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FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS DIANA NACUR NAGEM LIMA SALLES A SUCESSÃO CAUSA MORTIS DE QUOTAS DA SOCIEDADE LIMITADA PELO CÔNJUGE CASADO NO REGIME CONVENCIONAL DA SEPARAÇÃO DE BENS Nova Lima 2014

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  • FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS

    DIANA NACUR NAGEM LIMA SALLES

    A SUCESSÃO CAUSA MORTIS

    DE QUOTAS DA SOCIEDADE LIMITADA PELO CÔNJUGE CASADO

    NO REGIME CONVENCIONAL DA SEPARAÇÃO DE BENS

    Nova Lima

    2014

  • DIANA NACUR NAGEM LIMA SALLES

    A SUCESSÃO CAUSA MORTIS DE QUOTAS

    DA SOCIEDADE LIMITADA PELO CÔNJUGE CASADO NO REGIME

    CONVENCIONAL DA SEPARAÇÃO DE BENS

    Dissertação apresentada ao Curso de Pós-

    Graduação Stricto Sensu em Direito da Faculdade

    de Direito Milton Campos, como requisito parcial

    à obtenção do título de Mestre em Direito

    Empresarial.

    Área de concentração: Direito Empresarial

    Orientador: Professor Doutor Salomão de Araújo

    Cateb

    Nova Lima

    2014

  • SALLES, Diana Nacur Nagem Lima

    S168 s A sucessão causa mortis de quotas da sociedade limitada pelo cônjuge casado no

    regime convencional da separação de bens./ Diana Nacur Nagem Lima Salles – Nova Lima:

    Faculdade de Direito Milton Campos / FDMC, 2014.

    132 f. enc.

    Orientador: Prof. Dr. Salomão de Araújo Cateb

    Dissertação (Mestrado) – Dissertação para obtenção do título de Mestre, área de

    concentração Direito Empresarial junto a Faculdade de Direito Milton Campos.

    Referências: f. 122-130

    1. Regime da separação convencional de bens. 2. Vocação hereditária do cônjuge. 3. Sucessão causa mortis das quotas de sociedade limitada. 4. Contrato social. I. Cateb,

    Salomão Araújo. II. Faculdade de Direito Milton Campos III. Título.

    CDU 347.724 (043)

    347.627

    Ficha catalográfica elaborada por Emilce Maria Diniz – CRB – 6 / 1206

  • Faculdade de Direito Milton Campos – Mestrado em Direito Empresarial

    Dissertação intitulada: “A sucessão causa mortis de

    quotas da sociedade limitada pelo cônjuge

    casado no regime convencional da separação de

    bens”, elaborada por DIANA NACUR NAGEM LIMA SALLES para exame da banca constituída

    pelos seguintes professores:

    ________________________________________

    Prof. Dr. Salomão Araújo Cateb

    Orientador

    ________________________________________

    Prof. Dr.

    ________________________________________

    Prof. Dr.

    Nova Lima, ______,________________,2014 Alameda da Serra , 61, Bairro Vila da Serra – Nova Lima – Cep 34000-000 – Brasil. Tel/fax (31) 3289-1900.

  • A minha mãe e a minha avó Lucy,

    minhas inspirações na busca incessante pelo estudo e pelo trabalho.

  • AGRADECIMENTO

    Ao Gustavo, meu amor, meu apoio, meu amuleto, meu amparo, minha força, meu esteio, por

    entender que seria possível ter um casamento sólido mesmo tendo uma esposa nem sempre

    presente. Por me ajudar a superar o pesadelo do passado a cada vez que adentramos em uma

    estrada – o que, para este trabalho, ocorreu, aproximadamente, cento e noventa e duas vezes.

    Por, além de aceitar, incentivar minha incessante busca por conquistas que me permitam olhar

    para nossa trajetória e dizer “Valeu a pena”!

    A minha mãe e a minha avó, por todos os ensinamentos, os quais me permitiram enfrentar os

    obstáculos que sua repentina e destruidora partida me causou: sofrimento e aprendizados

    imensuráveis.

    Ao professor Salomão Cateb, que, mesmo no momento de maior dor, me ajudou a aprender e

    a me dedicar com paixão ao Direito das Sucessões.

    Ao “MM. Rafa”, parceiro de trabalho, confidente de vida, pelos inúmeros e incansáveis

    debates jurídicos, dentre os quais nasceu o tema ora estudado.

    A Deus, razão da dor e do aprendizado, da tristeza e da alegria, da derrota e da superação.

  • Todas as coisas, na Terra, passam.

    Os dias de dificuldades, passarão.

    Passarão também os dias de amargura e solidão.

    As dores e as lágrimas passarão.

    As frustrações que nos fazem chorar um dia passarão.

    (Chico Xavier)

    A saudade do ser querido que está longe, não, Chico! Não passará!

    (Diana Nacur Nagem Lima Salles)

  • RESUMO

    Este trabalho busca explicitar como ocorre a sucessão de quotas sociais pelo cônjuge

    casado no regime convencional da separação de bens em uma sociedade no caso de

    falecimento de um sócio. A organização de muitas sociedades empresárias e os negócios por

    elas realizados, com certa frequência, consideram o regime de bens dos sócios, uma vez que

    eventual partilha de bens em função de um divórcio ou de uma sucessão causa mortis pode

    afetar os rumos e o sucesso da empresa. O art. 1.028 do Código Civil permite que o contrato

    social disponha especificamente sobre o que deve ocorrer com as quotas e/ou com a sociedade

    em caso de falecimento do sócio. Para tanto, examinam-se os limites das disposições do

    contrato social, o qual deve respeitar normas cogentes, como as regras de vocação hereditária.

    Esta questão é examinada, detendo especial atenção à necessidade de explicitar a vocação

    hereditária do cônjuge na situação exposta perante o ordenamento jurídico ora vigente,

    extraindo-se a devida interpretação do artigo 1.829 e 1.845 do Código Civil. É reconhecida a

    independência, mas também o limite e o vínculo entre regras de Direito de Família, Direito de

    Sucessões e Direito Empresarial. Alcançada a conclusão acerca do direito hereditário do

    cônjuge neste contexto, estudam-se o princípio da autonomia privada e o da segurança

    jurídica, identificando os limites das disposições do contrato social quanto às disposições de

    cunho sucessório e as possibilidades de restrição do direito do cônjuge de participar da

    sucessão das quotas na situação em análise. Os institutos jurídicos envolvidos são estudados

    detidamente, em uma tentativa de assegurar a coerência, a previsibilidade e a segurança

    jurídica da interpretação e da aplicação da lei em vigor, bem como do cumprimento das

    disposições do contrato social.

    PALAVRAS-CHAVE: Regime da separação convencional de bens. Vocação hereditária do

    cônjuge. Sucessão causa mortis das quotas de sociedade limitada. Contrato social.

  • ABSTRACT

    This work seeks to explain how the succession of membership interest takes place in

    the case of a spouse married under the conventional regime of separation of property in a

    company in the event of death of a member. The organization of many companies and the

    businesses conducted by them frequently take into account the matrimonial regime of the

    members, once a possible distribution of property due to a divorce or to a succession may

    affect the paths and the success of the company. Article 1,028 of the Brazilian Civil Code

    allows the articles of organization to specifically prescribe what will occur to the membership

    interest and/or with the company in case of death of a member. For that, the limits of the

    provisions of the articles of organization are examined, for they must comply with applicable

    rules, such as the rules governing the order of succession. This issue is examined, giving

    special attention to the need to explain the order of succession of the spouse in the situation

    put forward to the legal system in force, by extracting the due interpretation of Articles 1,829

    and 1,845 of the Brazilian Civil Code. The independence is acknowledged, as well as the limit

    and the connection between rules of Family Law, Law of Succession, and Business

    Law. Once a conclusion is reached regarding the hereditary right of the spouse within this

    context, the principles of the private autonomy and of the legal certainty are studied, and the

    limits of the provisions of the articles of organization are identified in relation to the

    provisions governing the succession and to the possibilities of restriction of the right of the

    spouse to take part in the succession of the membership interest in the case under study. The

    legal doctrines involved are specifically studied, in an attempt to ensure the coherence, the

    predictability, and the legal certainty of the interpretation and the application of the law in

    force, as well as of the compliance with the provisions of the articles of organization.

    KEYWORDS: Conventional Separation Property Regime. Spouse's Inheritance Rigths.

    Inheritance of quotas in limited companies. Articles of Incorporation.

  • SUMÁRIO

    1 INTRODUÇÃO .....................................................................................

    10

    2 NOÇÕES GERAIS DO DIREITO EMPRESARIAL ....................... 13

    2.1 Breve contexto histórico do Direito Empresarial .............................. 13

    2.2 Teoria da empresa ................................................................................ 19

    2.3 Noções gerais do Direito Societário .....................................................

    22

    3 SOCIEDADE LIMITADA ................................................................... 25

    3.1 Definição da sociedade limitada ........................................................... 25

    3.2 Legislação aplicável ............................................................................... 27

    3.3 Quota social ............................................................................................ 30

    3.4 Contrato social ....................................................................................... 33

    3.5 Dissolução da sociedade limitada ......................................................... 37

    3.5.1 Legislação aplicável ................................................................................ 38

    3.5.2 Causas de dissolução total e parcial ....................................................... 41

    3.5.2.1 Consenso entre os sócios ......................................................................... 44

    3.5.2.2 Direito de retirada .................................................................................... 45

    3.5.2.3 Expulsão ou exclusão .............................................................................. 48

    3.5.2.4 Liquidação da quota a pedido do credor do sócio ................................... 49

    3.5.2.5 Falecimento de um sócio ........................................................................

    50

    4 DO CASAMENTO E DOS REGIMES DE BENS ............................ 55

    4.1 Tipos de regime de bens ........................................................................ 60

    4.2 Do regime da separação de bens .......................................................... 63

    4.3 Meação .................................................................................................... 65

    4.4 Pacto antenupcial ..................................................................................

    66

    5 SUCESSÃO CAUSA MORTIS .............................................................. 68

    5.1 Sucessão legítima ................................................................................... 71

    5.2 Ordem da vocação hereditária ............................................................. 72

    5.3 Herança ..................................................................................................

    74

    6 DA VOCAÇÃO HEREDITÁRIA DO CÔNJUGE CASADO NO

    REGIME CONVENCIONAL DE SEPARAÇÃO DE BENS ............

    79

    7 PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE E DA

    AUTONOMIA PRIVADA ...................................................................

    100

    7.1 Distinção entre autonomia da vontade e autonomia privada ............ 102

    7.2 Limites da autonomia privada no pacto antenupcial e no contrato

    social ........................................................................................................

    105

    8 SUCESSÃO CAUSA MORTIS DE QUOTAS DA SOCIEDADE

    LIMITADA PELO CÔNJUGE CASADO NO REGIME

    CONVENCIONAL DA SEPARAÇÃO DE BENS .............................

    109

  • 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...............................................................

    117

    REFERÊNCIAS .................................................................................... 122

  • 10

    1 INTRODUÇÃO

    Amor, morte e empresa. São esses, respectivamente, o sentimento, o fato e a atividade

    que norteiam este trabalho, os quais serão analisados em um dos momentos em que eles se

    encontram: na sucessão causa mortis de quotas sociais da sociedade limitada pelo cônjuge.

    O caráter contratual das relações patrimoniais do casamento ganhou força nas últimas

    décadas, sobretudo diante da ascensão profissional e independência financeira da mulher, da

    facilidade em romper e reconstituir um novo vínculo matrimonial e das diferentes formas de

    constituição de entidades familiares.

    Quando se confrontam questões patrimoniais com aspectos emocionais e

    responsabilidade entre familiares, todavia, é preciso ir além do caráter meramente financeiro,

    devendo-se colocar o amor familiar como pano de fundo para freá-lo e direcioná-lo.

    A morte, por sua vez, parece nunca ser vista de forma diferente. Sempre será uma

    interrupção, o marco de uma nova época, representando mudanças, saudade e dor. Mas em

    alguns casos parece implicar mero esquecimento e passa a direcionar a conveniência dos

    interesses patrimoniais.

    Como cediço, de forma sucinta, a empresa remete à atividade econômica que reúne os

    fatores de produção ou circulação de bens e serviços, de forma organizada e habitual,

    vislumbrando o lucro. Sabe-se ainda que, dentre os existentes tipos societários na legislação

    brasileira, comumente, tem-se a organização sob o formato da sociedade limitada, sobretudo

    por seu caráter contratual e pela limitação da responsabilidade dos sócios.

    Considerando os interesses negociais dos sócios e os patrimoniais presentes no

    casamento, a escolha do regime de bens, cada vez mais, tem sido feita de forma racional e

    calculada. O regime de separação de bens passou a ser uma opção para aqueles que desejam

    construir seu patrimônio de forma independente, garantindo autonomia patrimonial aos

    cônjuges e apresentando-se compatível com a dinâmica das atividades empresariais.

    Ocorre que parte dos operadores do Direito e empresários acreditam que, em caso de

    falecimento, o cônjuge viúvo que foi casado no regime convencional da separação de bens

    não herdará, entendimento este que parece não ter respaldo no texto da lei vigente, assim

    como não é pacífico na jurisprudência.

    Neste sentido, a proposta deste trabalho é suscitar a problemática da sucessão causa

    mortis de quotas de sociedade limitada pelo cônjuge casado no regime convencional da

    separação de bens.

  • 11

    O contexto deste tema se encontra no fato de que muitas sociedades empresárias, ao se

    constituírem ou quando realizam um planejamento tributário, um planejamento sucessório ou

    fusões e aquisições, consideram as relações conjugais sob o aspecto patrimonial dos sócios

    envolvidos, uma vez que um divórcio ou uma sucessão hereditária pode afetar direta e

    consideravelmente os rumos de uma sociedade empresária.

    Pretende-se, então, responder às seguintes questões: O cônjuge viúvo que foi casado

    no regime convencional da separação de bens tem direitos hereditários sobre os bens deixados

    por seu cônjuge falecido? Em caso afirmativo, é possível excluí-lo da sucessão causa mortis?

    O pacto antenupcial pode limitar direito sucessório? Se o cônjuge falecido era sócio de uma

    sociedade limitada, o contrato social pode limitar o direito do cônjuge sobrevivente de herdar

    as quotas que a ele pertencia? A quais atributos inerentes às quotas sociais este cônjuge viúvo

    terá direito na sucessão do sócio falecido?

    Para alcançar as respostas, propõe-se expor brevemente sobre a atividade empresarial,

    especialmente da sociedade limitada, buscando identificar a natureza jurídica da quota social,

    do contrato social e de suas formas de dissolução, parcial ou total.

    Em seguida, será apresentado o estudo sobre o instituto do casamento e dos regimes de

    bens disponíveis na legislação brasileira atual, com foco especial na definição e identificação

    da natureza jurídica da meação e do pacto antenupcial.

    Com especial destaque, em ato contínuo, serão apresentados alguns conceitos que

    permeiam a sucessão causa mortis, os quais viabilizarão a análise da legislação sobre a

    vocação hereditária do cônjuge casado no regime convencional da separação de bens,

    sobretudo quando em concorrência com os descendentes, considerando o conturbado texto do

    art. 1.829 do Código Civil1.

    O estudo do regime de bens seguido pelo estudo do regime da sucessão causa mortis

    viabilizará o discernimento entre meação e herança, essencial para a compreensão de que a

    intenção do legislador civilista atual é, em regra, afastar o direito à herança do cônjuge que já

    tenha direito à meação e, em contrapartida, garantir herança ao cônjuge que não tem direito à

    meação.

    1 Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil.

    Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I - aos descendentes, em concorrência com o

    cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da

    separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da

    herança não houver deixado bens particulares; [...]. (BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o

    Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 13

    jul. 2013).

  • 12

    Vale ressaltar que, quando se fala em sucessão patrimonial, ressalta a imperiosa

    necessidade de ser reconhecida a independência entre as regras de cunho patrimonial no

    casamento, as quais fazem parte do escopo do Direito de Família, e do Direito de Sucessões e,

    por conseguinte, de algumas de suas consequências no Direito Empresarial, para examinar a

    possibilidade de efeitos diversos quando o fato gerador também for distinto.

    A interdisciplinaridade dos aludidos ramos do Direito norteia este trabalho e atrai,

    ainda que de forma breve, o estudo da livre manifestação da vontade humana, com base no

    princípio da autonomia privada. Este é o que definirá o limite das disposições que versem

    sobre o tema ora pesquisado, que deverá ser respeitado pelos nubentes quando firmarem o

    pacto antenupcial e pelos sócios quando elaborarem um contrato social de uma sociedade

    empresária de responsabilidade limitada. O ordenamento jurídico brasileiro, previsto no art.

    1.028 do Código Civil2, autoriza os sócios a disporem no contrato social da sociedade sobre o

    destino das quotas em caso de morte de um sócio, porém é necessário identificar os limites

    dessas disposições.

    O desafio desta pesquisa consiste em viabilizar segurança na sucessão causa mortis

    das quotas sociais pelo cônjuge casado no regime convencional da separação de bens,

    buscando identificar claramente os limites dos direitos disponíveis, permitir a conciliação

    entre a vontade do casal e a dos sócios à do legislador; e, principalmente, em assegurar ao

    empresário e ao empresário e cônjuge, esclarecidos e certos de suas escolhas, que seus

    pedidos serão aceitos e respeitados.

    2 Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Art. 1.028. No caso de morte de sócio, liquidar-se-á sua

    quota, salvo:

    I - se o contrato dispuser diferentemente;

    II - se os sócios remanescentes optarem pela dissolução da sociedade;

    III - se, por acordo com os herdeiros, regular-se a substituição do sócio falecido. (BRASIL. Lei 10.406, de 10

    de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 13 jul. 2013)

  • 13

    2 NOÇÕES GERAIS DO DIREITO EMPRESARIAL

    O Direito Empresarial, desde sua origem, apresenta-se como um ramo essencialmente

    dinâmico. A contextualização histórica e a demonstração dos valores tutelados deste ramo são

    de fundamental relevância para a análise dos institutos jurídicos a serem estudados.

    Desse modo, passa-se a discorrer sobre a evolução histórica do Direito Empresarial,

    embrionariamente denominado Direito Comercial, para chegar à atual definição de empresa e

    focar a concepção do Direito Societário como a parte destinada ao estudo das formas de

    organização da atividade empresária.

    2.1 Breve contexto histórico do direito empresarial

    Identificar a origem da atividade comercial é trabalho complexo e, quiçá, impossível,

    sabendo-se que há registros sobre ela desde a Antiguidade, encontrando-se notícias de sua

    realização por diversos povos, sobretudo os fenícios.

    O encontro entre a disponibilidade e a habilidade em determinado trabalho, de um

    lado, e a carência de mercadorias e serviço, de outro, fizeram surgir o que ficou conhecido

    como “escambo”.

    Cada indivíduo ou chefe de família era responsável pela produção do que serviria de

    moeda de troca. Por conseguinte, para seu crescimento, foi necessário expandir sua

    produtividade. Para tanto, seria necessário gastar menos tempo na realização de suas

    atividades e, cada vez mais, investir na troca de habilidades e mercadorias que viabilizassem a

    circulação de bens e serviços. Em razão disso, a associação das pessoas com objetivos e

    esforços comuns voltados para essas trocas começou a crescer e a tornar cada vez mais

    complexa, passando a envolver diferentes tipos de produtos, sob diversas condições, o que,

    inevitavelmente, exigia também algum tipo de regulamentação.

    O Direito Comercial – entendido como um compilado de princípios, normas e regras

    que formam um regime jurídico próprio disciplinador da atividade mercantil –, contudo, não

    teve seu nascedouro na mesma época.

    Alguns autores afirmam que algumas das mais antigas manifestações legislativas

    foram registradas no Código de Hamurabi, do rei Hammurabi, sexto monarca da primeira

  • 14

    dinastia da Babilônia, que afirmava tê-lo recebido do deus Sol3. Constituído de escritos em

    tábuas, é provável que tenha sido feito por volta de 1.700 a. C., tendo sido encontrado por

    franceses em 1.901 d.C., na região da antiga Mesopotânia4. Marlon Tomazette5 informa que é

    possível afirmar que as primeiras normas que regulamentam o comércio foram aquelas

    dispostas no citado Código de Hammurabi e no Código de Manu 6 , na Índia, mas sem

    configurar um sistema de normas propriamente dito. Os gregos também possuíam algumas

    normas, assim como no Direito Romano, esculpidas no chamado ius civile.

    Marcelo M. Bertoldi e Márcia Carla Pereira Ribeiro7 esclarecem que os romanos não

    chegaram a conhecer regras específicas para as relações comerciais, pois o chamado ius civile

    contemplava normas destinadas às relações jurídicas de cunho privado, independentemente de

    se tratar de conteúdo civil ou mercantil. Mas há forte influência direta do Direito Romano no

    surgimento do Direito Comercial, verificando-se nele a origem do instituto da falência,

    normas básicas sobre os contratos mercantis, a ação pauliana como forma de reprimir a fraude

    contra credores, a responsabilidade civil dos banqueiros e o comércio do transporte marítimo,

    entre outros.

    A partir do século XV, com a decadência do regime feudal, deu-se o renascimento do

    comércio, sobretudo nas feiras e nos burgos. O comércio voltou a se desenvolver, em razão,

    sobretudo, das modificações ocorridas no interior das sociedades feudais europeias, por

    exemplo, o aumento da população, crescimento das cidades, desenvolvimento das

    manufaturas, entre outros fatores.

    3 GARCIA, Ayrton Sanches. Noções históricas de Direito Comercial. Âmbito Jurídico, Rio Grande, v. 2, n. 4,

    fev. 2001. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/ index.php?n_ link=revista_ artigos_

    leitura& artigo_id=2059>. Acesso em: 26 ago. 2014. 4 A origem exata no Código de Hamurabi ainda é discutida. O autor em referência, Ayrton Sanches Garcia,

    esclarece que o Código “foi encontrado em escavações feitas por um grupo de arqueólogos franceses

    chefiados por Jacques de Morgan, nas ruínas da cidade islamita de Susa (Pérsia), em 1901 (Carvalho de

    Mendonça diz que as escavações foram feitas entre 1897-1899). Mantido no Museu do Louvre, em Paris, o

    Código foi gravada num pesado bloco de diorite, uma rocha de 2,25 metros de altura e 1,90 metros de

    circunferência na base, no século XXIII a.C.”. Mas informa que Octávio Médice diz que a publicação do

    Código de Hamurabi deu-se no século XIX a.C.; João E. Borges refere o ano 2.083 a. C.; J. X. Carvalho de

    Mendonça refere o ano 2..250 a. C. Mas, independente da origem exta, representa o monumento e marco de

    referência histórica do direito de vários dos povos da sua época, sendo, até hoje citado nas principais obras de

    direito comercial, tanto no Brasil como nos demais países. (GARCIA, Ayrton Sanches. Noções históricas de

    Direito Comercial. Âmbito Jurídico, Rio Grande, v. 2, n. 4, fev. 2001. Disponível em: < http://www.ambito-

    juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura& artigo_id=2059>. Acesso em: 26 ago. 2014) 5 TOMAZETTE, Marlon. Direito societário. 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. p. 1-3. 6 O Código de Manu foi escrito em sânscrito e é parte de uma coleção de livros bramânicos, enfeixados em

    quatro compêndios. Foi redigido entre os séculos II a. C. e II d. C., em forma poética por um santo eremita

    chamado Valmiki, em torno do ano 1500 a.C. (GARCIA, Ayrton Sanches. Noções históricas de Direito

    Comercial. Âmbito Jurídico, Rio Grande, v. 2, n. 4, fev. 2001. Disponível em: < http://www.ambito-

    juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura& artigo_id=2059>. Acesso em: 26 ago. 2014) 7 BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 7. ed.

    rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p.28.

  • 15

    Diante deste contexto, a regulamentação da atividade comercial passou a ser

    imprescindível, pois com o impulso que tivera as normas do Direito Romano mostraram-se

    insuficientes.

    O Direito Comercial surgiu como ramo autônomo do Direito depois da queda do

    Império Romano, na Idade Média. A princípio, as regras inerentes ao Direito Comercial

    baseavam-se em costumes. Diante da ausência da formação dos Estados modernos e da

    presença de um poder político descentralizado, tais regras propiciaram o surgimento das

    entidades privadas, que representaram grande relevância para o Direito Comercial, as quais

    foram chamadas de “corporações de ofício”.

    Essas entidades permitiram que os comerciantes unissem força de tal maneira que,

    conforme narra o citado autor, o poder econômico e militar delas foi capaz de operar a

    transição do regime feudal para o regime das monarquias absolutistas. Carvalho de

    Mendonça 8 afirma que “o Direito Comercial surgiu, conforme se vê, não como obra

    legislativa nem criação de jurisconsultos, porém como trabalho dos próprios comerciantes,

    que o construíram com os seus usos e com as leis que, reunidos em classe, elaboraram”.

    As corporações de ofício estabeleceram as regras do Direito Comercial fazendo nascer

    um direito consuetudinário. As primeiras regras, constituídas pelos usos, costumes e práticas

    mercantis observados em cada localidade, sobretudo nas cidades italianas, eram compiladas

    nos estatutos das corporações de ofício, dando corpo ao que ficou identificado como os

    primeiros códigos comerciais. Como informam Marcelo M. Bertoldi e Márcia Carla Pereira

    Ribeiro9, as instituições mais conhecidas do Direito Comercial remontam a este período, tais

    como a matrícula dos comerciantes, o regime dos livros comerciais, o regime das instituições

    financeiras e a letra de câmbio.

    Os comerciantes estavam sujeitos a uma jurisdição especial, o que implicava

    reconhecer que aquelas normas a eles se aplicavam e que cada um deles estava submetido às

    regras da corporação da qual ele fosse membro.

    Percebe-se que foi utilizado critério corporativo, baseado em um sistema subjetivo,

    pois era um direito criado pelos comerciantes e para os comerciantes. A mercantilidade de

    uma relação jurídica era definida pelo sujeito, sendo a competência da jurisdição, como dito,

    definida pela identificação da corporação à qual o comerciante era filiado.

    8 CARVALHO DE MENCONÇA, J. X. Tratado de direito comercial brasileiro. Campinas: Russell, 2003.

    p. 69. 9 BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 7. ed.

    rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 28.

  • 16

    Esse foi o primeiro momento da história no qual foi possível identificar o surgimento

    de um conjunto minimamente organizado de atividade comercial.

    Em seguida, o Direito passou a ser aplicado pelo próprio Estado, com a ascensão da

    burguesia ao poder, mantendo-se a disciplina autônoma.

    Com o decorrer do tempo, à medida que a atividade comercial foi se desenvolvendo,

    os comerciantes passaram a praticar atos acessórios, como a circulação dos títulos cambiários,

    os quais sugiram ligados à atividade comercial, mas logo se tornaram autônomos e passaram a

    ser utilizados também por quem não era comerciante. Assim, era necessário estender o âmbito

    de aplicação do Direito Comercial. Para isso, foi necessário o surgimento do sistema

    objetivista, capaz de transferir o centro do Direito Comercial para o objeto da atividade,

    deixando de lado o critério de identificação pelo sujeito que praticasse a atividade.

    Ao mesmo tempo, ocorreu o surgimento dos Estados modernos, que assumiram o

    monopólio da jurisdição pelo Estado, passando a dizer o que é o Direito e a quem se aplica o

    Direito. Em razão disso, as corporações de oficio começaram a perder força. A do Direito

    Comercial deixou de ser consuetudinário para ser um direito posto e aplicado pelo Estado.

    O Código Civil Francês de 1804, conhecido por “Código Napoleônico”10, marcou a

    transição da primeira fase (subjetivista) para a segunda (objetivista). Foi neste momento que o

    Direito Comercial atingiu certa maturidade, passando a ser identificado como um Direito

    autônomo, específico e com código próprio. Por conseguinte, foi necessário estabelecer um

    critério de distinção que delimitasse a abrangência do regime jurídico mercantil. O critério

    adotado foi a chamada “Teoria dos atos de comércio”, que permitiu afirmar que esta fase do

    Direito Comercial não representava o direito dos comerciantes, mas sim o direito dos atos de

    comércio.

    Esse foi o critério adotado pela codificação francesa e por vários países, inclusive o

    Código Comercial Brasileiro de 1850, posteriormente complementado pelo Regulamento 737,

    de 1850, influenciado diretamente pelo Código Napoleônico.

    Fala-se em objetivação do Direito Comercial, tendo em vista que não mais importava

    se o sujeito praticante da atividade era membro ou não da corporação, pois o que passou a

    definir a aplicação das regras comerciais foi o objeto da relação jurídica. Se a relação

    envolvesse a prática do que era definido como ato de comércio, a relação seria definida como

    mercantil e atrairia a aplicação das regras especiais do Código Comercial.

    10 Originalmente chamado de Code Civil des Français ou Code Napoléon.

    FRANÇA. Código civil. Disponível em: . Acesso em: 4 ago. 2012).

  • 17

    A adoção da teoria dos atos de comércio como critério de distinção dos limites de

    aplicação do Direito Comercial, embora tenha sido utilizada por muito tempo, apresentava

    alguns problemas. A denominação em si demonstra que era uma teoria, ou um critério, que se

    preocupava com a atividade comercial, com a forma e o conteúdo, pelos quais era ela

    desempenhada, o que se justificava com o fato de que o comércio ser a principal atividade

    econômica.

    Com o passar do tempo, as relações comerciais e a economia atingiram um grau de

    complexidade maior, no qual o comércio deixava de ser a principal e, quiçá, única atividade

    econômica, já que se aproximava a Revolução Industrial. Dessa feita, os atos do comércio já

    não seriam mais suficientes para delimitar a abrangência do Direito Comercial, pois ele

    precisaria abranger outras atividades econômicas praticadas no mercado que não estavam

    definidas como atos de comércio, por exemplo, a prestação de serviços que já detinha caráter

    econômico, mas não estava sujeita às regras especiais, por não se subsumir aos atos

    previamente definidos. Assim também acontecia com as atividades rurais e a negociação de

    bens imóveis.

    A dificuldade maior residia no fato de que a dinâmica das relações comerciais sempre

    foi aceleradamente crescente e complexa, de modo que qualquer tentativa de definição por

    teorias seria frustrada. As diversas teorias surgidas não eram abrangentes o suficiente para

    englobar toda e qualquer atividade econômica.

    Elucidam os autores Henrique Viana Pereira e Rodrigo Almeida Magalhães11:

    O problema da segunda teoria (objetiva) é que os atos de comércio não se limitam

    aos atos assim definidos em lei, eis que impossível esgotar todos eles em uma lista,

    bem como pelo fato de que eles são renovados diariamente frente à modernidade e

    seus novos usos e costumes.

    Esse panorama acabou por acarretar uma disciplina anti-isonômica do mercado, pois

    alguns comerciantes – aqui entendidos apenas como aqueles que desempenhavam uma

    atividade econômica – acabavam por ter tratamento diferente de outros, por exemplo, aqueles

    praticantes dos atos de comércio tinham direito à concordata, mas o prestador de serviço, não.

    Nesse contexto, o Direito Comercial entrou em sua terceira fase, cujo marco histórico

    da transição foi a edição do Código Civil Italiano de 1942.

    Ao contrário da França, a Itália havia optado por unificar formalmente o Direito

    Privado, pelo que estariam inseridas dentro do Código Civil as regras do Direito Comercial.

    11 PEREIRA, Henrique Viana; MAGALHÃES, Rodrigo Almeida. Princípios constitucionais do direito

    empresarial: a função social da empresa. Curitiba: CRV, 2001. p. 12.

  • 18

    Fala-se em unificação meramente formal porque, embora juntos, o Direito Civil e o Direito

    Comercial continuaram sendo regimes jurídicos distintos.

    Explica Raquel Sztajan12:

    Se alguém fosse levado a entender que a unificação do direito obrigacional implique

    o desaparecimento do Direito Comercial, é preciso lembrar que, mesmo na Itália, em

    que fenômeno data de 1942, direito civil e comercial permanecem distintos.

    Também é de apontar que nunca houve grande preocupação, seja pela doutrina, seja

    pela jurisprudência, com a questão, porque, de regra, se entendem comerciais as

    atividades segundo noção econômica ou contábil.

    O Direito Comercial deixou de ser o direito que iria disciplinar um ato específico

    identificado como sendo de comércio e passou a ser o direito que irá se preocupar com o

    exercício específico de uma atividade econômica organizada, ampliando sua abrangência.

    Neste sentido, não se falava mais em atos de comércio, mas sim em empresa. Ocorreu,

    portanto, o abandono da teoria dos atos de comércio, substituída pela teoria da empresa. A

    grande novidade residiu no fato de que o centro do Direito Comercial passou a encontrar-se

    na atividade econômica.

    Em razão dessa mudança, hoje se fala em Direito Empresarial, e não mais em Direito

    Comercial, porque é o direito que cuida da empresa, ou seja, de toda e qualquer atividade

    econômica organizada; ao passo que, o empresário passou a ser aquele que exerce qualquer

    atividade econômica organizada.

    No Brasil, a legislação acompanhou a mesma evolução histórica.

    O Código Comercial de 1850, como já mencionado, foi espelhado no Código

    Comercial francês de 1808 e adotou a teoria dos atos de comércio, os quais foram tipificados

    no Regulamento 737, de 1850. O código se dividia em três partes: parte geral; comércio

    marítimo; e quebras (falência) do comerciante.

    O Código Civil de 2002, influenciado pelo Código Civil italiano de 1942, revogou a

    primeira parte do código anterior e adotou a teoria da empresa, definindo empresário como

    aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada.

    A segunda parte do Código Comercial foi revogada pela Lei de Falência 7.661 de

    1945, que, por sua vez, foi revogada Lei de Falências 11.101 de 2005, o que, inclusive,

    reforça a ideia de que a unificação formal não foi completa, já que continuam a existir leis

    especiais aplicáveis à atividade empresarial, assim como institutos jurídicos e princípios

    12 SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e mercados. São Paulo: Atlas, 2004. p.

    145.

  • 19

    próprios. Constata-se, assim, que houve derrogação do Código Comercial, já que a segunda

    parte, referente ao comércio marítimo ainda está em vigor.

    Dessa forma, conclui-se que o Direito atual que rege as atividades econômicas, mais

    propriamente chamado de Direito Empresarial, tem como foco principal a identificação do

    que é empresa, pelo que é o que se propõe a analisar a seguir.

    2.2 Teoria da empresa

    O núcleo do atual Direito Empresarial está focado na atividade empresarial. Não

    importa quem é o empresário ou o que ele faz; o importante é como ele faz.

    Shandor Portella Lourenço 13 enaltece que o Direito Empresarial possui uma

    jurisprudência axiológica valorativa, que interpreta as leis mercantis de modo a aperfeiçoar a

    existência do seu objeto, procurando proteger (lei de falências, marcas e patentes etc.) e

    gravitar em torno da figura do empresário.

    Dessa forma, percebe-se que o enfoque é no empresário. A identificação e a definição

    do titular desses direitos tornam-se o ponto de partida do Direito Empresarial.

    Neste sentido – como dito que o atual Código Civil adotou a teoria subjetiva moderna

    – é que o diploma civilista vigente dispôs em seu art. 96614, ipsis litteris:

    Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade

    econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

    Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de

    natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou

    colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

    Como ensina Thales Poubel Catta Preta Leal15, não há conceito jurídico de empresa,

    nem mesmo de elemento de empresa, mas há um conceito jurídico de empresário, fundado em

    um conceito doutrinário de empresa.

    13 LOURENÇO, Shandor Portella. O empresário e a teoria subjetiva moderna. Revista Virtual Faculdade

    de Direito Milton Campos, v. 10, 2012. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2013. p. 5. 14 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:

    . Acesso em: 13 jul. 2013. 15 LEAL, Thales Poubel Catta Preta. A caracterização da sociedade empresária. 2004. Dissertação

    (Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito. Programa de Pós-Graduação em

    Direito, Belo Horizonte, p. 62.

  • 20

    Ressalta-se que o termo empresa está sempre ligado à atividade, não se confundindo

    com a figura do empresário, que é quem a exerce. Por isso, quando se deseja referir ao titular

    ou sujeito de direitos, deve-se falar em sociedade.

    Didaticamente, os autores extraem do mencionado dispositivo legal três elementos

    caracterizadores da empresa: profissionalismo, atividade econômica, organização e produção

    ou circulação de bens ou serviços.

    Assim ensina o autor Thales Catta Preta Leal16:

    A expressão adequada seria “sociedade empresária”, uma vez que a sociedade –

    pessoa distinta das pessoas de seus sócios – é que é a empresária, da mesma forma

    que uma pessoa física, que exerça atividade empresarial, é denominada empresário

    individual.

    Nessa linha, verifica-se que quem se sujeita aos institutos do Direito Empresarial é a

    sociedade empresária, e não os seus sócios, pois eles, no sentido jurídico, não são

    empresários.

    Com base em tais elementos, conclui-se que o empresário deve ser pessoa natural ou

    jurídica que exerce com habitualidade, em nome próprio, uma atividade econômica destinada

    à circulação de bens ou à execução de serviços no mercado com o objetivo de obter lucro, de

    forma organizada. Ficam ressalvados aqueles definidos no parágrafo único art. 966, os quais,

    mesmo reunindo todos estes elementos, não seriam considerados empresários ou sociedade

    empresária, mas sim às sociedades simples. Incluem-se também as cooperativas (art. 982,

    parágrafo único do Código Civil) e o produtor rural (art. 970, Código Civil), já que a lei lhes

    dá mera opção quanto ao seu registro para que, então, possam ser considerados empresários.

    Fogem ainda a esta caracterização legal as sociedades anônimas, as quais, independentemente

    do seu objeto social e da sua prática mercantil serão consideradas sociedades empresárias (art.

    982, parágrafo único do Código Civil e art. 2º, § 1º, da Lei 6.404/7617).

    Dentre esses elementos, deve-se destacar a organização como elemento central, por ser

    ela que garantirá a previsibilidade das relações e a segurança de trabalho no longo prazo.

    Rachel Sztajn18 muito bem explica este contexto:

    16 LEAL, Thales Poubel Catta Preta. A caracterização da sociedade empresária. 2004. Dissertação

    (Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito. Programa de Pós-Graduação em

    Direito, Belo Horizonte, p. 63. 17 BRASIL. Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por ações. Disponível em:

    . Acesso em: 27 ago. 2014. 18 SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e mercados. 2. ed. São Paulo: Atlas,

    2010. p. 97-98.

  • 21

    Impossível imaginar uma empresa, qualquer empresa, sem organização. E, sem esse

    elemento, a organização, como extremar empresário de trabalhador autônomo?

    Quanto aos exercentes de atividades intelectuais, a questão está em definir que

    elementos permitem enquadrá-los como empresários. Aqui, parece que o elemento

    organização de fatores da produção de titularidade de terceiros é fundamental para

    que se apure se há ou não o elemento da empresa (art. 966, parágrafo único, do

    Código Civil).

    Organização parece ser o elemento central, essencial, necessário porém não

    suficiente, para determinar a existência da empresa, porque gera o aparato produtivo

    estável, estruturado por pessoas, bens e recursos, coordena os meios para atingir o

    resultado visado. Tanto a organização de pessoas, centrada nas relações de trabalho

    subordinado, cuja disciplina é a dos contratos de trabalho, quanto a organização dos

    meios patrimoniais (recursos e bens) para o exercício de uma atividade estão

    presentes no desenho da empresa. Por isso é, atualmente, fácil abandonar a antiga

    discriminação entre auto e hétero-organização na configuração da empresa,

    empregando-se critérios mais aceitáveis como fungibilidade dos fatores da

    produção.

    O desempenho da atividade de forma organizada exige que haja uma estrutura

    constituída de forma profissional, não eventual, que assume os riscos de seu exercício e que

    tenha a coordenação de suas atividades voltada para o mercado com base na junção dos

    fatores de produção.

    Como comenta Rachel Sztajn19, a integração de operações visa facilitar a produção,

    cujo planejamento e fiscalização têm relevante fundamento, notadamente quando envolvem a

    transmissão de informação ou conhecimento, como no caso de patentes e/ou cessão do direito

    de uso de marcas, tal como se dá nas franquias.

    Embora seja essencial, a organização como elemento da atividade empresária não

    pode ser avaliada isoladamente. Mas o desempenho de uma atividade econômica assume o

    aspecto empresarial quando passa a adotar padrões e estruturas que viabilizam a larga escala

    de produção, de circulação ou de prestação de serviço ou, ainda que não seja larga, mantenha

    frequência e estabilidade de maneira suficiente a viabilizar a oferta ao mercado. A estrutura

    organizada permite ao empresário e à sociedade empresária assumir riscos do

    empreendimento e maximizar a percepção dos lucros, garantindo profissionalismo ao

    exercício da atividade.

    19 SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e mercados. 2. ed. São Paulo: Atlas,

    2010. p. 94.

  • 22

    2.2 Noções gerais do Direito Societário

    A sociedade empresária moderna tem origem nos primórdios da civilização. Por sua

    natureza social e por sua necessidade de sobrevivência, o trabalho em grupo, a produção para

    a autossubsistência e para o outro e a troca de mercadoria sempre fizeram parte da relação

    humana. Como afirmam Marcelo M. Bertoldi e Márcia Carla Pereira Ribeiro20, o surgimento

    do fenômeno associativo deu-se no momento em que o homem percebeu que a eficiência de

    determinadas tarefas poderia ser maior se elas fossem executadas com a comunhão de

    esforços e objetivos de duas ou mais pessoas.

    Este fenômeno, além de ser antigo, sempre se caracterizou pela dinâmica e velocidade

    da evolução das relações associativas, sobretudo as de natureza mercantil, as quais, cada vez

    mais, apresentam-se complexas e diversificadas.

    Como toda relação que envolve divergência de interesses, desde os tempos mais

    remotos, sempre houve a necessidade de regulamentação específica da atividade mercantil.

    Foi no vigor mercantilista da Idade Média que o Direito Comercial começou a ter

    contornos próprios e também foi neste momento que surgiu o modelo mais próximo do que

    hoje se entende por sociedade empresária, no sentido de separação dos patrimônios dos sócios

    em relação ao patrimônio da sociedade. Como narram Marcelo M. Bertoldi e Marcia Carla P.

    Ribeiro 21 , nessa época as sociedades eram eminentemente intuitu personae, pois o que

    aproximava os sócios eram suas características pessoais e seus objetivos comuns,

    característica denominada de affectio societatis existente até os dias de hoje nas chamadas

    “sociedades de pessoas”.

    Com a evolução das relações mercantis, sobretudo com o Renascimento e com a “Era

    dos Descobrimentos”, provimentos que impulsionaram ainda mais o comércio, surgiram as

    companhias colonizadoras, que se tratavam de “sociedades que reuniam grande quantidade de

    capital, dividindo em ações que, por sua vez, eram distribuídas entre um número considerável

    de pessoas”22, como é o caso da Companhia Holandesa das Índias Orientais, criada em 1602,

    em que o elemento atrativo da associação das pessoas deixou de ser as características pessoais

    para ser a contribuição financeira, fazendo surgir as chamadas “sociedade de capital”.

    O objeto de estudo do Direito Societário é exatamente estas formas de associação, isto

    é, as sociedades criadas para exercer a atividade mercantil.

    20 BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 7. ed.

    rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 155. 21 BERTOLDI, op. cit. p. 155. 22 Idem, 2013, p. 156.

  • 23

    Até o Código Civil de 2002, o objeto do Direito Comercial era balizado pelos atos

    praticados, de modo que, se subsumissem àqueles considerados como atos de comércio, ter-

    se-ia, uma atividade empresária. Com a adoção da teoria da empresa, houve o alargamento da

    abrangência do estudo, pois não só os comerciantes seriam alvo da legislação e deste ramo,

    mas também todos os empresários que praticassem a atividade reconhecida pela lei como

    empresária.

    Os doutrinadores Marcelo Bertoldi e Marcia Ribeiro 23 afirmam que não faz mais

    sentido a distinção entre sociedade civil e sociedade comercial, já que o objeto agora passa a

    ser a sociedade empresária, definida por eles como sendo uma organização econômica

    constituída, ordinariamente, por mais de uma pessoa, dotada de personalidade jurídica, capaz

    de adquirir direitos e assumir obrigações por si mesma, possuindo patrimônio próprio, que,

    independente e destacado do patrimônio de seus sócios, responde por suas dívidas e

    obrigações, tendo por objetivo promover a produção ou a troca de bens ou serviços com fins

    lucrativos.

    Diante de tais definições, os autores citados entendem que a atual classificação em

    “simples” ou “empresária” passou a decorrer do conceito de empresário, abandonando-se,

    portanto, a classificação anterior, na qual se levava em consideração o objeto da atividade,

    que poderia ser civil ou comercial.

    Compreendido o que seria seu objeto, destaca-se que o Direito Societário visa,

    especialmente, tratar do regime de organização e das regras norteadoras das sociedades, sejam

    elas empresárias ou não. O Código Civil, neste aspecto, dá a elas disciplina específica em

    consonância com o tipo, dividindo-as em não personificada – as quais podem ser a sociedade

    em comum ou a sociedade em conta de participação; e personificadas – compreendendo as

    simples e as empresárias já esclarecidas.

    Dentre as sociedades empresárias, a legislação vigente prevê a existência de cinco

    espécies de sociedades empresárias: sociedade em nome coletivo (arts. 1.039 a 1.044 do

    Código Civil); sociedade em comandita simples (arts. 1.045 a 1.051 do Código Civil); a

    sociedade limitada (arts. 1.052 a 1.087 do Código Civil); sociedade anônima (arts. 1.088 e

    1.089 do Código Civil e Lei 6.404/76); e sociedade em comandita por ações (arts. 1.090 a

    1.092 do Código Civil e Lei 6.404/76).

    A limitação da responsabilidade das dívidas da sociedade ao seu próprio patrimônio,

    deixando o patrimônio pessoal dos sócios destacada, presente nas sociedades anônimas e nas

    23 BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 7. ed.

    rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 156-157.

  • 24

    sociedades anônimas, faz com que sejam estas as espécies mais utilizadas atualmente. Em

    razão disso, bem como diante do tema proposto, passa-se a expor de forma mais detalhada

    apenas a sociedade limitada.

  • 25

    3 SOCIEDADE LIMITADA

    A sociedade limitada surgiu em 1892, na Alemanha, com a criação da chamada

    “sociedade de responsabilidade limitada”24, que trazia a simplicidade de sua constituição e a

    limitação da responsabilidade dos sócios, os quais não responderiam pessoalmente pelas

    dívidas da sociedade, o que não ocorria com os outros formatos existentes à época. Este

    modelo acabou por inspirar outros países a adotarem o mesmo formato.

    Noticiam os doutrinadores que em 1911 o projeto do novo Código Comercial

    apresentou-se como a primeira tentativa de trazer para legislação brasileira o referido modelo.

    Embora este projeto não tenha logrado êxito, alguns anos depois um projeto que propunha a

    criação da sociedade por quotas de responsabilidade foi aprovado. Surgiu, assim, o Decreto

    3.708, de 10 de janeiro de 1919, tendo vigorado até o surgimento do Código Civil de 2002,

    que o revogou tacitamente.

    Falar de sociedade limitada exige, de imediato, a clara concepção do que seja

    sociedade de pessoas e limitação da responsabilidade, pois são estas características principais

    desta espécie societária que a tornam tão atrativa e comum nas relações de cunho empresarial.

    É sobre isso que passa-se a discorrer a seguir.

    3.1 Definição da sociedade limitada

    O fenômeno associativo com fins mercantis iniciou mediante a atração das

    características pessoais e dos objetivos comuns entre aqueles que uniam esforços para a

    produção e circulação de produtos ou a prestação de serviços. A ideia primitiva de sociedade

    passa, portanto, pela concepção do affectio societatis.

    Essa expressão remete à ideia de que o liame entre os sócios se dá pela intenção deles

    de constituir uma sociedade, a qual é baseada na vontade expressa e manifestada livremente

    pelas partes que as escolhem de maneira personalíssima.

    Percebe-se, assim, a natureza personalíssima do vínculo entre os sócios de uma

    sociedade limitada, o que sobressai a importância das regras de ingresso e de saída dos sócios

    neste formato de sociedade, pois a modificação de quem sejam os sócios pode influenciar a

    própria existência da sociedade.

    24 BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 7. ed.

    rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 201.

  • 26

    Outro aspecto relevante da sociedade limitada, inerente a sua própria denominação,

    refere-se à limitação da responsabilidade dos sócios.

    Segundo os arts. 2º e 9º do Decreto 3.70825, o qual estabeleceu pela primeira vez este

    tipo de sociedade na legislação brasileira, a responsabilidade dos sócios na sociedade por

    quotas seria limitada à importância total do capital social, respondendo solidariamente, em

    caso de falência, pela parte que faltasse para preencher o pagamento das quotas não

    inteiramente liberadas. Ou seja, estabelecia-se, assim, uma responsabilidade subsidiária, pois,

    em um primeiro momento, os sócios não responderiam pelas dívidas. Porém, não havendo

    bens da sociedade suficientes para saldar as obrigações dela, eles responderiam limitados ao

    montante do capital social que ainda não houvesse integralizado. Do contrário, se estivessem

    quites com a respectiva integralização a que se comprometeu, estariam livres de qualquer

    responsabilidade.

    O Código Civil de 2002 reiterou essa limitação, dispondo no art. 1.052 que “a

    responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem

    solidariamente pela integralização do capital social”.

    Os doutrinadores Marcelo Bertoldi e Marcia Ribeiro26 destacam as exceções, nas quais

    os sócios responderão ilimitadamente, quais sejam: (a) quando um sócio que deliberar

    contrariamente ao contrato social ou em desconformidade com o ordenamento jurídico

    responderá ilimitadamente pelas obrigações advindas da decisão (art. 1.080 do Código Civil);

    (b) perante os créditos relativos às dívidas fiscais (art. 135, inciso III do Código Tributário

    Nacional); (c) a crescente e frequente hipótese de responsabilidade ilimitada construída pela

    jurisprudência diante de créditos trabalhistas, quando é verificada a insuficiente de bens da

    sociedade para suportarem o pagamento; (d) todas as hipóteses de abuso da personalidade

    jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial que cause danos

    a terceiros (art. 50 do Código Civil, art. 8º da Lei 8.078/90, art. 4º da Lei 9.605/98, e art. 34 da

    Lei 12.529/11).

    25 Art. 2o. O titulo constituivo regular-se-há pelas disposições dos arts. 300 a 302 e seus numeros do Codigo

    Commercial, devendo estipular ser limitada a responsaiblidade dos sócios à importancia total do capital

    social (sic).

    Art. 9o. Em caso de fallencia, todos os socios respondem solidariamente pela parte que faltar para preencher

    o pagamento das quotas não inteiramente liberadas. Assim, tambem, serão obrigados os socios a repór os

    dividendos e valores recebidos, as quantias retiradas, a qualquer titulo, ainda que autorizadas pelo contracto,

    uma vez verificado que taes lucros, valores ou quantias foram distribuidos com prejuizos do capital realizado.

    (sic). (BRASIL. Decreto 3.708, DE 10 DE JANEIRO DE 1919. Regula a constituição de sociedades por

    quotas, de responsabilidade limitada. Disponível em: . Acesso em: 21 ago. 2014. 26 BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 7. ed.

    rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 203.

  • 27

    Seria possível estender o estudo sobre as sociedades limitadas abrangendo todas suas

    características, tais como as condições para constituição da sociedade, todas as possibilidades

    de aumento e redução do capital social, a legitimidade e os deveres dos administradores, a

    criação e deveres do conselho fiscal, as regras sobre nome social, firma e denominação, dentre

    tantas outras diretrizes. Porém, dada a especificidade do tema ora proposto, esclarece-se que

    será exposto tão somente aquilo que for relevante para seu estudo e, quando oportuno,

    obviamente, será feita a análise complementar do que não houver sido destacado com maior

    ênfase.

    3.2 Legislação aplicável

    A sociedade limitada, originariamente denominada de “sociedade de quotas de

    responsabilidade limitada”, entrou no ordenamento brasileiro por meio do Decreto 3.708, de

    10 de janeiro de 1919, o qual disciplinava esta espécie por meio de apenas dezenove artigos.

    Em razão disso, para alguns doutrinadores ele era lacônico e imperfeito; para outros,

    delimitava na medida certa, já que permitia a criação de cláusulas contratuais em total

    consonância com os interesses e as necessidades dos sócios.

    Sob a vigência do referido diploma legal, o contrato social dessas sociedades poderia

    dispor livremente o seu próprio regramento, o qual deveria observar as disposições do

    Decreto e dos arts. 300 a 302 do Código Comercial27. Naquilo que não fosse regulado no

    27 Código Comercial:

    Art. 300 - O contrato de qualquer sociedade comercial só pode provar-se por escritura pública ou particular;

    salvo nos casos dos artigos nºs 304 e 325. Nenhuma prova testemunhal será admitida contra e além do

    conteúdo no instrumento do contrato social.

    Art. 301 - O teor do contrato deve ser lançado no Registro do Comércio do Tribunal do distrito em que se

    houver de estabelecer a casa comercial da sociedade (artigo nº. 10, nº 2), e se esta tiver outras casas de

    comércio em diversos distritos, em todos eles terá lugar o registro. As sociedades estipuladas em países

    estrangeiros com estabelecimento no Brasil são obrigadas a fazer igual registro nos Tribunais do Comércio

    competentes do Império antes de começarem as suas operações. Enquanto o instrumento do contrato não for

    registrado, não terá validade entre os sócios nem contra terceiros, mas dará ação a estes contra todos os

    sócios solidariamente (artigo nº. 304).

    Art.302 - A escritura, ou seja pública ou particular, deve conter: 1 - Os nomes, naturalidade e domicílios

    dos sócios. 2 - Sendo sociedade com firma, a firma por que a sociedade há de ser conhecida. 3 - Os nomes

    dos sócios que podem usar da firma social ou gerir em nome da sociedade; na falta desta declaração, entende-

    se que todos os sócios podem usar da firma social e gerir em nome da sociedade. 4 - Designação específica

    do objeto da sociedade, da quota com que cada um dos sócios entra para o capital (artigo nº. 287), e da parte

    que há de ter nos lucros e nas perdas. 5 - A forma da nomeação dos árbitros para juízes das dúvidas sociais.

    6 - Não sendo a sociedade por tempo indeterminado, as épocas em que há de começar e acabar, e a forma da

    sua liquidação e partilha (artigo nº. 344). 7 - Todas as mais cláusulas e condições necessárias para se

    determinarem com precisão os direitos e obrigações dos sócios entre si, e para com terceiro. Toda a cláusula

    ou condição oculta, contrária às cláusulas ou condições contidas no instrumento ostensivo do contrato, é nula.

    (BRASIL. Lei n. 556, de 25 de junho de 1850. Código Comercial. Disponível em: . Acesso em: 30 jul. 2014).

  • 28

    contrato social, de forma supletiva e no que fosse compatível, deveriam ser aplicadas as

    disposições da Lei das Sociedades por Ações. Ou seja, a Lei 6.404/76 deveria ser utilizada de

    forma supletiva ao contrato social.

    O Decreto 3.708/19 foi revogado tacitamente pelo Código Civil de 2002, em vigência

    desde 11 de janeiro de 2003, o qual, além alterar a denominação para “sociedade limitada”,

    dispôs de forma distinta sobre a legislação aplicável a tais sociedades.

    O art. 1.053 28 do Código Civil prevê que nos casos de omissão as regras das

    sociedades simples serão aplicáveis às sociedades limitadas, bem como seu parágrafo único

    permite que o contrato social da sociedade limitada possa eleger a aplicação supletiva da Lei

    de Sociedades Anônimas.

    Embora o dispositivo pareça ser claro, sua interpretação vem causando grandes

    discussões, tendo em vista que alguns doutrinadores entendem que, diante do caráter

    contratualista da sociedade limitada, a aplicação das regras das sociedades anônimas – que,

    por natureza, são institucionais e capitalistas – somente não poderia acontecer se houvesse

    uma simples transposição de regras, já que haveria um risco de descaracterizá-la.

    Todavia, o entendimento predominante é no sentido de que as regras das sociedades

    simples constituem regras gerais de Direito Societário, o que é amparado até mesmo pelo teor

    do caput do art. 1.053, também do Código Civil.

    Marcelo Bertoldi e Marcia Ribeiro29 destacam:

    Devemos registrar que a aplicação supletiva das normas relativas às sociedades

    anônimas, quando assim ficar determinado pelo contrato social, somente será

    cabível quando compatível com a natureza da sociedade limitada. Evidentemente

    são incompatíveis as determinações da Lei das Sociedades por Ações que regulam

    os valores mobiliários (debêntures, partes beneficiárias, etc.), as sociedades de

    economia mista, a subsidiária integral, as regras sobre alienação de controle etc. Em

    suma, as disposições da Lei das Sociedades por Ações aplicáveis à sociedade

    limitada são aquelas compatíveis com a natureza desta e que não contrariem seu

    contrato social.

    Fabio Ulhoa Coelho30 ressalta que a aplicação da Lei das Sociedades Anônimas às

    sociedades limitadas acontece em duas situações, quais sejam, quando houver disposição do

    28 Art. 1.053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples.

    Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da

    sociedade anônima. (BRASIL. Lei10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:

    . Acesso em: 13 jul. 2013) 29 BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 7. ed.

    rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 205. 30 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 18. ed. São Paulo: Saraiva,

    2014. p. 399. v. 2.

  • 29

    contrato social determinando sua aplicação, o que ocorreria de forma supletiva ao regime

    estabelecido no Código Civil; e nos casos de lacuna da lei e em matéria não passível de

    negociação entre os sócios, pois, nos termos do art. 4º31, da Lei de Introdução às Normas do

    Direito Brasileiro, assim deve agir o juiz, aplicando-a como forma de colmatagem do sistema

    legal, mediante sua aplicação por analogia, mesmo que o contrato social venha a determinar a

    utilização supletiva das normas da sociedade simples.

    Rubens Requião32 ensina que, para que haja influência da legislação das sociedades

    por ações no funcionamento da sociedade limitada, “o caso deverá prefigurar três condições: I

    – a opção dos sócios pela legislação extravagante; II – a omissão do contrato social sobre o

    tema; III – matéria em que os sócios tenham liberdade para negociar e regular”.

    Em outras palavras, Fábio Ulhoa Coelho33, conclui:

    Sintetiza-se, então, a questão da legislação aplicável às sociedades limitadas nos

    seguintes termos: em assunto disciplinado pelo capitulo do Código Civil específico

    deste tipo societário (Parte Especial, Livro II, Título II, Subtítulo II, Capítulo IV,

    arts. 1.052 a 1.087), vigora a disposição nele contida; na constituição e dissolução

    total, observa-se sempre o Código Civil; nos demais casos, se a matéria é passível de

    negociação entre os sócios, consulta-se o contrato social, aplicando-se

    supletivamente a disciplina do Código Civil respeitante à sociedade simples (arts.

    997 a 1.038), ou, se assim desejado pelos sócios de modo expresso, a da Lei das

    Sociedades por Ações; não sendo a matéria suscetível de negociação, pode-se

    aplicar analogicamente a Lei das Sociedades por Ações na superação da lacuna.

    Assim, é possível concluir que as sociedades limitadas poderão livremente dispor sua

    própria disciplina em seu contrato social, o qual deverá obedecer aos arts. 1.052 a 1.087 do

    Código Civil e estabelecer a incidência supletiva da Lei das Sociedades Anônimas. Em caso

    de omissão quanto à incidência supletiva ou em casos de lacunas da lei, deverá,

    primeiramente, aplicar as regras das sociedades simples. Quando eles não forem suficientes

    ao caso, deverá ser aplicada a Lei das Sociedades Anônimas no que houver compatibilidade.

    31 Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.

    Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios

    gerais de direito. (BRASIL. Decreto-Lei4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução ao às normas do

    Direito Brasileiro. Disponível em: . Acesso

    em: 21 ago. 2014) 32 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 585. 33 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

    p. 400. v. 2.

  • 30

    3.3 Quota social

    Para discutir sobre a quota social de uma sociedade limitada, é preciso antes entender

    o que seja o capital social de uma sociedade empresária.

    Marcelo Bertoldi e Marcia Ribeiro34 definem o capital social como a

    [...] tradução em moeda nacional dos valores ou bens que os sócios transferiram ou

    se obrigaram a transferir à sociedade quando de sua constituição, valores e bens

    esses que serão empregados na consecução dos objetivos sociais e sem os quais a

    sociedade jamais atingiria os fins almejados por seus criadores.

    O art. 287 do Código Comercial revogado bem traduzia essa concepção, ao dispor que

    “é da essência das companhias e sociedades comerciais que o objeto e fim a que se propõem

    seja lícito, e que cada um dos sócios contribua para o seu capital com alguma quota, ou esta

    consista em dinheiro ou em efeitos e qualquer sorte de bens, ou em trabalho ou indústria”.

    Rubens Requião 35 define o capital social como a “soma representativa das

    contribuições dos sócios”, podendo ser constituído em dinheiro – a que os franceses chamam

    de apport en numeraire – ou em bens – apport em nature.

    Ressalta-se que capital social não se confunde com patrimônio social, que é “formado

    pelo conjunto de bens e direitos pertencentes à sociedade empresária”36, embora eles possam

    até ser coincidentes no ato da constituição da sociedade. Após este momento inicial, a

    atividade empresária, naturalmente, gerará gastos e perdas, despesas e ganhos, os quais

    poderão aumentar ou diminuir seu patrimônio, o que, conforme ressalta Marcelo Bertoldi e

    Márcia Ribeiro, sujeita os sócios a deliberarem pela diminuição ou aumento do capital social

    sempre que houver excessos, para que mantenham compatibilidade do seu valor com a

    realidade da atividade.

    Percebe-se que o capital social representa o estímulo econômico inicial, materializado

    por bens, corpóreos ou incorpóreos, de quaisquer espécies – desde que mensuráveis em

    dinheiro – transferidos pelos sócios para a constituição e operação da sociedade.

    Vale destacar que o art. 1.05537 do Código Civil, veda a integralização por prestação

    de serviços, assim como determina a responsabilidade pessoal de todos os sócios pela exata

    34 BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 7. ed.

    rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 162-163. 35 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 495. 36 BERTOLDI, op. cit. p. 163. 37 Art. 1.055. O capital social divide-se em quotas, iguais ou desiguais, cabendo uma ou diversas a cada sócio.

    § 1o Pela exata estimação de bens conferidos ao capital social respondem solidariamente todos os sócios, até o

    prazo de cinco anos da data do registro da sociedade.

  • 31

    valoração atribuída aos bens conferidos ao capital social, pelos quais respondem

    solidariamente até o prazo de cinco anos da data do registro da sociedade.

    Como ensinam Marcelo Bertoldi e Carla Ribeiro38, o capital social terá uma função

    externa, correspondente à garantia que representa perante os credores da sociedade, e uma

    função interna, a qual se destina a suprir a sociedade de bens necessários para a exploração da

    empresa, nos termos propostos por sua constituição e objeto social. Em razão disso, é de

    extrema importância que os bens integralizados representem, realmente, o valor atribuído ao

    capital social.

    O último dispositivo legal citado também estabelece que o capital social deve ser

    divido em quotas, iguais ou desiguais.

    A constituição do capital social é, literalmente, uma transferência de bens para a

    sociedade. Cristiane Gandra, ao citar Paul Le Cannu39, destaca que o aporte se parece muito

    com a venda, pois a propriedade do bem é efetivamente transferida para a sociedade que

    detém personalidade, de modo que, em contraprestação ao bem dado em aporte, o sócio não

    recebe um valor, mas as quotas ou ações, com a participação nos resultados (se houver)

    referentes a elas.

    Com base nestas noções, é possível entender que as quotas40 sociais representam o

    produto do fracionamento do capital social, as quais devem ser repartidas, de maneira igual ou

    desigual, entre os sócios, nos termos que forem dispostos no contrato social.

    Waldemar Marins Ferreira41 para relacionar a concepção de quota social com capital

    social:

    [...] a quota, ao fazer parte do capital, “dele não se desintegra, mas ao contrário nele

    se funde, deixando de pertencer ao sócio a fim de incorporar-se no cabedal

    § 2o É vedada contribuição que consista em prestação de serviços. (BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de

    2002. Institui o Código Civil. Disponível em: .

    Acesso em: 13 jul. 2013). 38 BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 7. ed.

    rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 163. 39 LE CANNU, Paul. Detroi des Sociétés. Paris: Montchrestien, 2002. p. 107, citado por GANDRA, Cristiane

    Giuriatti. Partilha de quotas de sociedade limitada em virtude de dissolução de sociedade conjugal.

    2006. Dissertação (Mestrado em Direito Empresarial) – Faculdade de Direito Milton Campos, Nova Lima.

    Disponível em: . Acesso em: 28 ago. 2014. 40 Embora seja comum a grafia distinta da palavra, segundo o Dicionário Aurélio e o Vocabulário Ortográfico

    da Língua Portuguesa, quota ou cota possuem grafias corretas e tem significados idênticos. (FERREIRA,

    Aurélio Buarque de Holanda; FERREIRA, Marina Baird; ANJOS, Margarida dos (Coord.). Dicionário

    Aurélio da língua portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo, 2010; ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS.

    Quota ou cota: possuem grafias corretas e tem significados idênticos. Disponível em: . Acesso em: 19 out. 2014) 41 FERREIRA, Waldemar Martins. Sociedade por quotas. 5. ed. rev. aum. São Paulo: Companhia Graphico

    Editora Monteito Lobato, 1925.

  • 32

    societário, uno e inteiriço”. Por fazer parte integrante do capital, o sócio tem “nada

    mais do que as cifras do seu montante, medida dimensional para o exercício de seus

    direitos, no confronto com os dos demais sócios”.

    Isso porque, constituída e registrada a sociedade, começa a sua existência legal

    como pessoa jurídica de direito privado, adquirindo, desde então, personalidade

    jurídica, inconfundível com a dos sócios que a compõe. Portanto, quando o sócio

    confere ao capital os seus cabedais, seja em dinheiro ou em bens, procede à

    transferência da respectiva propriedade.

    Desse contexto se extrai que o sócio transfere um imóvel sobre o qual ele possui um

    direito real – direito de propriedade – para, em troca, receber quotas. Dessa contraprestação

    surge uma premissa essencial para correlacionar o Direito das Sucessões com o Direito

    Empresarial ao assunto ora proposto: a natureza híbrida das quotas sociais.

    Conforme ensinam Marcelo Bertoldi e Márcia Ribeiro42, a natureza jurídica das quotas

    possui duplo aspecto: quais sejam, como direito pessoal, por atribuírem a seu titular todos os

    direitos inerentes ao sócio; e como direito patrimonial, por conferirem a seu dono o direito de

    participar dos resultados sociais e da partilha no caso da liquidação da sociedade.

    Essa distinção também é feita por Arnoldo Wald43, que destaca conforme feito no

    Direito Alemão, anunciando a expressão Stammeinlage como definição para os direitos

    patrimoniais, por representar parte de contribuição aos sócios e a expressão Geschäftsanteil,

    que detona a direito pessoal, definido como status socii.

    Leopoldo da Cunha Nicoli44 noticia que para a maioria da doutrina as quotas sociais

    podem, além de comporem o patrimônio do sócio, representar também sua participação na

    administração e fiscalização na gestão da sociedade. Desse modo, o aspecto patrimonial

    consiste no valor pecuniário que elas representam em caso de liquidação da sociedade, bem

    como na percepção de lucros. Já o direito ao status socii revela o direito de participar e de

    opinar sobre o rumo da sociedade e suas decisões gerenciais.

    Alguns autores, como José Edwaldo Tavares Borba 45 , entendem que as quotas

    correspondem à posição de direitos perante a sociedade, os quais são direitos pessoais de

    caráter patrimonial, enquanto a ação, ela própria, é objeto de direito, de tal forma que dela

    decorrem os direitos de seu titular em relação à sociedade.

    42 BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 7. ed.

    rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 215. 43 WALD, Arnoldo. Comentários ao novo código civil. Coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro:

    Forense, 2005. V. XIV, livro II, p. 357. 44 NICOLI, Leopoldo da Cunha. A resolução da sociedade limitada em virtude do falecimento de um sócio:

    um embate entre o direito das sucessões e o direito de empresa. 2012. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de

    Direito Milton Campos, Nova Lima, p. 45-46. 45 BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. 11. ed. rev. aum. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

    p. 45.

  • 33

    A percepção principal a que se deve chegar é a de que a detenção de quotas de uma

    sociedade apresenta duas distintas finalidades, as quais, embora sejam interligadas, podem

    justificar a disciplina específica para o destino das quotas, como ocorre no caso de

    falecimento de um sócio, o que será tratado adiante.

    3.4 Contrato social

    Nos termos dos arts. 45, 985 e 1.150 do Código Civil46, tem-se que as sociedades

    empresárias são constituídas por meio do seu instrumento de constituição, o qual é chamado

    de estatuto ou contrato social, a depender do tipo societário.

    No caso das sociedades limitadas, deverá ser elaborado o contrato social, o qual será

    arquivado no Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais do

    Estado onde ela operará suas atividades, no prazo de 30 (trinta) dias de sua assinatura, cuja

    validade retroagirá a este momento.

    Há uma larga discussão sobre a natureza jurídica do contrato social, haja vista que,

    embora seja um contrato propriamente dito, não se detectam nele as características

    tradicionais dos contratos em geral.

    Autores, como Gierke, Duguit, Rocoo e Messineo citado por Marcelo M. Bertoldi47,

    defendiam a ideia de que o contrato seria um ato complexo ou coletivo, já que, embora

    existam a bilateralidade de interesses, deveres e direitos, estaria ausente o antagonismo entre

    as partes envolvidas, pois não haveria interesses contrários, mas, ao contrário, a conjunção de

    esforços dirigidos a um mesmo objetivo.

    Posicionamento diferente e predominante é o que se atém à natureza contratualista das

    sociedades.

    46 Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo

    no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo,

    averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.

    Parágrafo único. Decai em três anos o direito de anular a constituição das pessoas jurídicas de direito

    privado, por defeito do ato respectivo, contado o prazo da publicação de sua inscrição no registro.

    Art. 985. A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei,

    dos seus atos constitutivos (arts. 45 e 1.150).

    Art. 1.150. O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a

    cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o qual deverá

    obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade

    empresária. (BRASIL. Lei10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:

    . Acesso em: 13 jul. 2013) 47 BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 7. ed.

    rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 158.

  • 34

    Conforme ensina Tullio Ascarelli 48 , as sociedades empresárias são formadas por

    contrato plurilaterais, os quais permitem a participação de mais de duas partes, sendo que

    todas elas assumem obrigações e usufruem de direitos recíprocos. Na sociedade, embora

    exista o conflito de interesse entre os envolvidos, todos têm uma finalidade em comum, que é

    exatamente aquela associada à constituição, funcionamento e sucesso da sociedade formada.

    A ideia é de que existe um feixe de obrigações entrelaçadas, e não uma contraposição de uma

    parte contratante perante a outra.

    Ainda que existam outras teorias, como comenta Leopoldo Nicoli49, prioriza-se essa

    teoria contratualista (plurilateral), tendo em vista que para ela a conservação da empresa é

    mais significativa do que a conservação do sócio, pelo que, quando se fala em dissolução,

    deve-se procurar a possibilidade de romper apenas um vínculo contratual, permanecendo os

    demais, em virtude do princípio da preservação e da função social da social.

    Superadas essas questões referentes à natureza do contrato social, passa-se a defini-lo,

    informando que o contrato social é um instrumento a ser elaborado pelos sócios fundadores da

    sociedade, lavrado por instrumento público ou privado, o qual irá regular sua existência,

    dispondo as regras essenciais para o seu funcionamento, como a definição do capital social, a

    distribuição de quotas, a forma de administração da sociedade, o objeto social e o prazo de

    duração, dentre outras disposições. Como afirma Marcelo Bertoldi50, o contrato social é o

    instrumento que, ao regular o funcionamento da sociedade, impõe, em conjunto com o

    ordenamento jurídico, as regras a que se submeterão a sociedade empresária e seus sócios.

    Diante do que estabelecem o art. 997 do Código Civil51 e o art. 53, inciso III, do

    Decreto 1.800/9652, é possível identificar que existem as cláusulas contratuais obrigatórias e

    as facultativas.

    48 ASCARELLI, Túlio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. Campinas: Bookseller,

    2001. p. 374. 49 NICOLI, Leopoldo da Cunha. A resolução da sociedade limitada em virtude do falecimento de um sócio:

    um embate entre o direito das sucessões e o direito de empresa. 2012. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de

    Direito Milton Campos, Nova Lima, p. 19. 50 BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 7. ed.

    rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 206. 51 Art. 997. A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas

    estipuladas pelas partes, mencionará:

    I - nome, nacionalidade, estado civil, profissão e residência dos sócios, se pessoas naturais, e a firma ou a

    denominação, nacionalidade e sede dos sócios, se jurídicas;

    II - denominação, objeto, sede e prazo da sociedade;

    III - capital da sociedade, expresso em moeda corrente, podendo compreender qualquer espécie de bens,

    suscetíveis de avaliação pecuniária;

    IV - a quota de cada sócio no capital social, e o modo de realizá-la;

    V - as prestações a que se obriga o sócio, cuja contribuição consista em serviços;

    VI - as p