescudosemposição,comoseestivessemsepreparandoparaumataque. Porém, os guardas não carregavam lanças. Pareciam estar esperando alguma coisaacontecer.

Derepente,Aeliancaiudejoelhos.TomeTaönmanãoviram,masoPequenoTom,sim.Elevoltoucorrendo,gritandopelonomedoamigo.Sóentãoacaravanaparouparaobservaroex-

falcoeironochão,segurandoaprópriagarganta.—Aelian!Vocêestábem?—perguntouomenino,seaproximando.Ovelhoamigodafamíliaapenasfezumgestocomamão.Vá.Eleengasgava,pareciaquerer

cuspiralgo.Eentão,quandomaispessoasvieramajudá-loaselevantar,viramqueosolhosdeleestavamnegros.

De novo, não, pensou o rapaz. Sua voz falhava. Apenas engulhos saíam da garganta. Eleacenavasemparar,nãoporacharquepoderiasetornarumperigoparaaquelesqueocercavam,masporquequeriaqueseafastassemecontinuassemamarcha.SobretudooPequenoTom,queestavamuitolongedospaisnaquelemomento.

—Saia…aaargh…daqui!—disseporfim,deumamaneiragutural,semternoçãodequeestavaempurrandoogaroto.

Aspessoascomeçaramagritareaabandonarafila,notandoqueAeliantransmitiriaavozdeProghon,comoviramtantosmaculadosfazendonodiaanterior.

Aelian ergueu os olhos, enxergando os Únicos com escudos. Eles não queriam atacar.Estavamapenasescutandoalgo…

—VocêsestãosaindocompertencesdeUntherak—articulouabocadeAelian.—Animais,frutos,cereaisequaisqueralimentoscolhidosnestasterrassãonossos,eminhaofertanãoincluinenhumapremiaçãoparaosquedesejamdeixarUntherak.

Cestas de alimentos, galinhas e até mesmo dinheiro foram largados no chão. As pessoasentraramempânico,eagoranãohaviamaispalavrasparaacalmá-las.

—Aganânciaseráasuaruína—falouAelian.AparededeescudosdosÚnicosseabriuemsetores,dandopassagemparaosquevinhamatrás

dosguardas.Aindade joelhoseatordoadopelagritariadentroe foradaprópriacabeça,oex-falcoeiroviusoldadospálidos,todosiguais.Cabelosnegros,lisos,comosetivessemsidooleadoscomMácula.Altoseesguios,comokaorshs.Usavamvestesnegrasejustas,todoscomaljavasnacintura.

E,éclaro,arcosnasmãos.—Corram!Cor...Aeliannãotevetempodecompletarosegundogrito.Omundoemudeceuderepente.Porém,

nãoeraavozdelefalhando:eracomosetodosometodavoztivessemsidosugadosdoar.Eleescutavaapenasosomentresuasorelhas,dosanguesendobombeado.Notavaqueaspessoasaoredorgritavam,masquetambémnãoentendiamporqueopavornãodeixavasuasbocas.

ViuumÚnicoapontaramaçaparaafrente,viuabocadeleformarapalavra“ataquem”,masnadaescutou.

Então,olhouparaoaltoeviuachuvadeflechasquecaíasemproduzirsom.Uma seta negra perfurou sua coxa e outra passou ao lado da cabeça. Por instinto, Aelian

cobriuosolhos comosbraços, como se aquilo fosseprotegê-lo; e essa foi a reaçãodequasetodososqueestavampresosnaquelebolsãoinexplicáveldesilêncio.Todoscaíam,semchances

contraoinfernoquevinhadocéu.Aeliantentouselevantar,mesmosentindoapernafalhar,eprocurouporTom,Taönmaeo

filho.Avistouospaisprimeiro,caídosumaoladodooutro.Tom,comumaflechanagarganta,vomitavasangue,masomundoseguiaemsilêncio.Taönmaestavaaoladodomarido,caídadebruçossobreumcorpopequenocomtrêsflechasnascostas.Aeliansentiuoutrasetaperfurarseuombroportrás,eumanovasaraivadacomeçou.Elepegouumescudodochão,dosbraçosdeumanãomorto,eergueu-oacimadacabeça.Sentiuapressãodasflechasmartelandoachapadeaço,mascontinuavaescutandoapenasoprópriocoração.

EledesvirouTaönmacomdificuldade.Umadasflechastinhaatravessadoascostasdakaorshepenetradonocadáverabaixodela.Aeliansentiuumconflitodeemoçõesaonotarqueomortoeraumacriança,masnãooPequenoTom:Taönmamorreradefendendoofilhodeoutrapessoa.Eelesabiaqueelateriafeitoaquiloporqualquerum.

Aelian se virou, procurando pelo Pequeno Tom enquanto lágrimas lavavam seu rosto.Contudo,omeninopoderiaestaremqualquerlugarentretodosaquelescadáveres.

OsÚnicosavançavamempassossilenciosos.Atrás,vinhamosarqueirosderostoimpassível.Aeliannotouquesuasorelhaserampontudas,comoasdossinfos,eseusolhos,maioresqueonormal,eramcompletamentenegros,comoosseusficavamduranteaspossessõesdeProghon.Suasfeiçõeseramfinas,comosefeitaspelapontadeumapena.

Então, uma forma mais alta que os arqueiros abriu caminho entre as tropas que seaproximavam dos mortos. Proghon estava numamontaria até então oculta pelos soldados.Conforme eles se afastavampara lhe dar passagem,Aelian reencontrou umde seus pesadelosrecentesnumaversãoagigantada:umdosgafanhotosqueviranosubterrâneodoPalácio,seladocomoumamontariaparaoGeneral.complacasdeaçonegro.Comaespadaimensanumadasmãos,Proghonavançavaolhandoparaaorgiadecorpostrespassadosabaixodaspatasdeseugrandeinseto.Eleergueuamãolivre,eomundovoltouatersom.

Então,oGeneralviuAelian.—Ora,senãoéohomemdoPoleiro—disseopróprioAelian.Aparentemente,eleeraoúnico

sobrevivente emmeioaosmortos.Comdesdém,Proghon fez suamontariadarmeia-volta econtinuou:—Podemmatá-lo.E,seencontraremoutrapessoaaindarespirando,esmaguemacabeçadela.

Emseguida,Aelianrecuperouocontroledaprópriavoz.AfileiradeÚnicosmarchounadireçãodele.

HaruninformouaRaaziqueofinaldacaravanajáestavaaumadistânciaseguradosarqueiros.—MasaindanenhumsinaldeAelianeZiggy—murmurouoanão.Aolonge,oPortãoNortecontinuavaaberto.Contudo,nãopermaneceriaassimpormuito

tempo,eaquilopreocupavaRaazi.—Semquerercausarpreocupaçãodesnecessária—começouVenoma,olhandoparaumlado

queRaazinãoobservava.Elaapontouparaooeste.—Masachoque já tinhaalguémaqui foraantesdagente.

Um segundo grupo bem volumoso vinha ao encontro do grupomaior, acompanhando asombradaMuralha.Elespareciamorganizadosdemaisparaseremexiladosfugindoàspressas.

PoucossegundosbastaramparaconfirmarquesetratavamdeÚnicos,marchandologoatrásdeumcontingentedesoldadosrasosdeUntherak.

PoucosminutosbastarampararevelarqueeramlideradospelaTenenteSureyya.

Aelianse levantoucomaspernastrêmulaseoescudonobraçoesquerdo.Depoisdequebrarahastedaflechanoombro,puxouopunhalkaorshdocintoeassumiuumaposiçãodecombateinsegura.

A fileira de Únicos avançou de maneira preguiçosa, como se aquele fosse um trabalhoentediante. Um deles atacou Aelian com a clava, e ele aparou o golpe com o escudo, sedesequilibrando e indo parar no chão. O punhal riscou o ar à frente enquanto ele caía, semconseguirferirosoldado.

Outro soldado se aproximou, rindo, e atingiu o estômago dele com a bota de ferro. Umterceiro, mais espirituoso e tentando encontrar alguma diversão e alegria em seu trabalho,chutouumpunhadodeterranorostodeAelian.Risadas,gritosdeescárnio,maçasbatendoemescudosincentivandoolinchamento.

Alguémchutouorostodoex-falcoeiro,masadorfoimínima.Elemorreriadevagarecomrequintesdecrueldadepelasortedenãoterrecebidonenhumaflechafatal.

Comorostonaterra,orapaztevetempodeobservarocenárioporumaperspectivacuriosa.Via lanças de ponta batizada perfurando carne morta, só por garantia. Os sobreviventesagonizantes recebiam estocadas metódicas dos Únicos, que não economizavam esforçosatingindo atémesmo osmais obviamentemortos— afinal, todo cuidado era pouco. Algunspareciamsedivertirpartindocabeçasaesmo.

Suavisãose inundoucomosanguequeescorriaparaseusolhos.Algotambémencheuseupeito,eAeliancerrouosdentes,quaseapontodetrincá-los.Aparouumchutecomoescudoeselevantouemseguida,gritandoesejogandocontraumdosÚnicos,quebrincavacomsuapresa.

Osdoisforamaochão,agarrados.Oscompanheirosdosoldadocomeçaramarirdasituação,eprovavelmentezombariamdocolegaporeletersidoderrubadoporumamiserávelalmofadadeflechas.

Porém,nomeiodabriga,AeliandeslizouopunhalatravésdasbrechasdaarmaduradoÚnico,fazendo-ocuspirumpequenogêiserdesangue.Alâminaficouali,presanaarmadura,entãooex-

falcoeirotomouamaçadoÚnico,voltando-senamesmahoraparaoguardamaispróximoeatingindo-onorostoantesmesmoqueeleconseguissetirarosorrisodacara.

Não havia elmo capaz de amortecer um impacto como aquele. Dentes dos soldados deProghon foram salpicados sobre os mortos dos Assentamentos, e Aelian continuava suainvestidamunidoapenasdesuamaça,seuescudoesuaira.

Quatrosoldadosforamaochão.Umquintorecuouegritouparaqueoscolegasocercassem,eorestantedatropa,maisdistante,viuquehaviaumproblemaali.Aeliancontinuoulutandocomoumanimalacuado—ele extravasavaaviolênciaque tomaracontade suavida, tirandoproveito de todo o tempo disponível em que ainda teria controle de seu corpo, antes deProghonreivindicá-locomoseu.Eleeratodoataque,usandoatémesmoasbordasdoescudoparaatingirgargantasevirilhas.

UmÚnicomaiorqueamédiaacertouopassoparaatacaroinimigosolitário,derrubando-ocomumgolpenoscalcanhares.Aeliansoltouoescudoecaiudecostasnochão,adefesaabertaparaogolpefrontalqueosoldadopreparava,comumurrovitorioso.

Porém,precipitado.Ograndalhãofoiarremessadoamuitosmetrosdedistânciaquandoumbetouroderrapouno

meiodosÚnicos,rompendoadefesa,pateandoaterraesevirandoparainvestircontraoguardamaispróximo.

Ziggy,montadoemThrul,saltoudecimadobetourousandoas lâminasadaptadasemseusantebraçosederrubandoumÚnicoantesdeseuspéstocaremochão.

—Levanta!—gritouZiggyparaAelian,circulando-odeguardaerguidaenquantooamigoserecompunha.Osinfoestavaprontoparaaferroaroutrosoldado,eassimofezquandoumanãoinvestiucomumalança.—SóprecisamosdeumachanceparamontaremThrulefugirdaqui!

Comobetouroiradosaltando,distribuindocoicesebatendoeminimigosaesmo,AelianeZiggy lutaram contra os homens que ainda estavam de pé. Ao longe, Proghon parecia terordenadoquesuastropasdearqueirospálidosdessemeia-voltaparacompletaroserviçoqueooutrodestacamentonãotinhaconseguidofazer.

Mesmoparecendoimpossível,AelianaumentouaferocidadecomquelutavaparaconseguirganhartempoparaZiggypuxarumaflautadoalforjeetocaramelodiaquetrariaThrulatéeles,calmoosuficienteparasermontado.

—Agora,vai!—gritouopequeno,eAeliansubiunobetourocomadesenvolturadequemjátinha feito aquilo milhares de vezes. Thrul se ergueu nas patas traseiras, fazendo cliques ezumbindoasasascoladasaocorpocomumairritaçãointimidadora.Aelianprecisousesegurarnasrédeasatéqueasquatropatasestivessemnochão.

Obetourocomeçouatrotare,montadonoanimaljáemmovimento,AelianestendeuamãoparaqueZiggyapegasse,içandoosinfoparaafrentenasela,deixandoocomandodacriaturaparaopequeno.

—Muitobem,garoto!—gritouele,comavozestridente,chacoalhandoasrédeascomforçae

seinclinandoparaafrente.—Agora,corra!UmÚnicoinfelizfoiatropeladoporThrul,enquantooutroadiouaprópriamorteporalguns

segundosaosairdocaminhodoanimalemplenacargaapenasparasergolpeadopelamaçadeAeliancomforçadobrada,impulsionadapelomovimentodobetouro.

Lançaspassarampróximasaoanimalemfuga.Aelianqueriaolharparatrásevercomoestavaaperseguiçãoaobetouro,mastemiasedesequilibrarecairdeThrul.

Emsuavisãoperiférica,AelianviuumapessoasaltandotelhadosdosAssentamentos.— Tem algo errado no ar! — gritou Ziggy, levando uma dasmãos ao ouvido e abrindo e

fechandoaboca.—Estásentindo?Aelian experimentava uma versão mais leve do amortecimento de todos os sons.

Acompanhando o betouro em fuga, três dos arqueiros pálidos pulavamde laje em laje numavelocidadeimpressionante—eapresençadelespareciarelacionadaaosilêncio,dealgumaforma.

Um deles disparou uma flecha para o lado, quase sem mirar, no meio de um salto entretelhados.Porinstinto,AelianergueuoescudoerecebeuoimpactodirecionadoparaacabeçadeZiggy.Umachuvadeflechasveioemseguida,detodososlados,comosarqueiroscorrendonamesmavelocidadequeThrul.Aelian,queevitavaseperguntarcomoaquiloerapossívelassimcomo tentava não pensar na dor das flechas cravadas na própria carne, percebeu que Ziggygritavaalgoparaele,masosomaoseuredorestavadesaparecendo,edeondeAelianestavaeraimpossívelleroslábiosdosinfo.

Amaioria dos ataques ricocheteava na couraça do betouro, que ia ficando cada vezmaisirritadoeinstável,mesmosemserferido.AeliangritouparaZiggy,pedindoquetocassealgonaflautaparaacalmaroanimal,ouambosiriamparaochãonapróximasaraivadadeflechas.Noentanto,seelenemsequerconseguiaescutarasimesmo,comoZiggyoouviria?

Ultrapassandoobetouroemfugaeantecipandoatrajetóriaqueoanimalseguiria,umgrupodearqueirosinterceptouocaminhoàfrentenumaúnicalinhadedefesa,jáemposiçãodetiro.AeliangritoualgumacoisasemsometentoucolocarobraçocomoescudonafrentedeZiggy,masfoinesseinstantequeThrulparouderepente,arremessandohomemesinfoporcimadosarqueiros,emaltavelocidade.

Aelianroloupormuitosmetrosesentiuofragmentodeflechanacoxaafundaraindamaisnacarne.Percebeuqueosomestavavoltandoaospoucosquandoouviuoprópriogritodedor—distante,comoseestivessenofundodeumpoço.

Ziggy,queerabemmaiságiletinhareflexosmelhoresqueAelian,atingiuochãodemaujeito.O rapaz o viu caído de costas e se arrastou até o amigo, notando que ele não se mexia. Osarqueiros continuavam parados, organizados demais, os arcos retesados para finalizar osoponentes.Thrul, atrásdo grupo, estava capotadono chão e tinhadificuldadespara se virar,dandocoicesnoar.

AelianvirouZiggypara si e sentiu todooar escapandodospulmões:haviaquatro flechascravadasnopeitodopequeno, todasmuitopróximasumadasoutras.Elestinhammiradono

coraçãoeacertadoemcheio.Aelian gritou o nome do amigo. Ziggy abriu os olhos com dificuldade.Não parecia estar

sentindodor.Pareciaapenassonolento.—Minhaflauta—sussurrouele.Aelianentendeucomperfeiçãoeviuqueamãodireitadosinfoaindaseguravacomfirmezao

instrumento.—Não!Levanta!Nósvamossairdessa—falouAelian,semacreditarnaquilodeverdade.Osarqueirosestavamapoucosmomentosdeencerraravidadeambos.Ziggytossiu,deleve,

expelindoumpoucodesangue.—Tocaamúsicaqueensinei…—Não,não,não,não…—Aelian…—Não,não!Vocênãopode…—Aelian!AconversadeixoudesersussurradaeosomvoltoujuntocomonomegritadodeAelian.O

sinfoergueuaflautanafrentedorostodohomemcomoseelapesasseumatonelada.—Toque.Porfavor.Nãoqueromaisficarnesselugar.Dejoelhos,olhandodoamigocaídoparaosarqueiroseimaginandoqueaquiloseriamuito

improvável,orapazlevouaflautaaoslábiostrêmulos.Masnãoconseguiaselembrardamelodiaque acalmavaThrul…Nada surgia em sua cabeça. Parecia que, se tentassepensar emqualquercoisanaqueleinstante,perderiaoúltimosuspirodoamigo—eaquiloelenãopoderiaadmitir.

Comumgritocortantevindodoalto,umamanchacastanhacruzouafrentedorostodosarqueiros—eumdelesseviudesfiguradodeumsegundoparaooutro,comacarnebrancadorostoarrancadaederramandosanguenegronochão.Bicofinoatacavaquemcolocavadoisdeseusentesmaisqueridosemperigo,etodasasflechasforamapontadasparaocéu,emdireçãoaofalcãoenraivecidodeAelian.

Semsuportara ideiadeperderopássaro também,massabendoquenão teriaumasegundachancededistraçãocomoaquela,AelianpegouZiggynosbraçosecorreuparatrásdeThrul,queestava quase conseguindo ficar de pé de novo. A couraça do bicho os protegeria caso osarqueirosresolvessemvoltarsuaatençãomaisumavezparaosdois.

ColocandoZiggynochãocomacabeçaapoiadaemseus joelhos,Aeliansoprouaflauta.Oinstrumentoproduziuumsomrachado,eelesentiulágrimasescorrerempelorosto.Elenuncaconseguiriatocaraquilo.

— Tente lembrar… sem a flautamesmo—murmurou o sinfo, pálido. Ele estava perdendomuitosangue.—Depoisvocêtoca…

Aelian tinha visto e ouvido Ziggy fazer aquilomuitas vezes. Agora, no entanto, todas asmemórias dele pareciam borradas. O rapaz queria poder acessá-las com exatidão, como naslembrançasquehaviamsurgidonoCoraçãodaEstátua.

Então, emmeio à tristeza, opassado lhe acenou comuma lembrança alegre.Ziggy tocavaalgonoalaúde,eAeliantentavaacompanhá-locomumaocarina.Osdoisestavamfelizes.Ziggyestavabem.Annaestavabem.OsinfohaviaelogiadoAelian,dizendoqueeleestavamelhorando—e,aprincípio,orapaznãotinhaacreditado.Oassuntopassouparaaleituradascartasestelares.

“Seumapessoapodeaprenderamecânicadomovimentodasestrelas,aindatenhoesperançasdeaprender a tocaruma flautadireito”, foi oqueAelian falou.EZiggyperguntouparaAnnacomoseriaachuvademeteoritosqueaconteceriaemalgunsmeses—achuvaqueelenãoveria,afinal. A resposta, voltando-lhe à mente com clareza, na voz de Anna, doía muito naquelemomento,frenteaoinevitável.

“Serácomoseocéuestivesseaonossoalcance.”Quandosedeuconta,Aelianjáestavatocandoaflauta.UmruídonovoveiodeThrul.Elesedesvirou,eAelianteveaimpressãodequeacouraçado

animalestavasemexendo.Fazendo o betouro quase dobrar de tamanho com tal movimento, dois pares de asas se

abriramsobreobicho,aqueletempotodoescondidasecompartimentadasdentrodesuaformaarredondada.Asdafrente,quezumbiamcomumtomgrave,eramgrandes,comodoisescudosnegros,easdetráseramdelicadasemembranosas,comtodasascoresdoarco-íris,mudandodeumtomparaooutrodependendodaluzqueincidiasobreelas.

ZiggyencontrouforçasparadarumarisadafracaquetirouAeliandotorpordedescobrirqueasasasdosbetourosnãoeraminúteis.

—Olhasó—disseopequeno,tambémsurpreso.—Comamúsicacerta,achoquequalquerumpodevoar.

Sempensar duas vezes, Aelian pegouZiggy nos braços emontou naquela nova versão dovelhobetouro.

33

ForadosPortõesAquelaeraahisteriaqueRaazitemiaenfrentardesdeoinício.Conseguiudiminuiroimpacto

do terror que começava a tomar os exilados ao reunir quem estava mais calmo à frente,formando o que seria o início de uma parede de escudos contra as tropas de Sureyya,posicionadas a cerca de quatrocentosmetros a oeste. Raazi gritava para que osmais velhosfossemcomascriançasparatrásdascarroças,aomesmotempoemqueengrossavaalinhadedefesana frentedoscomboios.Venomaverificavacada indivíduo,mandandoqueafivelassembemosescudosnosbraçoseelevandoomoraldosqueestavamdispostosa lutar—amulhernemlembravamaisaGarotaSinistraecaladademesesantes.

— Eles não são guerreiros — sussurrou a garota para Raazi ao passar por ela. — Não vãoaguentarumataquecoordenado.

—Muitosdosqueestãoaqui,na linhade frente—respondeuakaorsh—,estãoprotegendoseus filhos e suas famílias, que estão lá atrás, perto dos comboios. Só isso já os torna maisperigososqueossoldadosàfrentedosÚnicos.

—Nãomepreocupotantocomalinhadefrentedeles.Elestêmnomáximooquê,unstrêshomensdeprofundidade?

—É o que parece.A primeira linhadeles só quer enfraquecer e desacelerar o nosso ataque.Quando chegarmos aos Únicos, eles esperam nos encontrar cansados e amaciados pelossoldadosrasos.

—Possoderrubarmuitosdelonge,antesdeeleschegarematénós.Raazi ficoualiviadaaoperceberquenãohaviaarqueirosna legiãode soldadosdaTenente.

Aquilofaziasentido,jáqueoventofortedodesertoiriadesviarachuvadeflechas.ElaassentiuparaVenoma.

—Tudobem,masseprepareparaocombatecorpoacorpo.— Jáestoupreparada—respondeuamercenária, tensionandoacordadabesta, semtiraros

olhosdastropasinimigas.—Vamosavançaroudeixarqueelesvenhamaténós?—Nósestamosemmaiornúmero.VamospavimentaraDegradaçãocomasarmadurasdos

Únicos!—exclamouBaeli,queescutavaasduasdeperto,comasededebrigatípicadosanões.Elaseguravaummarteloeumpequenoescudodemadeira,cheiodemossasecomasbordas

gastas.Raazimeneouacabeça.Aúltimacoisaqueelaqueriaeradiminuiromoraldospoucosquetinhamcomparecidoàfrentedoscomboiosporcontaprópria.

—Vamos ter que avançar umpouco,mas não podemos atacar às cegas.Não temos tantasarmasassim,eamaioriadosnossosestácomenxadas,rastelosepás.Maseutenhoumplano.

— Há duzentas pessoas na linha de frente com armas de verdade — respondeu Baeli, querepassouocontingentedosexiladosduasvezes.

Venomaolhouparaooutrolado,nadireçãodastropasdeSureyyae,delá,paraRaazi.—Queplanoéessequevocêmencionou?—Vocês já vão saber— respondeu a kaorsh, enquanto pensava emmil formas de como o

planopoderiadarerrado.CadachorodecriançaquechegavaatéseusouvidosfaziaRaazipensarqueestavaloucaporfazerfrenteaossoldadosdeUntherakcomumbandoderefugiadosaseulado.Nãoqueriacolocá-losemperigo.Decertaforma,eraresponsávelportodasaquelasvidas.Mesmo assim, manteve-se firme. — Enquanto isso, quero manter a batalha o mais distantepossíveldosqueestãoabrigadosatrásdoscomboios.

CombatentesvinhamatéRaaziparalhefazerperguntas.Eladistribuiuordenseconselhosepediaqueficassematentosàslinhasinimigas,comSureyyaàfrentelembrandoquemantivessema linhadedefesadelesdomesmo tamanhoqueadaTenente,paranão seremengolidospelaslaterais. Enquanto explicava como semanteriam firmesnahorado choque comos soldadosrasos,Raazifoichamadaporumavozconhecidaeinterrompeuoqueestavafazendo.

—Sequersaberqualémeuplano,Venoma,essaéahora—disseela, fazendosinalparaquePryllanseaproximassecomseubetouro.

—Converseicomosoutros,Raazi—disseosinfo,muitosério.Noentanto,Pryllansemprefoimaissisudoqueonormalparasuaespécie.—Vamosatacarprimeiro.Nãotemosasarmasapropriadas,masachoquepodemosdesestabilizá-losparaquevocês invistamemseguida.Oschifresdosbetourosdevemcausarumbomestrago.

Raaziassentiu.Baeliarregalouosolhos.—Espera,penseiquenósseríamosalinhadefrente!Vamosterumataquedebetourosantes?—Sim,masvamosformaressalinhaapenasquandocomeçarmosanosmexer.Nãoquerodar

tempoparaSureyyarepensarsuaestratégia—falouRaazi.—Pryllanvaipassarainformaçãoparaossinfoseavisarqueelesdevemtomara frente.Os inimigosnãovão imaginarqueusaremosbetourosparaabatalha.

—Porqueelesnãosãoparabatalha—comentouBaeli,comumacareta.—Vocêtemcerteza?—perguntouVenoma,olhandoparaPryllan.—Nósconhecemosoriscoevamoscomissoatéofim.O sinfo fez uma mesura, deu meia-volta com o betouro e começou a gritar para que os

pequenosficassemapostoscomseusanimais.—Esperoquefuncione—disseBaeliparaaamiga.—Ninguémnuncafeznadaparecido.— Ninguém nunca fugiu de Untherak antes também — respondeu Raazi, e Baeli não fez

objeções.Venomaprendiafacasnacalçaenasbotas,antecipandoomomentoemqueficariasemsetas.

ElagarantiuaRaaziquederrubariamuitosÚnicosantesquechegassematéeles.—Vouficarpróximadevocê—disseamercenáriacomumadasmãosnoombrodaaliada.

Raaziassentiue,derepente,selembroudequeestavasentindofaltadeumapessoaessencialnalinhadefrente.

—OndeestáHarun?—Eledissequeiavestirostrajesadequados—respondeuCora,quecarregavaummarteloeum

escudoredondo.A kaorsh olhou para trás e viu o marido da anã em uma armadura escura, e não com as

habituaisvestesdeAutoridade.EraacouraçaqueelehaviaencontradonoCoraçãodaEstátua.—Essaarmaduralheservemuitobem,meuamigo—elogiouRaazi, felizporverqueaquela

figuratãoameaçadoraestariaaseuladonabatalha.Harundeudeombros.—Prefirolutarcomaquelamaculadadesgraçadanostrajesdaminhafamília—informouele.—Sevocêenfrentaraquelakaorshsemmim, juropelasSeisFacesquearrancoasuacabeça

fora,meuamor—grunhiuCora.Porseusemblante,erapossívelverqueelaestavaconfianteapontodeenfrentarsozinhatodooexércitodeUntherak.

Ônix foideixadoaoscuidadosdeumasenhorahumanaesua família,dentrodacarruagemroubadadaVilaA.Coranãotrajavaarmaduraalguma,maspareciatãoletalquantoHarun.

EnquantoosanõesseposicionavampróximosdeRaazieBaeli,outrapessoatambémentrounafileira,obrigandoalgunscombatentesaabriremespaçoparaelenalinhadefrente.IdrazFaca-CegadeuumsorrisomaliciosoparaVenomaaotomarseuposto,segurandoumafacalongacomdisplicência.

— Que piada demau gosto é essa, seu ensebado? Vai ficar na linha de frente com isso? —questionouHarun,quasecomoumabronca.

—Nuncasubestimeumafaca—respondeuele,alisandoabarbadeduaspontas.—ElasentramfácilnasarticulaçõesdasarmadurasdosÚnicos.Acrediteemmim,játesteibastante.

Raazinãogostavadapresençadosujeitoali,masaquelenãoeraomomentodeserseletiva.Eramelhorterumlunáticobem-preparadolutandoaoladodelesdoquecontraeles.

Elaolhouemvolta.Atéqueestavamorganizadosdemaisparaumatropafeitaàspressas.Apóstantotemposendoarrebanhadospelomedo,estãotodosmuitoinclinadosareceberordens,pensouRaazi,sentindoummal-estarporterquecomandá-losparaabatalha.Porém,elasabiaqueerasua função liderar o povo. Eu quero o bem deles, não sua obediência. Quero que sobrevivam,pensou.Desdequeescaparacomvidadeumamissãosuicida,abraçaratodasasconsequênciasdesuasaçõescontrao lugarquetirouavidadeYanisha.Estarali,na frentedetodos,eraoápicedessasescolhas.AspessoasdependiamdakaorshedetudoqueelaeYanishacomeçaram.Afinal,aqueleeraoefeitoquesuaesposaqueriacausar:ofogoincontrolávelcausadopelafagulhadesuamorte.Raaziachavaquehaviamesmoumincêndioemseupeito,capazdequeimartudooqueestivesseaseualcance.

SóqueriaqueAelianeZiggyestivessemaquitambém,Raaziseflagroupensando,imaginandooque estaria acontecendo com seus amigos dentro das Muralhas. Ela aprendera a confiar a

retaguardaàquelesdois,eelesfariamfaltanahoradoaperto.Annafariafalta.Setodoseles,emespecialYanisha,estivessemali,RaazisesentiriacapazdederrubarumalegiãodeÚnicoscomasunhas.

Uma onda de areia bateu em seu rosto, obrigando a kaorsh a fechar os olhos por algunssegundos.SeumedodamorteforaextintonaTribunadeHonra,naquelediatãodistanteemqueseu canväs chegou tão perto do fim. Se tinha que conduzir toda aquela gente para um fimtrágico,Raaziirianafrente—elevariaSureyyacomela.QueriaqueaTenentesentisseamortefechandocadaumdosdedosemsuagarganta,quemorresseexperimentandoamesmadordeYanisha.

Passadaalufadadeventoeareia,Raaziolhouparatráseviudoisagrupamentosdebetourosorganizadosatrásdeseubatalhão.Pryllanaolhavadelonge,atento—ossinfosestavamprontosparaseguircomoplano.Akaorshgritou,enérgica,edeuosinalparaquecomeçassemaavançar,antesqueaesperafizessecomqueseuscompanheirosdebatalhaavaliassemoriscoquecorriam.

DentrodosPortõesUmbetourovoavaacimadosAssentamentos.

Thrul decolara com dificuldade, parecendo pesado demais para alçar voo. Contudo, ossegundosdedistraçãoqueBicofinoconseguiuatraindoasflechasdosarqueirosforampreciososparaqueobetouroseestabilizasse.Noinício,elepareciaprontoparacair,eAeliancontinuoutocandoaflautaenquantoseguravaZiggycomamãoeseprendiaapenascomaforçadaspernas,quedoíamelatejavam.

Quandoosprojéteis começarama serdisparadosnadireçãodeles,Aelian foiobrigadoa sesegurarcommaisforça.Guardouaflautaesedebruçouparaafrente,enrolandoascorreiasnosbraços,aomesmotempoemquecriavaumespaçoseguroefirmeparaZiggy,entreotóraxeacarapaça do betouro. Thrul faziamanobras evasivas instintivas para escapar dos tiros, a cadasegundoganhandomaisaltura.

Aospoucos,aestátuadeUnafoisetransformandonumaminiatura,comoaquelanamaquetedasaladeestratégia.Aelian,quenuncateveproblemascomaltura,sentiacalafriosaoseimaginarcaindodali.

—AterraRaiz—murmurouZiggynosbraçosdohumano,delirando.—Ficacomigo,Ziggy.Porfavor—pediuAelian,sentindooscabeloschicoteandoseurosto

comasdiversascorrentesdeventoqueseentrelaçavamacimadeUntherak.Osinfoestavacomeçandoaalucinar,sorrindo,suamãozinhaacariciandoahastedasflechas

cravadasnopeitodele.—Finalmenteestouvendoumpôrdosoldiferente—disseZiggy,osgrandesolhosdecores

diferentesrefletindoocrepúsculoavermelhado.—Gostomaisdeleassim…semmuros.Estamos

bemnoalto,nãoé?—Sim,Ziggy—disseAelian,comavozfalhando.— Então, também estamos perto das estrelas que eu sempre quis ver caindo… Pena que

estamosnahoraerrada.Aelianriunomeiodochoro,demaneirainesperada.Foiumrisosofrido,comaconsciência

dequeseriaaúltimavezqueZiggyofariarir.—Meprometeumacoisa?—Qualquercoisa,amigo.O sinfo sorriu coma frasedeAelian. Era como se ele tivesse escutadoumamelodianova,

acalentadora,queaqueceriaatéumcoraçãoprestesasecalar.—AterraRaiz…Promete?— Eu vou encontrá-la, Ziggy — prometeu Aelian, apertando os lábios e deixando correr

lágrimasque sedescolavamde seu rosto conformeosventos ficavammais selvagens.Notouque,acadapiscadeladosinfo,maistempoeledemoravaparaabrirosolhos.

—Quebom…Muitoobrigadoporisso.Porseimportar.Devastado,Aelianrespondeucomumacenodecabeça.Então,aspálpebrasdeseuamigose

fecharampelaúltimavez.

ForadosPortões—Mantenhamaformação!—gritavaRaazi,osolhosfixosemSureyya,cadavezmaispróxima.

As tropas dela também tinham começado a se movimentar. De onde estavam, Raazi jáconseguia escutar amaculada gritando ordens para osÚnicos e para os soldados da linha defrente,a línguatãoafiadaquantoasgarrasdochicote.Alémdaquelaarma,aTenenteportavaumaespéciedeespadacurtadepunholongo.Alâminadaarma,fina,estreitaebatizada,estavarenteaoantebraço.

—Malpossoesperarparaarrancarosdentespontudosdaminhaex-chefe—grunhiuHarundedentrodoelmo.

Raazifoirápidaecategóricaemsuaresposta:—Sureyyaéminha.Massinta-selivreparaarrancarosdentesdetodososoutrosÚnicos.—Vou amolecer a bastardapara você—disseVenoma, erguendo a bestapara compensar a

distânciaeatirandonakaorshmaculada.ATenenterebateuasetadirecionadaaoseupeitocomummovimentorápidodalâmina.Ela

sorriu,mostrandooscaninosafiados,adorandoodesafioepedindomais.—Desgraçada!—gritouVenoma,abaixandoabesta,indignadaedesacostumadacomaquele

tipodecomportamentodeseusalvos.—NãodesperdicesetascomSureyya—avisouRaazi,apontandoparatodaaextensãodatropa

inimiga. — Derrube os soldados, faça com que eles tropecem uns nos outros e rompam aformação!

Venoma reergueu a arma, e Sureyya sofreu suas duas primeiras baixas. Organizados, doishomensdas fileiras de trás tomaram seus lugares namesmahora.No entanto, isso deixava alinhadesoldadosmaisfrágilemalgunspontos.Venomarepetiuoprocessoemaisgritosvieramdaslinhasinimigas.

—Pryllan!—gritouRaazi,erguendoalançanahorizontal.—Avance!Ossinfos,queaguardavammaisatrás,trotaramatéafrentedatropadeRaazi.Deumminuto

paraooutro,alinhadefrentedosexiladossetornounegraeluzidia,formadapelascarapaçasdedezenas de betouros. A Tenente pareceu hesitar, sabendo que sua infantaria não esperavaenfrentaranimaisdecargausadoscomocavalaria.

—Agora!—gritouRaazi,percebendoahesitaçãonatropadeSureyya.Pryllanrepetiuogritodela,eossinfoscolocaramsuasmontariasnumtrotefurioso.Alguns

tocavaminstrumentosdesoproparainduzirmaisforçaàsmúltiplaspatasdosbetouros.—Permaneçamnosseus lugares!—gritouSureyya, recuandoumpoucoe seposicionando

entreaslinhasdosterceirosequartoshomens.—Parededelanças!Amaculadagritouocomandoeainfantariaestacou.Ossoldadosplantaramumdosjoelhos

nochãoeergueramas lançasà frente, formandoumamuralha intransponívelparapessoas—masnãoparabetouros.

Orompantedosanimaisatingiuainfantariacomumgranderuídometálicoegritosdedordos Únicos ajoelhados. Pelomenosmetade da carga conseguiu romper a parede de lanças ecausar o caos entre as tropas, antes de tentar evadir pelas laterais da infantaria de Sureyya.AprópriaTenentederrubouumbetourocomsua lâminabatizada,edepoiscontinuougritandopara seus soldados aguentarem a ofensiva. Muitos sinfos escaparam da confusão e sereagruparamna retaguardadobandodeRaazi.Pryllan,porém, lutavacomose já tivesse feitoaquilomil vezes, adespeitode sua raça serpacífica e voltadapara a agricultura.Comsededebatalha em seu corpo jovem, ele passeou atrás das linhas inimigas após furar o bloqueio,trazendooutrostrêsguerreirosembetouroseaferroandoosÚnicoscomumsabrequeRaazilheemprestara,doestoquedoCoraçãodaEstátua.

Em meio às baixas, Raazi viu Pryllan retornando para se recuperar do ataque, cheio dearranhõesecortes,obetourodelecomváriaslançasenfiadasnacouraça.

—Conseguiverofundodainfantariadeles—disse,arfando,aopassarporRaazi.—Háalgunsgnollsnaretaguardadastropasdeles,depoisdaconcentraçãodeÚnicos.

Alguns de seus companheiros se lamuriaram com aquela informação. A kaorsh foi maisrápida que o rastilho da notícia e ergueu sua lança, lembrando-se da estratégia de batalha deAenochOruz.

—Seforemcercadospormaculados,Únicos,gnollsousejaláoqueaquelaemissáriadapestenos enviar— gritouRaazi, inflamada—, protejam a retaguarda uns dos outros!Não recuem!

Entrememformaçãodedefesa,costascomcostas,armasparafora!HaruneCora,àfrente,deramumberro,egritosdeapoiovieramdetodoogrupo.— Aproveitem que eles estão desorganizados! Em frente, ataquem! — gritou Raazi,

começandoacorrer,osaliadosrepetindosuasordens.OssoldadosdalinhadefrentedeSureyyapareciamesmorecidosapósoataquedosbetouros,masosÚnicosatrásresponderamaodesafio,todos em conjunto, como haviam sido treinados. Venoma, que era uma máquina de matar,derrubandoquemestivessenocaminho,aproveitouparaenfiaraúltimasetanabocaabertadeumdeles,eentãosacouduasfacasquetinhaguardadoparaoinevitávelcorpoacorpo.

AtropaimprovisadadeexiladossechocoucontraossoldadosdaTenenteeempoucotempoalcançouasarmadurasnegrasdosÚnicos.

Raaziagarrouahastedeumalançaeapuxoudasmãosdeumsoldado.Trespassou-oeusouaarmadodefuntoparaatacaroÚnicoqueprotegiaalateraldele.ViuBaeliatravessandoaquelapassagemcriadanadefesacomumberro,eouviuHarunrosnando,furioso,emalgumlugarforadesuavisão.

Muitos exilados caíram logonos primeiros segundos, levando consigo as lanças presas nacarne.Issofezcomqueamaioriadossoldadostivessedificuldadederecuperarsuasarmas,oqueosdeixouindefesosporvaliososinstantes.Comrequintesdecrueldade,Idrazaproveitavapararetalharaquelesquetentavamretirarasarmasdoscadáveres—e,emmenosdeumminutodebatalha, a capa do homem estava salpicada de sangue, deixando-o muito parecido com umaçougueiro.

HaruneCoraseguiamladoalado,implacáveiscomofogonavegetaçãoseca.AmbosseguiamceifandoÚnicosetrazendoaliadosatrásdesi.Entreosquecaíampelasmãosdosanões,alguémteveainfelicidadedereconhecerHarunegritar:

—Oanãotraidorestácomeles!EssesoldadorecebeuatençãoespecialdeCora,queteveocuidadodedeceparobraçodorapaz

antesdeenfiaromachadoemseupescoço.Dealgumlugaratrásdastropas,Sureyyagritavaparaqueseussoldadossereorganizassem.Ela

usavaoaçoitecontraospróprioshomens,paraamedrontá-los,eoefeitoeraimediato.Raazialocalizouecomeçouaperseguiçãonomeiodetodoocaosdesangueeareia.ATenenteteveumvislumbredalíderdastropasdosexiladoserosnouumcomandoquefezcercadevinteÚnicosse juntarem ao redor dela, deixando-a protegida, longe do alcance de armas. Os guerreirosestavamombroaombro,fazendoummurodearmadurasaoredordamaculada.

RaazifocousuapresaecomeçouaabrirumaclareiraentreosÚnicos.Quandoestavaprestesaalcançar Sureyya, depois de chacinar cinco homens, a Tenente urrou, e as armaduras de seussoldados passaram amudar de cor, causando ilusões de ótica e desconforto naqueles que osatacavam.AprópriaSureyyaoscilavadopretoparaobrancoeparaocinza,e,àsvezes,paraumacamuflagemchuviscada.Raaziseperguntoucomoelaconseguiacolocaraquelascoresemseussoldados sem tocá-los. Talvez seja o poder da Mácula agindo nas suas habilidades kaorshs,

pensou, com assombro, perdendo a inimiga de vista na tempestade visual que se seguiu. ATenente,éclaro,nãoseimportavacomoquediriamsobreumakaorshmanipulandocoresforadeseucanväs,masaquelamanobraprovavaqueasituaçãoeraextremanosdoisladosdocampodebatalha.

Suabuscapelamaculadarecomeçounomardehomensquemudavamdecor.Fazerakaitanaareiaeramilvezesmaisdifícilqueemterrafirme,masa lançamuitasvezesserviadealavancaparaqueconseguisseoimpulsoparaumnovogolpe.Sejáeracomplicadocaminharnaareiadodeserto,oenormenúmerodecadáverestransformavatudonumobstáculoaindamaior.Raaziobservouumsoldadoemparticular,umgarotokaorshquebrandiaumalança:seurostoeraodeuma criança que não devia ter passado mais de quinze verões do lado de fora do Miolo,provavelmentecomumpaiouumamãeservindonaquele lugarhorrível.Láestavaele,olhosarregaladoseexpressãocongelada,oventobagunçandoseucabelo.Ogaroto lutavauma lutaquenãodeixavadesersua,assimcomonãodeixavadeserinjusta.

—Pryllan!Agrupeosbetouros—chamouela,engolindoaraivaeesperandoquealguémaoseuladoaescutasseapesardosgritosedobarulhodearmassechocando.—Precisamosdeoutracarga,agora!

Os betouros voltarama se unir, longeda batalha, e então vierampela lateral esquerdadosÚnicos,forçando-osamontarumalinhadelançasàspressaseenfraquecendoalinhadefrente.Venoma aproveitava para apunhalar e estocar, coisa que quase nunca fazia. Um anão numaarmaduranegrasurgiudonadaparadesafiá-la,girandoummangualsobreacabeça.Porém,antesqueaplicasseogolpe,recebeuumaestocadasobaaxila.AarmaescapoudesuasmãoseafundounorostodoÚnicoquevinhaatrásdele.

Harunfinalizavaumoponentequandoouviuorosnarasmáticocaracterísticodosgnolls—elesenfimforamliberadosdasjaulas.Oprimeirocorreuporcimadoanão,derrubando-o,massematacarninguémcomsuasmandíbulas.Elespareciamtercomoobjetivooacampamentodecomboios atrás das tropas dos exilados. Caso aqueles animais chegassem onde estavam ascriançaseosidosos,seriaummassacre.

Umsinfocorajosoconduziusuamontariacontraumgnoll,obetouroatacando-odecabeçabaixaearremessandoaferaparalonge.Logoosganidosdemaisumadezenadelestomaramocampodebatalha.

Raazi conseguiu abater um, arremessando uma lança maculada com precisão — ela nãorepetiriaoerroquedeixaramarcasemseuabdômen.GritouaoverBaeliemapuros,acuadaporumgnollquepareciaterumamãohumananaboca.Porém,acomercianteacabousendosalvapor Idraz, que saltou sobre as costas do bicho e o apunhalou ferozmente. O bastardo eradesaforado,maslutavacomvontade.

Raazi não teve tempode respirar aliviada, pois outros gnolls alcançaramo acampamento.Algunsdosqueestavamporlájápareciamestarlutando,usandoferramentaseoquequerquetivessemàmão.Ela,quecomeçavaaserevitadanocampodebatalha,encontrouVenomanão

muitolongedeondeestavaecorreuatéaamiga.—Junteoqueacharnecessárioemateaquelesgnolls—disseRaazi,eamercenáriaobedeceuna

mesma hora. Virou-se para continuar ajudando na batalha, tendo a impressão de quecomeçavam a ficar em visível desvantagem. Correu para o lado de Harun e Cora, abrindocaminhoatéofundodastropasinimigas.EracomoseSureyyativessedesaparecido.

Em vez de se deparar com a Tenente, porém, Raazi viu um Autoridade imenso que foraescaladopara controlar a retaguardadosÚnicos. Ele usava uma armadura completa, ajustadaparaseutamanhodescomunalecomumAdesgastadonopeitoralquedenunciavasuapatente.Ohomemcarregava uma longa espada batizada. Protegidopor dois lanceiros, ele gritouporRaazi,eelaentendeuaquilocomoumdesafio—umdesafiodoqualnãofugiria.

Akaorshcorreu,gritando,lançanasmãos,masoimprovávelaconteceu:oAutoridadeeseusdoissoldadosjogaramasarmasnaareia.Raaziinterrompeuainvestida,eviuograndalhãojogaroelmoaseuspés.Suacabeçaeracalva,eorosto,familiar.

—Vida longa à assassina da falsa deusa— saudou, em seguida apontandopara a zonamaisdisputada da batalha. — Sureyya está lá.Minha espada é sua emeus homens seguirão as suasordens.

Raazificoumuda.Lembrava-sedele:Ranakhar,obrutamontesquetinhasidogentilcomelanaArenadeObsidiana.

—Fiquemlongedomeupessoalsenãoquiseremserconfundidos—disseRaazi,oolharfixonoAutoridade.Quandoiadarascostasparaseusnovoseimprováveisaliados,teveumaideia.

Jánãohámaisregrasparaseremquebradas.Então,porquenão?RaazitocounopeitoraldaarmaduradeRanakhar,eboapartedometalsetornouvermelho,

mescladoàcorescuraantiga.Mudançadecoresforadeseucanväs.Combater fogo com fogo, praguejou Raazi na própria cabeça, chamando os mais recentes

aliados e tocando elmos, escudos e gibões. Eles iam ganhando peças vermelhas em suasvestimentaseficandobemdiferentesdastropaspelasquaislutavamhaviaumminuto.

— Voltem para a batalha, não temos tanto tempo! — mandou ela, tocando o último doshomens deRanakhar e gritando para tropas próximas.—Os soldados de armadura vermelhaestãodonossolado!

Antes de começar a abrir caminhona direção de Sureyya— que agora conseguia ver comfacilidade—,akaorshseagachouepegouoelmojogadonaareia.Alterousuacorantesdeatirá-lodevoltaparaRanakhar.

—Vocêégrande,masnãodêchanceparaoazar.O homem assentiu, colocando o elmo vermelho, e mergulhou na batalha com fúria,

assustandoainfantariadeUntherakcomsuasarmadurastingidascomacorproibida.RaazimatoupelomenoscincosoldadosemseucaminhoatéSureyya,quetiravasualâmina

finadoestômagodeumamulher.UmÚnicofezmençãodecorrernadireçãodamaiorinimigadeUntherak,mas,antesdequalqueração,recebeuumempurrãodesuaTenente.

—Atraidoraéminha.Comseuruídocaracterísticoacimadossonsdabatalha,ochicotedeSureyyaestalounoar,

carregadoderevanche.Raazinãohesitouementrarnoalcancedaarma,girandoalança,prontaparaabsorverqualquergolpe.

— Eu deveria ter resolvido isso no dia em que a outra vadia morreu — sibilou Sureyya,avançandocomalâminaestreitanumadasmãos.

Elaalternavaosataquescomchicoteelâmina,maldandotempoparaRaaziserecuperardasinvestidas.NaúnicabrechadecentequeteveparaferiraTenente,sualançadespedaçouocrâniodepássaronumdosombros,masnãoferiuamaculada.

Raazi estudava os movimentos dela, gingando ao ritmo de uma kaita mental. Sureyyaatacava,usandooódiocomocombustível,epareciaaumentaraforçadosgolpesacadasegundo,comoseseucorpofuncionassedamaneiracontráriaaodeumapessoanormal.

SeuaçoiteacertouaspernasdeRaazi,rasgandoapeledapanturrilha.Raaziaproveitouparaenrolar o chicote na lança e o arrancou damão da oponente com um puxão. Sureyya ficouapenascomalâminabatizada,queusouostensivamente,forçandoRaaziadefenderorostocomalança.Apóstantosgolpesseguidosnomesmoponto,ocabosepartiuaomeio.Raaziseguroumetadedaarmaquebradaparanãoficardesarmadaeaomenosconseguirbloquearalgumgolpe,masganhoudistânciadainimigaecomeçouaesquadrinharochãoembuscadeoutraarmaquelhe servisse melhor. Porém, eram só maças, manguais e martelos, que a deixariam lenta evulnerável.

—Proghonaquerviva—sibilouSureyya,entreosdentes.—Masoprazerdematá-lavaivalerapuniçãopordesobedecê-lo!

Raazi não conseguia encontrar falhas no estilo de luta daTenente, que não seguia padrãoalgum:suaposturasealternavadeumsegundoparaooutro, tornando impossívelacharumabrechaemseusmovimentos.

Parapiorarasituação,SureyyatinhaseposicionadodeformaqueosolficasseàscostasdelaeofuscasseavisãodeRaazi.Semprequetentavainverterasituação,aTenenteaencurralava.

Foi por isso que Raazi tropeçou no corpo de um sinfo, caído ao lado da couraça de umbetouro imóvel.Amaculadasorriu, triunfante,eergueusuaespadaestreitaparadarumgolpefulminante.Raazirolouparaolado,alâminapassandoacentímetrosdela,aindaofuscadapelaluzdosol.

Algosurgiuemsuamente.Aindanochão,elaergueuamãoespalmadaparaSureyya.ATenentegargalhoue,comsuavoz

fustigante,nãoresistiuaprovocarsuapresa.— Pedindo clemência, Raazi? Esperava que uma sobrevivente do Festival daMorte tivesse

algumahonra.—Eutenho—respondeuRaazi,concentrando-senaluzdosolesentindoosolhosarderem.

Estavatemporariamentecega,maserahoradeconfiaremseusoutrossentidos.

Suamãorefletiualuzdosol.Elapensouque,ondequerqueestivesse,Yanishaestariamuitoorgulhosaporsuaamadaterconseguidoquebrartantosparadigmasemtãopoucotempo.

Sureyyafechouosolhos,pegadesurpresa.RaaziaproveitouparadarumarasteiranaTenente,eentãoselevantouomaisrápidoquepôde.Erasuaúnicachance.

Caída, amaculadadirecionoua espadapara cima,numa tentativadesesperadadeperfurar aoponente.Raaziantecipouaquelemovimentomesmosemenxergardireito.TorceuopulsodaTenentee,umsegundodepois,apontoua lâminanegraparaotóraxdeSureyya.Raazideixoutodoo seupesodesabar sobrea lâminae sentiu-apenetrarna inimiga, resvalandonaespinhadorsalantesdeapontaencontrarareiadenovo.Defato,eraumalâminabemafiada.

Sureyyaarreganhouosdentes,gritandoemdesafioeafundandoasunhasnorostodeRaazi.Akaorshacaloucomumacabeçadanaboca.

Em algum lugar atrás de Raazi, que enxergava tudo comuma brancura desesperadora, umÚnicogritouqueaTenenteSureyyaestavamorta.

AcimadosPortõesAelianseseguravaemThrul.EaninhavaZiggy.

Ovoodacriaturaeraerrante,e,depois,orapazdescobririaqueobetourotinhasidoferidopelasflechasdosarqueiros.Bicofinoacompanhavaoanimal,planandoaoladodele,comoumaescolta.Aavenãohaviasidoferida,comoquepormilagre.Aelian,noentanto,nãoacreditavamaisemmilagresagoraqueodestinootiravaumamigo,esabiaquedeviaavidaaofalcão.DeviaavidaaThrul.DeviaavidaaZiggy.

Deixando o betouro decidir para onde ir, Aelian ergueu os olhos para o monte Ahtul. Ogiganterochososopravaarfrionadireçãodele,prontoparaabraçá-lo.EAeliannãoviaopçãosenãoretribuir.

ForadosPortõesQuando sua visão começou a voltar aonormal, a primeira coisa que viu foi amãodeHarunajudando-aaselevantar.

—Agoraque amaldita estámorta, posso arrancarosdentesdela?—perguntou, indicandoSureyyacomacabeça.Eletinharetiradooelmodaarmadura.—QuerofazerumcordãoparaoÔnix.

Raaziignorouocomentárioeselevantou,preocupadacomabatalha.—Mearranjemumaarma!Qualqueruma!—Calma—disseCora,aproximando-sedosdois.—Astropascomeçaramadebandarparaa

Muralha.Nóssobrevivemos.

Sobrevivência era o melhor termo para a situação, já que a quantidade de cadáveres dosexiladosdeUntherakera imensa. Incontável. Irreparável.Estavamtodos feridose largadosnasoleiradoPortão,anteaDegradação.

Ao longe, cercade trintaÚnicos corriamnadireçãodoPortãoNorte.AelianeZiggynãohaviam voltado, e Raazi mantinha uma ínfima esperança de que eles estivessem perto doscomboios,quetinhamretornadoduranteabatalha,quandoelanãoestavaprestandoatenção.Porém,algolhediziaquenãoerabemassim.

Ranakharsejuntavaaossobreviventes,comcercadequinzesoldadosrebeladosmarcadosdevermelho — todos desarmados para deixar claro que estavam do mesmo lado. Haviam sidoessenciaisparaqueabatalhanãotivesseresultadonummassacregeral.Raaziapertouasmãosdohomem,quefezumamesuraparaela.

Venomaestavasentadasobreacarcaçadeumgnoll,ao longe.Pareciabastantemachucada.Raazi foi ter com ela. Amercenária havia lutado sem parar emerecia um descanso.Harun aacompanhou, enquanto Cora encontrava a senhora que cuidara de Ônix durante a batalha.Ambosestavambem,sãosesalvos.Obebêchorava,eamãe,cobertadesangue—quenãoeradela—,oembalavanacenaque,paraRaazi,seriaamemóriamaismarcantedaqueledia.Harununiaasmãos em concha e tentava acalmar o filho, agitando-as. De dentro delas, vinha um som dechocalho.Akaorshtinhaa ligeirasuspeitadequeasmãosdoamigocontinhamosdentesdeSureyya.

Os sobreviventes cuidavam de suas feridas quando um estrondo veio ao longe. O PortãoNortesefechava.

Estavamdefinitivamentedoladodefora,aDegradaçãoseestendendoàfrente.

EPÍLOGO

Pormaisquetivessemchegadocomimponência,agoranãoeramnadamaisqueumapilhadecorpos,escudosearmadurasmaisaltaqueomaiorbarracodaquelarua.

Agrandeespadaestavafincadacomoumabandeiranaquelemontenefasto.Ohomemquesedenominava Aparição descansava no topo, ao lado da arma, fumando um cachimbo — umhábitoadquiridocomotempoequesetornaramaisnecessárioquebeberágua.

Ao longe, uma pessoa se aproximava. Dessa vez, Aparição esperava que seu pedido fosseatendido, ou teria que criar uma nova pilha de cadáveres, até que ficassem impressionados aponto de o levarem para o General. Se fosse necessário, faria ummontemaior que o Ahtul.Lugarzinhomaldito,pensou,aose lembrardosmesesde frio, fomeeprovações.Oúnicoseraodiarolugarmaisqueeledeviaserofalcão.

AoveraformaçãoquesubiaosAssentamentos,tevecertezadequeseupedidoestavaprestesaser atendido: uma longa fila de elfos Silenciosos montados em gafanhotos, duas herançasmalditas dos tempos em que a Centípede gostava de brincar de criador e criatura. Tanto osarqueirosquantoos insetoshaviam, semdúvida, semultiplicadoemgrande escaladentrodoMiolo.TalvezoGeneralaindaandasseparaláeparacácomumdaqueles.

Osarqueirosmontadossedividiramemduasintermináveiscolunas,eentreelasvinhaumafigura a pé. Ele nunca tinha gostado demontar coisa alguma. Nem sua nova patente, comoTenente,ofariamudardeideiaeusarumadaquelasaberraçõescomotransporte.

Apariçãodesceudomonte,levandoaespadaconsigo.Decidiuembainhá-laapósconfirmarasintençõesdacomitiva.OselfosSilenciososquechegaramàfrenteolharamparaosujeitocomaespada,causandoaquelavelhasensaçãodepressãonosouvidos.Osgafanhotosbateramaspinçasoufosselácomochamavamaquiloquelhesserviadeboca.Osomchegouamortecido,comoseosouvidosdeleestivessemlacradoscomceradeabelhaesócaptassemruídosdistantes.

Então,todosseafastaramparadarespaçoaoTenente,queseaproximavasempressaalguma.—Ora,ora—disseAparição,guardandoocachimboebaforandoparaoalto.Ossonstinham

voltadoaonormal.—ParecequeconseguiaatençãodoPalácio.—Esse lugarnãoexistemais— informouoTenente,semparecernemumpoucoalarmado

com a pilha de soldadosmortos às costas do forasteiro. Ele dispensou um olhar aos corposcomo quem encara um tronco recém-cortado. — Temos a Colmeia. Você logo entenderá onome.

Apariçãoriu.—Então,vaimelevaratéele?—Vou,Aelian.—Aelianestámorto—rebateudepronto.—EumechamoAparição.Evocê,Tenente?Ainda

sechamaHarun?Oudepoisdetrairatodosqueamava,vocêsecontentouemserapenasoBraçodeProghon?—Apariçãooolhoudospésàcabeça.—Éumbraçobemcurto,diga-sedepassagem.

Oanãooencarousemdemonstraremoção.Otempoemqueeleseofenderiacomaquiloseforahaviamuito.AbarbadeHarunestavabemmaiorquedaúltimavezemquetinhamsevisto.

—Siga-me,Aparição—comandouele,dando-lheascostas.—EevitefalarnocaminhoatéaColmeia.OGeneralnãodissenadasobrevocêserentreguecomlíngua.

Aparição assentiu, com um sorrisinho. Os elfos Silenciosos encaravam o forasteiro quedesfilavabemnomeiodeles,altivoedestemido,sendoconduzidodevoltaparaoMiolo—umlugarquenãocansavadelhetrazerdesgraças.

Sobavigíliaatentadecentenasdeparesdeolhosnegros,ohomemqueumdiasechamaraAeliancaminhouaoladodaquelequeumdiaforaseuamigo.

Umdiamuitodistante.

GLOSSÁRIO

adinkrase runas: Símbolosdopoderda tradiçãodosanõesdepelenegraedepelebranca,respectivamente.RemontamaumperíodoanterioràdeusaUna.

altin,gumus,bakir:MoedasvigentesemUntherak.Apesardesuascores–dourada,prateadaeacobreada,respectivamente–,sãoproduzidasapartirdepequenasporçõesdiluídasdemetaisnobresevulgares.Umapeçaquadradadealtinvalequatropeçastriangularesdegumus.Umtriângulodegumus,porsuavez,valedoistriângulosmenoresdebakir.

Anel de Celas: Pavilhão dentro do Palácio onde ficam as celas que abrigam prisioneiros eescravosescolhidosporProghon.DutosdearfazemosgritosdostorturadoschegarematéoaposentoparticulardoGeneral.

anões: Raça mais longeva de Untherak, os anões podem viver até trezentos anos – o queraramenteacontecedevidoàscondiçõesdetrabalhoaquesãosubmetidos.Sãoosmaisaptosaesculpireprojetarestruturas.

Arautos: Oficiais que leem os informes e relatos da deusa Una. Posicionam-se em váriospontosdoUnificado,dentroe foradoMiolo, e tambémclamama liturgia sagradaparaosservoseossemilivres.

arbopardos:PredadoresferocíssimosquevivemnosGrandesPântanos.Têmportedefelinoeuma carapaça que lembra uma folhagem.Na ponta de sua cauda há uma espécie de plantacarnívora,que,alémdeservircomoarma,permitequesealimentemsemprecisaremabaixaracabeça.

Arena deObsidiana: Localizada atrás do Palácio, é o campo de batalha onde acontece oFestivaldaMorte.OpisodaArenaéescuro,paraqueosanguederramadonaslutasnãosejavisto.

Assentamentos:AgrupamentolabirínticodebarracosemoradiaspróximoaomurodaBordaNorte.Lá,ocomérciodecarvãoedearmasbatizadascorresolto.Mesmocomtodaamisériaesujeira, o clima é tranquilo, pois se vive longe dos olhos vigilantes de soldados, Únicos eAutoridades.

Autoridades: Monitores das atividades dos servos e fiscais do andamento nas linhas deprodução.Podeminterrogarepunirqualquerservo,semilivreousoldadoraso,masnãoosÚnicos,aosquaissãoinferioresnahierarquia.

Balde:PrédiodoMioloemqueseproduzembaldes.Localiza-seemfrenteaoPoleiro.basiliscos-d’água: Serpentes aquáticas venenosas. Sua carne era uma iguaria na antiga

Untherak,atéentraremriscodeextinçãocomapoluiçãodorioAbissal.batismo: cerimôniaquetornaumservivomaispoderosoaosubmergi-lonaMácula,exceto

peloshumanos,quenãopodemserbatizados–asubmersãodeumhumanoéumaexecução.

batizados: todos os que sobrevivem à cerimônia de batismo na Mácula – assim sãoaprimoradosoutransformadosemcriaturasselvagens.ArmasforjadascomMáculanalâminatambémsãochamadasbatizadas.

betouros: Nome popular dos Coleoptaurus, híbridos de besouro e animal de tração. Sãopastoreadosearrebanhadosporsinfos,queosacalmamcommúsica.

Bigorna: Prédio do Miolo em que se forjam armas, escudos e armaduras. De lá saem,ilegalmente, os pedaços do carvão enriquecido usado como entorpecente pelostrabalhadores.

caahwah:Bebidaescuraedearomaforte,éservidaquenteemantémacordadoquematoma.Detradiçãokaorsh,foiabsorvidapelaculturadossinfos.

CamposExteriores:TodaapartedeUntherakqueselocalizaforadoMiolo.Canil: Prédio do Miolo onde os gnolls são aprisionados, alimentados e, quando necessário,

sacrificados.carvão:OcombustíveldasforjasdaBigorna.Misturadocomelementoscomometaiserochas,

viraumapotentedrogaentorpecente,queétraficadaouusadacomomoedadetrocaentreservos. Costuma sair da Bigorna através de esquemas entre Autoridades e servos que vãopassaroDiadeLouvorforadoMiolo.

Centípede:CúpuladesacerdotesconselheirosdadeusaUna,quetêmahabilidadedeentendero comportamento da Mácula. São eles que determinam quais cadáveres vão abastecer otanque e, no batismo, o tempo de submersão. Com isso podem ser gerados maculadosaprimorados,comoSureyya,oucriaturasbestiais,comoasquehabitamaVilaB.Talqualumacentopeia,aCentípedecaminhaemfila,tendoàfrenteoCabeça,seguidodeseusoutrosseisadozemembros,todoscomorostocobertoporummantocinzento.EmborasejamcitadosnosantigosrelatossobreUntherak,poucosesabesobresuaraçaeorigem.

cocatrizes:Misturadegalinhaeréptil,acocatrizéaúltimaopçãodealimento,mesmoparaomaismiserávelservo.ComoquasetudooquevemdosGrandesPântanos,évenenosa.

Cofre:PrédiodoMioloemqueseguardamospagamentosdosservos.Coleoptaurus:verBetouro.Crematório: Prédio do Miolo onde se faz a incineração dos cadáveres que não recebem

autorizaçãoparaseremjogadosnaMácula.dados:JogodeazarmaispopulardeUntherak,emqueoobjetivoéobteromenornúmerode

pontosnosdados.Utilizam-sedadosdeseislados,umataçaouumcopoeumtotem–comoéchamadoodadoqueojogadorlevaparaamesadeapostas,quepodetermaisdeseislados.

Degradação:Todas as terras foradosmurosdeUntherak.Acabou se tornandoonomedodesertoaperderdevista.

DiadeLouvor:Diadefolgadosservos,apósseisdiasdetrabalho.OsservospodempassaressediaforadoMiolo,desdequepassemseishorasdeolhosfechados,orandopeladeusaUna.

estrelas-do-pântano:Floresquenascemnalama,sobcondiçõesadversas.

FestivaldaMorte:Eventoorganizadodetemposemtempos,emnomedadeusaUna,emqueprisioneiros, escravos, batizados e criaturas selvagens retiradas dosGrandes Pântanos e daDegradaçãosãocolocadosunscontraosoutrosnaArenadeObsidiana.Ovencedorganhacomoprêmioasemiliberdade.

gigantes:RaçapraticamenteextintaemUntherak.gnolls:Raçadeanimaiscarnívorosdemédioportedomesticadosparafinsmilitares.Conta-se

quenopassadoerambípedesetinhamodiscernimentodehumanos,anões,kaorshsesinfos.ForamosresponsáveispelaextinçãodoscavalosemUntherak.

GrandesPântanos:RegiãoalagadaeintransponívelaosuldeUntherakedomonteAhtul.humanos: Raçamais numerosa emUntherak, os humanos não possuemdompróprio nem

suportamocontatocomaMácula.Sãochamadospejorativamentederefugosporkaorshseanões,queosconsideraminferioresàsdemaisraças.

kaita: Dança combativa dos sinfos. Ritmada e acrobática, não é vista com bons olhos peloPalácio.

kaorshs:Raçadeestaturaalta,oskaorshstêmocontroledapigmentaçãodoprópriocorpo,chamadoporelesdecanväs.Sãoexcelenteslutadoresepossuemgrandehabilidadeetradiçãocomatecelagem.

leões-das-rochas:PredadorescomunsemFestivaisdaMortedopassado,eramencontradosnosopédomonteAhtul.

linhadeservidão:TatuadagrosseiramentenorostodascriançasobrigadasaservirnoMioloparapagaraDívidaFamiliar.

LiteiradosMortos:Ondesão levados/deixadososcorposdosqueperderamnoFestivaldaMorte,paraseremdispensadosnaMácula.

Mácula:Líquidonegronoqualhumanossãodissolvidosenoqualsãobatizadososkaorshs,osanões e os sinfos.A liturgia diz que aMácula é o sumodo Sol que a deusaUna escureceuduranteacriaçãodeUntherak.

MercadoAberto:Feirapermanente,aoar livre,emqueossemilivrespodemvendercereais,especiarias,bebidas,tecidoseroupasepraticaroescambo.

Miolo:RegiãocentraldeUntherak,ondese localizamoPalácio, a estátuadadeusaUnaeosprédiosfundamentaisparaofuncionamentodoUnificado.

monteAhtul:MontanhadepiconevadoemqueosSeisDeusesenfrentaramosúltimosqueseopunhamaseupoder,conformerelatossobreaorigemdeUntherak.

Padiola:PrédiodoMioloquefuncionacomopostopararecuperaçãodedoenteseferidos.Palácio:EnormeconstruçãodoMioloemquemoramUna,Proghon,aCentípedeeosÚnicos.PâncreasdeGrifo:TavernacomandadaporTomeTaönma,localizadanosopédomorrodos

Assentamentos.PoçodosDesejos:BordelpróximoàBordaLestedosCamposExteriores.Poleiro: Prédio do Miolo que funciona como posto central de triagem das encomendas e

correspondências de Untherak, entregues por falcões treinados. Possui também váriosandaresdecelas,ondedormemosservos.

PrimeiroBosque:Antigamoradadossinfos,arruinadaduranteodesviodorioAbissal.rioAbissal:CórregoquevemdeforadosmurosdeUntherak.Foidesviadoartificialmentepara

cruzar oUnificado e assim irrigar plantações e permitir o transporte de cargas em balsas.Tornou-sepoluídoelamacentocomotempo.

SegundoBosque:Únicaáreaquerestoudorefúgionaturaldossinfos.ApósadestruiçãodoPrimeiroBosque,olugarficousuperlotado.

Semeadura:Ritualdeenterrodossinfos,aospésdeumaárvore.semilivres:OsquevivemforadoMiolo,semasobrigaçõesdaservidãodeseisdiasporsemana.

Aliberdadeéparcial,poisnãosãoeximidosdaobrigaçãodeatenderaqualquerchamadodoPalácio,sejapormotivosmilitaresouparaoutrosserviços.Épermitidoaosservoscomprarasemiliberdade,pelovalordemilaltin.

servos:osquetrabalhamdentrodoMioloemregimedeservidão.OtermotambéméusadoparasereferirafiéistementesaUna.

shurala:CriaturadosGrandesPântanosqueébípede, chifradaedededos longoseque,paraalguns,nãopassadelenda.Dizemqueospelosquerecobremseucorporesultamnumvenenofatalsefervidos.

Silo:PrédiodoMioloondesãoguardadososgrãosecereaiscolhidosnosCampos.sinfos:Raçaassexuadaquesereproduzatravésdeconexõescíclicascomárvores.Sãomenores

queosanões.Naturalmentehabilidososcomamúsica,vivemcercadetrezeanos.Tear:PrédiodoMioloondeéfeitaatecelagemdeuniformesoficiaisdeUntherak.TorreLeste:Postoparaentregadecorrespondência,espéciedeversãomenordoPoleiro.TribunadeHonra:SacadanosfundosdoPalácio,voltadaparaaArenadeObsidiana.Una:Deusa,soberanaeabsoluta,dequemoshabitantesdeUntheraksãodevotos.Nocentrodo

Unificado,umaestátuacolossaldeseisfacesrepresentaosantigosdeuses,queseuniramparadarorigemàdeusa.

Únicos:SoldadosdeinfantariapesadaquecompõemaguardadeelitedoPalácio.Unificado:OslimitesdosdomíniosdadeusaUna,ouseja,Untherak.Untherak:TerraqueadeusaUnaescolheuparadarumanovachanceàsseisraçaspecadoras.

Existehámilanos,quandoseiniciouaEradosFilhosdaDegradação.VilaA:VilarejoondemoramosAutoridades,comconfortoesegurança,emcasascedidaspela

deusaUnaparaasfamílias.UmAutoridadepodevoltardoMioloparaaVilaAtodososdias,aocontráriodosservos,quedormememseulocaldetrabalho,emcelas.

VilaB:Lugarondevivemosbatizadosmaisselvagens,umverdadeirocurral.

AGRADECIMENTOS

Jáformuleiummontedeteoriasinúteis,entreelasadequeasuacapacidadedegostardefantasiaeficçãocientíficadependede,nasuainfância,vocêterconhecidoaMPBantesdeStarWars.Éumateoriaaindacheiadefalhas,enãofalareimaisdelaporaqui.Tambémtenhoateoriadeque,quantomaisrápidoumlivroéconcluído,maiorseráapartedosagradecimentos.Eessa,sim,éumateoriatestadaecomprovada,meusamigos.

Entreo início e a conclusãodeste livropassou-semaisdeumanoemeio,umsem-fimdeversões(principalmentedoprimeirocapítulo)emuitoshangoutsnoiteadentro,amaiorpartedelescommeusamigoseparceirosRodrigoeVictorHugo—oescultor,nãooescritor.Achoque um projeto deste tamanho feito com calma demoraria uns três anos (ou mais), mas aícheguei à conclusão de que dormi tão pouco neste ano emeio que realmente dobreiminhacapacidadedeprodução.(Ediminuímetadedaminhavida?Nãosei.Umdiavamossaber!)

Só sei que meu papel nesse universo gigantesco da Ordem Vermelha começou com umaligaçãodoDanielLameira,eéparaeleoprimeiroagradecimento.Nadadissoteriaacontecidosem sua vontade e perseverança de realizar coisas, o que, no sistema de magia do mercadoeditorial,éumdomarcano.ObrigadopordispordetantotempoparameajudaraconstruiredestruirUntherak,Daniel.Eobrigadopelaamizade!

Agradeçotambém:AoRodrigoBastosDidiereaoVictorHugoSousa,pelaparcerianocomeçodestajornadaque

malpodesercontidanumúnicolivro.Valeuportodososplanejamentostramadosnointeriordaestátua.Pensemnosonhodeumescritor,deterdoisartistastalentososaolado,dandoformae cor aos personagens e deixandomuito fácil preenchê-los com presente, passado e futuro…DescobrirapersonalidadedesselugaraospésdomonteAhtulficoumaisfácilcomvocês,meusamigos.MorteaUna!

AoÉricoBorgoeaoRenanPizii:obrigadopormeacolheremepelocarinhoquetêmcomnossomundoemexpansão.Sentir-seamparadofazbemparatodoescritor,evocêssempremederammuitoânimoefôlegoacadaencontrodaequipe.Queroquesaibamdisso!Apropósito,deixoaquimeuabraçoatodosospresentesàsmesasenormesna(s)sala(s)dereuniões:Otávio,Renato,Roberto,Ivan,Eva,Monyca,Pierreetodomundoqueampliouessaideiacomsugestões,ideiaseempolgação.Valeu,gente!

AtodaagaleradaIntrínseca,porseremumaverdadeiramáquinadefazerhistóriasepormeacolherem de braços abertos: Jorge (que chegou para puxar papo comendo pipoca), Renata(amor de criatura que fez com que eu me sentisse em casa), Rosana (melhor pessoa, tiravadúvidasminhasnos finaisdesemanae tornoua reta finalmuitomais leveparaestecorredorcansado),Talitha(queconheceUntherakmelhordoqueeueorganizouosistemamonetário,

QUE ERAUMABAGUNÇA), Cristhiane, Danielle, Catharina, Beto, Ana, Sheila, Ulisses, Giu,Rafaeletodomundoqueseenvolveucomolivro(ouseja,aeditorainteira).Vocêssãoincríveis,sério.

AosleitoresdoLegadoFolclórico,queestãoesperandooquartolivroesempremeapoiamemminhasdecisões—acompreensãoeaesperadevocêsvãofazertudovalerapena,prometo.EvocêsvãoencontrarumbocadodefolclorenasentrelinhasdoOrdemVermelha!

ATaissaReiseGiPausa,pormeajudaremtantoemquestõesdelicadasdecertaspersonagenseporseremprofissionais incríveisegenerosas.ABrunoMatangrano,CarolChiovattoeEneiasTavares,quemederamsegurançaemmomentosemqueacheique saltariadaBigornaparaonada.AEricNovello,LuanFelipe,TainanRochaeCassiaCarrenho,quenãoimaginamotantoquemeajudaramsimplesmenteconversandocomigodurantecafés/cervejas.

ÀDani,que, incrivelmente,nãoteveocérebroderretidodepoisde ler trocentasversõesdecadacapítulo—nósperdemosascontas.Obrigadoportodooamoreapaciência.Falandoemamorepaciência,obrigadoaNeusaeAndré,porteremasduascoisasquandooassuntoéofilhomaisvelho/irmãodevocês.

E umúltimoagradecimento importantíssimoporque I’m not throwing awaymy shot: Lin-ManuelMiranda,obrigadoporHamiltonepormeinspirarnascenasdebatalha(oquê?AchouqueeuescreviissotudoescutandoRhapsodyeBlindGuardian?).Todahoraqueeupensavaquenãodariatempodeacabarolivro,eulembravaqueHAMILTONWROTETHEOTHERFIFTY-ONE.

Elembrem-se:Everyactionisanactofcreation.

SOBREOAUTOR

FELIPECASTILHOdescansadaescritadelivrosescrevendoroteiros.AutordasérieOLegadoFolclórico, compostapelos livrosOuro, Fogo&Megabytes;Prata, Terra& LuaCheia eFerro,Água & Escuridão, também escreveu Savana de Pedra, finalista do Prêmio Jabuti 2017 nacategoriaHistória emQuadrinhos.MoraemSãoPaulo,ondegostadevisitar lugares chiquesusandochinelos.

LEIATAMBÉM

OolhodomundoSérieARodadoTempoVol.1

RobertJordan

AgrandecaçadaSérieARodadoTempoVol.2

RobertJordan

OdragãorenascidoSérieARodadoTempoVol.3

RobertJordan

AascensãodasombraSérieARodadoTempoVol.4

RobertJordan

AschamasdoparaísoSérieARodadoTempoVol.5

RobertJordan

SiloHughHowey

OoceanonofimdocaminhoNeilGaiman