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Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias TESE DE LICENCIATURA EM SOCIOLOGIA Cadeira de Seminário-Estágio, 4º ano ONDE É QUE EU VOU TOCAR ESTA NOITE ? A construção social da Jam Session Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Lisboa Dezembro de 2006

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U n i v e r s i d a d e L u s ó f o n a d e H u m a n i d a d e s e T e c n o l o g i a s

T E S E D E L I C E N C I A T U R A E M S O C I O L O G I A

C a d e i r a d e S e m i n á r i o - E s t á g i o , 4 º a n o

ONDE É QUE EU VOU TOCAR ESTA NOITE ?

A construção social da Jam Session

Carlos Cardeira e Gustavo Pereira

Lisboa Dezembro de 2006

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

ÍNDICE

INTRODUÇÃO ...........................................................................................................1 Capítulo 1 Para uma Sociologia da Jam Session 1. Improvisação para-sociológica (ou um problema improvisado) ....................................4 2. Jam session: origens do conceito ...................................................................................6 Capítulo 2 A Construção Social da Jam Session 1. A construção social do valor artístico.............................................................................15 2. As hipóteses de trabalho .................................................................................................25 Capítulo 3 Estratégia de Pesquisa 1. Estudar (o) jazz em Portugal ..........................................................................................29 2. População-alvo ...............................................................................................................30 3. Técnicas de recolha e análise de informação..................................................................32 Capítulo 4 Análise e Discussão dos Resultados 1. Os lugares da jam session ...............................................................................................35 2. Clubes diferentes, performances diferentes....................................................................38 3. Práticas e representações da jam session ........................................................................50 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................61 Bibliografia ..............................................................................................................64 Anexos Guiões das entrevistas ..............................................................................................67 Transcrição das entrevistas......................................................................................70 Análise de conteúdo..................................................................................................97

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

INTRODUÇÃO

O tema que ocupa o presente estudo teve origem num conjunto de observações decorrentes

do universo quotidiano de um dos seus autores, indelevelmente ligado ao estudo da música

numa escola de jazz e à participação assídua em eventos relacionados com este género

musical e conhecimentos e redes de sociabilidade assim formados.

O contacto frequente com músicos e estudantes de jazz teve como resultado uma tomada de

consciência, no observador, do carácter plural das representações veiculadas sobre uma

performance característica desta forma de expressão musical: a jam session.

As opiniões expressas a este respeito salientavam, por um lado, a importância da

performance enquanto espaço de aprendizagem, de cooperação artística, de expressão criativa

e de apresentação dos músicos e, por outro lado, a presença de uma forte presença

competitiva na performance, o carácter «avaliativo» da situação face aos músicos envolvidos

ou a um público relativamente próximo do universo musical, assim como deixavam antever,

ainda que de uma forma bastante ambígua, a existência de uma espécie de hierarquia das jam

sessions relativa a uma idealizada forma «pura» do evento – argumento muitas vezes

invocado para justificar uma certa fidelização de alguns músicos e alguns públicos às

performances de determinados clubes, adesão essa a que geralmente não é estranha a

desqualificação de outros espaços, de outros músicos e de «outras músicas».

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No entanto – e como pudemos constatar – mesmo as tomadas de posição mais vincadas se

revelam bastante relativizáveis na prática. “Nunca hei-de ir tocar ao Hot Clube (...) eles

estão lá para se rir de ti”, comentava um aluno de música referindo-se à jam session

organizada regularmente no Hot Clube de Portugal, o mais antigo e consagrado clube de jazz

do país, na qual ele participaria (não sem algum nervosismo) duas semanas depois; ou “o

público é um mostro sem cabeça”, respondia um músico à questão dos diferentes públicos da

performance, não deixando, no entanto, de considerar “lógica” a diferença, em termos do

constrangimento provocado, entre actuar num clube de jazz “regular” ou na “Meca” do jazz

português (o Hot Clube).

Foi todo este conjunto de situações, desde o antagonismo presente nos discursos produzidos a

respeito da prática da jam session, tanto em termos dos seus objectivos como da sua

legitimidade, até aos sentimentos de «temor» ou «reverência» que determinados clubes

suscitam em músicos mais ou menos reconhecidos, que nos levou a pensar este tipo de

performance artística como uma prática social particularmente vulnerável a manipulações

simbólicas por parte de diferentes grupos sociais, dotados de recursos e estratégias diferentes,

que lutam pela dominação no espaço social da música jazz em Portugal.

O resultado é uma investigação que parte da produção teórica produzida no seio daquilo a

que se veio a designar por Sociologia da Arte para interrogar os processos de produção e

reprodução daquilo uma jam session é, ou seja, do valor e da definição que, em determinado

momento no tempo, caracterizam a performance, de acordo com os actores, as instituições e

os contextos que contribuem para a sua realização.

Sob esta perspectiva, as práticas e representações da jam session são analisadas tendo como

pano de fundo o lugar que os agentes sociais envolvidos ocupam no campo jazzístico

nacional e a performance surge, em última análise, como um elemento estratégico, cuja

definição, sempre ambígua e polémica, parece constituir um lugar de confronto entre

diferentes grupos sociais – associados a diferentes concepções do evento – que visam fazer

tanto a defesa, quanto a crítica dos princípios de estruturação que actualmente condicionam o

funcionamento e a criação de reconhecimento do universo do jazz nacional.

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O trabalho que aqui se apresenta, então, encontra-se estruturado em quatro capítulos, de

acordo com as diferentes etapas contempladas no processo investigativo realizado. No

primeiro capítulo procede-se a uma discussão introdutória sobre a jam session e procura-se

delimitar o objecto de estudo em análise de acordo com a perspectiva singular que caracteriza

a sociologia; no segundo define-se a abordagem teórica mais apropriada à conceptualização

do problema colocado, avançando-se um conjunto de hipóteses explicativas pertinentes; no

terceiro procede-se à elaboração da estratégia de investigação mais adequada para a sua

compreensão e, finalmente, no quarto capítulo apresentam-se os dados referentes à análise

efectuada e confrontam-se esses dados com as hipóteses previamente avançadas, para depois,

em jeito conclusivo, se efectuar uma síntese do percurso percorrido, salientando-se as

principais ideias resultantes do trabalho de investigação e apontando os eventuais pontos

fortes e pontos fracos do seu desenvolvimento.

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Capítulo 1

PARA UMA SOCIOLOGIA DA JAM SESSION

1. Improvisação para-sociológica (ou um problema improvisado)

O jazz não surgiu por acaso na cabeça destes investigadores. O jazz já lá estava antes de tudo

isto começar e lá há-de ficar quando tudo isto acabar. Ou talvez não. Mas isso não interessa

para este solo a dois. O que importa é a performance. A jam session e sua transmutação em

objecto de estudo sociológico.

Mas, tal como íamos dizendo, o jazz já lá estava. Passavam já cerca dois anos desde o

momento em que nos tornámos espectadores convictos de jam sessions e concertos de jazz e

o dia em que acordámos fazer uma tese sobre a jam session (estranha coincidência: foi no

trânsito matinal, a caminho da universidade, exactamente no mesmo dia em que tínhamos de

apresentar o projecto da tese).

Ao princípio não sabíamos bem como pegar no assunto, então começámos a ler, a observar e

a fazer perguntas (disse-nos um professor, uma vez, que um sociólogo ou anda aos papéis, ou

anda às pessoas). Só sabíamos aquilo que toda a gente sabe. Que o jazz existe no Hot Clube

de Portugal, uma pequena cave na Praça da Alegria, ao pé dos Restauradores. Era um bom

lugar para começar. Mas cedo fomos descobrindo que existem mais sítios, outros clubes,

talvez menos conhecidos, que não são subterrâneos e têm públicos e vocações diferentes, mas

que assumem o jazz (ou assumem-se de jazz) e organizam jam sessions.

À medida que a nossa curiosidade se alimentava e crescia, fomos percebendo que não é fácil

saber o que é uma jam session, ou, pelo menos, o que é uma verdadeira jam session.

Segundo consta, algumas performances (isto é, as performances de determinados clubes) são

demasiado «académicas», outras não são de jazz ou são forjadas (no duplo sentido do termo)

com músicos contratados, ou são demasiado constrangedoras porque apresentam um cariz

competitivo ou avaliativo muito elevados; por fim, alguns dizem mesmo que a jam session já

não existe.

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Ficámos siderados. Afinal, a confusão era maior do que no princípio. Aquela definição que

buscávamos tão ansiosamente não existia. Existiam várias definições e o jazz parecia-nos um

mundo com vários «clubes», cheio de rivalidades... a questão de fundo persistia: o que é uma

jam session? A resposta era ambígua mas era a única possível: “não sei, mas parece que nem

todas as jam sessions são jam sessions para todos.”

Na generalidade, a prática confirma a falta de consenso discursivo acerca da questão. Nem

todos os músicos participam em qualquer jam session. De um modo geral, podemos dizer que

os músicos que participam regularmente nas jam sessions de um clube particular não

participam nas performances organizadas por outros clubes. Basta frequentar com alguma

assiduidade este tipo de eventos para o constatar. Se tivermos alguma memória fotográfica,

as caras começam a tornar-se reconhecíveis e passamos a associa-las aos espaços. Pode-se ir

ao clube X ou Y em noite de jam session sabendo que, muito provavelmente, vamos lá

encontrar o guitarrista A ou o baterista B.

Mas também nem todos os músicos são iguais. Há uns que tocam melhor do que os outros.

Mas, que diabo, é jazz... só percebe quem sabe! E também é verdade que toda a gente sabe

que não é sensato «sacar» do instrumento num jam session onde toda a gente sabe que o

nível está demasiado alto para o músico aspirante. O bom senso e o respeito por quem está a

tocar assim o exige. Afinal, “parece que nem todas as jam sessions são para todos.”

Toda esta informação deixou-nos ainda mais curiosos e confusos. Porquê que uns tocam num

sítio e outros noutro? Porquê tanta polémica a respeito da verdadeira jam session? Como se

sabe onde e quando se deve ou não deve tocar? E, talvez mais importante, mas o que é que

isto tem a ver com sociologia?

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2. Jam session: origens do conceito∗

Jam session é um termo utilizado no universo da música para designar um tipo específico de

performance musical que envolve simultaneamente improvisação e interacção social

(Bernstein, 1954: 120).

Actualmente – e como uma simples pesquisa na internet revela – o termo parece ter

extravasado o universo musical, tendo passado a designar práticas que valorizam sempre uma

concepção criativa, informal, interaccional e cooperativa na realização dos seus objectivos

específicos – desde a improvisação nas mais variadas áreas artísticas até ao brainstorming

académico ou empresarial.

Porém, como esta pretende ser uma análise centrada na prática da jam session enquanto

performance característica da forma de expressão que geralmente designamos por música

jazz, será sobretudo em função da sua apropriação por esta cultura musical específica que

trataremos a questão da sua definição, deixando de lado as apropriações extra-musicais de

que o termo possa ser objecto.

Por outro lado, constituiria certamente um acto de desonestidade intelectual da nossa parte

deixar de reconhecer que o fenómeno da improvisação colectiva (Bernstein, 1954: 120), que

atrás fizemos corresponder à noção de jam session, não é um fenómeno exclusivo da tradição

musical jazzística, mas tem sido uma prática bastante comum de várias culturas musicais ao

longo dos tempos (Martin, Peter J. em Cooke e Horn, 2002: 139) – algumas das quais estão

de tal modo integradas no conjunto das actividades quotidianas da comunidade em que se

inserem que a palavra música não é sequer contemplada no seu vocabulário (Rowley, 1997:

80-86).

Apesar disso, é de facto no âmbito da música jazz que a improvisação musical assume uma

importância mais marcante. Para estes músicos, a prática da improvisação é considerada não

∗ O reduzido número de estudos de sociologia a que conseguimos aceder sobre o universo musical, em geral, e sobre o jazz, em particular, implicou, na discussão que se segue, a invocação de fontes que se inscrevem nos mais diversos âmbitos do saber. Assim, para além de algumas investigações sociológicas que mais directa ou indirectamente se ocuparam da análise da cultura jazzística e suas práticas características, recorremos também a estudos produzidos nas áreas da filosofia e estética musical, da musicologia, da história, assim como a relatos de informadores privilegiados sobre o assunto, como professores de música e músicos que participam regularmente em jam sessions.

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só como uma forma de expressão artística legítima, mas também – ou sobretudo – como um

elemento central em função do qual se estrutura toda a aprendizagem da música. É isto, no

fundo, que afirma o sociólogo americano Peter J. Martin quando refere, liminarmente, que

um dos maiores contributos dos músicos de jazz para a Música tem sido, além da reabilitação

da prática da improvisação na tradição musical ocidental, a criação de um art world1 singular

no qual a acção improvisativa consiste no principal objectivo de um músico (Martin, Peter J.

em Cooke e Horn, 2002: 134).

A este respeito, na discussão que desenvolve sobre as origens e a especificidade do jazz,

Christian Béthune salienta também a proeminência que a improvisação adquire nesta forma

de expressão. No entanto, para este autor, o aparecimento de performances improvisacionais

como a jam session está mais relacionado com factores de índole cultural característicos da

tradição musical jazzística do que com o simples prazer de improvisar (Béthune, 1998: 101).

Em termos históricos, o jazz constituiu-se no seio de uma cultura agnóstica na qual o

elemento competitivo era marcadamente valorizado e onde cada músico procurava

constantemente superar os seus modelos de referência. Segundo Béthune, seria esta

importância atribuída à dimensão competitiva pelos primeiros músicos de jazz o motivo

originário de práticas performativas singulares, como os chamados cutting contests ou

bucking contests (Béthune, 1998: 101) – performances musicais, mais ou menos

programadas, onde os músicos se confrontavam com o objectivo de demonstrar as suas

capacidades técnicas e criativas, recolhendo daí benefícios económicos, profissionais ou

sociais (Levin, 1998: 97). Seria este tipo de concursos que mais tarde resultariam na “forma

quase institucional da jam session” (Béthune, 1998: 101).

Amarrávamos um trapo ao cabo de uma vassoura e punhamo-lo à janela para anunciarmos um desses

concursos. Reuníamos muita gente – por vezes cem pessoas num pequeno apartamento! Pagavam 25

ou 50 centavos e podiam beber cerveja e comer miúdos de javali, tripas de porco e frango frito. Isso

ajudava-nos a pagar a renda durante os dias da Depressão (James P. Johnson, pianista, citado em

Levin, 1998: 97).

1 No sentido beckeriano do termo, isto é, como o conjunto dos indivíduos cujas actividades são necessárias para a produção dos objectos característicos que determinado mundo, e talvez outros, definem como arte. Para uma compreensão mais profunda do conceito e suas aplicações ver: Becker, Howard (1982) Art Worlds. University of California Press, Berkeley.

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Mas nem todas as jam sessions possuem esta acentuada vertente competitiva ou este carácter

semi-privado, nem apresentam esta clareza e univocidade em termos dos seus objectivos ou

privilegiam do mesmo modo a presença da acção improvisativa na performance.

Paul Berliner – no profundo estudo que desenvolve sobre o processo de aprendizagem dos

músicos de jazz (Berliner, 1994) – refere que a jam session constitui uma das instituições

mais importantes da comunidade jazzística, que possui essencialmente funções lúdicas,

pedagógicas e de sociabilidade (Berliner, 1994: 41-44).

De acordo com este autor, o aparecimento deste tipo de performances musicais inscreve-se

num conjunto mais vasto de práticas, desde o simples encontro de estudo num espaço

privado até ao sitting in2, que constitui a vertente informal do ensino jazzístico, um aspecto

fundamental da formação destes músicos (Berliner, 1994: 42).

O termo jam session começaria justamente por significar um tipo particular de encontro

informal entre músicos, geralmente levado a cabo no espaço doméstico de algum dos

participantes, em estúdios profissionais ou em festas, em que qualquer músico que

aparecesse podia sempre participar (Berliner, 1994: 42).

Posteriormente, a crescente popularidade deste tipo de encontros viria, de um modo

progressivo, a fomentar a sua produção, já em moldes mais formais, por clubes de jazz ou

por organizações especificamente dedicadas ao jazz, como a Bebop Society de Indianapolis

ou a New Music Society at the World Stage em Detroit. Nesta altura, aliás, como Berliner

prontamente refere, começa a tornar-se bastante comum em determinados clubes de jazz a

presença de uma pequeno combo3 contratado (geralmente um instrumento de sopro

acompanhado por uma secção rítmica constituída por bateria, contrabaixo e piano) aos quais

se juntavam posteriormente, em jam session, os músicos que o quisessem fazer (Berliner,

1994: 42).

2 Berliner utiliza este termo para designar uma situação frequente em concertos de jazz em que se encontram músicos entre o público. Em tal contexto, diz-nos o autor, não é de todo incomum que o grupo contratado convide um desses músicos para tocar também em alguns temas (Berliner, 1994: 42). 3 Combo, do inglês combination, é a designação corrente dada a conjuntos de jazz de pequenas dimensões (3 ou 4 elementos), por oposição às mais numerosas big bands.

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Seria a partir deste momento, em que as jam sessions começam a ser organizadas para

audiências e se começa a formar um circuito alargado de locais dedicados à organização

deste tipo de eventos, que a performance – na medida em que consiste num encontro

relativamente informal aberto à participação de qualquer músico presente no momento da

sua ocorrência – começa a ser um importante espaço para a apresentação dos novos músicos

à comunidade jazzística (Berliner, 1994: 43).

Ora, mas apesar da reivindicação de um forte sentido cooperativo e sociável da prática

musical, configurado na ideia de um espaço performativo onde qualquer um se pode

expressar livremente, o que parece ser certo é que, na prática, e de um modo bastante

informal, a verdade é que nem todos os músicos podem de facto participar em qualquer jam

session.

Há performances que, estando virtualmente abertas a todos, permanecem fechadas aos

músicos menos reconhecidos. É neste sentido que Paul Berliner refere que os músicos

distinguem as jam sessions em termos das capacidades dos seus participantes, abstendo-se de

participar em performances que, do seu ponto de vista, apresentam um nível muito alto para

as suas capacidades momentâneas (Berliner, 1994: 42).

In Chicago, musicians knew that the session “at a certain club down the corner was for the very heavy

cats and would not dare to participate until they knew that they were ready”, Rufus Reid recalls. As a

matter of respect, “you didn’t even think about playing unless you knew that you could cut the

mustard. You didn’t even take your horn out of your case unless you knew the repertoire.” At the same

time, naive learners did periodically perform with artists who were a league apart from them. David

Baker used to go to sessions including Dexter Gordon and Wardell Gray “when they came to

Indianapolis.” He hads with amusement, “I didn’t have the sense not to play with them” (Berliner,

1994: 43).

Já em relação aos aspectos competitivos da performance, Paul Berliner refere que, de facto,

muitas jam sessions se transformavam em cutting sessions quando dois ou mais músicos

decidiam fazer um «despique» musical, prática bastante comum sobretudo entre

instrumentistas do mesmo «naipe»: saxofonistas versus saxofonistas, trompetistas versus

trompetistas, etc. (Berliner, 1994: 44).

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A este respeito, Lawrence Nelson, na tese que desenvolve em The Social Construction of the

Jam Session4, chama a atenção para a pertinência analítica da distinção, em termos ideal-

típicos, entre as chamadas cutting sessions e as jam sessions. Para o autor, apesar de ambos

os tipos de performances apresentarem muitas características em comum, a jam session pode

ser definida essencialmente pela actividade cooperativa dos seus participantes, enquanto que

a cutting session se distingue, em primeiro lugar, por ser um espaço de competição entre os

músicos (Nelson, 1995).

A análise de Nelson descreve ainda três mecanismos que o autor considera importantes na

manutenção da estrutura de uma jam session: a liderança, que se relaciona com as diferenças

de estatuto existentes entre os participantes de uma determinada performance; o

comportamento-sanção5, que remete para as acções, desenvolvidas pelos participantes de

uma jam session, que visam expressar a sua desaprovação pela quebra de alguma das regras

informais da performance por parte de um ou mais dos músicos presentes; e, por fim, a

resposta do público, que constitui uma peça fundamental para a valorização dos músicos e

que, como tal, contribui em conjunto com os outros participantes para a produção da

realidade social do evento (Nelson, 1995).

Finalmente, alguns autores demonstram ainda algumas reticências em aceitar sem reserva a

questão da centralidade da presença da improvisação nas práticas musicais jazzísticas,

considerando mais fidedigno dessa realidade salientar a existência de um continuum de

práticas improvisacionais situadas entre a simples interpretação «inspirada» de um tema

escrito e a eliminação por completo das estruturas musicais que habitualmente estão

subjacentes às práticas de improvisação mais generalizadas.

De facto, de um modo geral, o que se faz numa jam session é improvisar sobre blues6 ou

standards7. Este tipo de estruturas musicais, juntamente com alguns temas de músicos de

jazz consagrados (temas de autor) ou extraídos do espólio da Música Popular Brasileira

(MPB), constitui o repertório comum da tradição musical jazzística que Christian Béthune 4 Trabalho não publicado a que tivemos acesso por cortesia do próprio autor, com quem estabelecemos contacto via correio electrónico durante o desenvolvimento da presente investigação. 5 Sanctioning behaviour no original. 6 Temas estruturados geralmente em três frases de quatro compassos cada, perfazendo na sua totalidade doze compassos (Rowley, 1997: 72). 7 Canções populares da Broadway, geralmente de 32 compassos, adaptadas para um uso jazzístico (Rowley, 1997: 72).

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identifica como um dos motivos originários do jazz (Béthune, 1998). São os temas clássicos

do jazz. Composições cuja importância é socialmente reconhecida pela comunidade de

músicos de jazz e, ao mesmo tempo, a base da formação dos aprendizes deste género

musical. Conhecer um destes temas significa conhecer uma melodia, a sua estrutura

harmónica de base, o tempo a que costuma ser tocada e os arranjos característicos que

geralmente lhe são aplicados.

É através da invocação deste repertório comum e do apelo à capacidade de improvisação dos

músicos que se realizam grande parte das jam sessions: escolhe-se um tema que todos, ou

quase todos, os intervenientes conheçam, e os músicos improvisam sequencialmente (e por

vezes simultaneamente) sobre a sua estrutura harmónica. Em muitos concertos todas as

composições seguem o mesmo esquema: um tema introdutório, seguido de vários espaços

abertos, contíguos e sequentes, para cada músico improvisar, e o regresso ao tema inicial

para finalizar (Hargreaves, 2000: 7).

Mas o recurso a um repertório comum de temas sobre os quais se improvisa não esgota o

universo das possibilidades estéticas do fenómeno. Podemos dizer que há jam sessions onde

a possibilidade de tudo ser criado de novo é contemplada. Nestas situações, onde não existe

nenhuma estrutura harmónica predefinida, o elemento de espontaneidade e a componente

improvisativa estão mais presentes e o nível de incerteza da situação aumenta bastante8. É a

este tipo de performances que se refere David Hargreaves, na análise que efectua sobre

Criatividade Musical e Improvisação em Jazz (Hargreaves, 2000), quando, a título

ilustrativo, caracteriza o free jazz como um género musical que “apresenta um elevado grau

de improvisação e desestruturação” (Hargreaves, 2000: 8).

No outro extremo, o já referenciado Peter J. Martin argumenta que apesar de ser através da

relevância concedida à prática da improvisação que o jazz mais se distancia dos

procedimentos característicos da tradição musical ocidental, existem de facto performances

de jazz onde a acção improvisativa se encontra reduzida a um mínimo, como nos casos onde

essa acção apenas se processa ao nível do adornamento da melodia principal de um tema

(Martin, 2001: 133).

8 Torna-se mais difícil antecipar e controlar o resultado estético da performance, assim como a resposta do público.

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A jam session surge assim, no termo deste percurso, como um conceito amplo, que engloba

uma multiplicidade de práticas musicais com características muito diversas, quer em termos

musicológicos – do estilo, técnica e privilégio da improvisação nas performances – quer em

termos sociais – do carácter público ou privado da situação e da maior ou menor formalidade

das interacções, ou dos estatutos sociais dos agentes envolvidos e dos objectivos subjacentes

à experiência musical.

E mesmo determinados indicadores que, devido ao seu carácter mais pragmático,

poderíamos considerar mas fiáveis para caracterizar um evento do género – como a presença

ou ausência de arranjos escritos na performance – se revelam bastante relativos face à real

complexidade do fenómeno9. Além disso, e como o demonstraram as conversas informais

com músicos que no fundo estiveram na origem deste projecto de investigação, todos estes

factores de caracterização se tornam ainda mais ambíguos quando confrontados com a

interpretação subjectiva dos seus protagonistas.

Ora, voltando então à questão daquilo que é ou não é uma jam session, e da relatividade das

definições e reivindicações veiculadas a esse respeito, teremos talvez que moderar as nossas

expectativas e aceitar, tal como refere o sociólogo francês Pierre Bourdieu, que uma das

questões mais fundamentais que devemos ter em linha de conta quando nos debruçamos

sobre o(s) universo(s) artístico(s) é que se há uma verdade nestes campos da vida social – tal

como noutros, aliás – é que a própria verdade é um objecto de lutas entre os diversos agentes

que intervêm nesse espaço de acção e que, por meio de estratégias, recursos e interesses

diversos, competem entre eles para ocupar uma determinada posição na relação de forças que

caracteriza um dado momento desse espaço – para agora ser mais fiel à terminologia do

autor – da prática social (Bourdieu, 2001: 293).

O que importa aqui salientar, portanto, é que a verdade, então, nestes termos, é que aquilo

que a arte e as práticas artísticas são e o valor que detêm em determinado momento no

9 Bastien e Hostager (citados em Nelson, 1995) consideram a ausência de arranjos escritos uma das especificidades de eventos como a jam session. Lawrence Nelson, no entanto – tal como nós próprios, aliás – regista a utilização, cada vez mais legitimada e frequente entre os músicos, dos chamados Real Books nas jam sessions. Livros de pautas que contêm os temas clássicos do jazz. O autor avança ainda com uma hipótese, quanto a nós bastante perspicaz, que relaciona o grau de competitividade da performance com o uso de pautas. De acordo com Nelson, as jam sessions seriam mais permissivas em relação à sua utilização, enquanto que nas cutting sessions a sua interdição seria o mais comum (Nelson, 1995).

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espaço e no tempo, não podem nunca ser compreendidos fora dos contextos sociais onde a

sua produção e consumo ocorrem e que em todo o caso contribuem para a produção da sua

definição social.

Howard S. Becker, por exemplo, na sua obra já clássica da sociologia da arte – Art Worlds

(Becker, 1982) – considera que a definição daquilo que constitui ou não arte é relativamente

arbitrária e mais dependente da formação de consensos sociais a respeito dessa condição, do

que algo inerente às qualidades estéticas dos objectos propriamente ditos (Becker, 1982 em

Zolberg, 1990: 80).

De acordo este autor, a arte é uma construção social cuja natureza pode ser melhor

compreendida se a sua produção – não só na sua materialidade mas, sobretudo, naquilo que

nela há de simbólico – for entendida enquanto um processo que envolve a participação de

uma variedade de actores, alguns dos quais detentores do poder social necessário para

conceder esse tipo de valor aos objectos (Becker, 1982 em Zolberg, 1990: 80).

Howard Becker, então, para além de aceitar sem reservas a questão da relatividade das

definições artísticas, considera também a existência de vários universos artísticos diferentes,

cujos actores se encontram envolvidos no processo de produção de arte, procedendo à sua

definição à medida que consideram a inclusão ou exclusão de objectos nessa categoria

(Becker, 1982 em Zolberg, 1990: 80).

Neste sentido, aquilo que constitui ou não uma obra de arte ou uma categoria ou evento

artístico é uma questão de natureza sobretudo sociológica (Tota, 2000: 36) que nunca estará

definitivamente resolvida, mas que deve ser analisada pontualmente, caso a caso,

substituindo-se “a questão ontológica pela questão histórica da génese do universo em cujo

seio se produz e se reproduz incessantemente, numa verdadeira criação contínua, o valor da

obra de arte, quer dizer, o campo artístico” – isto é, o lugar social onde se produzem os

agentes, os técnicos, as categorias e os conceitos característicos desse universo e que, no

fundo, “são produto de um longo e lento trabalho histórico” (Bourdieu, 2001: 288).

Neste trabalho, a análise da acção dos produtores – das suas práticas e representações

(daquilo que fazem e daquilo que pensam e dizem sobre aquilo que fazem) – adquire uma

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importância fundamental, já que ela é um dado essencial na produção e reprodução, em todos

os momentos, do valor da arte e do artista (Bourdieu, 2001: 280-299).

Com efeito, para além da importância das actividades de recepção das obras na constituição

dos artefactos mentais que constituem aquilo que Alexandre Melo identifica como a

dimensão simbólica, socialmente construída, da existência das obras de arte (Melo, 1994),

são também os produtores e os contextos organizativo-instituicionais onde as obras são

produzidas que fornecem, criando e recriando a obra de arte nesse processo, as instruções

para o uso da obra que devem ser seguidas na sua apreciação (Tota, 2000: 44).

Ora, é nesta perspectiva que nos colocamos para reflectir sobre a performance musical que

temos vindo a descrever, partindo da análise das práticas e representações dos agentes

envolvidos – músicos, mas também agentes institucionais ligados à produção deste tipo de

eventos – para perceber o que é uma jam session em Portugal? Como se produz e reproduz,

no panorama jazzístico nacional, a sua definição social? Qual o papel dos músicos na

construção dessa definição ou definições e como é que estas influenciam – se é que

influenciam – os seus percursos profissionais? Quais os grupos sociais e instituições

envolvidos? Quais as práticas mais comuns da performance e como é que estas são avaliadas

pelos agentes que participam? Finalmente, porque é que uns músicos tocam numa jam

session e outros noutra?

Estas são, portanto, algumas das questões a que tentaremos dar resposta no curso desta

investigação, esperando que ela consiga trazer alguma luz a respeito dos processos de

formação daquilo que é – enquanto prática socialmente construída e reconstruída – uma jam

session, projecto que desenvolveremos aqui, sobretudo, com base nas teorizações produzidas

a este respeito pelos já referenciados sociólogos Pierre Bourdieu e Howard Becker, dois

autores que muito marcaram a investigação sociológica sobre o universo artístico e suas

práticas.

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Capítulo 2

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA JAM SESSION

1. A construção social do valor artístico

Tal como vimos no capítulo precedente, é no seio da problemática da construção do valor e

das definições artísticas que aqui colocamos a questão do fenómeno da jam session, tomando

como objecto de análise desta investigação os processos através dos quais o conteúdo

daquela performance é socialmente produzido e reproduzido no contexto dos grupos sociais e

das instituições que em Portugal estão envolvidos na sua dinamização.

Importa agora, portanto, definido assim o objecto de estudo em análise, trabalhar no sentido

do aprofundamento de alguns conceitos, dimensões e hipóteses que orientem a reflexão que

aqui se pretende desenvolver.

De facto, apesar de relativamente recente, a discussão sobre a relatividade das convenções

artísticas e o carácter socialmente construído da arte tem estado no foco de análise de alguns

dos mais destacados pensadores actuais da sociologia.

Neste âmbito, parece-nos particularmente fecunda para a nossa discussão a análise que Pierre

Bourdieu desenvolveu sobre a temática da arte, nomeadamente a partir dos conceitos de

campo, habitus e capital simbólico, assim como a reflexão que Howard Becker sistematizou

sobre o mesmo tema na obra Art Worlds (Becker, 1982), pelo que será fundamentalmente a

partir destes dois autores que desenvolveremos a discussão que se segue.

Ora, para Pierre Bourdieu, não se deve estranhar o facto de as categorias utilizadas para

classificar as obras de arte se caracterizarem sempre por uma grande indeterminação,

flexibilidade e incerteza relativamente aos seus conteúdos, já que a sua utilização e o seu

sentido são dependentes dos pontos de vista individuais, social e historicamente situados, dos

agentes que as mobilizam (Bourdieu, 2001: 291).

Quando os agentes envolvidos num qualquer campo da vida social falam sobre uma obra,

artista ou género ou estilo artísticos, enaltecendo a sua virtude ou condenando a sua

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mediocridade, eles estão no fundo e colocar a questão do estabelecimento dos limites do

mundo da arte e daquilo que deve ser incluído ou excluído desse território, ou seja, daquilo

que, em determinado momento no tempo e no espaço, deve ou não ser considerado arte

(Bourdieu, 2001: 281-298).

Como refere a socióloga Anna Lisa Tota a respeito da Arte como Tecnologia da Memória,

“comemorar implica desde logo competir por uma certa definição social de um

acontecimento”, processo que é complexo e que envolve “fortes tensões conflituais” cujo

confronto e recomposição resultará num conjunto de “definições do acontecimento em

questão mais ou menos ambivalentes” (Tota, 2000: 112).

Do mesmo modo, Vera Zolberg considera que o universo artístico se caracteriza por ser um

universo bastante competitivo onde artistas e seus apoiantes lutam pelo reconhecimento e

debatem interminavelmente sobre a qualidade estética dos seus trabalhos ou sobre o tipo de

obras que devem ser incluídas na categoria de arte (Zolberg, 1990: 21).

Aquilo que está em jogo, portanto, e em última análise, é sempre a definição dos limites da

arte e de quem tem o poder necessário para impor essa definição, questões que não são de

todo pacíficas e que colocam em confronto o conjunto dos agentes sociais, individuais e

institucionais, que, com interesses e recursos diversos, estão envolvidos no âmbito na

produção desse bem socialmente produzido que é a arte.

Ora, esta questão é fundamental, já que é pelo trabalho de distinção entre aquilo que é ou não

é arte ou quem é ou não é artista que o universo artístico efectua distinções entre obras e

produtores, interferindo, deste modo, na distribuição dos recursos necessários à reprodução

do trabalho dos artistas (Becker, 1982: 131).

Voltaremos a esta questão mais tarde, por agora o que interessa aqui salientar é que o fazer

arte, o dizer-se artista, minimizando ou desvalorizando o trabalho dos outros nesse processo,

é, portanto, uma das maneiras mais recorrentes que os agentes envolvidos na produção de

bens com pretensão artística mobilizam para tentar impor e tornar propriamente universal a

sua maneira particular de ver e fazer a arte – a maneira pela qual supostamente todos os olhos

deveriam ver a arte.

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É por isso que Pierre Bourdieu coloca a questão da construção das definições e do valor

artístico enquanto dado relacional, que não pode ser correctamente compreendido sem se

atentar no conjunto das relações que se estabelecem entre todos os agentes que em

determinado momento no tempo competem para a produção – e, neste sentido, também para

a definição – daquilo que a arte deve ser (Bourdieu, 2001: 27-28).

Mesmo quando os agentes em presença não se referem uns aos outros, o que é certo é que o

seu interesse em singrar no mundo da arte e a pretensão à universalidade das suas disposições

artísticas particulares não podem deixar de se situar, nem que seja de uma forma indirecta –

por oposição, negação ou exclusão – relativamente aos interesses de todos os outros agentes

envolvidos na produção artística (Bourdieu, 1997: 43).

Esta é, de facto, uma das questões que Bourdieu invoca quando enfatiza a necessidade de se

perspectivar o mundo da arte como um campo social, ou seja, como um conjunto de relações

que se estabelece entre todos os agentes sociais, individuais e institucionais, cuja acção

contribui, ainda que em graus diferentes, para a produção daquilo que numa sociedade

ocidental contemporânea vem a ser definido como arte (Bourdieu, 1997: 42).

Então, se é certo que é de relações entre agentes e de interesses e visões sobre a arte e sobre o

artista de que falamos quando falamos dos processos de construção social das definições

artísticas, também não é menos verdade que, apesar da aspiração à universalidade a que atrás

nos referimos ser um aspecto comum ao campo artístico, tal como o definimos, nem todos os

agentes presentes no campo se encontram nas mesmas condições de fazer valer o seu ponto

de vista nesse mundo.

Ora, isto acontece, desde logo, porque são diferentes as possibilidades que à partida os

agentes sociais têm tanto de entrar nesse universo particular que é o universo artístico – o

mundo onde se produzem os bens artísticos – como de nele se estabelecerem de uma forma

mais ou menos sólida e/ou profissional.

O surgimento de uma vocação artística, entendida aqui como o sentimento ou o impulso com

que muitos artistas justificam o seu cometimento à actividade artística, é profundamente

condicionado pelas origens sociais de quem a sente, o que implica não só que a dedicação à

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arte, ao fazer arte, constitui uma variável socialmente condicionada, mas também que o

modo como aqueles que realmente a querem fazer se encontram inseridos no respectivo

universo de produção depende muito dos contextos sócio-culturais e artísticos presentes no

seu desenvolvimento em meio familiar (Pais, 1995: 103-149).

Como revelam vários estudos internacionais levados a cabo sobre as práticas artísticas nos

países ocidentais, grande parte dos indivíduos que se dedicam à arte são oriundos de famílias

com um estatuto sócio-cultural elevado, assim como, numa percentagem bastante alargada,

de famílias em que já era desenvolvida alguma tradição de prática artística (Pais, 1995: 108).

Em particular – e centramo-nos aqui especificamente na análise coordenada por José

Machado Pais no Inquérito aos artistas jovens portugueses (Pais, 1995) – é precisamente em

famílias onde já existia uma vocação de âmbito profissional para as artes que existe uma

influência no sentido de uma maior facilidade de estruturação da carreira artística por parte

dos filhos, nomeadamente no sentido também da sua profissionalização (Pais, 1995: 112).

Por outro lado, não podemos também, ainda na perspectiva daquele Inquérito, deixar de lado

a importância que as redes de sociabilidade igualmente detêm, tanto por via das amizades ou

de professores ou tutores específicos, no processo de envolvimento e desenvolvimento dos

indivíduos na actividade artística, já que estas constituem muitas vezes – tanto para aqueles

que tiveram um contexto familiar favorável como para aqueles que não o tiveram (ainda que

de formas ligeiramente diferentes) – um ponto de contacto imprescindível entre o indivíduo e

as práticas artísticas, funcionando tanto ao nível da revelação ou certificação da sua vocação,

como do incentivo e da estimulação do seu desenvolvimento (Pais, 1995: 118).

Neste âmbito, acção motivadora de um professor, em específico, “tende a assumir uma

legitimidade e uma responsabilidade de peso na estruturação de uma carreira artística”, já

que aqueles que mais a invocam como razão e justificação da sua entrada no mundo das artes

são também aqueles que em maior proporção exercem a sua actividade artística de uma

forma profissional, enquanto que os restantes – os que a exercem de uma forma

maioritariamente amadorística ou ainda académica – são também os que entraram na arte

sobretudo por via do seu círculo de amigos (Pais, 1995: 119-120).

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Ora, estando então nós conscientes da importância das várias dimensões que compõem uma

vocação artística para a análise da capacidade de acção dos agentes envolvidos num

determinado universo de produção artística, importa também salientar que o carácter

estruturado das diferentes hipóteses, como vimos, de partida, que caracteriza o lugar dos

agentes sociais nesse espaço não se dá a conhecer ao observador de uma forma imediata,

directa, mas apenas de uma forma metamorfoseada – transfigurada – de acordo com as regras

de funcionamento especificas do campo de produção de que falamos (Bourdieu, 1997: 42).

Com efeito, outra das principais vantagens, em termos analíticos, de visualizarmos o universo

artístico em termos de campo, consiste exactamente no reconhecimento da sua relativa

autonomia relativamente a outros universos da vida social e, em particular, no

reconhecimento que o seu princípio estruturante, a espécie de capital particular que nele é

valorizada e permite distinguir entre os agentes sociais nele envolvidos, é qualitativamente

diferente de outros tipos de capital que organizam outros campos da vida social.

Como refere Bourdieu, os campos são lugares estruturados, onde os agentes sociais se

distribuem de uma forma hierarquizada de acordo com o posicionamento em que se situam

face ao princípio ou propriedade que são importantes e valorizados nesses espaços – o seu

capital simbólico (Bourdieu, 1997: 32). Da mesma forma, o campo artístico constitui-se em

torno da acumulação de uma determinada propriedade simbólica que constitui o princípio

segundo o qual os agentes em disputa no campo se situam relacionalmente, de acordo com a

posição que cada um ocupa, em determinado momento no tempo, na distribuição da estrutura

desse capital.

Ora, conforme salienta Howard Becker, no universo artístico é a reputação um dos elementos

centrais que permite o estabelecimento de distinções entre diferentes obras, artistas, escolas,

géneros e meios de produção (Becker, 1982: 352).

Para o autor americano, qualquer que seja o art world considerado, ele atribui sempre um

valor especial a determinadas obras e determinados artistas, distinguindo-os do conjunto de

trabalhos produzidos pela generalidade dos indivíduos que o constituem, e é através dessa

valorização especial que se organizam as suas actividades específicas e se regula a atribuição

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das recompensas materiais e simbólicas consideradas valiosas nesse mundo (Becker, 1982:

352).

Qualquer actividade artística implica sempre a utilização de um conjunto de recursos sem os

quais essa actividade não pode ocorrer como ocorre. Consoante o tipo de obra/evento

projectado é sempre necessário reunir os materiais, as tecnologias e os canais de distribuição

e consumo que a sua realização exige. A reputação constitui um dos elementos centrais que,

ao tornar acessíveis ao artista esses meios de produção fundamentais, contribui para a

manutenção da sua actividade em moldes não concretizáveis na sua falta (Becker, 1980).

Neste sentido, na perspectiva de Howard Becker, a operação de reconhecimento do talento do

artista, que forja a reputação, consiste numa das operações mais cruciais de qualquer art

world, na medida em que pode representar a possibilidade de acesso a um conjunto de

benefícios – económicos, sociais, profissionais, etc. – que de outro modo não estariam

acessíveis (Becker, 1982: 357).

Ora, relativamente a esta questão, é importante salientar, tal como refere Raymonde Moulin,

que actualmente o processo de reconhecimento dos artistas se opera sobretudo pela prática

(Moulin, Raymonde em Pais, 1995: 120), num processo que sobrepôs à ordem do título uma

ordem subjectiva de certificação, que exige o reconhecimento social do talento por parte de

uma comunidade de agentes especializados para o efeito (Pais, 1995: 120).

Hoje em dia, e pelo menos desde a decadência do papel consagrativo da Academia no seio

das artes que se verificou desde fins do século XIX, o reconhecimento profissional dos

artistas não depende da sua certificação pela posse de um diploma ou título académico ou

escolar, mas está relacionado sobretudo com um conjunto de indicadores empíricos,

considerados muito mais importantes que a certificação escolar, e que são elucidativos acerca

da condição de determinado artista: a participação em exposições, a obtenção de apoios

institucionais e pessoais e a venda e mostra ao público dos trabalhos produzidos (Pais, 1995:

120-121).

É, portanto, através deste conjunto de indicadores que devemos olhar para aquilo medir

aquilo que seria o valor, ou nível de reconhecimento e profissionalização, de um determinado

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artista, já que como refere Howard Becker, é através do acesso aos canais de distribuição

mais reputados de um art world que os agentes desse mundo operam distinções entre os seus

participantes (Becker, 1982).

Ora, mas a frequência escolar ou, mais propriamente, a formação artística, tal como refere

Machado Pais, ainda que não seja exigida de facto como um critério de profissionalidade ou

mesmo como um requisito indispensável à prática artística, acaba todavia por se revelar

fundamental, em termos objectivos, ao desempenho desse tipo de práticas, constituindo-se

como um factor de diferenciação importante entre o profissional e o amador de artes (Pais,

1995: 131).

Como diz o autor, “o facto de se deter uma formação artística específica exerce,

efectivamente, um efeito bastante positivo quando se deseja desenvolver uma carreira

artística a nível profissional, sendo uma condição quase necessária” (Pais, 1995: 131).

Será, portanto, a partir do posicionamento dos agentes nestas duas dimensões – o seu nível

de formação artística e os indicadores referentes à sua actividade junto dos mecanismos de

consagração do universo artístico a que pertencem – que poderemos dar conta, no fundo,

da quantidade de capital simbólico acumulado que está em jogo quando falamos das

posições distintas que esses agentes ocupam no campo de produção da arte, e, ao mesmo

tempo, das diferentes possibilidades que grupos de agentes situados diferenciadamente no

espaço social têm de interferir na concepção de arte que em dado momento é dominante

nesse espaço.

Por outro lado, esta situação permite-nos também dar conta da relação de homologia

existente entre o espaço das posições dos agentes sociais e o espaço das suas tomadas de

posição, ou seja, que as estratégias que diferentes agentes ou grupos de agentes tomam no

sentido da conservação ou da transformação de uma determinada concepção de arte está

indelevelmente ligada ao nível acumulado de capital simbólico – reconhecimento – que esses

agentes individuais ou colectivos possuem naquele estado do campo (Bourdieu, 1997: 42).

Por outras palavras: aquilo que os agentes sociais envolvidos na produção artística fazem, a

concepção de arte que defendem e as estratégias que mobilizam para impor essa concepção

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no mundo da arte dependem – sempre – do grau de capital acumulado que estes possuem em

determinado momento no tempo.

O campo artístico é assim um campo de forças invisíveis, onde os agentes se encontram em

permanente relação uns com os outros, e é simultaneamente um campo de lutas, onde

dominantes e dominados lutam pela imposição da sua visão ou concepção de arte, de acordo

com os recursos simbólicos que possuem (Bourdieu, 1997: 32).

Neste sentido, as lutas artísticas, lutas entre concepções e definições daquilo que a arte é ou

deve ser, são no fundo lutas entre agentes sociais situados diferentemente no campo da arte e

lutas pela conservação, aquisição e aumento do capital artístico que é colectivamente

reconhecido e valorizado nesse espaço social.

Voltando então à questão das possibilidades de interferência por parte dos agentes no estado

do campo, é forçoso reconhecer-se que os agentes menos cotados ao nível da posse de capital

simbólico são também aqueles que menos hipóteses têm de ver as suas pretensões vingadas

ao nível da alteração das relações de força que caracterizam um dado momento do campo.

Já tínhamos visto que Howard Becker relaciona o nível de reputação de um artista com o

acesso a um conjunto de bens que seriam indispensáveis para a reprodução do trabalho

artístico. Segundo este autor, o próprio acesso aos canais de distribuição específicos de um

art world, situação que, como vimos, é fundamental para a geração de mais-valias

reputacionais ao nível dos artistas – é o sistema distributivo que, ao permitir a apreciação do

trabalho do seu trabalho, contribui para o incremento da sua reputação e relevância histórica

– constitui um processo que depende, em larga medida, da reputação já reconhecida com que

esses indivíduos podem contar em determinado momento no tempo, já que o próprio sistema

de distribuição é um sistema hierarquizado em termos de reputação (Becker, 1982: 95-97).

Ora, como Pierre Bourdieu refere, isto acontece, por um lado, porque desapossados do capital

simbólico necessário para o fazer, estes agentes não têm nem a legitimidade nem o grau de

reconhecimento necessários para interferir de forma significativa nas leis e regras que

regulam o funcionamento do campo e, por outro lado, porque a sua crença abnegada no valor

das coisas que estão em jogo naquele espaço social os leva a aceitar a sua ordem,

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propriamente social e imposta, como algo de natural, intransponível e, por vezes, mesmo

como algo de aceitável em função do lugar que ocupam na ordem social assim definida

(Bourdieu, 1997: 44-45).

A reputação, então, o ser-se um grande artista, ou melhor, o ser-se reconhecido como um

grande artista – qualidade valorizada e apreciada por todos e que legítima a visão do mundo

de quem reconhecidamente a detêm – constitui o elemento decisivo que, em última análise,

delimita aquilo que cada um pode fazer dentro de um universo artístico particular.

A questão do reconhecimento é, em todo o caso, um elemento fundamental neste processo. O

carácter e a força propriamente simbólicos com que se reveste o capital eficaz em

determinado campo da vida social dependem sempre do reconhecimento dessa eficácia por

parte de todos os agentes que estão envolvidos nesse espaço social específico.

O capital simbólico é uma qualquer propriedade, força física, riqueza, valor guerreiro, que, percebida

por agentes sociais dotados das categorias de percepção e de apreciação permitindo percebê-la,

conhecê-la e reconhecê-la, se torna simbolicamente eficaz, como uma verdadeira força mágica: uma

propriedade que, por responder a «expectativas colectivas», socialmente constituídas, a crenças, exerce

uma espécie de acção à distância, sem contacto físico (Bourdieu, 1997: 130).

Esta questão é fundamental, já que permite perceber como é que a adesão a uma determinada

ordem social ocorre por iniciativa própria dos agentes sociais, sem que seja necessário o

recurso à violência ou a qualquer tipo de meios repressivos para que tal aconteça.

A relação entre as tomadas de posição de um agente ou grupo de agentes no espaço social e

a posição que estes ocupam nesse espaço não se faz sem a intermediação de um habitus

específico, um sistema de disposições, criado sobre condições de socialização específicas do

campo, e que gera a crença na legitimidade e na justeza das suas injunções, dando a cada um,

consoante a posição que ocupa no espaço social, o sentido do seu espaço – daquilo que pode

ou não pode fazer. O habitus é a interiorização da realidade objectiva no agente e gera

práticas objectivamente ajustadas a essa realidade (Bourdieu, 1997: 9).

Ora, no âmbito da análise dos processos de construção das definições artísticas, somos então

forçados a reflectir sobre as práticas de socialização no mundo da arte e de como estas se

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relacionam com a maior ou menor capacidade que os agentes sociais têm de interferir na

definição daquilo que em determinado momento no tempo uma sociedade considera arte.

Para Bourdieu, esta situação é complexa: sendo o produto da interiorização da realidade

objectiva e, neste sentido, das diferenças que separam os agentes sociais em determinado

campo da vida social, o habitus reproduz essas diferenças nos princípios de visão e de

apreciação por que é constituído e tende a gerar práticas e representações ajustadas a essa

realidade. O resultado são práticas distintas por parte de agentes ou grupos de agentes sociais

situados em diferentes regiões do espaço social – a que correspondem diferentes classes

(teóricas) de habitus – mas também a percepção, por parte dos agentes sociais, do carácter

inefável e natural dessas diferenças.

As categorias de percepção do mundo social são, no essencial produto da incorporação das estruturas

objectivas do espaço social. Em consequência, levam os agentes a tomarem o mundo social tal como

ele é, a aceitarem-no como natural, mais do que a rebelarem-se contra ele (…): o sentido da posição

como sentido daquilo que se pode ou não se pode «permitir-se a si mesmo» implica uma aceitação

tácita da posição, um sentido dos limites (…) ou, o que é a mesma coisa, um sentido das distâncias, a

marcar e a sustentar, a respeitar e a fazer respeitar – e isto, sem dúvida, de modo tanto mais firme

quanto mais rigorosas são as condições de existência e quanto mais rigorosa é a imposição do princípio

de realidade (…) (Bourdieu, 1989: 141).

É neste contexto, segundo este autor, que as práticas sociais constituem um instrumento

poderoso na luta pela dominação em qualquer campo da vida social. Quando são percebidas

pelos mesmos esquemas de visão e de divisão de que são o produto, as diferenças nas

práticas, nos bens possuídos, nas opiniões expressas, tornam-se diferenças simbólicas, signos

de distinção social que reproduzem no plano simbólico as diferenças objectivas que separam

os agentes no espaço social (Bourdieu, 1997: 9) e que contribuem, na medida em que são

percepcionadas pelos agentes sociais como algo de óbvio, natural, para reforçar a aparente

legitimidade dessas diferenças e, em última análise, para assegurar a sua reprodução

(Bourdieu, 1989: 145). As diferenças aparentes e aparentemente insignificantes escondem as

diferenças profundas que objectivamente separam os grupos sociais.

É por isso que Pierre Bourdieu considera que “a estrutura da distribuição do capital

simbólico tende a apresentar uma estabilidade muito grande” e que “as revoluções

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simbólicas supõem uma revolução mais ou menos radical dos instrumentos de conhecimento

e das categorias de percepção” (Bourdieu, 1997: 131-132).

Por outro lado, e já numa perspectiva um pouco diferente, falando especificamente da relação

que o sistema distributivo de um art world tem com a definição do valor da arte e dos artistas

que participam nesse mundo, Howard Becker refere, como já atrás tínhamos referido, aliás,

que a distribuição das obras constitui um dos elementos mais importantes para a geração de

ganhos, em termos reputacionais – de reconhecimento – por parte dos artistas (Becker, 1982:

95).

Em particular, no caso das artes performativas, onde são criados espaços para a realização de

espectáculos, a apresentação de eventos a públicos mais ou menos vastos constitui sempre

um meio de angariação, não só de mais-valias materiais, mas também de criação de

audiências mais apreciativas que recompensem os artistas «distribuídos» com um nível de

reputação acrescido (Becker, 1982: 119).

A reputação, portanto, ou o capital simbólico que esta em jogo no mundo da arte, constitui

então o motivo central, tanto como princípio como fim, das questões que se colocam quando

nos debruçamos sobre o fenómeno da construção social das definições artísticas.

Resta-nos assim, com as referências conceptuais aqui sistematizadas, prosseguir com aquilo

que, tal como Idalina Conde refere, constitui actualmente uma das mais pertinentes análises

da relação entre a arte e a sociedade, isto é, a compreensão daquilo que em cada contexto

específico e em determinado momento no tempo é definido como arte (Conde, 1992: 9).

2. As hipóteses de trabalho

Não estamos, portanto, e como temos vindo a sugerir, na expectativa ou na esperança de

encontrar uma definição essencial ou unívoca do conceito ou do valor da performance que

aqui nos preocupa – a jam session – mas consideramos, antes, na esteira de Vera Zolberg

quando esta discute o estudo sobre o estado actual da arte, que será mais provável irmos ao

encontro de uma pluralidade de concepções partilhadas sobre aquilo que a arte é (Zolberg,

1990: 21) ou, no caso que aqui nos preocupa, sobre aquilo que aquela performance é, de

acordo com os vários contextos sociais onde é produzida.

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

As práticas dos agentes sociais, ou melhor, as práticas sociais da jam session, deverão ser

portanto, e de acordo com aquilo que atrás referimos sobre o funcionamento do campo

artístico, também contextualizadas em função do lugar estrutural que os agentes sociais

envolvidos – músicos, mas também clubes e públicos – ocupam, no presente momento, num

qualquer lugar do espaço social jazzístico nacional, espaço esse que, como vimos, deve ser

mais construído, de acordo com o capital simbólico específico que nele se joga, do que

reconhecido – ou reconhecível – nas representações, também elas estruturadas por

intermediação do habitus dos agentes sociais em presença.

Neste sentido, parece-nos que as lutas, as discussões, a maledicência e a busca pela verdade

que a princípio nos desarmaram na nossa primeira impressão do fenómeno – as tomadas de

posição dos agentes sociais – poderão eventualmente ter reflexo, ou ser reflexo, da disputa,

no espaço social, entre diferentes agentes que, adoptando práticas diferenciadas e

diferenciadoras em função do capital acumulado que possuem, encontram assim uma maneira

de tentar impor a sua visão musical no espaço em questão.

Será portanto verosimilhante que encontremos grupos de agentes que participam em

performances distintas, ligadas a contextos institucionais e organizacionais de diferentes

clubes e que recusem e mesmo critiquem as formas, os conteúdos, os intervenientes e,

mesmo, os próprios espaços que se relacionam com outras performances que não a sua.

Será o grau de reputação – o capital simbólico – acumulado que constituirá o princípio

distintivo destas diferentes práticas e representações, práticas essas que, como a performance

se insere no âmbito daquilo a que Howard Becker se refere como o sistema distributivo de

um art world, poderão ter efeitos importantes ao tanto ao nível do aumento do

reconhecimento dos músicos que participam nos eventos – aumento que estará sempre

limitado, caso a caso, pela eficácia consagrativa dos próprios clubes e públicos envolvidos –

como ao nível da reprodução social das posições que, como Bourdieu refere, os agentes

ocupam no espaço social.

É, portanto, natural que músicos que participam nas performances de clubes mais

reconhecidos – e para os quais é preciso ser-se mais reconhecido para entrar – sejam também

os músicos mais reputados, e que os músicos menos reputados sejam «forçados» a participar

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nas performances menos cotadas, pelo menos no âmbito do universo jazzístico nacional, e

que vejam assim mais limitadas as hipóteses de ascensão social que a sua exibição no sistema

distributivo do art world jazzístico envolve.

Finalmente, importará ainda ter em linha de conta a importância dos processos de

socialização ou formação na arte a que são submetidos todos os agentes que desejam

participar no campo de produção dos bens artísticos de uma sociedade, já que estes detêm

uma importância fundamental no estabelecimento e manutenção de uma dada ordem social e

que, no caso concreto da jam session, podem ser elucidativos acerca dos processos de

aprendizagem das regras, sempre informais e implícitas, deste tipo de performances, como a

questão de se saber quando e onde se pode ou não pode tocar, quando é que o nível musical

está demasiado alto para o músico relativamente inexperiente, etc.

Será, então, a partir do conjunto de hipóteses assim exposto que procuraremos agora

delimitar uma estratégia de investigação pertinente para a exploração do problema que temos

vindo a expor, em todas as suas vertentes.

O quadro da página seguinte apresenta um esquema que sintetiza, nos conceitos e dimensões

e indicadores pertinentes, o esquema teórico apresentado e que serve de orientação à

definição dessa estratégia.

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

QUADRO 1 – Relação entre conceitos, dimensões e indicadores. CONCEITOS DIMENSÕES INDICADORES

Idade

Sexo

Profissão

Formação académica

Características pessoais e profissionais

Idade com que se dedica à música

Profissão dos pais

Ligações familiares ao meio musical ou artístico Contexto socio-cultural de partida e ascendência

artística Factores familiares facilitadores/obstrutivos da inserção na prática musical

Vocação artística

Redes de sociabilidade Papel dos amigos, professores, etc. na inclusão do entrevistado no universo musical

Autodidatismo

Estudos realizados formais e informais Formação musical

Facilidade de acesso a formação

Actividade musical (concertos, edição de discos, docência, etc.)

Ligações profissionais, institucionais e/ou informais ao universo musical e seus agentes Vida/actividade musical

Facilidades/dificuldades na inserção na prática musical

Ideologia musical Adopção de uma estética musical

Perspectivas profissionais

Profissionalização

Perspectivas prof. e musicais futuras Perspectivas musicais

Performances em que participa

Frequência da participação Tipo de participação

Performances que conhece (espaços)

Motivações Motivações para a participação na jam session

Escolha dos temas

Presença de um trio de apoio à performance

Práticas da jam session

Características organizacionais da

performance Mecanismos de «entrada» na jam session

Níveis de competitividade e cooperação presentes

Aspectos comerciais e/ou lúdicos da performance Ao nível dos músicos

Qualidade/estatuto dos músicos envolvidos

Nível de conhecimentos musicais dos públicos Ao nível dos públicos

Qualidade/eficácia consagrativa dos públicos

Facilidades/dificuldades no acesso às diferentes performances Ao nível dos clubes

Qualidade/género da música produzida nas performances

Conteúdos da performance

Representações da jam session

Ao nível da performanceRelevância da jam session para a actividade musical

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

Capítulo 3

ESTRATÉGIA DE PESQUISA

1. Estudar (o) jazz em Portugal

Tentámos enquadrar esta investigação no âmbito da problemática que considera a arte e as

definições artísticas enquanto o produto da actividade dos agentes – individuais e

institucionais – que, com probabilidades de intervenção e interesses diferentes, contribuem

através das suas tomadas de posição para a criação e recriação dos conteúdos para que

remetem essas noções.

O nosso interesse, neste contexto, tem a ver com a análise e caracterização das práticas e

representações dos agentes envolvidos no fenómeno da jam session e da forma como estas se

relacionam com a posição que estes ocupam num determinado campo da vida social, e que,

neste caso, não é mais do que o campo da música jazz nacional.

Ora, no que diz respeito às intenções de tal empresa, duas situações ligadas à realidade

empírica do fenómeno condicionaram, desde logo, a estratégia de investigação a seguir.

Em primeiro lugar, a questão do parco conhecimento existente, pelo menos de uma forma

sistematizada, do universo jazzístico português.

Apesar de algumas publicações e artigos a que conseguimos ter acesso a respeito destas

matérias, a verdade é que existe ainda muito pouca coisa – poucos estudos, pouca análise,

pouca reflexão – sobre o mundo do jazz nacional e, em particular, sobre a prática da jam

session no nosso país, situação que implicou que muitas dos indicadores aqui utilizados

fossem criados de raiz, praticamente sem o recurso a discussões prévias sobre estes assuntos.

Em segundo lugar, e ainda que não existam de facto dados quantitativos fiáveis sobre a

matéria que aqui tratamos, falar de jazz em Portugal e, em particular, dos músicos que no

nosso país participam em jam sessions, é falar, obrigatoriamente, de muito pouca gente. De

facto, é de um número relativamente reduzido de indivíduos e instituições que falamos

quando nos debruçamos sobre o fenómeno da jam session.

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

Ora, estas duas situações – a inexistência prévia de instrumentos conceptuais adequados ao

problema em questão e a reduzida população envolvida – implicaram, ao nível da estratégia a

seguir, que optássemos por ter em linha de conta um conjunto de técnicas normalmente

associadas à micro-abordagem, ou análise intensiva – das quais se destaca aqui a entrevista –

como forma de garantir a maior riqueza, profundidade e indirectividade possíveis da

informação recolhida, ao mesmo tempo que colocávamos do nosso lado a questão da

dimensão da população a estudar.

Além disso, recorremos também à analise histórica do universo jazzístico, como forma de

contextualizar as práticas e representações dos agentes naquilo que Bourdieu considera ser a

necessidade de lhes restituir, sem nunca cair no relativismo histórico, a sua própria

“necessidade, subtraindo-os à indeterminação resultante de uma falsa eternização, para os

pôr em relação com as condições sociais da sua génese, verdadeira definição geradora”

(Bourdieu, 2001: 295).

2. População-alvo

Tal como acabámos de referir, falar de jazz em Portugal significa falar de muito pouca gente,

descrição que se revela ainda mais pertinente quando falámos do número de efectivos

envolvidos, no nosso país, na prática da jam session em locais públicos.

Com efeito, é relativamente fácil verificar a partir de algumas incursões nocturnas aos «sítios

da especialidade» que, em Portugal, são relativamente poucos os espaços de carácter público

– os clubes ou bares de jazz – que organizam jam sessions, e que são também muito poucos

os músicos que com alguma regularidade participam neste tipo de eventos.

Esta é, de facto, das poucas coisas que podemos dizer por enquanto sobre a população-alvo

deste estudo: que é uma população composta por um número muito reduzido de indivíduos,

que frequenta um número também muito reduzido de espaços que organizam jam sessions e

que, à falta de dados mais concretos sobre esta questão, não nos é possível identificar com

precisão o número de indivíduos envolvidos, em Portugal, na performance que aqui tomámos

como objecto de investigação.

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

A este respeito, e qualquer que seja o caso – o número real de indivíduos que tocam

regularmente nas jam session do nosso país –, é importante deixar claro que não nos

deixamos intimidar nas nossas intenções por tal limitação, já que o próprio carácter do estudo

a fazer, tal como o temos vindo a descrever, não exige nem pretende uma apreensão

extensiva estatística ou inferível das características da população em causa, mas sobretudo

uma análise mais profunda e particularizada das motivações, aspirações, práticas e

representações que estão envolvidas na prática da jam session.

Então, feitas as devidas ressalvas relativamente a essa questão, se determinámos como campo

da nossa análise os músicos e agentes institucionais envolvidos na produção desse evento

musical que é a jam session, uma das primeiras considerações que devemos fazer e ter em

linha de conta ao nível da «amostra» populacional a abranger está relacionada com os

espaços onde a performance ocorre, já que estes parecem poder contribuir fortemente, de

acordo com as directrizes organizacionais que mobilizam para os eventos e o peso

institucional no que detêm no universo musical, para delimitar o modo como os agentes

vivem a experiência performativa das performances em que participam.

Ora, como referem as sociólogas Helena Santos e Paula Abreu, temos dois tipos de clubes de

jazz em Portugal: os clubes mais comerciais, de história recente e sem grande destaque ao

nível da promoção dos músicos – Speakeasey, Blues Café, B Flat, Heritage Café – e os

clubes (na realidade, um clube) que seriam mais virados para a música, em função da sua

história e do importante papel desempenhado ao nível da valorização dos músicos de jazz

portugueses – o Hot Clube de Portugal (Santos e Abreu, 2002: 242).

Isto significa, no quadro da nossa reflexão sobre as diferentes formas e conteúdos que a

performance assume em Portugal, que, por razões de economia de esforço e aparente falta de

pertinência de tal empresa, serão tomados como objecto apenas dois clubes de jazz

particulares, conforme a distinção ideal-típica atrás enunciada por aquelas autoras. Neste

sentido, a nossa análise delimitar-se-á, portanto, aos agentes institucionais e músicos que

estão envolvidos na organização e dinamização das jam sessions do Hot Clube de Portugal e

do Speakeasy, dois espaços nocturnos situados em Lisboa e que apresentam actualmente jam

sessions de uma forma regular.

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Por outro lado, e de acordo com as considerações atrás efectuadas relativamente à extensão

da população em questão, foi tomada a decisão de não se estabelecer um número limite de

interlocutores a envolver no curso da investigação, tendo-se tomado a opção metodológica de

se ir trabalhando os dois clubes até que a informação começasse a ficar saturada, critério,

aliás, frequentemente utilizado no âmbito da investigação em ciências sociais (Quivy e Van

Campenhoudt, 1995: 162-163). A excepção foi no âmbito dos agentes institucionais dos

clubes, onde se decidiu contactar apenas um interlocutor por espaço – alguém que pela

posição ocupada no clube constituísse um observador privilegiado da performance –

achando-se que tal seria o suficiente para dar conta da visão mais institucional do fenómeno.

Finalmente, acabaram por ser envolvidos na investigação 2 agentes institucionais dos clubes

sob análise e 3 músicos que participam ou participavam recentemente de uma forma regular

nas jam sessions dos referidos clubes.

3. Técnicas de recolha e análise de informação

Como já atrás fizemos referência, dadas as condições em que partíamos para este estudo

tanto ao nível da sua população-alvo como do conhecimento existente acerca do fenómeno da

jam session, foi tomada a opção estratégica de adopção de uma metodologia intensiva, de

carácter essencialmente qualitativo, como forma de aprofundar – em todas as dimensões

possíveis e para nós relevantes – a reflexão sobre a prática da(s) jam session(s) em Portugal.

Assim, para além da exígua bibliografia a que conseguimos ter acesso para caracterizar o

universo jazzístico nacional enquanto campo de produção cultural, a entrevista semi-

directiva surgiu como o instrumento de recolha de informação privilegiado do processo de

trabalho de investigação, tendo sido construída e aplicada sob duas perspectivas diferentes,

de acordo com os objectivos, a população a que se destinava e o tipo de informação a

recolher.

Foram então aplicadas duas entrevistas com conteúdos diferentes – uma mais vocacionada

para a informação a recolher junto dos clubes, em termos da organização e da história da jam

session, e outra mais centrada nos músicos, na sua actividade musical e nas práticas e

representações da performance – tendo os entrevistadores tido a preocupação de constranger

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o menos possível, dentro dos limites dos interesses da investigação, o discurso dos

interlocutores que aceitaram participar na sua realização.

As entrevistas foram aplicadas no período temporal de um mês, tendo sido realizadas em

locais vários, desde os próprios clubes até aos espaços domésticos dos próprios agentes

entrevistados.

De destacar ainda, ao nível da recolha de informação, é o facto de um dos autores deste

trabalho de investigação ser ele próprio um agente em trânsito no universo do jazz português,

participando nesse mundo não só enquanto fruidor ou consumidor de música ou eventos do

género, mas também como músico ou aspirante a músico – enquanto aluno de uma escola de

jazz.

Ora, no que diz respeito ao estudo, então, ainda que a questão da observação participante não

se coloque, dado que não houve de facto qualquer participação musical do investigador em

nenhuma jam session, é óbvio que muita da informação recolhida que, mesmo não estando

sistematizada, foi direccionando o curso do processo de investigação, foi obtida pela via da

informalidade – pelo menos sociológica – da sua vivência nas redes de sociabilidade e

estruturas de socialização do campo jazzístico nacional.

Do mesmo modo, a presença dos investigadores no terreno – nos clubes de jazz, em jam

sessions e concertos – foi regular e atenta, ainda que não sido realizada de uma forma muito

estruturada e não tenham sido utilizados outros instrumentos de sistematização de informação

para além do recurso ao simples «bloco de notas», e veio a revelar-se um instrumento muito

importante ao nível da geração de informação privilegiada – porque recolhida sem o recurso

a suportes intermédios – para a análise de várias dimensões do fenómeno.

Em particular, as diferenças na qualidade da música produzida nas diferentes performances, a

rotatividade dos músicos e a diversidade de instrumentistas, a presença de cantores em alguns

dos eventos, o tipo de atenção e resposta dos públicos relativamente ao que se passa no palco,

a relação de volume entre a música e o «ruído» de fundo existente nos clubes, a liberdade

concedida aos músicos na exploração dos solos, ou a maior ou menor intervenção da

organização do clube nos assuntos da jam session, foram alguns dos indicadores importantes

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que não poderiam ter sido recolhidos – com a mesma riqueza e directividade – de outra

maneira que não aquela que foi possível através da postura de forte envolvimento na

performance que desde o princípio foi tomada como estratégia de acção por estes

investigadores.

Resumindo, foram, portanto, neste processo, combinados dois processos distintos de

observação, a observação indirecta, através da análise bibliográfica e da realização de

entrevistas, e a observação directa, através da presença regular dos investigadores no terreno,

como forma de recolher os vários tipos de informação necessária ao desenvolvimento da

investigação.

Por fim, e antes de passarmos à análise e discussão dos dados assim recolhidos, resta apenas

dizer que o tratamento da informação das entrevistas foi feito por análise de conteúdo,

técnica de análise de dados que permite efectuar inferências, a partir dos discursos

produzidos, sobre as condições de produção desses próprios discursos (Silva e Pinto, 1986:

104).

Nesse processo, o corpus da análise foi constituído pela totalidade da informação recolhida

pelas entrevistas e as unidades de registo foram tomadas no seu carácter formal, sendo as

frases ou parágrafos significativos atribuídos às categorias pertinentes de acordo com a

temática ou cariz de informação que tratavam, tendo posteriormente sido feita uma análise

qualitativa dos dados assim organizados.

A discussão que se segue, portanto, foi feita com base na recolha bibliográfica realizada e na

análise de conteúdo das cinco entrevistas produzidas no decurso da presente investigação, de

acordo com os referentes teóricos, dimensões e indicadores que atrás apresentámos, aos quais

se juntaram ainda outros indicadores, posteriormente ao processo de recolha de informação

propriamente dito, cuja contemplação se revelou pertinente no decorrer da análise

efectuada10.

10 O quadro apresentado anteriormente apresentava já uma versão final do conjunto dos indicadores utilizados.

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Capítulo 4

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

1. Os lugares da jam session

A aparição formal do jazz e da prática da jam session em Portugal é um fenómeno

relativamente recente, datando apenas pouco mais do que cinquenta anos, momento da

materialização em finais dos anos quarenta do histórico Hot Clube de Portugal (HCP),

primeiro clube de jazz no país (Santos e Abreu, 2002:242).

Tal situação não implica obviamente a inexistência de música jazz e mesmo de jam sessions

em Portugal em períodos anteriores ao mencionado. De facto, além de algum jazz que era

divulgado pelas rádios da altura, existem relatos que referem a ocorrência de jam sessions em

alguns cafés da cidade de Lisboa e, em determinados momentos históricos precisos, nas

instalações do Instituto Superior Técnico. Eventos que eram geralmente organizados por

grupos auto-mobilizados de aficcionados daquele género musical, tendo em vista, além da

fruição musical propriamente dita, um projecto de dinamização e divulgação da «cena»

jazzística nacional.

Mas é só com a formação do HCP por Luís Villas Boas, um dos primeiros amantes de jazz

reconhecidos do país, que o jazz passa a ter «morada fixa» em Portugal, isto é, que começam

a ser criadas as infra-estruturas necessárias a um desenvolvimento mais sistemático e

coerente do jazz e das suas práticas características no nosso país (nomeadamente a jam

session).

Desde então, falar de jam sessions foi durante muito tempo o mesmo que falar de Hot Clube

de Portugal, já que o clube foi durante um largo período da história portuguesa do jazz o

único espaço onde esta prática musical podia ser levada a cabo com alguma regularidade, à

excepção de algumas manifestações pontuais que se foram realizando em Cascais ou em

alguns bares de Lisboa ou do Porto (Santos e Abreu, 2002: 242).

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Dessas excepções, dois projectos merecem a nossa especial atenção devido à consistência

que parecem ter adquirido e ao desafio que representaram, ou ambicionaram representar, para

o monopólio que o HCP detinha sobre o então mais reduzido panorama jazzístico nacional.

O primeiro desses projectos foi o Clube Universitário de Jazz (CUJ), criado em 1958 em

Lisboa por um grupo de aficcionados de jazz descontentes com o fechamento a que o HCP se

consignava na altura.

De facto, o HCP permanecia um clube muito centrado na música, de acesso limitado a um

reduzido número de sócios, no qual não era fácil entrar. O CUJ ambicionava ultrapassar essas

limitações com um programa que visava uma maior divulgação do jazz ao público em geral,

assim como um papel mais interventivo na sociedade portuguesa, disposições que, no

entanto, ao se revelarem demasiado democratizantes para o contexto político da altura,

acabariam por levar ao seu encerramento forçado pela PIDE em 1961.

Destinado a uma existência bastante curta, o Clube Universitário de Jazz acabaria por ter um

impacto reduzido, em termos práticos, no panorama jazzístico nacional.

Já o Luisiana Jazz Clube (LJC) de Cascais viria a ter um papel mais preponderante no que ao

jazz diz respeito em Portugal. Criado em 1965 com um carácter assumidamente comercial,

este clube de jazz chegaria mesmo a constituir uma alternativa viável ao HCP, dando a

conhecer e reconhecer muitos dos jovens músicos que na altura ensaiavam os primeiros

passos no jazz moderno ou contemporâneo tocado por portugueses.

Tendo começado, tal como o HCP alguns anos antes, por ser um local de audição musical e

convívio, o LJC parece ter conseguido desenvolver uma tradição de jam sessions e concertos

consistente e relativamente regular, que envolviam geralmente alguns músicos internacionais

que visitavam Portugal e músicos portugueses ligados ao HCP que, apesar de tudo,

“tipificavam o mundo luso do jazz” (Miranda, 1998).

No entanto, tal como o Clube Universitário de Jazz que o precedeu, o Luisiana Jazz Clube

viria a ser encerrado forçosamente em meados de 1978, aparentemente devido a alguns

problemas relacionados com a «quietude» da vizinhança local (Miranda, 1998).

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Já nos anos oitenta, o Hot Clube de Portugal voltaria novamente a permanecer durante um

largo período de tempo como o único local no país onde se realizavam jam sessions e

concertos de jazz abertos ao público, de acordo com uma nova estratégia de gestão que

visava dar prioridade aos músicos e à produção musical, assim como difundir aquele género

musical por um público mais vasto.

Novos espaços dedicados à música jazz e blues e à realização de jam sessions só voltariam a

surgir, fora do HCP, já nos anos noventa, em consonância com o desenvolvimento urbano

das duas maiores cidades do país. É nessa altura que aparecem em Lisboa o Speakeasy, o

Blues Café, o Catacumbas Jazz Bar e, já depois da viragem do século, o Net Jazz Café; e em

Matozinhos o B Flat e o Heritage Café, clubes que, no entanto, à semelhança do já extinto

Luisiana, apresentam um perfil mais comercial que o HCP que, “para além de espaço

privilegiado de audição e performance, desempenhou e desempenha ainda a função de uma

espécie de incubadora de músicos, dos poucos músicos de jazz que podem ser identificados

em Portugal” (Santos e Abreu, 2002: 242)11.

Actualmente, então, a prática da jam session encontra-se difundida por vários clubes de jazz

centrados nas duas principais cidades do país. Em Lisboa, por exemplo, o calendário deste

tipo de eventos tem início, logo no princípio da semana, no Speakeasy (segunda-feira),

passando depois pelo Hot Clube de Portugal (terça e quarta-feira) e pelo Catacumbas Jazz

Bar (quinta-feira), encerrando finalmente o ciclo no Net Jazz Café (domingo)12.

Através deste horário é curioso constatar a preocupação que cada clube parece demonstrar

em não sobrepor a realização da sua jam session com as performances similares organizadas

por outros clubes, provavelmente como forma de garantir a presença de músicos que, de

outro modo, poderiam ir tocar a outro lado qualquer. Algo que, aliás, à primeira vista, parece

vantajoso para os músicos, sempre desejosos de mostrar o seu trabalho a audiências, que têm

assim a possibilidade de o fazer durante quase toda a semana.

11 Por razões que desconhecemos, o Catacumbas Jazz Bar e o Net Jazz Café não são mencionados no estudo referenciado. No entanto, do nosso ponto de vista, o seu perfil adequa-se perfeitamente às considerações efectuadas pelas autoras no que diz respeito aos restante clubes de jazz, pelo que decidimos – à nossa total responsabilidade – incluí-los na presente discussão. 12 As terças-feiras e os sábados são geralmente ocupadas por concertos organizados pelos clubes.

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No entanto, tal situação não se parece de todo verificar e apesar de haver, de facto, alguns

músicos que se movimentam de performance em performance sem qualquer «preconceito»

aparente, temos vindo a constatar que na sua grande maioria – nomeadamente no que se

refere aos músicos que participam nos eventos tradicionalmente mais frequentados e aqui

analisados do Speakeasey e do Hot Clube de Portugal – os músicos parecem limitar-se a

tocar apenas nas jam sessions de um ou outro clube particular, optando por não participar nas

performances que são organizadas pelos outros.

A esta situação não deve ser de todo alheia o lugar dominante que, como temos vindo a

constatar o Hot Clube de Portugal ocupa naquilo que poderíamos designar, na esteira de

Bourdieu, como o campo jazzístico nacional, ou seja, o espaço social relativamente

autónomo onde se encontram todos os agentes envolvidos na produção desse bem cultural

que é a música jazz.

De facto, em função da sua história e da sua ligação íntima com a primeira e mais

reconhecida escola de jazz do país – a Escola de Jazz Luís Villas Boas – o HCP mantém hoje

em dia um estatuto incomparável do que ao jazz diz respeito em Portugal, estatuto esse que,

como veremos já de seguida, tem um papel determinante ao nível das práticas e

representações dos agentes envolvidos na prática da jam session e, deste modo, na produção

das definições sociais mais ou menos antagónicas que coexistem a respeito daquela

performance.

2. Clubes diferentes, performances diferentes

Com efeito, se há uma coisa que podemos constatar através da frequência regular em noites

de jam session e que se revê claramente na análise que efectuámos – e isto remete-nos para

aquilo que foi dito no Capítulo 1 deste trabalho – é que, para além do carácter estruturado da

participação que se evidência quando falamos de jam sessions, as performances que os clubes

apresentam são efectivamente performances diferentes, situação que se verifica tanto ao nível

da sua organização e modos de funcionamento, como ao nível, menos directamente

observável é certo, da composição social dos seus participantes, da capacidade consagrativa

do contexto social que constituem e, em última análise, dos efeitos que acarretam no âmbito

dos processos de valorização e reconhecimento dos músicos que nelas participam.

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

Como refere um dos entrevistados «institucionais» que envolvemos no curso desta

investigação: “(...) existem filosofias diferentes na jam session de alguns clubes. Existe

aquele que faz jam sessions porque não quer pagar cachês e quer ter alguma coisa à noite.

Existe aquele que quer fazer uma jam session semanal e com a garantia que as coisas mais

ou menos funcionam. E pronto, as pessoas vão aparecendo onde eventualmente se sentem

melhor. Há músicos que se sentem melhor em ir à jam session do Hot Clube, outros sentem-

se melhor em vir à jam session do Speakeasy. É mesmo isso, sentir-se bem aqui ou acolá. Por

uma razão ou por outra” (Entrevistado 4 - Speakeasy).

Deixando por agora de lado as considerações sobre as eventuais vantagens económicas da

apresentação de jam sessions, questões que não são tão simples quanto a afirmação deste

interlocutor poderia deixar parecer, o que interessa por agora é reconhecer que há realmente

diferentes filosofias da jam session e que, de facto, as pessoas realmente vão aparecendo onde

se sentem melhor.

Desde logo, a presença de um trio base contratado que assegure, em todos os momentos, a

realização da performance, constitui uma diferença marcante que têm influências ao nível do

seu funcionamento, além de que, como veremos mais à frente, constitui também um elemento

significativo na perspectiva que os músicos têm deste tipo de eventos.

Ao contrário do Hot Clube de Portugal, o Speakeasy apresenta actualmente um trio de base,

constituído por um pianista, um contrabaixista e um baterista, que asseguram que haja

sempre música em noites de jam session, ainda que não apareça nenhum músico

especialmente para esse efeito – situação que, no entanto, e como pudemos constatar pela

nossa própria presença regular nos eventos organizados por este clube, não é de todo comum

acontecer.

Já o Hot Clube de Portugal, como dissemos, que já teve também um trio de músicos em

funcionamento nas suas jam sessions, mas que por razões de exigências remunerativas

acabou por ser dispensado, não apresenta actualmente nenhuma maneira específica de

assegurar a produção de música ao vivo nas noites em que estão marcados tais eventos,

considerando mesmo que isso seria desnecessário face à procura que a sua performance

actualmente suscita entre os músicos.

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

Sim... isto também teve aquela fase que nós quisemos fomentar a jam session para ter uma coisa certa.

Houve aí uma altura em que nós decidimos: “então vamos passar a ter uma jam session com um dia

fixo e com uma banda certa”. Os músicos ao início ofereceram-se para fazer isso por prazer. Havia um

trio base que assegurava a jam session e depois quem viesse rodava e tocavam. Mas isto é como tudo.

Depois chegou a uma certa altura em que a gente achava que era injusto para eles, para o trio base,

estarem cá todas as terças-feiras e não receberem nada. Então começámos por pagar o jantar e mais o

dinheiro da gasolina, pronto. Mas eles chegaram a uma altura em que achavam que isso era pouco e

queriam mais, e queriam mais, e queriam mais... e chegou a uma altura em que dissemos chega,

acabou. (...) é normal, as pessoas chegam a um ponto, cansam-se. É novidade e depois passa a rotina e

então deixou de se fazer isso. E hoje, actualmente, vêm cá músicos. É raro o dia em que a gente tem

jam session e não haja música (Entrevistado 5 – Hot Clube de Portugal).

Ora, como referimos, a presença de um trio contratado nas performances, além de constituir-

se como um mecanismo que a garante a continuidade do trabalho do clube ao nível da

apresentação de música ao vivo em noites de jam session, tem implicações profundas na

forma como os eventos decorrem, nomeadamente ao nível do papel mais ou menos

estruturante que as instituições – os clubes – podem deter na sua realização.

Assim, se no Hot Clube de Portugal a maneira com a jam session ocorre parece estar, à

partida, maioritariamente sob a responsabilidade dos seus intervenientes directos – os

músicos que nela participam – já no Speakeasy existe um maior grau de intervenção da

gestão do clube, através dos músicos do trio contratado, em várias dimensões da performance

– desde a escolha do género musical dos temas que se tocam, até ao encadeamento em que

estes são tocados e às possibilidades de acesso ao evento por parte dos músicos que querem

tocar.

Nós não interferimos na jam session, isso normalmente é gerido pelos músicos que estão em palco. Se

chega um músico pede para tocar – “posso tocar?” – os que estão lá é que normalmente gerem a jam

session (Entrevistado 5 – Hot Clube de Portugal)

É outro conceito de jam session, também não deixa de ser interessante, mas parece-me que, em termos

de poder exactamente disciplinar mais, é preciso ter uma direcção... a jam session ter uma direcção, e,

no fundo, é esse o meu papel aqui. Sim, posso até nem estar a tocar, mas se perceber que as coisas não

estão a funcionar bem, que é preciso mexer em qualquer coisa, tenho que intervir. Um papel de

coordenação. Mesmo sem estar a tocar esse papel é fundamental. Equilibrar as coisas (Entrevistado 4 –

Speakeasy).

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

Esta situação de um maior nível de controlo da performance é, aliás, assumida e valorizada

pelos seus responsáveis ao nível do clube, como forma de assegurar que o espectáculo que se

apresenta atinge os melhores resultados possíveis ao nível da resposta do público e da

garantia da qualidade de um bom ambiente da casa.

Para mim é importante que a jam session tenha uma disciplina, atendendo ao facto de que há um

público e nós de certa forma temos de o respeitar. É evidente que às vezes é difícil distinguir o que é

divertimento do músico no palco e ao mesmo tempo um equilíbrio que permita que as pessoas que

estão cá fora não fiquem maçadas com o que se está a passar. Basicamente é isso. E às vezes há

músicos que não têm essa noção – estão a divertir-se e tal – mas para mim não existe música sem... na

filosofia da jam session, tal como nós a concebemos, eu tento que não se repitam temas com o mesmo

andamento e com a mesma filosofia. Por exemplo, acabar de tocar uma bossanova e começar outra

bossanova. A preocupação é um bocado essa. Tentar diferenciar e fazer coisas diferentes. Ou acabar

um tema médio tempo e começar outro com o mesmo tempo. Tento que isso não aconteça e isso é que

é importante. Mesmo que o público não entenda nada ou perceba que alguma coisa se está a passar. Às

vezes mesmo o acabar um numa determinada tonalidade, sei lá, em Ré Maior e começar outro tema

em Ré Maior... mesmo que as pessoas não saibam porquê... é isto que cria monotonia (Entrevistado 4

– Speakeasy).

Ora, esta situação tem implicações ao nível tanto do acesso dos músicos à performance,

como da escolha e qualidade dos temas que são tocados durante a sua realização. No

Speakeasy o acesso à jam session parece ser de facto mais condicionado que no Hot Clube,

sendo os músicos autorizados a participar no evento de acordo com a análise subjectiva que é

feita da situação pelo trio de serviço – os responsáveis da jam session – tanto do músico em

questão como do ambiente do clube àquele momento.

[Quando um músico chega] pede para tocar. Nós aqui não funcionamos com sistema de inscrições

porque não há assim tanto... nada que justifique isso. Mostra-se disponível para tocar e nós assim que

for oportuno vamos chamá-lo. Às vezes digo-lhe, hipoteticamente: “olha vem já tocar”, etc. Outras

vezes não, tem de esperar um bom tempo por várias razões, ou porque não é o momento oportuno, ou

porque eu pressinta que vá tocar uma coisa que não está muito dentro daquilo que se está a passar no

momento. De resto está aberto, desde que tenha uma filosofia jazz (Entrevistado 4 – Speakeasy).

Já no Hot Clube a responsabilidade de introdução nos músicos proponentes na performance

fica sob o arbítrio dos próprios músicos que já estão a tocar, ainda que em algumas situações,

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

talvez para os músicos menos experientes, sejam os responsáveis do bar a direccionar os

indivíduos para o evento.

Exacto... pronto, nas noites de maior afluência o músico, desde que saiba tocar minimamente bem,

chega e pede... eles normalmente dirigem-se ao bar – “Ah, como é que eu faço?” – ó pá, e eu digo –

“vais ali, falas com os músicos que estão a tocar e pedes se podes tocar” ...e pronto! É assim

(Entrevistado 5 – Hot Clube de Portugal).

São portanto duas perspectivas diferentes as que norteiam, neste caso, a entrada dos músicos

na performance, perspectivas que, no fundo, acabam por ter implicações ao nível daquilo que

posteriormente se seguirá ao nível do espectáculo e da música produzida em cada um dos

clubes aqui em análise, já que os interesses específicos dos agentes a quem finalmente cabe a

decisão sobre o acesso ou não de um músico à performance são também distintos consoante

estes se orientem mais para os interesses do clube em si, enquanto espaço de entretenimento

que possui uma vertente comercial, ou para os interesses específicos dos músicos que, como

veremos mais à frente, estão mais ligados à exploração musical e à experiência performativa

e formativa que a jam session pode proporcionar.

Qualquer que seja o caso, saliente-se no entanto que isto não significa, nomeadamente no

caso do Hot Clube, que os músicos detêm toda a margem de manobra para decidir sobre tudo

o que se passa na performance, e mesmo sobre o acesso ou permanência de um músico

específico nesta. Aos clubes cabe sempre e em todo o caso a última palavra a dizer sobre a

jam session que é organizada nos seus espaços, ainda que este papel possa ser mais ou menos

directivo ou mais ou menos explícito. Voltando a analisar mais precisamente as duas últimas

citações atrás apresentadas, atentemos que, para além das diferenças mais visíveis que

podemos identificar entre o discurso dos dois interlocutores institucionais entrevistados – a

da maior ou menor premência da intervenção do clube no processo de acesso aos músicos à

performance – é nos dito também, ainda que tal à primeira observação possa parecer um

dado adquirido ou supérfluo, que um músico é sempre bem-vindo na performance “desde

que tenha uma filosofia jazz” (Entrevistado 4 – Speakeasy) ou “desde que saiba tocar

minimamente bem” (Entrevistado 5 – Hot Clube de Portugal).

Ora, esta questão é fundamental, já que entramos aqui, por um lado, no campo do

reconhecimento do valor dos músicos, seja do seu valor enquanto músicos de jazz –

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

enquanto agentes possuidores das competências necessárias à produção dos bens

característicos daquela tradição musical – no caso do Speakeasy, ou, no caso do Hot Clube

de Portugal, do seu valor enquanto músicos em si mesmo, por oposição àqueles que não o

seriam e que, como tal, veriam goradas as possibilidades de acesso àquela performance; e,

por outro lado, na questão da exclusão de alguns agentes musicais e de alguns géneros

musicais cuja presença na performance não seria bem-vinda, de acordo com a avaliação que

seria feita pelos clubes a seu respeito.

[Sobre a presença de outros géneros musicais] Sim, pode acontecer, é uma situação pontual. Se ele

quisesse tocar toda a noite, todas as noites isso, com certeza não era o lugar ideal, mas de resto as

coisas estão abertas a isso (Entrevistado 4 – Speakeasy).

E depois, de volta e meia, também aparecem aí uns músicos que não têm nada a ver com música jazz e

também querem tocar e depois, no fundo, acabam por estragar o que se está a passar e... (Entrevistado

5 – Hot Clube de Portugal).

Quer isto dizer que, se no caso do Speakeasy, como já vimos, esta opção é claramente

assumida e formalizada através do trio em função de uma concepção de performance que o

clube pretende apresentar – talvez em função de uma maior atenção à dimensão comercial do

espaço – já no caso do Hot Clube de Portugal, não deixando de estar presente, ela assume

contornos de uma grande informalidade num processo complexo que envolve tanto os

músicos presentes que participam na performance e suas atitudes perante algum participante

indesejável que apareça, como, em último recurso, a intervenção efectiva dos próprios

agentes institucionais do clube na reposição daquilo que seria a realidade ou, melhor, a

conformidade daquela jam session.

Sim, já houve músicos... inclusive até houve uma altura em que vinha ai um músico que era do...

pensava ele... que era baterista, mas era mais do heavy metal ou coisa do género e então ia para ali

tocar bateria, às tantas quase que me ia correr com os músicos todos que estavam a tocar e ficava ele

sozinho a tocar, porque era uma forma dos outros lhe dizerem – “pá, contigo ninguém quer tocar”

(...). Ele não percebia isso e tinha eu que ir, lá do bar, dizer – “ó pá, desculpa lá, tens que parar

porque...”. Pá, não podia chegar ao pé do músico e dizer-lhe – “pá, não tocas nada!” – então dizia –

“se calhar não estás bem dentro da música que aqui se está a fazer” – ou... pronto... (Entrevistado 5 –

Hot Clube de Portugal).

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

Isto implica que a qualidade musical daquilo que se toca numa jam session é sempre

relativamente restrita, qualquer que seja a performance a que nos refiramos e sejam essas

restrições impostas maioritariamente pelo clube, através dos agentes que nessa organização

estão encarregues da manutenção da performance, como no caso do Speakeasy, ou de uma

forma mista, através do confronto de interesses entre os músicos e o clube, como no caso do

Hot Clube de Portugal.

Por outro lado, esta situação coloca também na ordem do dia a questão das diferenças de

estatuto entre os músicos presentes na jam session e do seu conhecimento e aceitação das

suas regras implícitas, e da forma como estas se relacionam tanto com a acessibilidade dos

músicos à performance, como com aquilo que estes podem fazer, em termos musicais,

quando de facto a sua entrada no evento é bem sucedida.

Relativamente à primeira questão, já anteriormente tínhamos visto que é pela quantidade de

reputação já granjeada que um artista tem acesso a determinados canais de distribuição do

art world específico em que se move, e que, no universo jazzístico, e na jam session em

particular, é em função da percepção subjectiva que os indivíduos têm do nível musical que

caracteriza a performance e os músicos envolvidos numa dada jam session que decidem, ou

não, participar nesse evento.

Ora, esta questão é fundamental para perceber alguns aspectos deste tipo de performances.

Quando um músico, por falta de conhecimento relativamente a estes eventos ou mesmo por

alguma ingenuidade, se aventura de facto a participar em performances, digamos, mais

reputadas ou, pelo menos, onde os agentes envolvidos apresentam um nível ou um estatuto

musical mais elevado do que o seu, o seu comportamento geralmente é alvo de sanções,

seja por parte do clube que gere com mais proximidade o evento, seja por parte dos

próprios músicos que nele participam.

O músico de heavy metal anteriormente referido não sabia que não devia tocar (ou se sabia

não quis saber), e não compreendendo de imediato, ou ignorando a punição que lhe estava a

ser imposta pelos restantes músicos presentes, que suscitava o seu abandono voluntário da

sessão, sem prejuízos mais relevantes, acabou por ser excluído do evento explicitamente,

deixando tomar forma objectiva aquilo que poderia ter permanecido por dizer: tanto a sua

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

aparente falta de jeito para a música como a sua total falta de conhecimento ou aceitação

daquilo que constitui uma espécie de ordem social da jam session e da participação neste tipo

de eventos.

È por isso que a análise dos processos de socialização dos músicos, decorrentes da sua

participação nas instâncias de formação formais e informais da prática musical jazzística, são

fundamentais para se perceber a forma como estes participam na jam session. Voltaremos a

esta questão mais tarde. Por agora, o que aqui interessa salientar é que se a reputação, o

reconhecimento das capacidades musicais de um músico por parte dos clubes ou de outros

músicos, pode funcionar no sentido da delimitação das possibilidades que estes têm de

participar nas performances, também é verdade que a questão do estatuto também se coloca

de maneira inversa.

Assim como há músicos que não participam em performances onde reconhecem que o nível

está demasiado alto para as suas capacidades, ainda que estas possam estar em franca

progressão e desenvolvimento (isso para agora não interessa), também há casos em que os

músicos se recusam em participar em jam sessions em que consideram que o nível está

demasiado baixo.

Apesar de aparentemente muito ter mudado recentemente a este nível e de já haver mais

mistura entre músicos de diferentes estatutos na jam session (pelo menos entre aqueles que

conseguirem passar a tal barreira invisível que, como vimos, tanto os clubes como os

músicos impõem na realização deste tipo de eventos) o que parece ser certo é que existem

ainda muitos músicos que, simplesmente, não tocam em performances nas quais estão a

participar músicos que detêm um estatuto reconhecidamente (e a questão aqui é a de

reconhecer estas diferenças) inferior ao seu.

Assim, se para um dos interlocutores que entrevistados “há músicos que têm a tendência de

chegar e apoderar-se da situação” (Entrevistado 4 – Speakeasy), ou seja, da performance

que se está a realizar – ainda que o entrevistado refira que tal não acontece nas jam sessions

que se realizam sob sua responsabilidade – para outro ainda há “certos músicos que vêm (...)

e se estiverem meia dúzia de miúdos da escola a tocar, músicos que vêem aí às vezes,

músicos daqueles que nós chamamos de top português, que não se misturam, não querem

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

tocar com os miúdos novos e não sei o quê” ou “temos aí alguns músicos portugueses, têm

algum talento e lançam um disco, mas é como a gente diz, projecto há muitos, criatividade é

que é muito pouca. Mas o pessoal também lhe fazia bem descer mais abaixo e ver –

“também já aqui estive” – não lhes fazia mal nenhum tocar com esse pessoal” (Entrevistado

5 – Hot Clube de Portugal).

Ainda no que diz respeito a esta questão, um dos interlocutores que contactámos não deixa

de salientar que a questão, não só da idade, mas sobretudo do estatuto, dos músicos que

frequentam a jam session tem de facto vindo a sofrer alterações ao longo do tempo e que se,

num primeiro momento, as jam sessions envolviam já “músicos com uma certa craveira”,

hoje em dia elas funcionam “tanto com o Dr. Veloso13, que tem 70 anos, como com o aluno

mais novo da escola que, provavelmente, tem 17 ou 18 anos” (Entrevistado 5 – Hot Clube de

Portugal).

Mas se isto funciona assim, também não é menos verdade que mesmo dentro da jam session

a questão dos estatutos dos músicos assume extrema relevância no que diz respeito àquilo

que estes podem ou não podem fazer, em termos musicais, no curso da performance.

Assim, se no Speakeasy a presença dos agentes institucionais do clube na performance

constitui um mecanismo fundamental que impede que um músico qualquer chegue e se

apodere da performance que está a ocorrer, monopolizando-a em função dos seus interesses

específicos e renegando os interesses da «casa», já no Hot Clube – e esta situação decorre de

uma observação in loco da nossa parte – há espaço para um músico, pelo menos um músico

consagrado, mandar literalmente calar a audiência, em tons muito pouco cordiais, quando a

agitação desta está a interferir na execução do seu solo.

Esta questão é importantíssima, já que ela de alguma forma retoma a discussão que atrás

tivemos sobre os diferentes clubes de jazz existentes em Portugal e da relação que estes

mantêm com a produção da música e dos músicos que se reivindicam de jazz no nosso país.

13 Um médico, amante de jazz, pianista, que é uma presença regular nas jam sessions do Hot e que, como nós próprios tivemos oportunidade de observar numa ocasião em que não havia músicos em palco numa noite de jam session, não se faz rogado em convidar músicos mais novos e menos experientes para o acompanhar neste tipo de eventos.

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

O «burburinho» existente nos clubes em noite de jam session, o barulho, as conversas, o riso,

ou, pelo menos, o facto de este se encontrar mais ou menos presente na altura da realização

deste tipo de eventos - isto apesar das diferenças físicas e de qualidade sonora dos espaços –

constitui um indicador precioso (e aqui, tanto ao nível da desatenção do público, como da

tolerância dos agentes institucionais dos clubes relativamente à presença deste contraponto

sonoro) da maior ou menor atenção ou importância que estes concedem à criação musical ou

à dimensão eventualmente comercial da sua vocação.

A este respeito não há equívocos. O Hot Clube de Portugal permanece, de facto, e como já

aqui tínhamos adiantado, como um espaço muito mais virado para a produção musical e para

os músicos, não dando – pelo menos à partida – tanta atenção quanto o Speakeasy à questão

da satisfação das expectativas do público, ainda que este clube coloque também a questão da

valorização da audiência sob a perspectiva da divulgação da música e dos músicos de jazz.

Aqui o público varia muito mais que no Hot Clube. Mas também muita gente que vai ao Hot Clube

são puramente curiosos. Quer dizer, não são necessariamente pessoas muito entendidas e se queremos

que o jazz venha a ter sucesso temos de ter o cuidado... há um trabalho muito importante no sentido de

ensinar as pessoas a ouvir. Se a pessoa comprar um primeiro disco de jazz e for uma coisa na área do

free jazz, com certeza vai ficar a odiar o jazz para toda a vida. Tem que haver um percurso naquilo que

se ouve primeiro, tornar a coisa um bocado mais... (Entrevistado 4 – Speakeasy).

Esta situação chega a ser paradoxal, já que é no clube em que existe uma maior preocupação

com o público aquele em que se verifica uma maior desatenção desse mesmo público

relativamente àquilo que se está a passar no palco, o que coloca aqui em jogo a questão da

composição social dos públicos e da sua maior ou menor proximidade ao universo musical

em questão, assim como das suas motivações em frequentar os espaços onde este tipo de

performances ocorrem.

Ainda que não tenhamos recolhidos dados objectivos sobre esta questão, a nossa presença

regular neste tipo de eventos e as observações daí decorrentes permitem-nos sugerir que

falamos de dois públicos diferentes, tão diferentes, aliás, quanto o tipo de música produzida

nas diferentes sessões aqui abordadas. No caso do Hot Clube de Portugal – e em

correspondência com o que atrás dissemos sobre a posição dominante que este clube ocupa

no campo jazzístico nacional – estaríamos na presença de um público muito mais atento ao

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

desenvolvimento da performance, que segue mais ou menos prudentemente os passos dos

músicos em palco e que se abstém de falar alto ou de efectuar qualquer acção que possa

interferir no sentido da obstrução da fruição do momento musical que ali se vive (ou, pelo

menos, de como essa fruição é ali entendida). Pelo contrário, no caso do Speakeasy, o

público está frequentemente desatento relativamente ao que se passa no palco, perdido em

conversas particulares ou a finalizar uma refeição, intervindo na performance apenas quando

existe uma grande prestação musical por parte dos músicos presentes ou quando o

responsável do espaço – também ele um músico, cantor – interrompe o desenvolvimento da

performance para anunciar ou aplaudir algum dos seus intervenientes.

De recordar aqui que o Hot Clube de Portugal é um clube exclusivamente de jazz, talvez o

mais antigo da Europa, e que, pelo contrário, o Speakeasy é um clube que apresenta uma

programação muito variada ao longo da semana, que não se cinge à música jazz, além de se

encontrar também situado junto das docas de Alcântara, um espaço com uma dimensão

acentuadamente comercial, virada para o entretenimento nocturno, ao invés do Hot Clube

que fica na Praça da Alegria, relativamente deslocado dos circuitos comerciais.

Além disso, como vimos anteriormente, a própria fundação do Hot Clube de Portugal teve

como bases a associação de um conjunto de pessoas interessadas na promoção do jazz e que

durante muito tempo este espaço foi o ponto de encontro entre os mais aguerridos

aficionados daquele género musical, aos quais se juntariam depois curiosos e visitantes

incautos, é certo, mas também, e talvez, sobretudo, muitos professores e alunos da escola de

jazz entretanto criada pelo clube, circunstâncias que fazem deste espaço um local

privilegiado no que diz respeito a presença de uma audiência, em termos gerais, bastante

preparada para conhecer e reconhecer, agregando valor, os eventos musicais e os músicos

que ali são apresentados.

Quando eu cheguei aqui ao Hot foi nos anos 80, penso que em 86. Sim, foi em 86. Quer dizer, as

pessoas que frequentavam o Hot Clube eram pessoas de uma certa idade, quer dizer, vivia

essencialmente dos habitues, as pessoas que vinham quase todos os dias, que nós conhecíamos já, que

vinham com uma certa regularidade. Até que, a partir dos anos 90 – pronto, a escola já existia desde os

anos 80, mas as pessoas que frequentavam a escola não vinham muito ao clube – a partir de meados de

90 assistiu-se a uma regeneração, por assim dizer, das pessoas que frequentavam o clube. Porquê?

Porque a escola começou a ter mais movimento, começou a ter muito mais pessoas, muito mais

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

professores. Então começou a vir muita malta nova, pessoal novo, que frequentava a escola. E

tínhamos a vantagem de que a escola funcionava aqui no prédio no primeiro andar. Então começou-se

a fomentar uma jam session às terças e às quartas. Quem dava início a essas jam sessions normalmente

eram os professores e os amigos, e os amigos trazem os amigos, e pronto, de certa forma assistiu-se a

uma grande regeneração gradual das pessoas que vêem hoje em dia ao Hot Clube, desde os anos 80,

onde só havia o concerto à quinta, sexta e sábado, depois terça e quarta. Isto era essencialmente um

clube onde a gente punha uns discos. Que se ouvia o jazz (Entrevistado 5 – Hot Clube de Portugal).

Por outro lado, ao nível da música produzida nas jam sessions, pudemos constatar que é no

Hot Clube que podemos observar uma maior abertura à experimentação musical por parte

dos indivíduos, podendo estes optar por «solar» mais ou menos indefinidamente pelo tempo

e, também de acordo com o estatuto que possuem, envolver-se em experimentações sonoras

improvisacionais que extravasam o universo jazzístico convencional, sendo para isso muitas

vezes incentivados em tempo real pelas reacções emotivas do público presente.

Já no Speakeasy, apesar do espectro musical abrangido parecer ser mais lato que clube

anterior, nomeadamente em termos dos géneros musicais invocados – jazz, blues, bossanova,

música latino-americana, além de outros estilos que possam surgir, ainda que pontualmente –

a dimensão da experimentação não parece estar tão presente, tendo a música produzida um

«aspecto» final muito mais «polido», mas simultaneamente menos arrojado, do que no Hot

Clube de Portugal.

Saliente-se que isto não se passa sempre assim, e que muitas vezes estas questões,

nomeadamente a da música produzida na performance, são também fortemente

condicionadas pelos estatutos dos músicos que em dado momento específico participam

naquelas performances, pelo que o que aqui fica, em termos concretos, é, no fundo, no

sentido bourdiano do termo, o espaço dos possíveis que cada clube coloca ao dispor dos

agentes sociais que participam neste tipo de eventos.

De qualquer modo, qualquer que seja o caso ou as diferenças encontradas entre os dois

clubes analisados, ambos os interlocutores com quem conversámos salientaram também que

a jam session é exactamente o lugar do imprevisto e do imprevisível, do rude e do inacabado,

sendo portanto sempre difícil prever o que se vai passar num evento deste género.

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

Às vezes aquilo não sai tão bem como a gente esperava que saísse. Mas as jam sessions são para isso

mesmo. É experimental, é para o músico expor ali as ideias e tentar transmitir às pessoas aquilo que

aprende na escola (Entrevistado 5 – Hot Clube de Portugal).

3. Práticas e representações da jam session

A dimensão da imprevisibilidade e incerteza que, como temos vindo a ver, se encontra

frequentemente associada à pratica da jam session, encontra também reflexo nas opiniões

dos músicos que aqui entrevistámos e que participam regularmente neste tipo de

performances, sendo geralmente valorizada no âmbito de uma vertente pedagógica e/ou

convivial daquela experiência musical – situação em que os músicos poderiam conviver com

outros músicos tirando dai benefícios ao nível tanto da sua formação – da aprendizagem

pelos pares – como ao nível da sua profissionalização – através da exibição das suas

capacidade e da criação de redes de sociabilidade que poderão ser geradoras de futuros

compromissos profissionais.

Como nos refere um dos entrevistados, a jam session é um bom sítio para conhecer pessoas e

para se estar integrado no meio do jazz, condição que é essencial para a profissionalização

destes músicos. Travam-se conhecimentos, avaliam-se as características dos músicos

presentes e podem começar a surgir convites para este ou para aquele projecto musical

(Entrevistado 1).

Eu considero aquilo quase como uma pessoa que tira um curso universitário e depois vai ter um

estágio. A jam session é tipo um estágio, está ali, aquilo é mesmo o momento real, percebes?! Por

exemplo, estás a ter aulas, mas não tens pessoas a olhar para ti, se acontece alguma coisa não te

«queimas» tanto, há um papel onde te podes agarrar. Ali não, ali é mesmo o palco, é mesmo a verdade.

É a verdade porque tens ali pessoas a assistir, se alguma coisa corre mal tu tens que dar a volta,

enquanto nas aulas isso não acontece. Considero que a jam session, para uma pessoa que queira ser

músico e tocar jazz, é super-importante (Entrevistado 2).

De facto, a jam session, enquanto performance musical realizada regularmente em clubes de

jazz, faz parte integrante daquilo que Howard Becker considera ser o sistema distributivo de

um art world, ou seja, o conjunto dos mecanismos que nesse mundo permite a apresentação

do trabalho dos artistas perante públicos passíveis de apreciar e recompensar esse trabalho.

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

De acordo com Becker, como já vimos (capítulo 2) é a actividade dos agentes que operam no

sistema distributivo de determinado art world que permite a retribuição do trabalho dos

artistas e a criação de audiências que apreciem os eventos propostos e recompensem os seus

autores com uma reputação acrescida (Becker, 1982: 119).

Na nossa perspectiva, relativamente à performance que aqui nos preocupa, ainda que

geralmente não se cobrem bilhetes para este tipo de eventos e que, por consequência, a maior

parte das vezes eles não envolvam uma compensação monetária directa do trabalho dos

músicos ou dos organizadores que participam na sua produção – algo que Becker considera

ser uma das características essenciais do sistema distributivo – parece-nos que não podemos

desprezar a sua relação com um outro tipo de compensações, não económicas, mas de nível

reputacional e social, que de facto podem constituir um recurso valioso ao dispor de músicos

e empresários14, por vezes traduzível em termos materiais ao longo do tempo.

Em particular, num regime de freelance, como o que caracteriza a actividade artística de

grande parte dos músicos de jazz, a reputação constitui o elemento fundamental a partir do

qual se estabelecem laços profissionais. É a partir da habilidade reconhecida dos indivíduos

que compõem o sistema que se processa o recrutamento de profissionais e se constituem os

grupos de trabalho em torno dos projectos que esse art world vai realizando. A reputação é

sem dúvida essencial em todo o processo, embora não seja o único factor a ter em conta.

Para assegurar a manutenção da sua actividade de uma forma relativamente estável, é ainda

essencial que os indivíduos que trabalham deste modo sejam conhecidos e mantenham uma

rede de contactos suficientemente alargada que proporcione a solicitação dos seus serviços

com relativa frequência (Becker, 1982: 86).

A jam session, neste sentido, embora não contemple directamente o lucro económico, é sem

dúvida um espaço de reconhecimento social, onde os músicos criam reputações com base na

avaliação que é feita do seu trabalho pelos outros músicos e pelas audiências que assistem a

esses eventos, e é também um espaço onde os músicos se dão a conhecer como profissionais

disponíveis, estabelecendo assim contactos imprescindíveis para a criação de futuras redes de

cooperação e trabalho com outros membros do art world jazzístico. 14 Logicamente que, ao nível dos empresários que gerem os clubes onde a performance se realiza, a organização de jam sessions constitui desde logo um bom investimento, na medida em que fornece ao clube pelo menos algumas noites de entretenimento com um custo bastante reduzido.

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

Obviamente que não pretendemos com isto negar, ou sequer minorar, a importância

consagrativa que os concertos com músicos contratados – organizados exactamente pelos

mesmos clubes que organizam jam sessions – certamente possuem. Porém, consideramos

que o carácter mais aberto e virtualmente competitivo da jam session relativamente a outro

tipo de performances musicais mais formais, tornam o evento particularmente propício à

exibição técnica e busca de notoriedade, nomeadamente na perspectiva do músico ainda

pouco conhecido no meio. Além disso, a dimensão de sociabilidade que uma jam session

invoca e que, como vimos, pode possibilitar o estabelecimento de redes de trabalho entre

diversos actores sociais que interagem no universo jazzístico, é algo que num concerto

organizado se encontra relativamente minimizado.

Ora, mas como referimos no início do presente capítulo, a participação nas jam sessions não

se faz de forma aleatória, mas sim de uma forma estruturada, em que os músicos se

distribuem pelas performances que lhes são propostas pelos vários clubes que estão

envolvidos na produção deste tipo de eventos sem nunca fazerem a travessia, pelo menos

aparentemente, para as performances de outros espaços, com outros músicos.

Dos músicos que entrevistámos no curso desta investigação, apenas um – o entrevistado 3 –

refere ter tocado já com alguma regularidade nas jam sessions de um clube – o Speakeasy –

diferente do que o que tocava habitualmente por altura da realização da entrevista – o Hot

Clube de Portugal. Os restantes, apesar de conhecerem outros clubes onde também se

realizam jam sessions, nomeadamente o Hot Clube, e de terem já pelo menos experimentado

o acesso a essas performances, referem que, por motivos vários, preferem de facto tocar no

Speakeasy.

Ora, como já vimos, os clubes condicionam sempre, por vias mais ou menos explícitas ou

mais ou menos formais, tanto o acesso que os músicos podem ter às performances, como

aquilo que eles podem ou não podem fazer quando se encontram já na situação de jam

session.

Assim, se a jam session pode de facto ter uma influência muito positiva no percurso ou na

actividade musical dos agentes, também é um facto que ela também tem, nas palavras de um

dos músicos entrevistados, a sua “parte má”, ou seja, os mecanismos de manutenção de uma

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

determinada ordem social criada momentaneamente em determinada performance e que se

impõem, de forma mais ou menos premente ou mais ou menos violenta, aos músicos que

nela participam ou querem participar. A questão dos estatutos dos músicos envolvidos

adquire aqui toda a relevância. E é um facto que, muitas vezes, só à custa de muita

perseverância é que alguns músicos conseguem manter uma participação relativamente

regular neste tipo de eventos.

Por outro lado, também tem a parte má, que é ver o mau feitio de certos músicos que lá estão. Mesmo

na jam session – há uns que têm mau feitio. Se tu, por exemplo, tocas menos do que eles e eles gozam-

te. Às vezes até te tratam mal porque não estás a um nível tão alto como eles. Não sabem ver que

aquela pessoa está a tentar progredir. Às vezes tem esse lado mau. Houve várias vezes que eu vinha

para casa e pensei: pá… nunca mais vou pôr os pés naquela jam session, ou isto ou aquilo. Por coisas

que me disseram… normalmente por coisas que me disseram ou coisas que não gostasse. Mas pronto,

depois no outro dia passava a onda, passado algum tempo já estava esquecido e pronto (Entrevistado

2).

E esta questão – aliás, como já aqui vimos através do episódio do baterista de heavy metal –

pode mesmo chegar a assumir proporções institucionais, quando os próprios agentes do

clube intervêm no sentido da manutenção de uma determinada realidade da performance.

Um dos músicos entrevistados relatou-nos a seguinte situação, passada no Speakeasy,

imediatamente a seguir a ter negado a existência de quaisquer tipo de constrangimentos na

performance.

Pá, nunca tive problemas. Nunca me proibiram de estar no palco. Lembro-me que houve uma vez – e

isso não foi há muito tempo – que eu subi para o palco e havia lá um saxofonista e, pronto, só gostava

de tocar sozinho, não gostava de tocar acompanhado. E depois de ele ter tocado uma música, eu subi

para tocar também uma música. E quando eu subi para o palco ele saiu do palco. E lá os da jam quase

que me agarraram e me mandaram para fora do palco para o outro entrar. O outro era um bocado

esquisito e só podia tocar sozinho. Isso foi uma coisa que aconteceu que eu não gostei muito

(Entrevistado 2).

Neste contexto das coisas, ainda que algumas das explicações apresentadas para justificar a

adopção de determinadas performances pelos músicos surjam no sentido da sua falta de

tempo, falta de disponibilidade, ou falta de condições (falta de um trio fixo na jam session)

para frequentar as performances de outros clubes (entrevistado 2), um dos músicos não deixa

de referir, relativamente ao Hot Clube de Portugal, que existe um certo clubismo à volta da

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performance e do clube em si, fechadísmo para o qual contribuem, na sua perspectiva, tanto

os músicos que costumam participar nos eventos desse clube como o público que frequenta o

espaço. O Speakeasy, refere o músico, tem uma jam session com um ambiente mais

relaxado. Se um músico não fizer «estrilho» é bem recebido por todos, coisa que na sua

opinião não acontece no Hot Clube (Entrevistado 2).

E mesmo o músico que nos referia que não participava nas jam session do Hot Clube de

Portugal por razões meramente idiossincráticas, não deixa também de salientar que o facto

de a audiência mais apreciativa e mais compreensiva deste clube se caracterizar

supostamente por um maior nível de conhecimento musical acarreta, inevitavelmente, um

maior sentido de responsabilidade por parte dos músicos que intervêm neste tipo de eventos,

o que de facto pode constituir um factor intimidatório da sua participação.

Pá… o Hot, daquilo que eu vejo, as pessoas que estão lá a maior parte são músicos e compreendem um

músico mesmo que toque pouco, toque bem ou não toque muito bem. Pelo menos compreendem e

normalmente batem sempre palmas no final dos solos. As pessoas que lá estão apoiam mais as pessoas

que estão a tocar mas, pronto, também lá a responsabilidade é maior porque a pessoa toca e está a ser

ouvida por pessoas que compreendem aquilo que a pessoa está a fazer. Por exemplo, se fores para um

lado onde as pessoas não percebem, pronto, a pessoa dá as notas e aquilo para elas cai-lhes ao lado, a

pessoa não tem tanta responsabilidade. No Hot é um bocado mais responsabilidade a pessoa tocar. No

entanto, das poucas vezes que lá fui, dá-me a sensação que as pessoas que lá estão apoiam os músicos

(Entrevistado 2).

Por outro lado, aqueles que participam nos eventos organizados pelo Hot Clube de Portugal

apresentam uma visão claramente diferente das coisas, e chamam a atenção para a vertente

comercial da jam session de outros «bares», aspecto que da sua perspectiva desvirtuaria a

pureza deste tipo de performances e a dimensão lúdica e convivial que originalmente estaria

na sua origem.

Mas também temos que salvaguardar uma coisa, tirando o Hot – eu estou a supor, não estou a afirmar

– também há um marketing da própria casa que está no mercado da restauração e vê na jam session

uma maneira de ter música ao vivo sem ter de pagar cachê aos músicos. Temos que ver também por

esse lado. Um exemplo flagrante é o Speakeasy. Essa eu conheço, é negócio, tanto que os músicos

recebem 5 contos cada um, pelo menos era assim há uns 4 anos. Há um trio, uma secção rítmica base e

isso já não é bem uma jam session (…) porque o trio está ali a receber dinheiro. (Entrevistado 3).

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

O Hot Clube é um clube totalmente diferente de todos os bares. O Hot Clube é um clube. O

Speakeasy, o Catacumbas são bares. É diferente. À aí uma ideologia de marketing diferente. Se o Hot

Clube estivesse a pensar por exemplo na questão só de dinheiro, de certeza que já tinha fechado e não

estava aberto há cerca de cinquenta e tal anos. O Speakeasy já tem 10 anos e já é a 4ª ou a 5ª gerência.

À também que salvaguardar essa parte de marketing, de trabalho, e [distinguir] aquelas que são

realmente puras, que é o caso do Hot Clube (Entrevistado 3).

Chegamos assim, a partir da análise das descrições que os agentes envolvidos fazem das

performances em que participam ou não participam, a diferentes visões daquilo que é ou,

pelo menos, daquilo que não é, ou não deve ser, uma jam session.

Ora, mas como já referimos no princípio deste trabalho, se é verdade que nos encontramos

perante um cenário onde existem ou coexistem diferentes concepções ou definições daquilo

que uma jam session é, também é verdade que nem todos os músicos são iguais e que, tal

como refere Pierre Bourdieu, devemos ir mais fundo, ao lugar objectivo que os agentes

sociais ocupam no espaço social – o campo jazzístico – para perceber tanto as práticas em

que estão envolvidos como as representações que detêm sobre esse espaço e as estratégias e

tomadas de posição que adoptam no sentido tanto da transformação como da conservação

das relações de força que em determinado momento o caracterizam.

Então, se nem todos os músicos são iguais, a primeira distinção que podemos estabelecer

entre eles – e que decorre exactamente do confronto entre aquilo que tinha sido sistematizado

no capítulo 2 deste trabalho e as entrevistas entretanto realizadas durante o processo de

investigação – é que, ao nível da sua vocação artística, isto é, da facilidade e precocidade

que tiveram em enveredar pelo percurso musical – e que pode ser explicativo do maior ou

menor nível de profissionalização que este atingiu até agora – encontramos duas situações

radicalmente distintas, consoante falemos dos músicos que participam nas jam sessions do

Speakeasy ou daqueles que participam nas performances organizadas pelo Hot Clube de

Portugal.

Como anteriormente dissemos (capítulo 2), é entre as famílias culturalmente mais

«abastadas» e com maior proximidade ao universo artístico que surge a maior parte dos

artistas e, sobretudo, dos artistas que conseguem atingir um elevado nível de

profissionalização na actividade que desenvolvem, pelo que seria portanto de esperar que

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fosse entre os músicos que participam nas jam sessions do Hot Clube – clube, como vimos,

mais reputado no que ao jazz diz respeito em Portugal – que surgisse uma maior incidência

de indivíduos oriundos de famílias artisticamente privilegiadas, que tivessem, em tempo útil,

suportado e incentivado os anseios e ambições artísticas/musicais dos seus descendentes.

Ora, tal parece ser, de facto, o caso, de acordo com a análise que aqui realizámos a partir dos

dados facultados pelo músico do Hot Clube que envolvemos durante o processo de recolha

de informação desta investigação.

Abstendo-nos de citar nomes, o que é certo é que o Entrevistado 3, músico que participa com

regularidade nas jam sessions organizadas pelo Hot Clube de Portugal, teve, desde cedo,

uma infância e uma formação muito vocacionadas para a prática musical, sendo os seus

progenitores detentores de um forte capital cultural e incentivadores, a tempo inteiro, da

«queda» para a música do filho - a mãe é professora do ensino secundário e o pai empresário

e músico profissional de formação clássica, ocupando actualmente um cargo directivo na

Orquestra Filarmónica do Porto (Entrevistado 3).

Conforme nos referiu o músico, foram de facto os seus pais que o incentivaram e ajudaram a

seguir uma formação musical desde muito cedo – 8 anos – formação essa que começaria

primeiro pelo ensino no Conservatório de Música, na área da percussão clássica, e que

passaria depois, já findado o curso, tanto pela aprendizagem autodidacta – através de

métodos musicais, vídeos – ou informal – participação em workshops e visualização e

participação de/em jam sessions – como pelo seu ingresso numa escola de música norte-

americana, a Drummers Colective e a convivência próxima com um músico profissional

norte-americano.

Ora, esta situação, esta experiência, contrasta muito fortemente com aquela que foi a

orientação artística dos músicos entrevistados que participam ou participavam nas jam

sessions do outro clube estudado, o Speakeasy.

De facto, falamos aqui de indivíduos que só mais tardiamente se dedicaram ao estudo da

música – o Entrevistado 1 começou a tocar, de forma autodidacta , aos 12 anos de idade e o

Entrevistado 2, numa Banda Filarmónica, aos 23, 24 anos – e que, talvez mais importante

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que isso, tiveram primeiro que lidar com alguns constrangimentos familiares ou financeiros

antes de se poderem dedicar mais profundamente ao estudo e à prática musical.

Em particular, o Entrevistado 1, tendo tido de facto algum contacto com familiares que se

dedicavam à música – os seus irmãos – teve no entanto que acatar as imposições parentais e

finalizar primeiro um curso superior na área da Educação Infantil antes de poder ingressar

numa escola vocacionada para o ensino da música jazz (Entrevistado 1).

Do mesmo modo, o Entrevistado 2, que como vimos começa ainda mais tarde na música,

sem ter qualquer background cultural ou artístico de referência, inicia-se no seu percurso

musical por via do contacto com amigos somente depois de tirar um curso superior em

Gestão de Empresas, situação que surge também contra a vontade dos seus pais.

Ora, esta questão – a da maior facilidade ou dificuldade da inserção dos agentes na prática

musical – tem uma influência profunda no modo como estes se encontram actualmente

envolvidos no meio musical – na sua actividade musical – e, inevitavelmente, no nível de

reputação e reconhecimento de actualmente gozam no campo jazzístico nacional.

Assim, o entrevistado 3, detentor de um percurso formativo bastante sólido e variado que

inclui a passagem por uma escola de música norte-americana, algo que é especialmente

valorizado pelos músicos que pontuam neste meio, esteve sempre ligado profissionalmente à

música, desenvolvendo actividades, desde novo, em orquestras sinfónicas, em grupos de

músicos reconhecidos no nosso pais, como professor de música em várias instituições, e,

mais actualmente, em conjuntos de jazz que integram músicos também muito reconhecidos

no universo jazzístico nacional (Entrevistado 3).

Os restantes músicos entrevistados, pelo contrário, embora estejam de facto envolvidos de

forma diferente no meio musical nacional, têm ainda um longo caminho a percorrer no

sentido de maior profissionalização e reconhecimento enquanto músicos, ou músicos de jazz.

No caso do entrevistado 1 essa inserção é muito limitada e, embora o seu desejo seja atingir a

profissionalização enquanto músico, a sua actividade musical é ainda muito precária,

encontrando-se reduzida à sua participação nas jam sessions e, muito esporadicamente, a um

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ou outro concerto que possa surgir. Vive, portanto, a partir da actividade que desenvolve

como educador de infância e estuda música nos tempos que consegue, diariamente,

consagrar para esse efeito.

Já no caso do entrevistado 2, a situação é um bocado diferente, tendo o músico passado

recentemente de participante «regular» na jam session para membro fixo de dois trios de

suporte a performances do género em dois clubes de jazz da cidade de Lisboa. Além disso,

toca ainda com dois grupos musicais, um de música brasileira e outro de música jazz, com os

quais dá alguns concertos, e é ainda professor particular de três estudantes de saxofone.

Em termos de perspectivas de futuro, este músico está relativamente inseguro, na medida em

que muito recentemente largou a sua antiga profissão numa ourivesaria para passar a

dedicar-se exclusivamente à actividade musical. O seu objectivo, além de continuar a estudar

e a progredir musicalmente, é arranjar mais alunos e dar mais concertos.

Esta situação intersticial, aliás, parece-nos poder até ser bastante explicativa de algumas

particularidades da informação cedida por este interlocutor, sempre muito reticente

relativamente às afirmações que proferia, como se o período de transição em que

actualmente se encontra em termos profissionais e, em particular, o processo ambicionado de

mobilidade social no universo musical e jazzístico nacional em que se encontra cometido, o

levasse a acautelar-se relativamente às posições que toma, como forma de não fechar

indefinidamente portas que, no fundo, se esforça actualmente por abrir.

Qualquer que seja o caso, o facto é que para além das diferenças que podemos encontrar

entre clubes e performances ao nível da prática da jam session, encontramos também

músicos situados diferentemente naquilo que seria o espaço social jazzístico português,

alojados em posições distintas consoante o capital simbólico – o nível de reconhecimento –

que possuem no actual estado do campo, e que, no fundo, parece constituir o verdadeiro

princípio a partir do qual poderemos compreender não só o fenómeno da participação

estruturada na performance, mas também o modo como os agentes se posicionam

relativamente àquilo que aquela performance é ou deve ser.

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

Conforme já referimos neste texto, o sistema de distribuição de um art world é um sistema

hierarquizado em termos reputacionais e a participação dos artistas nos canais de distribuição

mais reputados desse sistema – participação a partir da qual os membros desse universo

distinguem os verdadeiros profissionais dos meros amadores – depende sempre do nível de

reputação já granjeado por esses artistas (Becker, 1982: 95-97).

Neste sentido, o acesso às jam sessions que os diferentes clubes de jazz organizam não se faz

de uma forma aleatória ou indiscriminada, mas segue, em traços gerais, um padrão definido

pela correspondência entre a reputação dos músicos que procuram um sítio para tocar e a

reputação dos clubes que organizam as performances. A reputação é, em todo o caso, o que

diferencia as jam sessions e os músicos que nelas participam e a ordem social assim criada é

mantida por inúmeros mecanismos informais, entre os quais se destaca, talvez como o mais

eficaz de todos – porque por todos tacitamente aceite – a proibição implícita que impede os

músicos de participarem em performances que não estão ao seu nível.

Ora, já aqui vimos que a jam session constitui, por si mesma, um mecanismo importante para

a valorização dos músicos que nelas participam, além de poder proporcionar o

estabelecimento de contactos de grande importância para a actividade profissional destes

indivíduos. Se juntarmos a isto o facto, agora reconhecido, da participação diferenciada dos

músicos da performance em função do seu capital simbólico, então estaremos na presença de

um verdadeiro mecanismo de reprodução social, em que os músicos mais reputados, que

frequentam os clubes e as performances mais reputadas, onde pontuam as audiências mais

conhecedoras e apreciativas e, neste sentido, mais aptas a conceder valor, a reconhecer o

valor dos músicos presentes, são também aqueles que em melhor posição se encontram de

reproduzir um capital simbólico que, à partida, já era seu.

A questão das diferentes performances, ou das diferentes definições da performance que

coexistem no espaço jazzístico português, então, não podem ser entendidas fora das relações

de força que se estabelecem entre os agentes individuais – os músicos – e institucionais – os

clubes – que, com graus de reconhecimento diferentes nesse universo social específico,

competem para impor e valorizar os seus interesses particulares – reputacionais – como o

ponto de vista mais legítimo e, neste sentido, mais verdadeiro, mais valioso, nesse mundo.

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

Ir tocar a uma jam session é sempre um marcador simbólico significativo do estatuto que um

músico detém, em determinado momento no tempo, no campo jazzístico nacional, e aquilo

que os agentes dizem sobre aquilo que fazem (as performances em que participam) e sobre

aquilo que deixam de fazer (as performances em que não participam ou não podem

participar) constitui sempre uma forma de reprodução (no caso dos músicos mais reputados)

ou de subversão (no caso dos músicos menos reputados) do estigma assim «instalado».

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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Onde é que eu vou tocar esta noite? Pergunta mais complexa do que aparenta à primeira

vista, foi a questão que nos guiou durante o processo investigativo aqui exposto sob a forma

de Tese de Licenciatura, processo esse que se iniciou há já quase cinco anos atrás, ainda que

ao tempo cronológico – que poderia deixar antever uma investigação de grande envergadura

– não corresponda de facto ao tempo de trabalho efectivo consagrado pelos seus autores à

matéria em questão. Muita coisa aconteceu pelo caminho – emprego, desemprego, filhos,

realojamentos, maior dedicação, menor dedicação, hesitação, convicção, depressão e

salvação – e talvez, hoje em dia, as coisas da tese não pareçam tão problemáticas e

complexas como se afiguravam quando tudo isto começou.

O processo de trabalho foi moroso, intervalado por períodos de completo abandono

relativamente ao (muito) que, em determinadas alturas, havia ainda por fazer, e, em

contraponto, por grandes demonstrações de confiança, incentivo e, obviamente, ajuda, tanto

por parte da orientadora formal do trabalho – a Professora Elsa Pegado – como por parte do

outro professor da cadeira de Seminário-Estágio – o Professor Carlos Miguel. Aos dois

estamos muito agradecidos.

Mas voltando à questão que aqui colocámos em primeiro plano, (e agora sem títulos

pomposos) a do fenómeno da participação na jam session é, forçoso constatar, à luz do que

entretanto foi percorrido, que se no princípio a nossa ideia era estudar «qualquer coisa» a

respeito da jam session, o processo de investigação realizado nos levou a tomar a própria

performance enquanto objecto de estudo, ou seja, levou-nos a ter em linha de conta as

próprias maneiras pelas quais se produz e reproduz a definição social daquilo que aquela

performance é, num determinado momento no espaço e no tempo.

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O resultado, sempre inacabado face à constante mutabilidade que caracteriza a realidade dos

fenómenos sociais, remeteu-nos para a importância dos contextos e dos grupos sociais que,

organizados em campo – segundo a terminologia de Pierre Bourdieu – contribuem, através

das suas práticas e representações, para a construção das várias concepções que, no momento

em que procedíamos ao processo de recolha de informação, coexistiam, ainda que mais ou

menos antagonicamente, no espaço social jazzístico português.

A prática da jam session constituiu-se assim, à luz do aparato teórico deste modo resumido,

como uma prática simbólica, um marcador social eficiente, que permite distinguir, em termos

do valor de que seriam detentores, os agentes sociais que em Portugal competem pela

produção desse género musical que habitualmente designamos por música jazz.

Por outro lado, do lado das representações, a jam session assume então formas distintas,

consoante a posição que os agentes ocupam no campo jazzístico nacional em função da

quantidade de capital simbólico possuído – e que, no fundo, se encontra ligada a condições

sociais e culturais de partida muito precisas –, e que não são mais que formas de combate, ou

seja, tomadas de posição que visam legitimar e agregar valor às práticas em que esses

agentes se encontram envolvidos, deslegitimizando e desvalorizando, no mesmo processo,

outras práticas e outros grupos sociais.

O campo jazzístico constitui assim um espaço estruturado onde músicos e clubes de jazz se

encontram situados em função do nível de reconhecimento que possuem e a jam session

constitui – sem dúvida – um mecanismo de reconhecimento e consagração nos músicos que

participam nesse tipo de performances, mas também, e talvez sobretudo, um mecanismo de

distinção e de reprodução social das diferenças já estabelecidas e socialmente condicionadas

que separam esses músicos no espaço social jazzístico nacional.

Ora, não há dúvida que aqui reside um dos méritos deste trabalho. O de contribuir para

clarificar alguns dos pressupostos – muitas vezes acriticamente aceites e reproduzidos – que

são veiculados a respeito da jam session e da música e dos músicos que pontuam esse tipo de

performances, colocando-os em relação com os contextos e os grupos sociais em que são

produzidos. Além disso, temos consciência que a presente investigação constitui um dos

poucos trabalhos cientificamente orientados realizados sobre o reduzido panorama jazzístico

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nacional, universo cujo estudo, quando levado a cabo, tem ficado nas mãos de críticos,

músicos ou historiadores que, pelo menos até à data, não têm, de facto, produzido trabalhos

de grande profundidade analítica sobre o jazz e suas práticas em Portugal.

Por outro lado, é também evidente que o trabalho que aqui se apresenta, apesar de

relativamente bem estruturado, é limitado por uma série de fraquezas, nomeadamente ao

nível do processo de recolha empírica e do número de agentes musicais – músicos –

envolvidos nesse processo, o que de alguma forma limitou também a análise e discussão dos

resultados assim obtidos.

Além disso, e como alguma da informação compilada já deixava antever, muita coisa pode

ter mudado, desde então, no panorama jazzístico nacional. Hoje em dia há mais escolas de

jazz, mais músicos, mais professores de música e, em particular – e como um dos agentes

institucionais que envolvemos no processo investigativo já referia – parece que se têm vindo

a quebrar algumas das barreiras mais significativas da jam session, nomeadamente a que diz

respeito à participação de músicos mais novos e, sobretudo, menos reputados, nas

performances dos clubes, ou melhor, do clube mais consagrado e consagrativo do país – o

Hot Clube de Portugal.

Ficam portanto abertas as portas a novos desenvolvimentos ao nível da análise do fenómeno

da jam session, esperando nós, agora relativamente ao percurso já percorrido, e em jeito

conclusivo, que este seja demonstrativo das capacidades dos seus autores em mobilizar de

forma pertinente as teorias, metodologias e técnicas mais relevantes à resolução do problema

sociológico então colocado.

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Page 67: ONDE É QUE EU VOU TOCAR ESTA NOITE · Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias TESE DE LICENCIATURA EM SOCIOLOGIA Cadeira de Seminário-Estágio, 4º ano ONDE É QUE EU

Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?

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