oliveira, eliézer rizzo de. de geisel a collor: as forças ... · 3 fortalecem em 1945, já então...

13
1 HUMOR E CONTRADIÇÃO: a abertura política no Brasil através das charges, caricaturas e cartuns do Suplemento Cultural Anexo Diário do Paraná Tatiane Aparecida Severino 1 Universidade Federal do Paraná A posse de Ernesto Geisel como presidente, em 1974, inaugurou uma transformação do regime militar que culminaria em seu fim em 1985. O período foi marcado por avanços e recuos constantes em direção ao abrandamento do sistema repressivo, a própria promessa de abertura soava contraditória, pois a intenção dos militares era, inicialmente, consolidar a ditadura ao invés de democratizar no sentido estrito do termo. O desenho de humor atua nesse âmbito ao manifestar ironicamente o inconformismo face ao poder autoritário, antitético. Ao considera-lo então como forma de questionar e/ou contestar de um lado, e as contradições que caracterizaram o início da abertura de outro, a proposta gira em torno da investigação sobre as relações entre os desenhos de humor publicados no suplemento cultural Anexo, integrante do jornal curitibano Diário do Paraná entre 1976 e 1977, e o processo inicial de distensão, tangenciando a posição política e social assumida no contexto de Curitiba. A partir de análise formal e conceitual dos desenhos, fundamentada por bibliografia abrangente ao campo do humor gráfico, da política e do conceito contestação através da sátira, o ensaio concentra-se sobre o modo como os desenhos expressaram as contradições do momento que marcou a sociedade brasileira, além de buscar e compreender possíveis especificidades, gráficas e conceituais, inseridas nessa conjuntura. Num ambiente desconexo, o humor entendido como um mecanismo de denúncia vale-se de sua postura ambígua para, num jogo de esconde-esconde, mostrar a realidade tão incoerente quanto ele próprio, evidenciando assim a situação vivida no país. Palavras-chave: desenho de humor; contradição; abertura política; Curitiba anos 1970. INTRODUÇÃO Incentivo à cultura e cultura de massa O período do regime militar no Brasil, de um modo geral, manteve um aspecto contraditório que continuou durante todo o processo de distensão, iniciado na gestão do General Ernesto Geisel (1974-79). Oliveira 2 refere-se à distensão ou abertura como parte de uma intenção que visava tornar o regime ainda mais centralizado, além de manter as eleições indiretas, numa tentativa de perpetua-lo ao invés de redemocratizar como seria o esperado. No que toca a sociedade como um todo, tal proposta poderia ser compreendida também como um acalmar dos ânimos, ou seja, uma tentativa por parte do Executivo em passar uma imagem de direcionamento democrático, dando à abertura em si um caráter incoerente. 1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em História PPGHIS/UFPR. 2 OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. De Geisel a Collor: as Forças Armadas, transição e democracia. Campinas SP: Papirus, 1994, p. 58.

Upload: vuongminh

Post on 09-Nov-2018

216 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

1

HUMOR E CONTRADIÇÃO: a abertura política no Brasil através das charges, caricaturas e cartuns do Suplemento Cultural Anexo – Diário do Paraná

Tatiane Aparecida Severino1

Universidade Federal do Paraná

A posse de Ernesto Geisel como presidente, em 1974, inaugurou uma transformação do regime militar que culminaria em seu fim em 1985. O período foi marcado por avanços e recuos constantes em direção ao abrandamento do sistema repressivo, a própria promessa de abertura soava contraditória, pois a intenção dos militares era, inicialmente, consolidar a ditadura ao invés de democratizar no sentido estrito do termo. O desenho de humor atua nesse âmbito ao manifestar ironicamente o inconformismo face ao poder autoritário, antitético. Ao considera-lo então como forma de questionar e/ou contestar de um lado, e as contradições que caracterizaram o início da abertura de outro, a proposta gira em torno da investigação sobre as relações entre os desenhos de humor publicados no suplemento cultural Anexo, integrante do jornal curitibano Diário do Paraná entre 1976 e 1977, e o processo inicial de distensão, tangenciando a posição política e social assumida no contexto de Curitiba. A partir de análise formal e conceitual dos desenhos, fundamentada por bibliografia abrangente ao campo do humor gráfico, da política e do conceito contestação através da sátira, o ensaio concentra-se sobre o modo como os desenhos expressaram as contradições do momento que marcou a sociedade brasileira, além de buscar e compreender possíveis especificidades, gráficas e conceituais, inseridas nessa conjuntura. Num ambiente desconexo, o humor entendido como um mecanismo de denúncia vale-se de sua postura ambígua para, num jogo de esconde-esconde, mostrar a realidade tão incoerente quanto ele próprio, evidenciando assim a situação vivida no país.

Palavras-chave: desenho de humor; contradição; abertura política; Curitiba anos 1970. INTRODUÇÃO Incentivo à cultura e cultura de massa

O período do regime militar no Brasil, de um modo geral, manteve um

aspecto contraditório que continuou durante todo o processo de distensão, iniciado

na gestão do General Ernesto Geisel (1974-79). Oliveira2 refere-se à distensão – ou

abertura – como parte de uma intenção que visava tornar o regime ainda mais

centralizado, além de manter as eleições indiretas, numa tentativa de perpetua-lo ao

invés de redemocratizar como seria o esperado. No que toca a sociedade como um

todo, tal proposta poderia ser compreendida também como um acalmar dos ânimos,

ou seja, uma tentativa por parte do Executivo em passar uma imagem de

direcionamento democrático, dando à abertura em si um caráter incoerente.

1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em História – PPGHIS/UFPR. 2 OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. De Geisel a Collor: as Forças Armadas, transição e democracia. Campinas –

SP: Papirus, 1994, p. 58.

2

Nessa direção, o presente ensaio abre espaço a uma reflexão acerca do

momento da abertura política, com destaque para as ações do governo em relação à

cultura. Em virtude da extensão proposta pelo formato do texto, esse aspecto em

específico será tido como destaque, em contraposição à análise do desenho de

humor relacionado num sentido questionador à cultura massiva.

De um modo geral, a cultura nos anos 1970 se apresentava oscilatória entre

políticas oficiais de incentivo à produção e difusão cultural, e a atuação da censura,

não apenas à imprensa escrita, mas também em diversas outras áreas. Nessa

esfera, há uma tendência a associa-la imediatamente ao período militar, quando

atuou de forma institucionalizada, no entanto essa prática esteve presente no país

em outros momentos, de modo institucional ou não, tanto antes ao regime militar

pós-Golpe de 1964 como durante o Estado Novo (1937-1945) e após a

redemocratização, então em configurações menos explícitas. Carlos Fico3 reitera

que a censura às diversões públicas nunca deixou de ser praticada no Brasil. Há

contudo de se destacar que a censura às diversões públicas aplicadas

principalmente em programas televisivos, peças teatrais, filmes, difere da aplicada à

imprensa escrita. “Naturalmente, porém, prevalecia no caso da imprensa a censura

de temas políticos, tanto quanto os temas mais censurados no caso das diversões

públicas eram de natureza comportamental ou moral.”.

No período militar, e com maior ênfase ao momento da abertura, a cultura de

massa foi amplamente difundida em grande parte através da TV, representada pelas

grandes empresas de comunicação, e com apoio dos militares. A expressão cultura

de massa remete, num primeiro momento, a algo inferior, de baixa qualidade.

Wiilliams4 sugere uma definição no âmbito da cultura popular, voltada ao povo.

Segundo o autor as preocupações com os movimentos populares assinalaram três

períodos distintos. O primeiro, de 1790 a 1870, em que havia uma atitude social

voltada às forças novas que surgiam ao redor do industrialismo e da democracia; o

segundo, entre 1870 a 1914 uma atenção maior volta-se às ações relacionadas à

arte e à política; o terceiro momento coincide com o início da Primeira Guerra

Mundial com maior ênfase já para os meios de comunicação de massa que se

3 FICO, Carlos. “Prezada Censura”: cartas ao regime militar. Topoi - Revista de História, Rio de Janeiro:

UFRJ. Nº 5, pp. 251-286, set. 2002, p. 7. 4 WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade: 1780-1950. São Paulo: Editora Nacional, 1969, 3ª ed., p. 306-307.

3

fortalecem em 1945, já então no término da Segunda Guerra Mundial, coincidindo

com avanços consideráveis na área da tecnologia.

Segundo Williams5, o fenômeno da massificação pode ser compreendido,

entre outros fatores, como uma consequência da aglomeração populacional nos

grandes centros urbanos em virtude, sobretudo, da crescente industrialização e da

modernização dos meios de comunicação de grande alcance. Desse modo a alta

concentração de habitantes nas cidades devido ao desenvolvimento industrial, e a

consequente formação da classe trabalhadora, configuram-se numa tendência social

que confirmam o sentido de massificação tanto social como política. Quanto ao

significado da expressão massa relacionada à concentração popular:

Embora massa fosse palavra nova para indicar multidão, populaça, conservava, em seu sentido, as características usualmente associadas ao vocábulo antigo: credulidade, volubilidade, preconceitos de grupo, vulgaridade de gosto e hábitos. As massas, encaradas desse modo, constituíam perene ameaça para a cultura. Pensamento de massa, sugestão de massa, preconceito de massa ameaçavam afogar o pensamento e o sentimento individual qualificado. Até a democracia, com sua reputação clássica e liberal, perderia o seu sabor, transformando-se em democracia de massa6.

Assim é possível pensar acerca das razões pelas quais governo e classe

dirigente desejavam inserir o povo dentro de uma concepção de cultura que deveria

se manter controlada, dominada. Dessa forma a cultura de massa entraria num

espectro de manipulação em favor da ordem dominante. O incentivo do Estado em

relação a uma produção cultural voltada às massas permaneceria ligado ao objetivo

da alienação e conformação diante da condição inferior lhes atribuída.

No que tange o período pós-Golpe de 1964 no Brasil, o apoio governamental

à produção cultural vinha de encontro com uma modernização de infraestrutura nas

telecomunicações, além de um crescimento da população urbana face à

industrialização, pessoas que deixavam o campo para seguir em busca de emprego

nas cidades. Quanto à cultura nesse período, e também em momentos anteriores,

Ortiz7 lembra que o Estado atribuiu às empresas privadas o controle administrativo

dos meios de comunicação e manteve para si o domínio de outras instituições

culturais, direcionadas sobretudo ao teatro com a fundação do Serviço Nacional de

5 IDEM. 6 IBIDEM, p. 308. 7 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 88.

4

Teatro, ao cinema através da Embrafilme, à literatura com o Instituto Nacional do

Livro e à arte e folclore com a Funarte. Por outro lado, assegurava ainda um

comando em última instância da transmissão de informações ao fornecer os meios

necessários ao seu desenvolvimento, dessa forma mantinha a produção cultural

atrelada ao governo e consequentemente à ideologia de segurança nacional. “O

espaço de atuação das empresas privadas encontra-se, assim, delimitado pelos

critérios que orientam as atividades do Estado autoritário [...].8.”

Um dos objetivos colocados em pauta pelo Estado em relação ao incentivo à

cultura tratava de um desejo de integração nacionalista, assim surge a Política

Nacional de Cultura, documento elaborado em 1975 e instituído em 1976, tendo

como um dos principais mentores Ney Braga, ex-governador do Paraná, então

ministro da Educação e Cultura durante o mandato de Geisel.

A criação do Plano Nacional de Cultura voltava-se para termos nacionalistas

e de conservação de memória e tradições. Logo a institucionalização da cultura

mostra-se como uma maneira útil de impor a presença governamental na produção

cultural. “O argumento da tradição é fundamental para a orientação de uma política

do Estado que se volta para atividades como ‘pró-memória’, ‘museu histórico’,

‘projeto memória do teatro brasileiro’, ‘dia do folclore’, etc..9”. Napolitano ressalta que

o PNC “[...] revela as faces, muitas vezes paradoxais, da relação entre o regime e a

cultura.10”. Dessa forma a política de abertura mantinha sua caminhada “lenta,

gradual e segura”, conforme as palavras de Geisel, oscilando entre abrandamento e

recrudescimento da repressão.

Assim ao considerar a reflexão em torno do tema cultural, apresenta-se aqui,

como contraponto, uma análise de desenhos de humor publicados no suplemento

cultural Anexo, parte do jornal curitibano Diário do Paraná entre 1976 e 77. Surgido

num período de mudanças não apenas no cenário nacional, mas inclusive no local, o

Anexo, idealizado por Reynaldo Jardim (1926-2011) e editado por ele e Marilú

Silveira, era visto como um dos meios instigadores da cultura mais importantes em

Curitiba11. Entre os diversos temas abordados nas charges, caricaturas e cartuns a

8 IDEM. 9 ORTIZ, Op. Cit., p. 97. 10 NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). SP: Contexto, 2001, p. 104. 11 TEIXEIRA, Selma Suely. (org.). Jornalismo cultural: um resgate: Aramis Millarch, José Carlos (Zeca) Corrêa Leite, Reynaldo Jardim. Curitiba: Gramofone, 2007b. p. 375.

5

TV, um dos meios de comunicação de massa que se popularizou largamente na

época, em parte como consequência do milagre econômico, aparece sob uma ótica

reflexiva e questionadora entre o conteúdo oferecido pela programação e a posição

assumida pelo telespectador.

Nos anos 1970 a capital paranaense passava por expressivas alterações em

sua paisagem urbana, devido, em parte, a um fluxo migratório que crescia a cada

momento, além de uma política desenvolvimentista tanto no aspecto físico da cidade

como no econômico. Entre as gestões de Parigot de Souza (1971-73) e Ney Braga

(1979-82) como governadores do Estado, a política de crescimento direcionava-se

ao que chamavam de “modernização planejada12”, num trabalho em prol da

reformulação da administração do estado com objetivo de cumprir as metas dos

Planos Nacionais de Desenvolvimento Econômico e Social, voltado, no entanto,

mais para as necessidades políticas do que sociais propriamente. Além disso, havia

um processo de modernização urbanística sobretudo na administração de Jaime

Lerner como prefeito entre 1971 e 1974, e novamente entre 1979 e 1983.

A modernização urbana de Curitiba se fez num contexto nacional de ascensão das forças burocrático-militares e de fortalecimento da ideologia do planejamento racional e, especialmente, da crença no poder da Arquitetura e do Urbanismo no ordenamento do espaço e na (trans) formação do comportamento das camadas mais pobres da população13.

O suplemento colocava-se em consonância com o desenvolvimento da

cidade ao atuar como parte representativa de um desejo de “aceleração do tempo14”,

no sentido de busca por renovação cultural e intelectual. Sua posição em relação ao

ambiente cultural de Curitiba é observável na proposta de lançar a cidade como um

polo cultural. Idealizada pela equipe editorial, tal proposta vislumbrava a capital

como um centro produtor e irradiador cultural tanto local, como nacionalmente. Um

número especial do suplemento, publicado no dia 6 de fevereiro de 1977,

apresentava depoimentos de autoridades locais da área cultural e administrativa,

com intuito de fundamentar a proposta. Essa ação resultou no semanário Pólo

Cultural que entrou em circulação em 15 de março de 1978.

12 IPARDES – Fundação Édison Vieira. O Paraná reinventado: política e governo. Curitiba: 1989, p. 76. 13 SOUZA, Nelson Rosário de. Planejamento urbano em Curitiba: saber técnico, classificação dos citadinos e partilha da cidade. Revista de Sociologia Política, Curitiba, nº 16, jun. 2001, p. 107. 14 MORAES, Everton de Oliveira. “Cortar o tecido da história”: condutas e imagens do tempo em Paulo Leminski e Luiz Rettamozo (1975-1980). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Paraná,

Curitiba, 2016, p. 15.

6

Quanto ao desenho de humor, tomado num direcionamento contestador,

este atuou, e ainda atua, como um mecanismo subjetivo de contestação, num teor

crítico e reflexivo imanente a sua construção. “Entre avanços e recuos táticos, existe

uma consciência socialista nos quadros mais avançados da luta política e ideológica.

[...]. O artista não pode se isolar desse contexto, desse combate.15.”. Entre as lutas

sociais referidas pelo autor, pode-se inserir a negação aos pressupostos de um

sistema que busca a normatização da vivência em sociedade, fundamentada em

parte na alienação cultural/intelectual. Tomado nesse sentido de contestação,

fundamenta-se também numa rejeição aos modelos impostos pela cultura de massa

baseados, sobretudo, nos quadrinhos americanos. Para tanto, o conceito

“poeticidade libertária16” dialoga com uma postura de resistência ou mesmo de

recusa, assumida direta ou indiretamente pela linguagem gráfica humorística. Trata-

se de uma crítica movida contra a ideologia do comum, esta incentivada pela grande

mídia e apoiada pelo governo.

Em relação ao riso, Bergson17 observa-o como uma característica ligada

estritamente ao ser humano. Minois18, por sua vez, comenta o fato de que o riso

acompanha de algum modo o desenvolvimento das sensibilidades humanas, além

disso, discorre sobre um caráter de “exorcismo” do humor ao afastar, mesmo que

temporariamente, o medo. “É preciso neutralizar, pela ironia, o medo do outro, o

medo dos outros19.” Além disso, expõe sua participação no meio político e social

atestando suas contradições e excessos com força já desde o século XVII,

alcançando o ápice da derrisão no século XIX como expressão crítica ao poder e à

sociedade burguesa conservadora.

A TV E O DESENHO DE HUMOR: CONTRADIÇÕES E REFLEXÕES

Anexo – Diário do Paraná. 28 de julho de 1977. Acervo digital Hemeroteca da Biblioteca Nacional.

15 CIRNE, Moacy. Uma introdução política aos quadrinhos. Rio de Janeiro: Achiamé / Angra, 1982, p. 28. 16 CIRNE, Moacy. Quadrinhos, sedução e paixão. Petópolis, RJ: Vozes, 2000, p. 43-44. 17 BERGSON, 2001. Op. Cit., p. 7. 18 MINIOS, 2003. Op. Cit., p. 457. 19 IBIDEM, p. 459.

7

Ao considerar a linguagem gráfica de humor dentro de uma especificação

formal e conceitual, Teixeira20, propõe uma definição prática onde a representação

da identidade acontece na charge por “diferença”; a caricatura define-se como

apropriação do real e reproduz a identidade por meio do exagero ou

“dissemelhança”. O cartum abarca uma identidade “coletiva” e é capaz de engendrar

na imagem todos os elementos significativos que possa apresentar.

Sendo assim, as páginas escolhidas que compõe o suplemento Anexo, com

base no que foi dito até agora, apresentam sobretudo charges que fazem referência

à televisão. Trata-se da edição publicada no dia 28 de julho de 1977 que traz a

matéria intitulada Ping-Pong, produzida por Werneck e Luiz Carlos Rettamozo, com

participação de Josué na grafia das letras do título. Os textos são divididos em Ping,

de autoria de Werneck, e Pong, além dos desenhos, de Rettamozo.

Essa publicação ocupa a primeira e a última página de forma que ao abri-lo

uma complementa a outra. A página da esquerda exibe um comentário inicial como

se apresentasse personagens que atuarão num espetáculo: “No papel da loira: a tv

20 TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodré. Sentidos do humor, trapaças da razão: a charge. Rio de Janeiro:

Fundação Casa de Rui Barbosa, 2005, p. 23.

8

brasileira. O macacão: você.”. O “macacão” pode ser visto na primeira página. Sua

configuração grande e disforme atribui-lhe aspecto um tanto assustador, no lugar da

face há um quadrado que remete a uma TV, dentro do qual, pequenas formas em

sequência, tanto encima como embaixo, sugerem dentes e no centro o que seria

uma língua, reforçando o tom ameaçador da figura. Sua posição voltada para a

esquerda indica uma intenção de controle, pois seus braços abertos colocam-se

como se fossem prender os outros “personagens”. Essa posição imprime de certo

modo uma irracionalidade na ação de controlar. A face ocupada pela TV atribui um

ar vazio, tanto sentimental quanto intelectual, pois não possui identidade definida. A

relação entre sujeito e vazio é reforçada no desenho de uma cédula de identidade

no canto direito superior da primeira página, na foto de identificação não há cabeça,

o vazio desde o colarinho da camisa indica ausência de corpo humano.

Já a menção que se faz à TV como a “loira”, alude de certa forma ao

imaginário popular que liga pessoas de cabelos claros à condição de pouca

inteligência, sem senso crítico, preocupado apenas com a vaidade. A relação

sugerida entre a TV e a ausência crítica estabelece um entendimento em torno da

programação oferecida pelos programas televisivos, num sentido de que estes

pouco contribuem para o desenvolvimento intelectual de quem assiste.

A referência ao conteúdo da programação continua também nos textos. De

início, a expressão “ping-pong” do título denota um sentido de oposição. No decorrer

das páginas, o “pong” corresponde à resposta do “ping”. Numa leitura da esquerda

para a direita, a primeira expressão “ping” diz: “Duas ou três coisas que sei dela. Ela,

a TV.”, e a resposta: “E as mil e uma que eu não sei. Dela a TV.”, compreende-se os

textos numa relação sobre o que se conhece da TV, ou seja, a programação a que

as pessoas em geral têm contato imediato. O “pong” contradiz “ping”, pois

demonstra que se conhece muito pouco a respeito da própria programação, vincula

o telespectador a uma condição de alienado quanto ao que a mídia oferece.

A charge que aparece logo abaixo mostra uma cabeça humana “gigante”

com um aparelho de TV incorporado acima, como se fizesse parte do corpo

humano, ainda que esse corpo seja quase irreal na representação. A boca do sujeito

é representada na forma de um buraco de fechadura, simbolizando de certa forma o

silêncio, logo é possível liga-la subjetivamente à prática censória da época, que

limitava o que era veiculado pela mídia. A censura aos meios de comunicação de

9

massa funcionava de forma seletiva, Ortiz21 refere-se à tal como um “[...] ato

repressor que atinge a especificidade da obra mas não a generalidade da sua

produção.”, ou seja, sua interferência recaía, em grande parte, sobre o conteúdo

reflexivo da produção, sem tocar nos programas direcionados à mera distração.

Em sentido oposto, considerado o desenho de humor em sua ambiguidade e

a simbologia presente na representação de uma fechadura, esta pode vir a significar

também a espionagem, tanto de quem está do lado de dentro, como de quem

permanece fora. O controle exercido pelo Estado nas empresas de comunicação,

por vezes poderia substituir a censura imposta explicitamente. Logo após a retirada

da censura prévia dos grandes meios de comunicação em 1975, instalou-se outra

forma de dominar a informação, conhecida como “censura patronal”, Paolo

Marconi22 descreve-a como uma transferência da responsabilidade de fiscalização

para os próprios donos de jornais em vista da estabilidade financeira.

Noutra direção significante, a fechadura possibilitaria um entendimento sob

uma ótica que aborda a conduta dos próprios intelectuais e artistas, estes agiam por

vezes de modo a ocupar os espaços mercantilizados, de comunicação de massa

num intuito de “[...] criar uma atmosfera de reflexão nos telespectadores.”, como

sugere Napolitano23. Dessa forma a contradição surge em ambos os lados, tanto do

sistema político com idas e vindas em relação à repressão exercida sobre a

veiculação de informações, como no desenho, onde um mesmo detalhe pode

assumir significados diversos dentro de um mesmo tema abordado, colocando-se

assim como uma linguagem diga-se pendular, que varia a acepção de acordo com o

entendimento. E nesse sentido, toma-se em referência aos desenhos de humor a

brincadeira infantil de esconde-esconde, pois enquanto uns escondem a verdade no

interior de um detalhe ambíguo em sua significação, outros procuram encontra-la.

A TV acoplada à cabeça do sujeito traz um objeto que lembra uma claquete,

como um aviso de que o programa vai começar e que se deve deixar tudo o que

estiver fazendo para contemplar a magia da TV. A cabeça extremamente grande

pode ser vista também como algo que já está saturado com essa condição de

passividade diante da inutilidade desse comportamento, por outro lado ainda, pode-

21 ORTIZ, 2012. Op. Cit., p. 89. 22 MARCONI, Paolo. A censura política na imprensa brasileira (1968-1978). 2. ed. revista. São Paulo: Global,

1980, p. 143. 23 NAPOLITANO, 2001. Op. Cit., p. 90.

10

se entender como a saturação acerca do conteúdo dos programas, indefinidamente

os mesmos na maior parte do tempo, ou ainda descontentamento com o sistema

político–social vigente.

Outro texto “ping”, no interior do desenho acima analisado, faz analogia aos

programas veiculados na grande mídia: “Programa bom mesmo é sempre aquele

que eu não assisti na noite anterior e que de manhã todos estão comentando.”, a

resposta diz simplesmente “O programa bom.”. Tais frases estabelecem uma

conexão com programas de alta audiência que repercutem de modo abrangente na

sociedade, e quem não acompanha é colocado à margem dos que estão por dentro

dos acontecimentos televisivos. Tais programas vêm a reforçar o sentido da

massificação ao atingir e influenciar o dia-a-dia de um grande número de pessoas.

Abaixo: “ping”: “Não é a gente que assiste à TV, ela é que nos assiste na

nossa solidão, na nossa inércia, na nossa falta de vontade de falar com os outros,

de sair de casa. [...].”, essa expressão torna explicita de certa maneira a apatia do

público em frente à TV, sem pretensão em interagir com nada que esteja fora do

mundo limitado – e confortável – diante do aparelho. Na sequência do mesmo texto:

“[...] A TV dá toda a assistência. E não tem fila como no INPS, nem cobra tanto

como o analista.”, reforça a ideia de conforto e fácil acesso à cultura de massa

fornecida pela mídia, além do baixo custo.

O acesso aos aparelhos de TV cresceu consideravelmente na década de

1970, beneficiado em parte pelo milagre brasileiro. A partir de 1972, com o advento

da TV à cores, tornou-se um dos bens desejados pelas famílias brasileiras, ao lado

de outros aparelhos eletrônicos e do carro. A contraposição às frases comentadas

anteriormente vem logo abaixo: “A tevê assiste pasmada o nada, viste?”, a

referência ao vazio aparece mais uma vez, porém neste caso trata-se do vazio do

telespectador, num consumo apático e conformado dos programas de

entretenimento. O autor ainda instiga-o a perceber sua condição indiferente ao

perguntar “viste?”, como se o chamasse à luz do conhecimento, para uma troca de

experiências pessoais numa contribuição mútua.

Seguindo na análise, ao lado dos textos mencionados, uma charge mostra

uma mulher segurando uma antena com o braço levantado – buscando sinal-, com

um quadrado acima de sua cabeça – a tela -, segura ainda na mão esquerda o fio

que liga a TV. O rosto da mulher, com a boca aberta num “O” e o olhar vazio, de

11

certo modo remete à expressão do texto “pong” mencionada antes que se refere à

TV que “assiste” ao telespectador, pasmada diante da inércia deste. As vestes da

mulher permitem uma compreensão relacionada aos mantos sagrados, como se

tomasse a televisão num sentido sacro, além disso, o quadrado acima de sua

cabeça lembra a auréola típica dos seres sagrados. Esse aspecto dialoga com a

ideologia do consumo, onde o aparelho televisivo era tratado como objeto

indispensável ao bem estar da família.

Na continuação da página da esquerda, os textos mantém o teor crítico à

programação, em um deles a crítica é mais enfática: “Ping”: “Que esforço fazem os

diretores de programação para preenchimento de todos os horários. Esses sim

ganham o pão com o suor do rosto.”; “Pong”: “Pra programação indico: te pego te

pico te jogo no pinico. E pro programador a dor.” Na última expressão a ênfase na

crítica é explicitada pela sugestão dada pelo autor para a programação, ao referir-se

ao seu baixo valor, como algo descartável, enquanto ao programador resta apenas o

suor de seu trabalho inútil.

O questionamento em relação à TV continua então sobre a veiculação de

programas que aludem à violência: “ping” diz: “Não acho que a TV seja violenta. A

TV violenta.”; “pong”: “Viu, lenta? Ou virulenta?”. A primeira expressão de “ping”, em

que se afirma não achar que os programas transmitidos representem temas

violentos, vem de certa forma a contradizer a segunda expressão do mesmo texto,

que confirma a presença de cenas que retratam violência. A resposta de “pong”

apresenta um trocadilho com a palavra violenta de forma a confundir sobre o real

conteúdo apresentado, a primeira pergunta aproxima-se do termo violenta através

da sonoridade, e o segundo - virulenta – estabelece uma analogia entre a TV e

viroses, ou seja, algo que se propaga rapidamente e causa doenças. A reflexão

neste caso recai sobre o aspecto veloz da veiculação de informações pelos meios

de comunicação, pois atinge um grande número de pessoas em pouco tempo,

reafirmando assim a condição de massificação, além de atribuir um sentido negativo

ao estabelecer conexão com a doença.

Outros dois textos referem-se a questões financeiras e de consumo, um

deles – na página que fecha o suplemento - comenta sobre a transmissão de futebol

pela TV: “ping”: “Voltando ao assunto, você já viu maior redundância do que

narrador de futebol pela TV?”; “pong”: “Tem essa fô do fu the ball, time is money ou

12

escalação?”. Tal expressão alude aos rendimentos financeiros proporcionados pela

audiência durante as transmissões de jogos esportivos. Uma caricatura que divide

as páginas24 apresenta o rosto de um homem com uma chama na cabeça, logo

abaixo, no que seria a barba, vê-se um quadrado com parte de outro rosto – a boca,

nariz e barba -, que sugere uma duplicação da mesma face, assim pode-se entender

no sentido de uma duplicidade ao transmitir uma partida de futebol simultaneamente

ao estádio numa tentativa de aumentar os lucros com o mesmo jogo.

Outro texto questiona a veiculação de comerciais pela TV e a qualidade dos

produtos: “ping”: “Os comerciais estão melhorando sensivelmente. Quero ver os

produtos melhorarem tanto quanto eles.”, ou seja, a publicidade avança em

qualidade à frente dos próprios produtos vendidos, em referência ao consumismo,

onde vender se torna mais importante do que os benefícios oferecidos pelos artigos

adquiridos. A resposta de “pong” para essa questão é simplesmente “Eu, lavo as

mãos!”, como se colocasse um ponto final na discussão. A charge que acompanha

esses textos representa uma mão com os dedos cortados, a parte dos dedos

encerra-se em um quadrado e possui um pequeno objeto apoiado em um dos

dedos, o quadrado pode ser visto mais uma vez como a TV, o objeto, um produto

comercial, a mão cortada permite compreende-la sob a perspectiva do atrelamento

da sociedade à publicidade e ao consumo. A televisão conheceu na década de 1970

seu auge, nesse momento as emissoras consolidaram seu poder diante da

sociedade e cultura brasileira.

Dentro do que foi exposto até aqui, os desenhos e textos apresentados na

publicação analisada referem-se, sobretudo, a um questionamento em relação ao

posicionamento da TV face às imposições do governo, a aceitação por parte desta

como forma de manter uma estabilidade e beneficiar-se do apoio recebido. Por outro

lado, acenam também ao comportamento do telespectador, configurado numa

passividade ingênua diante da mídia e do que ela oferece como forma de

entretenimento, sem buscar outras alternativas que contribuíssem qualitativamente

com seu desenvolvimento cognitivo.

A partir da percepção aberta através da análise, seria possível tocar

brevemente a ação do governo em relação ao incentivo à cultura e o apoio aos

24 A repetição vista na imagem do homem com chama na cabeça aqui reproduzida não acontece no original.

13

meios de comunicação de massa, por um viés contraditório ao aproximar-se do

campo cultural como um modo de manter sob controle a produção cultural. Porém

compreende-se essa aproximação em vias de domínio em partes, diga-se, pois não

seria plausível arrolar tal ação como um todo, em que não existiriam brechas para

outras questões que não tivessem por objetivo a manipulação por si só.

REFERÊNCIAS BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo:

Martins Fontes, 2001. CIRNE, Moacy. Quadrinhos, sedução e paixão. Petópolis, RJ: Vozes, 2000. _____. Uma introdução política aos quadrinhos. Rio de Janeiro: Achiamé / Angra,

1982. FICO, Carlos. “Prezada Censura”: cartas ao regime militar. Topoi - Revista de

História, Rio de Janeiro: UFRJ. Nº 5, pp. 251-286, set. 2002. IPARDES – Fundação Édison Vieira. O Paraná reinventado: política e governo.

Curitiba: 1989. MARCONI, Paolo. A censura política na imprensa brasileira (1968-1978). 2. ed.

revista. São Paulo: Global, 1980. MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: Editora UNESP,

2003. MORAES, Everton de Oliveira. “Cortar o tecido da história”: condutas e imagens

do tempo em Paulo Leminski e Luiz Rettamozo (1975-1980). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016.

NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). SP: Contexto, 2001.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2012.

OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. De Geisel a Collor: as Forças Armadas, transição e democracia. Campinas – SP: Papirus, 1994.

SOUZA, Nelson Rosário de. Planejamento urbano em Curitiba: saber técnico, classificação dos citadinos e partilha da cidade. Revista de Sociologia Política, Curitiba, nº 16, jun. 2001.

TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodré. Sentidos do humor, trapaças da razão: a charge. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2005.

TEIXEIRA, Selma Suely. (org.). Jornalismo cultural: um resgate: Aramis Millarch, José Carlos (Zeca) Corrêa Leite, Reynaldo Jardim. Curitiba: Gramofone, 2007.

WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade: 1780-1950. São Paulo: Editora Nacional, 1969, 3ª ed.

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=761672&PagFis=121990 (Acesso em 22 de junho de 2016; 09h).