olho e o espírito

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  • 8/3/2019 olho e o esprito

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    o OLHO E O ESPIRITO"0 que tento traduzir-vos mais misterioso. emaranha-se nas pr6priasra(zes do ser, I/a.fonte impalpve/ das sensaes. "

    I. Gasquet, Czanne.

    IA cincia manipula as coisas e renuncia a habit-Ias. Fabrica para si mode-los internos delas e, operando sobre esses ndices ou variveis as transformaespermitidas por sua definio, s de longe erri longe se defronta com o mundoatual. Ela , sempre foi, essepensamento admiravelmente ativo, engenhoso, desen-volto, esseparti pris de tratar todo ser como "objeto em geral", isto , a um tempocomo se ele nada fosse para ns, e, no entanto, se achasse predestinado aos nossosartifcios.Mas a cincia clssica guardava o sentimento da opacidade do mundo, era a

    este que ela pretendia juntar-se por suas construes, e por isto que se acreditavaobrigada a procurar para suas operaes um fundamento transcendente ou trans-cendental. H, hoje em dia -no na cincia, e sim numa filosofia das cinciasassaz difundida -, isto de inteiramente novo: que a prtica construtiva se tomae se d por autnoma, e que o pensamento deliberadamente se reduz ao conjuntodas tcnicas de tomada ou de captao, que ele inventa. Pensar ensaiar, operar ,transformar, sob a nica reserva de um controle experimental onde s intervmfenmenos altamente "trabalhados", e que os nossos aparelhos produzem, em vezde registr-los. Da toda sorte de tent~tivas desordenadas. Nunca, como hoje, acincia foi sensvel s modas intelectuais. Quando um modelo foi bem sucedidonuma ordem de problemas, ela o experimenta em toda parte. Nossa embriologia,nossa biologia esto agora repletas de gradientes. sem que se veja bem como sedistinguem daquilo que os clssicos chamavam ordem ou totalidade; todavia, estaquesto no formulada, no deve s-Io. O ~r~adiente uma rede que se lana ao.'mar sem saber o que ela recolher. Ou ainda, o dbil ramo sobre o qual se farolristalizaes imprevisveis. Esta liberdade de operao certamente est em situa-'io de superar muitos dilemas, vos, contanto que, de quando em vez, se faa 01ajustamento, pergunte-se por que o instrumento funciona aqui e fracassa alhures.em suma, contanto que essa cincia fluente se compreenda a si mesma, se vejcomo construo sobre a base de um mundo bruto ou existente, e no reivindiquepara operaes cegas o valor constituinte que os "conceitos da natureza" podiam

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    276 MERLEA U-PONTYter numa filosofia idealista. Dizer que o mundo , por definio nominal, o objetoX das nossas operaes levar ao absoluto a situao de conhecimento do sbio,como se tudo o que foi ou nunca houvesse sido seno para entrar no laboratrio.O pensamento "operatrio" torna-se uma espcie de artificialismo absoluto, comose v na ideologia ciberntica, onde as "criaeshumanas so derivadas de um pro-cesso natural de informao, porm concebido, por sua vez, segundo o modelodas mquinas humanas. Se este gnero de pensamento toma a seu cargo o Homeme a Histria, e se, fingindo ignorar o que deles sabemos por contato e por posio,empreende constru-los a partir de alguns indcios abstratos, como o fizeram nosEstados Unidos' uma psicanlise e um culturalismo decadentes, visto que ohomem se torna verdadeiramente o manipulandum que ele pensa ser, entra-se numregime de cultura onde j no h nem verdadeiro nem falso no tocante ao Homeme Histria, num sono ou num pesadelo do qual nada poderia acord-lo.

    Mister se faz que o pensamento de cincia -pensamento de sobrevo, pen-samento do objeto em geral -torne a colocar-se num "h" prvio, no lugar, nosolo do mundo sensvel e do mundo lavrado tais como so em nossa vida, paranosso corpo, no esse corpo possvel do qual lcito sustentar que uma mquinade informao, mas sim esse corpo atual que digo meu, a sentinela que se postasilenciosamente sob minhas palavras e sob meus atos. preciso que, com meucorpo, despertem os corpos associados, os "outros", que no so meus congne-res, como diz a zoologia, mas que me assediam, que eu assedio, com quem euassedio um s Ser atual, presente, como jamais animal assediou os de sua espcie,seu territrio ou seu meio. Nesta historicidade primordial, o pensamento alegre eim provisador da cincia aprender a insistir nas prprias coisas e em si mesmo,tornar a ser filosofia. ..Ora, a arte, e notadamente a pintura, nutrem-se nesse enol de sentido brutodo qual o ativismo nada quer saber. Elas so mesmo as nicas a faz-Io com todainocncia. Ao escritor, ao filsofo, pede-se conselho ou opinio; no se admiteque mantenham o mundo em suspenso; quer-se que tomem posio, e eles nopodem declinar as responsabilidades do homem que fala.~msica, inversamente,est por demais aqum do mundo e do designvel, para figurar outra coisa anoser puras do Ser, seu fluxo e seu refluxo, seu crescimento, suas exploses, seusturbilh~O pintor o nico que tem direito de olhar para todas as coisas semnenhum dever de apreciao. Dir-se-ia que, diante dele, as palavras de ordem doconhecimento e da ao perdem sua virtude. Os regimes que invectivam contra apintura "degenerada" raramente destroem os quadros: escondem-nos, e h nissoum "nunca se sabe" que quase um reconhecimento; a censura de evaso rara-mente dirigida ao pintor. No se quer mal a Czanne por ter vivido oculto noEstaque dur~te a guerra de 1870; toda gente cita com respeito o seu " espantosaa vida", quando o mais reles estudante, desde Nietzsche, repudiaria redondamentea filosofia se fora dito que ela no nos ensina a sermos grandes viventes. Como sehouvesse na ocupao do pintor uma urgncia que excede qualquer outra urgn-cia. Ele a est. forte ou fraco na vida, porm soberano incontestvel na sua rumi-nao do munao, sem outra "tcnica" a no ser a que seus olhos e suas mos se

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    o OLHO E O ESPfRITO 277do, fora de ver, fora de pintar, obstinado em tirar, desse mundo onde soamos escndalos e as glrias da Histria, telas que quase nada acrescentaro s Cle-ras nem: s esperanas dos homens, e ningum murmura. Que cincia secreta ,pois, essa que ele tem ou procura? Essa dimenso segundo a qual Van Gogh querir "mais longe"? Esse fundamental da pintura, e qui de toda a cultura ?

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    ~o pintor "emprega seu corpo", diz Valry. E, com efeito, no se v como umEsprito pudesse pintar .Emprestando seu corpo ao mundo que o pintor trans-forma o mundo em pintura. Para compreender estas transubstanciaes, h quereencontrar o corpo operante e atual, aquele que no um pedao de espao, um'l:ixe de funes, mas um entrelaado de viso e de movimento., Basta que eu veja alguma coisa, para saber ir at ela e atingi-la, mesmo se

    no sei como isso se faz na mquina nervosa. Meu corpo mvel conta no mundovisvel, faz parte dele, e por isto que eu posso dirigi-lo no visvel. Por outro lado,tambm verdade que a viso pende do movimento. S se v aquilo que se olha.Que seria a viso sem nenhum movimento dos olhos, e como o movimento destesno haveria de baralhar as coisas se, por sua vez, fosse reflexo ou cego, se notivesse suas antenas, sua clarividncia, se a viso no se precedesse nele? Todosos meus deslocamentos por princpio figuram num canto da. minha paisagem, sotransladados no mapa do visvel."Tudo o que ve'o por princ io est a meu alcan-~e..1~ ~e~os ao alc~ce do meu olhar--,~~_~inaladoo m~pa do '~~~ Cadaum dos dois mapas completo. O mundo visvel e o mundo dos meus projetosmotores so partes totais do mesmo SerEsta extraordinria superposio, na qual no se pensa bastante, impedeconcebermos a viso como uma operao de pensamento que ergueria diante doesprito um quadro ou uma representao do mundo, um mundo da imanncia eda idealidade. Imerso no visvel por seu corpo, embora ele prprio visvel, o viden-te no se apropria daquilo que v: s se aproxima dele pelo olhar, abre-se para omundo. E, por seu lado, esse mundo, de que ele faz parte, no em si ou matria.Meu movimento no uma deciso de esprito, um fazer absoluto, que, do fundodo retiro subjetivo, decretasse alguma mudana de lugar miraculosamente execu-tada na extenso. Ele a seqiincia natural e o amadurecimento de uma viso. Deuma coisa digo que ela movida, porm meu corpo, este, se move, meu movi-mento se desdobra. Ele no est na ignorncia de si, no cego para si, irradia deum si. ..o enigma reside nisto: meu corpo ao mesmo tempo vidente e visvel. Ele,que olha todas as coisas, tambm pode olhar a si e reconhecer no que est vendoento o "outro lado" do seu poder vidente. Ele se v vidente, toca-se tateante, visvel e sensvel por si mesmo. um si, no por transparncia, como o pensa-mento, que s pensa o que quer que seja assimilando-o, constituindo-o, transfor-mando-o em pensamento -mas um si por confuso, por narcisismo, por inern-cia daquele que v naquilo que ele v, daquele que toca naquilo que ele toca, do

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    o OLHO E O ESPRITO 279senciente no sentido -, um si, portanto, que tomado entre coisas, que tem umaface e um dorso, um passado e um futuro. ..Este primeiro paradoxo no cessar de produzir outros. Visvel e mvel, meucorpo est no nmero das coisas, uma delas; captado na contextur~ do mundo,e sua coeso a de uma coisa. Mas j que v e se move, ele mantm a~ oisas emcrculo volta de si; elas s~o um agexo ou um prolongamento dele mesmo, estoincrustadas na sua carne, fazem parte da sua definio plena, e o mundo feito doprprio estofo do corpo. Estes deslocamentos, estas antinomias so maneirasdiversas de dizer que a viso tomada ou se faz do meio das coisas, de l onde umvisvel se pe a ver, torna-se visvel por si e pela viso de todas as coisas, de londe, qual a gua-me no cristal, a indiviso do senciente e do sentido p~rsiste.Essa interioridade no precede o arranjo material do corpo humano, e tam-pOUCO ele resulta. Se nossos olhos fossem feitos de tal sorte que nenhuma partedo nosso corpo nos incidisse sob o olhar, ou se algum maligno dispositivp, deixan-do-nos livres de passear as mos sobre as coisas, nos impedisse de tocar o corpo-ou simplesmente se, como certos animais, tivssemos olhos laterais, sem sobre-posio do~ campos visuais -, esse corpo que se no refletisse, que se no sentis-se, esse corpo quase adamantino que, totalmente no fosse carne, tambm noseria um corpo de homem, e no haveria humanidade. Porm a humanidade no proquzida como um efeito por nossas articulaes, pela implantao dos nossosolhos (e ainda menos pela existncia dos espelhos que, no ent-anto, so os nicosque tornam visvel para ns nosso corpo inteiro). Estas contingncias e outrassem~lhantes, sem as quais no haveria homem, por simples soma no fazem quehaja um s homem. A animao do corpo no a juno, uma contra a outra, desuas partes -nem, alis, a descida, no autmato, de um esprito vindo 4~ outrolugar, o que ainda suporia que o; prprio corpo sem interior e sem "~i". Umcorpo humano a est quando, entre vidente e visvel, entre tateante e tocaqo, entreum olho e outro, entre a mo e a mo, faz-se uma espcie de recruzamento, quan-do se acende a centelha do senciente-sensvel, quando esse ogo que no mais ces-sar de arder pega, at que tal aciqente do corpo desfaa aquilo que rienhm aci-dente teria bastado para fazer. ..Ora, desde que se d esse estranho sistema de trocas, todos os problemas dapintura a esto. Eles ilustram o enigma do corpo, e ela justifica-os. Visto que ascoisas e meu corpo so feitos do mesmo estofo, cumpre que a sua viso se faa dealguma maneira nelas, ou ainda, que a manifesta visibilIdade delas se reforce nelepor meio de uma visibilidade secreta: "a natureza est no interior", diz Czanne.Qualidade, luz, cor, profundidade, que esto a diante de ns, a s esto porquedespertam um eco em nosso corpo, porque este lhes faz acolhida. Este equivalenteinterno, esta frmula carnal da sua presena que as coisas suscitam em mim porque no haveriam de, por seu turno, suscitar um traado, visvel ainda, onde qual-quer outro olhar reencontrar os motivos que sustentam a sua inspeo domundo? Ento aparece um visvel na segunda potncia, essncia carnal ou conedo primeiro. No um duplo enfraquecido, um trompe-l 'oeil, um outra coisa. Osanimais ointados na oarede de Lascaux ali no esto como l est a fenda ou o

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    empolamento do calcrio. Mas tambm no esto alhures. Um pouco para diante,um pouco para trs, sustentados por sua massa da qual se servem habilmente, elesirradiam em torno dela sem amais romperem a sua inapreensvef amarra. Achar-me-ia em grande dificuldade para dizer onde est o quadro que eu olho. por-quanto no o olho como se olha uma coisa, no o fixo em seu lugar; meu olharvagueia nele como nos nimbos do Ser e eu vejo, segundo ele ou com ele, mais doque o vejo.' A palavra imagem mal reputada porque inconsideradamente se acreditouque um desenho era um decalque, uma cpia, uma segunda coIsa, e a imagemmental era um desenho desse gnero no nosso bricabraque privado. Mas, se, comefeito, ela no nada de semelhante, o desenho e o quadro, da mesma maneira queela, no pertencem ao em;.si.So o interior do exterior e o exterior do interior, quea duplicidade do sentir torna possveis, e sem os quais nunca se compreendero aquase~presenae visibilidade iminente que constituem todo o problema do imagi-nrio. O quadro, a mmica do comediante no so os meios que eu tomariaemprestados ao mundo verdadeiro para, atravs deles, visar a coisas prosaicas naausncia delas. O imaginrio est muito mais perto e muito mais longe do atual.Mais perto, visto ser o diagrama da sua vida em meu corpo, a sua polpa ou o seuavesso canal expostos pela primeira vez aos olhares, e porque, nesse sentido,como energicamente o diz Giacometti: 1 "O que me interes~a em todas as pinturas a semelhana, isto , aquilo que para mim a semelhana: aquilo que me fazdescobrir um pouco o mundo exterior". Muito mais longe, visto o quadro s serum anlogo segundo o corpo, visto ele no oferecer ao esprito ocasio de repen-sar as relaes constitutivas das coisas, mas ao olhar, para que este os espose, osvestgios da viso do interior, e viso aquilo que a atapeta interiormente, a textu.ra imaginria do real.Diremos, ento, que h um olhar do interior, um terceiro olho que v os qua-dros e mesmo as imagens mentais, como se falou de um terceiro ouvido que captaas mensagens de fora atravs do rumor que elas suscitam em ns? Para que, quan-do tudo se resume em compreender que nossos olhos de carne j so muito maisdo que receptores para as luzes, para as cores e para as linhas: so computadoresdo mundo, que tm o dom do visvel como se diz que o homem inspirado tem odom das lnguas. Certamente, esse dom se merece pelo exerccio, e no em al-guns meses, no , tampouco, na solido, que um pintor entra na posse de suaviso. No est nisso a questo: precoce ou tardia, espontnea ou formada nomuseu, em todo o caso a sua viso s aprende vendo, s aprende por si mesma. 0olho v o mundo, e o que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadropara ser ele mesmo, e, na palheta, a cor que o quadro aguarda; e, uma vez feito.v o quadro que responde a todas essas altas, e v os quadros dos outros, as res-postas outras a outras faltas. to impossvel fazer um inventrio limitativo dovisvel quanto dos usos possveis de uma lngua, ou apenas do seu vocabulrio edos seus estilos. Instrumento Que se move por si mesmo, meio Que inventa seus1 G. Charbonnier, Le Monologue du Peintre, Paris, 1959, pg. 172.

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    o OLHO E O ESPRITO 281prprios fins, o olho aquilo que foi comovido por um certo impacto do mundo,e que o restitui ao visvel pelos traos da mo. Seja qual for a civilizao em quenasa, sejam quais forem as crenas, os motivos, os pensamentos, as cerimniasde que se cerque, e mesmo quando parece fadada a outra coisa, desde Lascaux athoje, pura ou impura, figurativa ou no, a pintura jamais celebra outro enigma ano ser o da visibilidade.Isso que a dizemos equivale a um trusmo: o mundo do pintor um mundovisvel, simplesmente visvel, um mundo quase louco, pois que completo sendo,entretanto, meramente parcial. A pintura desperta e eleva sua ltima potnciaum delrio que a prpria viso, j que ver ter distncia, e que a pintura esten-de essa bizarra posse a todos os aspectos do Ser, que de alguma maneira devemfazer-se visveis para entrar nela. Quando, a propsito da pintura italiana, o jovemBerenson falava de uma evocao dos valores tateis, no poderia enganar-se mais :a pintura no evoca coisa alguma, especialmente o ttil. Ela faz coisa totalmentediferente, quase o inverso: d existncia visvel quilo que a viso profana acre-dita invisvel, faz que no tenhamos necessidade de "sentido muscular" para ter-mos a voluminosidade do mundo. Esta viso devoradora, p~a alm dos "dadosvisuais", abre para uma textura do Ser cujas mensagens sensoriais discretas soapenas as pontuaes ou as cesuras, e que o olho habita como o homem habitasua casa.Fiquemos no visvel em sentido estrito e prosaico: enquanto pinta, o pintor ,qualquer que seja, pratica uma teoria mgica da viso. Ele teII que admitir que ascoisas entram nele ou que, consoante o dilema sarcstico de Malebranche, o esp-rito sai pelos olhos para ir passear pelas coisas, visto que no cessa de ajustar aelas a sua vidncia. (Nada mudado se ele no pinta apoiado no motivo: em todocaso, pinta porque viu, porque, ao menos uma vez, o mundo gravou nele as cifrasdo visvel.) Cumpre que ele confesse, como diz um filsofo, que a viso espelhoou concentrao do universo, ou que, como diz outro, o dios k6smos, apre-se pormeio dela para um koins k6smos, enfim, que a mesma coisa est l no coraodo mundo e c no corao da viso, a mesma ou, se se fizer questo, uma coisasemelhante, porm segundo uma similitude eficaz, que parenta, gnese, meta-morfose do ser em sua viso. a prpria montanha que, l de longe, se mostra aopintor, a ela que ele interroga com o olhar .Que lhe pede ele exatamente? Pede-lhe desvelar os meios" apenas visveis,pelos quais ela se faz montanha aos nossos olhos. Luz, iluminao, sombras,reflexos, cor, todos esses objetos da pesquisa no so inteiramente seres reais :como os fantasmas, s tm existncia visual. No esto, mesmo, seno no limiarda viso profana, e comumente no so vistos. O olhar do pintor pergunta-lhescomo que eles se arranjam para fazer que haja subitamente alguma coisa, e essacoisa, para compor esse talism do mundo, para nos fazer ver o visvel. A moque aponta para ns em A Ronda Noturna est verdadeiramente ali, quando a suasombra no corpo do capito no-la apresenta simultaneamente de perfil. No cruza-mento das duas vistas incompossveis, e que no entanto esto juntas, ~ca a espa-ialidade do capito. Desse jogo de sombras, ou de outros semelhantes, todos os

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    282 MERLEAU-PONTYhdmens que tm olhos foram, algum dia, testemunhas. Era ele que lhes fazia vercoisas e um espao. Mas operava neles sem eles, dissimulava-se para mostrar acoisa. Para v-la, a ela, no era preciso v-lo, a ele. O visvel nO-sentido profanoesquece as suas premissas, repousa numa visibilidade inteira que preciso recriar ,e que liberta os fantasmas cativos nele. Como se sabe, os modernos tm libertadomuitos outros, tm aditado muitas notas surdas gama oficial dos nossos meiosde ver. Mas, em todo caso, a interrogao da pintura visa a essa gnese secreta efebril das coisas em nosso corpo.No se trata, pois, da pergunta daquele que sabe quele que ignora, perguntado mestre-escola-; mas sim da pergunta daquele que no sabe a uma viso quetudo sabe, que ns no fazemos, que se faz em ns. Max Ernst (e o sur;realismo)diz com razo: " Assim como o papel do poeta, desde a clebre carta do vidente,consiste em escrever sob a inspirao do que se pensa, do que se articula nele, opapel do pintor cercar e projetar o que nele se v.2 O pintor vive na fascinao.Suas aes mais caractersticas -aqueles gestos, aqueles traados de que s ele capaz, e para os outros sero revelao, porque no tm as mesmas carnciasque ele -, parece-lhe que emanam das prprias coisas, como o desenho dasconstelaes. Entre ele e o visvel, os papis se invertem inevitavelmente. porisso que tantos pintores disseram que as coisas olham para eles, e que Andr Mar-chand, depois de Klee, afirmou: "Numa floresta, repetidas vezes senti que no eraeu que olhava a floresta. Em certos dias, senti que eram as rvores que olhavampara mim, que me falavam. ..Eu l estava, escutando. ..Creio que o pintordeve ser traspassado pelo universo, e no querer traspass-lo. ..Aguardo serinteriormente submergido, sepultado. Pinto, talvez, para ressurgir".3 Isso a que sechama inspirao deveria ser tomado ao p da letra: h deveras inspirao e expi-rao do Ser, respirao no Ser, ao e paixo to pouco discernveis, que j nose sabe mais quem v e quem visto, quem pinta e quem pintado. Diz-se que umhomem nasceu no momento em que aquilo que, no fundo do corpo materno, nopassava de um visvel virtual torna-se ao mesmo tempo visvel para ns e para si.A viso do pintor um nascimento continuado.Poder-se-ia procurar nos prprios quadros uma filosofia figurada da viso, ecomo que a sua iconografia. No acaso, por exemplo, se frequentemente, na pin-tura holandesa (e em muitas outras), um interior deserto "digerido" pelo "olhoredondo do espelho". 4 Esse olhar pr-humano o emblema do olhar do pintor .Mais completamente do que as luzes, as sombras, os reflexos, a imagem especularesboa nas coisas o trabalho de viso. Como todos os outros objetos tcnicos,como os instrumentos, como os sinais, o espelho surgiu no circuito aberto docorpo vidente ao corpo visvel. Toda tcnica "tcnica do corpo". Ela figura eamplia a estrutura metafisica da nossa carne. O espelho aparece porque eu souvidente-visvel, porque h uma reflexividade do sensvel; ele a traduz e reduplica.2 O. Charbonnier, id., pg. 34.3 O. Charbonnier, id., pgs. 143-145..Claudel. lntroduction ia Peinture Ho//andaise. Paris. 1935, reed. em 1946.

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    o OLHO E O ESPtRITO 283Graas a ele, o meu exterior se completa, tudo o que eu tenho de mais secretopassa a esse rosto, esse ser plano e fechado que meu reflexo na gua j me faziasuspeitar. Schilder 6 observa: fumando cachimbo diante do espelho, sinto a super-fcie lisa e ardente da madeira no somente l onde esto meus dedos, mas tam-bm nesses dedos gloriosos, nesses dedos apenas visveis que esto no fundo doespelho. O fantasma do espelho arrasta para fora minha carne, e, do mesmopasso, todo o invisvel de meu corpo pode investir os outros corpos que vejo.;Doravante, meu corpo pode comportar segmentos extraIdos dos dos outros comominha substncia se transfere para eles: o homem espelho para o homem. Quan-to ao espelho, ele o instrumento de uma universal magia que transforma coisasem espetculos, os espetculos em coisas, eu no outro e o outro em mim. Os pinto-res muitas vezes refletiram sobre os espelhos porque, por sob esse"truque mecni-co', como por sob o truque da perspectiva, 6 reconheciam a metamorfose do viden-te e do visvel, que a defil1io da nossa carne e a da vocao deles. Eis atambm por que muitas vezes eles gostavam (e ainda gostam: vejam-se os dese-nhos de Matisse) de representar-se a si mesmos no ato de pintar, acrescentando aoque ento viam aquilo que as coisas viam deles, como que para atestar que huma viso total ou absoluta, fora da qual nada permanece, e que torna a se fecharsobre eles mesmos. Coino denominar, onde colocar no mundo do entendimentoessasoperaes ocultas, e os filtros, os dolos que elas preparam ? O sorriso de ummonarca morto h tantos anos, do qual a Nause falava, e que continua a produ-zir-se e a reproduzir-se superfcie de uma tela, pouqussimo dizer que ele aest em imagem ou em essncia: ele prprio a est no que teve de mais vivo,desde que eu olho para o quadro. O "instante do mundo" que Czanne queria pin-tar, e que de h muito j passou, suas telas continuam a no-Io lanar, e sua monta-nha Santa-Vitria faz-se e refaz-se de um extremo a outro do mundo, de outromodo, mas no menos energicamente, do que na rocha dura acima de Aix. Essn-cia e existncia, imaginrio e real, visvel e invisvel, a pintura baralha todas asnossas categorias ao desdobrar o seu universo onrico de essncias carnais, desemelhanas eficazes, de mudas significaes.

    5 P. Schilder, The!mage and Appearance ofthe Human Body, New York, 1935, reed. em 1950.5 Robert Delauna:ir, Du Cubisme l~rt Abstrait, cadernos publicados por Pierre Francastel, Paris, 1957.

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    IIIComo tudo seria mais lmpido em nossa filosofia se se pudessem exorcizaresses espectros, fazer deles iluses ou percepes sem objeto, margem de ummundo sem equvoco! A Di6ptrica de Descartes essa tentativa. o brevirio deum pensamento que no mais quer assediar o visvel e decide reconstru-lo segun-do o modelo que dele se proporciona. Vale a pena relembrar o que foi esse ensaioe esse racasso.Nenhuma preocupao, pois, de coincidir perfeitamente com a viso. Trata-se de saber "como ela se faz", porm na medida necessria para, se for preciso,inventar alguns "rgos artificiais" 7 que a corrijam. No se raciocinar tanto

    sobre a luz que vemos, como sobre a que de fora nos entra pelos olhos e comandaa viso; e, sobre isso, limitar-nos-emos a "duas ou trs comparaes que ajudema conceb-la" de uma maneira que lhe explique as propriedades conhecidas e per-mita, destas, deduzir outras.8 A tomar assim as coisas, o melhor pensar a luzcomO uma ao por contato, tal como ao das coisas sobre a bengala do cego.Os cegos, diz Descartes, "vem com as mos".9 O modelo cartesiano da viso o tato.Para logo ele nos desvencilha da ao a distncia e dessa ubiqiiidade queconstitui toda a dificuldade da viso (e tambm toda a sua virtude). Por que diva-gar agora sobre os reflexos, sobre os espelhos? Esses duplos irreais so uma varie-dade de coisas, so efeitos reais como o ricochete de uma bala. Se o reflexo se pa-rece com a prpria coisa, que age mais ou menos sobre os olhos como o fariauma coisa. Ele engana o olho, gera uma percepo sem objeto, mas que no afetaa nossa idia do mundo. No mundo, h a pr6pria coisa, e fora dela h esta outracoisa, que o raio de luz refletido, e que tem com a primeira uma correspondnciaregulada, dois indivduos, portanto, ligados de fora pela causalidade. A seme-lhana entre a coisa e a sua imagem especular no , para elas, seno uma deno-minao exterior, pertence ao pensamento. A ambgua relao de semelhana nas coisas uma clara relao de projeo. Um cartesiano no se v no espelho: vum manequim, um "exterior" do qual tem todas as razes de pensar que os outrosigualmente o vem, mas que, nem para si mesmo nem para eles, uma carne. Asua "imagem" no espelho um efeito da mecnica das coisas; se ele se reconhecenela, se a acha "parecida", seu pensamento que tece esse vnculo, a imagemespecular nada dele.7 Dioptrique, Discurso VII, edio Adam et Tannery, VI, pg. 165..Descartes, Discours I, ed. cit., pg. 83.9 Ibid.. D2. 84.

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    o OLHO E O ESPfRITO 285J no h mais o poder dos cones. Por mais vivamente que "nos represente"as florestas, as cidades, os homens, as batalhas, as tempestades, o talho-doce nose lhes assemelha: no passa de um pouco de tinta posta aqui e acol sobre o

    papel. Retm das coisas apenas a sua figura, uma figura achatada sobre um splano, deformada, e que deve ser deformada -o quadrado em losango, o crculoem oval -para representar o objeto. Ele s a "imagem" das coisas com a con-dio de "com elas no se parecer". 10 Se no por semelhana, como ento queele age? Ele "excita o nosso pensamento" a "conceber", tal como o fazem os si-nais e as palavras "que de modo nenhum se parecem com as coisas que signifi-cam ".1 1 A gravura d-nos indcios suficientes, "meios" sem equvoco para formaruma idia da coisa que no vem do cone, que nasce em ns por "ocasio" deste.A magia das espcies intencionais, a velha idia da semelhana eficaz, impostapelos espelhos _e elos quadros, perde o seu ltimo argumento se todo o poder doquadro o de um texto proposto nossa leitura, sem nenhuma promiscuidade dovidente e do visvel. Estamos dispensados de compreender como a pintura das coi-sas no corpo poderia faz-las sentir alma, tarefa impossvel, pois que a seme-lhana desta pintura com as coisas teria, por sua vez, necessidade de ser vista, eprecisaramos "de outros olhos em nosso crebro com os quais pudssemosenxerg-Ia,1z alm de que o problema da viso persiste inteiro quando nosproporcion.lmos esses simulacros errantes entre as coisas e ns. Tanto quanto ostalhos-doces, aquilo que a luz traa em nossos olhos e, dali, em nosso crebro, nose parece com o mundo visvel. Das coisas aos olhos e dos olhos viso nopassa nada mais que das coisas s mos do cego e, das suas mos, ao seu pensa-mento. A viso no a metamorfose das prprias coisas na sua viso, a dupla per-tena das coisas ao grande mundo e a um pequeno mundo privado. um pensa-mento que decifra estritamente os sinais dados no corpo. A semelhana oresultado da percepo, e no a sua mola. Com muito mais razo, a imagem men-tal, a vidncia que nos torna presente quilo que est ausente, no nada parecidocom uma abertura ao corao do Ser: ainda um pensamento apoiado em ind-cios corporais, desta vez insuficientes, aos quais ela faz dizer mais do que elessignificam. No resta coisa alguma do mundo onrico da analogia. ..O que nos interessa nessas clebres anlises que elas tornam perceptvelque toda teoria da pintura uma metafisica. Descartes no falou mqito da pintu-ra, e poder-se-ia achar abusivo o levar em conta o que diz, em duas pginas, dostalhos-doces. Entretanto, j significativo que s fale deles de passagem: a pintu-ra no para ele uma operao central que contribua para definir o nosso acessoao ser; um modo ou uma variante do pensamento canonicamente definido pelaposse intelectual e pela evidncia. No pouco que dela ele diz, esta opo que seexprime. e um estudo mais atento da pintura delinearia uma outra filosofia. Signi-ficatvo tarn bm que. tendQ de falar dos ..quadros... ele tome como tpico o dese-'0 Dcscartes.DiscoursIV.pgs.112-IJ4,, Ibid.,pgs.112-114.2 TJ.;A VI "&o 1 ~n

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    286 MERLEAU-PONTYnho. Veremos que a pintura inteira est presente em cada um dos seus meios deexpresso: h um desenho, uma linha, que encerram todas as ousadias dela. Maso que agrada a Descartes nos talhos-doces conservarem estes a forma dos obje-tos, ou pelo menos nos oferecerem dela sinais suficientes. Eles nos do uma apre-sentao do objeto pelo seu exterior ou envoltrio. Se houvesse examinado estaoutra e mais profunda abertura s coisas que as qualidades segundas nos propor-cionam, notadameIite a cor, como no h relao regulada ou projetiva entre elase as propriedades verdadeiras das coisas, e como, no entanto, a mensagem delas compreendida por ns, Descartes ter-se-ia achado diante do problema de umauniversalidade e de uma abertura-s-coisas sem conceito, ter-se-ia visto obrigadoa indagar como o murmrio indeciso das cores pode apresentar-nos coisas, flores-tas, tempestades, enfim o mundo, e talvez a integrar a perspectiva, como casoparticular, num poder ontolgico mais amplo. Mas, para ele, fora de dvida quea cor ornamento, colorao; que todo o poder da pintura assenta no poder dodesenho, e o poder do desenho, na relao regulada que existe entre ele e o espaoem si, tal como o ensina a projeo em perspectiva. O famoso dito de Pascal sobrea frivolidade da pintura, que nos prende a imagens cujo original no nos sensibili-zaria, um dito cartesiano. Para Descartes, uma evidncia que no se pode pin-tar seno coisas existentes, que a existncia delas serem extensas, e que o dese-nho possibilita a pintura ao tornar possvel a representa,o da extenso. No ,ento, a pintura seno um artificio que apresenta aos nossos olhos uma projeosemelhante que as coisas nela inscreveriam e nela inscrevem na percepocomum, que, na ausncia do objeto verdadeiro, faz-nos ver como se v o objetoverdadeiro na vida, e que especialmente nos faz ver espao onde no h. 13 O qua-dro uma coisa plana, que nos proporciona artificiosamente aquilo que veramosem presena de coisas "diversamente salientadas", porque ele nos d segundo aaltura e a largura sinais diacrticos suficientes da dimenso que lhe falta. Aprofundidade uma terceira dimenso derivada das outras duas.Detenhamo-nos nela, que vale a pena. Ela tem, primeiramente, algo de pata-doxal: eu vejo objetos que reciprocamente se escondem, e que portanto no vejo,por estarem um detrs do outro. Vejo-a, e ela no visvel, visto que ela se contado nosso corpo s coisas, e ns estamos colados a ele. ..Esse mistrio um falsomistrio, eu no a vejo deveras, ou, se a vejo, uma outra largura. Na linha queune meus olhos ao horizonte, o primeiro plano esconde para sempre os outros, e,se lateralmente eu creio ver os objetos escalonados, que eles no se mascaramcompletamente: vejo-os, pois, um fora do outro, segundo uma largura diversa-mente computada. Sempre se est aqum da profundidade, ou alm. Nunca as coi-sas esto uma por trs da outra. A superposio e a latncia das coisas no en-tram na sua definio, apenas exprimem a minha incompreensvel solidariedadecom uma delas, meu corpo, e, em tudo o que elas tm de positivo, so pensa-13 O sistema dos meios pelos quais ela nos faz ver objeto de cincia. Por que ento no haveramos de pro-duzir, metodicamente, perfeitas imagens do mundo, uma pintura universal liberta da arte pessoal, como a ln-2Ua universal nos libertaria de todas as relaces confu~a~ aue merlr..m n..o Jna"..o pviotp"tpo?

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    o OLHO E O ESPRITO 287mentos que eu formo, e no atributos das coisas: sei que, nesse mesmo momento,outro homem colocado de outro modo -ainda melhor Deus, que est em todaparte -poderia penetrar o esconderijo delas, e v-Ias-ia desdobradas. Isso a queeu chamo profundidade no nada, ou a minha participao num Ser sem restri-o, e, primeiramente, no ser do espao, para alm de todo ponto de vista. As coi-sas embricam-se umas nas outras porque esto uma/ora da outra. A prova disto que eu posso ver profundidade ao olhar um quadro que, todos concordaro, noa tem, e que apronta para mim a iluso de uma iluso. ..Esse ser de duas dimen-Ses, ue me faz ver uma outra dimenso, um ser furado, como diziam os ho-mens do Renascimento, uma janela. ..Mas, no final das contas, a janela sabre para o partes extra partes, para a altura e a largura que s so vistas de outrongulo, para a absoluta positividade do Ser esse espao sem esconderijo que, em cada um de seus pontos , nem maisnem menos, o que ele , essa identidade do Ser que sustenta a anlise dostalhos-doces. O espao existe em si, ou, antes, o em-si por excelncia, sua defini-o ser em si. Cada ponto do espao existe, e pensado a onde existe, um aqui,outro ali; o espao a evidncia do onde. Orientao, polaridade, envolvimentoso nele fenmenos derivados, ligados minha presena. Ele repousa absoluta-mente em si, em toda parte igual a si, homogneo, e suas dimenses, por exem-plo, por definio so substituveis.Como todas as ontologias clssicas, esta erige em estrutura do Ser certaspropriedades dos seres, e nisto ela verdadeira e falsa, poder-se-ia dizer inver-tendo a palavra de Leibniz: verdadeira no que nega, e falsa no que afirma. O espa-o de Descartes verdadeiro contra um pensamento submisso ao emprico, e queno ousa construir. Havia, primeiro, que idealizar o espao, conceber esse ser per-feito no seu gnero, claro, manejvel e homogneo, que o pensamento sobrevoasem ponto de vista e transporta por inteiro sobre trs eixos retangulares, para quese pudessem um dia achar os limites da construo, compreender que o espaono tem trs dimenses, nem mais nem menos como um animal tem quatro ouduas patas; que as dimenses so tomadas de antemo, pelas diversas mtricas,sobre uma dimensionalidade, sobre um Ser polimorfo, que as ustifica todas semser completamente expresso por nenhuma. Razo tinha Descartes de liberar oespao. O seu erro estava em erigi-Io num ser inteiramente positivo, para alm detodo ponto de vista, de toda latncia, de toda profundidade, sm nenhuma espes-sura verdadeira.Razo tambm tinha ele de se inspirar nas tcnicas de perspectivas doRenascimento: elas incentivaram a pintura a produzir livremente experincias deprofundidade, e, em geral, apresentaes do Ser. Elas s eram falsas se preten-dessem encerrar a investigao e a histria da pintura, fundar uma pintura exatae infalvel. Panofsky mostrou isso a propsito dos homens do Renascimento;1 4esseentusiasmo no era sem m-f. Os tericos tentavam esquecer o campo visual,. E. Panofsky, Die Perspektive ais symbolische Form. em Vortriige der Bibliotek Warburg. IV

    (1924.1925).

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    288 MERLEAU-PONTYesfrico dos Antigos, a sua perspectiva angular, que liga a grandeza aparente no distncia, mas ao ngulo sob o qual vemos o objeto, coisa a que eles desdenho-samente chamavam de perspectiva naturalis ou communis, em proveito de umaperspectiva artificialis, capaz, em princpio, de fundamentar uma construoexata; e, para acreditar nesse mito, chegavam at a expurgar Euclides, omitindodas suas tradues o teorema VIII, que os incomodava. Os pintores sabiam, porexperincia, que nenhuma das tcnicas da perspectiva uma soluo exata; queno h projeo do mundo existente que o respeite em todos os pontos e mereatornar-se a lei fundamental da pintura; e que a perspectiva linear to pouco umponto de chegada que, ao contrrio, abre pintura vrios caminhos: com os Ita-lianos. o da representao do objeto, mas, com os pintores do Norte, o doHochraum, do Nahraum, do Schr"graum. ..Assim, a projeo plana nem sem-pre excita o nosso pensamento a reencontrar a forma verdadeira das coisas, comoo acreditava Descartes: passado um certo grau de deformao, , ao contrrio, aonosso ponto de vista que ela encaminha; quanto s coisas, estas fogem para umadistncia que nenhum pensamento transpe. Algo no espao escapa s nossas ten-tativas de sobrevo. A verdade que nenhum meio de expresso adquirido resolveos problemas da pintura, transforma-a em tcnica, porque nenhuma forma simb-lica funciona jamais como um estmulo: onde quer que ela operou e agiu, foiconjuntamente com todo o contexto da obra, e de modo a,lgum pelos meios dotrompe-l'oeil. O Stilmoment nunca dispensa do Wermoment. ' 5 A linguagem dapintura no foi "instituda pela Natureza": tem de ser feita e refeita. A perspectivado Renascimento no um "truque" infalvel: mero caso particular, uma data,um momento numa informao potica do mundo que continua depois dela.Entretanto, Descartes no seria Descartes se houvesse pensado eliminar oenigma da viso. No h viso sem pensamento. Mas no basta pensar para ver:a viso um pensamento condicionado; nasce "por ocasio" daquilo que sucederio corpo, "excitada" a pensar por ele. No escolhe nem ser ou no ser, nem pen-sar isto ou aquilo. Deve trazer em seu corao esse peso, essa dependncia queno podem advir-lhe por uma intromisso de fora. Tais acontecimentos do corposo "institudos pela natureza" para nos darem a ver isto ou aquilo. O pensa-mento da viso funciona segundo um programa e uma lei que ele no se deu; noest de posse de suas prprias premissas; no pensamento todo presente, todoatual; h em seu centro um mistrio de passividade. , portanto, esta a situao:tudo o que se diz e se pensa da viso faz dela um pensamento. Quando, por exem-plo, se quer compreender como que vemos a situao dos objetos, no h outrorecurso seno supor a alma, que sabe onde esto as partes de seu corpo, capaz de"transferir da sua ateno" a todos os pontos do espao que esto no prolonga-mento dos membros. ' 8 Mas isto ainda no passa de um "modelo" do aconteci-mento. Porquanto esse espao de seu corpo que a alma estende s coisas, essepri-meiro aqui de onde viro todos os ali, como que ela o sabe? Aquele no , como1 5 Ibid.18 f)"."Art~. n". "ii. VT na 1 ~~

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    289o OLHO E O ESprRITOestes, um modo qualquer, uma amostra da extenso; o lugar do corpo a que aalma chama "seu", um lugar que ela habita. O corpo que anima no para elaum objeto entre os objetos, e ela no subtrai dele todo o resto do espao a ttulode premissa iIbplicada. A alma pensa segundo o corpo, e no segundo ela prpria;e, no pacto natural que a une a ele, so estipulados tambm o espao, a distnciaexterior. Se, para tal grau de acomodao e de convergncia do olho, a almaenxerga tal distncia, o pensamento que tira da primeira a segunda relao como um pensamento imemorial inscrito na nossa fbrica interna: "E isto aconte-ce-nos ordinariamente sem que reflitamos nisso, assim como, quando apertamosalguma coisa com a mo, ns a conformamos grossura e figura desse corpo eo sentimos por meio dela, sem que para tal seja necessrio pensarmos nos seusmovimentos".1 7 O corpo para a alma o seu espao natal e a matriz de qualqueroutro espao existente. Dessarte a viso se desdobra: h a viso sobre a qual eureflito, e no posso pens-la de outro modo como pensamento, inspeo do Espri-to, seno juzo, leitura de sinais. E h a viso que tem lugar, pensamento honor-rio ou institudo, esmagado num corpo seu, cuja idia no se pode ter seno exer-cendo-a, e que entre o espao e o pensamento introduz a ordem autnoma docomposto de alma e de corpo. O enigma da viso no eliminado: ele remetidodo "pensamento de ver" viso em ato.Esta viso de fato e o "h" que ela contm no transtornam, entretanto, afilosofia de Descartes. Sendo pensamento unido a um corpo;, por definio ela nopode ser verdadeiramente pensamento. Pode-se pratic-la, exerc-la e, por assimdizer, existi-la, mas no se pode tirar dela nada que merea ser dito verdadeiro. Se,como a rainha "Elizabeth, se quiser, a toda fora, pensar disso alguma coisa, noh seno que retomar Aristteles e a Escolstica, e conceber o pensamento comocorporal, coisa que se no concebe, mas essa _a nica maneira de fo~~ularperante o entendimento a unio da alma com o corpo. Em verdade, absurdo sub-meter ao entendimento puro a mistura do entendimento e do corpo. Estes preten-sos pensamentos so os emblemas do "uso da vida", as armas falantes da unio,legtima sob a condio de no serem tomadas como pensamentos. So os ind-cios de uma ordem da existncia -do homem existente, do mundo existente -que no somos incumbidos de pensar. Ela no marca no nosso mapa do Sernenhuma terra incognita, no restringe o alcance dos nossos pensamentos, por-que, tanto quanto ela, este sustentado por uma Verdade que fundamente suaobscuridade como as nossas luzes. at aqui que cumpre chegar para achar emDescartes algo como uma metafisica da profundidade: porquanto esta Verdade,ns no assistimos ao nascimento dela, e o ser de Deus para ns abismo. ..Tremor prontamente superado: para Descartes to intil sondar esse abismocomo pensar o espao da alma e a profundidade do visvel. Sobre todos estesassuntos, ns estamos desqualificados por posio. Tal esse segredo de equil-brio cartesiano:uma metafisica que nos d razes decisivas para no mais fazer-

    7 npo'."rtpo nn cit. VI nHa IJ7.

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    290 MERLEAU-PONTYmos metafisica, que valida nossas evidncias limitando-as, que abre nosso pensa-mento sem dilacei-lo.Segredo perdido, e, ao que parece, para sempre: se reencontrarmos um equil-brio entre a cincia e a filosofia, entre nossos modelos e a-obscuridade do "h",ser mister ser um novo equilbrio. Nossa cincia rejeitou tanto as justificaescomo as restries de campo que Descartes lhe impunha. Os modelos que inventa,ela no pretende mais deduzi-Ios dos atributos de Deus. A profundidade domundo existente e a do Deus insondvel j no vm forrar a vulgaridade do pensa-mento "tecnicizado". O desvio pela metafisica, que, apesar de tudo, Descartes fi-zera uma vez em sua vida, a cincia dispensa-se dele: ela parte daquilo que foi oseu ponto de chegada. O pensamento operacional reivindica, sob o nome de psico-logia, o domnio do contato consigo mesmo e com o mundo existente, que Descar-tes reservava a uma experincia cega, mas irredutvel. Ele fundamentalmentehostil filosofia como pensamento de contato; e, se lhe reencontrar o sentido, serpelo prprio excesso da sua desenvoltura, quando, tendo introduzido toda sorte denoes que para Descartes dependeriam do pensamento confuso -qualidade,estrutura escalar, solidariedade entre o observador e o observado -, ele sbitoatinar com que no se pode sumariamente falar de todos esses seres como deconstructa. At l, contra ele que a filosofia se mantm, afundando-se nessadimenso do composto de alma e de corpo, do mundo existente, do Ser abismal,a qual Descartes abriu e logo fechou. Nossa cincia e nossa filosofia so duasconseqiincias fiis e infiis do cartesianismo, dois monstros nascidos do desmembramento dele.

    nossa filosofia s resta empreender a prospeco do mundo atual. Nssomos o composto de alma e corpo; mister se torna, pois, que haja dele um pensa-mento: a este saber de posio ou de situao que Descartes deve o que dele diz,ou o que, s vezes, ele diz da presena do corpo "contra a alma", ou da presenado mundo exterior "na ponta" de nossas mos. Aqui o corpo j no meio daviso e do tato, depositrio destes. Longe de serem os nossos rgos instrumen-tos, nossos instrumentos, ao contrrio, que so rgos acrescentados. O espaono mais aquele de que fala a Di6ptrica, rede de relaes entre objetos, tal comoo veria uma terceira testemunha da minha viso, ou UQlgemetra que a reconstrie a sobrevoa; um espao contado a partir de mim como ponto ou grau zero daespacialidade. Eu no o vejo segundo o seu invlucro exterior, vivo-o por dentro,estou englobado nele. Afinal de contas, o mundo est em torno de mim, e noadiante de mim. A luz reencontrada como ao a distncia, e no mais reduzida ao de contato; por outros termos, concebida como pode s~lo pelos que porela no vem. A viso retoma o seu poder fundamental de manifestar, de mostrarmais do que a si mesma. E, j que nos dizem que um pouco de tinta basta parafazer ver florestas e tempestades, cumpre que ela tenha a seu imaginrio. A suatranscendncia j no delegada a um esprito leitor que decifre os impactos daluz-coisa sobre o crebro, e que o faria igualmente bem se nunca houvesse habi-tado um corpo. J no se trata de falar do espao e da luz, e sim de fazer falaremo espao e a luz que a esto. Questo interminvel, pois que a viso a que ela se

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    o OLHO E O EspIRITO 291dirige , por sua vez, questo. Todas as pesquisas que acreditvamos encerradasreabrem-se. Que a profundidade, que a luz, t to 6n -que so eles, no parao esprito que se isola do corpo, mas para o esprito do qual Descartes disse queno corpo estava espalhado -e, enfim, no somente para o esprito, mas tambmpara eles mesmos, j que eles nos atravessam, nos englobam ?

    Ora, esta filosofia que est por se fazer, ela que anima o pintor, no quandoele exprime opinies sobre o mundo, mas no instante em que a sua viso se tornagesto, quando, dir Czanne, ele "pensa com a pintura". 18

    ,. B. Dorival, Paul Czanne. ed. P. Tisn, Paris, 1948: Czanne atravs das suas cartas e das suas testemu.nhas. D~s. 103 e ss.

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    Toda a histria moderna da pintura, bem como o seu esforo para desvenci-lhar-se do ilusionismo e adquirir suas prprias dimenses, tem um significadometafisico. No se trata de demonstr-lo. No por motivos oriundos dos limitesda objetividade em histria, e da inevitvel pluralidade das interpretaes queproibiria vincular uma filosofia e um acontecimento; mas porque a metafisica emque pensamos no um corpo de idias separadas para o qual se buscariam justi-ficaes indutivas na empiria -e h na carne da contingncia uma estrutura doacontecimento, uma virtude prpria do cenrio que no impedem a pluralidadedas interpretaes, que so mesmo a sua razo profunda, que fazem dele um temadurvel da vida histrica, e que tm direito a um estatuto filosfico. Em certo sen-tido, tudo o que se pde dizer e que se disser da Revoluo Francesa sempre este-ve, est desde agora nela, nessa vaga que se desenhou no fundo dos fatos parcela-res com sua escuma de passado e sua crista de futuro, e sempre olhando melhorcomofoi que ela sefez que se do e se daro dela novas representaes. Quanto histria das obras, em todo o caso, se forem grandes, o sentido que se hes d deimediato saiu delas. Foi a prpria obra que abriu o campo de onde ela aparecenuma outra luz, ela que se metamorfoseia e se torna a seqiincia; as reinterpre-taes interminveis de que ela legitimamente suscetvel no a transformamseno nela mesma; e, se o historiador reencontra por sob o contedo manifesto oexcesso e a espessura de sentido, a textura que lhe preparava um longo futuro, estamaneira ativa de ser, esta possibilidade que ele descobre na obra, essemonogramaque nela encontra, fundamentam uma meditao filosfica. Mas este trabalhoexige longa familiaridade com a Histria. Falta-nos tudo para execut-Io, assim acompetncia como o lugar. Simplesmente, visto o poder ou a geratividade dasobras excederem toda relao positiva de causalidade e de filiao, no ilegtimoque um profano, deixando falar a lembrana de alguns quadros e de alguns livros,diga como que a pintura intervm nas suas reflexes, e consigne o sentimentoque tem de uma discordncia profunda, de uma mutao nas relaes entre ohomem e o Ser, quando confronta maciamente um universo de pensamento cls-sico com as pesquisas da pintura moderna. Espcie de histria por contato, quetalvez no saia dos limites de uma pessoa, e que no entanto deve tudo freqiien-taodosoutros. .."Quanto a mim, penso que Czanne buscou a profundidade durante toda asua vida", diz Giacometti.' 9 " A profundidade", afirma por Sua vez Robert Delau-nay, " a inspirao nova".20 Quatro sculos depois das "solues" do Renasci-19 G.Charbonnier,op.cit.,pg.176.20 R. Delaunav. ed. ciL n2. 109.

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    o OLHO E O ESPRITO 293mento, e trs sculos aps Descartes, a profundidade sempre nova, exige que abusquem, no "uma vez na vida", seno por uma vida toda. No pode tratar-se dointervalo sem mistrio que eu veria, de um avio, pot entre essas rvores prximase as longnquas. Nem, tampouco, do escamoteamento das coisas umas pelasoutras, que um desenho em perspectiva me representa vivamente: estas duas vistasso muito explcitas e no suscitam questo nenhuma. O que constitui enigma asua ligao, aquilo que est entre elas - que eu veja as coisas cada uma emseu lugar justamente porque elas se eclipsam umas s outras -, que sejam ri-vais perante o meu olhar precisamente por estarem cada uma em seu lugar. ~ asua exterioridade conhecida no envolvimento delas e a mtua dependncia delasna sua autonomia. Da profundidade assim compreendida, j no se pode dizer que "terceira dimenso". Primeiramente, se ela fosse uma dimenso, seria antes aprimeira: no h formas, planos definidos a no ser que se estipule a que distnciade mim se acham as suas diferentes partes. Mas uma dimenso primeira, e quecontm as outras, no uma dimenso, pelo menos no sentido ordinrio de umacerta relao segundo a qual se mede. Assim compreendida, a profundidade mais propriamente a experincia da reversibilidadedas dimenses, de uma "loca-lidade" global onde tudo est a um s tempo, cuja altura, largura e distncia soabstratas, de uma voluminosidade que se exprime com uma palavra dizendo queuma coisa l est. Quando Czanne procura a profundidade, essa deflagraodo Ser que ele procura, e ela est em todos os modos do espao, e na forma igual-mente. Czanne j sabe aquilo que o cubismo repetir: que 'a forma externa -oenvoltrio - segunda, derivada, que ela no aquilo que faz que uma coisatome forma, que preciso quebrar essa concha de espao, quebrar a comporteira-e, em lugar disso, pintar o qu? Cubos, esferas, cones, como ele disse uma vez?Acaso formas puras que tm a solidez daquilo que pode ser definido por uma leide construo interna, e que, todas juntas, traos ou cortes da coisa, deixam.naaparecer entre si como um rosto entre canios? Isto seria pr de um lado a solidezdo Ser, e de outro a sua variedade. Czanne j fez uma experincia deste gnerono seu perodo mdio. Ele foi direto ao slido, ao espao -e verificou que, nesseespao, caixa ou continente largo demais para elas, as coisas se pem a agitar-secor contra cor, a modular na instabilidade.2 1 ~, portanto, juntos que se devembuscar o espao e o contedo. O problema generaliza-se, j no somente o dadistncia e da linha e da forma, igualmente o da cor .A cor o "lugar onde o nosso crebro e o universo se juntam ", diz Czannenaquela admirvel linguagem de artista do Ser que Klee gostava de citar. 22 ~ emseu proveito que se deve fazer estalar a forma-espetculo. No se trata, pois, dascores, "simulacro das cores da natureza"; 23 trata-se da dimenso de cor, daquelaque por si mesma e para si mesma cria identidades, diferenas, uma contextura,uma materialidade, uma qualquer coisa. ..Entretanto, decididamente no h2' F. Novotny, Czanne und das Ende der wissenschaftlichen Perspektive. Viena, 1938.22 W.Grohmann,PauIKlee.trad,fr.,Paris.1954,pg.141.23 R. Delaunav. ed. cit.. pg. 118.

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    294 MERLEA U-PONTYreceita do visvel, e nem a cor sozinha, como tampouco o espao, uma receita.O retorno cor tem o mrito de conduzir a um pouco mais perto do "corao dascoisas" : 2 4 mas ele est para alm da cor-envoltrio como do espao-envoltrio. OPortrait de Vallier dispe entre as cores uns brancos, e elas-tm por funo dora-vante facetar, recortar um ser mais geral do que o ser-amarelo ou o ser-verde Ouo ser-azul -como, nas aquarelas destes ltimos anos, o espao, do qual se pensa-va que a prpria evidncia, e que, a seu respeito, pelo menos a questo onde nose pe, irradia em torno de planos que no esto em lugar algum designvel,"superposio de superfcies transparentes", "movimento flutuante de planos decor que se recobrem, que avanam e que recuam". 2 5

    Como se v, jli no se trata de aditar uma dimenso s duas dimenses datela, de organizar uma iluso ou uma percepo sem objeto, cuja perfeio seriaparecer-se, tanto quanto possvel, com a viso emprica. A profundidade pictural(e tambm a altura e a largura pintadas) vm, no se sabe de onde, pousar-se, ger-minar sobre o suporte. A viso do pintor no mais um olhar sobre um exterior,relao "fsico-6ptica"2 6 somente com o mundo. O mundo no est mais diantedele por representao: antes, o pintor que nasce nas coisas como por concentra-o e vinda a si do visvel; e o quadro, finalmente, no se refere ao que quer queseja entre as coisas empricas seno sob a condio de ser primeiramente "autofi-gurativ.o"; ele no espetculo de alguma coisa a no ser sendo "espetculo denada",27 rebentando a "pele das coisas"28 para mostrar corno as coisas se fazemcoisas e o mundo se faz mundo. Dizia Apollinaire que num poema h frases queno parecem ter sido criadas, parecem ter sidoformadas. E Henri Michaux obser-va que algumas vezes as cores de Klee parecem lentamente nascidas na tela, ema-nadas de um fundo primordial, "exaladas no justo lugar" 29 como uma ptina ouum bolor. A arte no construo, artifcio, relao industriosa a um espao e aum mundo de fora. verdadeiramente o "grito inarticulado" de que fala HermesTrimegisto, "que parecia a voz da luz". E, uma vez a, ele desperta na viso ordi-nria das potncias adormecidas um segredo de preexistncia. Quando eu vejo,atravs da espessura da gua, o ladrilhado no fundo da piscina, no o vejo apesarda gua, dos reflexos; vejo~o justamente atravs deles, por eles. Se no houveraessas distores, essas zebruras de sol; se eu visse sem esta carne a geometria doladrilhado, ento que cessaria de o ver como ele , onde ele est, a saber: maislonge do que qualquer lugar idntico. A prpria gua, o poder aquoso, o elementoxaroposo e cintilante, no posso dizer que esteja no espao: ela no est noutrolugar, mas tambm no est na piscina. Habita-a, nela se materializa, nela noest contida, e, se ergo os olhos para a tela dos ciprestes onde brinca a rede dosreflexos, no posso contestar que a g4a a visita tambm, ou pelo menos a elaZ 4 P. Klee, ~r o seu Journa/. trad. fr. P. Klossowski, Paris, 1959.z. Georg Schmidt, Les Aquarelles de Czanne. pg. 2 J.2. P. Klee, op. cit.z 7 Ch. P. Bru, Esthtique de /:Abstractjon. Paris, 1959, pgs. 86 e 89.z. Henri Michaux,A ventures de Lignes.z. Henri Michaux- ibid.

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    o OLHO E O ESPfRITO 295envia a sua essncia ativa e viva. Esta animao interna, essa rradiao do visvel que o pintor procura sob os nomes de profundidade, de espao e de cor .Quando se pensa nisto, um fato estupendo que no raras vezes um bom pin-tor faa tambm bom desenho ou boa escultura. No sendo comparveis nem osmeios de expresso nem os gestos, isto a prova de que h um sistema de equiva-lncias, um Logos das linhas, das luzes, das cores, dos relevos, das massas, umaapresentao sem conceito do Ser universal. O esforo da pintura moderna temconsistido menos em escolher entre alinha e a cor, ou mesmo entre a figuraodas coisas e a criao de sinais, do que em multiplicar os sistemas de equivaln-cias, em quebrar a sua aderncia ao envOltrio das coisas. Isso pode exigir que secriem novos materiais ou novos meios de expresso, mas se consegue s vezesmediante reexame e reinvestimento daqueles que existiam. Houve, por exemplo,uma concepo prosaica da linha como atributo positivo e propriedade do objetoem si. o contorno da ma ou o limite do campo lavrado e da campina tidoscomo presentes no mundo, pontilhados sobre os quais bastaria passar o lpis ouo pincel. Esse tipo de linha contestado por toda a pintura moderna, provavel-mente por toda pintura, visto como Da Vinci, no Tratado da Pintura, falava de"descobrir em cada objeto ( ...) a maneira particular como se dirige, atravs detoda a sua extenso ( ...) uma certa linha flexuosa que como que o seu eixogerador". 30 Ravaisson e Bergson sentiram a algo de importante, sem ousaremdecifrar o orculo at o fim. Bergson quase no busca o "serpenteamento indivi-dual" seno nos seres vivos, e assaz timidamente que afirma que alinha ondu-losa "pode no ser nenhuma das linhas visveis da figura", que "ela no est maisaqui do que ali" e, no entanto, "dA a chave de tudO".31 Ele est no limiar dessedescobrimento surpreendente, j familiar aos pintores, de que no h linhas vis-veis em si, de que nem o contorno da ma nem o limite do campo e da campinaest aqui ou ali, de que sempre esto para c ou para l do ponto de onde se olha,sempre entre ou por trs daquilo que se fita, indicados, implicados, e mesmoimperiosissimamente exigidos pelas coisas, sem que tOdavia sejam coisas eles pr-prios. Pensava-se que eles circunscreviam a ma ou a campina, porm a ma ea campina "formam-se'. por si mesmas e descem ao visvel como vindas de umvelho mundo pr-espacial. ..Ora, a contstao da linha prosaica de nenhummodo exclui toda linha da pintura, como talvez I::) ajam acreditado os Impressio-nistas. Trata-se s de liber-la. de fazer revivet o seu poder constituinte, e semnenhuma contradio que a vemos reparecer e triunfar em pintores como Kleeou como Matisse, que, mais do que ningum, acreditavam na cor. Porque jagora, consoante a palavra de Klee, ela no mais imita o visvel, "torna visvel", a pura de uma gnese das coisas. Nunca, talvez, antes de Klee havia-se "dei-xado uma linha sonhar". 32 O comeo do traado estabelece, instala um certo30 Ravaisson, citado por H. Bergson, La Vie et l'Ouevre de Ravaisson, em La Pense et le Mouvant, Paris,1934.31 H. Bergson, ibid., pgs. 264-265.32 H. Michaux, A ventures de Lignes.

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    MERLEAU-PONTY96nvel ou modo do linear, uma certa maneira, para a linha, de ser e de se fazerlinha, "de continuar linha". 33 Com relao a ele, toda inflexo que segue tervalor diacrtico, ser uma relao da linha a si, formar um aventura, uma hist-ria, um sentido da linha, conforme ela declinar mais ou menos, mais ou menosdepressa, mais ou menos sutilmente.Caminhando no espao, ela ri, no entanto, o espao prosaico e o partesextra partes; desenvolve uma maneira de se estender ativamente no espao quesubtende tanto a espacialidade de uma coisa como a de um pomar ou de umhomem. Simplesmente, para dar o eixo gerador de um homem, Klee diz que o pin-tor "teria necessidade de um entrelaamento de linhas to embrulhado, que j nopoderia tratar-se de uma representao verdadeiramente elementar". 3 4 Decida eleento, como Klee, manter-se rigorosamente no princpio da gnese do visvel, dapintura fundamental, indireta, ou, como dizia Klee, absoluta -confiando ao tftu-10 o cuidado de, por seu nome prosaico, designar o ser assim constitudo, para dei-xar a pintura funcionar mais puramente como pintura -; ou ao contrrio, comoMatisse em seus desenhos, acredite poder pr numa linha nica tanto a sinaliza-o prosaica do ser, como a surda operao que nele compe a moleza ou a inr-cia e a fora para constitu-lo nu, rosto ouflor, isto no faz entre eles tanta dife-rena. H duas folhas de azevinho pintadas por Klee da maneira mais figurativa,que so rigorosamente indecifrveis a princpio, e que permanecem at o fimmonstruosas, estranhas, fantasmticas fora "de exatidQ ". E as mulheres deMatisse (relembrem-se os sarcasmos dos contemporneos) no eram imediata-mente mulheres, tornaram-se mulheres: foi Matisse quem nos ensinou a ver osseus contornos no maneira "fisico-ptica" mas sim como nervuras, como oseixos de um sistema de atividade e de passividade carnais. Figurativa ou no, alinha, em todo caso, no mais imitao das coisas nem coisa. um certodesequilbrio disposto na indiferena do papel branco, um certo furo praticadono em-si, um certo vazio constituinte, e as esttuas de Moore mostram perempto-riamente que ele traz a pretendida positividade das coisas. A linha no mais,como em geometria clssica, o aparecimento de um ser sobre o vazio do fundo; ,como nas geometrias modernas, restrio, segregao, modulao de uma espa-cialidade prvia.Assim como criou a linha latente, a pintura deu-se a si mesma um movi-mento sem deslocamento, por vibrao ou irradiao. Isto com efeito preciso,visto, como se diz, ser a pintura uma arte do espao, e realizar-se na tela ou nopapel, e no ter o recurso de fabricar mveis. Porm a tela imvel poderia sugeriruma mudana de lugar como o rastro da estrela cadente sobre a minha retinasugere-me uma transio, um mover que ela no contm. O quadro forneceria ameus olhos pouco mais ou menos aquilo que os movimentos reais lhes fornecem :vistas instantneas em srie, convenientemente baralhadas, com, se se trata de umvivente, atitudes instveis em suspenso entre um antes e um depois, em suma, os33 H. Michaux. fbfd.34 W. Grohmann, K/ee op. cit.. pg. 192.

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    o OLHO E O ESPfRITO 297exteriores da mudana de lugar que no espectador leria no seu rastro. aqui queassume a sua importncia a famosa observao de Rodin: as vistas instantneas,as atitudes instveis petrificam o movimento -como o mostram tantas fotogra-fias em que o atleta fica para sempre congelado. Ningum o degelaria multipli-cando as vistas. As fotografias de Marey, as anlises cubistas, a Marie deDuchamp, no se mexem: provocam um devaneio zenoniano sobre o movimento.V-se um corpo rgido como uma armadura que faz suas articulaes funciona-rem; ele est aqui e est ali, magicamente, porm no vai daqui at l. O cinemad o movimento, mas como ? Ser, como se acredita, copiando mais de perto amudana de lugar? Pode-se presumir que no, visto a cmara lenta dar a iluso deum corpo que flutua entre os objetos como uma alga, e que no se move. O qued o movimento, diz Rodin,3 & uma imagem em que os braos, as pernas, o tron-co, a cabea so tomados cada um em outro instante, uma imagem que, portanto,figura o corpo numa atitude que ele no teve em nenhum momento, e impe entresuas partes ligaes fictcias, como se esse enfrentamento de incompossveispudesse, e s ele, fazer surgir no bronze e na tela a transio e a durao. Os ni-cos instantneos bem sucedidos de um movimento so os que se aproximam dessearranjo paradoxal, quando, por exemplo, o homem que anda foi apanhado nomomento em que seus dois ps tocavam o solo: porque ento quase se tem aubiqiiidade temporal do corpo, que faz que o homem monte o espao. O quadrofaz ver o movimento pela sua discordncia interna; a posi~o de cada membro,justamente pelo que ela tem de incompatvel com a dos outros segundo a lgica docorpo, diversamente datada, e, como todos permanecem visivelmente na unidadede um corpo, ele que se pe a saltar a durao. Seu movimento algo que se pre-medita entre as pernas, o tronco, os braos, a cabea, em algum foco virtual, e eles se evidencia em seguida, mudando de lugar .Por que que o cavalo fotografadono instante em que no toca o solo, em pleno movimento portanto, com as pernasquase dobradas por baixo dele, tem a aparncia de estar saltando no lugar? E, emcompensao, como que os cavalos de Gricault correm na tela, numa postura,entretanto, que nenhum cavalo a galope assumiu jamais? que os cavalos doDerby de Epsom do-me a ver a tomada do corpo sobre o cho, e que, segundouma lgica do corpo e do mundo que bem conheo, essas omadas sobre o espaoso tambm tomadas sobre a durao. Rodin tem aqui uma palavra profunda: "o artista que verdico, e a foto que mentirosa, porquanto, na realidade, otempo no pra".3 8 A fotografia mantm abertos os instantes que a arrancada dotempo logo torna a fechar; ela destri a ultrapassagem, a invaso, a "metamor-fose" do tempo, que, ao contrrio, a pintura torna visveis, porque os cavalos tmem si o "deixar aqui e ir para ali",3 7 porque tm um p em cada instante. A pintu-ra no busca o exterior do movimento, mas suas cifras secretas. H os mais sutisdo que os de que Rodin fala: toda carne, e mesmo a do mundo, irradia para fora3. Rodin, L ~rt. conversas reunidas por Paul Gsell, Paris, 1911.3 .Id.. pg. 86. Rodin emprega a palavra "metamorfose", mais adiante citada.3 7 Henri Michaux.

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    298 MERLEAU-PONTYde si mesma. Mas que, segundo as pocas e segundo as escolas, apeguemo-nosmais ao movimento manifesto ou ao monumental, a pintura nunca est completa-mente fora do tempo, porque est sempre no carnal..Agora talvez se sinta melhor tudo o que esta palavrinha exprime: ver. Aviso no um certo modo do pensamento ou da presena a si: o meio que me dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro a fisso do Ser, s notermo da qual eu me fecho sobre mim.Sempre souberam disso os pintores. Da Vinci 38 invoca uma "cincia pictu-ral" que no fala por palavras {e ainda muito menos por nmeros), e sim porobras que existem no visvel maneira das coisas naturais, e que, no entanto, porelas se comunica "a todas as geraes do universo". Esta cincia, que calada, que,conforme dir Rilke a propsito de Rodin, faz passarem para a obra as formasdas coisas "no desseladas",3 9 vem do olho e ao olho se dirige. H quecomprecnder o olho como a "janela da alma". "O olho { ...) pelo qual a belezado universo revelada nossa contemplao, de tal excelncia, que todo aqueleque se resignasse a sua perda privar-se-ia de conhecer todas as obras da naturezacuja vista faz a alma ficar contente na priso do corpo, graas aos olhos que lherepresentam a infinita variedade da criao: quem perde os olhos abandona essaalma numa escura priso onde cessa toda esperana de tornar a ver o sol, luz douniverso." O olho realiza o prodgio qe abrir alma aquilo que no alma, obem-aventurado domnio das coisas, e seu deus, o sol. pode um cartesiano crerque o mundo existente no visvel, que a nica luz de esprito, que toda visose faz em Deus. Um pintor no P9de consentir em que a nossa abertura ao mundoseja ilusria ou indireta, em que o que vemos no seja o prprio mundo, em queo esprito s tem que se avir com os seus pensamentos ou com outro esprito. Eleaceita, com todas as suas dificuldades, o mito das janelas da alma: cumpre queaquilo que sem lugar esteja adstrito a um corpo; alm disso, que seja por ele ini-ciado a todos os outros e natureza. preciso tomar ao p da letra aquilo que aviso nos ensina: que por ela tocamos o sol, as estrelas, estamos ao mesmo tempoem toda parte, to perto das coisas longnquas como das prximas, e que mesmonosso poder de nos imaginarmos noutro lugar -"Estou em Petersburgo naminha cama, estou em Paris, meus olhos vem o SOI"40 -, de visarmos livre-mente, onde quer que eles estejam, a seres reais, ainda vai buscar a viso, torna aempregar meios que dela que recebemos. S ela nos ensina que seres diferentes,"exteriores", estranhos um ao o~tro, esto todavia, absolutamente juntos -e isto a "simultaneidade" -, mistrio que os psiclogos manejam como uma crian-a maneja explosivos. Robert Delaunay diz brevemente: " A estrada de ferro aimagem do sucessivo que se aproxima do paralelo: a paridade dos trilhos". 41 Ostrilhos que convergem e no convergem, que convergem para permanecerem l38 Citao de Robert Delaunay, op. it., pg. 175.38 Rilke, Auguste Rodin. Paris, 1928, pg. 150.40 RobertDelaunay,op.cit..pgs. 115e 110.41 r,/ ;h;,/

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    OOLHO E O ESPfRITO 299longe eqiiidistantes, o mundo que segundo a minha perspectiva para ser indepen-dente de mim, que para mim afim de ser sem mim, a fim de ser mundo. O "qualevisual" 42 d-me, e s ele me d, a presena daquilo que no sou eu, daquilo que simples e plenamente. F-lo porque, como textura, ele a concreo de uma visi-bilidade universal, de um nico Espao que separa e que rene, que sustenta todacoeso (e at mesmo a do passado com o futuro, visto que ela no existiria se elesno fossem partes no mesmo Espao). Cada coisa visual, por muito que se tratede um indivduo, funciona tambm como dimenso, porque se d como resultdode uma deiscncia do Ser. Quer isto finalmente dizer que prprio do visvel terum forro de invisvel no sentido prprio, que ele torna presente como uma certaausncia. "Na sua poca, os nossos antpodas de ontem, os Impressionistas, ti-nham plena razo de estabelecerem a sua morada entre os renovos e as saras doespetculo cotidiano. Quanto a ns, nosso corao bate para nos levar para asprofundezas ( ...). Estas estranhezas tornar-se-o (. ..) realidades ( ...). Por istoque, em vez de se limitarem restituio diversamente intensa do visvel, eras ane-xam-lhe ainda parte do invisvel ocultamente avistado... 43 H aquilo que atingede frente o olho, as propriedades frontais do visvel -mas h tambm aquilo queo atinge de baixo, a profunda latncia postural em que o corpo se levanta para ver-e h o que atinge a viso por cima, todos os fenmenos do vo, da natao, domovimento, onde ela participa no mais no peso das origens, mas sim nas realiza-es ivres. 4 4 Por ela, o pintor toca portanto nos dois extremos. No fundo imemo-rial do visvel algo se moveu, acendeu-se, o qual lhe invade o corpo, e tudo o queele pinta uma resposta a tal suscitao, sua mo no "nada mais que o instru-mento de uma longnqua vontade". A viso o encontro, como numa encruzi-lhada, de todos os aspectos do Ser. "Certo fogo pretende viver, desperta; guian-do-se ao longo da mo condutora, ele atinge o suporte e invade-o;depois, fasca saltitante, fecha o crculo que devia traar: volta ao olho e paraalm."4 5 Neste circuito, nenhuma ruptura; e impossvel dizer que aqui finda anatureza e comea o homem ou a expresso. , pois, o prprio Ser mudo que vema manifestar seu prprio sentido. Eis a por que o dilema da figurao e da no-fi-gurao est mal posto: a um tempo verdadeiro e sem contradio que nenhumauva foi jamais o que ela , na pintura mais figurativa, e que nenhuma pintura,mesmo abstrata, pode eludir o Ser, ou que a uva de Caravaggio a prpria uva. 46Esta precesso daquilo que sobre aquilo que se v e se faz ver, daquilo que se ve se faz ver sobre aquilo que , a prpria viso. E, para dar a frmula ontolgicada pintura, quase que no se devem forar as palavras do pintor, visto que Kleeescrevia aos trinta e sete anos estas palavras que lhe foram gravadas no tmulo :"Sou inapreensvel na imanncia ..." 4 742 Robert Delaunay, op. cit., pgs. 115 e 110.4~ Klee. COlifr(!IICe d7na. conforme W. Grohmann. op. cit., pg. 365.44 Klee. Wl!ge des Naturstudiums. 1923. segundo G. Di San Lanzaro, Klee.48 Klee, citado por W. Grohmann, op. cit.. pg. 99.48 A. Beme-Joffroy, Le Dossier Caravage. Paris, 1959, e Michel Butor, La Corbeille de l:04mbrosienne.NRF, 1960.47 Klee. Journal. o". cit.

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    vJ que profundidade, cor, forma, linha, movimento, contorno, fisionomia soramos do Ser, e que cada um deles pode reproduzir toda a ramagem, em pinturano h "problemas" separados, nem caminhos verdadeiramente opostos, nem "so-lues" parciais, nem progresso por acumulao, nem opes sem recuo. Nuncafic~ excludo que o pintor retome um dos emblemas que ele havia afastado, bementendido, fazendo-o falar de modo diverso: os contornos de Rouault no so os

    contornos de Ingres. A luz -"velha sultana", diz Georges Limbour, "cujosencantos murcharam no incio deste sculo" 48- enxotada a princpio pelos pin-tores da matria, reaparece enfim em Dubuffet como uma certa textura da mat-ria. Nunca se est ao abrigo desses retornos. Nem das menos esperadas conver-gncias: h fragmentos de Rodin que so esttuas de Germaine Richier, porqueeles eram escultores, isto , estavam ligados a uma s e mesma rede do Ser. Pelamesma razo, nada jamais adquirido. Em "trabalhando" um dos seus diletosproblemas, ainda que fosse o do veludo ou da l, o verdadeiro pintor transtorna,sem o saber, os dados de todos os outros. Mesmo quando parece ser parcial, a suapesquisa sempre total. No momento em que acaba de adquirir um certo "savoir-faire", percebe que abriu outro campo, em que tudo o que pde exprimir antes temde ser repetido de modo diferente. De sorte que aquilo que encontrou, ele aindano o tem, deve ainda ser procurado, sendo o achado aquilo que leva a outras pes-quisas. A idia de uma pintura universal, de uma totalizao da pintura, de umapintura inteiramente realizada, destituda de sentido. Mesmo que durassemilhes de anos ainda, para os pintores o mundo, se permanecer mundo, aindaestar por pintar, findar sem ter sido acabado. Panofsky mostra que os "proble-mas" da pintura, os que lhe imantam a histria, muitas vezes so resolvidos demodo indireto, e no na linha das pesquisas que a princpio os haviam suscitado;ao contrrio, quando, no fundo do "impasse", os pintores parecem esquec-Ios,deixam-se atrair para outro lugar, e sbito, em plena diverso, reencontram-nos etranspem o obstculo. Esta historicidade surda que avana, no labirinto, por des-vios, transgresso, usurpao e presses sbitas, no significa que o pintor nosaiba o que quer, mas sim que o que ele quer est aqum das metas e dos meios,e comanda do alto toda a nossa atividade til.Somos to fascinados pela idia clssica da adequao intelectual, que esse"pensamento" mudo da pintura nos deixa, s vezes, a impresso de um vo rede-moinho de significados, de uma palavra paralisada ou abortada. E, se se respondeque nenhum pensamento.se desliga inteiramente de um suporte; que o nico privi-48 O. Limbour. TabIeau Ban Levain Vaus de Cuire Ia Pte: I:4rt Brut deJean Dubuffet. Paris. 1953.

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    o OLHO E O EspiRITO 301lgio do pensamento falante haver tornado o seu manejvel; que, tanto quanto asda pintura, as figuras da literatura e da filosofia no so efetivamente adquiridas,no se acumulam num tesouro estvel; que at mesmo a cincia ensina a reconhe-cer uma zona do "fundamental" povoada de seres espessos, abertos, dilacerados,dos quais no vem a plo tratarmos aqui exaustivamente, como a "informaoesttica" dos cibernticos ou os "grupos de operaes" matemtico-fisicas, e que,enfim, em parte alguma estamos em condies de levantar um inventrio objetivo,nem de pensar um progresso em si; que toda a histria humana que est, emcerto sentido, estacionria, e ento! diz o entendimento, como Lamiel, s isso?Ser que o mais alto ponto da razo verificar esse deslizamento do solo debaixode nossos ps, chamar pomposamente de interrogao um estado de estupefaocontinuada, de pesquisa um caminhar em crculo, de Ser aquilo que nunca completamente?

    Porm esta decepo a do falso imaginrio, que reclama uma positividadeque preenche exatamente o seu vazio. o pesar de no ser tudo. Pesar que no nem sequer inteiramente fundado. Porquanto, se nem em pintura, nem mesmoalhures no podemos estabelecer uma hierarquia das civilizaes, nem falar deprogresso, no que algum destino nos segure por trs, , antes, que, em certo sen-tido, a primeira das pinturas ia at o fundo do porvir. Se nenhuma pintura remataa pintura, se mesmo nenhuma obra se remata absolutamente, cada criao muda,altera, aclara, aprofunda, confirma, exalta, recria ou cria de antemo todas asoutras. Se as criaes no so uma aquisio, no somente que, como todas ascoisas, elas passam; tambm que tm diante de si quase toda a sua vida.Le Tholonet,julho-agosto de 1960.

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