oliveira, paulo césar - subalternidade e ficção contemporânea - diálogos e problemas

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    e scrita ISSN 2177-6288

    V. 6 2015.2 OLIVEIRA, Paulo Cesar

    e-scrita Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilpolis, v.6, Nmero 2, maio-agosto, 2015

    SUBALTERNIDADE E FICO CONTEMPORNEA: DILOGOS,

    PROBLEMASPaulo Csar Oliveira1

    RESUMO: Este artigo discute introdutoriamente o tema da subalternidade, seus limites e alcances, a partir da leitura de textos polticos e fundadores do pensamento latino-americano em dilogo com trsobras literrias contemporneas. Objetiva-se pensar a questo da subalternidade e do marginal sob o ponto de vista das novas configuraes sociais e como fenmeno crtico-terico, em que o caso daliteratura exemplar na representao da alteridade. Leituras de Silviano Santiago sobre Octavio Paz eSrgio Buarque de Hollanda guiam nossa reflexo terica. Desde que o samba samba , de Paulo Lins;O filho da me , de Bernardo Carvalho e Festa no covil , de Juan Pablo Villalobos nos auxiliaro a pensar novas configuraes do debate em torno da subalternidade.

    Palavras-chave: Subalternidade. Fico contempornea. Teorias.

    Subaltern studies in contemporary fiction: dialogues, problems

    ABSTRACT: This article investigates the questions of the subaltern and its limits, supported by thereadings of foundational texts in Latin-American thought, in dialogue with three contemporary novels.It aims at discussing critically and theoretically the subaltern and the marginal on the point of view ofnew social arrangements.Silviano Santiagos readings on Octavio Paz an d Srgio Buarque deHollandas w orks is our theoretical base. Desde que o samba samba , by Paulo Lins;O filho da me ,

    by Bernardo Carvalho, and Festa no covil , by Juan Pablo Villalobos will help us study the newconfigurations of the debate concerning the subaltern studies.

    Keywords: Subaltern. Contemporary fiction. Theories.

    IntroduoEm artigo de 1971, Roberto Fernndez Retamar problematizava a questo da

    subalternidade e dependncia literria e cultural na Amrica Latina a partir da mtica personagem Caliban, de William Shakespeare. Retamar propunha um debate amplo sobre o

    1 Professor Adjunto de Teoria Literria da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor e Mestreem Cincia da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente faz estgio de Ps-doutorado na Universidade Federal Fluminense, sob a superviso da Professora Dra. Lucia Helena. bolsistaPr-Cientista da UERJ, onde atua no Mestrado Profissional em Letras e coordena o programa de Especializaoem Estudos Literrios. Publicou Potica da distenso (Manaus: Muiraquit, 2010) e Leituras nacontemporaneidade (Belm: Editora Literacidade, 2014), em parceria com a professora Dra. Maria CristinaRibas. Organizou as coletneas Memria e identidade (Rio de Janeiro: Edies Galo Branco, 2011); Disporas edeslocamentos (Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas; FAPERJ, 2014); e Poticas do contemporneo(Jundia, SP: Paco Editorial, 2014), todos em parceria com a professora Dra. Shirley Carreira. Lder do Grupo dePesquisa CNPq Poticas do Contemporneo e Vice -lder do Grupo de Pesquisa CNPq Nao - Narrao e pesquisador integrante do Laboratrio Multidisciplinar de Estudos de Memria e Identidade da UNIABEU,fomentado pela FAPERJ.

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    que, no sculo XIX, determinaria a tensa relao do colonizado com o colonizador europeu. O pleito de autonomia frente aos antigos colonizadores, no campo poltico e na seara cultural,resultou nos processos de independncia poltica, de um lado, e na busca de uma raiz cultural

    que se desprendesse da ento rvore metropolitana, por outro lado. O Romantismo brasileiro pensou e ficcionalizou essa tenso, sem resolv-la, e seus efeitos perduraram at o projetomodernista, que levou a questo ideia de uma antropofagia-fonte a guiar nossos processosde reflexo sobre a dependncia, cultural e poltica. Na contemporaneidade, as relaes polticas e culturais globais requerem uma volta a esse passado dicotmico, mas asespecificidades de nossos problemas tambm demandam uma reflexo mais apurada sobre osfenmenos do presente nas relaes interpessoais, polticas e culturais.

    O ensaio de Retamar expressava as tenses polticas da poca em que foi publicado:de um lado, a presena dos Estados Unidos, que impunha um boicote econmico, poltico ecultural a Cuba, somente agora, em 2015, levantado; de outro, no mbito das polticasmundiais, apontava o acirramento da luta ideolgica entre o pensamento de esquerda e o dedireita, fortemente marcados pela Guerra Fria que opunham norte-americanos antiga UnioSovitica. Por alinhar-se ao comunismo de linha sovitica, Cuba passava a ser uma ameaamaterializada a poucas milhas nuticas da potncia americana. O exemplar episdio dafracassada invaso Baa dos Porcos (conhecida tambm como La batalla de Girn ), em abrilde 1961, foi o ponto culminante daquele estado de tenso, que resultou na derrota dosexilados cubanos anticastristas, financiados pelo governo americano, o que acabouconsolidando, ideolgica e politicamente, o regime de Fidel Castro, por um lado e, por outro,fez de Cuba uma espcie de Golias na luta contra o gigante imperialista.

    Sabemos que as questes geopolticas se estenderam ao campo das ideias e formaramtodo um imaginrio, que contaminou as lutas ideolgicas na esquerda latina e se irradiou pelasreas da cultura, especialmente a partir da romantizao potente da revoluo e daentronizao de um dos lderes maiores da Revoluo Cubana, Ernesto Che Guevara. Oscampos poltico, econmico e militar dialogariam fortemente com o campo intelectual. Aconstruo de um ideal revolucionrio, concretizado na prtica pela Revoluo Cubana, foidecisivo para que uma ideia decultura de resistncia e de luta se estabelecesse no horizonte poltico das Amricas. Para Retamar, essa relao entre dominador e dominado j teria sidoalegoricamente representada por William Shakespeare, na figura de Caliban em relao aPrspero. As duas personagens sintetizariam as discusses acerca da herana colonizadora,

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    hegemnica em suas tenses com a jovem cultura em progresso, no caso, a cubana. SegundoRetamar, os efeitos dessas transformaes j seriam sentidos nos debates sobre as relaesentre poltica e cultura. Hoje, no momento em que se pensa a emergncia de umaWorld

    Literature , as discusses estabelecidas por Retamar ainda subsistem de forma insuspeita,quando se pensa os limites e alcances dos aspectos polticos e culturais da globalizao.

    Este trabalho visa a discutir a questo estabelecida pioneiramente por Retamar e comela trazendo cena crtica problemas suscitados por algumas obras capitais que problematizam os caminhos e descaminhos da cultura na Amrica Latina. A literatura oespao de interlocuo escolhido. Como o espao para a discusso dessas questes se faz pequeno diante da evidente complexidade do tema, elegemos alguns textos fundamentais para

    nos guiarmos nesta reflexo de carter introdutrio, cientes de que futuros trabalhos deverosuplementar os dilemas aqui apresentados.

    Alm das pioneiras incurses de Retamar, o jogo discursivo de Silviano Santiago(2006) em torno do pensamento de Srgio Buarque de Hollanda e Octavio Paz nos fornecerum modo de entrada na discusso encaminhada por esses dois intrpretes da cultura latino-americana. Com esses autores, tendo em vista o alcance de suas ideias em sua poca e acapacidade delas iluminar o presente e sempre com o olhar voltado para o campo da ficocontempornea pretendemos dar incio a uma investigao cuja hiptese inicial focaliza o problema da subalternidade como elemento crtico que, em nossas terras, desde o movimentoromntico at hoje, sustenta o potencial debate sobre o papel da crtica e da literatura nareflexo acerca de um ideal democrtico de arte e cultura. As obrasO filho da me , deBernardo Carvalho (2009), no Brasil; Festa no covil , do mexicano Juan Pablo Villalobos(2012); e Desde que o samba samba , de Paulo Lins (2012) sustentaro nosso dilogo com asteorias propostas. Outras obras e autores sero inseridos no discurso crtico, cada vez aexemplificao e a comparao se fizerem necessrias. Os temas da mobilidade e clausura,que vimos estudando h alguns anos nos do a dimenso terica que o trabalho visa aalcanar.

    1. Campos minadosEm uma cena deThe tempest , de William Shakespeare (1995, p. 38), Caliban

    protesta contra Prspero pelo roubo da ilha herdada de sua me:The Islands mine by Sycorax my mother,

    Which thou takst from me; when thou camst first

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    Thou strokdst me, and made much of me: wouldst give meWater with berries in t: and teach me how To name the bigger Light, and how the lessThat burn by day, and night:and then I lovd thee And showd thee all the qualities o th Isle, The fresh springs, brine-pits, barren place and fertile;Curs d be I that did so : all the charmsOf Sycorax: toads beetles, bats light on you:For I am all the subjects that you haveWhich first was mine own King: and here you sty meIn this hard rock, whiles you do keep from meThe rest o th Island. 2

    A passagem, tambm comentada por Retamar (1988, p. 29), plena de sugestesinterpretativas. Shakespeare cria uma Ilha imaginria onde Prspero aporta, com sua filhaMiranda, depois de uma traio poltica. L encontra Caliban, a quem escraviza, apsconquistar sua amizade e ensinar sua lngua. A figura do conquistador a de um ser ardiloso,sedutor e mgico, conhecedor de foras ocultas que subjugam o colonizado Caliban. Isso noimpede o nativo de transgredir e desrespeitar as regras do usurpador. Caliban conserva aimagem de si como a de um Rei, lembrana de um perodo antes da queda proporcionada pelachegada do outro-invasor. esse sentimento e memria da revolta que o faz constantemente buscar meios de vingar-se de Prspero. Este, por sua vez, chega Ilha por conta das

    intempries e vicissitudes da guerra poltica, aps a traio de seu irmo Antnio, que lhetoma o trono de Milo. Prspero se vingar atravs de sortilgios, fazendo com que o navioonde o irmo e sua comitiva se encontram naufrague nos arredores da Ilha. Caliban sofreindiretamente os efeitos das guerras polticas travadas no campo dos colonizadores e nomenos cruis sero as consequncias desta apropriao para o nativo. O processo deconquista, explorao e escravizao de Caliban encena os processos de expansocolonialista: o que nossa histria, o que a nossa cultura seno a histria, seno a cultura

    de Caliban? (RETAMAR, 1988, p. 29).

    2 As tradues do original sero todas retiradas de: SHAKESPEARE, William. A tempestade . Porto Alegre:L&PM, 2015. Mantivemos o original, por conta da organizao em versos, o que no ocorre na traduo aquiutilizada:Esta Ilha minha, pois a herdei de Sicorax, minha me, e tu a roubaste de mim. Quando aquichegaste, me acarinhavas, e me tinhas em alta conta; davas-me gua com pinhes de cedro; e me ensinavas comonomear as duas grandes Luzes: a maior, que governa o dia, e a menor, que governa a noite. E eu ento te amava,e a ti mostrei todas as virtudes da Ilha, as fontes de gua doce, as salinas, os pontos desrticos e as terras frteis.Maldito seja eu, que assim procedi. Que todos os feitios de Sicorax, sapos, baratas, morcegos pousem em vocs, pois eu sou todos os sditos que o senhor tem, e antes era eu o meu prprio Rei. E aqui o senhor me prende,como porco confinado, nesta inspita laje de pedra, enquanto tiras de meu alcance o resto da Ilha(SHAKESPEARE, 2015, p. 26-27).

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    Esse processo de explorao no se d sem lutas. Caliban nutre uma revolta, emboraimpotente, que se manifesta, desde a tentativa de estuprar Miranda, filha de Prspero blasfmia proferida na linguagem ensinada a ele pelos colonizadores. Neste sentido, a

    resistncia um processo que envolve a violncia original do estupro e a violncia dalinguagem exposta, por ele utilizada para praguejar contra o colonizador, conforme a fala deCaliban a Miranda (SHAKESPEARE, 1995, p. 39):

    You taught me language, and my profit on t Is, I know how to curse: the red plague rid youFor learning me your language.3

    Caliban lamenta no poder povoar a terra de calibanzinhos . Sua aquiescncia aosdesmandos de Prspero se deve ao me do da punio que este lhe impe com sua mgica.

    Caliban deve se resignar, mas no sem revolta e cinismo. A suposta aceitao dos desmandosno esconda sua natureza em permanente transgresso. A fora bruta de Prspero revela aviolncia fundadora dos processos de colonizao, enquanto a luta poltica desvela os processos de negociao e alianas, mas uma outra questo, a da linguagem, se faz tambmimpor como instrumento de resistncia. A fala de Caliban contraria a norma do ingls corrente poca de Shakespeare, evidenciando as mudanas na lngua do colonizador que resultar nalngua mestiada que se formar nas reas dominadas. A fora bruta, por um lado, mantm as

    populaes sob controle, mas a disseminao da lngua, que se d atravs de contaminaes eapropriaes, devidas ou indevidas, revela-se incontornvel, fazendo com que, ao contrrio daclausura imposta pela fora, processos de mobilidade criativos, incontrolveis, cnicos,subversivos e contraculturais diluem a norma e se mostram motores de resistncia etransgresso. Nesse momento, consideramos urgentes as palavras de Fredric Jameson (2005, p. vii):

    The English translation of these essays by Roberto Fernndez Retamar oughtto be the occasion for rethinking the relations between poetry and politics or even between literary criticism and politics in a situation in whichincresingly no one wants to think about that relationship any longer.

    Por meio das questes levantadas a partir da leitura de Caliban como alegoria denossa condio colonial, do ser-outro em uma relao hegemnica, de dominao,entendemos o problema levantado por Jameson, quando aponta o carter poltico do textoliterrio como um elemento negligenciado pela crtica literria. Para Retamar (1988, p. 59),

    3 A senhorita me ensinou sua lngua, e o que ganhei com iss o foi que aprendi a praguejar. Que a peste vermelhaacabe com vocs, por me terem ensinado sua linguagem (SHAKESPEARE, 2015, p. 28).

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    fugir do embate poltico no texto literrio no significa, por outros mecanismos, ter que ler aliteratura como denncia, mas sim conferir na matria literria que saberes nos permitemcompreender como a histria oficial silencia e segrega certas formas de discurso. Uma

    literatura apenas preocupada com embates de linguagem pode, segundo Jameson, camuflarimportantes movimentos de passagem, que apontam o leitor como agente de leitura privilegiado: em A tempestade , por exemplo, esses movimentos de passagem revelamdimenses histricas e polticas para as quais o texto shakespeareano j apontava e o leitorcontemporneo pode atualiz-las, trazendo para o debate sobre a questo da subalternidade, por exemplo, novas e inquietantes especulaes. Prossigamos.

    A questo da subalternidade remete o crtico ao problema do outro, da alteridade, da

    outridade. Essas nomenclaturas devem ser enunciadas fora de uma pretensa singularidade, aocontrrio, preciso mant-las no campo das plurissignificaes. Como falar, por exemplo, docolonizado como um outro? Esse outro, carrega dentro de si as peculiaridades, osmecanismos, as heranas culturais, lingusticas, estticas, culturais, polticas, econmicas efilosficas, dentre outras, daquele que se pretende o diferido na relao: o colonizador, comsua cultura hegemnica e seu passado de herana autoritria, chame-se isso de invaso,usurpao, genocdio etc. Tambm somos, por herana, cultural ou gentica, frutos decontaminaes, aceitas ou impostas, adquiridas pelos processos naturais de aquisio dalngua e assimilao cultural, ou mesmo imputadas por um outro que se afirma como adiferena, mas que parte de uma suposta unidade qual tambm pertencemos. Ou seja: o povo que aqui se formou a partir da colonizao passou a se ver paulatinamente como umoutro, com mais fora, a partir do segundo centenrio da colonizao. Em duzentos anos, ns,latino-americanos, j nos vamos como o elemento diferido em relao s reasmetropolitanas. Ao final do sculo XVIII pululavam movimentos de independncia e noincio do sculo XIX a separao poltica acabaria se materializando, originado as diversasrepblicas latino-americanas. No Brasil, a independncia foi seguida da implantao de umregime monrquico, o Imprio, caso especialssimo no panorama da Amrica Latina.

    Mas o que fez aquela populao, a princpio surgida na mestiagem entre colonizadore populaes colonizadas e outras, diaspricas, como no caso dos negros de frica, sedistanciar da metrpole a ponto de v-la como o inimigo, o sujeito a ser destitudo, rejeitadocomo o indesejvel das gentes, j que tambm esse novo povo formado pelos processos dehibridao racial continha os elementos do dominador, o que a questo da imposio da

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    lngua bem comprova. Por qual processo de decantao poderamos separar os macro emicroorganismos do processo multicultural e multifacetado que nos formou e ainda forma?

    Jameson diz que inerente ao Primeiro Mundo considerar evidentes e naturais certos

    processos de esquecimento. Esses processos se caracterizam por conceber a histria pelo visdo notvel e do singular, como se isso fosse consequncias natural do estabelecimento derelaes que so, ao contrrio, marcadamente culturais, intrinsecamente polticas, econmicase ideolgicas. Falar da diferena, nesse sentido, fazendo uma tabula rasa de processos que soabsolutamente histricos e que s no curso do tempo passado, em sua trajetria e noconhecimento de seus efeitos no presente podem ser reapropriados e redimensionados,significa naturalizar o que ideologicamente precisa ser desconstrudo, redefinido,

    reapropriado. Deste modo, textos fundadores e que pensam a constituio das razes latino-americanas pela imagem do labirinto, ao serem recuperados no presente, como o faz SilvianoSantiago (2006), tornam-se leitura obrigatria para a colocao em debate de uma discussosobre o problema da subalternidade.

    2. Razes, labirintos A leitura crtica da obra de Srgio Buarque de Hollanda e Octavio Paz por Silviano

    Santiago estabelece uma tripla articulao, que no perde de vista os textos-fonte em seumomento histrico, nem se furta ao olhar contemporneo que, por conta dos efeitos dareapropriao terica do passado no presente, acaba por promover um quarto leitor no caso,ns, todos os que nos sentimos estimulados pelo debate que deve contra-assinar os textosem dilogo, suplementando-os. A lgica do suplemento faz jus ao trabalho da escrita reflexiva por Santiago e contra-assinando, portanto, que poderemos contribuir para que alguns problemas suscitados, tanto pela leitura crtica quanto pela leitura literria, constituam novoscampos de saber nos sempre polmicos debates sobre identidade e subalternidade.

    Como dito, Santiago destaca inicialmente a distncia temporal que separa Razes do Brasil de O labirinto da solido a primeira obra, de 1936, ainda no se ressentia dos efeitosda Segunda Guerra, enquanto que o trabalho de Paz, de 1950, j continha os efeitos da polarizao mundial que se seguiria ao conflito encerrado em 1945. Em seguida, rediscute asduas tipologias buscadas por Hollanda e Paz: obaro e o pachuco , respectivamente. SeHollanda se concentra na figura dominante dobaro e o elege como sujeito representativo denossas construes sociais, Paz, ao contrrio, v a figura incmoda do pachuco , hbrida e

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    caracterstica de um tipo de personagem: o sujeito desterritorializado. Se obaro situava-sena linha de uma espcie de Prspero moldado ao Sul do continente americano, j ao norteOctavio Paz v no pachuco uma modalidade de Caliban, inserido na cultura norte-americana,

    que se torna dominante aps a Segunda Guerra. Ambas as representaes traduzem o problema daafirmao da personalidade, embora em searas diversas: Os dois intrpretesdeveriam eleger no catlogoalgum que, sendo singular, fosse um tipo humano; algum que,no contexto ocidental, viesse a ser o mais apropriado dos possveis representantes daatualidade civilizacional latino-americana (SANTIAGO, 2006, p. 23).

    Esses sujeitos desterritorializados e reterritorializados sintetizam a falta de coesosocial, no caso brasileiro, e a dessimetria das relaes interpessoais, no caso dos mexicanos

    vivendo na vizinha potncia dominante, os Estados Unidos. Se obaro concentra em siexcessivos poderes, na conjuntura poltica e econmica brasileira, o pachuco representa odeserdado e desterrado, reconhecido como trabalhador braal e cidado de segunda classe nadiscricionria sociedade americana. Para ambos os pensadores, o lugar da subalternidade determinado ora pelo vis dos que detm o poder (Hollanda) ora daqueles que sobrevivem margem das estruturas hegemnicas, a ela aderindo e se contrapondo (Paz), como hbridosincmodos e desestruturantes.

    No Brasil, o caso do malandro pode servir de paralelo para algumas homologias como tipo pensado por Octavio Paz. Em Desde que o samba samba , de Paulo Lins (2012), umagaleria desses sujeitos-malandros compor a trama do romance, como veremos na ltimaseo de nosso trabalho. J emO filho da me , de Bernardo Carvalho, a questo do sujeitohbrido pode atualizar as relaes estabelecidas nas duas verses, a dobaro , em Hollanda, ea do pachuco , em Paz, pois a questo do pertencimento no romance nos revela algumasaporias do discurso sobre a identidade e suas margens. Em Festa no covil , do mexicano JuanPablo Villalobos (2012), as dicotomias estabelecidas pelas oposies margem/periferia,centralidade/subalternidade, cultura hegemnica e cultura perifrica requerem novosencaminhamentos e reflexes. A figura do narcotraficante poderoso no se amolda, nem aoscritrios hegemnicos representados pela figura dobaro , nem aos lugares da excluso pelosquais o pachuco transita. Com os trs exemplos na fico atual, queremos adicionar a esse processo de leituras e reenvios crticos, como j dito, um quarto elemento. Esse elemento dizrespeito s novas reconfiguraes do problema da subalternidade, especialmente aps arevoluo terica e metodolgica estabelecida pelos Estudos Culturais e Ps-coloniais. Para

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    isso, precisamos avanar nas questes j encaminhadas por Hollanda e Paz e relidas com propriedade por Santiago.

    Santiago (2006, p. 37) prope submeter as reflexes de Paz e Hollanda atividade

    desconstrutora para que a nova leitura se abra a uma avaliao atual e mais justa dacontribuio dos dois grandes pensadores. Neste sentido, Santiago, apoiado em JacquesDerrida, propea suspenso, pelas aspas, dos termos baro e pachuco neste momento,aboliremos os itlicos, optando pelo teatro aspado como forma de responder, tanto squestes do presente, quanto aos reclames do passado,tornando evidente, a ruptura do novoem relao ao velho, acentuando em troca a diferena entre o passado e o presente, diferenaesta que tinha sido camuflada pela homogeneidade unvoca da velha escrita ensastica. Com

    isso, Santiago reafirma o conceito deentre-lugar , que j havia proposto anteriormente aseus leitores.4

    Nesses espaos de interlocuo, dados pela inicial reflexo de Hollanda, por meio dobaro e pelas pioneiras ilaes de Paz, com a figura do pachuco , a suspenso das aspasrevela o jogo intrnseco das ideologias e do poder, mas, sabedores da condio aspada de quese revestem esses conceitos entendemos que s podemos l-los sob o signo de umarepresentao, ao mesmo tempo restauradora de um pensamento hegemnico, enquanto que, por outro lado, estabelece o vazio como condio reflexiva, j que os vazios tambm solugares mais adequadamente,entre-lugares ou espaos que uma matemtica culturalinsiste em no reconhecer.

    A representao do baro e do pachuco, segundo Santiago, se prestam leituradesconstrutora. A identidade latino-americana, quando deixa de ser pensada por meio de umamarca de diferenciao nica, demanda os vrios registros possveis que vo traar as rotas denovas reconfiguraes. A figura dobaro , que Hollanda percebe dominante na construodo modus vivendi e operandi das classes dominantes brasileiras, no escapou s lentes crticasda literatura, especialmente na obra de Machado de Assis, mais especificamente, em seu BrsCubas. Naquele romance j eram encenadas as paradoxais contaminaes entre o pblico e o

    4 EmUma literatura nos trpicos , estudo de 1978, Santiago j discutia os embates entre duas civilizaes que sedesconhecem mutuamente, a do Velho e a do Novo Mundo. Neste ensaio, Santiago trata desseentre-lugar , que odiscurso privilegiado da literatura encena e reencena, habilmente. Para ele, o escritor latino -americano nosensina que preciso liberar a imagem de uma Amrica Latina sorridente e feliz, o carnaval e a fiesta , colnia defrias para turismo cultural (SANTIAGO, 2000, p. 26), situando -a nas aporias do sacrifcio e do jogo; entre a priso e a transgresso; entre o cdigo a que se submete e a transgresso a ele: ali, nesse lugar aparentementevazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropofgico da literatura latino-americana (SANTIAGO, 2000, p. 26).

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    privado e no seu bojo Machado percebia as contradies da sociedade brasileira, dentre elas,as relaes de trabalho, que promoviam o saber bacharelesco em detrimento das atividadesmanuais. Alm disso, Brs Cubas viria simbolizar toda uma classe social, que por meio da

    propriedade, da influncia poltica e da titulao, prescindem do suor de cada dia para ganharo po.O captulo XLIII Marquesa, porque eu serei Marqus, em que Virglia decide -se porLobo Neves e no por Brs Cubas, dado que aquele a faria Marquesa, expressa bem a polticanobilirquica que propiciar a Neves conquistar a titulao de Marqus por meio de umanomeao a Ministro e, consequentemente, na vida privada, conquistar a preferncia deVirglia no pedido de casamento. A acomodao se dar igualmente no nvel dos poderosos:Virglia casar com Lobo Neves e far de Brs Cubas seu amante.

    O mundo privado confunde-se com o ambiente pblico e sua interlocuo, tanto emuma como em outra esfera, revela a desenvoltura e desfaatez dos que partilham as estruturasde poder, prontos a se adaptarem s convenincias com alto grau de proficincia. EntreBaronesa e Marquesa, Virglia decide pelo ttulo mais nobre, mantendo no nvel dos afetos,um caso extraconjugal.

    Tais sujeitos representam um sistema, abstrao que cai como uma luva para omascaramento de nomes e ideologias: Se entre ns o regime monrquico transitou como um

    bestializado para o republicano, o regime escravocrata transitou para o regime de trabalholivre sem atacar e desatar o n da condio do subalterno, que o da escravido

    (SANTIAGO, 2006, p. 230). Assim, as mudanas polticas e sociais no resultam, no planoconcreto, em efetiva transformao e alternncia no poder. Esses paradoxos so espcies demscaras a esconder movimentos pendulares. Deste modo, a cordialidade que o brasileiroassume adeformao do ntimo, do familiar e do privado (SANTIAGO, 2006, p. 244). Amscara do sujeito cordial preserva, por um lado, o familiar e o ntimo, enquanto que, poroutro, camufla as duvidosas regras do jogo na esfera pblica, mantendo, portanto, asupremacia do indivduo sobre o corpo social. O individualismo, ou personalismo, como preferiu Hollanda, mostra-se presena soberana em nossas relaes sociais.

    J o pachuco, com seu misto de distncia e provocao, de disfarce e vida

    inventiva, exercita, com seu individualismo, um estilo original de vida. Com suas roupasextravagantes, exageradas, ele se exibe em praa pblica em toda sua ambiguidade, salvando-se da mesmice humilde e humilhada que tpica do subalterno (S ANTIAGO, 2006, p. 47).Com isso,o pachuco expressa, de certa forma, o processo de americanizao global que se

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    agigantava no Ps-guerra, mas, de outra mirada, no plano individual recusa a condio deespelho. Sujeito paradoxal e tambm pendular, o pachuco pode suplementar o baro, nocomo seu antpoda, mas como sujeito que revela as deformaes nas fronteiras porosas do

    privado e do pblico.Paz e Hollanda pensaram uma potica da identidade e da subalternidade a partir de

    nossa condio de latino-americanos. Hoje, sob a mirada dos estudos de gnero, Ps-coloniais,queer , dentre tantos outros, a figurao literria do subalterno tem muito a nosensinar, observou Silviano Santiago. O convite leitura de trs fices contemporneas visaapontar algumas inquietaes, sem no momento resolv-las integralmente, mas deixando-assuficientemente demarcadas para que as suplementemos, futuramente. Vejamos.

    3. Literatura em cenasA leitura introdutria de trs romances e sua insero neste estudo terico procura

    redimensionar os problemas suscitados pela reflexo pioneira de Roberto Fernndez Retamar.O apoio da reviso crtica das obras de Srgio Buarque de Hollanda e Octavio Paz feita porSilviano Santiago nos levou a compreender as distines e homologias estruturais quelevaram o brasileiro e o mexicano a uma tipologia dos sujeitos no Novo Mundo. Essasdiscusses, sob o ponto de vista de uma cultura cada vez mais planetria, nos auxiliam a pensar novas especificidades, na compreenso desses sujeitos definidos como globais,multiculturais, em trnsito, ou por quaisquer outras nomenclaturas do tipo. Neste sentido, aliteratura foi eleita para nos auxiliar no trato o mais aberto possvel desses temas. ComO filhoda me , de Bernardo Carvalho; Desde que o samba samba , de Paulo Lins; e Festa no covil ,de Juan Pablo Villalobos, queremos inserir a leitura literria no debate tericocontemporneo, problematizando a noo de subalternidade, sempre questionando as aporiasque desafiam as interpretaes correntes sobre a dicotomia, diferena e alteridade.

    A acreditar nas ideia de que novas configuraes daquele que chamamos de sujeitosubalterno esto a clamar novas problematizaes, lemos o romanceO filho da me comoobra aberta a essas inquietaes. Os personagens centrais, Andrei e Ruslan, encenam o dramadessas novas subalternidades. Andrei e Ruslan so jovens homossexuais que vivem situaesassemelhadas. Sua condio de desterritorializados, de hbridos monstruosos aos olhos dassociedades em que vivem, os tornam subalternos de outras categorias. Andrei filho de brasileiro com uma russa; Ruslan, de uma russa com um tchetcheno. Na Tchetchnia de

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    Ruslan, entende-se que o homossexualismo no existe; na Rssia, a homossexualidade umcaso de Estado, entretanto, com o dinheiro da prostituio dos recrutas com magnatas que osquartis recebem recursos para se manterem. O russo Andrei um desses soldados

    prostitudos. Os dois so desterrados em seus prprios pases. Ruslan escapa da guerra naTchetchnia e entra ilegalmente na Rssia, de onde pretende fugir; Andrei obrigado pelo padrasto a servir no exrcito russo e combater na Guerra da Tchetchnia, enquanto sua metenta desesperadamente envi-lo ao Brasil para viver com o pai. Andrei e Ruslan seconhecem, se apaixonam, mas sua histria de amor s pode acabar de forma trgica. Essedestino retratado em passagens da obra, como no exemplo:

    possvel que no se d conta de que terminou por associar o sexo s runase ao risco, fora de t-lo descoberto em meio a uma guerra, e de busc-las,

    as runas, sempre que encontra algum, por ter sido obrigado a reconhecernelas o cenrio reconfortante do lar onde j no h possibilidade dereconforto. Quando no h mais nada, h ainda o sexo e a guerra. O sexo e aguerra so o que todo homem tem em comum, rico ou pobre, educado ouno. A ideia de uma vulnerabilidade maior que a sua lhe desperta amor. ParaAndrei, ao contrrio, a euforia silenciosa vem da descoberta e da estranheza,da novidade de intuir que ali, de alguma forma, em meio ao que resta domundo perdido sua volta, compartilha a memria afetiva do homem ao seulado. E que assim est menos s (CARVALHO, 2009, p. 139).

    As circunstncias que cercam os dois jovens expressam as contradies de um

    mundo em que as identidades, expostas a novas relaes, e no rastro da promessa de respeitos diferenas, entretanto esbarram nas contradies do mundo da vida. O problema dadiferena se reveste de condies histricas e culturais e no h univocidade no conceito,visto que a subalternidade condio da convivncia social e das regras geopolticas,institucionais, religiosas.

    A condio de subalternidade representada atravs das personagensde O filho dame transnacional e transcultural. A questo sa homossexualidade, que os une e ao mesmo

    tempo os torna hbridos monstruosos em suas respectivas culturas, no est circunscrita aostemas da nao e do territrio. Ela supraterritorial, pois coloca na condio de subalternos ossujeitos de quase todas as culturas do globo. uma espcie de invaso brbara, no respeitafronteiras e, portanto, tida como perigo iminente. Ela ameaa a organizao privada da famliae a instituio religiosa. Porosa, perpassa as esferas pblicas, tornando-se, como no caso brasileiro, questes estrutural que ata o mundo jurdico-legislativo ao campo da vida privada.

    O filho da me encena ainda a condio hbrida da dupla nacionalidade dos protagonistas. O que seria uma vantagem, na verdade refora o paradoxo da vida vivida entre

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    runas: Andrei e Ruslan no podem ser , nem em um nem em outro territrio. A ameaa quesobre eles paira no se circunscreve terra hostil de que provm. Seu problema transcendefronteiras, aporia que se resolve na trgica morte dos dois jovens. A morte representa

    metaforicamente a impossibilidade de uma sada: ela d o tom negativo com que Carvalho va existncia de novas configuraes identitrias. Esse tom negativo s se reverte pela possibilidade de uma tica da amizade, expressa na figura dokunak . Segundo as tradiesinguches, okunak um estrangeiro ou membro de um outro cl, tribo ou nacionalidade comque se estabelece um pacto de solidariedade e proteo, em uma relao de fraternidade.

    Assim, se no plano da intriga a morte coroa um circuito fechado em que os sujeitossubalternos so enredados, no plano filosfico o romance se abre para uma sada tica. A

    hospitalidade, representada na figuradokunak uma das possibilidades da philia , no sentidodo predomnio dos afetos. Ser essa retomada de uma nova definio dos afetos quecircunscreve a questo do romance na esfera das polticas-vida, na contemporaneidade.

    Se emO filho da me a discusso sobre os sujeitos subalternos se d pela questo dadiferena sexual e no nvel das afetividades, em Festa no covil , de Juan Pablo Villalobos, adiscusso sobre subalternidade ganha contornos bastante diversos. O romance, narrado poruma criana, Tochtli (coelho, em asteca), filho e herdeiro de um narcotraficante, Yolcault(serpente-cascavel, em asteca), se passa quase totalmente em uma fortaleza do Narcotrfico,localizada em um lugar indefinido no Mxico, porquanto sigiloso, em que vivem pouco maisde uma dzia de pessoas, incluindo o narrador.

    Sob certos sentidos, a condio de marginalidade de Tochtli torna-se bastante problemtica, na medida em que a personagem se situa no centro de um certo poder, o donarcotrfico. Esse poder localiza-se margem dos poderes constitudos, da Tochtli, aomesmo tempo, ser e no ser, sob este aspecto um sujeito subalterno. A condio de criana emum mundo de adultos tambm o coloca em umentre-lugar . Como artifcio literrio, a ele dada uma voz, mas esta a do autor-modelo, criado pelo autor emprico que o representa,fazendo-se passar por uma criana. Novamente, a condio de subalternidade se apresenta,agora j no nvel da prpria linguagem literria, pois o que chamamos de literatura infantil e

    Festa no covil no obra do gnero na verdade uma representao do/pelo outro. Sem voz prpria,a criana reapresentada, imaginada pelo escritor, que por ela se faz passar no comose da literatura. Levando -se essa questo s esferas da representao literria, vemos que asvozes neste romance estoexpostas a essa condio do falar -como e do falar - por. A

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    literatura, por conseguinte, encenao das falas de um eludido e por isso ela discurso privilegiado: nela, h uma fala aspada, conforme Santiago apontou.

    Em Festa no covil , a condio de criana transforma o narrador em conscincia

    crtica do mundo de violncia que o rodeia. A lente da inocncia torna este mundo muito maisterrvel. Tochtli fascinado por poucas coisas. Em sua solido, coleciona chapus do mundointeiro; tem obsesso por cabeas cortadas, e por isso desfia um rosrio de histrias sobre reise guilhotinas; e possui um mini-zoolgico, para o qual pretende adquirir um hipoptamo anoda Libria. No seu dia a dia entediante, j que no pode sair do palcio, ouve ou presencia asfalcatruas, os negcios com drogas, os assassinatos e as jogadas polticas escusas. Seu Pasdas Maravilhas inclui um squito de serviais, dos quais seu professor, Mazatzin forma

    reverencial de Mazatl, nome de origem Nhuatl, que serve para designar os grupos tnicos das provncias de Mazatn e Mazatln, local onde pode se encontrar uma grande quantidade decervos uma espcie de duplo da personagem. Outrora rico, Mazatzin teve sua fortunaroubada por seu scio, aps um perodo de isolamento em que pretende escrever literatura, projeto fracassado, dado que a inspirao no veio. Com isso, Mazatzin passa a representar para Tochtli o contraponto entre a cultura literria e a cultura da vida:

    s vezes eles sabem coisas erradas, como que pra escrever um livro voctem que ir morar numa cabana no meio do nada e no alto de um morro.

    Quem diz isso o Yolcaut, que os cultos sabem muita coisa dos livros, masno sabem nada da vida. A gente mora no meio do nada, mas no para seinspirar. A gente est aqui para proteo (VILLALOBOS, 2012, p. 13).

    Com Mazatzin e Tochtli, Festa no covil encena duas formas de no saber: o daliteratura, que, pretendendo-se profunda, esquece de que apenas mais uma das formas deconhecimento do mundo; e o da vida, pois jamais teremos acesso realidade de formaintegral e definitiva. Desta forma, as relaes dos sujeitos com o mundo passam a serdeterminadas por seu posicionamento diante da realidade: a condio de criana j torna

    Tochtli um sujeito subalterno; mesmo sendo um espcie de prncipe no mundo donarcotrfico, ele se situa nos crculos da marginalidade. Tochtli nos informa, enquantoaprende e apreende o mundo a seu redor, que sua condio a do sujeito noentre-lugar .

    O trnsito entre o mundo da vida e o mundo da arte pode ser sintetizado na relaoentre morro e asfalto, em Desde que o samba samba , de Paulo Lins (2012). Como Tochtli,as personagens de Lins transitam entre mundos contguos, bastante prximos, entretanto, emtenso. A histria do surgimento do samba revela uma geografia peculiar, em que morro e

    asfalto so lidos como realidades antagnicas, mas que o romance se esfora em ficcionalizar

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    sob o signo da negociao. Da mesma forma que emO filho da me e Festa no covil , somosremetidos a universos geogrficos, sociais e culturas em tenso, no romance de Lins avitoriosa trajetria do samba historiciza as relaes de fora nos campos intelectual e social.

    Da mesma forma que Mazatzin e Tochtli no compreendem o real que os rodeia, o malandroBrancura, uma das figuras centrais do romance de Lins (2012, p. 12), tem suas aspiraes defazedor de versos bonitos, de criador de melodias intocveis, assim com as de Bide, Silva,

    Bastos, Baiaco, Edgar e tantos outros ali desua rea que tinham a arte como religioconfrontadas com a realidade do mundo da marginalidade em que vive. Sua histria tambm de queda no mundo da vida que o chama para a marginalidade. Melhor sorte a do compositorIsmael Silva (apenas Silva, no romance), tambm ele marginal negro, pobre, homossexual e

    sambista, em um tempo em que isso significava contraveno. Silva ascende pela arte e, aocontrrio de Brancura, transgride e transforma o mundo da vida. A trajetria vitoriosa de Silvae do gnero musical do qual foi um dos criadores parte da histria do Rio de Janeiro, quenas primeiras dcadas do sculo XX via despontar na histria sujeitos subalternosresponsveis pelo surgimento das escolas de samba e dos primeiros desfiles oficiais.

    O mundo do asfalto e o mundo do morro so realidades cambiantes: as transgressesdo submundo prostituio, roubo, drogas so homlogas corrupo policial, conivncia das autoridades com o crime, ao trfico de sambas, cuja autoria era forjada emnegcios que marcaram o incio da indstria fonogrfica no Brasil. Nesta histriacomparecem personagens histricas, como Drummond, Bandeira, Mrio de Andrade, dentretantos outros. Tampouco os sujeitos subalternos de ento, hoje reverenciados, ficaram de forado universo de Lins. Tambm a Umbanda, religio marginalizada, determinante naconsolidao do samba, elemento essencial no romance. Desde que o samba samba ocorrelato mais prximo do que pensouOctavio Paz em relao ao pachuco. N o universo dosamba, o malandro com suas roupas singulares, com seus gestos amaneirados e seu idioleto

    integra-se ao sistema, porm subvertendo-o, distorcendo e descosendo suas regras.Com os trs romances, quisemos estabelecer uma tipologia introdutria da fico

    contempornea. Com as questes da mobilidade e da clausura as obras estabelecem amovncia como condio de ser-no-mundo dos sujeitos subalternos. Mas a realidade declausura do mundo da vida lquida est a lembrar que em todas as formas de negociao himpasses e impedimentos, que Hollanda e Paz perceberam, ao eleger a questo identitriacomo essencial ao estudo das especificidades dos sujeitos no Novo Mundo. A mundializao

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    da cultura, traduzida pelo nome de globalizao, mostra o quanto a velocidade das mudanasem choque com os movimentos de conteno requer um pensamento alerta, atento para o quea realidade reclama. Circular por este campo minado a tarefa do intelectual e do pensamento

    crtico. Essa tarefa requer disposio para o embate com o mundo. Shakespeare j o sabia,quando percebeu que a modernidade j se anunciava desconjuntada. A tempestade modernanos atirou na ilha deserta que Prspero dominar. L, lealdade e traio, poder e resistncia,hegemonia e subalternidade engendram os novos Calibans: nem heris, nem marginais, massujeitos expostos ao paradoxal e perigoso, porm vibrante, mundo das relaes lquidas.

    Concluso

    Como dito no incio desta reflexo, este trabalho se revestiu de um carterintrodutrio para discutir os limites e alcances da questo da subalternidade. Para tanto, valeu-se das pioneiras incurses de Srgio Buarque de Hollanda e Octavio Paz, lidoscontemporanemente por Silviano Santiago. De Paulo Lins, Bernardo Carvalho e Juan PabloVillalobos lemos, respectivamente, Desde que o samba samba , O filho da me e Festa nocovil sob o crivo da anlise desconstrutora sugerida por Silviano Santiago. Com isso,discutimos as possibilidades de se reconfigurar o problema da subalternidade a partir da provocao literria Vimos que as locaes da cultura, os locais de fala denotam as aporias deque se revestem as representaes, alm de estabelecer novas formas de trnsito entre sujeitosno mundo lquido de que somos parte. O mundo globalizado requer mobilidade, mas incapaz de reter as foras de clausura. Trnsito, negociao, fronteira, passagem so algunsdos temas que nos convocam a pensar a subalternidade. O discurso aberto da literatura,suficientemente ambguo e plurissignificativo, local passagem, instvel. A questosubalternidade como forma de compreenso das relaes interpessoais do mundo da vida, noslana no imediato do real, no presente, com que lidamos, seja no concreto das aes ou pelarepresentao delas. Neste recanto de margens, intumos a literatura analisada aqui distende asreflexes de Hollanda, Paz e Santiago, e a leitura literria pode nos dar algumas respostas provisrias, que sabemos inconclusivas, mas que so essenciais sobrevivncia daquilo queatende pelo nome de reflexo.

    Referncias bibliogrficas:

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    Recebido em 10/08/2015.

    Aceito em 29/08/2015.