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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE L ETRAS OMINA MORTIS IVLIORVM CLAVDIORVM EXPRESSÃO DA MENTALIDADE RELIGIOSO-CULTURAL E DA MEMÓRIA COLECTIVA ROMANA Rúben de Castro Dissertação de Mestrado em História Especialidade em História Antiga 2017

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  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    OMINA MORTIS IVLIORVM CLAVDIORVM

    EXPRESSO DA MENTALIDADE

    RELIGIOSO-CULTURAL E DA MEMRIA

    COLECTIVA ROMANA

    Rben de Castro

    Dissertao de Mestrado em Histria

    Especialidade em Histria Antiga

    2017

  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    OMINA MORTIS IVLIORVM CLAVDIORVM

    EXPRESSO DA MENTALIDADE

    RELIGIOSO-CULTURAL E DA MEMRIA

    COLECTIVA ROMANA

    Rben de Castro

    Dissertao orientada pelo Professor Doutor Nuno Simes Rodrigues e pelo Professor

    Doutor Miguel Requena Jimnez, especialmente elaborada para a obteno do grau de

    mestre em Histria, rea de especializao em Histria Antiga.

    2017

  • Aos que j no caminham entre ns, mas que nunca partiram, pela janela aberta para o

    seu passado.

  • AGRADECIMENTOS

    Professor Doutor Nuno Simes Rodrigues: obrigado pela orientao neste sinuoso

    caminho de busca incessante de perfeio.

    Professor Doutor Miguel Requena Jimnez: obrigado pela partilha de conhecimento e

    crena.

    Professora Doutora Leonor Santa Brbara: obrigado pelo conforto e pela elaborao das

    tradues do grego.

    Professor Doutor Jos Neves: obrigado por me ensinar a pensar o que a Histria.

    Professor Doutor Daniel Alves: obrigado pelas ferramentas tecnolgicas.

    Professora Doutora Rosrio Laureano Santos: obrigado pelo ensino do latim.

    Ao meu Av, pilar da famlia.

    Ao meu Pai, pela confiana.

    Ao meu Irmo, razo de tudo.

    Para a minha me, meu regao de amor infinito.

  • Omina Mortis Iuliorum Claudiorum:

    expresso da mentalidade religioso-cultural e da memria colectiva romana

    Omina Mortis Iuliorum Claudiorum:

    expression of Roman religious and cultural mentality and colective memory

    Rben de Castro

    RESUMO

    Vrios autores antigos incluram nas suas obras uma srie de ocorrncias tidas

    enquanto omina mortis, pressgios de morte. A primeira dinastia imperial romana no foi

    excepo, autores como Suetnio, Don Cssio, Apiano, Plutarco ou Flvio Josefo

    fizeram com que a dinastia Jlio-Cludia chegasse aos nossos dias como um dos perodos

    mais ricos em omina mortis na histria do Imprio Romano. A presente Dissertao tem

    por objectivo o estudo dos elementos simblicos e dos constructos imagticos que do

    sentido aos pressgios da morte de Jlio Csar, Augusto, Tibrio, Calgula, Cludio e

    Nero. Trata-se assim de compreender o sentido dos portentos e o simbolismo dos

    elementos internos que constituem esses pressgios, procurando-se, no processo,

    demonstrar que os omina mortis em estudo so uma clara expresso da mentalidade

    religioso-cultural romana da poca e, outrossim, da memria colectiva desenvolvida para

    cada uma das figuras em estudo.

    Palavras-Chave: Roma Antiga Omina Mortis Dinastia Jlio-Cludia Mentalidades

    Simbolismo.

    ABSTRACT

    Several ancient authors included in their works a series of occurrences interpreted

    as omina mortis, death omens. The first Roman imperial dynasty wasnt an exception.

    Authors as Suetonius, Cassius Dio, Appian, Ovid, Plutarch or Flavius Josephus were

    essential in making that the Julio-Claudian dynasty could reach our days as one of the

  • richest periods of the history of the Roman Empire in omina mortis. The present

    Dissertation aims to study the symbolic elements and the imagetic constructs that give

    meaning to the death omens of Julius Caesar, Augustus, Tiberius, Gaius Caligula,

    Claudius and Nero. Hence, its about understanding the meaning of the portents and the

    symbolism of the internal elements that constitute those omens, trying, in the process, to

    demonstrate that the omina mortis in study are an obvious expression of the Roman

    religious and cultural mentality at the time and, also, of the Collective memory developed

    around each of the characters in study.

    Keywords: Ancient Rome Omina Mortis Julian-Claudian Dynasty Mentalities

    Symbolism.

  • NDICE

    Introduo... 1

    Captulo 1: A Noite, os Sonhos e a Morte. 12

    1.1 A Noite, o Negro e os Eclipses... 12

    1.2 Sonhos....... 22

    1.3 Laruae e o universo da morte 25

    Captulo 2: Os animais e a entrada do selvagem na cidade 38

    2.1 Cavalos.. 40

    2.2 Ces... 45

    2.3 Corujas.. 49

    2.4 Outras Aves... 52

    2.5 Outros Animais.. 57

    Captulo 3: Relmpagos e Cometas.. 59

    3.1 Relmpagos... 59

    3.2 Cometas. 66

    Captulo 4: Terra e gua.. 71

    4.1 Quedas... 71

    4.2 Terramotos 76

    4.3 gua.. 78

    Captulo 5: Sangue, Fracasso Sacrificial e Ritualismo.. 84

    Captulo 6: Esttuas.. 95

    Captulo 7: Adivinhos, Orculos e Palavras pressagiadoras... 100

    7.1 Adivinhos 101

    7.2 O poder augural da palavra.. 108

    Captulo 8: Jpiter e o imperium principibus, a origem divina do poder imperial. 112

    8.1 Imperium e os deuses .. 113

    8.2 Augusto, electus diuorum 118

    8.3 Calgula uersus Jpiter. 122

    8.4 Nero, perda de favor divino e o fim de uma dinastia 132

    Captulo 9: Expresso da divinizao imperial nos omina mortis 138

    9.1 Diuus Iulius, protector de Roma.. 138

    9.2 Diuus Augustus, deus ante mortem ou post mortem?... 152

  • 9.3 Diuus Claudius, um imperador divinizado.. 162

    Concluso. 166

    Excurso: Reflexo e contributos adicionais dos omina. 174

    Fontes Consultadas. 187

    Bibliografia Crtica. 191

    Anexos Iconogrficos.. 201

  • 1

    Introduo

    gentem quidem nullam video neque tam humanam atque doctam neque tam

    immanem atque barbaram, quae non significari futura et a quibusdam intellegi

    praedicique posse censeat1

    (Cic. Div. 1.2)

    sober historians are interested primarily, sometimes exclusively, in the truth; they

    therefore usually ignore untrue stories [] in our attempts to find out what really

    happened, we should be careful not to suppress what Romans thought was

    happening2

    (Keith Hopkins)

    Vrios autores antigos incluram nas suas obras uma srie de ocorrncias tidas como

    omina mortis (i.e. pressgios de morte)3. Esses registos derivam da crena de que os

    deuses enviariam sinais do que o futuro reservaria Urbe e s suas figuras mais

    destacadas. A primeira dinastia imperial romana no foi excepo. Autores como Ovdio,

    Flvio Josefo, Plutarco, Suetnio, Apiano ou Don Cssio fizeram com que a dinastia

    Jlio-Cludia se constitusse como uma das mais ricas em omina mortis, na histria do

    Imprio Romano. Tamanha riqueza, aliada existncia de um vazio historiogr f ico

    gravoso no que diz respeito a estes portentos, leva-nos a tomar como objecto de estudo

    na presente Dissertao de Mestrado os omina mortis que os autores antigos registaram,

    relativamente a Jlio Csar, Augusto, Tibrio, Gaio Calgula, Cludio e Nero.

    A incluso de Jlio Csar numa Dissertao que tem por finalidade estudar os

    pressgios de morte da primeira dinastia imperial romana deriva no s da sua recorrente

    incluso entre os Csares por parte dos Romanos (note-se por exemplo a obra De Vita

    1 Traduo: De facto, no vejo nenhum povo, nem to humano e douto nem to inumano e brbaro, que no julgue que os acontecimentos futuros podem ser revelados e que h quem os compreenda e anuncie. 2 Pauline Ripat, Roman Omens, Roman Audiences, and Roman History, Greece and Rome (Second Series) 53, n. 02 (2006): 173. 3 Ainda que numa fase inicial vocbulos como praesagia, prodigia ou omina tivessem diferenas claras entre si, no perodo em estudo a l iteratura latina i lustra o desvanecimento dessa diferenciao por razo de um alargamento semntico dos vocbulos, vide Pimentel, Maria Cristina. Praesagia, prodigia, omina:

    da tnue fronteira entre religio e superstitio. II Colquio Clssico: Actas (1997): 233-254. Por essa razo, decidimos seguir a tradio historiogrfi ca de util izar o vocbulo omina para designar os pressgios imperiais a estudar, por oposio possvel util izao do vocbulo praesagia, menos comum na historiografia especializada. Note-se a clara predominncia do vocbulo omina em obras de especialidade,

    como por exemplo: Annie Vigourt, Les prsages impriaux dAuguste Domitien, 1a (Paris: De Boccard, 2001); Robin Stacey Lorsch Wildfang, Omina Imperii: The Omens of Power Received by the Roman Emperors from Augustus to Domitian, Their Religious Interpretation and Political Influence (UMI, 1997);

    ou Miguel Requena Jimnez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador romano, 1a (Madrid: Abada Editores, 2014).

  • 2

    Caesarum de Suetnio) mas, especialmente, da similitude tipolgica e temtica entre os

    seus omina mortis e os das restantes figuras em anlise.

    A formulao das propostas analtico-interpretativas dos omina mortis em estudo

    ser elaborada a partir de uma inequvoca admisso e aquilatao da centralidade do

    fundo religioso, cultural e literrio romano patente nesses pressgios e participativo do

    seu processo genesaco. Finda a nossa digresso investigativa ter-se- tido oportunidade

    de verificar que esses elementos internos constitutivos dos omina, os tornam uma clara

    expresso da mentalidade religioso-cultural e da memria colectiva romana.

    Ao longo da nossa Dissertao tambm almejaremos enquadrar os pressgios na

    discusso em torno da existncia ou no de uma teoria da origem divina do poder imperia l

    no perodo em estudo. Procuraremos verificar a existncia, e respectivas consequncias,

    de um potencial desencontro entre o tempo histrico real e o tempo da origem e

    desenvolvimento dos pressgios. Tencionamos enquadrar os portentos no estado da

    mentalidade religioso-cultural romana do perodo em causa, procurando, no processo, no

    confundir o que eram as crenas romanas nesta poca com o que haviam sido antes e

    seriam depois. Tentaremos compreender de que forma a divinizao de alguns dos

    imperadores ter, ou no, influenciado o constructo imagtico dos seus pressgios de

    morte. Procuraremos compreender o impacte da espacialidade de cada um dos portentos

    no seu simbolismo. Tentaremos retirar da as devidas ilaes para um melhor

    entendimento da dicotomia entre o espao sagrado e o espao profano, entre o espao

    intramuros e o espao para l do pomoerium de Roma. E, por fim, tentaremos enquadrar

    as concluses analtico- interpretativas dos pressgios em discusses e reflexes

    historiogrficas em torno de alguns dos temas da histria de Roma e da histria das

    mentalidades do mundo romano.

    Em suma, procuraremos demonstrar e aproveitar o potencial contributo dos omina

    mortis para as leituras historiogrficas de um passado que nos chegou incompleto, um

    passado que nos chegou em fragmentos subjectivos (cuja interpretao tambm ela

    subjectiva) e que, por isso mesmo, exige da comunidade historiogrfica o aproveitamento

    mximo de todos os pequenos e grandes contributos do que nos narrado pelas fontes

    antigas.

    Por razo dessa conexo entre omina mortis e o lauto fundo cultural, poltico,

    literrio e religioso que lhes ter estado subjacente, optmos por estruturar a nossa

    investigao num arqutipo essencialmente temtico. Esse modelo de estruturao,

  • 3

    pensamos, permitir aferir com maior rigor e profundidade os elementos simblicos

    basilares de cada um dos pressgios, e os constructos imagticos para os quais os omina

    remetiam a audincia romana.

    A adopo de um esquema discursivo baseado numa diviso temtica dos

    pressgios acarreta necessariamente a aparncia de uma maior artificialidade e

    subjectividade nossa investigao. Ainda assim, perante quer ao fundo cultural, mental,

    religioso e poltico que atribua sentido aos portentos em causa, quer ao elevado nmero

    de omina mortis existentes, no nos pareceu possvel nem proveitoso desenvolver uma

    anlise cronolgica ou pressgio a pressgio.

    Em linha com a nossa escolha metodolgica e discursiva, a presente Dissertao

    dividir-se- em nove captulos, dedicados anlise e justificao da presena e funo

    dos diversos elementos simblicos do domnio da mentalidade religioso-cultural e da

    memria colectiva encontrados nos omina mortis em estudo, elementos como a noite, a

    cor negra, tmulos, lmures, animais, relmpagos, cometas, quedas, terramotos, gua,

    sangue, desaire sacrificial, quebra ritual, esttuas, adivinhos, astrlogos, o poder augural

    da palavra, a origem divina do poder imperial e a deificao imperial.

    em virtude da riqueza e pluralidade simblica de cada um dos pressgios em

    estudo que deve ser entendida a anlise de cada um dos omina ao longo de vrios

    captulos. Num s pressgio, esto quase sempre mesclados elementos simblicos (e

    imagticos) distintos (ainda que complementares), da que possamos iniciar a anlise de

    um portento no captulo 1 da Dissertao, para que s a terminemos plenamente no

    ltimo. Nesse aspecto, os diversos captulos da presente Dissertao so complementares,

    seno mesmo codependentes.

    A seleco das fontes a analisar foi feita com base nos autores utilizados por

    estudos que tambm se tivessem dedicado aos omina romanos, tendo-se igualmente

    procedido consulta de obras de autores greco-romanos que se preocuparam com a vida

    e, sobretudo, com a morte dos imperadores. Ao nvel da recolha dos pressgios de morte,

    Suetnio e Don Cssio so os autores que mais se destacam, por razo de terem sido

    aqueles que maior nmero de omina mortis relatam para todos os imperadores. Ainda

    assim, apesar da centralidade que Suetnio e Don Cssio assumem, foram vrios os

    autores antigos por ns utilizados, quer para a recolha de omina mortis por eles narrados

    quer para o estudo das crenas, acontecimentos e supersties romanas por eles relatados.

  • 4

    De entre os autores que utilizmos4, os principais foram Ccero, Verglio, Nicolau de

    Damasco, Lvio, Ovdio, Sneca, Plnio-o-Velho, Flvio Josefo, Tcito, Plutarco,

    Suetnio, Floro, Apiano, Don Cssio e Jlio Obsequente.

    As propostas de traduo dos textos latinos includas na presente Dissertao so

    da nossa plena autoria. Ainda assim, dadas as nossas limitaes no que diz respeito ao

    grego, no pareceu proveitoso fornecer tradues prprias para essa lngua, da que todas

    as propostas de traduo dos textos gregos citados na presente Dissertao sejam da

    autoria da Professora Doutora Leonor Santa Brbara, que teve a gentileza de as elaborar

    propositadamente para o presente estudo.

    Qual a metodologia que adoptaremos na identificao e recolha dos omina mortis

    a estudar? Devemos incluir todos os pressgios de morte narrados pelos autores antigos

    e identificados como tal? Devemos incluir somente aqueles pressgios cujo valor

    portentoso aceite (tcita ou expressamente) pelos autores que os narram? O que fazer

    com as ocorrncias que determinado autor no considera pressgio de morte, apesar de

    ele prprio afirmar que houve outros que assim as consideraram? Estas questes

    estiveram sempre presentes aquando do processo de recolha dos pressgios de morte.

    Aps consulta dos critrios adoptados pelos historiadores que se dedicaram a esta

    temtica, e consequente reflexo acerca do rumo que queramos seguir, demos-lhes

    resposta da forma que achmos mais adequada5.

    Decidimos recolher como pressgios de morte todas as ocorrncias que tivessem

    sido identificadas como tal pelos autores que as narraram, independentemente da

    aceitao ou recusa desse valor portentoso por parte dos ditos autores. Se os autores

    antigos classificam determinada ocorrncia como pressgio de morte, ou se referem que

    houve quem lhes atribusse esse valor (ainda que eles pessoalmente no lho reconheam),

    essa ocorrncia por ns recolhida e analisada como omen mortis. Isto porque, a partir

    do momento em que nos dito que parte dos Romanos acreditava que determinada

    ocorrncia era pressagiadora da morte de um imperador, consideramos que isso tinha uma

    razo, um simbolismo e algo para dizer acerca das crenas romanas. Em dois casos,

    4 Para uma listagem completa dos autores e respectivas obras vide a l ista de Fontes Consultadas que inclumos no final da presente Dissertao. 5 A metodologia adoptada semelhante que Miguel Requena Jimnez util izou nos estudos de pressgios que elaborou. Vide por exemplo Miguel Requena Jimnez, El emperador predestinado: los presagios de poder en poca imperial romana, 1a (Madrid: Fundacin Pastor de Estudios Clsicos, 2001); Miguel

    Requena Jimnez, Lo maravilloso y el poder, 1a (Valncia: Universitat de Valncia, 2003); Requena Jimnez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador romano .

  • 5

    decidimos abrir uma excepo metodologia por ns definida, e justificaremos essa

    deciso aquando da anlise desses portentos.

    Ainda em relao s fontes, um outro elemento a ter em conta o distanciamento

    temporal entre os autores que narram os pressgios e o perodo de criao ou ocorrncia

    dos mesmos. Como no temos por objectivo descobrir o que realmente aconteceu, esse

    distanciamento temporal no , na esmagadora maioria dos casos, verdadeiramente

    problemtico, ainda que o tomemos em considerao aquando da elaborao de muitas

    das nossas anlises. Concluda a nossa investigao, veremos se esse distanciamento ou

    desencontro cronolgico realmente significativo para a interpretao do contributo

    historiogrfico dos pressgios que pretendemos aquilatar.

    A bibliografia utilizada tem como ncleo mais importante as investigaes que se

    tm vindo a fazer em torno da temtica dos omina em geral, e dos omina mortis em

    particular. Os contributos historiogrficos de autores como Miguel Requena Jimnez,

    Robin Stacey Lorsch Wildfang e Annie Vigourt revelam-se aqueles a que o nosso prprio

    estudo mais devedor. Fora desse ncleo bastante restrito de estudos e de um conjunto

    de obras de enquadramento da temtica da religio e adivinhao romana, a bibliogra f ia

    utilizada foi pensada em funo das exigncias impostas pelos omina mortis, aquando do

    seu processo de interpretao, estendendo-se por isso s mais diversas reas temticas

    cuja abordagem se revelou necessria.

    Impe-se agora a elaborao de um pequeno estado da arte, procurando sintetiza r-

    se a evoluo do tratamento historiogrfico dos omina ao longo do tempo, e procurando

    demonstrar a tendncia analtica na qual, na nossa opinio, a presente investigao

    enquadrvel.

    Herdeira de uma leitura anacrnica das obras de Ccero6, do cepticismo que

    algumas das fontes parecem partilhar em relao aos pressgios (em contradio com o

    reconhecimento prtico da sua importncia patente na profcua incluso de pressgios nas

    narrativas historiogrficas), e de concepes positivistas da Histria dominantes desde o

    6 Susanne Will iam Rasmussen, Ciceros stand on Prodigies: a non-existent dilemma?, em Divination and Portents in the Roman World, 1a (Gylling: Narayana Press, 2000), 924.

  • 6

    sculo XIX7, a historiografia tem adoptado, ao longo do tempo, uma postura tendente

    recusa de atribuio de valor histrico a este tipo de fenmenos da religio romana8.

    Ser assim no seguimento da recusa de atribuio de valor histrico aos pressgios

    que se d a regular tentativa de apresentao dos omina (por parte da historiogra f ia

    tradicional) como falsidades ou como meras expresses da irracionalidade pr-cientfica

    do mundo antigo9. So assim recorrentes as classificaes de tais fenmenos como meras

    fbulas destinadas a mitificar a histria10, como criaes literrias11, sendo ainda

    considerados meros meios de manipulao das massas e de propaganda poltica12.

    Destacam-se especialmente, a este respeito, os contributos dos estudos de F.

    Wagner13 e Franklin Krauss14, em virtude de serem das obras que melhor representam

    essa historiografia mais tradicional15. A obra de Krauss, reflexo da sua poca, toma os

    pressgios como mero reflexo da irracionalidade e ignorncia cientfica que dominaria as

    sociedades antigas, situao essa prontamente aproveitada pelas elites polticas para fins

    manipulativos. As suas leituras so regularmente criticadas pela historiografia dos

    ltimos anos16. Robin Stacey Lorsch escreve mesmo que a obra est full of errors and

    makes little attempt to explain the connections between a portent and its meaning17. A

    obra de Wagner peca quer por tomar os pressgios como um mero recurso literrio de

    7 Requena Jimnez, Lo maravilloso y el poder, 11. 8 Requena Jimnez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador

    romano, 6. 9 Para uma anlise mais aprofundada dos contributos desta historiografia menos recente recomendamos a consulta das Introdues das seguintes obras: Wildfang, Omina Imperii; Requena Jimnez, El emperador predestinado: los presagios de poder en poca imperial romana ; Requena Jimnez, Lo

    maravilloso y el poder; Requena Jimnez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador romano. 10 Como Laurent Mattiussi, La fonction du merveilleux dans lhistoriographie romaine de lempire, Storia della Storiografa XII (1988): 327. 11 Por exemplo Pierre Grimal, Tacite et les prsages, REL LXVII (1989): 17078; Fridericus Wagner, De ominibus: quae ab Augusti temporibus usque ad Diocletiani aetatem Caesaribus facta traduntur, 1a (Ienae: Typis Neuenhahni, 1898). 12 Wagner, De ominibus: Quae ab Augusti temporibus usque ad Diocletiani aetatem Caesaribus facta traduntur. 13 Ibid. 14 Franklin Brunnell Krauss, An Interpretation of the Omens, Portents, and Prodigies recorded by Livy,

    Tacitus, and Suetonius, 1a (Philadelphia: impresso privada, 1930), 7071. 15 Requena Jimnez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador romano, 6. 16 Ibid., 89; Wildfang, Omina Imperii, ixx. 17 Robin Lorsch Wildfang, Omina Imperii, ixx.

  • 7

    caracterizao moral dos imperadores18, quer pela falta de profundidade patente na sua

    diviso dos omina romanos19.

    A contribuio dos prodigia para a Histria de Roma Antiga esteve, durante

    bastante tempo, circunscrita ao domnio do estudo da Religio Romana. Mesmo nesta

    rea a sua anlise, como Requena Jimnez afirmou, ficou em grande parte limitada ao

    estudo de la adivinacin y como expresin de la ira divina20. Obviamente que no

    queremos, nem podemos em virtude das flagrantes provas em contrrio, minimizar o

    contributo da historiografia neste campo, que possibilitou o aprofundamento do

    conhecimento histrico em relao religio romana e a algumas das suas prticas

    divinatrias21.

    As obras que surgiram desta tradio historiogrfica de estudo do ritual religioso

    e prticas divinatrias ritualizadas so, ainda hoje, inultrapassveis e merecedoras de

    atenta leitura por parte de qualquer interessado na questo. Prova de tal o facto de se

    terem mantido obras de referncia no quadro de uma permanente produo historiogr f ica

    de elevado valor no campo da religio romana que se tem mantido at aos nossos dias22.

    Esta linha de investigao tem, no entanto, ignorado o potencial contributo do estudo dos

    prodigia para outras reas da Histria, como a Histria Cultural e a Histria Poltica, e

    at mesmo para outras vertentes da Histria Religiosa. Tem-se assim notado um certo

    desequilbrio no estudo dos fenmenos divinatrios da religio romana23.

    Ao longo das ltimas duas dcadas tm-se verificado algumas modificaes no que

    diz respeito atitude da comunidade acadmica relativamente ao estudo dos omina

    18 Wagner, De ominibus: quae ab Augusti temporibus usque ad Diocletiani aetatem Caesaribus facta traduntur, 8890. 19 Ibid., 8788. 20 Requena Jimnez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador romano, 283. 21 Nesta rea encontramos obras to inultrapassveis como Raymond Bloch, Les prodiges dans lAntiquit Classique, 1a (Paris: Presses Universitaires de Franche-Comt, 1963); ou Jean Bayet, La religion romana,

    1a (Madrid: Ediciones Cristiandad, 1984). 22 De entre as muitas obras a que poderamos aludir destacam-se por exemplo Bruce MacBain, Prodigy and Expiation: a Study in Religion and Politics in Republican Rome, 1a (Bruxelles: Latomus, 1982); Jos

    Manuel Aldea Celada, Religin, Poltica y Sociedad: los prodigia en la Roma Republicana, El futuro del pasado, n. 1 (2010): 279293; Clifford Ando, Roman Religion, Edinburgh Readings on the Ancient World (Edinburgh: Edinburgh University Press, 2003); Jean-Pierre Martin, Providentia Deorum: recherches sur certains aspects religieux du pouvoir imprial romain , 1a (Roma: cole Franaise de Rome, 1982); Federico

    Santangelo, Divination, Prediction and the End of the Roman Republic, 1a (Cambridge: Cambridge University Press, 2013); John Scheid, Les sens des rites. Lexemple romaine, em Rites et croyances dans les religions du monde romain, 1a (Vandoeuvres: Fondation Hardt, 2007), 3277; Jrg Rpke, A Companion

    to Roman Religion, 1a, Blackwell companions to the ancient world (Oxford: Blackwell Publishing, 2007). 23 Wildfang, Omina Imperii, 9.

  • 8

    romanos. Esse surgimento de novas perspectivas analticas facilmente perceptvel na

    introduo de uma das principais obras neste campo24. A, Miguel Requena Jimnez

    demonstra uma predisposio para analisar os pressgios luz da mentalidade religioso-

    cultural e da memria colectiva, no se limitando essa anlise a uma tentativa de

    compreender quer a realidade ritual e institucional dos fenmenos divinatrios, quer o

    significado da sua existncia para a religio romana. O foco muda, e passa a estar nos

    elementos internos dos omina, e na utilizao da sua anlise no processo de compreenso

    dos elementos simblicos que, para os Romanos, poderiam definir a carga portentosa de

    cada ocorrncia.

    Estas alteraes na comunidade historiogrfica parecem ser, ainda assim,

    meramente graduais e parciais, existindo um muito reduzido volume de produo

    historiogrfica que incorpore estas novas perspectivas no estudo dos omina.

    Verificou-se, ainda assim, o surgimento (ao longo das ltimas dcadas) de obras

    e estudos que analisam os omina romanos de uma forma inovadora, e que vieram

    estabelecer uma ruptura com a tradio historiogrfica do passado. De entre este limitado

    conjunto de historiadores da Roma Antiga, destacam-se nomes como os de Miguel

    Requena Jimnez25, Annie Vigourt26, David Engels27, Gregor Weber28 e Robin Stacey

    Lorsch29.

    Os estudos dos autores mencionados tm vindo a modificar o paradigma

    historiogrfico de posicionamento relativo anlise dos pressgios. Merecedor de

    destaque o facto de cada um desses historiadores analisar os omina de forma

    substancialmente diferente dos restantes. Miguel Requena Jimnez , de todos eles, o que

    mais se especializou no estudo dos omina que nos foram legados pelos autores clssicos,

    tendo uma produo historiogrfica notvel, de onde se salientam vrios artigos em

    24 Requena Jimnez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador romano. 25 Com especial destaque para obras como: Requena Jimnez, El emperador predestinado: los presagios de poder en poca imperial romana; Requena Jimnez, Lo maravilloso y el poder; Requena Jimnez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador romano . 26 Vigourt, Les prsages impriaux dAuguste Domitien. 27 David Engels, Das rmische Vorzeichenwesen (753-27 v. Chr.): Quellen, Terminologie, Kommentar, historische Entwicklung, 1a (Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 2007). 28 Gregor Weber, Kaiser, Trume und Visionen in Prinzipat und Sptantike, 1a (Stuttgart: Franz Steiner

    Verlag, 2000). 29 Wildfang, Omina Imperii; Wildfang e Isager, Divination and Portents in the Roman World.

  • 9

    publicaes peridicas30 e trs importantes obras em que analisa quer os omina imperii

    quer os omina mortis31. A sua leitura dos pressgios , na nossa opinio, a que representou

    um maior corte em relao historiografia do passado, focando-se na anlise aprofundada

    dos elementos simblicos internos dos omina enquanto meio de acesso mentalidade

    religioso-cultural e memria colectiva dos Romanos. De todos os autores este , sem

    qualquer dvida, aquele cujos objectivos e metodologias mais influenciaram o presente

    estudo. Requena toma os pressgios como criaes colectivas, construdas por intermd io

    de elementos religiosos, culturais e polticos dotados de uma carga simblica deveras

    relevante, e constituindo-se como criaes essencialmente populares de interpretao dos

    programas imperiais e da propaganda oficial32.

    Annie Vigourt, no tendo uma produo historiogrfica em torno da temtica dos

    pressgios to extensa quanto Requena Jimnez, , ainda assim, um nome de referncia,

    em grande parte devido sua obra (tese de Doutoramento) Les prsages impriaux

    dAuguste Domitien. Nesta obra de referncia, a historiadora francesa do Alto Imprio

    analisa os pressgios numa perspectiva que difere parcialmente das anlises de Requena.

    Enquanto Requena tem sempre em mente o estudo do que poderamos designar uma

    sociologia da concepo popular do poder33 na Roma Antiga, Annie Vigourt fornece

    outros contornos a essa anlise e elabora uma explanao alternativa no que diz respeito

    origem dos pressgios e respectiva funo na sociedade e vida poltica romanas, vendo

    nos pressgios uma origem essencialmente literria e, adicional e correspondentemente,

    radicada na elite romana (no que poderamos designar de memria colectiva das elites

    romanas).

    No caso de David Engels, destaca-se essencialmente a sua obra Das rmische

    Vorzeichenwesen (753-27 v. Chr.). Quellen, Terminologie, Kommentar, historiche

    Entwicklung. A obra um importante desenvolvimento relativamente a toda a teorizao

    e discusso em torno dos pressgios republicanos, no se constituindo, por razo das

    30 Como Miguel Requena Jimnez, Nron y los manes de Agripina, Historiae, n. 3 (2006): 83108; Miguel Requena Jimnez, Los caballos que lloraban a Csar, Liburna, n. 5 (2012): 143153; Miguel Requena

    Jimnez, Calico ac tenebra in circo, Athenaeum: studi di letteratura e storia dellantichit, n. 1 (2014): 150165; entre outros. 31 Requena Jimnez, El emperador predestinado: los presagios de poder en poca imperial romana ; Requena Jimnez, Lo maravilloso y el poder; Requena Jimnez, Omina Mortis / Presagios de muerte:

    cuando los dioses abandonan al emperador romano . 32 Vide as concluses das suas duas obras mais relevantes: Requena Jimnez, El emperador predestinado: los presagios de poder en poca imperial romana; Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses

    abandonan al emperador romano. 33 A forma como a sociedade romana via e interpretava o poder e a propaganda imperial.

  • 10

    diferenas de temporalidade em relao ao presente estudo, como uma referncia

    bibliogrfica de marcada importncia no contexto dos nossos objectivos.

    Tambm a obra de Gregor Weber, Kaiser, Trume und Visionen in Prinzipat und

    Sptantike, constitui-se um marco importante no estudo dos sonhos enquanto pressgios

    no mundo romano, procedendo elaborao de uma reflexo em torno dos sonhos no

    Imprio Romano e fornecendo uma proposta interpretativa para diversos sonhos que os

    Romanos consideraram omina imperiais.

    No caso de Robin Stacey Lorsch destacam-se duas contribuies34. Meno

    principal merece a sua tese de Doutoramento, Omina Imperii: The Omens of Power

    received by the Roman Emperors from Augustus to Domitian, their Religious

    Interpretation and Political Influence, na qual faz uma anlise do mesmo conjunto de

    pressgios que Annie Vigourt, dando especial ateno aquilatao da importnc ia

    poltica dos omina no contexto do regime imperial. Na tese desta autora, destaca-se o

    fornecimento de uma interessante proposta terica relativamente origem dos omina e

    da sua funo poltica35. Stacey Lorsch destaca-se pela defesa de que a maioria dos

    pressgios era essencialmente um produto da propaganda imperial, que os fabricava

    enquanto meios de legitimao poltica36, readaptando as leituras de alguma da

    historiografia tradicional, mas dando-lhes um novo vigor argumentativo assente numa

    anlise mais aprofundada e de maior validade cientfica.

    Fora deste conjunto de historiadores, o estudo dos pressgios tem-se mantido

    circunscrito ao domnio da religio romana e do seu papel na vida poltica. De entre os

    nomes a que poderamos aludir, destacam-se historiadores com investigaes

    especialmente interessantes para a presente Dissertao, tais como Pauline Ripat, Bruce

    MacBain ou Jos Manuel Aldea Celada. Decidimos destacar Pauline Ripat em virtude de

    o seu artigo Roman Omens, Roman Audiences, and Roman History37, no qual a

    historiadora desenvolve uma interessante e inovadora reflexo relativamente ao papel

    psicolgico que os omina desempenhavam no mundo romano na poca tardo-republicana.

    O estudo de Bruce MacBain, Prodigy and Expiation38, destaca-se pelas interpretaes

    inovadoras que fornece relativamente funo poltica dos pressgios na Repblica

    34 Wildfang, Omina Imperii; Wildfang e Isager, Divination and Portents in the Roman World. 35 Vide com especial ateno Wildfang, Omina Imperii, 147. 36 Ibid., ivv. 37 Ripat, Roman Omens, Roman Audiences, and Roman History, 155174. 38 MacBain, Prodigy and Expiation: a Study in Religion and Politics in Republican Rome.

  • 11

    Romana, enquanto o estudo de Aldea Celada, Los Prodigia en la Roma Republicana39,

    se destaca por fazer uma interessante anlise estatstica dos pressgios do perodo

    republicano, de modo a compreender a sua funo na sociedade romana.

    existncia de uma srie de obras que diferem ao nvel do tipo e objectivos do

    estudo que fazem dos pressgios, corresponde disparidades ao nvel das propostas

    avanadas relativamente origem e funo dos omina. Ao longo da anlise que

    desenvolveremos na presente Dissertao, tentaremos formular uma proposta alternativa

    de certa forma tendente conciliao das teorias de Miguel Requena Jimnez, Annie

    Vigourt e Stacey Lorsh Wildfang.

    Fica por agora terminado o enquadramento da investigao, cuja exposio se

    segue, bem como o consequente reconhecimento da importncia dos autores

    supramencionados na presente Dissertao, tanto ao nvel da metodologia de investigao

    como ao nvel da tipologia analtica.

    Iniciemos ento a tarefa proposta e esperemos ter atingido os nossos objectivos

    no fim desta jornada.

    39 Aldea Celada, Religin, Poltica y Sociedad: los prodigia en la Roma Republicana.

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    Captulo 1: A Noite, os Sonhos e a Morte.

    Ao longo das prximas pginas, teremos a oportunidade de analisar a presena

    nos omina mortis de uma srie de elementos interligados e interdependentes, como a

    noite, os eclipses, a cor negra, os sonhos e tudo o que podemos designar por universo da

    morte (as laruae, os tmulos e os elementos simbolicamente ligados s procisses

    funerrias). Consequentemente, dividiremos o presente captulo em trs subcaptulos

    diferentes, respectivamente intitulados da seguinte forma: A Noite, o Negro e os

    Eclipses, Os Sonhos e Laruae e o universo da morte.

    1.1 A Noite, o Negro e os Eclipses

    Arma ferunt inter nigras crepitantia nubes / terribilesque tubas auditaque cornua

    caelo / praemonuisse nefas; solis quoque tristis imago / lurida sollicitis praebebat

    lumina terris. / Saepe faces visae mediis ardere sub astris, / saepe inter nimbos

    guttae cecidere cruentae. / Caerulus et vultum ferrugine Lucifer atra / sparsus erat,

    sparsi Lunares sanguine currus. / Tristia mille locis Stygius dedit omina bubo, /

    mille locis lacrimavit ebur, cantusque feruntur / auditi sanctis et verba minantia

    lucis. / Victima nulla litat magnosque instare tumultus / fibra monet, caesumque

    caput reperitur in extis. / Inque foro circumque domos et templa deorum / nocturnos

    ululasse canes umbrasque silentum / erravisse ferunt motamque tremoribus urbem40

    (Ov. Met. 15.783-798)

    Solem quis dicere falsum / audeat. Ille etiam caecos instare tumultus / saepe monet

    fraudemque et operta tumescere bella. / Ille etiam exstincto miseratus Caesare

    Romam, / cum caput obscura nitidum ferrugine texit / inpiaque aeternam timuerunt

    saecula noctem. / Tempore quamquam illo tellus quoque et aequora ponti /

    obscenaeque canes inportunaeque volucres / signa dabant. Quotiens Cyclopum

    effervere in agros / vidimus undantem ruptis fornacibus Aetnam / flammarumque

    globos liquefactaque volvere saxa! / Armorum sonitum toto Germania caelo / audiit,

    insolitis tremuerunt motibus Alpes. / Vox quoque per lucos volgo exaudita silentis /

    40 Traduo: No cu, armas crepitantes entre as negras nuvens e terrveis trompetas ouvidas

    prenunciando a nefasta ocorrncia. Tambm uma triste imagem do sol dava terra tremeluzente uma luz l vida. Frequentemente foram vistas tochas a arder entre as estrelas, e frequentemente gotas de sangue caram durante chuvas torrenciais. O Sol tornou-se negro com o seu rosto negro avermelhado. A carroa lunar salpicou-se de sangue. Tristemente a coruja deu maus portentos em mil locais, o marfim [as

    esttuas] chorou em mil locais, e palavras ameaadoras foram proferidas em florestas sagradas. Nenhuma vtima deu bons portentos e os fi lamentos avisaram de grandes tumultos iminentes, e foi encontrada cortada a parte principal de algumas das entranhas. No frum, e ao redor das casas e dos templos dos

    deuses, os ces nocturnos uivaram e as sombras [i.e. lmures] silenciosas erraram [i.e. vaguearam], e a cidade foi sacudida por tremores de terra.

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    ingens et simulacra modis pallentia miris / visa sub obscurum noctis, pecudesque

    locutae, / infandum! sistunt amnes terraeque dehiscuntet / maestum inlacrimat

    templis ebur aeraque sudant. / Proluit insano contorquens vertice silvas / fluviorum

    rex Eridanus camposque per omnis / cum stabulis armenta tulit. Nec tempore eodem

    / tristibus aut extis fibrae adparere minaces / aut puteis manare cruor cessavit et

    altae / per noctem resonare lupis ululantibus urbes. / Non alias caelo ceciderunt

    plura sereno / fulgura nec diri totiens arsere cometae41

    (Verg. G. 1.463-488)

    Os dois excertos com que decidimos dar incio ao presente subcaptulo enumeram

    uma srie de portentos que tero sido tidos como pressagiadores da morte de Jlio Csar

    (no caso de Ovdio), ou como prodgios post mortem relativos s consequncias nefastas

    que da adviriam para a comunidade (no caso de Verglio). Em qualquer dos relatos

    poticos desses pressgios est omnipresente a noite. Para os Romanos, a noite era o

    cenrio ideal para o decorrer dos omina mortis, da que trinta dos pressgios de morte da

    primeira dinastia imperial decorram durante esse perodo.

    Os dois excertos transcritos ilustram o facto de essa omnipresena cnica no se

    assumir como elemento simblico central, entenda-se, a presena da noite no nem o

    nico nem (na maioria dos casos) o principal elemento atributivo de sentido nefasto aos

    diversos omina mortis. Ainda assim, essa dimenso cnica no deixa de ser contributiva

    para o simbolismo nefasto dos prodgios, da que Ovdio refira as nuvens negras, o sol

    que deu terra uma fraca luz (neste caso no nos remete especificamente para a noite ,

    mas sim para o escurecer do dia), Saepe faces visae mediis ardere sub astris (sob as

    estrelas, i.e. durante a noite), o facto de a lua aparentar estar salpicada de sangue, o uivo

    nocturno dos ces ao redor do forum, o vaguear nocturno silencioso das umbrae (i.e.

    41 Traduo: Quem se arrisca a acusar o sol de falsidade? Ele ainda recentemente advertiu para os invisveis tumultos iminentes e para a fraude e secretismo do fermentar da guerra. Aquele infeliz, morto

    Csar, quando tapou a cabea brilhante com uma cor de ferrugem escura e eles temeram a noite eterna e os sculos mpios. Tempo durante o qual tambm a terra, as profundezas do mar, ces mpios e as aves inoportunas davam portentos. Quantas vezes contemplamos o Etna a transbordar fogo e fumo para os

    campos de Ciclope e a lanar globos de fogo e pedra derretida. Ouviu-se o rudo das armas no cu por toda a Germnia, inslitos tremores abanaram os Alpes. Ouviu-se uma poderosa voz pelas silenciosas florestas sagradas, plidas sombras vaguearam surpreendentemente sob a obscura noite, e, ocorrncia portentosa, as ovelhas falaram! As correntes detiveram-se e a terra abriu-se, o marfim chorou nos

    templos e o bronze suou. Erdano, senhor dos rios, arrasou florestas e pela plancie arrastou animais e estbulos. Nessa altura, fibras ameaadoras de nefasto portento no deixaram de aparecer nas entranhas dos animais, sangue transbordou dos poos, e as cidades construdas em locais elevados no deixaram de

    ressoar com o uivar de lobos durante a noite. Nunca noutra altura caiu maior nmero de raios do cu lmpido, nem to frequentemente brilharam cometas funestos.

  • 14

    lmures), a coruja que deu funestos pressgios em mil locais42, ou os tremores de terra

    que abalaram Roma durante a noite. Tambm Verglio remete a audincia para essa

    dimenso cnica nefasta da noite e da escurido ao narrar o eclipse do sol (cum caput

    obscura nitidum ferrugine texit inpiaque aeternam timuerunt saecula noctem), ao referir

    a audio de uma voz portentosa e o vaguear dos lmures sub obscurum noctis, e ao

    descrever o uivo dos ces per noctem.

    A noite e a escurido tambm servem de cenrio a variadssimos dos pressgios

    de morte que nos foram legados por autores como Nicolau de Damasco43, Veleio

    Patrculo44, Plutarco45, Apiano46, Suetnio47 e Don Cssio48. De todos os imperadores

    estudados, somente para Cludio no existem omina mortis a decorrerem num contexto

    nocturno ou em contexto de escurecimento do sol (causado quer pelo anoitecer quer por

    um eclipse). Todas as outras figuras estudadas os tm.

    No caso de Jlio Csar ( excepo dos j mencionados prodgios narrados por

    Ovdio e Verglio) os autores antigos referem o chocalho nocturno das armas de Marte49,

    o virar de Csar para o sol poente que havia ocorrido imediatamente antes do seu

    assassnio50, os sonhos de Calprnia51 e o sonho do prprio Csar52.

    Relativamente a Augusto, Suetnio refere o incio de uma viagem martima

    durante a noite53 e Don Cssio menciona a ocorrncia de um eclipse solar54.

    Em relao a Tibrio, Suetnio narra quer o sbito reacender das brasas frias que

    estavam no seu quarto (e o seu consequente arder intenso durante toda a noite) quer o

    sonho do imperador com Apolo55.

    42 Os mochos/corujas so animais marcadamente nocturnos. a sua dimenso nocturna que explica a

    interpretao do seu aparecimento e, especialmente, do seu pio como algo nefasto, crena que alis transversal a uma srie de culturas antigas. Vide a esse respeito a anlise que fazemos no captulo 2 da presente Dissertao da presena de corujas nos omina mortis da dinastia jlio-cludia. 43 Nic. Dam., Vit. Caes. 24. 44 Vell. 2.57.2. 45 Plut. Caes. 63. 46 App. BC. 2.16.115. 47 Vide alguns dos pressgios nos seguintes excertos: Suet. Iul. 81; Aug. 98; Tib. 74; Cal. 57; Nero 46. 48 Vide e.g. D.C. 44.17.1-2; 56.29.3. 49 D.C. 44.17.2. 50 Nic. Dam., Vit. Caes. 24. 51 Vell. 2.57.2; Plut. Caes. 63; App. BC. 2.16.115; Suet. Iul. 81; Nic. Dam., Vit. Caes. 23. 52 D.C. 44.17.1 e Suet. Iul. 81. 53 Suet. Aug. 97. 54 D.C. 56.29.3. 55 Suet. Tib. 74.

  • 15

    No caso de Gaio Calgula, so diversos os pressgios ocorridos durante a noite,

    todos eles relatados por Suetnio: a queda de um raio no Capitlio de Cpua e de outro

    no palcio imperial, a realizao nocturna de uma pea teatral representativa do

    submundo, o sonho de um tal Cssio no qual havia sido expresso o descontentamento de

    Jpiter face conduta do imperador, e o prprio sonho de Gaio com Jpiter56.

    No que se refere a Nero, Suetnio relata a abertura das portas do Mausolu de

    Augusto e a audio de vozes que chamavam pelo imperador, a par de narrar quatro

    sonhos que o imperador havia tido57.

    Verificada a omnipresena cnica da noite em grande parte dos omina mortis em

    estudo, importa agora entender o porqu dessa realidade. Em todos estes pressgios, a

    presena da noite explica-se pelo seu simbolismo no imaginrio religioso-cultural greco-

    romano. Nas pginas que se seguem dedicaremos os nossos esforos anlise desse

    simbolismo e da forma como ele se conecta com a presena da noite nos omina mortis

    romanos.

    No mundo romano, a noite e a cor negra assumiam conotaes simblicas

    tendencialmente nefastas58.

    A noite era tida como um perodo de especial desproteco divina e,

    consequentemente, de fragilidade da comunidade. Como explica Requena Jimnez: El

    descanso nocturno de los dioses provoca que la humanidad se siente sola, abandonada

    temporalmente por las divinidades que la protegen durante el da59. Podemos deste modo

    falar de uma dicotomia temporal ao nvel religioso: o sol marca o dia como um perodo

    de proteco divina, por oposio noite, profcua em perigos60. Esta dicotomia

    inclusivamente verificvel na oposio entre um Olimpo repleto de luz e um submundo

    56 Para todos estes pressgios vide Suet. Cal. 57. 57 Vide Suet. Nero 46. 58 A l igao simblica subjacente relao entre esses dois elementos de difcil clarificao no que toca

    ao estabelecimento de uma relao causal/consequencial entre o carcter nefasto da noite e do negro. Era o simbolismo nefasto da noite que fazia com que a cor negra assumisse tambm conotaes simblicas negativas, ou seria o contrrio? Se tivssemos de optar por uma resposta, ela seria muito

    provavelmente tendente colocao da noite enquanto origem da negatividade assumida pela cor negra (a noite como fonte de todos os perigos desde a pr-histria parece-nos um bom ponto de partida). Ainda assim, o nosso estudo no tem por objectivo determinar que tipo de correlao existe entre a natureza nefasta da noite e da cor negra, tem por meta a mera anlise da presena de ambos os elementos nos

    omina mortis imperiais, dos contornos assumidos por essa presena e do porqu de tal participao contributiva para o simbolismo dos diferentes pressgios. 59 Requena Jimnez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador

    romano, 24. 60 Ibid., 1834.

  • 16

    negro e sombrio61. Pelo retrato que era feito do submundo como um local especialmente

    escuro e sombrio, pela tendente prtica da bruxaria e feitiaria durante a noite, pela

    potencial realizao dos funerais noite no perodo arcaico, e por ser durante a noite que

    as laruae normalmente apareciam (causas e consequncias do carcter tenebroso da

    noite), estabelece-se, na cultura romana, a assuno de contornos fnebres e nefastos

    relativamente noite, uma concepo que nos remete para cette liaison entre la morte et

    le noir62. A literatura greco-latina rica em exemplos no que diz respeito a essa srie

    de elementos nefastos que so associados noite, com contributos de autores to variados

    quanto Homero63, Horcio64 ou Ovdio65.

    Hcate (associada a Trvia em Roma) exemplifica de forma magistral essa

    associao da noite ao universo da morte. Recordemos que Hcate era uma deusa inferna l,

    ligada morte (por ser a deusa das laruae), magia, s encruzilhadas, lua e noite (

    esse o perodo predilecto para o aparecimento dos lmures e noite que o culto deusa

    feito).

    A cor negra assume tambm um simbolismo que a dota de contornos

    essencialmente negativos e conectados com a morte. A ttulo exemplificativo, recordemos

    a associao da cor negra aos deuses ctnicos, morte, bruxaria e ao nefasto.

    A associao da cor negra aos deuses ctnicos simultaneamente directa e

    indirecta. Associao directa, por os deuses serem recorrentemente representados em tons

    negros e sombrios. Recordemos por exemplo o retrato que Apuleio66 faz de Mercrio67.

    Associao indirecta, pela ligao do negro ao culto dessas divindades ctnicas: s

    divindades celestes eram sacrificadas vtimas brancas, mas aos deuses ctnicos e aos dii

    inferii eram oferendadas vtimas negras68.

    61 Ibid., 45. 62 Bernard Moreux, La nui t, l ombre, et la mort chez Homre, Phoenix 21, n. 4 (1967): 239. 63 Vide Moreux, La nuit, l ombre, et la mort chez Homre. 64 Hor. S. 1.8.23-29. 65 Como se pode ver pelos pressgios transcritos aquando do incio do subcaptulo. 66 Apul. Met. 11.11. 67 Manuel Marcos Casquero, Supersticiones, creencias y sortilegios en el mundo antiguo (Madrid: Signifer Libros, 2000), 143. 68 Requena Jimnez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador romano, 55.

  • 17

    A associao da cor negra morte est patente, por exemplo, no negrume do

    submundo69 e dos lmures condenados a vaguear eternamente sem repouso70, bem como

    na provvel ligao do preto ao luto. A ligao do preto ao luto no de forma alguma

    unnime no seio da comunidade historiogrfica. Para o percebermos, basta recordarmos

    a obra de Manuel Marcos Casquero Supersticiones, creencias y sortilegios en el mundo

    antiguo e a sua afirmao de que Sin embargo, como apunta Portal, la Antigedad

    consagr el blanco a los muertos y lo convirti en color del luto71.

    Apesar da viabilidade de semelhante leitura, parece-nos que o artigo dedicado por

    Miguel Requena Jimnez discusso dessa temtica intitulado El color del luto en

    Roma apresentou argumentos suficientemente fortes para suportar a sua concluso

    essencial e, consequentemente, determinar a posio por ns assumida: o branco (pela

    sua ligao ao conceito de pureza) era sem qualquer dvida a cor com que os mortos (com

    a devida excepo de muitos dos escravos, indigentes e delinquentes)72 seriam vestidos;

    apesar disso, o preto seria a cor do luto, a cor com que os familiares e amigos do falecido

    se apresentavam no funeral como expresso do seu pesar73.

    So vrias as fontes antigas que nos remetem para a concluso de Requena

    Jimnez. Merecedora de meno , por exemplo, a referncia de Horcio de que os

    coveiros utilizavam roupa preta74. Tcito75 e Juvenal76 referem ambos a utilizao de

    roupa preta como expresso de pesar relativo morte de outrem (no caso de Tcito, ao

    referir-se reaco dos habitantes de Roma aquando da notcia da passagem do cortejo

    fnebre de Germnico)77.

    Um episdio ocorrido no ano de 89 d.C. tambm remete o leitor moderno para

    essa ligao da cor negra morte. O imperador Domiciano ter realizado um jantar para

    alguns senadores e cavaleiros romanos. O convvio decorreu numa sala totalmente

    69 Requena Jimnez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador

    romano, 45. 70 Ibid., 57. 71 Marcos Casquero, Supersticiones, creencias y sortilegios en el mundo antiguo, 145. 72 Miguel Requena Jimnez, El color del luto en Roma, Gerin 30, n. 12 (2012): 211. 73 Para uma anlise e argumentao aprofundada s em relao a esta temtica aconselhamos vivamente a consulta do artigo Requena Jimnez, El color del luto en Roma. 74 Hor., Ep., 1.7.3-7. apud Valerie Hope, Death in Ancient Rome: a Sourcebook, 1a (New York: Routledge

    Kegan & Paul, 2007), 103. 75 Tac. Ann. 3.2. 76 Juv. 3.213. 77 Tambm Ccero parece apontar para a util izao de roupa preta aquando da procisso funerria. Vide Cic. Vat. 30-32 apud Hope, Death in Ancient Rome: a Sourcebook, 103.

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    pintada de preto, com assentos, utenslios de mesa e comidas negras, e inclusive com os

    criados pintados de negro. Cada conviva viu o seu nome inscrito numa pedra semelhante

    a uma pedra tumular e o prprio imperador fez da morte o tema de conversa predilecto

    durante toda a refeio. Os convidados pensaram que a hora do seu fim havia chegado e,

    aps o jantar, tero ido at s respectivas residncias, onde tero esperado ser executados

    a qualquer momento, somente para virem depois a descobrir que tudo no teria passado

    de uma partida do imperador, para os fazer pensar que estariam prestes a ser executados 78.

    De todo este episdio, importa-nos salientar a adequao da cor negra natureza fnebre

    do jantar organizado por Domiciano. Essa adequao e contribuio da cor negra para to

    nefasto simbolismo s seria possvel pela ntima associao do preto morte.

    A associao da cor negra bruxaria tambm ela dificilmente negvel. Horcio

    estabelece essa ligao em duas obras distintas: nos Epodos79 e no Sermonum liber

    primus80.

    Alm da associao da cor negra s divindades ctnicas, ao mundo da morte e

    prtica de bruxaria, tambm se impe a verificao da ligao da cor negra a uma srie

    de conotaes nefastas na mitologia, literatura e inclusivamente nas prprias lnguas

    grega e latina81.

    Note-se que a lngua latina ha asociado todo lo relacionado con la muerte a los

    colores oscuros, y especialmente al negro82. Observe-se por exemplo a utilizao do

    termo atratus83 para designar especificamente as pessoas de luto. A aplicao de

    adjectivos como niger ou pullus para designar as vestes de luto. A aplicao do adjectivo

    ater por parte de Proprcio s togas vestidas aquando dos funerais84. A utilizao da

    expresso atrata plebs por Tcito para designar aqueles que assistiram passagem do

    78 D.C. 67.9. 79 O autor latino coloca quatro bruxas (Candia, Sgana, Veia e Flia) a i nvocar os poderes infernais por intermdio de todo o tipo de elementos negros e nocturnos. Vide Marcos Casquero, Supersticiones,

    creencias y sortilegios en el mundo antiguo, 143. 80 Horcio volta a representar Candia (acompanhada por Sgana) envolta num manto negro, despedaando uma ovelha de l escura e deixando o seu sangue correr para uma fossa para fazer emergir

    das profundidades os espritos subterrneos. Vide Hor. S. 1.8.23-29. Como Marcos Casquero notou, este ltimo episdio faz lembrar a cena homrica na qual Ulisses convoca Tirsias e os espritos dos mortos, deixando escorrer sangue negro de animais sacrificados para um buraco que ele prprio havia escavado. Vide Od. 11.36 ff. apud Marcos Casquero, Supersticiones, creencias y sortilegios en el mundo antguo , 143. 81 Marcos Casquero, Supersticiones, creencias y sortilegios en el mundo antiguo , 111. 82 Requena Jimnez, El color del luto en Roma, 212. 83 Termo derivado de ater, que se pode traduzir por negro, preto, escuro ou sombrio, sendo igualmente

    passvel de ser traduzido com o sentido de horrvel, funesto ou sinistro. 84 Prop. 4.7.28.

  • 19

    cortejo fnebre de Germnico85. A famosa frase de Juvenal na qual nos diz que o castigo

    infligido queles que vivem muito tempo envelhecer vestidos de preto (et nigra ueste

    senescant86). A utilizao da expresso Dies Ater para designar o dia em que falece uma

    pessoa87 e Dies Atri para designar os dias nefastos do calendrio romano88 (que tambm

    eram contabilizados com pedras negras89).

    Perante tudo isto, torna-se facilmente compreensvel a presena do negro e da

    noite em vrios dos pressgios de morte tratados, a qual transversal a praticamente todos

    os autores clssicos.

    A reduo da luz era tambm ela tida como pressgio nefasto90. em

    consequncia disso que, na literatura latina, se verifica o entendimento dos eclipses

    (lunares ou solares) como algo negativo91. Esta leitura nefasta no se limitava aos eclipses,

    estendendo-se a qualquer tipo de escurecimento temporrio da luz, fenmeno que nos

    alerta para o facto de, no mundo romano, todo o escurecimento da luz, transitrio ou

    permanente, evocar sentimentos semelhantes aos da noite92. em funo disso que

    devemos entender a presena dessa tipologia de fenmeno natural em alguns dos omina

    mortis da primeira dinastia imperial romana. Ovdio conta que um dos pressgios que os

    deuses tero enviado para assinalar a morte iminente de Csar ter sido o facto de o sol

    ter dado uma triste luz terra: solis quoque tristis imago / lurida sollicitis praebebat

    lumina terris93. Tambm Don Cssio lista entre os pressgios da morte de Augusto a

    85 Tac. Ann. 3.2.2. 86 Juv. 10.245. 87 Todos os exemplos que precedem esta nota de rodap so retoma dos de Miguel Requena Jimnez em El color del luto en Roma, 212. 88 M.S Broughall, The pattern of days in Ancient Rome, Greece & Rome 5, n. 15 (1936): 164. 89 Plin. Nat. 7.40. 90 Requena Jimnez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador romano, 42; Para um estudo em torno de um pressgio de morte de Cmodo que reflecte esse mesmo

    carcter negativo vide Requena Jimnez, Calico ac tenebra in circo. 91 Vide e.g. Naphtali Lewis, The Interpretation of Dreams & Portents in Antiquity, 2a (Mundelein: Bolchazy-Carducci Publishers, 2011), 150; Robert Parker, Miasma: pollution and purification in early greek religion , 1a (Oxford: Clarendon Press, 1983), 32; Requena Ji mnez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando

    los dioses abandonan al emperador romano , 4245; Requena Jimnez, Calico ac tenebra in circo. 92 Requena Jimnez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador romano, 42. 93 Ov. Met. 15.785-786. (Traduo: Tambm uma triste imagem do sol dava terra tremeluzente uma luz l vida).

  • 20

    ocorrncia de um eclipse solar: ,

    , 94.

    Igualmente meritrio de meno a existncia de dois omina mortis que so

    construdos com base na dicotomia simblica entre sol nascente e sol poente. Alguns dos

    omina imperii romanos consistiram na coincidncia do nascimento do sol com o

    nascimento do futuro imperador. Para o prprio Nero h um pressgio de poder

    representativo dessa associao entre o sol nascente e a predestinao prpura:

    95.

    em funo de tal simbolismo desses omina imperii que autores como Robin Stacey

    Lorsch Wilfang e Franklin B. Krauss produziram afirmaes como the rising sun and

    imperium were connected in the Roman mind96 ou by the time of the Empire the belief

    was fairly current that birth at sunrise was a favorable omen, portending power and

    glory97.

    Por oposio a essa conexo entre sol nascente e predestinao imperial, existem

    tambm alguns omina mortis que remetem para uma ligao entre o sol poente e o fim do

    imperium supremo de determinado princeps, entenda-se, a morte do imperador. Entre a

    lista de omina mortis das figuras em estudo, existem dois portentos construdos a partir

    desse simbolismo do sol poente. Nicolau de Damasco diz que antes de entrar para a

    reunio do senado, onde viria a ser assassinado, Jlio Csar havia-se virado para o sol

    poente, situao interpretada pelos ugures presentes como desfavorvel98. Um dos

    pressgios de morte de Tibrio torna ainda mais bvia a metfora do sol poente como

    representativo do ocaso da vida. Tcito narra esse omen mortis da seguinte forma: mox

    incertus animi, fesso corpore, consilium cui impar erat fato permisit, iactis tamen vocibus

    per quas intellegeretur providus futurorum; namque Macroni non abdita ambage

    occidentem ab eo deseri, orientem spectari exprobravit99. Tanto o pressgio de morte de

    94 D.C. 56.29.3. (Traduo: E todo o sol desapareceu e pareceu que a maior parte do cu se incendiava e as rvores ardentes pareciam cair por si). 95 D.C. 61b.2.1. (Traduo: Os raios de sol envolveram-no quando foi gerado, ainda antes da aurora, sem

    nenhuma aproximao clara do sol). 96 Wildfang, Omina Imperii, 194. 97 Krauss, An Interpretation of the Omens, Portents, and Prodigies recorded by Livy, Tacitus, and Suetonius, 7071. 98 Nic. Dam., Vit. Caes. 24. 99 Tac. Ann. 6.46. (Traduo: De nimo incerto e corpo enfraquecido deixou ao destino uma deciso de que era incapaz, mas no sem pronunciar algumas palavras pelas quais se depreendesse que profetizava

    o futuro, visto que repreendeu Mcron sem ambiguidade por abandonar o ocidente e voltar-se para o oriente).

  • 21

    Csar como o de Tibrio recorrem ao sol poente como smbolo da morte iminente do

    governante supremo de Roma. A ideia era: tal como o sol chega ao seu ocaso, tambm a

    chega a vida do imperator. A metfora no poderia ser mais bvia.

    Impe-se agora a anlise de um elemento simblico presente num omen mortis de

    Csar: a lua. Na biografia que escreveu de Jlio Csar, Plutarco relata da seguinte forma

    um dos pressgios da morte do ditador romano: , ,

    ,

    ,

    , ,

    100.

    Dificilmente poderemos considerar esta referncia lua () como uma mera

    liberdade literria. Plutarco no se contenta nem com a presena cnica da noite nem com

    uma breve referncia ao satlite terrestre. A lua assume um papel semi-activo no

    desenrolar de toda a cena, estando sobremaneira visvel ao ponto de a luz por si reflectida

    ser notada pelo prprio Csar, aquando da abrupta interrupo do seu sono.

    Como foi afirmado por Requena Jimnez101, a presena da lua neste pressgio

    deve-se ao facto de este satlite terrestre ter um simbolismo funerrio claro, quer pela sua

    ligao a Hcate (deusa infernal que, como j referimos, era tambm a deusa da lua), quer

    por ter sido tomada no mundo romano como um dos possveis destinos das almas dos

    mortos. Franz Cumont, em Recherches sur le symbolisme funraire des romains e Lux

    Perpetua, analisa em profundidade a ligao da lua morte e s teorias da imortalidade

    astral (o decorrer da existncia humana post mortem no sol e na lua ao invs do tradiciona l

    submundo greco-romano). Vinda do Oriente, essa concepo da imortalidade astral ou

    luni-solaire102, como Cumont prope design-la, foi importada primeiro para o mundo

    100 Plut. Caes. 63.5. (Traduo: Depois disto, estando ele a dormir, como costumava, junto da mulher, todas as portas e janelas do quarto se abriram ao mesmo tempo, agitado, simultaneamente, pelo rudo e pela luz da lua brilhante, apercebeu-se de que Calprnia dormia profundamente, produzindo durante o

    sono sons confusos e gemidos inarticulados, pois parecia que ela, tendo nos braos esse [marido] assassinado, o chorava). 101 Requena Jimnez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador

    romano, 36. 102 Franz Cumont, Lux Perpetua, 1a (Paris: Librairie Orientaliste Paul Geuthner, 1949), 182.

  • 22

    grego atravs de escolas filosficas como o estoicismo e (principalmente) o pitagorismo,

    alastrando posteriormente ao mundo romano103.

    Numa fase inicial, essa imortalidade lunissolar parece ter estado reservada aos

    indivduos heroicizados, mas, com o tempo, esse privilgio acabaria por se estender

    (ainda que seja aparente a sua especial aplicabilidade aos mortos ilustres)104. No nos

    possvel compreender o grau de transversalidade que a crena na imortalidade lunisso lar

    ter assumido no mundo romano. Apesar disso, possvel afirmar que essa era uma

    crena detentora de algum peso, quanto mais no fosse, nas classes de mais recursos e

    cultura, dado que estas legaram posteridade alguns testemunhos escritos e numerosos

    vestgios arqueolgicos que expressam essa crena na imortalidade lunar105.

    1.2 Sonhos

    Omen dream appear intermittently throughout Greco-Roman history and

    biography, and often form a part of a long list of omens of various kinds which were

    said to have foretold a great event106

    (Juliette Harrisson)

    O entendimento do sonho como veculo de transmisso de augrios divinos uma

    constante universal em diversas culturas e civilizaes antigas. A percepo de sonhos

    como omina mortis verificvel para um elevado nmero de imperadores, como Tibrio,

    Gaio Calgula, Nero, Galba, Adriano, Caracala, Constncio Galo e Constncio II107. Os

    omina mortis em estudo no fogem a essa tendncia. Nove dos pressgios analisados so

    efectivamente sonhos. Esse recurso regular ao sonho na construo dos pressgios de

    morte deve ser entendido a partir da forte associao, na cultura greco-romana, entre o

    sonho, a noite e a morte. Pensemos por exemplo na ligao genealgica que a mitologia

    103 Vide Franz Cumont, La lune sjour des morts, em Recherches sur le symbolisme funraire des romains, 1a (Paris: Librairie Orientaliste Paul Geuthner, 1942), 177252. 104 Cumont, Lux Perpetua, 176183. 105 Vide Cumont, La lune sjour des morts, 177252. 106 Juliette Harrisson, Dreams and Dreaming in the Roman Empire: Cultural Memory and Imagination (New York: Bloomsbury Academic, 2013), 98. 107 Requena Jimnez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador romano, 2127.

  • 23

    grega estabelece: o sono (Hypnos) e os sonhos (Oneroi) eram filhos de Nyx (noite) e

    irmos de Thanatos (morte)108.

    A presena de sonhos nos omina mortis em estudo coincide com sua presena em

    diversos outros casos da literatura latina. Como Juliette Harrisson nota, a literatura latina

    est repleta de relatos de sonhos, parte deles assumindo uma funo de pressgio109. Ao

    reconhecer-se um sonho como pressagiador do futuro est-se consequentemente a admitir

    a origem divina desse mesmo sonho, dado que s dessa forma era possvel a um mero

    mortal ter acesso aos acontecimentos vindouros. Como Ccero admitia110, os deuses

    pouco interesse teriam nos homens (ou acontecimentos, acrescentamos ns) comuns.

    Consequentemente, a ocorrncia de um sonho portentoso era um reconhecimento tcito

    da importncia do acontecimento por ele pressagiado111. A morte de um imperador era

    necessariamente um desses acontecimentos, da que nove dos pressgios em estudo

    correspondam a nove sonhos distintos.

    A presena de diversos tipos de sonhos112 na literatura latina dificilmente pode ser

    considerada surpreendente. H certamente alguma verdade na afirmao de Robert

    Turcan de que, ao acordar, o primeiro acto do romano era ponderar acerca dos seus

    sonhos, caso os deuses o tivessem contactado113. Apesar de Gregos e Romanos

    aparentarem ter tomado alguns sonhos como originrios dos deuses, muito poucos teriam

    considerado todos os sonhos como divinos. A importncia atribuda aos sonhos, e o

    reconhecimento da natureza portentosa e respectiva origem divina de alguns destes, est

    patente tanto na literatura114 como na existncia de profissionais e de obras com a

    exclusiva funo de fornecer interpretaes para os sonhos dos indivduos115.

    108 Hes. Th. 212 ff. 109 Harrisson, Dreams and Dreaming in the Roman Empire, 7693. 110 Cic. Div. 2.63.129. 111 Harrisson, Dreams and Dreaming in the Roman Empire, 106. 112 Veja-se, por exemplo, a diviso dos sonhos presentes na literatura antiga em message dreams e em symbolic dreams (a par das respectivas subdivises de cada uma dessas categorias consoante a sua funo) sugerida por Juliette Harrisson em Dreams and Dreaming in the Roman Empire, 88 ff. 113 Robert Turcan, The Gods of Ancient Rome: Religion in Everyday Life from Archaic to Imperial Times , 1a

    (New York: Routledge, 2001), 15. 114 Que, a partir do perodo de Augusto comeou a incluir com enorme regularidade relatos de sonhos. Vide Harrisson, Dreams and Dreaming in the Roman Empire, 79. 115 Para alm da existncia de rituais prprios destinados a escapar aos efeitos de um sonho nefasto. Vide Tib. 1.5.13-14.

  • 24

    Ainda assim, basta o cepticismo de autores como Aristteles116, Ccero117,

    Lucrcio118 e Petrnio119 para se entender que nem todos consideravam os sonhos um

    indicador vlido do futuro120, da a existncia de algumas comdias que ridicularizavam

    personagens excessivamente crdulas na importncia dos sonhos121. Como explica

    Juliette Harrisson These references seem to suggest that there were people who paid a

    bit too much attention to dreams and that most of the audience would make fun of such

    action122. Apesar disso, no mundo clssico os sonhos assumiam uma relevncia que no

    deve ser subvalorizada.

    So diversos os exemplos ilustrativos da pertinncia atribuda pelo mundo antigo

    aos sonhos, basta recordar que na Antiguidade tero existido pelo menos 26 tratados

    relativos metodologia de interpretao de sonhos (com destaque para as obras de

    Artemidoro), situao obviamente derivada da importncia dos sonhos na comunicao

    entre os deuses e os homens123. A existncia de to volumoso conjunto de obras dedicada

    interpretao de sonhos sobremaneira ilustrativa da omnipresena que estes

    assumiriam no mundo clssico. Alis, a diversidade do pblico-alvo dessas obras est

    inclusivamente patente no facto de no mundo romano as camadas possidentes tenderem

    elas mesmas a interpretar os seus prprios sonhos, dispensando os inmeros intrpretes

    profissionais de sonhos cujo ofcio floresceu no perodo republicano tardio e no perodo

    imperial inicial124.

    ento em consequncia da centralidade dos sonhos na mentalidade

    greco-romana; da aceitao generalizada de que alguns sonhos eram uma forma de

    contacto entre deuses e homens tendente a um fornecimento portentoso; e da crescente

    incluso de relatos de sonhos na literatura latina a partir do principado de Augusto125; que

    116 Harrisson, Dreams and Dreaming in the Roman Empire, 29. 117 Cic. Div. 2.72.148. 118 Lucr. 4.962ff. 119 Petr. Frag. 30 apud Musuril lo, Herbert. Dream Symbolism in Petronius Frag. 30, Classical

    Philology 53, no. 2 (1958): 108-110. 120 Harrisson, Dreams and Dreaming in the Roman Empire, 33. 121 Vide e.g. Ar. V. 122-124 e Men. Dysc. 407-418 apud Harrisson, Dreams and Dreaming in the Roman Empire, 158 e 159. 122 Harrisson, Dreams and Dreaming in the Roman Empire, 159. 123 Wildfang, Omina Imperii, 23. 124 Robert Ogilvie, The Romans and their gods in the Age of Augustus (New York: W. W. Norton and

    Company, 1970), 69. 125 Harrisson, Dreams and Dreaming in the Roman Empire, 79-82.

  • 25

    devemos entender o facto de nove dos portentos estudados126 serem sonhos dos

    imperadores, ou de indivduos com eles relacionados. Tentada a execuo do objectivo

    do presente subcaptulo, entender o porqu da presena de to elevado nmero de sonhos

    entre os omina em estudo, deixaremos para captulos posteriores a aquilatao do

    contedo simblico e imagtico desses sonhos, de modo a evitar a repetio de anlises

    e reflexes.

    1.3 Laruae e o universo da morte

    El temor a los muertos, a su presencia entre los vivos y a su relacin con stos,

    constituye uno de los temas ms repetidos en infinidad de leyendas y tradiciones

    populares de numerosas y variadas culturas127

    (Miguel Requena Jimnez)

    A citao com que decidimos abrir o presente subcaptulo ilustrativa do especial

    temor com que os Romanos encaravam grande parte do que dizia respeito ao universo da

    morte. Tudo o que rodeava a morte era poluente no mundo greco-romano, comeando no

    cadver em si e acabando em todos aqueles que com ele haviam estado em contacto

    directo, ou que com ele haviam partilhado o mesmo espao domstico128. Da a existnc ia

    de uma srie de ritos, tradies e restries no que diz respeito ao corpo do defunto e a

    quem com ele contactava129.

    Note-se, por exemplo, as restries relativas ao local de sepultura dos mortos

    (sempre fora das cidades, entenda-se, fora do espao dos vivos); as restries circulao

    e local de habitao dos cangalheiros e coveiros (que viam grandemente limitada a sua

    entrada na cidade130); a excluso daqueles que estavam de luto das cerimnias religio sas

    (com excepo das cerimnias de ndole funerria)131; a ausncia de contacto com os

    126 O sonho de Csar com Jpiter; o sonho de Calprnia relativo morte de Csar; o sonho de Tibrio com Apolo; o sonho de Calgula com Jpiter; o sonho de um tal Cssio com Jpiter; os sonhos de Nero com a sua esposa, com formigas aladas, com esttuas que lhe bloqueavam o caminho, e com a mutao do seu

    cavalo asturiano favorito num cavalo-macaco. 127 Requena Jimnez, Nron y los manes de Agripina, 89. 128 Relativamente a esta temtica recomenda-se vivamente a seguinte obra: Jack Lennon, Pollution and Religion in Ancient Rome, 1a (Cambridge: Cambridge University Press, 2014). 129 Vide Leandro Mendona Barbosa, Representaes do ctonismo na cultura grega (sculos VIII -V a.C.) (Faculdade de Letras (Universidade de Lisboa), 2014), 68; Lennon, Pollution and Religion in Ancient Rome, 14061; e Weber, Kaiser, Trume und Visionen in Prinzipat und Sptantike, 419. 130 Hope, Death in Ancient Rome: a Sourcebook, 90; Lennon, Pollution and Religion in Ancient Rome, 150. 131 Lennon, Pollution and Religion in Ancient Rome, 160.

  • 26

    cadveres por parte de algumas camadas da sociedade para as quais a poluio era

    considerada especialmente danosa (como as grvidas, alguns sacerdotes e os prprios

    deuses132); a marcao das casas em luto com uma coroa de cipreste133; e a existncia de

    uma srie de ritos destinados purificao da casa e dos seus habitantes (note-se, por

    exemplo, o facto de o familiar mais prximo purificar o patamar da porta da casa com

    trigo-vermelho aquando da remoo do corpo do defunto)134.

    O perigo que o defunto poderia representar no findava aquando da remoo fsica

    do seu corpo. Alm-tmulo, os mortos continuavam a assumir um claro potencial nefasto,

    cujos melhores representantes so os espritos errantes e vingativos de alguns dos mortos,

    apelidados pelos Romanos de lmures ou laruae.

    Para um morto se tornar um lmure, condenado a passar a eternidade a vaguear

    pelo mundo e a atormentar os que permaneciam vivos, era necessrio que tivesse havido

    algum tipo de perturbao impeditiva de uma passagem pacfica para o mundo dos mortos

    (como a no realizao dos ritos funerrios necessrios135; o sofrimento de uma morte

    violenta ou de um assassnio136; a mutilao do corpo post mortem137; ou a menor idade

    do falecido138)139.

    Os indivduos que haviam sido assassinados parecem ter tido na cultura romana

    uma especial predileco para atormentar os responsveis pela sua morte140. nessa linha

    132 Turcan, The Gods of Ancient Rome: Religion in Everyday Life from Archaic to Imperial Times , 2001, 32

    e 52-53. 133 Plin. Nat. 16.33. 134 Lennon, Pollution and Religion in Ancient Rome, 143144. 135 Cumont, Lux Perpetua, 22. 136 Graham Anderson, Greek and Roman Folklore: a Handbook, 1a (Westport: Greenwood Press, 2006), 125. 137 Requena Jimnez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador

    romano, 99. 138 mile Jobb-Duval, Les Morts Malfaisants: Larvae, Lemures, daprs le droit et les croyances populaires des romains, 2a (Paris: Editions Exergue, 2000), 38. 139 Mais do que uma predeterminao, os motivos que acabmos de enumerar parecem ter sido meras

    situaes possibilitadoras da transformao de um indivduo em lmure, isto dada a existncia de vrias personagens histricas cujas mortes se enquadraram em um ou em vrios desses requisitos , mas das quais no existe qualquer registo de se terem transformado em laruae. A condio de lmure tambm

    no parece ter sido tomada como definitiva; a correco da situao que havia estado na origem dessa transformao em larua parece ter sido considerada como suficiente para o apaziguamento do defunto. Note-se, a ttulo exemplificativo, os rumores de que Cal gula havia assombrado os jardins onde o seu cadver havia sido original e apressadamente sepultado, situao que ter sido revertida quando as irms

    do falecido imperador, retornadas do exl io, lhe fizeram as devidas honras fnebres. Vide Lennon, Pollution and Religion in Ancient Rome, 2014, 139. 140 Hope, Death in Ancient Rome: a Sourcebook, 240; Parker, Miasma: pollution and purification in early

    greek religion, 107; Requena Jimnez, Nron y los manes de Agripina, 93; Jobb-Duval, Les Morts Malfaisants: Larvae, Lemures, daprs le droit et les croyances populaires des romains, 102.

  • 27

    que devem ser interpretados dois sonhos de Nero, entendidos pelos autores antigos como

    pressagiadores da morte iminente do imperador. Narra Suetnio: numquam antea

    somniare solitus occisa demum matre uidit per quietem nauem sibi regenti extortum

    gubernaculum trahique se ab Octauia uxore in artissimas tenebras141.

    Seria normal, para um romano, a transformao quer de Agripina quer de Octvia

    (respectivamente me e esposa de Nero) em lmures vingativos. Tanto os

    contemporneos de Nero como os historiadores e bigrafos greco-latinos foram unnimes

    em imputar ao imperador a responsabilidade pelos assassnios de Agripina142 e de Octvia

    (recordemos a circulao, nesta altura, da tragdia Octavia que responsabilizava Nero

    pela morte dos dois nicos filhos de Cludio143). O facto de terem sido assassinadas de

    forma sangrenta, somado ntima ligao familiar que tinham com o seu assassino e o

    desrespeito pelos seus cadveres post mortem144, tornava natural que tanto Octvia como

    Agripina se tivessem tornado, no imaginrio romano, espritos vingativos destinados a

    atormentar o responsvel pelas suas mortes145.

    A temtica dos espritos vingativos para a qual o pressgio remete a audincia

    romana no est isolada de outros pressgios de morte. Antes de mais convm salientar

    que todos esses omina mortis nos quais aparecem lmures em busca de vingana

    pertencem a Nero, situao provavelmente derivada do facto de a este imperador ser

    imputada a responsabilidade por quatro mortes que o tornaram simultaneamente

    uxoricida (pelo assassnio de Octvia), fratricida (pela morte de Britnico, do qual era

    irmo adoptivo), matricida (pelo assassinato de Agripina) e parricida (pela morte de

    Cludio146), crimes tidos pelos Romanos como dos mais hediondos e poluentes.

    141 Suet. Nero 46.1 (Traduo: Nunca antes costumava sonhar, por fim, assassinada a me, sonhou que o leme da embarcao por si comandada lhe era arrancado, tendo sido arrasta do para as cerradas trevas pela sua esposa Octvia). 142 Vide as reaces pblicas ao assassnio de Agripina narradas por Suetnio (Suet. Nero 45) e Don Cssio

    (D.C. 61.16.1-2). 143 Octavia, 3.1.613 ff. apud Jobb-Duval, Les Morts Malfaisants: Larvae, Lemures, daprs le droit et les croyances populaires des romains, 102. 144 Suet. Nero 34; Tac. Ann. 14.9 e 14.64. 145 Requena Jimnez, Nron y los manes de Agripina, 96100. 146 Este homicdio, de todos os que referimos, o mais problemtico, dado que a culpa do alegado homicdio de Cludio recorrentemente imputada a Agripina, no a Nero. Ainda assim, alguns autores

    antigos no hesitaram em imputar a Nero parte da responsabilidade. Recordemos as palavras de Suetnio [Suet. Nero 33.1] Parricidia et caedes a Claudio exorsus est; cuius necis etsi non auctor, at conscius fuit, neque dissimulanter, ut qui boletos, in quo cibi genere uenenum is acceperat, quasi deorum cibum posthac

    prouerbio Graeco conlaudare sit solitus (Traduo: Ele comeou os parricdios e homicdios com Cludio, porque apesar de no ter sido autor da morte violenta deste, ao menos foi cmplice, e sem secretismo,

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    O prprio Nero parece ter vivido atormentado com o assassinato de Agripina (que

    havia assumido um papel central nos primeiros anos do principado do seu filho a um nvel

    pblico147, poltico148 e, supostamente, sexual149). Nero, segundo Suetnio e Don Cssio,

    acordava muitas vezes sobressaltado durante a noite, vtima de pesadelos com a sua me

    e com as frias ultrizes150, chegando a mudar de residncia, aterrorizado, por vrias

    vezes151, e tendo tentado comunicar ritualmente com o esprito de Agripina para a

    apaziguar152.

    O portento estabelece uma ligao simblico-imagtica com Agripina e Octvia,

    com a ltima, por ser esta quem arranca Nero do leme do barco (que parece corporizar o

    governo do imprio153) e que o arrasta para as artissimas tenebras (i.e. submundo), com

    a anterior, por Suetnio associar de forma bastante explcita o pressgio aos pesadelos

    que Nero ter tido aps a execuo da sua me. Em linha com essa dupla associao o

    pressgio constitui-se como uma representao simblica de vingana, entenda-se, da

    revanche de Octvia contra Nero, o homem responsvel pelo seu assassnio.

    Um outro omen mortis que nos remete para a vingana daqueles que haviam sido

    mortos por Nero tambm ele narrado por Suetnio, obseruatum etiam fuerat

    nouissimam fabulam cantasse eum publice Oedipodem exulem atque in hoc desisse

    uersu: , , 154. Se no pressgio anterior era Octvia

    que arrastava Nero para o submundo, neste portento a autoria de tal comportamento

    desforador estendida a Cludio e Agripina, duas outras vtimas do imperador.

    A esse expectante comportamento ultor dos mortos juntar-se-ia o facto de o

    parricdio e crimes semelhantes serem tidos enquanto verdadeiras ofensas aos deuses. Um

    porque posteriormente costumou, por intermdio de um provrbio grego, elogiar os cogumelos, nos

    quais Cludio havia ingerido o veneno, como o alimento dos deuses ). 147 Saliente-se por exemplo a sua incluso em numismas dos anos 54 e 55 d.C. [vide Miriam Griffin, Nero: the End of a Dynasty, 1a (London: B.T. Basford, 1984), 39]; a sua representao a coroar Nero no Augusteum de Afrodsias; ou o facto de, no primeiro dia do seu principado, Nero ter definido Optima

    Mater como palavra-passe da guarda pretoriana (vide Tac. Ann. 13.2; Suet. Nero 9). 148 Recordemos por exemplo o facto de lhe terem sido atribudos dois l ictores, reconhecendo -lhe a deteno de imperium (Tac. Ann. 13.2) ou a sua participao na diplomacia romana (Tac. Ann. 13.6; D.C.

    61.3.2). 149 Recordemos a denncia do desejo e prtica de i ncesto entre Nero e Agripina (vide por exemplo Suet. Nero 28 e D.C. 61.11-12). 150 Suet. Nero 34; D.C. 61.14.4. 151 D.C. 61.14.4. 152 Suet. Nero 34. 153 Weber, Kaiser, Trume und Visionen in Prinzipat und Sptantike, 449. 154 Suet. Nero 46.3 (Traduo: E alm disso foi notado que ltima pea por ele cantada em pblico foi dipo exilado e que terminou com o seguinte verso: esposa, me e pai ordenam-me que morra).

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    crime de to grande impiedade que estava sujeito vingana das Frias155. Crime to

    contranatura e poluente que era punido com um mtodo de execuo cuja singularidade

    j foi tida como representativa do desejo de evitar a extenso dessa poluio aos demais,

    no bastava que tal criminoso fosse fisicamente ostracizado da comunidade, era

    necessrio isol-lo da terra e da gua para que no as contaminasse156. Em funo da

    natureza nefasta dos crimes cometidos por Nero, no so s os lmures dos seus familiares

    assassinados que marcam presena nos seus omina mortis, tambm a prpria esposa de

    Pluto, deus do mundo dos mortos, que est presente (ainda que de uma forma

    essencialmente passiva): auspicanti Sporus anulum muneri optulit, cuius gemmae

    sculptura erat Proserpinae raptus157.

    Adicionalmente, Prosrpina era uma deusa do sexo feminino cujo culto era

    tambm ele essencialmente feminino, poder-se-ia mesmo dizer que era uma deusa mulher

    e das mulheres. Consequentemente, a ligao de Agripina e Octvia a Prosrpina (quer

    por serem mulheres quer por habitarem o reino dos mortos) no deve ser ignorada. O

    rapto de Persfone inscrito no anel que Esporo ofereceu a Nero no se limita a simbolizar

    a iminente ida de Nero para o submundo, relacionando-se, outrossim, com a temtica da

    vingana feminina, subjacente aos diversos omina mortis do ltimo princeps da primeira

    dinastia imperial romana que temos vindo a analisar. Tal como Agripina e Octvia

    empurravam Nero para a sua morte tambm Prosrpina participa nessa vendetta,

    conferindo- lhe (quer por ela prpria ser uma deusa, quer pela oferenda do anel ter

    ocorrido aquando da comunicao com o divino) contornos daquilo a que podemos

    chamar de retribuio divina.

    Os lmures no apareciam somente aos responsveis pelo seu sofrimento, da que

    qualquer apario de lmures entre os vivos fosse tomado como nefasto, remetendo para

    uma desordem do mundo necessariamente negativa para a comunidade ou para

    determinado(s) indivduo(s)158. Essa desordem s podia resultar do rompimento da pax

    deorum e consequente perda de proteco divina, proteco quer era essencial para a

    sobrevivncia e prosperidade de qualquer comunidade. nessa desordem (nefasta quer

    155 Tony Allan e Sara Maitland, Ancient Greece and Rome: Myths and Beliefs, 1a (New York: Rosen Publishing, 2012), 53. 156 Lennon, Pollution and Religion in Ancient Rome, 9496. 157 Suet. Nero 46.2. (Traduo: Esporo, tomando os auspcios, ofereceu-lhe um anel como presente, cuja pedra tinha esculpido o rapto de Pros rpina). 158 Vide o explorar dessa ideia em Requena Jimnez, Omina Mortis / Presagios de muerte: cuando los dioses abandonan al emperador romano, 2014, 2434.

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    pelas suas causas quer pelas suas consequncias) que devemos enquadrar um dos omina

    mortis de Jlio Csar: umbrasque silentum / erravisse ferunt159.

    O facto de as sombras silenciosas no terem aparecido a nenhum indivduo, mas

    sim a toda a comunidade,