o olho e o espírito2

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    Merleau- Pontyo olho e o esprito

    4.' edio

    prefciode

    C laude Le for t

    Autor: Merleau-PontyTtulo: O Olho e o EspritoOriginal: L 'Oeil et I 'EspritTraduo: Lus Manuel BernardoCapa: Paulo ScavulloImagem da capa: Senecio - Paul KleeDirector de Coleco: Jos A. Bragana de MirandaGallimardVega,2002Fotocomposio, paginaofotolitos e montagem: CA -Artes GrficasISBN: 972-699-352-0Deps ito Legal N." 178317/02Impresso e Acabamento:Garrido, artes grficas2090 AlpiaraTel. 243 559280 Fax 243 559289 Passagens9a

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    Prefcio

    oOlho e o Es p r it o foi o ltimo escrito que Merleau--Ponty pde concluir em vida. Andr Chastel pedira-lheumcontributo para oprimeiro nmero deAr t d e F ran ce .Ele transformou-o num ensaio, consagrou-lhe a maiorparte do Vero desse ano (1960) - o das suas lt imasfrias. Nada prenunciava, ento, a paragem cardaca,sbita, de que seria vtima na Primavera seguinte.

    Instalado, durante dois ou trs meses, no campoprovenal, per to de Aix, no Tholonet , na casa que lhealugara umpintor - La Bertrane - ,Jruindo doprazerdesse lugar, que sentamos feito para ser habitado, mas,sobretudo, gozando diariamente apaisagem que encer-rapara sempre a marca do olho de Czanne, Merleau--Ponty volta a interrogar a viso, ao mesmo tempo quea pintura. Ou melhor, interroga-a como pela primeiravez, como se no tivesse, no ano anterior, refonnuladoas suas velhas questes em Le Visible et L'Invisible,como se todas as suas obras anteriores - e, antes demais, o grande edificio da P he n me no lo gi e d e l a Per-cption (1945) - no pesassem noseupensamento, ou,

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    6 Prefcio

    ento, pesassem demasiado, de tal modo quefora neces-srio esquec-las para recuperar a fora do espanto.Ele procura, uma vez mais, as palavras do comeo,palavras, por exemplo, capazes de nomear em queconsiste o milagre do corpo humano, a sua inexplicvelanimao, ass im que se estabelece o seu mudo dilogocom os outros, o mundo, e ele prprio - e tambm afragilidade de tal milagre. E essas palavras, na verdade,encontra-as: um corpo humano est a, quando, entrevidente e visvel, entre aquele que toca e tocado, entreum olho e o outro, entre a mo e a mo, acontece umaespcie de recruzamento, quando se acende afasca doque sente-sentido, quando se ateia esse fogo que nomais cessar de arder, at que determinado acidente docorpo desfaa o que nenhum acidente ter ia podidofazer ...

    Aqui, apalavra liberta-se dos constrangimentos dateoria. Esta celebrao do corpo - na qual cabe a i deiada sua inevitvel,julgurante, desintegrao - comuni-ca algo dapresena de quemfala eda sua perturbao.Adivinhamos, para ldo encantamento provocado pelaarte dopintor, esseprimeiro des lumbramento, que nas-ce dos imples facto dese ver, de se sentir e dese surgir,a-do facto desse duplo encontro domundo edo corpo,na origem de qualquer saber, e que excede o concebvel.

    Esta , sem dvida, a razo do encanto singular queexerce este escrito filosfico. A meditao sobre o cor-po, a viso, apintura, traz consigo o rastro dos olhares,dos ges tos de um homem vivo e do espao que atraves-sam e que os anima. Opedao decera oude giz , a mesa,o cubo, esses emblemas esquelticos da coisa percepci-onada, que osfilsofos tantas vezes postularam para adissolverem pelo clculo, to ocupados estavam com abusca da salvao da alma na liber tao do sens vel,dir -se-ia que s tinham sido escolhidos para atestar a

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    misria do mundo que habitamos. Em contrapartida,para ext rair da viso, do visivel..o que eles pedem ao.pensamento, toda uma paisagem que Merleau-Pontyevoca, uma paisagem que j tinha captado o espr itocom o olho, na qual o prximo se difunde no dis tante eo distante faz vibrar oprximo, na qual apresena dascoisas se d numfundo de ausncia, na qual se trocamser e aparncia. Quando vejo, atravs da espessura dagua, o quadriculado dofundo dapiscina, eu no o vejoapesar da gua: dos reflexos , vejo-o, justamente, atra-vs deles, por eles. Se no existissem estas distores,estas listas de sol, se eu visse, sem esta carne, a geome-tria do quadriculado, a, sim, deixaria de over, tal como, onde , a saber: mais dis tante doque qualquer lugaridntico. Sobre a prpria gua, a potncia aquosa, oelemento xaroposo e reverberante, no posso dizer queela esteja no espao: no est noutro lugar, mas no estna piscina. Ela habita-a, materializa-se a, ela no esta contida, e,se eu levantar os olhos para a cortina dosciprestes, onde brinca ofeixe dos reflexos, no possonegar que a gua tambm a visita, ou, pelo menos, quelhe envia a sua essncia, activa e viva.

    Na altura em que escrevia estas linhas, Merleau--Ponty encontrava-se, sem dvida, num quarto, cujasparedes espessas oprotegiam da luz e dos rudos exte-riores. Contudo, o seu pensamento guardava, impressa,a viso da gua, na piscina, e da tela dos ciprestes e omovimento dos olhos que as tinha unido. Sei-o, por t--Ias visto, essa piscina, na verdade um modesto tanque,essas rvores, que l estavam, bem prximas da casa.Alis, pouco importa que est ivessem sob o seu olharmomentos antes: elas poderiam ressurgi r do fundo dasua memria. A verdade que, para pensar, era-lhepreciso convoc-las, e que a sua escri ta repercute-brilho do visvel e o transmite.

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    A convico de que todos osproblemas filosficosdevem ser suje itos de novo ao exame da percepo,sabemo-lo, foi parcialmente encontrada por Merleau--Ponty na sua lei tura de Husserl. Reencontramos, porexemplo, em O Olho e o Esprito, uma critica da cinciamoderna, da sua conf iana fc il , mas cega, nas suasconstrues, e uma critica dopensamento reflexivo, dasua impotncia para dar conta daexperincia domundoque ofaz surgir, asquais exploram e reformulam ambasa argumentao dofundador da Fenomenologia. Mas,por mais manifesta, esta fil iao no dever ia fazeresquecer o que a obra do nosso autor deve suameditao sobre a Pintura.Elaj est expressa emLe Doute de Czanne, umdosseus primeiros ensaios, publicado (na editora Fontai-ne), nomesmo ano da Phenmenologie de la Percption(1945), mas redigido trs anos mais cedo. Continua emLe Langage Indirect et les Voix du Sil ence (1952) _verso corrigida do captulo de um livro abandonadoLaProse duMonde - na qual se esboa uma concepnda expresso e da histria, que anuncia uma ultrapassa-gem das fronteiras da Fenomenologia, a exigncia deuma nova Ontologia, que os ltimos escritos satisfaroplenamente. Se certo que a recusa deseguir Husserl naelaborao de um idealismo de umnovo tipoprocede daanlise das contradies, nas quais essa tentativa seembrenha, no h qualquer dvida em que ela sefundatambm naobservao dosparadoxos de que se alimen-tam a expresso, a arte e apintura, emparticular . Estano se acomoda na iluso de umpuro retomo expe-rincia muda, de um desvelamento das essncias, nasquais se reconheceria a obra da conscincia transcen-dental. O trabalho do pintor convence Merleau-Pontyda impossvel partilha entre a viso e o visvel, a aparn-cia e o ser. Elefornece- lhe o testemunho de uma inter-

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    rogao interminvel, que recomea em cada obra, queno poderia desembocar numa soluo e que, no entan-to, oferece um conhecimento, tem a singular proprieda-de de s obter tal conhecimento, odo visvel, por umactoque o faz acontecer numa tela.

    Nofim de uma crtica ao empreendimento cartesia-no, que requer uma nova ideia dafi losofia, Merleau--Ponty declara: [,. .} estafilosofia, que ainda estporfazer, a que anima o pintor, no quando este exprimeopinies sobre o mundo, mas no instante em que a suaviso sefaz ges to, quando, di-lo- Czanne, ele "pensapictoricamente ".Mostra, assim, que no existe pensa-mento puro, que, quando aFilosofia leva a interrogaoaoponto deperguntar: oque pensar?, o que omundo,a histria, apolt ica ou a arte, qualquer experincia deque opensamento se encarregar, ela prpria spode, s, deve abrir o seu caminho, acolhendo o enigma queassombra opintor, ligando, por sua vez, conhecimentoe criao, no espao daobra.fazendo ver com palavras.

    O Olho e o Esprito no indica apenas tal caminho,traa-o j, at ravs de um certo modo de escrita; noformula apenas uma exigncia, torna-a sensvel. A me-ditao sobre apintura dao seu autor.o recurso deumanova palavra, assaz prxima da palavra l iterria, e,mesmo, potica, de uma palavra que argumenta, decer-to, mas que consegue furtar-se a todos os artiftcios datcnica que uma tradio acadmica tinha fei to crerinseparvel do discurso filosfico.

    Claude Lefort

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    o que eu tento traduzir-vos mais misterioso,incrusta-se nas prprias razes do Ser, nafonteimpalpvel das sensaes.

    J. Gasquet, Czanne

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    o o lh o e o e sp rito

    IA c i nc ia m an ip ula a s c ois as e r en un ci a a h ab i-t-las. P ara si estabele ce m odelos internos dasco is as e , o p er an do s ob re e st es i nd ic e s o u v ar i ve isa s t ra n sf orm ae s p e rm it id as p el a s ua d ef in i o s s e c o nf ro ntam d e q ua nd o em q ua nd o c om o m un doactual. El a . s emp re f oi . e ss e p en sam en to a dm i ra -v elm en te a ctiv o, e ng en ho so ; d es en vo lto , e ss a o p- o d e t r at ar q ua lq u er s er c omo ob je ct o em g er al ,ou seja, ao m esm o tem po com o se no nos fosse

    n ad a e se e nc on tra sse , n o e nta nto , p re de stin ad op ar a o s n os so s a rt if c io s.M a s a c i nc ia c l ss ic a g ua rd a va o s en tim en to d ao pa cid ad e d o m un do , e ra c om e le q ue v is av a u nir -- se a tr av s d as s ua s c on st ru es , e is p or qu e s e c ri aobrigada a procurar para as sua s opera es umf un dam en to t ra ns ce nd en te o u t ra ns ce n de nt al. Hh oje e m d ia - n o n a c i nc ia , m as n um a f ilo so fiad as c i nc ia s a ssa z d iv ulg ad a - isto d e c om ple ta-

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    Merleau-Ponty

    mente novo, a saber, que a prtica construtiva seconsidera e se estabelece como autnoma, e que opensamento se reduz deliberadamente ao conjuntodas tcnicas de apreenso ou de captao por siinventadas. Pensar experimentar, operar, trans-formar, com a nica reserva de uma verificaoexperimental, na qual no intervm seno fenme-nos altamente trabalhados, e que os nossos apa- .relhos mais que registarem, produzem. Da toda aes~cie de ten~tivas vagabundas. A cincia nunc~fOI, como hoje, sensvel s modas intelectuais.Quando um modelo teve sucesso numa ordem deproblemas, ela experimenta-o por todo o lado. Anossa embriologia, a nossa biologia esto presente-mente cheias de gradientes que no se v ao certocomo se distinguem do que os clssicos chamavamordem outotalidade, mas a questo no posta, noo deve ser. Ogradiente uma rede que selana aomar sem se saber o que trar. Ou ainda, o magroveio sobre o qual surgiro cristalizaes imprevis-veis. Esta liberdade de operao, certamente, per-mite que muitos dilemas vos sejam ultrapassados,desde que, dequando emquando, sefaa oponto dasituao, que sepergunte porque que o instrumen-to funciona aqui, falha ali, em suma, que esta 1cincia fluente se compreenda a si prpria, que seconceba como construo cujabase um mundo'bruto ou existente e que no reivindique para ope-raes cegas o valor constituinte que os conceitosda natureza podiam ter numa filosofia idealista.

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    Dizer que o mundo por defmio nominal oobjecto X das nossas operaes tomar absoluta asituao de conhecimento do sbio, como se tudoaquilo que foi ou s o fosse para entrar nolaboratrio. O pensamento operatrio toma-senuma espcie de art if icial ismo absoluto, como sev na ideologia ciberntica, na qual as criaeshumanas derivam deum processo natural de infor-mao, mas concebido com base no modelo dasmquinas humanas. Se este gnero de pensamentotoma a seu cargo o homem e a histria, e se,fmgindo ignorar o que ns deles sabemos porcontacto epor posio, empreende a sua construoa partir de alguns indcios abstractos, como o fize-ram nos Estados Unidos uma psicanlise e umculturalismo decadente, uma vez que o homem setorna verdadeiramente o manipulandum que pensaser entramos num regime decultura em que deixa, .de haver verdadeiro e falso no que respeita aohomem e histria, num sono ounum pesadelo doqual nada o saberia despertar. .~' .

    necessrio que o pensamento da ciencia -pensamento de sobrevoo, pensamento do objectoem geral - se coloque de novo num a prvio, inlocus, sobre o solo do mundo sensvel e do mundotrabalhado. Tais como existem na nossa vida, parao nosso corpo, no esse corpo possvel em relaoao qual permitido defender que se trata de umamquina de informaes, mas este corpo actual queeu chamo meu, a sentinela que semantm silencio-

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    16 Merleau-Pontysamente sob as minhas palavras e os meus actos. necessrio que com o meu corpo despertem oscorpos associados. os outros, que no so meuscongneres, como diz a zoologia, mas que meassombram, que eu assombro, com os quais co-mungo um sernico actual, presente, como nuncanenhum animal assombrou os da sua espcie, doseu territrio ou do seu meio. Nesta historicidadeprimordial, o pensamento apressado e improvisa-dor da cincia aprender a aprofundar-se nas coisasenquanto tais e em simesmo; tornar-se- de novofilosofia ...Ora a arte e especialmente a pintura bebem

    nessa camada de sentido bruto da qual o activismonada quer saber. Elas so mesmo asnicas a faz--lo em toda a inocncia. Ao escritor, ao filsofo,'pede-se conselho ou opinio, no se admite quetenham omundo em suspenso, exige-se que tomemposio, no podem declinar as responsabilidadesdo homem falante. A msica, ao invs, est dema-siado aqum do mundo e do designvel para repre-sentar outra coisa que no sejam depuraes do Ser,o seu fluxo e refluxo, o seu crescimento, as suasexploses, os seus turbilhes. O pintor o nico ater o direito do olhar sobre todas as coisas semnenhum dever de apreciao. Dir-se-ia que peranteele a s palavras de ordem do conhecimento e daaco perdem a sua virtude. Os regimes que decla-mam contra a pintura degenerada s raramentedestroem os quadros: escondem-nos, e h nisso um

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    nunca se sabe que quase um reconhecimento;a censura da evaso raramente endereada aopintor. No se reprova a Czanne ter vivido escon-dido em Estaque durante a guerra de 1870, toda agente cita com respeito a sua expresso assusta-dora , a vida, quando qualquer estudante, desdeNietzsche, repudiaria, sem mais, a fi losofia se sedissesse que ela no nos ensina a sermos grandesviventes. Como sehouvesse na ocupao dopintoruma urgncia que ultrapassasse qualquer outraurgncia. Ele a est, forte ou fraco na vida, masincontestavelmente soberano na sua ruminao domundo, sem outra tcnica do que a criada pelosseus olhos e pelas suas mos fora dever, forade pintar, obstinado a tirar deste mundo, onde soamos escndalos e asglrias dahistria, telas que nadaacrescentaro s cleras e s esperanas dos ho-mens, e ningum se queixa. Que cincia secreta esta que ele possui ou procura? Esta dimensosegundo a qual Van Gogh quer ir mais longe?Este fundamental da pintura, e talvez de toda acultura?

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    11o p in to r ofe re ce o s eu c or po , d iz V al ry ..E,com efeito, no se v com o poderia um espritopin ta r. em presta nd o o se u co rp o a o m und o q ue opintor transm uta o m undo em pintura. P ara com -pr e en de r e st as t ra ns ub st an ci a e s, n ec es s ri o r e-e nc on tr ar o c or po o pe ra nt e e a ctu al . a qu el e Q u en o u m p eda o de e sp a o, u m fe ix e d e fu n es, q ue um e ntr an a do d e v is o e m ov im en to .B asta que eu veja qualquer coisa para saber

    a pr ox im ar -m e d ela e a tin gi- la , m esmo s em s ab erc om o ta l se faz n a m q uina n erv osa . O m eu c orp ombi l c on ta n o mund o v is v el , f az p ar te d es te , e p oris so p os so d ir ig i- lo n o v is v el. P or o utr o la do , n o menos verdade que a viso est suspensa domovimento. S se v a qu ilo pa ra q ue se o lh a. Q ues er ia d a v is o sem q ua lq ue r m ov im en to d os o lh os ,e c om o n o c on fu nd ir ia o s eu m ov im en to a s c ois ass e e le p r pr io f os se r ef le xo o u c eg o, s e n o tiv es se

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    a sua sensibilidade, a sua clarividncia, se a visono se antecipasse nele? Todas as minhas desloca-es figuram, por princpio, numcanto da minhapaisagem, reportam-se aoplano do visvel. Tudo oque vejo est, por princpio, ao meu alcance, pelomenos ao alcance do meu olhar, edificado sobre oplano do eu posso. Cada um destes planos estcompleto. O mundo visvel e o dos meus projectosmotores so partes totais do mesmo Ser.Esta extraordinria invaso, sobre ! qual no

    pensamos suficientemente, obsta a que a viso sejaconcebida como uma operao do pensamento queconsti tusse perante o espri to um quadro ou umarepresentao do mundo, um mundo da imannciae da idealidade. Imerso no visvel graas ao seucorpo, tambm ele visvel, aquele que v no seapropria daquilo que v: apenas se abeira com oolhar, acede aomundo, e por seu lado, esse mundo,do qual faz parte, no em si ou matria. O meumovimento no uma deciso doesprito, um fazerabsoluto que decretaria, do fundo do isolamentosubjectivo, qualquer mudana de lugarmiraculosa-mente executada no espao. Ele a sequncianatural e a maturao de uma viso. Digo de umacoisa que ela movida, mas o meu corpo ele, ,move-se, o meu movimento desdobra-se. Ele noestna ignorncia de si, no cego para si;resplan-dece de um si .. .O enigma consiste em que o meucorpo aomesmo tempo vidente e visvel. Ele, quemira todas as coisas, pode tambm olhar-se, e

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    reconhecer ento naquilo que v o outro lado doseu poder vidente. Ele v-se vendo, toca-se tocan-do visvel e sensvel para simesmo. um si, no.por transparncia, como o pensamento, que nopensa o que quer que seja sem o assimilar, consti-tuindo-o, transformando-o em pensamento - masum si por confuso, narcisismo, inerncia daqueleque v em relao aquilo que v, daquele que tocaem relao quilo que toca, do que sente ao que sentido - um si, portanto, que se compreende nomeio decoisas, que tem um verso e um reverso, umpassado e um futuro . ..Este primeiro paradoxo no cessar de produzir

    outros. Visvel e mvel, o meu corpo pertence aonmero das coisas, uma delas, est preso natextura do mundo, e a sua coeso a de uma coisa.Mas, posto que v e semove, ele mantm as coisasem crculo sua volta, elas so um seu anexo ouprolongamento, esto incrustadas na sua carne,fazem parte da sua definio plena, e o mundo feito do mesmo estofo do corpo. Estas inverses,estas antinomias so maneiras diversas de dizer quea viso parte ou se faz do meio das coisas, a ondeum visvel sepe aver, setoma visvel para siepelaviso de todo o tipo de coisas, a onde persiste,como a gua-me no cristal, a indiviso do quesente e do sentido.Esta interioridade no precede a organizao

    material do corpo humano e to pouco resulta dela.Seos nossos olhos fossem feitos de tal maneira q~e

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    nenhuma parte donosso corpo fosse abrangida pelono~so olhar, ou se qualquer dispositivo maligno,deixando-nos livres de passear as mos sobre ascoisas, nos impedisse de tocar o nosso corpo - ousimplesmente se, como certos animais, ns tivsse-mos olhos laterais, sem corte dos campos visuais- , essecorpo queno sereflectiria, no se sentiria,esse corpo quase adamantino, que no seria jcarne, no seria to-pouco um corpo de homem, eno haveria humanidade. Mas a humanidade no produzida como um efeito pelas nossas articula-es, pela implantao dos nossos olhos (e aindamenos pela existncia dos espelhos, os quais, noentanto, so osnicos a tomar o nosso corpo inteirovisvel para ns). Estas contingncias e outrassemelhantes, sem as quais no haveria homem, nofazem, por simples adio, que haja um shomem.A animao docorpo no ajuno deuma contraa outra das suaspartes - nem alis a incamao noautmato deum esprito vindo de outro lado, o quesuporia ainda que o corpo em si mesmo fossedesprovido de interior e de si. Um corpo humanoest a quando, entre vidente e visvel, entre aqueleque toca e o que tocado, entre um olho e o outro,entre a mo e a mo acontece uma espcie derecruzamento, quando se acende a fasca do quesenre-sentdo, quando se ateia esse fogo que nomais cessar dearder, at que determinado acidentedo. corpo desfaa o que nenhum acidente teriapodido fazer ...

    II

    .e :

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    Ora, logo que este estranho sistema de trocas estabelecido, todos os problemas da pintura a seencontram. Eles ilustram o enigma.do corpo, e elajustifica-os. Uma vez que as coisas e o meu corposo feitos do mesmo estofo, necessrio que a suaviso de alguma maneira sefaa nelas, ou, melhor,que a visibilidade manifesta das coisas se desdobrenele numa visibilidade secreta: anatureza est nointerior, disse Czanne. Qualidade, 1~~'Cr, pro:

    fundid;d;' que esto ali perante ns, s l estoporque despertam um eco no nosso corpo, porqueele as acolhe. Este equivalente interno, esta frmu-' '.lacarnal da sua presena, que as coisas suscitam emmim, por que no suscitariam por sua vez umtraado, visvel ainda, onde qualquer outro olharreencontraria os motivos que sustm a sua inspec-o domundo? Aparece ento um visvel de segun-do grau, essncia carnal ou cone doprimeiro. Nose trata de um duplo enfraquecido, de um trompe--I 'oe il, deuma outra coisa. Osanimais pintados nasparedes de Lascaux no esto lcomo est a fendaou a elevao do calerio. To-pouco esto noutrolad o. Um pouco frente, um pouco atrs, sustidos .pela sua massa, da qual se servem habilmente, elesirradiam) sua volta, sem nunca se romper, a suainacessvel.amarra, Eu teria grande dificuldade emdizer onde est o quadro que miro. Pois eu no omiro como seolha para uma coisa, no o fixo no seulugar, o meu olhar erra nele como nos nimbos do

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    (I)G. CHARBONNIER, L e m o n o lo g u e d u p e i n tr e , P a ri s 1959, p. 17 2

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    Ser, eu vejo de acordo ou com ele, mais do quepropriamente, o vejo a ele.A palavra imagem tem m fama porque se

    acreditou irreflectidamente que um desenho era umdecalque, uma cpia, uma segunda coisa, e a ima-gem mental um desenho desse gnero no nossobazar privado. Mas se, com efeito, ela no nada desemelhante, o desenho e o quadro no pertencem,tal como ela, aoem si. Eles so o interior doexteriore o exterior do interior, que a duplicidade do sentirtoma possvel, e sem os quais jamais se compreen-der a quasi-presena ea visibilidade imanente queconstituem todo o problema do imaginrio. O qua-dro, ammica docomediante no so auxiliares quee~ pedisse emprestados ao mundo verdadeiro paraVIsaratravs deles coisas prosaicas na sua ausncia.O imaginrio est muito mais prximo e muitomais distante do actual: mais prximo, pois ele odiagrama da sua vida nomeu corpo, a sua polpa, ouo seu reverso carnal expostos aos olhares pelaprimeira vez, e que, neste sentido, como o dizenergicamente Giacometti: (I)o que me interessaem todas as pinturas a semelhana, quer dizer, oque para mim a semelhana: o que me faz desco-brir um pouco o mundo exterior. Muito maisdistante, pois o quadro s um anlogo segundo ocorpo, ele no oferece ao esprito a ocasio derepensar as relaes constitutivas das coisas, mas

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    1 " ~ - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ~ I ~ - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ' l ! 1

    aoolhar, para que ele osdespose, ostraos da visodo interior, viso, o que a reveste interiormente,a textura imaginria do real.Diremos ento que h um olhar do interior, um

    terceiro olho que v os quadros e mesmo as ima-gens mentais, tal como se falou de uma terceiraorelha que capta as mensagens do exterior atravsdo rumor que elas provocam em ns? Qual avantagem, quando tudo se resume a compreenderque os nossos olhos de carne so j muito mais doque receptores para as luzes, as cores e as linhas:compiladores domundo, que tm o dom do visvel,tal como se diz que o homem inspirado tem o domdas lnguas. Claro est que este dom merecidopelo exerccio, e que no em poucos meses, nemto-pouco na solido, que um pintor entra na posseda sua vida. A questo no est a: precoce outardia, espontnea ou formada no museu, a suaviso, em todo o caso, no aprende seno vendo,no aprende seno consigo mesma. O olho v omundo, e aquilo que falta ao mundo para serquadro, e o que falta ao quadro para ser ele prprio,e, sobre a paleta, a cor que o quadro espera, e v,uma vez feito, o quadro que responde a todas estasfaltas, e v os quadros dos outros, as respostasoutras a outras faltas. Assim como no se podefazer um inventrio limitativo das utilizaes pos-sveis de uma lngua, ou simplesmente do seuvocabulrio e das suas variantes, to-pouco sepodefaz-lo em relao ao visvel. Instrumento que se

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    move a si mesmo, meio que inventa os seus fms, oolho o que foi comovido por um certo impacto domundo e o resti tui ao visvel atravs dos traos damo. Qualquer que seja a civilizao em que nasa,quaisquer que sejam as crenas, e quaisquer quesejam os motivos, quaisquer que sejam os pensa-mentos, quaisquer que sejam as cerimnias de quese faz acompanhar, e precisamente quando parecevotada a outra coisa, desde Lascaux at aos nossosdias, pura ou impura, f igurativa ou no, a pinturanunca celebra outro enigma que o da visibilidade.O que acabmos de afirmar no mais do que

    um trusmo;omundo dopintor um mundo visvel,nada mais do que visvel, um mundo quase louco,pois est completo, no sendo contudo seno parci-al. A pintura desperta, eleva suamxima potnciaum delrio que a prpria viso, posto que ver ter distncia, e a pintura estende esta bizarra posses-so a todos os aspectos do Ser, que devem dequalquer modo tomar-se visveis para a ela acede-rem. Quando ojovem Berenson falava, apropsitoda pintura italiana, de uma evocao dos valorestcteis, no poderia estar mais enganado: a pinturano evoca nada, muito menos o tctil. A pintura fazalgo de completamente diferente, quase o inverso:confere existncia visvel ao que a viso profanacr invisvel, faz com que no necessitemos de umsentido muscular para ter a volumetria do mun-do. Esta viso devoradora, para alm dos dadosvisuais, abre sobre uma textura do Ser, cujas

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    mensagens sensoriais discretas no so mais quepontuaes ou cesuras, e que o olho habita como ohomem a sua casa.Permaneamos no visvel em sentido estrito e

    prosaico: o pintor, seja ele quem for, enquantopinta, pratica uma teoria mgica da viso. Ele terde admitir que as coisas passam por si ou que,segundo o dilema sarcstico de Maebrancne, oesprito sai pelos olhos para irpassear pelas coisas,uma vez que no cessa de ajustar nelas a suavidncia. O mesmo vlido seele no pintar sobreum motivo: ele pinta em todo o caso porque viu,porque o mundo, pelo menos uma vez, gravou nelea cifra do visvel. Ele ter de confessar, como dizum filsofo, que a viso espelho ou concentraodo universo, ou que, como diz um outro, o il0UxuJ!OU se abre atravs dela a um, XOtVOUXU-~OU enfim. que a mesma coisa est ali, no coraodo mundo, e aqui, no corao da viso, a mesma,ou, se se fizer questo, uma coisa semelhante, massegundo uma similitude eficaz, que analogia,gnese, metamorfose do ser na sua viso. aprpria montanha que, dali, se d a ver ao pintor, a ela que ele interroga com o olhar.Que lhe pede ele ao certo? Que desvele os

    meios, apenas visveis, pelos quais ela surge mon-tanha aos nossos olhos. Luz, iluminao, sombras,reflexos, or, todos estes objectos da investigaono so propriamente .seres reais: tal como os Jfantasmas, s tm existncia visual. Eles s esto,

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    alis, no limiar da viso profana, no so geralmen-te vistos. O olhar do pintor pergunta-lhes comoconseguem arranjar-se para fazer surgir de repentealguma coisa, e a esta coisa, para compor estetal ism do mundo, para nos fazer ver o visvel. Amo que aponta na nossa direco em A Ronda daNoite est verdadeiramente l quando a sua som-bra, sobre o corpo do capito, no-Ia apresentasimultaneamente de perfil. No cruzamento dasduas perspectivas incompossveis, e que todaviaesto juntas, reside a espacial idade do capito.Deste jogo de sombras, ou de outros smelhantestodos os homens que tm olhos foram j testemu-nhas. Era esse jogo que lhes permitia ver coisas eum espao. Mas operava neles sem eles, dissimula-va-se para mostrar a coisa. Para v-Ia, a ela, erapreciso no o ver, a ele. O visvel, em sentidoprofano, esquece as suas premissas, assenta numa~isibilidade inteira que deve ser recriada, e queliberta os fantasmas em si cativos. Os modernos,como se sabe, libertaram muitos outros, juntarambastantes notas surdas gama oficial dos nossosmeios de ver. Mas a interrogao da pintura visa,em todo o caso, essa gnese secreta e fervorosa dascoisas no nosso corpo.. No se trata, portanto, da pergunta daquele quesabe que~e que ignora, a pergunta do professorprimrio. E a interrogao daquele que no sabe auma viso que sabe tudo, que ns no fazemos, quese faz em ns. Max Ernst (e o surrealismo) afirma

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    com razo: Do mesmo modo que opapel dopoeta,desde aclebre carta do vidente, consiste em escre-ver sob o ditame do que se pensa, do que nele searticula, o papel do pintor consiste em cercar eprojectar o que nele se v. e ) > > O pintor vive nofascnio. As suas aces mais pessoais - aquelesgestos, aqueles traados de que sele capaz, e quepara os outros constituiro uma revelao, porqueno tm asmesmas carncias, parecem-lhe emanar.das prprias coisas, como o desenho das constela-es. Entre ele e o visvel, os papis invertem-seinevitavelmente. por isso que tantos pintoresdisseram que as coisas os olhavam, e Andr Mar-chand depois de Klee: numa floresta, senti vriasvezes que no era euque olhava afloresta. Senti, emcertos dias, que eram as rvores que me olhavam,queme falavam ...Eu estava l, escuta ...Creio queo pintor deve ser trespassado pelo universo, e noquerer trespass-lo: . . Aguardo ser interiormentesubmergido, enterrado. Eu pinto, talvez, para meemergir. e ) Aquilo a que se chama inspiraodeveria ser tomado letra: h verdadeiramenteinspirao e expirao do Ser, respirao no Ser.Aco epaixo to pouco discemveis quejno sesabe quem v e quem visto, quem pinta e quem pintado. Diz-se que um homem nasceu no instanteem que o que era apenas no fundo docorpo matemoum visvel virtual se tomou ao mesmo tempo(2) G. CHARBONNIER. idem. p. 34(')0. CHARBONNIER., idem, p. 143-145

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    visvel para ns e para si. A viso do pintor umnascer continuado.Poder-se-ia procurar nos prprios quadros uma

    filosofia figurada da viso e como que a sua icono-grafia. No ocasional, por exemplo, que, comtanta frequncia, na pintura holandesa (e emmuitasoutras), um interior deserto seja digerido peloolho redondo do espelho, (4 ) Este olhar pr--humano o emblema do pintor. Mais completa-mente do que as luzes, as sombras , os reflexos, aimagem especular esboa nas coisas o trabalho daviso. Como todos os outros objectos tcnicos,como os utenslios, como os signos, o espelhosurgiu no circuito aberto do corpo vidente ao corpovisvel. Toda a tcnica tcnica do corpo, Elafigura e amplia a estru tura metafisica da nossacarne. O espelho aparece porque eu sou vidente--visvel, porque h uma reflexividadedo sensvel,que ele traduz e redobra. Atravs dele, o meuexterior completa-se, tudo o que eu tenho de maissecreto passa nestaface, neste ser plano e fechado,de que j o meu ref lexo na gua me fazia suspei tar.Schilder (5) observa que ao fumar omeu cachimbofrente aoespelho, sinto a superficie lisa e ardente damadeira no s a onde esto os meus dedos, mastambm nesses dedos gloriosos, esses dedos ape-

    (') CLAUDEL, Introduction la peinture hollandaise, Paris 1935,red. 1946(') P. SCHILDER, The image and appearonce o fthe human body,Nova Iorque, 1935, red, 1950

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    nas visveis que esto no fundo do espelho. Ofantasma do espelho arrasta para fora a minhacarne , e , dum mesmo flego, todo o invisvel domeu corpo pode investir os outros corpos que vejo.Doravante, o meu corpo pode comportar segmen-tos recolhidos nos dos outros, tal como a minhasubstncia os atravessa; o homem espelho para ohomem. Quanto ao espelho, e le o instrumentoduma magia universal que transforma as coisas emespectculos, os espectculos em coisas, eu emoutrem e outrem em mim. Os pintores sonharamfrequentemente a partir dos espelhos porque nesteartefacto mecnico, como no da perspectiva, (6 )reconheciam a metamorfose do vidente e do vis -vel, que a def inio danossa carne e a davocaodeles. Assim se compreende tambm que tenhamgostado com frequncia (ainda gostam: vejam-seos desenhos de Matisse) de se representarem apintar, juntando quilo que viam na altura o que ascoisas viam deles, como que para atestar que huma viso total ou absoluta, fora da qual nadapermanece, e que se fecha sobre eles prprios.Como nomear, onde colocar no mundo do entendi-mento, estas operaes ocultas, e os filtros, osdolos que elas preparam? Do sorriso deum monar-camorto hj tantos anos, deque falava aNausea,e que continua a produzir-se e a reproduzir-se na

    (6 ) ROBERT DELAUNAY, Du cubisme l 'a rt abstrait, cadernospublicados por Pierre Francastel, Paris, 1957

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    superficie de uma tela, insuficiente dizer-se queele est a imageticamente ou essencialmente: eleprprio que a est no que teve de mais vivo, desdeo momento em que eu olho para o quadro. Oinstante do mundo, que Czanne queria pintar eque h muito passou, continuam as suas telas alan-lo ao nosso encontro, e a sua montanha deSainte- Victoire faz-se e refaz-se de uma ponta aoutra do mundo, de outro modo, mas no menosenergicamente do que a rocha dura sobre Aix.Essncia e existncia, imaginrio e real , visvel einvisvel, a pintura confunde todas as nossas cate-gorias desdobrando o seu universo onrico de es-sncias carnais, de semelhanas eficazes entre sig-nificaes mudas.

    III

    Como tudo seria mais lmpido na nossa filosofiase se pudessem exorcizar estes espectros, fazerdeles iluses ou percepes sem objecto, margemde um mundo sem equvocos! A Diptrica deDescartes esta tentativa: o brevirio de um pensa-mento que no sequer mais assombrar novisvel edecide reconstru-lo segundo um modelo que esta-belece para si. Vale a pena recordar o que foi essatentativa e esse malogro.Nenhuma preocupao, portanto, de se ater viso. Trata-se de saber como que ela se faz,

    mas namedida necessria para inventar, em caso denecessidade, alguns rgos artificiais (I) que acorri jam. No se raciocinar tanto sobre a luz quens vemos quanto sobre aquela que do exterior

    (' ) DESCARTES, Dioptrioue, Discours VI/ , di ti on A da m e t T a n-nery , V I, p . 16 5

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    34 Merleau-Pontyentra nos nossos olhos e comanda a viso; e limitar--se- sobre este assunto a duas ou trs compara-es que ajudam a conceb-la de uma forma queexplique assuas propriedades conhecidas e permitaa deduo de outras . (2 ) Se se tomarem as coisasass im. o melhor pensar a luz como uma aco porcontacto, tal como a das coisas sobre a bengala docego. Os cegos, diz Descartes, vem com asmos. e ) omodelo car tesiano da viso o tacto.Tal modelo livra-nos de imediato da aco

    dis tncia e desta ubiquidade que consti tui toda adificuldade da viso (etambm toda a sua virtude).Por qu continuar a sonhar apropsito dosreflexos,a propsito dos espelhos? Estes duplos irreais souma variedade de coisas, so efeitos reais como oricochete de uma bala. Se o ref lexo se parece C~.na coisa mesma, tal acontece porque ele age sobre osolhos aproximadamente como o faria uma coisa. Oref lexo engana o olho, erigendra uma perceposem objecto, mas que no afecta a nossa ideia domundo. Nomundo, ha coisa mesma, e foradela hessa outra coisa que um raio reflectido, dando-seo caso de ter com a primeira uma correspondnciaregrada, dois indivduos, portanto, ligados de forapela causalidade. A semelhana da coisa e da suaimagem especular no para ambas mais que umadenominao exterior, pertence ao pensamento. A

    (l) DESCARlES, D i o pt ri qu e , D i sc o ur s L Ed . ci t. p. 8 3(l) Ibidem, p. 84

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    relao ambgua de semelhana nas coisas umaclara relao deprojeco. Um cartesiano no sevao espelho: e le v um manequim, um exteriorsobre o qual tem todas as razes para pensar que visto pelos outros damesma maneira, mas que. nempara si nem para os outros uma carne. A suaimagem no espelho um efeito damecnica dascoisas; se a se reconhece, se a acha parecida, o seu pensamento que tece esta l igao, a imagemespecular nada tem dele.Acabou opoder dos cones. Por mais vivamenteque

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    36 Merleau-Pontypor relao. A magia das espcies intencionais,a velha ideia da semelhana eficaz, imposta pelosespelhos e pelos quadros, perde o seu ltimo argu-mento se todo o poder do quadro o de um textoproposto nossa leitura, sem nenhuma promiscui-dade entre o vidente e o visvel. Estamos dispensa-dos decompreender como que apintura das coisasno corpo as poderia fazer sentir alma, tarefaimpossvel, pois, tendo por sua vez a semelhanadesta pintura com as coisas necessidade de servista, ser-nos- iam necessr ios outros olhos nocrebro com osquais aspudssemos aperceber, (6 )e o problema daviso mantm-se intacto quando seestabelecem estes simulacros errantes entre as coi-sas ens. Tal como asgravuras, o que a luz traa nosnossos olhos, e apartir destes no nosso crebro, nose parece com o mundo visvel. Das coisas aosolhos e dos olhos viso nada ocorre para alm doque vai das coisas smos docego e das suas mosaopensamento. A viso no a metamorfose dascoisas mesmas na sua viso, a dupla per tena dascoisas ao grande mundo e a um pequeno mundoprivado. um pensamento que descodifica estrita-mente oss ignos dados no corpo. A semelhana oresultado dapercepo, no a sua mola. Com maiorrazo.a imagem mental, a vidncia que nos tomapresente o que est ausente, em nada se assemelhaa uma inciso directa em direco ao corao do(6 ) Ibidem, VI, p.130

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    Ser: ainda um pensamento apoiado sobre indcioscorpreos, desta vez insuficientes, aos quais atribuium excesso de significado que eles no possuem.Nada resta do mundo onrico da analogia . ..

    O que nos interessa nestas clebres anlises ofacto delas tomarem sensvel que toda a teoria dapintura uma metafisica. Descartes no falou mui-to de pintura, e poder-se-ia considerar abusivo tirarconcluses a par tir do que ele diz em duas pginassobre as gravuras. No entanto, que ele s fale deladepassagem significativo: apintura no para eleuma operao central que contribua para def inir onosso acesso aoSer; um modo ouuma variante dopensamento canonicamente defmido pela posseintelectual epela evidncia. No pouco que diz sobreo assunto, esta opo que seexprime, eum estudomais atento dapintura desenharia uma outra filoso-fia. tambm signif icativo que para falar sobrequadros tome como tipo o desenho. Ns veremosque a pintura inteira est presente em cada um dosseus meios deexpresso: h um desenho, uma linhaque encerram todas as suas faanhas. Mas o queagrada a Descartes nas gravuras que elas retm aforma dos objectos, ou pelo menos oferecem-nosdestes sinais suficientes. Apresentam o objectoatravs do seu exterior ou do seu invlucro. SeDescartes tivesse examinado esta outra e maisprofunda abertura s coisas que nos dada pelasqualidades secundrias, nomeadamente a cor, comono h qualquer relao regrada ou projectiva entre

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    elas e as propriedades verdadeiras das coisas, ecomo, noentanto, a sua mensagem compreendidapor ns, ter-se-ia encontrado face ao problema deuma universalidade ede uma abertura scoisas semconceito, obrigado a procurar de que forma omurmrio indeciso das cores nos pode apresentarcoisas, florestas, tempestades, enfim o mundo, etalvez a integrar a perspectiva como caso particularnum poder ontolgico mais amplo. Mas para ele evidente que a cor ornamento, colorao, quetodo o poder da pintura repousa sobre o desenho, eo poder do desenho sobre a relao regulada queexiste entre ele e o espao em si, tal como o ensina ~a projeco perspectiva. A expresso famosa dePascal sobre a frivolidade da pintura, que nos Iprende a imagens cujo original no nos emociona-ria, uma expresso cartesiana. para Descartesuma evidncia que no se possam pintar senocoisas existentes, que a sua existncia consista emserem extensas, e que o desenho tome possvel apintura tomando vivel a representao da exten-so. A pintura no mais, ento, doque um artifcioque apresenta aos nossos olhos uma projecosemelhante quela que as coisas a inscreveriam eainscrevem napercepo comum, que nos permitever lia ausncia de um objecto verdadeiro a formacomo o vemos na vida e, nomeadamente, nos d aver espao, aonde espao no existe (1). O quadro(')o.sistemadosmciospel08quaiselenosfazverobjectodecincia.

    l!:r~;;'i:i""*'''~-

    o olho e o esprito 39 uma coisa plana que nos d artificiosamente o.queveramos na presena de coisas diferentementeposicionadas, porque nos fornece, segundo a altu-ra e a largura, signos diacrticos suficientes dadimenso que lhe falta. A profundidade umaterceira dimenso derivada das outras duas.Detenhamo-nos naprofundidade, valer apena.

    Primeiro, ela tem qualquer coisa de paradoxal: euvejo objectos que seescondem uns aos outros, equeportanto no vejo, posto que esto uns atrs dosoutros. Eu vejo-a e ela no visvel, pois avaliadaa partir donosso corpo at s coisas, e ns estamoscolados a ele... Este mistrio um falso mistrio, euno. a vejo verdadeiramente, ou se a vejo umaoutra largura. Sobre a linha queune os meus olhosao horizonte, oprimeiro plano esconde para sempreos outros, e se, lateralmente, eu penso ver os objec-tos escalonados, porque eles no se escondemcompletamente: vejo-os, portanto, um fora do ou-tro, segundo uma largura avaliada de outra forma.Estames sempre para cou para lda profundidade.As coisas nunca esto umas atrs das outras. Oencavalamento e a latncia das coisas no entramna sua definio, exprimem apenas a minha incom-preensvel solidariedade com uma delas, o. meucorpo, e,em tudo o que tm de positivo, soPorque que, ento, no produziramos metodicamente imagensperfeit as do mundo , uma p in tu ra unive rs al l ibe rt a da ar te pessoal,como a I ingua universal l ibertar ia de tod as a s relaes confusas que searrastam nas Iinguas existentes?

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    40 Merleau-Pontypensamentos que eu formo e no atributos dascoisas: eu sei que, neste momento, um outro ho-mem situado noutra posio - ou ainda melhor:Deus, que est em todo o lado - poderia penetrarno seu esconderijo e v-las desdobradas. O quechamo profundidade nada ou a minha participa-o num Ser nem restrio, e primeiro no ser doespao para alm de todos os pontos de vista. Ascoisas encavalam-se umas sobre as outras porques o e x te ri or es u m as s o utr as . A prova est em queposso ver a profundidade olhando para um quadroque, toda a gente concordar, ~o a possui, e queorganiza para mim a iluso deuma iluso ...Este sera duas dimenses, que me faz ver uma outra, umser esburacado, como diziam os homens da Re-nascena, uma janela ... Mas a j anela no abre, aofim e ao cabo, seno sobre o pa rte s e xtra part e s,sobre a altura e a largura que so vistas to-s deuma outra obliquidade, sobre a absoluta positivida-de do Ser.

    este espao sem esconderijo que em cada umdos seus pontos ,nem mais nem menos, o que , esta identidade do Ser que sustm a anlise dasgravuras. Oespao em si, ou, melhor, o em siporexcelncia, a sua definio de ser em si. Cadaponto do espao e pensado a, onde , um aqui,o outro ali, o espao a evidncia do onde. Orien-tao, polaridade, envolvimento so nele fenme-nos derivados, ligados minha presena. Ele re-pousa absolutamente em si, em todo o lado, igual a

    I

    I.

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    s i, homogneo, e as suas dimenses , por exemplo,so por defmio substituveis.Como todas as ontologias clssicas, esta erige

    em estrutura do Ser certas propriedades dos entes,e ao mesmo tempo verdadeira e falsa, poder-se-iadizer, invertendo dessa feita a expresso de Leib-niz: verdadeira no que nega e falsa no que afirma.O espao de Descartes verdadeiro contra umpensamento agrilhoado ao emprico e que no ousaconstruir. Era necessrio, primeiro, idealizar o es-pao, conceber esse ser perfeito no seu gnero,claro, manobrvel ehomogneo, que opensamentosobrevoa sem ponto de vista, e que reporta porinteiro sobre trs eixos rectangulares , para que sepudessem um dia encontrar os limites da constru-o, compreender que o espao no tem trs dimen-ses, nem mais nem menos, como um animal temquatro ouduas patas, que as dimenses so analisa-das pelas diversas mtricas com base numa dimen-sional idade, num Ser pol imorfo, que asjus ti fica atodas sem ser completamente expresso por nenhu-ma. Descartes t inha razo em liber tar o espao. Oseu mal foi de o erigir num. ser todo positivo, paral de qualquer ponto de vista, de qualquer latncia,de toda a profundidade, sem nenhuma espessuraverdadeira.Teve tambm razo em se inspirar nas tcnicasperspectivas da Renascena: elas encorajaram apintura a produzir livremente experincias de pro-fundidade, e em geral apresentaes do Ser. S se