o homenzinho do olho

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O Homenzinho do Olho Marcelo Nunes

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© 2011 by Marcelo Nunes

Imagem da capa “Pequeno Suicídio”, Marcelo Nunes óleo sobre tela, 2002 Proibida a reprodução Contato: [email protected]

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Capítulo 1

Malchut Já era o terceiro cigarro que Daniel acendia, e já estava na segunda xícara de café. Que horas seriam? Ele não usava relógio, e havia esquecido o celular na redação. O restaurante já estava vazio; ele estava sozinho, ilhado por um mar de mesas brancas. Olhou em volta e viu, bem acima de sua cabeça, um relógio de parede, uma interessante peça de design ao estilo de Dalí, que parecia marcar dez para as quatro, ou dez e vinte, uma vez que os ponteiros tinham praticamente o mesmo tamanho e eram meio retorcidos. Como já tinha almoçado havia algum tempo e a tarde corria solta, concluiu que eram dez para as quatro. Ao bater as cinzas do cigarro no imenso cinzeiro de vidro sobre a mesa, Daniel notou que sua mão tremia. Numa reação instintiva, levou a mão esquerda às têmporas e sentiu que estava suado. Deu uma longa tragada no cigarro e pensou que, se pudesse voltar atrás, ele voltaria. Ele iria para casa naquele instante e esqueceria toda aquela história, de uma vez por todas. E por que ele havia mesmo se metido naquilo, contrariando toda uma vida de sobriedade, intelectualidade, ceticismo e decência? Decência? Não sei se sou exatamente um homem decente, pensou. Não se visto por certos aspectos. Mas quem é? Sóbrio? Sim, Daniel sempre havia se considerado um homem sóbrio, pouco dado a devaneios de qualquer espécie, disposto a viver apenas dentro dos limites que seu discernimento lhe permitia, levando uma vida que poderia ser também chamada de pragmática. Pragmatismo, esse termo sempre lhe fora caro, dizia-lhe muito, era assim que ele via as coisas. Quando isso havia começado? Bem, ele poderia dizer com certa precisão. Foi na adolescência, quando o seu melhor amigo na época lhe emprestou um livrinho de um autor francês cujo nome ambos pronunciavam de forma errada: Camus. Daniel saboreou mentalmente a pronúncia correta em francês, que ele agora falava

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fluentemente, pois tão logo terminou de ler todos os títulos disponíveis do escritor em português, prometeu a si mesmo ler tudo de novo, no original. Foi assim. Foi assim que começou a falar francês e foi assim que começou a enxergar todo o absurdo da existência. Como soaria anacrônico dizer-se existencialista em pleno século XXI, “pragmático” caía como uma luva. Por sua idade – estava agora com 33 anos – Daniel havia escapado de se deixar influenciar por outras idéias e ideais, como o comunismo, por exemplo. Ainda bem que escapei desse constrangimento, pensou, e lembrou-se de uma charge que havia visto tempos antes, que mostrava Karl Marx dizendo: “Desculpa, pessoal, foi só uma ideia”. Ao se lembrar disso, sorriu e, como todo mundo que sorri sozinho em um lugar público, olhou à sua volta para ver se alguém o observava, imaginando que seria um louco. Louco? Quem sabe ele não estivesse mesmo louco, ali sentado a esperar alguém que ele não sabia se existia, se era fruto de uma alucinação ou simplesmente um embuste? Daniel olhou pela imensa vidraça do restaurante e viu a movimentação na Alameda Santos. Era um dia quente, embora fosse pleno inverno. Era engraçado notar algumas pessoas vestidas com casacos de frio e pulôveres de lã, apesar do calor. Elas pareciam sofrer com isso, mas, afinal de contas, era inverno e estavam vestidas de acordo. Sei quem são essas pessoas, pensou. Elas esperam ansiosas a chegada do inverno para tirar do armário todas as roupas que compraram nas liquidações do ano passado, para comer fondue de tudo quanto é tipo e passar os finais de semana em Campos do Jordão. Mas não existe mais inverno em São Paulo, bem feito, agora ficam todas suando nesse calor de 30 graus. Esta droga de planeta já era, esta cidade está um caos, os rios daqui são um grande esgoto a céu aberto, o trânsito não anda e crianças miseráveis assaltam nos faróis com cacos de vidro. Daniel remoía esses pensamentos com certa irritação, consciente de que a vida que levava na cidade lhe conferia o direito a certa neurastenia, que ele aprendera a nutrir e saborear, pois também reconhecia em si uma tendência a autopunição. Por que será que sou tão fatalista?, pensou, quase em

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voz alta. Bem, imaginou, enxergar o absurdo já é meio caminho andado para se tornar fatalista. Nada mais importa, o caos é a única coisa que existe e somos totalmente impotentes para mudar o rumo das coisas. Tudo isso com uma pitada de cinismo, pois idéia nenhuma merece ser defendida com muita paixão. Além do mais, concluiu, nenhum “ismo” sobreviveu, exceto o capitalismo. Isso é um grande clichê, censurou-se. Mas nunca um clichê foi tão verdadeiro, isso também é verdade. Ele vem ou não? Mas como ele havia dado voltas até chegar ali, onde estava, sentado àquela mesa a esperar por um...? Chega!, disse Daniel a si mesmo, como num ultimato. Vamos esquecer isso. Onde está o garçom? Garçons nunca estão por perto quando precisamos deles. Eu quero pedir a conta e ir embora. Chega, é preciso ter o senso do ridículo, essa história já foi longe demais, eu já me expus demais, já me esforcei demais. Se é preciso ter fé, então nada feito. Não tenho fé, ponto final. Sou um ateu incorrigível. Ateu, iconoclasta, cético, racional, pragmático, jornalista, heterossexual e separado. Um homem livre, enfim. Ninguém me cobrará nada, sou inatacável. Um homem comum, decente até onde se é possível ser. É verdade, nos últimos anos ele fizera coisas das quais se envergonhava um pouco, por serem tão pequeno-burguesas, tão medíocres, tão pouco nobres... Como ter uma amante, por exemplo. Daniel tentou parar o fluxo do seu pensamento, mas não havia escolha. A tarde corria solta, o sol estava a pino, pessoas corriam para lá e para cá enquanto ele estava sentado, a beber café e fumar, sozinho naquele restaurante. Não adiantava, o pensamento daria voltas e não havia nada que o distraísse, que o chamasse de volta à vida, esse “estar ocupado” que nos acostumamos a chamar de viver. Uma amante... Uma amante... Ele havia prometido a si mesmo não se sentir mais culpado por tudo aquilo. Foi um erro, sim, a carne é fraca e Vivian não precisava ser tão moralista, tão travada. Se ela tivesse tido um caso, ele teria entendido. Todos esses conceitos de fidelidade e monogamia cheiravam a igreja católica demais para serem levados a sério. “Família” era um palavrão, parecia que era prima da “Tradição” e meia-irmã da “Propriedade”.

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Propriedade, possessão. Possessão, ciúme. Ciúme, paranóia. Paranóia, medo. Medo, resignação. Resignação, tédio. E de todos os níveis do inferno, que com certeza tem vários andares e ambientes, o tédio há de ser o pior. Lá não há dançarinas de topless nem maconha; não há jazz nem os grandes malditos, como Rimbaud, Artaud, Genet ou Borroughs. Lá só estão os chatos, os medíocres, os previsíveis, os medrosos. Lá a televisão fica ligada durante todo o domingo. Os que lá estão jamais sairão. O tédio é a verdadeira morte. Mas quem está falando de tédio? O nosso casamento não era exatamente um tédio, lembrou. Longe disso. Havia certo desgaste, isso sim, depois de certo tempo. Depois do segundo ano, talvez. Também, eu me casei cedo demais. 29 anos não é idade para se casar. Hoje, os homens estão se casando só depois dos 35, 40, depois de terem vivido bastante, conhecido muita gente, provado de tudo. Talvez, como qualquer pessoa, eu tivesse medo de ficar sozinho. Bobagem. Eu não me casei por isso. Eu me casei porque... Chega, pensou. Nesse momento o garçom finalmente apareceu, e Daniel pediu a conta. O garçom acenou com a cabeça e sumiu por trás da pilastra que havia na extremidade oposta do salão. Bem, então é isso, estamos conversados, concluiu. Vou mesmo embora. Eu tentei. Vim aqui na hora certa, no lugar certo e esperei. Será que esperei o suficiente? Devo ter ficado aqui umas três horas inteiras. Almocei, tomei um café, fumei um cigarro. Esperei, esperei, fumei outro cigarro. O garçom veio e perguntou se eu queria mais alguma coisa, e eu disse que queria outro café. Tomei o café, fumei um cigarro, esperei. Fumei outro cigarro e esperei. E nada. Já chega, está de bom tamanho. Já teria dado tempo dele chegar aqui, se é que enfrentaria algum tipo de trânsito. Chega. E onde está a conta que não vem? Olhando novamente para a rua, ele notou que o movimento de pedestres e carros havia aumentado bastante. Logo os expedientes se encerrariam, despejando uma multidão na cidade, e o trânsito ficaria insuportável. Portanto, era realmente hora de ir embora. Como ele pôde ter se colocado naquela situação? Era tudo um tanto vexatório. Daniel se perguntou por que ele, sendo quem

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era, havia se deixado levar até aquele ponto. Tudo havia começado um ano antes, após a separação. Uma época péssima, ele lembrou. Nunca havia imaginado que seria tão difícil. Mas ele havia suportado tudo com sobriedade até que caiu duro, com um estresse desses capazes de matar um. Ele sentia-se esgotado, roubado de todo o ânimo. Cogitava, vez ou outra, estar com depressão, embora sempre se esforçasse para afastar tal pensamento, em total negação. Um amigo da redação lhe falou sobre a ioga. Disse que era bom para o corpo e não tinha nenhum misticismo envolvido – era só aprender a respirar, relaxar, se concentrar, essas coisas. Uma maravilha. Não tinha dogmas nem proibições. Por que não?, pensou Daniel na época, toda essa baixa de energia deve ser resultado do meu estilo de vida desregrado. Talvez um pouquinho de exercício e disciplina ajude. Por que não? Ah, a conta. Finalmente. Vou pagar com cartão. Ok, mais espera. Onde fica o caixa deste restaurante, afinal? Em Timbuktu? A ioga. Foi muito bom, lembrou Daniel. Aos poucos fui recobrando o bem-estar, as energias. E fui me envolvendo com as pessoas lá. Talvez esse tenha sido o meu erro. Me envolver. Como sempre, tenho que falar demais. Eu já deveria ter aprendido a ficar de boca fechada. Mas, não. Tenho que dizer exatamente o que penso o tempo todo, para que todos ouçam. De preferência, que ouçam e discordem de mim, para que eu possa falar um pouco mais. Daí a entrar em longas discussões pseudometafísicas com o grupo de ioga foi um passo. De ioga aquilo quase virou um grupo de terapia, deus me livre. O nosso professor era um homem bastante inteligente, lúcido e moderado. Não gostava dessa onda mística barata que assola a Humanidade. Mas ele também contava histórias fantasiosas às vezes; era um homem experiente, já havia feito de tudo: muitas viagens ao Oriente, muitas religiões, escolas e filosofias diferentes. De tudo ele sabia um pouco. Ele até que me convencia, muitas vezes. Mas agora não convence mais. Agora sei que era um blefe, um engodo. Ele me enganou pela última vez e se eu soubesse onde ele está agora, eu... Ah, obrigado, garçom. Tenha um bom dia.

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Daniel abriu a porta do restaurante e sentiu uma lufada de ar quente no rosto. Aquele era um inverno atípico, e a poluição havia tornado o ar ainda mais abafado. Ele caminhou até o carro, que estava estacionado a um quarteirão do restaurante, abriu a porta e entrou. Muito bem, pensou, fiz papel de bobo. Distendi a minha crença no mundo espiritual ao máximo. Por um momento até cheguei a acreditar realmente. Fiquei nervoso, suei, tremi. Que coisa ridícula! Como ele previra, o trânsito já estava pesado. A estreita alameda estava congestionada e o calor só fazia tudo ficar mais irritante. Até quando insistirei em morar aqui?, pensou. Qualquer ser humano sensato já teria ido embora morar num lugar mais habitável e menos paranóico. Mas esta cidade não é um lugar de sensatos. De qualquer forma, nasci aqui e talvez não me acostumasse mesmo em lugar nenhum senão aqui, refletiu Daniel, ao desviar o caminho por uma rua paralela, na esperança de que ela estivesse mais livre. Não estava. Ele encostou a cabeça no apoio do banco, de olhos fechados, e deu um longo suspiro. Ao abrir os olhos, viu, pelo espelho retrovisor, um homem sentado no banco traseiro, a observar o trânsito. Por um instante, Daniel permaneceu a olhar, se perguntando se realmente estava vendo um homem sentado dentro do seu carro. No instante seguinte, foi tomado pelo medo. É um assalto? Um sequestro? Daniel permaneceu parado, num pânico súbito, como se algo o impedisse de fazer qualquer coisa. Calma, calma, eu vou abrir a porta bem devagar, sem que ele note, vou sair correndo e pedir socorro, calculou. Deve haver um carro de polícia aqui perto, ele não vai conseguir fugir nem vai tentar nada, com tanta gente por perto. Mas e se ele estiver com um revólver apontado para as minhas costas? Com o batimento cardíaco acelerado, Daniel se sentia petrificado, e não sabia se por puro pânico ou como se algo o segurasse ali. O suor aumentou, suas mãos tremiam. Talvez devesse perguntar a ele quem era e o que queria. Sequestro, eu? Não tenho nada, não sou sequestrável. Ele pode querer apenas o meu cartão do banco ou algo assim. Talvez queira o carro. Tudo bem, sairei, ele fica

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com o carro, tenho seguro mesmo. Mas como ele vai fugir com esse trânsito? Daniel não conseguia ordenar os seus pensamentos, que vinham num fluxo interminável, num instante que, para ele, era uma eternidade. “Calma, Daniel. Não tenha medo.” A voz do homem soou estranhamente familiar, embora Daniel não conseguisse precisar de quem era. Seria algum amigo que, por causa do susto que ele tomou, não havia reconhecido? Seria uma brincadeira? Ele tomou coragem para olhar para o homem no banco de trás de novo, e foi com certo esforço que levantou os olhos e fitou o espelho retrovisor mais uma vez. Não, não era ninguém conhecido. Ele jamais havia visto aquele homem em toda a sua vida, disso ele tinha certeza. O seu rosto era pálido, o nariz, aquilino; os cabelos eram pretos, encaracolados, bem aparados. Ele aparentava uma calma imperturbável, nem sequer retribuía o olhar, não se mexia. Mas era um rosto extremamente sereno. Os lábios, notou, delineavam um leve sorriso, como se ele estivesse pensando em algo engraçado, ou como se estivesse se divertindo com a situação. No momento seguinte, Daniel notou que ele virava o rosto em direção ao banco dianteiro, de forma que os seus olhos se cruzariam pela primeira vez, e sentiu uma espécie de tremor, de insegurança repentina, como se algo fosse acontecer, e desviou os olhos antes que eles se encontrassem. Daniel baixou os olhos, fitando as próprias pernas, tentando pensar em outra coisa. Ele só queria sair dali, daquele pesadelo. Nesse momento, o homem deu uma breve risada: “Desculpe, eu não queria assustar você. Mas é uma das partes que eu mais gosto, a chegada. É divertido ver a reação de vocês.” O que esse homem está falando? Que chegada? Então... Não, não é possível. Deve ser uma brincadeira, ele deve ter entrado no carro antes e se escondido, pensou Daniel. “Não, eu não entrei no carro antes, nem me escondi.” Então ele entrou depois, e eu não notei. Esse trânsito, esse barulho todo...

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“O seu carro só tem duas portas. Como eu poderia ter entrado, ao seu lado, sem que você percebesse?” Como? Ele lê os meus pensamentos? Não é possível. É apenas coincidência, ele... “Pense em algo. Eu lhe direi o que é.” Daniel fechou os olhos, tentando se concentrar, tentando entender a situação, mas tudo parecia absurdo demais. No fundo, ele gostaria que aquilo não estivesse acontecendo, mas, pensou, já não havia como voltar atrás. O homem no banco de trás sorriu novamente. “Você queria tanto me ver, agora vira o rosto. Quer dizer, você queria, mas ao mesmo tempo duvidava da minha existência. Mas isso é perfeitamente compreensível. Não se censure.” Daniel sentiu a mão do homem pousar sobre o seu ombro direito, e um leve calafrio percorreu o seu corpo. “Olhe para mim, não tenha medo. Tenha-me como um amigo”, disse o homem, e sua voz lhe pareceu reconfortante. Tentando juntar as forças, Daniel se virou no banco de forma que pudesse encarar o homem pela primeira vez, e ver os seus olhos. Ao fazê-lo, sentiu algo que jamais havia sentido antes. Talvez o encantamento de quem vê uma divindade, pensou, mas ele nunca havia acreditado em divindades, em milagres e aparições, muito menos em... anjos. Seres alados, assexuados, etéreos... O que havia ali era um homem, aparentemente de carne e osso; um homem com uma aparência angelical, de tão pálido e delicado, mas um homem. “Se quiser me perguntar alguma coisa, pergunte”, disse o outro, de uma forma bastante serena. “Mas lembre-se que você está no meio do trânsito e os outros motoristas vão começar a ficar irritados.” Nesse momento, Daniel notou que havia iniciado uma pequena comoção naquele trecho da rua, pois todos os que vinham atrás dele estavam tendo que desviar de seu carro, e os motoristas passavam por ele xingando e fazendo gestos obscenos. Ele se endireitou no banco, rapidamente, e engatou a marcha. Se ele tinha algo a perguntar? Sim, tinha muitas perguntas, dezenas, centenas,

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milhares delas. Mas a única pergunta que conseguiu formular talvez tenha sido mesmo a mais óbvia naquele momento: “Quem é você?”, perguntou Daniel, sentindo a voz um tanto trêmula. O outro não respondeu de imediato, como se refletisse. Por fim, disse: “Pode me chamar de... Hermes.” “Hermes? O deus da mitologia grega? Um deus pagão?!” “Ora! É só um nome. Você não queria um? Vocês, humanos! Os babilônios diziam: não ter um nome é como não existir... Já o Bardo foi mais preciso e inspirado: ‘O que há num nome? Uma rosa, tivesse outro nome, teria perfume igual.’” Daniel fitou o homem através do retrovisor, ainda totalmente incrédulo. O trânsito andava lentamente, e ele já não sabia para onde ia. O outro abaixou o vidro à sua direita, aproximou o rosto da janela, fechou os olhos e pareceu inspirar lentamente. “Ah! Os aromas da sua cidade! Gás carbônico e gasolina! Já é alguma coisa...” Daniel desejava uma resposta mais direta e precisa. Por mais esdrúxulo que aquilo lhe parecesse, ele havia “invocado” um anjo. Aquele ser, ali, sentado no banco de trás de seu carro, era ou não um anjo, afinal? Mas, antes que formulasse a pergunta, ouviu: “Sim, digamos que sim. Há toda uma hierarquia de anjos, arcanjos e que tais, mas não vou ficar aqui entediando você com essas explicações, elas não lhe interessam. Saiba apenas que faço parte de uma casta que tem permissão de vir aqui, ou de se materializar de vez em quando, pois é a nossa missão. Em troca, e isso é cá entre nós, posso voltar a ter certas sensações das quais sinto saudade. O cheiro do café, o gosto da ameixa, a sensação da água correndo pelo corpo... Só não posso me envolver emocionalmente com nenhum humano. E, sim, vá lá, admito que gosto de interpretar Hermes, ou Mercúrio. Já fui ator em uma de minhas encarnações... Eu trago uma mensagem, essa é a minha missão. Todos nós temos uma missão. Você com certeza tem a sua.”

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“Não sei se tenho uma missão”, respondeu Daniel, após algum tempo. O homem sorriu: “Então o que está fazendo aqui?” “Boa pergunta”, disse, já se sentindo um pouco mais calmo. “Então eu vou lhe responder, mas não agora. E essa deve ser uma das condições do nosso trato: você pode me perguntar o que quiser, mas certas coisas eu não poderei responder, ou não na mesma hora.”

“Que tipo de pergunta?” “Quando você vai morrer, qual o número vencedor da loteria, essas coisas”, respondeu o homem, e Daniel notou certa ironia na resposta. Daniel, sem saber muito como, pois dirigia sem rumo, se viu na Avenida Brasil, que estava inundada de carros, na procissão lenta, previsível e irritante de todos os dias. A noite já começava a cair, de forma que ele quase não podia ver o outro através do retrovisor, pois o interior do carro estava escuro. Vez ou outra, uma luz vinda de fora iluminava o rosto do passageiro no banco de trás, que parecia mais interessado na paisagem à sua volta. Ele observava os carros, os edifícios, as pessoas na rua, talvez como um turista no caminho do aeroporto até o hotel, vendo pela primeira vez a paisagem urbana daquela cidade, entre maravilhado e pasmo. Daniel agora estava em silêncio, ainda confuso, enquanto tentava imaginar alguma explicação plausível para tudo aquilo. Porém, por mais que tentasse, tal explicação parecia não existir. Ele havia sido cético, todo o tempo, e só havia consentido em tal “encontro” pois tinha, no íntimo, a plena convicção de que se tratava de um embuste, como tantos outros que havia visto e presenciado, e queria ter o prazer de prová-lo a si mesmo e aos outros. No entanto, conforme os dias foram passando e o dia do encontro se aproximava, ele começou a sentir uma espécie de inquietação, e o nervosismo havia chegado ao ápice quando já estava no restaurante. De uma forma que ele não podia entender, todas as suas convicções agora estavam em cheque. Daniel começou a se sentir incomodado com o silêncio do outro, e resolveu perguntar algo. Esforçou-se para lembrar de

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alguma indagação humana mais profunda, mas sua ansiedade e o absurdo da situação pareciam lhe embotar o cérebro. Perguntar qual o sentido da vida seria óbvio demais, refletiu. Tentou acionar a sua intuição de jornalista para tentar testar o outro. Por fim, se lembrou de um artigo escrito por um filósofo que ele havia traduzido anos antes: “Eu gostaria que você tentasse resolver um dilema teológico.” “Chuta!”, disse o passageiro, sem desviar o olhar da avenida. “São três afirmações excludentes – verdades tidas como absolutas e que, ao mesmo tempo, são contraditórias. Primeiro: Deus é onipotente. Segundo: Deus é bom. Terceiro: coisas terríveis acontecem. Ora, se Deus é onipotente e bom, por que tanta desgraça acontece no mundo?” “Essa é fácil: livre-arbítrio.” “Livre-arbítrio?” “Sim. Deus é onipotente e bom, mas nos deu o livre-arbítrio. Por isso você pode pegar uma arma e matar alguém. Deus não tem nada a ver com isso; isso é coisa dos homens.” “Mas coisas terríveis acontecem mesmo que não pelas mãos dos homens. Como você explica uma criança de quatro anos que morre de leucemia? Onde está o bom e onipotente Deus?” O outro se virou para Daniel, e adotou um tom um pouco mais sério e pausado: “Há uma palavra em sânscrito que explica isso: karma-n. Os hinduístas e budistas explicam que cumprimos um ciclo de ação, reação, nascimento, morte e renascimento. Além do mais, nós temos uma percepção muito limitada do tempo. Como eu disse, todos nós temos uma missão, mas alguns vêm à Terra e ficam 90 anos, outros, 90 dias – e todos, ao partir, deixam saudades e lágrimas. Porém, para o Universo, que é infinito, 90 anos e 90 dias são igualmente insignificantes.” Eles agora haviam se aproximavam da Paróquia de Nossa Senhora do Brasil, que estava iluminada e tinha suas portas abertas. Ao vê-la, o homem tocou novamente o ombro de Daniel: “Eu vou ficar aqui.”

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“Como?” Daniel parou o carro junto à calçada e se virou para ele. “Mas... eu queria lhe fazer algumas perguntas...” “Sim, certamente”, respondeu o outro. “Mas este foi apenas o nosso primeiro encontro. Haverá outros, se você o desejar. Façamos o seguinte: vá para casa, pense, não tenha pressa. Se você quiser realmente me ver de novo, faça da mesma forma que neste nosso primeiro encontro: imagine um determinado local, dia e hora. Eu estarei lá. E prometo não me atrasar da próxima vez!” O homem abriu a porta do carro e ao sair, virou-se para Daniel: “Ah, foi um prazer!” Daniel permaneceu imóvel, e o viu caminhar até a igreja, subir sua pequena escada e sumir pela porta, sem se virar.

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Capítulo 2

Yesod Ao chegar em casa, Daniel vasculhou impacientemente a gaveta de sua escrivaninha, em busca do cartão da academia de ioga onde havia estudado durante alguns meses. Ele não tinha o hábito de guardar números de telefone no seu celular, mas anotados em pedaços de papel ou numa velha agenda. Quando lhe davam cartões de visita, jogava-os na primeira gaveta que encontrava, em casa ou na redação, hábito que ele só lamentava quando não encontrava algum contato ou alguma anotação, mas do qual ele não fazia muito esforço em se livrar. Agora, tal hábito, antes de suscitar irritação, suscitava desespero: ele precisava falar com seu antigo professor de ioga como quem precisa de uma corda para sair do fundo de um poço. Como foi mesmo que tudo isso começou? Sim, vamos recapitular, passo a passo, desde o início, pensou. Talvez ele conseguisse entender melhor tudo isso se colocasse as coisas retrospectivamente, tudo no seu devido lugar. Primeiro, foi a crise com Vivian, e a separação. Sim, foi onde tudo começou. Ele passou a beber além da conta, fora os baseados habituais. Será que ele estava tendo um delírio? Uma reação retardada? Não era possível, ele não era desse tipo, sempre dizia que tinha uma relação saudável com a bebida, o cigarro e as drogas. É verdade, ele se lembrava, naquela época ele estava bastante deprimido e confuso, não deveria ter feito aquilo. Teve uma bad trip ou outra, foi horrível. E o trabalho. Como ele estava saindo de casa, tinha que alugar outro apartamento e colocar tudo dentro, e não tinha lá muito dinheiro. Então, começou a trabalhar como um louco, a fazer horas extras, a escrever para uma revista masculina idiota, tudo em nome de um saldo bancário maior. Ele conseguiu, alugou outro apartamento, comprou alguns móveis, até trocou de carro. Mas a sua saúde foi para o brejo. Começou a ter insônia, apesar da fadiga, e isso foi o

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pior. Ficar acordado à noite quando se quer morrer de cansaço e tristeza é um castigo que ser humano nenhum merece. Começou a beber mais, a fumar mais, a sair mais. Ele se envolveu com uma fotógrafa maluca que cheirava cocaína todo dia, e às vezes ele a acompanhava nas madrugadas, de festa em festa, de bar em bar. Mas, no fundo, ele sentia-se mal, muito mal. Foi ficando com olheiras, perdeu peso. Durante o dia, tentava levar uma vida normal, trabalhava muito, se distraía. Vez ou outra, pensava em Vivian e se deprimia um pouco. Mas o trabalho logo o puxava para a “vida” de novo. À noite era sempre um sufoco. Quando não tinha nenhum lugar para ir, nenhum coquetel de lançamento, nenhuma festa, ele tinha até medo de ir para casa. Aquilo durou uns três meses. Pareceu uma eternidade. Até o dia em que ele acordou suando, com uma dor nas costas que parecia triturar a sua coluna, e não conseguiu se levantar da cama. Caiu no chão, se contorcendo de dor, suando frio. Chegou até a vomitar. No hospital, a dor passou. Tiraram radiografia da sua coluna, nada. Problema nenhum. Mesmo antes de conseguir falar com o médico, a dor passou, sozinha. Nunca mais voltou. Mas o cansaço e a fraqueza continuavam. Foi ao seu clínico geral, que foi enfático: você está estressado; tire uns dias de folga, vá viajar, tome sol, descanse. Como ele havia se envolvido numa série de projetos, não pôde tirar férias. Foi aí que um colega da redação lhe falou sobre a ioga. Ele procurou uma escola, matriculou-se e começou a fazer. Ao mesmo tempo, deu um tempo no uísque, diminuiu o cigarro, deu o fora na fotógrafa. Logo nos primeiros dias, ele já começou a dormir melhor. A ansiedade diminuiu bastante, ele se acalmou. Um pouquinho de disciplina o salvou. Mas aí o seu grupo de ioga, que eram umas dez pessoas, entre eles um executivo estressado como ele, uma dona de casa e um bando de “esotéricos”, começou a estender as aulas com perguntas ao professor que, por ser bastante solícito, ficava até uma hora a mais com o grupo, após a aula propriamente dita, conversando. Como Daniel adorava discussões e nutria um desprezo monumental por aquele bando que parecia viver numa outra dimensão, ele também ficava e participava desses “debates”. Via de regra, após a aula, que era silenciosa e onde eles

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apenas faziam exercícios de respiração e relaxamento, o professor sentava-se diante de todos e dizia: vocês têm alguma pergunta hoje? Em seguida, ouvia-se uma avalanche de perguntas que iam da origem do Universo ao futuro da Humanidade, com tudo que há entre uma coisa e outra incluído. O professor tentava filtrar e responder apenas ao que dissesse respeito à espiritualidade, e dizia que aquilo nada tinha a ver com a ioga, que ele estava conversando com eles como amigo, e que o excesso de racionalidade poderia até atrapalhar o aprendizado dela. Daniel achava instigante a quantidade de informações que o professor possuía sobre os mais diversos assuntos que o grupinho esotérico trazia à tona. Seja sobre a lenda do rei Artur (sobre a qual ele discursou longamente e sublinhou o caráter de “sociedade secreta” dos cavaleiros e sobre o uso intenso da magia naquela época), seja sobre coisas mais pueris, como fadas, duendes, gnomos e anjos. Aliás, foi exatamente nesse dia que Daniel decidiu enfrentá-lo, a despeito da admiração que sentia por ele. O professor lhe parecia sóbrio, quase um erudito do mundo espiritual, e não um guru ou coisa que o valha. Para Daniel, era um homem com bastante vivência, mas ele o via com se vê um acadêmico bem instruído, talvez. Alguém que leu muito, que aprendeu o bastante para despejar sobre os alunos uma série de histórias fantásticas, de escolas e filosofias orientais, de religiões desconhecidas, de círculos secretos, de magos e de feiticeiras, além de conhecer profundamente a ioga. Daniel achava tudo fascinante, até o dia em que perguntaram sobre anjos, e, após o professor discorrer sobre o assunto, alguém perguntou se ele já havia visto o seu anjo da guarda. Ele respondeu que sim, que já o vira e conversara com ele. Na hora, Daniel não se conteve, e deu uma gargalhada. O professor, que era um homem bastante bem-humorado, dessa vez ficou sério. Não pareceu exatamente ofendido, mas talvez entristecido com a falta de respeito de Daniel. Houve um desconforto entre os alunos, e alguns olharam para ele o censurando, como se ele tivesse cometido um grande sacrilégio. Talvez tenha sido isso, e não a atitude do professor, que o deixou irritado. Nesse momento Daniel começou a falar, dizendo que não queria desrespeitar ninguém, mas que simplesmente não

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acreditava e que queria ser respeitado nas suas opiniões, e que ele tinha o direito de não acreditar, que antes ser um cético do que ser crédulo como eles etc. Daniel nem se lembrava do que eles haviam falado, só lembrava que havia criado uma comoção. Durante alguns minutos, todos falaram, muitas vezes vários deles ao mesmo tempo, mas todos foram se calando aos poucos ao se darem conta de que o professor apenas assistia a tudo, sem dizer uma só palavra. Ao final, todos ficaram em silêncio, meio constrangidos e, Daniel bem se lembrava, ele também se sentira assim. Ele teria preferido que o professor tivesse discutido; ele sempre gostara de discussão, de embates. Mas o fato do professor ter permanecido calado o desconcertou. Após todos terem se calado, ele olhou para cada um dos alunos, em silêncio, e Daniel notou algo que sempre havia achado um tanto estranho: várias vezes o professor olhava para os olhos dos alunos e em seguida para um ponto imaginário acima de suas cabeças. Dessa vez ele analisou um pouco mais longamente as suas “auras” e isso pareceu ter acalmado os ânimos. Após alguns minutos, alguns alunos adormeceram, outros simplesmente fecharam os olhos, num procedimento muito comum nas aulas, uma espécie de relaxamento profundo induzido. Por fim, ele deteve os olhos em Daniel e em sua “aura”. Em seguida, perguntou se ele queria ver o seu anjo da guarda. Daniel teria gargalhado de novo, mas, estranhamente, naquele momento ele disse que sim, que gostaria de vê-lo para só então poder acreditar nele. Talvez a atitude digna do professor o tenha impulsionado a ter um pouco mais de sobriedade na sua resposta, ele não sabia. Geralmente, a atitude dele diante de tais crenças fantasiosas era de puro escárnio, mas, diante do professor, ele se sentiu forçado a dizer: se você me provar, eu acredito. Em seguida, o professor mandou que ele pensasse a respeito e, se Daniel o desejasse de fato, ele lhe diria como. Daniel foi para casa, pensou, e no dia seguinte falou que sim. Ele estava realmente querendo resolver essa questão. Ele admirava o professor, mas ao mesmo tempo ficava imaginando como ele agiria e o que diria quando Daniel chegasse para ele depois de algum tempo e dissesse: o anjo não apareceu. Daniel, quando refletiu sobre se queria

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mesmo ver o seu anjo da guarda, só conseguiu pensar nisso, no que o professor diria, em como ele reagiria. Em momento nenhum ele acreditou realmente que isso fosse possível. Bem, o fato é que o professor lhe disse que ele poderia ver o seu anjo da guarda, mas que deveria fazer uma espécie de “preparação” do seu espírito, antes que pudesse de fato encontrá-lo. O professor lhe explicou como era tal preparação, que consistia em algumas orações e mentalizações, que durariam algumas semanas. Depois disso, o professor disse, você se sentirá pronto, você saberá, terá uma intuição. Quando isso acontecer, continuou, pense num determinado local, dia e hora e esteja lá. O seu anjo da guarda há de aparecer. Daniel ficou um tanto frustrado, pois talvez imaginasse que o professor entraria por uma porta e, minutos depois, voltaria com o seu anjo da guarda e os apresentariam, este é o fulano, fiquem à vontade e tal. Mas não, ele teria que se preparar durante semanas, fazer orações e mentalizações e esperar o tal “sinal”. Ele até que conseguiu conter a sua decepção e disse que sim, que faria isso. Mas, após aquele incidente com o grupo, sentiu certa hostilidade dos outros alunos, do grupinho esotérico, e o seu saco se encheu. Resolveu abandonar o curso, poupar-se de mais aborrecimentos. Os exercícios de ioga já haviam o ajudado bastante, e ele poderia continuar a fazê-los em sua casa, sozinho, ouvindo música clássica ou jazz, e não aquela música instrumental medonha. Ao sair, o professor de ioga veio lhe perguntar do seu propósito de encontrar o seu anjo da guarda, se ele já havia começado a fazer as mentalizações e tudo o mais. Daniel se sentiu forçado a mentir, e disse que sim, que já havia começado o processo. No entanto, algo no olhar do professor dizia que ele sabia que Daniel estava mentindo, que aquilo havia sido uma bravata; ele parecia saber o que se passava na cabeça do outro. Daniel se sentiu bastante incomodado com aquilo, tanto que se viu inclinado a levar a coisa adiante, até mesmo por uma questão de dignidade. Afinal, na sua profissão, checar as fontes e os fatos com precisão era uma questão de princípios. E assim ele fez, absolutamente incrédulo, a sua iniciação no mundo espiritual. Ele fez as orações, as mentalizações, os exercícios. No fundo, ao fazê-los, sentia a mesma

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sensação de relaxamento que sentia durante as aulas de ioga, e por isso não foi tão difícil. Estranhamente, após um período, ele se sentiu pronto, aquela tal intuição lhe veio – não uma certeza absoluta; era algo muito sutil, muito tênue, mas que lhe dizia, de uma forma totalmente nova, que ele deveria ir em frente. Aí começou o seu espanto. Pela primeira vez em sua vida, Daniel viu as suas convicções levemente abaladas. Se antes ele tinha certeza absoluta do caráter fantasioso e imaginário de tais crenças, agora, pela primeira vez na vida, algo lhe dizia que talvez elas tivessem um lado verdadeiro. Ele deixou de lado as mentalizações diárias durante quase uma semana, como se fosse possível esquecê-las, como se aquela fase da sua vida fosse se apagar e ele pudesse voltar a ser quem ele sempre fora até então – um homem cético, confortável no meio das suas certezas. Mas aquela intuição não o abandonava; ele sabia, no íntimo, que deveria continuar, ir até o fim – agora era uma questão de honra. Então Daniel fez como o professor havia lhe instruído: imaginou um lugar, um dia e uma hora para o encontro. Isso já fazia uma semana. O dia era hoje, o local era o restaurante e a hora era a hora em que ele geralmente saía da redação, duas e meia da tarde. Ele foi, esperou, esperou e esperou. Já eram quase cinco horas da tarde quando saiu do restaurante e o anjo não havia aparecido. Ele entrou no carro e, de repente... Daniel finalmente encontrou o cartão em meio a papéis em uma gaveta de sua escrivaninha. Correu para o telefone, sôfrego, apenas para ouvir da secretária da escola que o professor de ioga não trabalhava mais lá e que eles não tinham como contatá-lo. Tudo parecia uma brincadeira, um joguete armado contra ele com o intuito de ridicularizá-lo. Mas, não, eles não o pegariam assim. Que a racionalidade me guie, concluiu Daniel. O que eu tive foi um delírio. Melhor esquecer essa história. Como sempre fazia ao chegar em casa, Daniel ligou o rádio e foi tomar um banho frio. Em seguida, ele leria um pouco ou ligaria o computador para checar e-mails, ou mesmo prepararia um uísque e relaxaria ouvindo música. Não, refletiu, talvez relaxar numa poltrona não seria uma boa idéia, ele acabaria pensando em Vivian de novo.

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Ele ia sentir saudades, ia querer telefonar e isso, sim, seria uma péssima ideia. Da última vez em que haviam conversado, ele havia sentido um nó na garganta, quase havia chorado e teve vontade de dizer “eu te amo” e todas essas coisas que se diz quando se está solitário. Você é capaz de dizer “eu te amo” até para a garota que lava os seus cabelos no salão, pensou ele. Para a recepcionista do hotel que sorri para você, para a frentista do posto de gasolina. “Eu te amo, eu vou tirar você deste lugar!” Meu Deus, é preciso ter cuidado. O amor é um golpe baixo da natureza que o empurra para a primeira fêmea sinuosa e lhe diz: “Vá, acasale! Procrie, crie uma família! A raça humana precisa ser perpetuada!” Você vai, acasala, e no dia seguinte o desejo de procriar parece uma piada de mau gosto; criar uma família, então, parece um castigo. Não, aí você ouve a voz da natureza de novo, a sua voz interior, o seu instinto de macho dizendo: “Fuja, cuidar da cria é uma roubada, isso é trabalho para a fêmea. Vá procurar os teus, brigar, brincar, copular com outras fêmeas, conquistar outros territórios!” E lá vai você de novo, armado de desculpas e evasivas, fugindo como um ladrão. E você encontra o seu lar e o seu império intactos – a sensação é de vitória, você se aventurou mais uma vez e se safou. Você pode abrir o seu livro onde constam os nomes das suas conquistas e adicionar mais um à lista, acompanhado da devida nota e de observações gerais. Mas, não. Absolutamente. Quem vive assim durante muito tempo? Na verdade, ele admitiu, já um tanto triste, o que ele gostaria era ter alguém com quem pudesse conversar, alguém que, ao chegar em casa, lhe perguntasse: “Como foi o seu dia?” Ele então diria: “Ah, foi bem corrido, escrevi um artigo sobre o prêmio Nobel de literatura, preparei a pauta para a revista mensal, almocei e dei carona para um anjo. E você?” O que ele desejava mesmo era estar com Vivian de novo. Ele queria chegar em casa, beijá-la, sentir o seu cheiro, se jogar na poltrona com um copo de uísque e vê-la pintando os seus quadros. Ele era tão feliz, tudo parecia um comercial de bebida sofisticada – ele, jornalista e escritor, trinta e poucos anos, boa aparência, mas não muito (uma amiga lhe disse que os homens bonitos se tornam enjoativos muito rapidamente), jogado no sofá do

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amplo apartamento (alugado, mas isso não vem ao caso), descalço, intenso, sedutor. Ela? Ela sim, muito bonita, esguia (talvez um pouquinho mais de bunda ajudasse), também trinta e poucos anos, artista plástica, a remexer em suas tintas e vez ou outra olhar para ele e dar um sorriso malicioso, porém elegante. Um jazz ao fundo, tudo perfeito. Mas o comercial de bebida durou pouco. Logo depois veio o comercial do xarope contra a tosse, o comercial da loja de eletrodomésticos baratos, o comercial do mata-pulgas, isso fora os antidepressivos que ela tomava. O romantismo se esvaiu, os maus tempos engoliram os bons tempos com uma voracidade cruel, e o seu desejo de fugir dali era tão grande quanto a vontade de ficar com ela havia sido no início. Ele não entendeu nada. Mas por que essa história de casamento de novo? Daniel foi ao banheiro, abriu o chuveiro, tirou a roupa e prometeu a si mesmo não pensar mais naquilo. Afinal, pensou, ele havia visto e conversado com um anjo! O que são essas questõezinhas conjugais comparadas a isso? Ele se olhou no espelho e se sentiu estranho. Esse aí sou eu, pensou. Eu existo. Porque penso. E eu vi um anjo. Ele passou os dedos longos e finos pelo rosto, pelos olhos e pela boca, como que se certificando de que aquele ser ali, à sua frente, que lhe dizia, dentro de sua cabeça, que havia visto um anjo, fosse real. Nesse momento, ele se lembrou de uma antiga música do Pink Floyd que dizia: “Tem alguém dentro da minha cabeça, mas não sou eu”. Talvez fosse exatamente assim que ele se sentisse. Dentro dele havia um ser, não, melhor: havia vários seres, e cada qual tinha opiniões e valores diferentes, cada qual tinha o seu nível de inteligência e estupidez, de força e de fraqueza, e todos tentavam habitar o mesmo lugar, criando uma imensa confusão. Havia o homem apaixonado, que queria se casar, ter filhos e uma vida estável e feliz ao lado da família; havia um sedutor incorrigível que se tornava mais e mais um misógino; havia um homem quase culto, talvez mais bem-informado do que culto, que se considerava justo e decente; havia outro, bem pior, que lá no fundo desprezava toda a Humanidade e possuía um complexo de superioridade patológico; havia o cético e, agora, para

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tornar a convivência naquele pequeno espaço ainda mais insuportável, havia um crédulo que imaginava ter visto um anjo. Daniel entrou debaixo do chuveiro, de olhos fechados, e tentou esquecer. Esquecer, esquecer, esquecer. Quando você quer esquecer, aí é que você se lembra, pensou. Claro, para se esquecer de algo, você precisa se lembrar de esquecê-lo. E aí você continua se lembrando. Ele recordou das aulas de ioga, quando o professor dizia: “Relaxem, esvaziem o pensamento, não pensem em nada”. Mas como não pensar em nada? Ao dar esse comando para o cérebro, você já está pensando em alguma coisa, disse ao professor certa vez. O professor riu e respondeu: “Como tudo o mais, esvaziar o pensamento é uma técnica, um aprendizado, e isso exige tempo. O segredo no início é relaxar e ignorar a ansiedade. Se você tentar não pensar em nada e não conseguir, não se sinta frustrado e ansioso. Relaxe e deixe estar, continue mandando a ordem ao cérebro sem se preocupar com o resultado. Aos poucos, você vai conseguindo”. Daniel, na verdade, nunca havia conseguido “esvaziar” o cérebro totalmente; ele apenas atingia certo grau de relaxamento que lhe permitia visualizar algo mais claramente, e aí ele se imaginava em um lugar calmo e silencioso (geralmente se imaginava boiando no mar), como se estivesse sonhando. Agora, no chuveiro, talvez fosse uma boa hora para pôr isso em prática. Ele se concentrou no barulho da água caindo sobre a sua cabeça e tentou se imaginar numa praia e em seguida ele se viu dentro do seu carro, e viu o rosto do anjo. Não adianta, ele pensou: é verdade, é real – eu vi. Ele fechou o registro do chuveiro, pegou uma toalha e começou a se enxugar. Lembrou do que o anjo havia dito sobre refletir e marcar um novo encontro. Não há nada sobre o que refletir, pensou, eu quero vê-lo de novo, eu preciso vê-lo de novo se quiser manter a minha sanidade. Ele baixou a cabeça, se concentrou e falou baixinho, como se quisesse ter a certeza de que seria ouvido: “Amanhã. Amanhã, às duas horas, na escada da Nossa Senhora do Brasil”.

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Capítulo 3

Hod O céu estava claro e fazia calor como no dia anterior quando Daniel saiu da redação do jornal. Era uma e meia da tarde, e ele não estava com fome. Estava ansioso, mal havia conseguido trabalhar; só ficara pensando que, dentro de algumas horas, veria novamente o seu anjo. Lá embaixo, na garagem do edifício em que trabalhava, abriu a porta do carro e percebeu-se olhando para o banco traseiro, certificando-se de que não havia ninguém ali. Durante todo o trajeto até a igreja, ele olhava pelo retrovisor, com pequenos intervalos, esperando talvez que o seu visitante resolvesse “aparecer” de repente no banco de trás, e se assim fosse, Daniel queria ver o momento exato de tal materialização, com uma curiosidade quase científica. Para a sua decepção, ele não apareceu no interior do carro, mas saiu caminhando de dentro da igreja, tão logo Daniel estacionou o carro. Para sua surpresa, a visão do outro lhe pareceu algo completamente natural, como se estivesse revendo um conhecido. “Você está hospedado aí?”, disse Daniel num gracejo, surpreso com sua própria calma. O outro sorriu, e nesse momento, Daniel percebeu que o sentimento de familiaridade tornara-se mais forte. “Como vai?”, ele respondeu, estendendo-lhe pelo vidro do carro uma mão pálida e delicada, quase como a mão de uma mulher. “Não, eu estava apenas observando. Bela igreja colonial. Gostei muito do mural de azulejos!” Igreja colonial? Então ele não estava a conversar com Deus em Sua própria casa, e sim analisando o estilo arquitetônico da igreja, tal qual um turista metido a besta? Daniel se lembrou que, no dia anterior, o outro havia “ouvido” os seus pensamentos. Ato contínuo, sorriu nervosamente e teve vontade de pedir desculpas, mas se conteve. Percebeu que o outro segurava um pequeno saco de papel pardo.

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“O que você tem aí?” “Ameixas pretas! Você quer?”, e retirou do saco uma enorme ameixa de um roxo escuro reluzente.

“Não, obrigado. Onde você arrumou isso?” “No Mercado Municipal. Ah, que festa para os olhos e para o olfato! Eu experimentei uns cinco tipos diferentes de queijo.” Daniel abriu a porta do carro, e o anjo entrou e se sentou, dessa vez no banco da frente. Ele usava um costume preto bastante simples, porém elegante, sem gravata (talvez porque seria esdrúxulo demais um anjo de gravata, pensou Daniel). Quem o visse talvez até pensasse que se tratava de um modelo profissional, tal sua elegância. Mas, preto? Não rezam todas as cartilhas esotéricas que o branco e o azul são as cores celestiais e o preto é uma cor negativa? Daniel esperou que ambos se sentassem no banco para fazer a sua primeira pergunta do dia: “Por que você está vestido de preto? Pensei que...” “Isso é bobagem”, interrompeu o outro. “Todas as cores são boas, inclusive o preto. Além do mais, sei que quem se veste de branco aqui são os médicos e os pais-de-santo.” Daniel riu, ao que o outro emendou: “E o preto é mais elegante. Este é um dos melhores, não?”, disse, ao abrir o paletó e mostrar uma etiqueta interna onde se lia, com todas as letras: GIORGIO ARMANI. Meu Deus, pensou Daniel, eu enlouqueci. Encontrei um anjo que se veste com Armani. O que mais vai acontecer? Ele vai me convidar para um happy hour num bar da moda? Ou vai me dizer: “Espere aí, hoje vamos no meu carro”, e vai aparecer com seu Porsche? “Você comprou isso?”, inquiriu Daniel, sem se conter, a despeito do absurdo da pergunta. “Não, não comprei”, respondeu o outro, divertindo-se com a questão. “Mas também não roubei. Há certas coisas que você não pode compreender ainda, mas eu tentarei lhe explicar aos poucos. Digamos que você vê o que quer ver, só isso. Além do mais, é

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apenas um pedaço de tecido cortado e costurado como uma vestimenta. Não é?” “Sim, claro. Afinal, o Papa usa sapatos Prada”, disse Daniel, num gracejo. Ele teve vontade de se estender no assunto, apesar da admoestação do outro, mas se conteve. Na verdade, estava confuso e ansioso, pois havia tantas perguntas que ele mal conseguia organizar os seus pensamentos; ele sentia certa ansiedade e ao mesmo tempo um certo receio – como se suas dúvidas lhe fossem vitais e, na iminência de perdê-las, sentisse uma certa vertigem. Somos mesmo possessivos, pensou ele. Nem de nossas dúvidas queremos abrir mão. Talvez por isso mesmo ele jamais se dava por convencido. Ele ficava sabendo, mas ao mesmo tempo conservava a sua dúvida. Era como se ela fosse a sua individualidade; se ele a perdesse, seria possuído pelas idéias do outro, se tornaria o outro e deixaria de ser ele mesmo. Mas como só agora se dava conta de tal “vertigem do conhecimento”? Ora, não passamos a vida inteira aprendendo? Não, talvez não. Passamos a vida inteira filtrando as coisas que vemos e experimentamos. E vamos filtrando de acordo com os nossos sentimentos. O que nos dá prazer, nós guardamos no compartimento onde se lê “bom”. O que nos causa dor, arquivamos na gaveta “ruim”. Isso soa freudiano demais, pensou Daniel, e ele odiava qualquer coisa que soasse freudiana – mais por causa dos verdadeiros idiotas que ele conhecia e que faziam análise do que por qualquer outra coisa. O maior gênio da virada do século XX havia criado também o seu monstro mais monumental. Mas talvez essa fosse a verdade, freudiana ou não. Por alguma razão, ele havia aprendido que seu ceticismo era bom e acreditar em algo intangível era ruim. Era como se o mundo fosse apenas o que coubesse dentro da sua racionalidade. O que está para além da nossa vida aqui e agora, e para além das mais recentes descobertas da Ciência sobre o Universo, era melhor nem se atrever. O materialismo lhe parecia a única forma sóbria de encarar o mundo – além dele tudo parecia um mero devaneio. Por isso ele sentia um grande desconforto agora, quando sabia que estava preste a se desprender de si mesmo, a mergulhar num vazio, num buraco negro onde as suas convicções

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mais íntimas seriam abaladas talvez irremediavelmente. Ele olhou para o lado e viu que o anjo o fitava, sereno, como se soubesse de sua aflição naquele momento. “Eu sei o que sente”, disse o outro, pela primeira vez usando um tom grave para falar. “Sei que você tem milhares de dúvidas e mal sabe por onde começar. Sei que não é fácil se ver diante de algo em que mal se crê. Você é um homem inteligente, Daniel, mas ainda não é sábio. E sabedoria não tem nada a ver com inteligência. Há pessoas extremamente simplórias que são sábias. Você se acha pragmático, mas não é. Um sábio leva uma vida plena e feliz, apesar das vicissitudes da vida. Um homem inteligente pode viver num inferno, apesar da sua inteligência. Há os belos versos de Lao-Tsé no Tao Te Ching: ‘Quem conhece os outros é inteligente; quem conhece a si mesmo é iluminado. Quem vence os outros é forte; quem vence a si mesmo é invencível’. Você crê na Ciência dos homens, mas desdenha o que há além dela.” “O que há além dela é intangível”, retrucou Daniel. “Se você for um cego espiritual. Veja, podemos fazer uma analogia com a música. A música, em sua essência, é matemática pura, tanto que os cientistas recentemente recorreram a ela para criar a Teoria das Cordas e explicar a miríade de partículas subatômicas que descobriram. A nota lá possui uma vibração de 440 Hz; a escala cromática possui 12 notas musicais – sete notas puras e cinco semitons. Os acordes são formados por intervalos exatos entre essas notas – senão temos a dissonância, o caos. Escalas musicais são puras progressões geométricas. No entanto, para que a música aconteça, é necessário o quê? Poesia, lirismo, subjetividade. Não fosse assim, poderíamos inserir notas musicais num computador e pronto!, teríamos música sublime. O mesmo se aplica à sua Ciência – ela é o fundamento de todas as coisas: a Matemática, a Física, a Biologia, a Química explicam o funcionamento do Universo; mas a Ciência não nos basta, porque não há nada mais incomensurável do que a alma humana.”

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Nesse momento, o anjo se endireitou no banco do carro e colocou o cinto de segurança. “Ligue o carro, vamos passear. Talvez seja melhor eu guiar a nossa conversa.” Daniel ligou o carro, mas não saiu do lugar. Ele se sentia pouco à vontade, e não sabia o porquê. Sentia apenas que precisava explicar ao outro quem ele era, como se fosse necessário analisar as bases do contrato e do entendimento entre eles antes de qualquer coisa. Era como se ele quisesse dizer para o outro: você é um anjo, mas eu sou um cético, ou um “cego espiritual” como você colocou; por mais que eu esteja vendo você aqui, em carne e osso, não sei se acredito em você, e não espere me convencer de nada. Por fim, apenas disse: “Eu não tenho fé.” Tais palavras soaram – de forma que Daniel não havia previsto – mais como um lamento do que como uma asserção. O outro se voltou para ele no banco do carro, olhou dentro dos seus olhos e disse: “Isso não importa”. A sua expressão era leve, parecia que iria se desfazer num sorriso largo, mas ele parecia se conter. Ele se endireitou novamente no banco e apontou para a frente, sem dizer uma palavra. Daniel deu partida, sem saber exatamente aonde iriam. “Não se preocupe, não sou nenhum Paulo!”, disse após algum tempo o anjo, como num gracejo. “Paulo?” “Paulo de Tarso, aquele que perseguia cristãos e depois saiu em turnê mundial pregando a palavra de Jesus. Aliás, prefiro Yeshua, seu nome em aramaico, que é bem mais bonito. Paulo dizia que a única coisa que importava era a fé. Nada mais. Eu até entendo, era preciso encontrar um ponto em comum com aquela gente toda. Mas eu não penso assim.” “Então a fé não é tão importante assim? Não é a principal condição para entrar no reino dos céus?” O outro sorriu. “A fé é uma abstração. É cruel exigir tal coisa como condição para a salvação”, ele enfatizou a palavra de uma forma quase irônica. “Ter fé é algo totalmente acidental, é uma predisposição mental, quase sempre inata. É como dizer: para entrar

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no reino dos céus é preciso ter ouvido musical. É ridículo. Por isso não gostei de ver Paulo entrando nas cidades gregas e dizendo: é preciso ter fé, é preciso amar Jesus de Nazaré. Eu entendo, Yeshua é mesmo um profeta magnífico, mensagem globalizante e tal. A mesma coisa está sendo feita hoje com o seu mundo – os novos profetas chegam com a Palavra, e a condição é uma só: abram os seus mercados, o mundo será um só. Pois eu lhe digo: a humildade lhe será muito mais útil do que a fé. Voltarei a isso depois.” O trânsito ainda não estava pesado àquela hora do dia, e Daniel seguiu subindo pela Rua Colômbia, com sua profusão de lojas de carros importados e mansões, seguindo em frente pela Rua Augusta, onde pedestres entravam e saíam das pequenas lojas e cafés. O outro observava a tudo, atento, sem dizer uma palavra, mas visivelmente excitado. Quando o carro atingia maior velocidade, deixava a mão direita espalmada do lado de fora da janela, sentindo o vento bater contra ela. Ao chegarem na avenida Paulista, seu excitamento atingiu o ápice: “Pare, pare! Vamos caminhar!”, disse, quase como uma criança à entrada de um parque de diversões. “Mas eu não posso parar aqui. Preciso deixar o carro num estacionamento.” “Faça isso, então.” Daniel cruzou a Avenida Paulista e entrou no primeiro estacionamento que encontrou, logo após o cruzamento. Os dois desceram do carro e subiram a Rua Augusta no sentido da avenida. O anjo olhava para cima, maravilhado, tentando enxergar o topo dos edifícios altíssimos. “Você tem razão, Daniel. Esta cidade é mesmo caótica. Mas, na entranha do monstro, há suas belezas.” “Isso porque você está na área nobre da cidade. Se você quiser, eu lhe mostro o inferno.” “Ah, nem precisa, meu caro Virgílio. Eu o conheço. Este e muitos outros. Ah! Uma estação de metrô! É para lá que vamos.” “Você não disse que iríamos caminhar?”

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“Sim, mas eu quero lhe mostrar uma coisa. Vamos”, disse o outro, e apressou ainda mais o passo. Dentro da estação, Daniel o viu, um pouco adiante, parar diante de um dos guichês da bilheteria. Por um momento, teve o ímpeto de perguntar se ele realmente precisaria comprar um bilhete, mas se conteve. Como o outro não fazia menção de enfiar a mão no bolso, Daniel foi ao guichê e comprou dois bilhetes. Ao entregar um deles ao outro, olhou para ele, que devolveu o olhar de forma matreira. “Aqui é o melhor laboratório, o melhor ponto de observação”, disse o anjo, de forma divertidamente presunçosa. “Por quê?” “Pessoas em trânsito! O que há entre o destino e a chegada, entre um ponto e outro? O vazio! Estar ocupado é o melhor disfarce que vocês, humanos, têm. É uma máscara, que oculta todos os seus medos e as suas inseguranças. Quando se está ocupado, a fazer alguma coisa ‘importantíssima’, a trabalhar, a ganhar o tão valioso... dinheiro...” Ele retirou do bolso uma nota e, com habilidade de mágico, abriu-a com uma só mão e segurou-a entre os dedos, para logo depois fazê-la sumir de novo. “Tudo é desculpável, tudo tem uma explicação e são todos dignos. Quando estão numa viagem destas, no trem, no carro, no avião, não podem se esconder atrás do ‘fazer’, estão soltos no vazio. Claro, alguns lançam mão de subterfúgios, como ler ou ouvir música de olhos fechados. No ônibus, há sempre a janela, a paisagem diária vista com simulado interesse; mas no metrô não há escapatória. É preciso olhar para o outro. Não olhando para outro, resta o teto ou o chão, e o sentimento do ridículo é ainda maior. Há ainda aqueles que observam os outros através do reflexo na janela, dissimuladamente. Quando são descobertos pelo objeto observado, quando os olhos se encontram furtivamente no reflexo da janela, é como se fossem descobertos a cometer um crime, e não raro descem na próxima estação, independentemente do destino. E por quê?” “Por quê?”, repetiu Daniel quase automaticamente, embora lá no fundo desconfiasse que soubesse a resposta.

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“Inter omnes sensus viciniores anime existunt.” “O que é isso?” “Latim.” “Deu pra perceber. O que significa?” “‘De todos os sentidos, os olhos são os mais próximos da alma’. Eles refletem a atividade da mente; assim, confusão, medo ou alegria são visíveis nos olhos. Por isso é muito difícil encarar uma pessoa adulta nos olhos, seja ela quem for: olhar nos olhos é se abrir, é se entregar. O olhar carrega sempre uma mensagem, e essa mensagem é indissimulável. Tente dizer ‘eu te amo’ para uma mulher sem senti-lo, e ela verá em seus olhos que você está mentindo. Os seres humanos menos evoluídos também compreendem menos a linguagem do olhar, porque aprenderam a ‘ler’ apenas o olhar negativo, de confronto, crítica, desconfiança; ou se sentem assim na presença de estranhos. Entre os animais selvagens, essa mensagem é quase sempre de confronto. Se você se deparar com um leão no meio da selva africana, ou mesmo com um cão feroz na cidade, e fitá-lo nos olhos, ele só terá duas reações: ou ele baixará os olhos e se retirará, vencido, ou ele o atacará impiedosamente. Fitar os olhos de uma criança é fácil, você sabe que não será confrontado, criticado; você sabe que ela não desconfiará de você e, por outro lado, você raramente tem pela criança um sentimento que não o de ternura. Quanto ao silêncio, bem, o vazio, a contemplação são como aberrações hoje em dia. Tente ficar em silêncio durante um longo período perto de alguém conhecido. Vão achar que você está com algum problema sério. Vão comentar, olhando para os lados: ‘Ele anda tão esquisito, tão calado!’ O silêncio, hoje, é como um luxo a que poucos se permitem, porque o temem. Temem ouvir os próprios pensamentos, fitar o próprio vazio – porque a sua sociedade condena o vazio. Outras sociedades, outras religiões o valorizam e veneram. O ‘vazio’ não é negativo, muito pelo contrário: ‘Esvazia-te, e permanecerás repleto’. É no vazio que se encontra a sua verdadeira essência, e o silêncio é o som do universo. Não a música instrumental.”

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A estação estava cheia, pessoas andavam para lá e para cá, na procissão diária de rostos distraídos, alheios ou preocupados. O homem pálido e elegantemente vestido em seu costume preto não chamava a atenção – era apenas mais um executivo a caminho de casa após o trabalho. Os dois entraram num vagão e, naturalmente, não havia nenhum assento vazio. Ficaram de pé, no corredor entre as duas fileiras de cadeiras viradas umas para as outras. Daniel notou que, no assento bem à frente deles, havia uma mulher segurando no colo uma criança de poucos meses de vida. A criança olhava fixamente para o anjo, que retribuía o olhar com um leve sorriso. Por fim, a criança abriu um largo sorriso e tentou balbuciar algumas palavras. O outro olhou para Daniel, que ouviu dentro de sua cabeça: “Desses é o reino de Deus.” “Como?” “Yeshua:‘Em verdade vos digo: quem não receber o reino de Deus como uma criança de maneira nenhuma entrará nele’.” Daniel ficou atônito. Ele estava ouvindo claramente as palavras do outro, mas este não movia os lábios, apenas olhava para ele. “Você...?” O outro acenou com a cabeça, e Daniel entendeu que deveria apenas ouvir. O espanto que sentia aos poucos foi dando lugar a uma espécie de transe, em que a voz do outro ressonava dentro de sua cabeça, enquanto os seus olhos eram atraídos para as pessoas que entravam e saíam do vagão, que se levantavam e se sentavam, e a impressão que Daniel tinha era de que o tempo e o espaço haviam se transmutado, ou desaparecido, pois via pessoas que não estavam no seu campo de visão, que percorria o vagão como uma steady cam. “Vê esses rostos? O ser humano é um ser trágico. Você entende isso? O conceito da tragédia vocês mesmos criaram, na Grécia antiga. Ele é trágico porque o seu fim já está determinado: envelhecer e morrer. A mão do destino é implacável, é a única certeza que vocês têm em vida. Como ser feliz assim? Vê a maioria dessas pessoas? São melancólicas, o instante de silêncio é sempre uma espécie de mergulho no vazio – trazer essa consciência no íntimo para muitos é

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insuportável. Para outros, é algo do qual se deve fugir, usando quaisquer artifícios disponíveis. Porém, há os que simplesmente não trazem essa cicatriz na alma: os puros, os ingênuos, os crédulos. É a ironia de toda essa história. Os mais simplórios no fim são os mais sábios, são os que conseguem ludibriar melhor essa existência que, cá entre nós, é mesmo pavorosa. E eles o conseguem através de um ‘dispositivo metafísico’ muito simples: através da fé na vida futura, na clemência divina, na Providência, anula-se essa consciência do fim, ou substitui-se essa consciência do fim pela consciência do além-vida, da redenção, da perenidade. Assim, aniquilam esse sentimento do trágico, esse temor silencioso que acompanha a maioria dos homens, ainda mais os céticos. Esses, por sua arrogância, acabam reduzindo-se a uma bomba-relógio. Quem pode ser feliz assim? Lembra daquele famoso poeta que você tanto gosta, que passou a vida dizendo-se ateísta e, no fim da vida, cego e no leito de morte, passou a rezar o pai-nosso segurando a mão da esposa? Portanto, essa é a graça da pureza, por isso ‘quem não receber o reino de Deus como uma criança de maneira nenhuma entrará nele’. Ora, a vida que vocês criaram para si mesmos é uma confusão sem fim. ‘Sarvan duhkham, sarvan anityan’, disse Buda. ‘Tudo é dor, tudo é efêmero’. Fazer o que, então? Desistir de viver?” O outro olhou para Daniel, como se esperasse uma resposta. Daniel permaneceu em seu transe, nenhuma palavra sairia de sua boca, mesmo que ele tentasse. “Não! Olhar para cima! Buda se referia a esta vida, a vida terrena. Esta é efêmera, esta é uma dor sem fim. A resposta não está aqui. A resposta está lá em cima.” O outro levantou o olhar, como se pedindo que Daniel fizesse o mesmo, e este, ao fazê-lo, não viu o teto do vagão, como era de se esperar, mas viu o céu, um céu com o azul mais magnífico que ele já vira em toda a vida. “E aqui dentro” - agora seu olhar foi atraído para o peito do outro, e a sensação que Daniel teve foi ainda mais estranha: parecia que quase todos os seus sentidos, sua visão, seu olfato, sua audição, seu tato haviam desaparecido para dar lugar a outro, totalmente novo, que percebia todas as informações externas como uma só coisa, e mais, percebia também a essência das coisas, a sua própria, a do anjo, a das pessoas, de uma forma indescritível, nova, fantástica...

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Daniel subiu na pequena banqueta que havia no banheiro, próximo à pia, e olhou-se no espelho. Estava elegante, vestia uma camisa branca de manga comprida, e no peito havia uma espécie de drapejado. A calça era roxa, de veludo bordô. Calça comprida, pois sim, calça de homem. A mesma roupa que usara no casamento da tia Lúcia, ele se lembrava. Molhou o dedo na ponta da língua e ajeitou uma mecha que insistia em pender da sua testa, desvirtuando sua impecável aparência. Não sabia exatamente por que seu pai o vestira daquele jeito naquela manhã, talvez fosse uma ocasião especial. Só estranhara ver sua irmã maior chorando na sala – ele havia perguntado por que ela estava chorando, mas ela não disse nada, apenas olhou para ele, com um olhar que parecia fuzilá-lo. Ao descer da banqueta, notou que seu pai o observava na porta do banheiro, mas dessa vez ele não fez nenhum gracejo. Tinha os olhos tristes, olhava para ele como se quisesse chorar. Daniel não gostou de ver o pai daquele jeito. Foi até ele e lhe deu um abraço, até porque gostava do cheiro do pai, que era meio adocicado, como os cigarros que ele às vezes fumava. E o pai lhe disse: Daniel, eu quero falar com você, meu filho – enquanto se agachava, olhando bem dentro dos seus olhos. Daniel? “Daniel?” Daniel abriu os olhos, e viu que estava sentado dentro de seu carro, estacionado diante da Nossa Senhora do Brasil. A noite já havia caído, mas ele estava virado justamente para um holofote que iluminava a lateral da igreja, e os fechou novamente. “Daniel, estamos de volta. Pode abrir os olhos”, disse o outro, que o fitava do banco ao lado. Ao abrir os olhos pela segunda vez, estava mirando os olhos profundamente azuis daquele homem pálido. Parecia que acabara de acordar após ter dormido doze horas seguidas, com uma forte ressaca. “O que foi? Eu dormi no metrô?”

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“Mais ou menos. Não se preocupe. Respire fundo, está tudo bem.” O outro tinha o semblante sóbrio, um leve sorriso curvava seus lábios, e isso foi o bastante para reconfortar Daniel. “Por hoje chega, já conversamos bastante.” “Amanhã...?” “Amanhã é sábado. Façamos o seguinte: guardemos o sábado para meditar. No domingo, nos encontraremos aqui, pela manhã, na missa. Aproveite para descansar.” Daniel já havia recobrado os sentidos, embora ainda estivesse um pouco atordoado. Não conseguiu dizer nada, nem sequer se esforçou. Apenas observou o outro subir novamente a escada da igreja e sumir por sua porta, de novo sem olhar para trás.

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Capítulo 4

Netzach Vivian. Vi-vi-an. Daniel abriu os olhos, deitado em sua cama, e saboreou dolorosamente essas três sílabas, tal qual Humbert Humbert suspirara por sua Lolita. Ficou assim durante um longo tempo, entre o sono e a vigília, como se tivesse em transe. Não sabia por que o seu primeiro pensamento naquela manhã havia sido o nome dela; não havia sonhado com ela, pelo que lembrava. Havia sonhado com Vivian muitas noites, e não raro acordava no meio do sonho, atordoado, sentindo uma espécie de vertigem – mas naquela noite isso não havia acontecido. Na verdade, ele se lembrava de muito pouco do dia anterior. Certamente tinha consciência de que estivera com o seu anjo, de que eles haviam entrado no metrô, mas não muito mais do que isso. Na verdade, sentia-se vazio, faminto, sedento. Procurou pelo celular no meio das roupas que estavam jogadas ao lado da cama e olhou no visor:

DANIEL JUL 28. [Sáb] 11:44AM

Voltou à posição em que havia acordado, a fitar o teto. Vivian. Ele sabia, no íntimo, do que tinha fome e sede, sabia por que se sentia vazio. Levantou-se da cama, num ímpeto que já havia se tornado familiar: quando tais pensamentos o assaltavam, ele fazia alguma coisa, mudava de posição, ia ao banheiro, lavava o rosto, colocava uma música – era como se o mínimo movimento fosse uma intenção de luta; ele instintivamente sabia que ficar imóvel era se deixar dominar por aqueles pensamentos; era preciso fugir deles, distrair-se, tentar esquecer. No banheiro, olhou-se no espelho e viu um homem emaciado, de olhos vítreos, cabelo ensebado, barba por fazer. Sentiu por si mesmo algo muito próximo da piedade, mas não

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admitiu esse sentimento; jamais havia sentido piedade por ninguém, muito menos por si próprio. Desprezava a autocomiseração acima de tudo; era um homem que venerava a força de uma forma quase fascista. Força moral, de vontade. Pelo menos o que ele considerava a força moral. Sempre em frente, nada de arrependimentos ou fraquezas cristãs. Nada de frescuras – a vida é aço e vidro e metal e concreto... E nada de analisar tudo e todos exaustivamente, nada de verbalizar cada mínimo esboço de pensamento, nada de escarafunchar os sentimentos, dividi-los em compartimentos, cada qual à luz de uma teoria psicologista, tendenciosa e preguiçosa, nada de... Por isso odiava pessoas que faziam análise, por isso havia brigado com praticamente todas as suas namoradas (que, para sua desgraça, faziam terapia), por isso havia caído em abismos inimagináveis com Vivian. Ele quase havia perdido a sanidade. O pior, admitiu, é que muitas coisas que ela havia lhe dito eram verdadeiras. As lições mais dolorosas são assim. Você primeiro as rechaça, depois ataca a pessoa que tentou lhe ensinar, depois se ressente da sua atitude e, passados dias, meses ou até anos você percebe que a pessoa tinha razão e que você já assimilou totalmente o que ela lhe ensinou. Só que você a odeia por isso. Você a odeia porque teve que admitir a sua própria inferioridade; você a odeia porque ela escancarou as suas fraquezas, expôs os seus medos, e o fez de forma impiedosa. As mulheres têm um talento especial para ser cruéis, pensou. Essas teorias psicanalíticas são perigosas demais para ser deixadas à mão das mulheres – elas podem usá-las num momento de fúria hormonal para torturar os homens, destruí-los. Os muçulmanos têm razão, pensou Daniel. Melhor subjugá-las, cobrir-lhes o rosto, tapar-lhes a boca. Isso também é culpa de Jesus Cristo. Os judeus ortodoxos também sabiam controlar suas mulheres. Aí veio Jesus com essa coisa de que todos são iguais, judeus e não-judeus, homens e mulheres etc. Cruz credo. Vivian. Daniel abriu a torneira e jogou água no rosto. A água estava fria, a sensação foi boa. Mas o nome dela, o rosto dela, a lembrança dela agarravam-se a ele como uma sanguessuga. Lembrou da primeira vez em que a vira, na redação, cinco anos antes. Ela era

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estagiária no departamento de arte. Estudava Artes Plásticas, tinha 27 anos na época, a mesma idade que ele. Pisciana. Ele, virginiano. Gostava de cinema, como ele. E de literatura. Só não batia o gosto musical, mas ninguém é perfeito. Ele logo descobriu esses detalhes sobre ela, não sem alguma investigação, pois na hora de se aproximar de uma mulher ele usava expedientes profissionais. Sabia a hora certa de falar, como falar; sabia dissimular certo desinteresse aliado a atenção e cortesia nas doses certas. Sabia despejar sua pseudo-erudição sem parecer presunçoso; sabia mostrar-se humilde e solícito sem parecer inferior. Ele se considerava um mestre na rapina, todo artifícios, um projétil em pleno percurso – nada poderia desviá-lo, nada poderia detê-lo – e nessas horas ele se sentia vivo, sentia o sangue nas veias, achava-se completo, feliz. Mas algo parecia não estar dando certo com ela, ele lembrou. Vivian alternava momentos em que era afável, acolhedora, divertida, com momentos de absoluta indiferença a ele. Ela parecia ter duas personalidades, e aquilo o desnorteou. Quando estava bem, ela o aceitava e se envolvia com seus galanteios, era sedutora, encostava-se nele enquanto conversavam (Daniel sabia ler bem a linguagem corporal). Quando estava alheia, nada que ele pudesse fazer era capaz de chamar sua atenção. Ela se recolhia à sua mesa, fechava a cara, emudecia. Às vezes até faltava no trabalho. Depois de semanas, Daniel conseguiu convencê-la a sair à noite. O que poderia ter sido uma noite prazerosa acabou tornando-se uma sessão de terapia. Ela lhe contou que sofria de transtorno bipolar e que tomava uma batelada de remédios antidepressivos, além de frequentar um psiquiatra. É uma coisa química, ela lhe disse, é uma doença, não posso controlar. Ele sentiu por ela uma compaixão genuína, dessa vez era doença mesmo, coisa pesada, pensou, não uma bonequinha entediada e confusa que vai falar de seus botões para psicólogos de quinta categoria. Mas a noite havia ficado nisso; Vivian parecia estar em baixa, estava deprimida, e Daniel não sentiu nenhuma abertura para fazer qualquer avanço. Os dias se passaram, e o interesse dele só aumentava. Chegou ao ponto de estremecer ao vê-la chegar na redação; ficava feliz se ela lhe dava atenção, e ficava triste se ela o

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ignorava. Não sabia como agir, pela primeira vez seus métodos de sedução não surtiram nenhum efeito – o projétil havia errado o alvo, e agora zunia no vazio. Foi quando ele concebeu o seu plano mais maquiavélico, mais doentio. De certa forma, não havia sido sua intenção primeira, mas a ocasião fez dele um canalha não muito diferente de um molestador de menores. Ele, certo dia, resolveu pesquisar na Internet sobre a doença da Vivian, a fim de entendê-la melhor, ajudá-la talvez, ou, quem sabe, lá no fundo, de checar se o que ela havia lhe dito era mesmo verdade, se os sintomas que ela havia descrito eram aqueles mesmos. Leu, então, que o transtorno bipolar caracterizava-se por picos de mania, ou excitação, e depressão. E, no site médico, estavam listados os sintomas desses picos. E foi lá que Daniel viu, com todas as letras, entre os sintomas de mania: “aumento do apetite sexual”. Aquilo ressonou em sua cabeça como um gongo. Então era isso, estava traçada a estratégia de sedução: ele iria pegar Vivian num dia em que ela estivesse excitada, quimicamente excitada, e faria um avanço ostensivo, de vanguarda (nessas horas, Daniel gostava de empregar termos bélicos). E assim foi feito, ela cedeu, e os dois finalmente transaram. Mas o que Daniel não previra era ficar perdidamente apaixonado. Havia algo nela que despertava nele compaixão, uma vontade genuína de protegê-la, trazê-la para si. E isso ele jamais havia sentido por nenhuma outra mulher. Isso ele sentiu de fato, no íntimo. E, o que era mais doloroso, continuava a sentir. Ele precisava falar com ela. Num ímpeto, enxugou o rosto, sem nem mesmo escovar os dentes, e foi até a sala. Pegou o telefone, sentou-se no sofá e discou seu número fixo antigo. Um toque. Dois toques. Três toques. Seu cérebro contorcia-se, num redemoinho de possibilidades, cada qual uma dor aguda. Quatro toques. Ouviu a própria respiração, ofegante. Cinco toques:

Oi, aqui é a Vivian. No momento não posso atender. Deixe o seu recado que retornarei assim que possível.

[biiiiiipe]

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Daniel desligou assim que ouviu o bipe; não queria deixar recado nenhum. Na verdade, ele nem saberia o que dizer. Tudo que conseguiu pensar, além da decepção que lhe tomara, é que ela continuava a ser prolixa. Para que isso tudo? Por que não simplesmente “aqui é a Vivian, deixe o seu recado”? É óbvio que no momento ela não pode atender. Ou não quer atender. E é óbvio que ela ligará de volta (e não “retornará”, que isso é uma tradução malfeita de “to return a call”) assim que possível, ou quando ela bem entender, se é que ela vai ligar de volta para quem quer que seja. Tento o celular? De novo o peito subindo e descendo, subindo e descendo de forma pronunciada, odiosa, expondo a si mesmo a sua insegurança, o seu medo, a sua esperança desesperançada, o seu caos.

Sua chamada está sendo encaminhada para a caixa de mensagens, e estará sujeita a...

Os olhos fechados, um nó na garganta, o peito agora calmo, vencido, quase morto. O braço direito pendendo do sofá, o peso do telefone curvando a sua mão, e nada mais. Nada a que se apegar, nada o que esperar, nem mesmo a tristeza pesava sobre aquele homem. Só havia o silêncio. E o vazio. O silêncio, hoje, é como um luxo a que poucos se permitem, porque o temem. Daniel ouviu essas palavras na sua cabeça. Lembrou-se delas; sim, o outro havia dito isso. Manteve os olhos fechados. Temem ouvir os próprios pensamentos, fitar o próprio vazio – porque a sua sociedade condena o vazio. Outras sociedades, outras religiões o valorizam e veneram. O “vazio” não é negativo, muito pelo contrário. É nele que se encontra a sua verdadeira essência, e o silêncio é o som do universo. O jardim da casa de sua avó era imenso, pelo menos era assim que ele o via. Flores o rodeavam, altas como árvores multicoloridas. Ele estendeu o braço e tocou a terra. Era macia, escura, tinha um cheiro forte. Vez ou outra, achava pedrinhas.

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Vasculhou toda a área circundante, ali onde estava, sentado com suas botinhas brancas. Suas mãos ficaram da mesma cor da terra: marrons. Gostou disso. Sentiu o cheiro, sentiu o gosto. Num esgar, tentou cuspir fora aquela terra escura. Ouviu o seu nome, D-A-N-I-E-L, e virou-se para ver quem era, mas aí deu de cara com o sol, e fechou os olhos. Logo sentiu uma sombra lhe tomar todo o rosto, porque este ficou fresco, e o melhor cheiro que a natureza lhe oferecia o envolveu, e ele sabia que, ao abrir os olhos, veria aquele rosto que era o seu próprio rosto, e aquela voz que era a sua própria voz. Sorriu por dentro e por fora, e o mundo era beleza e delícia. O barulho do telefone (que escorregara de sua mão) batendo no chão o fez abrir os olhos, sobressaltado. Isso está começando a se tornar frequente, pensou. Será que estou sofrendo de narcolepsia? Ou, pior, será que estou enlouquecendo? E esse homem que estou vendo há dois dias, esse anjo, esse guia espiritual ou sei lá o quê, será que ele existe de fato? Daniel levantou-se, colocou o telefone em sua base e foi ao banheiro. É preciso organizar os pensamentos, pensou, mas para organizar os pensamentos, primeiro é necessário assear-me e organizar o ambiente, afinal eu sou de Virgem. Um ambiente desarrumado pode desarrumar os pensamentos do mais concentrado dos virginianos. Ao banho! Um, dois, um, dois! Música! O que será hoje? Nada melhor do que um bom jazz para dar um tom emocional consistente porém neutro num sábado confuso como este. Dave Brubeck é infalível, Time Out é uma boa pedida. As primeiras notas de Blue Rondo a la Turk ressoam pelo apartamento. Primeiro, o piano de Brubeck na sequência que Daniel sabia de cor. Escovar os dentes, fazer a barba! Joe Morello pontua o andamento em 9/8 com batidas simples no prato. Abrir o chuveiro. Mais, que água muito quente não faz bem para a pele e para o cabelo. O sax alto de Paul Desmond aposta corrida com o piano, em uníssono: pa-pa-pá-parapapa-papa-parapá... A sequência hipnótica é quebrada com uma ponte grandiloquente, que desaba num levada de jazz tradicional, deliciosa, que novamente é interrompida pela

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sequência inicial, até que chega o solo de Desmond, que maravilha. Enxugar-me! Cotonete nos ouvidos (um cotonete só, uma ponta para cada orelha), desodorante nas axilas, musse no cabelo (senão fica muito ressecado; gel não presta porque deixa o cabelo muito duro e com aparência de molhado), hidratante no rosto (sugestão de Vivian), cueca limpa. Os pensamentos vão ordenando-se, o mundo começa a entrar nos eixos de novo. A batida de Take Five serpenteia pelo seu cérebro, o sax faz desenhos no espaço, sobe e desce, entra e sai, colocando cada coisa em seu lugar, harmonizando a desarmonia, e o que era caos agora se assenta. Dobrar as roupas, colocar a camisa cheirando a suor para lavar, abrir a janela, este é um sábado de sol: que entre a luz, pois ela já se fez. Café, pão italiano (já mais duro do que Daniel esperava, mas ele estava ali havia uns três dias), margarina. Tem um suco também, suco é bom. Cereal? Não, isso é demais, pensou, nem sei por que comprei essa porcaria. O suco já dá conta da parte saudável. Uma fruta, talvez, também, por que não? Tem mamão? Não, não tem. Tem uma goiaba já amolecida, duas bananas sexagenárias. Nunca tive vontade de comer fruta de manhã, lembrou. Manhã para mim é café e pão, fui criado assim, e combina mais com um cigarrinho depois. Three to Get Ready, um, dois, três, pronto. Adoro Nescafé, não sei porque as pessoas torcem o nariz quando digo que gosto. Vivian não acreditava: deixa que eu passo um café pra você, vai ficar bebendo essa porcaria? Agora, o jornal na porta, um cigarro, it’s all good. It’s all so good. It’s all so fuckin’ good. All’s well that ends well. Oh William, it was really nothing. Kathy dança a sua valsa pelo salão, Paul é um grande filho da mãe – quem toca assim? Como quem faz amor, como o melhor amante do mundo. Agora todos estão pulando. E de novo o silêncio. Um anjo não-alado, de costume Armani preto. Uma garota alada, sobrevoando Deus sabe que mortal. Um homem pregado ao solo, os dois pés enterrados no chão.

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O silêncio é o som do universo, essa lição não será fácil de assimilar. O vazio, essa tampouco. Amanhã irei à missa, talvez pela primeira vez na vida adulta, ele se lembrou. Aceitar a verdade como uma criança. Que é a verdade?, disse Pilatos. Tudo é efêmero, tudo é dor, disse Buda. Os olhos refletem a confusão do intelecto e desnudam a alma. Em latim fica até mais bonito. Esvaziar-se para preencher-se. Quanta coisa! Esse anjo devia me dar uma apostila, estou ficando confuso. Daniel percorreu, assim, o seu sábado, numa meditação secular e confusa, desbravando, à sua maneira, uma floresta densa e escura. Várias vozes ecoavam em sua cabeça, a sua própria legião. O outro o observava, de perto, seguindo cada passo seu, ouvindo cada pensamento, e vez ou outra intercedia, por amor e compaixão, até onde lhe era permitido.

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Capítulo 5

Tiferet O domingo amanheceu cinzento e chuvoso, quebrando uma sequência de dias ensolarados e quentes. Daniel havia acordado cedo, não queria perder a missa, conforme havia combinado com o outro. Ele estacionara o carro a duas quadras da igreja e agora caminhava sob a chuva fina, cigarro na boca, mãos enfiadas nos bolsos. A igreja estava quase cheia, pessoas falavam baixo, mas o murmúrio de tantas vozes ecoava pelo salão. Daniel sentou-se na última fileira, talvez por não sentir-se muito à vontade ali; ele não ia a uma missa desde que era criança, e sabia que haveria todo um ritual de orações e sinais e aquele senta-e-levanta que ele nunca havia entendido muito bem. Seus olhos percorreram a azulejaria das paredes e o teto da igreja, que tinha uma réplica da pintura da Capela Sistina, e por um momento perguntou-se por que havia negado-se tamanha fascinação. No entanto, logo todos os seus pensamentos condensaram-se numa única palavra: pecado. Talvez fosse a noção de pecado que o oprimia tanto ao entrar numa igreja. Lá, ele sentia-se observado, julgado. Mas por que devo me importar?, pensou. Eu sou ateu. E mesmo que fosse católico, nunca infringi nenhum mandamento. Quer dizer, um ou outro mas, afinal, somos todos humanos e falíveis. Os mandamentos mais sérios, esses não. Nunca matei ninguém. Nem roubei. Falso testemunho, jamais. Quais são os outros mesmo? Cobiça, adultério... Daniel percebeu uma movimentação atrás de si, e viu a porta da igreja ser fechada. Olhou em volta, procurando o outro, mas não o viu. Estava sozinho na última fileira, todos os demais haviam se sentado mais próximos ao altar. Cobiça, adultério... Cobiçar hoje em dia é uma qualidade, confunde-se com ambição. O que nos rege é a busca do sucesso a qualquer custo. Não, Daniel vasculhou o seu cérebro e não encontrou nada que pudesse ser classificado de

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“cobiça”, mas sim de “ambição”. Semântica é tudo. Adultério? Sim, esse pecado ele teria que confessar, embora não fosse casado no religioso com Vivian. Mas era claro para ele que havia agido errado, por mais que tentasse convencer-se do contrário. Eles viviam sob o mesmo teto, amavam-se e haviam jurado fidelidade, e isso era o bastante. E havia o sangue. Sempre que Daniel pensava nisso, a imagem voltava à sua cabeça. No início, sentia uma vertigem que o obrigava a fechar os olhos, mas ao fazê-lo parecia que a imagem condensava-se e tornava-se mais nítida. Agora, era apenas uma dor silenciosa, e ele aprendera a conviver com a culpa. Encontrara até certo conforto nesse sofrimento. Precisava dele. Alimentava-se dele. O sangue. Vivian sentada no chão do banheiro, o rastro de sangue correndo de seus pulsos até o chão. E o rosto dela, contorcido numa dor tão aguda que procurava o conforto do corte e da morte, em vão. A morte não viera, ela estava tão confusa que não sabia se desejara mesmo a morte ou apenas se mutilar, ferir a carne para esquecer a dor da alma. Daniel soube depois que, ao descobrir que ele tinha uma amante, Vivian parou de tomar seus antidepressivos, o que a levou a uma queda vertiginosa. Ele fez promessas, pediu perdão de mil maneiras, mas ela pediu que ele fosse embora. “Perdoai as nossas ofensas, assim como perdoamos a quem nos tem ofendido.” Daniel ouviu essas palavras em sua cabeça e imediatamente virou-se para encontrar o outro, que estava sentado ao seu lado. “Você sabe o que é penitência, Daniel?” “Claro.” “E que um sacerdote tem o poder de absolvição do seu pecado?” “Eu sou ateu.” “Pois bem, então. Do que você se arrepende?” Daniel virou-se para a frente, pensativo. De todas as coisas em sua vida, do que ele mais se arrependia era a forma como havia agido com Vivian, e o que ele mais lamentava em sua existência (talvez mesmo em todo o caos do Universo) era tê-la perdido. Todo o resto que fosse para o inferno, ele não era de arrepender-se de

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nada. Mas Vivian era um nó que ele não conseguia desatar, um buraco negro impenetrável, um dor que insistia em não ir embora. “Eu me sinto culpado por causa de Vivian.” “A culpa só tem valor se levar ao arrependimento sincero e a uma mudança de atitude. Caso contrário, é só um sentimento doentio, que gira em falso e não produz nada além de um câncer. A culpa é uma toxina. Arrependa-se do que fez, peça perdão, e aja de forma diferente a partir de agora – assim você se livrará da sua culpa, que de resto não serve para nada.” “Mas não sei se ela vai me perdoar.” “Isso não é problema seu. Faça a sua parte, você não pode fazer a parte do outro.” Daniel sentia-se desconfortável ali, era como se lhe faltasse o ar. Ele sentiu vontade de sair, e juntou forças para dizer isso ao outro. Ao se virar, viu que ele já estava em pé, a lhe apontar a saída. Lá fora, a chuva fina havia parado, e o sol começava a despontar. “Por que você quis vir aqui?”, apressou-se em perguntar Daniel, que logo em seguida sentiu-se como quem destrata um anfitrião. “Desculpe, hoje não estou num dia bom.” “Tudo bem, não tem problema. Escolhi uma igreja, mas poderia ter sido uma sinagoga, uma mesquita, um templo...” “Mas você...? Estou começando a ficar confuso. O que você representa, afinal? De onde você vem?” O outro não respondeu, mas virou-se e continuou a andar. Mais adiante, parou: “Pois eu vou lhe devolver uma pergunta: por que você acha que está aqui neste mundo?” “O que eu faço aqui? Não tenho a menor idéia. Você pode me dizer? Só sei que é tudo absurdo e doloroso demais.” “Doloroso, sim. Absurdo, não. Pode parecer absurdo, mas tudo tem um porquê, disso você pode ter absoluta certeza. Dou minha palavra.” “Pois bem, então...” Daniel ergueu os braços e impostou a voz, antevendo o absurdo da pergunta que faria: “Qual o sentido da vida?”

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“Curto e grosso?” “Sim!” “Ter prazer.” Daniel fitou o outro durante alguns segundos, e em seguida caiu na gargalhada. O outro riu também, de forma mais contida, como quem ri por educação ou por gentileza. “Prazer?!” “Sim.” “Esse é o sentido da vida?!” “Exato.” Daniel subitamente parou de rir, sentindo uma dor repentina, que traduziu-se em irritação. “Então deu tudo errado! Por que então passamos 90% da vida sofrendo? Ou simplesmente entediados? Isso é uma piada de mau gosto!” “Ah, Daniel, isso é uma longa história.” “Pois agora eu quero ouvir.” “Eu vou lhe contar uma história, que é a sua história, e a minha história. Não peço que você acredite, apenas que me ouça. Se você quiser saber por que estamos aqui buscando o prazer e jamais o encontrando, eis o porquê.” “Sou todo ouvidos.” O outro o fitou por alguns segundos, o semblante sereno, o vento fazendo tremular seus cabelos. Depois olhou para o céu, fechou os olhos, e logo os abriu de novo, desta vez olhando para a porta da igreja. “Lá dentro, Daniel, as pessoas estão rezando para Deus. Você sabe quem ou o que é Deus?” “Não faço ideia.” “Pois bem. Comecemos do início. Essas pessoas são católicas.” “Sim.” “Seguem a palavra de Yeshua, o Novo Testamento. Mas também aceitam o Antigo, que representa a doutrina judaica. Você sabia que no Antigo Testamento original a palavra ‘Deus’ em

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hebraico aparece de sete formas diferentes? E que significam divindades diferentes? Ou, em outras palavras, estados de consciência diferentes?” “Eu não sabia.” “Pois bem, o problema é que foi tudo traduzido como ‘Deus’, criando uma grande confusão. Mas eu vou lhe pedir que esqueça a palavra ‘Deus’. Porque, enquanto jogarmos o nosso destino nas mãos de Deus, não assumiremos a responsabilidade pelas nossas ações e não avançaremos um centímetro. E porque, no fundo, à parte a confusão de nomes e rituais e dogmas, todas as religiões têm algo em comum. Vou lhe contar uma história que vem da tradição judaica. Uma vez pediram a um rabino que ele resumisse o judaísmo em uma única frase. Ora, como seria possível resumir em uma frase um conjunto de conhecimentos tão complexo, tão profundo? Mas o rabino era de fato um homem sábio, e respondeu: ‘Ama ao próximo como a ti mesmo – o resto é comentário’. Só que amar o próximo é uma tarefa quase impossível. Enquanto tentarmos seguir o exemplo de Yeshua, não chegaremos a lugar nenhum, porque Ele era um santo. Como não somos santos, acabamos nos frustrando e desistindo. Porque somos demasiado humanos, como disse Nietzsche. E você sabe por que devemos amar o próximo? Porque somos bonzinhos? Não. Porque estamos sujeitos a uma lei universal: a lei da ação e da reação. Se você quer receber amor e generosidade dos outros, deve praticar o amor e a generosidade. Simples. Podemos até fundar um novo pensamento, um preceito deveras pragmático: ‘seja egoísta - ame o próximo!’ Mas, bem, continuemos. Agora vou lhe fazer outra pergunta: como este mundo surgiu?” “Com o Big Bang.” “Exato!” “Você aceita isso?” “É a mais pura verdade.” “Então você aceita a Ciência dos homens?” “Claro! A Ciência é maravilhosa para explicar como as coisas acontecem, embora mesmo nisso ainda esteja engatinhando: os

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cientistas imaginavam que o hidrogênio fosse o elemento químico mais abundante do universo, e a partir dele agruparam uma centena de átomos na tabela periódica. Agora eles viram que esses elementos formam apenas 0,03% do Universo; o resto são formas desconhecidas de matéria e energia. Na verdade, 73% do Universo é formado pelo que eles agora chamam de “energia escura”, que se esconde no vácuo do espaço. Vê? Se você aceita apenas a Ciência, ficará no escuro. Pois bem, o mundo surgiu com o Big Bang, o seu Gênesis. Agora me responda: por que este mundo surgiu?” “Eu sei lá! Ninguém sabe. Isso não é pergunta que se faça.” “Claro que é. É a pergunta principal. Só que a Ciência não explica, porque ela se ocupa apenas em explicar como tudo acontece, jamais por que acontece. Porque isso a Ciência não alcança.” “Pois bem, então, por que este mundo surgiu?” Os dois chegaram a uma pequena praça que ficava em frente à igreja, do outro lado da rua. Sentaram-se num banco, lado a lado. “Antes, Daniel, vou lhe fazer mais uma pergunta. Voltando à sua Ciência, você entende de Física Quântica?” “De jeito nenhum. Nada.” “Pois bem, se você pedisse a um físico que lhe explicasse conceitos da Física Quântica em poucas palavras, como você acha que ele explicaria?” “Da mesma forma que eu tentaria explicar qualquer coisa a uma criança de oito anos. “Exatamente. Pois é assim que eu vou lhe explicar por que este mundo foi criado. E tudo que eu te peço é que você seja uma criança de oito anos.” “Farei o possível.” “Fará mesmo?” “Sim.” “Sabe no que isso implica?” “No quê?” “Pense numa criança de oito anos. Imagine que após tentar lhe explicar, digamos, como funciona o rádio, essa criança lhe diga: ‘Não entendi nada. Não acredito.’ O que você diria a ela?

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“Que ela teria que confiar em mim.” “Por quê?” “Porque eu sou adulto, e eu sei.” “Só por isso? Então ela deve acreditar em todos os adultos a todo momento, indiscriminadamente?” “Não, em mim em particular, porque eu desejo lhe ensinar, desejo o bem a ela.” “Exatamente. Aí está a confiança. É saber, de fato, que o outro lhe deseja o bem. Só assim seus atos e palavras serão confiáveis.” “Por outro lado, ela sabe que o rádio funciona. Tem uma prova concreta do que estou explicando. Não é uma fantasia, uma quimera.” “Bem colocado. Pois eu lhe digo que você já vê esse ‘rádio’ funcionando, que é o Universo. A Ciência já explicou como ele funciona, o Big Bang, o macrocosmo e o microcosmo, as galáxias e os átomos. Pois eu vou lhe explicar por que ele funciona, por que ele foi criado. E eu o farei porque lhe desejo o bem. Daniel respirou fundo e, diante do olhar sincero e sereno do outro, fez um leve meneio de cabeça. “Esqueça a palavra ‘Deus’. No começo de tudo, no princípio, muito antes deste mundo ser criado, havia uma fonte de energia infinita, infinita, que vamos chamar de Luz.” “A velha e boa ‘luz’ de sempre? A Luz no fim do túnel que vemos ao morrer?”, disse Daniel, num gracejo. “Sim, a mesma Luz que deveria estar emanando gloriosamente de sua cabeça agora, em feixes multicoloridos, mas que no momento parece uma lanterna barata com a pilha fraca.” Daniel sentiu que seu sarcasmo não seria bem-vindo neste momento, e resolveu se calar. “Tudo no Universo é energia em expansão, isso a sua Ciência mesmo diz. O próprio Big Bang foi consequência disso. Ele não foi o único, mas isso já é outra história. Tudo se move constantemente, tudo segue o seu curso; tudo nasce, desenvolve-se e morre, e de novo nasce, num ciclo interminável. Isso é a energia dessa Luz

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primordial, a energia primeira, absoluta e infinita. Eu sei que isso é abstrato demais para a sua mente racional, cartesiana, para a sua percepção tridimensional do mundo. Mas, veja, sejamos racionais, então. Você admite que há uma questão sem resposta. Você sabe como o Universo funciona e como ele surgiu, porém não sabe por que ele existe. Você nunca ouviu uma explicação convincente para esta questão, e eu estou lhe oferecendo uma. Sugiro que você ao menos a analise e tente encontrar no Universo, e na sua vida, a confirmação do que estou lhe dizendo. Empiricamente, podemos assim dizer. Mas para isso você deve alargar um pouco o seu horizonte mental. Para tudo há uma resposta, mas devemos estar abertos a ela. Veja bem, nós compreendemos o mundo que nos cerca em termos de tempo e espaço. Tudo ocupa um lugar no espaço, e tudo tem começo, meio e fim. O infinito é uma abstração. Mas isso é porque estamos aprisionados em nossa mente. Assim como estamos aprisionados na Terra, circundados por um campo magnético que nos protege da radiação solar, mas que também nos achata com a força gravitacional. Se perguntássemos a alguém, séculos atrás, se era possível existir matéria sem peso, a resposta seria não. Tudo tem peso. Hoje sabemos que, na verdade, o peso é apenas a força gravitacional empurrando a matéria para baixo. Bastou atravessarmos a atmosfera terrestre e chegarmos à gravidade zero e pronto – não existe mais peso. Vê? Estávamos aprisionados a uma ideia simplesmente porque desconhecíamos a gravidade zero. Da mesma forma, nós só entenderemos o que é o infinito quando sairmos do ‘campo gravitacional’ da nossa racionalidade, que só compreende tempo e espaço. Nós temos muitas limitações, e não nos damos conta. Um astronauta americano passou quatro meses a bordo da estação espacial russa Mir e, ao voltar, disse: ‘Alguém pode tirar esse elefante de cima de mim?’ Ele havia se acostumado à leveza da gravidade zero; havia se acostumado a flutuar, não a andar pesadamente, carregando o peso do próprio corpo. Mas, voltemos ao Antigo Testamento, tão mal traduzido. Você lembra qual é a primeira frase do Antigo Testamento? A frase que abre o Gênesis?” “Algo tipo ‘Deus criou o mundo...’”

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“A frase é ‘No princípio, Deus criou o céu e a terra.’ No hebraico original, a palavra ‘Deus’ aqui é Elohim. Você sabe o que significa Elohim?” “Não.” “É uma divindade, mas não o que nos acostumamos a chamar de Deus, o Criador maior. Sendo bem direto, Daniel, tudo isso são nomes apenas. Na verdade, ‘Deus’ é uma experiência multifacetada e intangível, que não deve ser entendida literalmente. Mas estamos presos à linguagem, então tentemos estabelecer ao menos parte dessa experiência tão complexa. O que nos acostumamos a chamar de ‘Deus’, a Cabala chama de Or Ein Sof, em hebraico, que podemos traduzir como a Luz Infinita da qual lhe falei, que é anterior e superior a Elohim, ao Universo e ao Homem. Segundo a Cabala, essa Luz Infinita é uma energia divina que, ao ser restringida e filtrada através das dez sefirot, as “emanações divinas”, resulta no mundo material. A primeira e mais elevada sefirá chama-se Keter, ou a “coroa”. E a última, a mais inferior, chama-se Malchut, ou reino. Elohim habita essa última sefirá. Mas tudo no Universo segue as mesmas leis: o que vai, volta; para cada ação, há uma reação; tudo é causa e efeito. E o que está em cima está embaixo. Não existe um outro mundo, diferente deste que conhecemos. Um dia você verá que essa Luz Infinita, anterior e superior a tudo, a você e a mim, está aqui, agora, em mim e em você e em tudo que nos cerca; na matéria e nos nossos pensamentos, nossos sentimentos e nossas ações. E ela revela-se em nós no desejo de ter prazer.” “Essa história de prazer está muito confusa. Veja, eu sou ateu, mas fui criado numa família católica, respiro o cristianismo desde que nasci. Talvez, lá no fundo, eu seja um cristão enrustido; e nós aprendemos desde que nascemos que só quem sofre e se penitencia chega ao Paraíso. Ora, a imagem mais forte no nosso imaginário, a do nosso Salvador, é a de um homem seminu pregado numa cruz!” O outro riu, endireitando-se no banco. “Agora eu me lembrei daquela famosa frase de Cioran, ‘Nós não sofreríamos tanto se Jesus Cristo tivesse morrido deitado num

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sofá’. Pois bem, eu vou lhe explicar o que é isso, porque não quero que você me entenda mal. Eu disse que o que nos move é o desejo de ter prazer. Imagine um bebê que acaba de nascer. Ele é retirado da mãe e imediatamente começa a chorar. Se você colocar o seu dedo na palma de sua mão, o bebê agarrará o seu dedo, com força. Porque ele deseja. Ele quer. Em seguida, você encosta o seu rosto no peito da mãe, e o que ele faz, instintivamente?” “Ele mama.” “Sim, ele suga o leite. E por quê? Porque isso lhe dá prazer. Ele deseja, ele quer esse prazer. É o nosso primeiro sentimento nesta vida, e é o sentimento que nos moverá até a morte. É o sentimento que nos mantém vivos, que nos faz seguir em frente – a saciedade de nossos desejos e vontades. Por um lado, por uma questão de sobrevivência; sem o desejo a Humanidade não se multiplicaria nem sobreviveria. Por outro, porque o desejo é o Messias – através do desejo nós devemos superar o desejo. Através do prazer nós devemos superar o prazer – o prazer finito, terreno, insuficiente, frustrante do Homem. Lembra da frase de Buda? ‘Tudo é efêmero, tudo é dor?’ Ele estava referindo-se aos prazeres finitos deste mundo, que podem ser qualquer coisa: sexo, drogas, dinheiro, sucesso na profissão, vaidade. E veja, não estou julgando nada. Sejamos sistemáticos e racionais, por que não? De que adianta um prazer que se esvai, deixando no lugar um enorme vazio? Não que todos os prazeres terrenos sejam negativos. Comer é muito bom; além de essencial para a nossa sobrevivência, nos dá um grande prazer. Mas há um limite para esse prazer, que é a saciedade da fome. Comer em demasia é uma doença, cria enfastio, mal-estar, obesidade. Veja, esse é o limite: as nossas necessidades reais. Ter uma casa confortável e um bom carro não é problema nenhum. Mas se o seu único desejo na vida é ter uma mansão espetacular e um carro esportivo que custa uma fortuna, então há um abuso desse prazer. E o enfastio. E quanto maior o abuso do prazer, maior a frustração e o vazio que você sentirá. Logo você precisará de uma mansão ainda maior, e de um carro mais caro ainda, para logo ver que aquele prazer também se esvaiu, deixando um enorme vazio. Você acorda de manhã, e

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você deseja. Você tem fome, deseja comer. Porque isso lhe dá prazer. Você deseja tomar um banho para se sentir limpo, porque isso lhe dá prazer. E você passa o resto do dia desejando – desejando fazer um bom trabalho, almoçar bem, não ficar parado no trânsito, fechar um bom negócio, seja o que for. O desejo do prazer o move, e isso é perfeitamente natural. Só o abuso desse desejo cria em nós um vazio.” “Isso eu consigo compreender, e concordo.” “Pois eu vou lhe explicar o porquê disso. Por que nós sentimos esse desejo de ter prazer desde o momento em que nascemos até a nossa morte? Então, vamos lá.” Daniel viu o outro pegar um graveto do chão e desenhar um círculo no chão de terra onde o banco de madeira se assentava. “O Nazareno gostava de fazer isso. Veja, este círculo representa a Luz Infinita, que existe no Mundo Infinito, onde tudo começa, muito além do que você pode imaginar. Essa Luz Infinita emanava o Prazer Infinito, infinitamente, para o seu Recipiente”, disse, desenhando um segundo círculo, menor, ao lado do primeiro. “O Recipiente apenas recebia essa emanação, esse Prazer Infinito, num ciclo interminável, pleno, perfeito. Mas, um dia, surgiu nesse Recipiente, nesse receptor, o desejo de compartilhar também, de ser como a Luz, de também emanar a energia do Prazer Infinito. Mas a Luz não podia receber, pois Ela não possui em si o desejo de receber, apenas de dar, de emanar – de se expandir. O Recipiente, então, decidiu fechar-se para a emanação da Luz; se ele não podia compartilhar, ele também não queria mais receber. E, dessa forma, o Recipiente fechou-se à Luz Infinita, e começou a encolher, encolher, a condensar-se em sua escuridão, até que explodiu, fragmentando-se e criando um universo próprio, menor, finito, onde pudesse emular a Luz Infinita, compartilhando esse Prazer, e não só recebendo. Assim surgiu o nosso mundo, o nosso universo. Nós construímos uma arena para emularmos a Luz. Nós somos o Recipiente, fragmentado em bilhões de almas, e trouxemos do Mundo Infinito o desejo de receber o Prazer Infinito da Luz Infinita. Por isso nós o desejamos e desejamos. E quase nunca o encontramos – porque ele

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se revela nas coisas terrenas, mas na verdade está no Mundo Infinito.” “Então nós jamais o alcançaremos? Como chegar a esse Mundo Infinito? Só depois de morrermos?” “Absolutamente. Tempo, espaço e movimento são coisas da nossa dimensão. O Mundo Infinito não está numa galáxia distante, ele está além da nossa dimensão, mas também está nela, pois ele é infinito e absoluto. O Mundo Infinito está aqui, neste banco em que estamos sentados.” “Desculpe, eu não entendi o que você disse há pouco sobre o Messias. Você disse que o desejo é o Messias?” “Sim. Vou lhe revelar um antigo segredo cabalístico, uma frase que durante muito tempo só os grandes sábios podiam compreender. Você conhece a história de Adão e Eva?” “Sim, todos conhecem. Deus criou Eva a partir da costela de Adão. Um dia a serpente ofereceu a Eva o fruto proibido. Eva comeu, depois deu para Adão, e os dois foram expulsos do paraíso.” “Exato. E o que era exatamente esse ‘fruto proibido’?” “O conhecimento do pecado?” “Seria mais correto dizer que morder a maçã foi o início do pecado, o que já estava no plano da Criação. Mas a questão mais importante é: o que é esse pecado? Ele é o desejo egoísta que nasceu no Homem, o desejar só para si. E somente superando esse desejo egoísta e compartilhando de fato, ou amando o próximo, ele pode ascender. Quando você dá, você se assemelha à Luz Infinita, portanto nesse momento você é de fato divino, santo. Quando você recebe, está dentro da esfera do Recipiente. Por isso, quando fazemos uma boa ação, quando não somos egoístas, sentimos um prazer pleno, profundo, sereno. Nesse exato momento, quando anulamos o nosso ego, entramos na esfera da divindade verdadeira. Os cabalistas chamam a isso de ‘livrar-se do pão da vergonha’. Dessa forma, a serpente nos prestou, na verdade, um grande favor ao oferecer a maçã a Eva; ela nos deu a possibilidade de ascender, de superar o desejo através do próprio desejo. Por isso, a serpente é o

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Messias. Por isso um homem santo agradece pelas agruras da vida – é através delas que ele pode tornar-se santo.” “Mas todo esse ‘plano’ parece uma piada de mau gosto. Nós somos cercados de coisas prazerosas, mas que na verdade nos são proibidas. É cruel às vezes, é como mostrar um banquete a um esfomeado e dizer: você pode ver, mas não pode tocar em nada.” “Isso porque você está pensando apenas nos prazeres egoístas, nos prazeres terrenos, os prazeres finitos e passageiros de eu falei. Sejamos francos, Daniel, o que lhe dá mais prazer neste mundo?” “Se eu quiser ser sincero com você, terei que dizer que é o sexo.” “Pois bem, o sexo. Ele foi criado para ser prazeroso mesmo, e ele perpetua a espécie. Mas, como ele é imediato e acessível, há um abuso desse prazer. Busca-se nele algo que está além dele. Como não encontramos, procuramos novamente, e cada vez mais frequentemente, e isso pode tornar-se um ciclo vicioso que pode ser destrutivo. E veja, quase sempre com vocês, humanos, quando há a saciedade de um desejo, o que vem depois? Fastio, tristeza, um sentimento de vazio. Você come demais, e o que sente? Fastio. Você tem um orgasmo, e o que vem depois? Plenitude? Não, geralmente você se deita de costas, olha para o teto e pensa: ‘Por que estou me sentindo tão vazio agora?’” “Depende, muitas vezes você pode mergulhar num sentimento delicioso, indescritível, e dormir abraçado à mulher que ama.” “Eis aí! ‘À mulher que ama’. Isso faz toda a diferença. Nesse caso não se trata de simplesmente buscar o próprio prazer com uma pessoa que mal se conhece, mas de dar e ter prazer com alguém com quem busca-se de fato uma harmonia. Isso não é abuso do prazer, é viver o prazer em sua plenitude, é compartilhar o prazer. É algo sagrado. Você já sentiu isso, Daniel?” “Sim.” Daniel baixou os olhos, sentindo uma súbita tristeza, lembrando das tantas vezes em que dormiu abraçado a Vivian, suado

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e exausto, mas sentindo-se pleno e feliz. Fechou os olhos, contorcendo-se por dentro, lembrando da respiração dela próximo ao seu ouvido, e da cabeça dela encostada em seu peito, seus corpos nus colados um ao outro, talvez o único momento perfeito que ele vivera: naqueles momentos ele não desejava mais nada, ele estava feliz por ser quem era, por estar onde estava, com quem estava. E o que ele havia feito com esse sentimento? Ou melhor, o que havia acontecido, paulatinamente, a esse sentimento? Ele foi aos poucos modificando-se, definhando, sumindo, até que Daniel sequer tinha vontade de fazer sexo com ela. Ele desejava outra mulher, qualquer mulher, desde que não fosse ela. E o que é mais cruel num casamento, quando se dorme e se acorda junto a outra pessoa, é que a outra pessoa sabe disso, de alguma forma. Ou pelo menos as mulheres sabem. Daniel tinha que se controlar e dissimular, quando estava ao lado de Vivian, para não demonstrar o interesse por todas as mulheres que passavam nos corredores do supermercado, na fila do cinema, onde quer que eles fossem. Depois de um tempo, ele já não sentia absolutamente nada quando eles estavam transando. O afeto continuava, ele gostava de dormir abraçado a ela, de sentir o cheiro dela; mas já não tinha prazer no sexo. Até que um dia ele não se conteve e saiu com uma amiga do trabalho. Daniel lembrava bem do primeiro dia em que transou com essa amiga. Parecia que todo a vontade acumulada durante meses estava sendo extravasada de uma só vez, tamanho o prazer que sentiu. Talvez um prazer aumentado pelo sentimento do proibido. Um prazer duplamente doentio. Quanto mais descemos, mais prazer sentimos. Misture-se a isso uma droga qualquer, e o prazer é triplicado. Adicione-se um desejo realmente vil de vingança ou desforra, e ele é quadruplicado. Descendo, descendo, como num elevador que vai até o inferno. Esse anjo tem toda a razão, pensou Daniel. Quanto maior o prazer egoísta, maior a queda. Ele lembrava muito bem do vazio que sentia, passada toda a euforia de sexo, uísque e drogas. Um enorme buraco, negro como a noite. E olhar para Vivian, depois disso. E ver nos olhos dela que ela sabia. E querer desejá-la e não conseguir. E sentir-se diminuindo, encolhendo, sendo sugado pela própria infelicidade e

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pelo próprio medo. E o sangue, coroando tudo com sua viscosidade rubra. A vida se esvaindo, uma glória invertida. “Daniel, acho que por hoje ficaremos por aqui. Eu já lhe dei informações demais para você assimilar. Ainda continuarei a lhe falar da Criação, do Plano Divino. Por ora, sei o que o aflige. Reflita sobre o que eu lhe disse sobre a culpa, e como sair de seu ciclo vicioso. Pense sobre o significado real do perdão, não para a Vivian, mas para você mesmo.” O anjo levantou-se, e lhe estendeu a mão. Daniel a segurou durante um tempo, sentindo uma súbita paz, como se tivesse sido arrancado de seus pensamentos mais sombrios. O outro fez menção de virar-se para ir embora. “Espere! Onde vou encontrar você da próxima vez?” “Faremos de forma diferente dessa vez: eu o procurarei”, disse o anjo, com uma piscadela.

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Capítulo 6

Gevurah A manhã de segunda-feira transcorreu lenta e penosa para Daniel. Ele havia passado o domingo pensativo, refletindo sobre as palavras do outro. À noite não conseguira dormir direito, e chegou sonolento à redação. Sentou-se diante do computador e permaneceu imóvel, apenas simulando estar trabalhando quando alguém aproximava-se de sua mesa. De tudo que havia ouvido no dia anterior, o significado do perdão era o que mais o intrigava. “Faça a sua parte; você não pode fazer a parte do outro” havia lhe dito o anjo, mas Daniel sentia uma necessidade incontrolável de falar com Vivian, de pedir-lhe perdão olhando nos seus olhos e, quem sabe, ser perdoado por ela. Num ímpeto, decidiu: iria procurá-la; iria ao antigo apartamento que dividiram, sem avisar, sem telefonar, até porque sabia que ela não o atenderia. Avisou na redação que não voltaria após o almoço e saiu. No carro, ele viu-se fazendo o mesmo percurso que fizera tantas vezes, ao final do dia – às vezes com ela ao lado; às vezes sozinho, ansioso por chegar em casa e abraçá-la. É verdade, lembrou, houve vezes em que ele não desejou ir para casa, mas sim para alguma festa, sozinho, para quem sabe encontrar alguma mulher interessante que estivesse disposta a fazer sexo sem nenhum compromisso. Ao lembrar-se disso, lamentou ter se deixado levar por tais ímpetos. Mas quem os controla?, pensou. Como não ser levado por eles? Estamos todos à deriva, somos todos “barcos embriagados”, levados pela correnteza, concluiu. No fundo, ele ressentia-se disso. No fundo, desejava verdadeiramente ser o senhor dos próprios desígnios, poder escolher por onde ir, pois sabia que o que comumente chamamos de liberdade nada mais é do que a escravidão aos nossos desejos mais imediatos – e finitos, conforme ouvira.

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Conforme aproximava-se da rua onde havia morado com Vivian, seu coração batia mais rápido, e de novo sentia o peito ofegante, como que tomado de pânico. E certa melancolia insinuava-se, conforme via ruas por onde passara de mãos dadas com ela, e restaurantes e cafés onde eles se sentaram, conversaram e trocaram carícias e beijos apaixonados. Ao estacionar o carro diante do prédio onde ela continuava a viver, sozinha, encostou a cabeça no banco e fechou os olhos, como que reunindo forças e dizendo a si mesmo que não haveria como voltar atrás. Após alguns minutos, respirou fundo, saiu do carro, trancou a porta e seguiu para a portaria. O porteiro o reconheceu: “Olá, Seu Daniel, como vai?” “Eu vim falar com Vivian.” “O senhor não está sabendo?” “Do quê?” Daniel sentiu um calafrio percorrer o corpo, como se esperasse o pior. “Ela se mudou.” “Quando foi isso?”, disse num suspiro, embora o temor de uma tragédia logo tenha dado lugar a uma amarguíssima decepção. “Foi semana passada.” Daniel agarrou-se ao portão, cambaleante, sabendo que aquilo significava que estava tudo acabado, que não havia a menor possibilidade de uma reconciliação, de mais nada. Ela havia ido embora e virado a página. Não havia mais nenhuma promessa, nenhum vislumbre de felicidade, nenhuma possibilidade de redenção. Ele havia sido deixado, ou antes havia colocado-se, ele próprio, num limbo, às escuras, para todo o sempre. Ele havia vivido o amor verdadeiro, e o havia jogado fora, por egoísmo. Havia maculado algo puro, cometido o pior pecado. Que passasse o resto da vida lamentando ter perdido a mulher que mais amara, com quem dividira um teto, com quem fora dormir e acordara tantas noites e tantas manhãs – noites e manhãs de uma felicidade que agora havia apagado-se para sempre. O gesto da Vivian e sua resolução eram claros: ela desejava de fato esquecê-lo. Daniel tentou recuperar as forças e controlar-se.

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“Você está com a chave do apartamento? Eu poderia subir? Quero só dar uma olhada...” “Mas ela já levou tudo, está vazio.” “Tudo bem, eu só queria dar uma última olhada no apartamento. Por favor.” “Tudo bem, Seu Daniel.” Ouviu-se um estalo, e o portão de ferro da entrada se abriu. Daniel pegou a chave com o porteiro e caminhou até o saguão do edifício, como se caminhasse para o próprio túmulo. Entrou no elevador e apertou o número sete. Num solavanco, começou a subir, mas era como se descesse. Um. Uma voz gargalhava dentro de sua cabeça. Bem-vindo ao inferno, meu caro rapaz! Tédio? Televisão no domingo? Ra-ra-rá! Dois. Você achava que o inferno fosse uma sala de estar, a sogra dando conselhos e o bebê chorando no quarto? Patético! Três. Ou fazer prestações na loja de eletrodomésticos? Você achou que isso fosse o inferno? Quatro. Ou dormir todos os dias com a mesma mulher, que lentamente se tornaria uma caricatura mais gorda e menos desejável daquela com quem você se casou? Que o inferno fosse a mesmice conjugal? Cinco. Você achou que o inferno fosse perder a sua liberdade, o seu direito adquirido de ir e vir e fazer o que bem entendesse, quando e com quem bem entendesse? Seis. Achou que o inferno fosse o que todos fazem, o que todos os pequeno-burgueses apáticos e medrosos, preconceituosos e quadrados fazem? Sete! Plim! Este é o seu andar, meu rapaz. O inferno, se você quer saber, é o oposto disso tudo. O inferno é o vazio! O inferno é a solidão mais insuportável – a solidão da alma! O inferno é o seu egoísmo! Entre, meu caro, apartamento setenta e três, enfie a chave, como você tantas vezes enfiou, às vezes ansioso, às vezes de saco tão cheio disso tudo! Abra a porta e vejo o seu verdadeiro inferno! Paredes vazias, e nada mais! Nenhum móvel, nenhum vestígio de vida, nada! Vamos, refestele-se no seu vazio! Ele é todo seu! Dance, rodopie, o mundo é seu! Tudo é possível, tudo pode acontecer, inclusive nada – esteja preparado. Não haverá fraldas sujas nem choro de madrugada, mas também não haverá o dia em que ela, aos cinco anos, lhe estenderá uma folha de papel

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onde você verá um desenho de um homem com a cabeça redonda e pauzinhos no lugar dos membros e a frase “eu te amo”. Mas você não precisa disso, não é? Você se basta! Ah, o que é isso? É uma lágrima? Eu estou vendo uma lágrima? Mas homens não choram, não é? Ainda mais homens de verdade como você! Ah, vai ficar aí, sentado no chão, encostado na parede, com esse olhar perdido? Eu esperava mais de você... O que mais vai acontecer agora? Você vai encolher-se, voltando à posição fetal, lembrando do dia...? Ao descer da banqueta, Daniel notou que seu pai o observava na porta do banheiro, mas dessa vez ele não fez nenhum gracejo. Tinha os olhos tristes, olhava para ele como se quisesse chorar. Daniel não gostou de ver o pai daquele jeito. Foi até ele e lhe deu um abraço, até porque gostava do cheiro do pai, que era meio adocicado, como os cigarros que ele às vezes fumava. E o pai lhe disse: Daniel, eu quero falar com você, meu filho – enquanto se agachava, olhando bem dentro dos seus olhos. Daniel? Lembra que a mamãe foi para uma casa onde cuidam das pessoas doentes, para que ela fosse tratada e ficasse boa? Deus não quis que ela ficasse boa, e decidiu levá-la para o céu. Deus. Que Deus é esse, que não tem compaixão por uma criança de três anos? Onde estava Deus quando minha mãe foi dilacerada por um câncer, comida vida, seus órgãos apodrecendo, sentindo dores lancinantes, definhando lentamente, na flor da idade, com dois filhos para criar e um marido que a amava? Onde estava a compaixão divina? Nós nascemos, passamos a vida sofrendo e depois morremos, e é o fim. Não há nada além disso. Tudo que eu queria agora era deixar de existir, apagar-me num instante, como se apaga uma vela. Puf! Dois olhos azuis. A fronte alva, serena. Dentes branquíssimos. Um leve sorriso. Acima, o teto, também branco. Emoldurando o rosto, cabelos negros, bem aparados. “Eu morri?”

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“Ainda não”, sorriu o anjo, ajudando Daniel a sentar-se contra a parede. “Você viu? Ela foi embora.” “Sim, ela foi. Ela precisava seguir o caminho dela. Assim como você precisa seguir o seu.” “Mas eu queria olhar para ela mais uma vez e pedir perdão. Agora é tarde. Depois dessa, acho que nunca mais a verei. Ela provavelmente vai mudar os números de telefone e fugir de mim como o diabo foge da cruz. Falando nele, hoje eu o ouvi claramente, falando comigo.” “Você ouviu o diabo falando com você?” “Sim, em alto e bom som. Ele estava no elevador.” O anjo sentou-se ao lado de Daniel, encostando-se também na parede. Os dois eram a única mobília na sala vazia. “Mas o diabo não é uma pessoa, ou uma entidade. O diabo, ou o demônio, é um sentimento muito particular. Ele é o egoísmo. O egoísmo é o mal do Homem. É o querer para si, que é o oposto da santidade.” “Eu sei. Tudo que estou vivendo foi por causa do meu egoísmo. Eu nunca consegui pensar em nada nem ninguém além de mim mesmo.” “Parabéns! Estou vendo avanços!” “Sem ironias, por favor.” “Desculpe.” Daniel esticou um pouco as costas e virou-se para o outro: “Não, eu é que peço desculpas. Eu não deveria falar assim com você. Mas estou me sentindo muito mal. Parece que tudo escureceu. Eu só queria vê-la uma última vez. Eu só queria ouvi-la dizer que me perdoa, aí eu iria embora em paz.” “Pois eu tenho uma boa notícia: Vivian já o perdoou.” “Estou vendo! Ela foi embora, fugindo de mim como se eu fosse um leproso. Belo perdão!” “Daniel, eu comecei a lhe falar do perdão, que você só pode fazer a sua parte, não a parte do outro. Pois bem, isso vale para os dois. Perdoar e ser perdoado são atitudes pessoais, íntimas. Você

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não o faz pelo outro, mas para si mesmo. Imagine a seguinte situação: alguém lhe fez muito mal, foi extremamente injusto com você, e você acaba nutrindo algo muito negativo em relação a essa pessoa. Você tem raiva, ressente-se, deseja-lhe o mal até, embora no fundo se censure. O tempo passa, e você lentamente vai chegando à conclusão de que esse sentimento só lhe traz mais coisas negativas, pois ele é uma toxina que envenena a você mesmo. Até que um dia você deseja perdoar essa pessoa, para libertar-se dessa toxina. Mas você descobre, então, que essa pessoa já morreu. Você ficará impedido de perdoá-la? Não! Você pode e deve perdoá-la, mesmo que a pessoa não saiba, ou não mereça. Porque você merece perdoar, você mesmo merece libertar-se do ódio. Vê? Por isso eu disse que perdoar e ser perdoado são atitudes íntimas e intransferíveis, e que independem de qualquer coisa, inclusive do outro. O mesmo vale para receber o perdão. Você deve merecer esse perdão, independentemente do outro. Se você verdadeiramente o merecer, você o terá. E o que eu vejo agora é que você merece dar a si mesmo esse presente. Você verdadeiramente o deseja. Por isso eu lhe digo: vá, você está livre.” Daniel levantou-se e caminhou, pesadamente, para a porta. Ao abri-la, voltou-se para o outro, que o fitava, também já de pé: “Daniel, mais uma coisa, e talvez a mais importante: você está perdoado por Vivian; agora você deverá exercer o outro lado da moeda: chegou a sua hora de perdoar.” Daniel não entendeu exatamente o que o outro queria dizer com aquilo, e naquele momento não desejava saber. Ele se sentia como que vazio; era como se nenhum desejo o movesse. Por um instante pensou até em quedar-se ali, parado, silencioso, sem nenhum esboço de vontade, a um metro da porta. Quem sabe se ele ficasse inerte, de olhos fechados, tudo deixasse de existir e ele, silenciosamente, deslizasse para um sono profundo, para o nada? Mas é preciso seguir em frente, pensou, nossa sina é continuar vivendo, trabalhando, pagando contas, andando, um pé na frente do outro, através de corredores e ruas e avenidas intermináveis e dor e

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alienação. Abriu os olhos, ergueu pesadamente o braço e abriu a porta. Não se lembra se a fechou atrás de si. Caminhar, um pé depois do outro, pois sim. Erguer o dedo, apertar o botão do elevador. Entrar no elevador, apertar o térreo. Sete andares, do paraíso perdido ao chão. Abrem-se as portas do chão. É ele que me cabe, é o meu quinhão. É a ele que eu pertenço. Quantos metros até a portaria? Alguns quilômetros, eu diria, penosos. Um último adeus a esse companheiro que mal conheci, embora tantas vezes eu tenha passado por ele. Um último olhar para a entrada do edifício. Virar-me, lá está o carro. Caminhar, caminhar... É preciso subir a montanha de Carrara, escolher o mármore, cortá-lo numa única peça de algumas toneladas, amarrá-la, enfiar estacas no chão, instalar roldanas, contar com a ajuda de inúmeros homens. É preciso muito cuidado para deslizar o enorme bloco montanha abaixo, muitos morreram esmagados, fraturas expostas. Depois, outro esforço hercúleo para levá-lo até Florença, sacar do buril e do martelo e começar o trabalho. É preciso força, as mãos doem. É preciso vontade e talento. É preciso visão. É preciso insistência. É preciso... a ajuda divina. Ele a teve, imundo, esfomeado, as botas enlameadas, feridas que não cicatrizavam. Empobrecido, incompreendido, desesperançado. Mas ele não estava só. Estarei eu? Suas obras estão aí, magníficas, divinas. A Pietá, Davi. E eu, o que sou? O primeiro esforço é enfiar a chave na ignição do carro, engatar a primeira marcha e sair. O segundo esforço é decidir aonde ir. A Carrara? Esquecer-me de mim, para quem sabe encontrar-me? Tudo é um cansaço indizível. Por que continuar, se não tenho um bloco de mármore a esculpir? Ele disse que eu tenho uma missão. Terei? Valerá a pena? Por que tudo gira em ciclos intermináveis para chegar a lugar algum? Talvez eu precise da ajuda divina. Que há mistérios neste mundo, sei que há. Essa coisa que existe dentro de nós, essa vontade de continuar, apesar da vontade de não continuar. O que será isso? Eu diria que é uma chama, se tivesse coragem. Diria que ela arde, se não tivesse tanto medo. Há uma luz que nunca se apaga, aquela música dizia. Não, ele também não tem medo. Diz o que

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pensa, não se importa com que os outros acham. Segunda marcha, terceira marcha. Ruas familiares, fachadas e prédios. Carros. Carros à frente. Carros atrás. Buzinas, semáforos, faixas e calçadas. Um motor que ronca, quase desesperado, mas jamais morre. A engenharia dos homens, uma entranha de fios e peças metálicas oleosas e escurecidas, e que possuem vontade sem fim. Os homens jamais cessam de querer existir. Por isso fazem carros, semáforos, pintam faixas e constroem calçadas. E prédios, aviões, navios e, meu Deus, instalam uma plataforma de petróleo em alto-mar. Os homens desejam, nunca cessam de desejar. Desejam que o motor os leve e os traga de volta. Se eu tivesse coragem, diria que desejam amar e ser amados. Mas eu o disse. Tive coragem para tal. Estou melhorando. O outro me disse que está vendo avanços. Que eu estou livre, veja só. Estranhamente, eu me sinto livre, solto no ar, numa queda livre. Há um certo prazer em estar caindo. Será que ela me vê? Será que ela ainda existe? Depois de todos esses anos, o que será ela? Uma alma, algo etéreo? Ou terá se transmutado, agora habitando outros mundos, sequer lembrando de que um dia me trouxe à luz? A luz, a luz no fim do túnel, a luz infinita, a minha pequena e pobre luz, minha lanterna barata com a pilha fraca. Caminhar, caminhar, então. Um pé depois do outro; primeira marcha, segunda marcha, terceira marcha; ponto-morto, pé no freio. Primeira marcha, segunda marcha... Os homens jamais cessam de desejar. Eu jamais cessarei de desejar. Apesar de neste momento estar desejando o contrário. Mas não! Os meus antepassados construíram barcos e jogaram-se ao mar, sem saber aonde chegariam. Eu não vou esmorecer por tão pouco. Eu não tenho que carregar um bloco de mármore de várias toneladas montanha abaixo, como fez Michelangelo. Ou terei? Talvez o meu bloco de mármore seja eu mesmo. Será essa a minha missão? É preciso continuar; viver é a verdadeira arte, disse Duchamp, o francês louco. Outro homem divino, por ser tão humano. Por que todos os meus deuses são artistas? Por que enxergo neles a divindade, e não nos verdadeiros santos? Por que só li São Tomás de Aquino por sua intelectualidade? Por que não aceito o mistério? Ele estará em mim? A fé, a fé... Nunca a tive. Sou uma

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bomba-relógio, segundo ele. E falou algo sobre humildade. Sim, que devo ser humilde. Às vezes ele me escapa. Mas muito me escapa, devo admitir. Sou um mero leitor de orelhas de livros. Sou uma fraude. Jamais admitiria que não gosto de filósofos porque jamais entendi um livro de filosofia sequer. Talvez se eu me concentrasse e tivesse paciência, mas minha preguiça mental é vertiginosa. Gosto de tudo mastigado. Mas tudo bem, aprendi a enganar os outros usando-me da palavra. Palavras vazias, esqueletos que não param em pé. Um regurgitador. E já me esqueço. Sagrada displicência, divina distração. Às vezes a fadiga é uma bênção. Sinto sono. É bem-vinda a minha sonolência. Onde estaremos ao dormir? Suspensos no nada? Vagando por outros mundos? Fazendo cirurgias espirituais? Não, nada de rir-me dos outros, eu estou num buraco. O que já é risível. Que riam de mim! Eu mesmo já desisti de levar-me a sério. Caminhar, caminhar! Partido ao meio, ridicularizado, vencido, mas ainda queimando por dentro. Pois caminhemos, então. Sempre haverá uma pausa para um café e um cigarro. Sempre haverá uma saída. Sempre haverá um... perdão. Quem eu deveria perdoar? Às vezes ele me escapa. Mas nem mesmo sei se ele existe. Talvez eu seja esquizofrênico. Aí estaria tudo explicado. Não, seria fácil demais. Eu não tenho sequer o direito à loucura. Estou preso à minha sanidade. Eu preciso vencer a mim mesmo, ele disse. Matar o meu desejo através do meu desejo e vencer a mim mesmo para ser invencível. Talvez ele tenha razão. Ele poderia facilitar as coisas para mim, e instalar um chip no meu cérebro que me permitisse ver tudo com mais simplicidade, com menos confusão. Não, não me considero confuso tampouco. Eu me considero... impotente. É como se eu desejasse acreditar, mas sem conseguir. É mais ou menos como esquecer. Tarefa impossível, essa de esquecer. Uma contradição em termos. Então é isso, estamos de volta em casa. A nova casa, devo aceitá-la. Ela já me aceitou. Talvez se eu a tratasse melhor, se distribuísse retratos pela sala, ela parecesse um lar. Por ora são apenas paredes. Que precisam ser pintadas, sim. Mas me reconheço nelas. Já é um começo. Um bichinho de estimação, talvez. Plantas. Lençóis lavados, a cama feita. Que ela suporte o peso do meu corpo

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já me basta agora. Eu me deito, a sensação é boa. Uma espécie de tontura. Afundo o meu rosto em suas entranhas. Reconheço o meu próprio cheiro: eu de fato existo. Mas quem eu devo perdoar?

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Capítulo 7

Chesed Os dias passaram e Daniel se viu flutuando em águas calmas porém turvas. Ele cumpria suas tarefas cotidianas sem muita vontade e sem muito esforço, e reconheceu nessa leve depressão certa arbitrariedade: ele desejava manter-se alheio e inerte para que pudesse entregar-se a seus pensamentos, para deles alimentar-se e intoxicar-se, como num vício. Vez ou outra lembrava-se do homem que conhecera, o ser misterioso que se apresentara como anjo, mas sua lembrança já começava a esvaecer, e Daniel também não fazia nenhum esforço para trazê-la à tona. Uma semana havia se passado desde que ele o vira pela primeira vez, e o assombro inicial desaparecera por completo. Já não sabia se desejava vê-lo novamente. Vez ou outra Daniel lembrava-se do que ouvira, mas tudo aquilo soava mais como uma curiosidade do que como um verdadeiro aprendizado; se ele sentia alguma mudança, era no desvanecimento do seu ânimo, no sentimento de derrota. Era em Vivian que ele mais pensava; ela era a materialização de seu fracasso, de seu egoísmo, de sua solidão. Em outros tempos, ele já estaria refeito - provavelmente já teria iniciado outra relação amorosa, para esquecer e para provar-se, mas agora ele sentia-se incapaz de envolver-se com outra mulher. Pela primeira vez na vida, sentia-se verdadeiramente pela metade. O termo “alma-gêmea” lhe causaria apenas desprezo em outros tempos, tal sua falácia; agora, parecia-lhe muito apropriado. Mais do que isso, ele sentia-se como um homem sem alma, talvez como o “homem oco” de T.S. Eliot. Mas Eliot falava da Europa devastada pela guerra; o seu sofrimento era bem mais comezinho. Não, talvez não. Shakespeare escreveu sobre o amor impossível, e de forma sublime. Há uma miríade de Isoldas, Cleópatras e Helenas por quem os homens moveram o mundo, e todos os grandes escritores ousaram escrever sobre o amor. Logo, ele deve ter alguma grandeza, refletiu Daniel. Sim, há uma

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profundidade inegável no amor verdadeiro entre um homem e uma mulher, e sinto essa profundidade na carne agora, pela primeira vez na vida. Talvez seja uma iniciação tardia. Talvez o que eu vivi até hoje foi uma encenação covarde e amadora do que é o amor – e Vivian veio me mostrar como é amar de verdade. O sangue... Daniel jamais tivera coragem e humildade para sequer verter uma lágrima, quanto mais sangrar. Agora, sim, sentia na carne e na alma o que significava verter sangue, suor e lágrimas por uma causa. Só que a sua causa era uma causa perdida, e isso parecia-lhe uma piada de mau gosto. Quando ele finalmente compreendeu a profundidade de seu sentimento e sentiu-se pronto para aceitá-lo, era tarde demais. Uma condenação tardia, por tantos anos de covardia e egoísmo. Os dias agora se arrastavam, e parecia que se arrastariam para sempre, sem trégua, e ele lentamente se transformaria num desses homens-cadáver que vagam pelas ruas, roupas puídas e olheiras, além de qualquer salvação. Será que ele seria capaz de amar novamente um dia? Será que ele teria uma segunda chance? Ele seria capaz de esquecer Vivian e voltar a encantar-se por outra mulher, para então finalmente viver o amor de forma plena? Os dias sucediam-se iguais, dizendo-lhe que não, que nada mais mudaria. No trabalho, Daniel executava seu trabalho de forma mecânica, sem muita paixão. Evitava conversar e almoçar com os colegas, e rechaçava qualquer aproximação das mulheres da redação. Ao fim do dia, ia para casa e prostrava-se diante da televisão, passando incessantemente pelos canais, sem deter-se em nenhum, fumando um cigarro atrás do outro. Quando sentia-se exausto, deitava-se, mas passava horas revirando-se na cama, tentado dormir. Muitas vezes levantava-se de novo, no meio da madrugada, acendia um cigarro e observava a cidade pela janela da sala. Uma fileira de prédios escuros, acima deles um céu cinza-chumbo, e estrelas que não se via. Um tapete deslumbrante delas, ele desconfiava, mas que lhe era negado. Aqui e ali, janelas acesas, e atrás delas outras almas desbotadas, outros homens e outras mulheres vencidos por uma solidão atroz, a acender um cigarro após o outro, a rechaçar um pensamento atrás do outro, ocupados na maior parte do tempo em

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esquecer. Que estrelas brilhariam sobre os mortos? Aquela mulher, à janela do prédio bem à frente, no quinto andar – eu sei quem ela é, pensava Daniel. Provavelmente casou-se cedo, o marido morreu há alguns anos, e o filho não vem visitá-la. Ela contenta-se com uma aposentadoria minguada que recebe pelos anos em que trabalhou como funcionária pública, às vezes feliz por ter conseguido comprar um apartamento e não estar num asilo, mas na maior parte do tempo amortecida por um sentimento de derrota, custando a acreditar que isso é tudo: que todos os dias agora serão iguais, sem amores, sem surpresas; envelhecendo a cada dia, a cada dia mais lenta, a cada dia mais enrugada, a cada dia mais irascível. Por isso ela fuma à janela, a esta hora da madrugada. Por isso a insônia. Por isso as estrelas não brilham sobre a sua cabeça. Aquele homem, no prédio ao lado, aquele mais baixo, no terceiro andar – eu também sei quem ele é. Ele não se casou, preferiu guardar toda a sua energia e os seus recursos para si próprio, entregue a prazeres egoístas e à sua cegueira. Os anos passaram, os recursos foram escasseando, assim como o seu vigor; alguns amigos morreram, outros simplesmente afastaram-se, não que ele se importe. A sua barriga proeminente, a gordura que se formou no pescoço e os fios grossos de cabelo que saem de suas orelhas e que não são aparados conferem-lhe um aspecto grotesco. Não que ele se importe. Mas os dias se tornaram iguais uns aos outros, com menos prazeres. Ele já não consegue arrumar namoradas como antes; sente-se velho, cansado. Continua a trabalhar, não tem aposentadoria, paga aluguel, e isso lhe tira o sono às vezes, e tão somente isso. De resto, desliza pesadamente pelos dias, sem dar-se conta de que já morreu, ou antes, de que jamais viveu. Por isso ele fuma à janela, de madrugada. Por isso as estrelas não brilham sobre a sua cabeça. Esses são os vencidos, os que não dormem. Eu me juntei a esse exército patético, disse Daniel a si mesmo.

***

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Foi no décimo segundo dia após o primeiro encontro que Daniel viu o anjo pela última vez em sua vida. Ao sair do apartamento vazio de Vivian, ele não olhara para trás nem dissera uma palavra, e agora sentia que precisava encerrar esse ciclo, dizer-lhe adeus. Ele escolheu uma tarde de sol ameno de uma terça-feira e foi ao Parque Ibirapuera, estacionou o carro, caminhou por entre árvores centenárias e sentou-se num banco de concreto diante do lago. Sabia que o outro iria encontrá-lo, e tão logo sentou-se, ele o viu aproximar-se, caminhando graciosamente pela alameda que circundava o lago. Desta vez, estava sem o paletó, e as mangas da camisa branca estavam dobradas acima do antebraço. Os dois homens cumprimentaram-se com um sorriso silencioso. “E então, Daniel, como você está?” “Você sabe muito bem, meu amigo. Você tudo vê e tudo sabe...” “É verdade. Eu sei o que você está sentindo e sei que você não acreditará em mim agora, mas isso passará, e o sol brilhará para você de novo - para usar uma metáfora surrada e lhe dar pruridos.” Daniel sorriu e pousou os olhos sobre o lago. Notou que havia cisnes pretos e brancos amontoados à margem direita, onde um homem jogava-lhes migalhas. “Eu vim aqui para me despedir de você”, disse, por fim. “Sim, nosso último encontro não foi num dia muito agradável para você.” “Desculpe, eu saí sem sequer me despedir. Eu fiquei atordoado, só lembro que peguei o carro e saí dirigindo sem rumo, talvez durante horas. Só lembro depois de chegar em casa, me jogar na cama e apagar.” Daniel virou-se no banco e fitou o outro. “Eu quero que você saiba que refleti e continuo refletindo sobre tudo que você me disse. Embora possa parecer, você não falou para as paredes.” “Eu sei que não, meu caro Daniel. Mas o que eu fiz foi apenas lhe abrir algumas portas, para que você tivesse um vislumbre do que pode mudar em sua vida. Se você desejar de fato mudar,

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deverá você mesmo vasculhar o que há por trás dessas portas. E você pode mudar. Chega de sofrer; nós não viemos ao mundo para sofrer, mas para experimentar o milagre e a glória da vida.” “Eu me pergunto se um dia conseguirei.” “Você pode conseguir, se buscar aquela leveza que pregam os mestres orientais e dizem: a felicidade é como uma borboleta – se você a perseguir, ela fugirá; porém, se você ficar quietinho, ela pousará sobre você. É simples.” “Complicadamente simples”, retrucou Daniel. “Todos nós carregamos um fardo imenso...” “Esse seu fardo, jogue-o de lado, olhe para a frente e saia andando.” “Isso é o que eu mais desejaria neste momento. Mas às vezes eu me sinto como que pregado ao chão. Acho que eu jamais terei as suas asas.” “Há um ditado que diz: ‘Quem tem os dois pés plantados no chão não consegue dar um passo adiante’. A inteligência e o pragmatismo podem ser úteis, mas às vezes é necessário se atirar no vazio. Acredite: todas as experiências humanas que valem a pena são um mergulho no escuro. Nascer e morrer são uma vertigem; nesse meio-tempo nossa preguiça e nossa covardia nos fazem escolher a segurança, e aí começamos a morrer verdadeiramente. Eu sei que muitas coisas que eu lhe disse soaram como meras platitudes, mas às vezes é o mais óbvio que não se vê.” Daniel levantou-se e começou a caminhar em direção ao lago. O outro o acompanhou. Ao chegar quase à beira d’água, disse: “Sabe, desde que começamos a conversar, muitas vezes me perguntei se você de fato existia. Às vezes eu me lembrava de você como quem se lembra de um sonho. Mas sempre que estamos juntos, eu me sinto como que conversando com um amigo, embora lá no fundo eu ainda não acredite nessa história toda. Me diga, por favor, quem é você afinal?” O anjo sorriu levemente, olhando para o imenso lago. Os cisnes se alvoroçavam cada vez que o homem lhes jogava migalhas, a alguns metros deles. Por fim, ele fitou novamente Daniel.

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“Pois bem, eu vou lhe mostrar quem sou. Venha para bem perto de mim.” Daniel deu um passo adiante, um tanto desconfiado. O outro se aproximou mais dele, ficando a menos de um palmo do seu nariz, e disse: “Aproxime-se. Olhe bem dentro dos meus olhos. O que você vê?” “Só estou vendo o meu reflexo nos seus olhos.” “Exatamente. No Antigo Testamento, há várias passagens que citam ‘a menina dos olhos’, a ‘pupila’. Em Provérbios, por exemplo, está: ‘Guarda os meus mandamentos e vive; e a minha lei, como a menina dos teus olhos’. Porém, a palavra ‘pupila’ vem do latim. No hebraico original, a palavra usada é ishon, que significa ‘pequeno homem’. Porque é isso que você vê quando fita o olho de outra pessoa bem de perto – o seu próprio reflexo, diminuto. Lembre-se: tudo na natureza é também alegoria; tudo é símbolo, metáfora. Uma poesia sutil, às vezes incompreensível. Ao se aproximar do outro você se vê nele porque você, no fundo, é o outro, e ele é você – pois somos todos da mesma matéria, filhos do mesmo Pai, e habitamos o mesmo mundo – lembra-se da Teoria da Criação da Cabala, de que lhe falei? Nós somos fragmentos do Recipiente. Ou, se quiser usar a sua Ciência, somos fragmentos de estrelas que explodiram em magníficas supernovas, jogando no espaço os elementos que formaram as galáxias, os planetas e cada átomo do nosso corpo. Pois eu sou apenas isso: um homenzinho refletido na sua pupila, assim como você está refletido na minha. Quem dirá se eu sou real é você, ou melhor, quem decidirá se sou real é você, pois é você quem me vê. Talvez eu seja uma invenção sua. Talvez eu seja você mesmo.” “Você só está me deixando mais confuso”, disse Daniel, sentindo que suas palavras não carregavam uma crítica ou um confronto, mas um lamento. “Então use a sua humildade, pela primeira vez na vida. Admita que não me entende, que não consegue me compreender. Eu não lhe peço que me compreenda, mas que me aceite, que aceite o

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que eu digo. Lembra do que eu disse, que a humildade lhe seria muito mais útil do que a fé? Seja humilde, então. Tente ser. Não tente entender. Apenas seja e sinta.” “Ser o quê?” “Seja um homem mais humilde e menos fatalista. Seja corajoso, pois a humildade exige coragem. Seja esperançoso, pois a esperança retirará o peso do fatalismo dos seus ombros. Sinta, ou melhor, permita-se sentir compaixão, e amor. Amor pelos outros e por si mesmo, amor pela vida e por todas as coisas. Assim você será um homem verdadeiramente decente, para usar a expressão de que você gosta, independentemente do nome do seu deus ou dos seus deuses ou da sua religião. Você de fato é um homem decente, porque não pratica o mal deliberadamente. Mas o que o rege é a racionalidade: você pisoteia os seus sentimentos em nome do seu intelecto. Por isso você é um homem pela metade, que criou para si próprio uma cilada racional, gerando uma enorme confusão.” Daniel baixou os olhos, pensativo. Lembrou que restava uma última pergunta. Ergueu os olhos novamente e viu que o outro esperava para ouvi-la. “Você disse que eu precisava perdoar, mas eu não entendi direito. Que eu precisava ser perdoado por Vivian, disso eu sei, e tenho me esforçado para acreditar no que você me disse – que ela me perdoou. Mas quem eu devo perdoar?” O anjo olhou novamente para o lago e estendeu o braço, apontando-o: “Deus. O que você viveu na infância foi muito doloroso e incompreensível para você, mas tudo na natureza tem seu propósito, e todas as almas têm sua missão. A missão de sua mãe era vir, viver o que viveu e partir, exatamente como o fez e exatamente naquele momento. As razões pelas quais nascemos e morremos não lhe pertencem, ainda. São desígnios superiores, estão em outra esfera. Um dia você os compreenderá. Por ora, deve apenas aceitá-los.” O anjo virou-se e, com um gesto, convidou Daniel a caminhar. Os dois homens tomaram a alameda por onde o anjo havia chegado, andando lentamente e falando baixo.

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“Daniel, eu disse que lhe mostrei algumas portas que você deveria abrir. Há muitas delas, cada qual um caminho iluminado. Todas prescindem da racionalidade; todas são um mergulho no vazio. Mas eu lhe garanto: no fim do mergulho há um prazer indizível. Essas portas se abrem para caminhos, na verdade, e cada viajante escolhe o que mais lhe convier. Há o caminho do Tao, repleto de beleza; há o caminho de Yeshua, cheio de compaixão; há o Quarto Caminho, uma trilha de mistérios revelados; há o caminho do Zen, onde se pode se harmonizar com a Natureza em sua plenitude, e muitos outros... Há caminhos que exigem força quase sobre-humana; outros, por sua vez, exigem apenas desprendimento. Mas acho que sei qual caminho lhe será mais adequado, e eu lhe darei uma senha. Com ela, você abrirá uma pequena porta, e se você assim o desejar, esta lhe abrirá outras, e ao fim de sua jornada, você terá compreendido todos os mistérios e sentirá a vida em toda a sua glória.” O anjo estendeu a Daniel um pequeno papel, dobrado duas vezes. Ele o abriu e viu escrito, em tinta preta:

ה ה ע Ele fitou, durante alguns segundos, aquelas três letras que lhe eram estranhas. Suspeitou que fossem da língua hebraica, mas não tinha certeza. Levantou os olhos para perguntar ao outro, mas ele já não estava lá. Daniel olhou em volta e tudo que viu foi um homem, ao longe, alimentando os cisnes.

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Capítulo 8

Binah Após aquele último encontro, Daniel decidiu voltar à redação para esclarecer do que tratavam aquelas letras. Chegando lá, já ao cair da noite, viu, com certo alívio, que quase todos já haviam saído. Uma rápida pesquisa revelou que eram, de fato, letras hebraicas: a letra “ain” e a letra “hei” repetida duas vezes. Mas o que significavam? Provavelmente era algo relacionado à Cabala. Ele se lembrou que um colega havia escrito um artigo, um tanto negativo, é verdade, sobre a sua popularização entre as celebridades. Ligou para o celular dele, que lhe passou o contato de um certo Centro de Estudos da Cabala, no bairro de Higienópolis, tradicional reduto dos judeus paulistanos. Ele deveria procurar o rabino Joseph, que certamente poderia lhe explicar do que se tratava. Daniel ligou para o tal centro, disse que estava interessado em escrever outra matéria e que não, não estava determinado, de antemão, a criticar o Centro ou a Cabala, apenas a colher informações, prometendo ser imparcial em seu juízo. A mulher, que se apresentou como Esther, disse que conversaria com o rabino e que telefonaria confirmando o encontro. Daniel ficou surpreso quando ela ligou, quinze minutos depois, dizendo que ele poderia encontrar o rabino Joseph no dia seguinte, às três da tarde.

*** Ao entrar no pequeno edifício de três andares onde estava localizado o Centro de Estudos da Cabala, Daniel ainda não havia decidido se faria o papel do jornalista interessado ou se abriria o jogo e contaria a sua história pessoal. Dispensou o elevador e subiu até o segundo andar pelas escadas, ao mesmo tempo hesitante e ansioso

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por uma resposta. Chegando lá, foi recepcionado por uma judia de uns 40 e poucos anos, simpática e sorridente, que pediu que ele aguardasse num salão adjacente ao hall de entrada. Daniel entrou, e viu-se diante do dilema entre permanecer em pé ou sentar-se numa das dezenas de cadeiras que formavam a platéia do pequeno auditório. Olhou em volta e viu fotos de Jerusalém e diversos cartazes com dizeres em hebraico. Após alguns minutos, um homem magro, de cerca de 50 anos, barba bem aparada e roupas sociais entrou no salão. Tinha o nariz longo e aquilino, trazia um sorriso nos lábios e um quipá no alto da nuca. “Daniel? Eu estava mesmo esperando você”, disse, com certo sotaque, repentinamente mais sério. Havia algo nos olhos do rabino que parecia lhe dizer que ele sabia da história do anjo – talvez até mesmo já soubesse sobre as três letras. Daniel, sem saber como abordar o assunto, hesitou durante alguns segundos, como se buscasse as palavras... mas o rabino se adiantou: “Esther me disse que você viria!”, e riu, como quem prega uma peça. Sua risada era surpreendentemente jovial, levemente jocosa, como a desses homens bem humorados que estão sempre dispostos a um chiste. Que ótimo, pensou Daniel. Mais um engraçadinho. “O seu colega não foi muito generoso conosco, Daniel. Mas eu já estou acostumado. É sempre a mesma história: ‘O que o senhor acha da Madonna seguir a Cabala?’ Ora, eu digo, o fato da Madonna seguir a Cabala não depõe nem contra nem a favor da Cabala! Você deve julgar um ensinamento pelo seu conteúdo, não pelos que o seguem!” – e riu novamente, como quem conta uma anedota. Daniel riu também, mais por educação, embora estivesse sinceramente aliviado por estar diante de um homem tão simpático e acolhedor. Sentiu que talvez fosse mais honesto de sua parte contar a verdade: “Bem, para ser sincero, eu não vim colher informações para escrever uma matéria. O motivo, na verdade, é pessoal.”

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O rabino fez menção para que Daniel se sentasse numa das cadeiras. Mas, ao invés de se sentar também, tocou gentilmente no ombro de Daniel: “Sinto que essa conversa será um pouco longa. Você toma chá? Vou pedir que Esther nos sirva duas xícaras de chá. Eu volto já.” Daniel viu o homem caminhar até a porta que dava para a recepção e conversar com Esther. Por algum motivo, ele sempre imaginara rabinos como anciãos pesados, de longas barbas grisalhas, circunspectos e graves, mas aquele homem era ágil e espirituoso – não fosse o quipá, poderia facilmente se passar por um professor universitário. Ao voltar, o rabino puxou uma cadeira e sentou-se diante de Daniel. “Sou todo ouvidos!”, disse, e novamente soltou sua risada típica. Daniel simplesmente não sabia como começar. Na verdade, no fundo, temia contar a história do anjo e ouvir o diagnóstico de que precisaria de tratamento psiquiátrico. Enquanto aquela experiência fosse só sua, ele poderia lidar com ela com seus próprios recursos, da melhor forma possível, acreditando e não acreditando, talvez até mesmo alentando-a como quem alenta um segredo indizível, ao mesmo tempo constrangido e excitado por trazê-lo dentro de si. Por outro lado, aquele homem lhe inspirava total confiança, e tal qual ele fitava Daniel ali, qualquer palavra pareceria dispensável. Por fim, Daniel simplesmente retirou do bolso o papel que o anjo havia lhe dado e o estendeu ao rabino, que o abriu e logo explicou: “É um dos 72 nomes de Deus.” Daniel ficou atônito. Ele não sabia que Deus tinha 72 nomes. “Isso é algum segredo cabalístico?”, perguntou. “Não, não é segredo nenhum! Olha lá!”, disse o rabino, apontando para um quadro na parede onde se via um diagrama com 72 combinações de letras hebraicas. “Mas, meu caro, antes que continuemos, deixe-me explicar essa história de ‘segredos cabalísticos’. Você sabe por que os primeiros cabalistas mantinham

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seu conhecimento em segredo? É simples: porque, naquela época, afirmar qualquer coisa contrária aos dogmas vigentes era o suficiente para você ser condenado à morte! Só isso. O rabino Akiva, o maior dos mestres do Talmude, foi morto pelos romanos. Já o rabino Shimon Bar Yochai, que escreveu o livro fundamental da Cabala, o Zohar, viveu 13 anos escondido numa caverna, para não ser morto também. Durante a Inquisição, a perseguição foi mais brutal ainda. Hoje somos todos livres para seguirmos o que quisermos; todos têm liberdade religiosa. Então, para que segredos? Não há segredo nenhum. Mas, voltemos aos 72 nomes de Deus. Antes de mais nada, você deve saber que os judeus consideram o idioma hebraico sagrado. Você já deve ter visto judeus ortodoxos envergando o tefilin – aquela caixinha contendo pergaminhos em miniatura que eles amarram no braço ou na testa. Neles, há passagens da Torá, mas não se trata apenas do significado que eles encerram – as letras em si também emanam uma energia sagrada. Você talvez já tenha ouvido falar em Gematria, também. Ela é ferramenta pela qual nós, cabalistas, interpretamos as escrituras sagradas e o Universo, através da aritmética, da geometria, da criptografia. O Velho Testamento foi escrito em linguagem cifrada, e para compreendê-lo totalmente, é preciso aplicar essas regras. E quem nos ensinou isso? Foi o próprio Abraão, o Patriarca, quem recebeu, por inspiração divina, a chave para desvendar esses códigos, que estão no livrinho Sefer Yetzirah, ou O Livro da Formação. Digo ‘livrinho’ porque ele possui apenas algumas poucas páginas – mas nelas está a chave para a compreensão de todo o Universo. Pois bem, voltando ao alfabeto hebraico: suas 22 letras possuem a energia das várias manifestações de Deus. A Cabala desvendou uma passagem crucial em Êxodo, na qual Moisés divide o Mar Vermelho. São os versículos 19, 20 e 21 do capítulo 14. Cada versículo possui, em hebraico, exatamente 72 letras, que revelam 72 combinações do nome sagrado, cada combinação emanando uma energia específica. E você nem precisa falar hebraico, Daniel. Basta ‘escaneá-las’ com os olhos e a energia emanará.”

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Daniel quedava-se na cadeira, entre pasmo e incrédulo com aquela explicação. Olhou novamente para o papel, que segurava, ainda desdobrado. “Eu fiz uma pequena pesquisa. Essas são a letra ain e a letra hei, não?” “Exatamente. Nós lemos da direita para a esquerda: hei-hei-ain.” “E o que exatamente elas emanam?” Nesse momento, Esther chegou com uma pequena bandeja de prata, sobre ela duas xícaras de porcelana. Daniel rapidamente dobrou novamente o pedaço de papel e o enfiou no bolso da camisa, pegando cuidadosamente a xícara com as duas mãos. O rabino sorveu o seu chá e ergueu os olhos para Esther: “Está muito bom! Obrigado.” Quando Esther sumiu pela porta, o rabino pousou a xícara sobre a cadeira ao lado, e deu um pequeno suspiro: “Esse nome é o nome do amor, da harmonia, da sintonia entre as almas. Estamos falando de relações, de família, de casamento, seja perante Deus, seja perante o outro, seja perante a comunidade, seja o que for. Ele nos ajuda a resgatar a nossa própria consciência interna, que se baseia no livre-arbítrio. A escolha é nossa; tudo é uma questão de escolha. Por causa disso, a gente tem essa tendência de não decidir, perder o livre-arbítrio, e jogar o destino nas mãos de Deus, do padre, do rabino, de quem for. ‘Ah, mas foi um casamento perante Deus, e não ajudou’. Claro, não ajuda. Não é Deus quem decide o nosso destino. Somos nós. Então, esse é o ponto-chave da Cabala. Inclusive a nossa vida familiar, a nossa vida amorosa, as nossas relações. O nome hei-hei-ain nos ajuda em nossas relações. As relações começam com nós mesmos. Pessoas que não se amam, que não são capazes de viver em harmonia consigo mesmas nunca serão capazes de achar o amor no outro. Porque o amor é compartilhar. Se eu sou nervoso, se eu sou uma pessoa perturbada ou frustrada, eu nunca vou achar o amor. Eu nunca vou conseguir compartilhar o amor. Como eu posso dar algo que não tenho? Eu preciso achar o amor dentro de mim. A fonte do

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amor não é a esposa, não é o marido, nem as relações sexuais. A fonte do amor é a Luz Infinita. E hei-hei-ain nos ajuda a entrar em harmonia com nós mesmos e com a Luz Infinita.” Daniel bebia o seu chá, pensativo e atento, tentando encontrar-se no meio de todas aquelas revelações. Ele nunca entendera exatamente o que era o amor, ou nunca o experimentara antes da Vivian, e agora sentia-se novamente impotente. Amar-se primeiro, depois encontrar o amor... Isso soava como uma utopia: Daniel, no fundo, odiava a si mesmo. Ou o que ele havia se tornado. O rabino pegou novamente sua xícara e deu mais um gole, com um olhar zombeteiro: “Sabe qual a melhor forma de acabar com o amor entre duas pessoas? Casando-as!” E deu sua risada típica. “Desculpe a piada, mas a vida é assim. E essa é a beleza de nossa vida aqui na Terra: ter os dois sexos que, por um lado, sentem muita atração – não é por acaso – mas, por outro lado, também sentem muita rejeição. Como explicar isso? Duas pessoas se apaixonam durante seis meses ou um ano, depois a paixão desaparece, e começam os mal-entendidos, as brigas, as discussões, e elas acabam se separando, depois do casamento. São os fatos da vida. Será que existe uma saída, uma salvação dessa situação? A salvação existe. É difícil resgatá-la; é difícil, claro, corrigir milhares de anos de má-conduta, de egoísmo. Mas é possível, basta você ter a vontade de mudar e melhorar. Mas você precisa primeiro preparar-se, para poder receber o outro.” Os olhos de Daniel agora percorriam as paredes da sala, perdidos no redemoinho de pensamentos que o acometiam. Ele não sabia exatamente por que, mas subitamente começou a pensar em seu pai. Após a morte da esposa, ele criou os filhos com uma severidade silenciosa e distante, e jamais casou-se de novo. Durante a adolescência de Daniel, houve os previsíveis conflitos que os afastaram, e tão logo pôde, Daniel saiu de casa para morar com amigos. A relação entre eles resumia-se a telefonemas em datas especiais. Depois que ele saiu de casa e sua irmã se casou, seu pai resolveu ir morar no interior. Vendeu o apartamento da família, repartiu o valor entre os três e mudou-se para São Roque, onde

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comprou uma casa simples, mas que tinha um enorme quintal, onde ele criou uma horta da qual cuidava com esmero. Até onde Daniel sabia, ele jamais envolvera-se com outra mulher após a morte de sua mãe. Esse detalhe sempre o intrigava e irritava, e ele não entendia bem o porquê. Por um lado, ele admirava a dedicação do pai à memória da mãe; por outro, ressentia-se por admitir que ele, Daniel, jamais seria capaz de fazer o mesmo por quem quer que fosse. No fundo, o estoicismo do pai o humilhava, mostrava uma altivez moral que ele não tinha – por isso, no fundo, Daniel o odiava também. Diante da tragédia que se abateu sobre a família, seu pai escolheu o caminho da resignação, e Daniel, o da rebeldia. Essa era a diferença primordial entre eles e a raiz de todos os conflitos surgidos já na adolescência do filho. Mas, agora, diante de tudo que ele vivera e que começava a aprender, empiricamente, a suposta fraqueza do pai revelava-se força, e Daniel experimentava uma epifania – o que antes era uma temerosa escuridão começava a desanuviar-se, revelando um horizonte antes não visto, tão vasto que mostrava-se ao mesmo tempo assustador e auspicioso. “Essas três letras que você tem aí no bolso”, continuou o rabino, “podem ajudar você. Acreditando ou não no que eu disse, tente. Você não tem nada a perder, não é?” Não, pensou Daniel. Um morto não tem nada a perder. A minha única saída é a ressurreição. “E como eu faço exatamente?” “Pegue um momento do dia em que você estiver calmo, sente-se, respire fundo. É preciso que haja silêncio. Primeiro, olhe para as letras, para o seu desenho. Deixe que seu formato penetre em seus olhos. Lembre-se de respirar lenta e profundamente. Depois, feche os olhos e pronuncie: hei-hei-ain... E pense no significado do amor, da harmonia, do entendimento entre os seres. Pense nas pessoas que você ama, mentalize os seus rostos, lembre de suas vozes. Afirme mentalmente que você deseja a harmonia a o amor. Afirme mentalmente que você possui harmonia e amor dentro de você. Acredite que você é uma fonte de harmonia e amor, que você abrirá os seus canais para que esse amor e essa harmonia

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encontrem o outro, e sendo o outro um espelho onde você se vê, o amor e a harmonia serão refletidos de volta para você. Isso é fato; isso é tão certo quanto a terceira lei de Newton.” Daniel lembrou-se do que o anjo havia lhe dito sobre o homenzinho refletido no olho. Seria possível mesmo, como queriam os cabalistas, que tudo no Universo tivesse um sentido intrínseco e oculto, à espera de uma chave que desvendasse o seu funcionamento? Ele aprendera a ver o Universo como um mundo caótico, e só. Nós nascemos, vivemos e morremos, e a vida é isso aí, apenas o que nossos olhos enxergam. O absurdo é real, palpável. As supostas palavras de Samuel Beckett sempre ecoaram em sua cabeça: “Proponho deixarmos o caos entrar, porque ele é verdadeiro”. A realidade impõe-se de forma implacável sobre os seres humanos, e não há nada que detenha a marcha irrefreável rumo à velhice e à morte. Amores transformam-se em ódio e ressentimento, e a natureza do homem é corrupta. Porém, agora, a imagem e a lembrança de seu pai avultavam-se de forma inesperada e repentina, uma sombra enorme que lhe causava ao mesmo tempo temor e admiração. Lembrou-se de uma frase que o pai sempre lhe dizia, cujo significado lhe escapava durante a infância, mas que, já na adolescência, começou a lhe irritar profundamente: “Há sempre dois caminhos, o caminho certo e o caminho fácil”. Ele agora compreendia que havia escolhido o caminho fácil: ele havia se rebelado contra um mundo injusto e caótico, portanto estava livre para odiar aos outros e a si mesmo. E agora, ali, diante daquele rabino, ele via-se derrotado, sozinho, quase arrependido. Juntou o que lhe restava de vontade e ímpeto, agradeceu as explicações e despediu-se, descendo novamente pelas escadas, pesadamente; o vulto de seu pai agarrado às suas costas. Daniel chegou à calçada e viu um dia radiante e tranquilo. Pessoas flanavam para lá e para cá pela pacata alameda, vez ou outra o zumbido de um carro cortando o barulho do vento contra as folhas das árvores. Admirou-se de ver que o mundo estava indiferente às suas dores, e que o Universo continuava sua marcha inexorável, silenciosa e lenta: o sol continuaria a nascer e a morrer,

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todos os dias, assim como tudo que vive, do mais minúsculo inseto ao mais arrogante ser humano, nascendo, vivendo e morrendo... Mas a equação fatalista de Daniel encontrou, por sua epifania, a sua resolução: o Universo é indiferente a nós, sim, mas não é caótico, pois que é um ciclo perfeito – nascer, viver, morrer... e de novo nascer, viver, morrer, infinitamente... Ele se lembrou do que o anjo havia lhe dito no metrô, sobre anular o sentimento do trágico através da crença na redenção. Talvez ele tivesse salvação, afinal. Mas o ódio que ele sentia era real, também. O anjo havia falado sobre perdoar. Mas perdoar agora lhe parecia uma tarefa impossível; ele se via ao sopé de uma montanha gigantesca, e lhe faltavam forças. Acima de tudo, ele se sentia só. Por um instante, relembrou da morte de sua mãe, quando ele se viu privado da pessoa que mais amava, que mais o compreendia e acalentava, e foi deixado a sós com uma irmã insuportável e um pai excessivamente reservado. Compreendeu, agora de forma clara, que tudo que fizera vida afora foi uma encenação dessa perda, refutando toda possibilidade de harmonia para punir a si mesmo e reiterar sua dor. Ele perdera a mãe, a irmã – por quem durante toda a vida nutriu apenas desprezo – , perdera o pai, ao se afastar, e perdera Vivian, a única mulher que realmente havia amado. Será que três letras hebraicas trariam a sua redenção, como num passe de mágica? Por mais que Daniel quisesse acreditar, não conseguia. Apesar do cansaço indizível que sentia de toda a luta, não encontrou em si a humildade de que falou o anjo, aquela necessária para aceitar o desconhecido. O mergulho no vazio. Não, Daniel sentia na verdade uma enorme vertigem, suas mãos agarradas às margens daquelas águas profundas, as unhas esbranquiçadas, as veias de suas mãos salientes, de um azul cadavérico. Tudo que ele sentia, no fundo, era medo, um medo que o dominava e paralisava. Mas o vulto daquele homem permanecia ao seu lado, em pé, grave e silencioso. Daniel olhou para cima e tentou enxergar os seus olhos, mas o sol da tarde brilhava por trás de sua cabeça, deixando o rosto na sombra, indistinguível. Ele precisava lhe falar, mas queria antes ver os seus olhos, talvez para tentar achar neles o seu próprio reflexo. Ele se levantou, se refazendo do pânico

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que o tomara, e se dirigiu ao seu carro. Ele sabia exatamente aonde precisava ir, e a jornada duraria cerca de duas horas.

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Capítulo 9

Chochma O sol da tarde já estava mais ameno quando Daniel entrou na cidade de São Roque. Atravessou o pequeno comércio central e serpenteou por ruas pacatas, tentando lembrar-se de onde ficava a casa do pai, que não visitava havia mais de um ano. Daniel o visitara poucas vezes, e da última havia sentido certo desconforto, como se não houvesse mais possibilidade de entendimento entre eles, ou mesmo a vontade de qualquer uma das partes de que ele acontecesse. Ou, antes, houvera sempre um descompasso entre os dois: seu pai era um homem silencioso e calmo; Daniel era verborrágico e agitado. Teria puxado à mãe? Ele nunca havia conversado com o pai sobre ela; o silêncio pesaroso dele era como um entrave às suas indagações, que foram deixadas de lado num esforço lento e torturante de esquecer. Mas Daniel agora compreendia que jamais a havia esquecido – como poderia? Ele apenas havia coberto o seu vulto com um manto, mas ele permanecia lá, como uma esfinge, como uma dor irrefutável, talvez como o espelho mais nítido e desconcertante. Ele precisava compreender a sua mãe para talvez compreender a si mesmo. E só o seu pai seria capaz de ajudá-lo nessa tarefa – sua irmã também era jovem demais quando ela morrera para se lembrar de muita coisa. Daniel se via, portanto, diante de um desafio duplo e vertiginoso: confrontar o pai e desvendar a mãe. Ao estacionar o carro bem à frente da casa de seu pai, Daniel logo percebeu que ela havia sido pintada recentemente. O amarelo-ocra contrastava com as molduras branquíssimas das janelas de madeira, que haviam sido envernizadas. Por entre os vãos do portão de ferro, via-se um jardim bem cuidado, que parecia uma casa de boneca, ou dessas que se vê em contos de fadas. O sol começava a se pôr, e havia assumido uma coloração alaranjada, tornando a cena ainda mais pitoresca. A rua estava vazia, exceto por um cão sarnento

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que o observava da calçada, com o olhar desconfiado. Daniel não sabia se o seu pai estava em casa; não havia ligado avisando que viria, como fez das outras duas vezes em que lá estivera. Saiu do carro e permaneceu por um longo tempo diante do portão, tentando imaginar o que diria a ele. Mas, tão logo a noite desceu por completo, a luz da varanda se acendeu, e um vulto apareceu dentro da casa, olhando através da janela. Estranhamente, seu pai não pareceu surpreso por vê-lo ali. Claramente emocionado, ele saiu, abraçou Daniel e, sem dizer uma palavra, apontou para a porta da casa. Lá dentro, Daniel reconheceu os mesmos móveis e a mesma configuração na pequena sala, que estava limpa e arrumada, apesar dos móveis simples e singelamente fora de combinação. Foi com uma ponta de dor que percebeu que o pai se esforçava para manter um ambiente que lembrasse um lar, apesar da solidão injusta e insuportável que deveria sentir, sem a mulher que sempre amara e longe dos filhos. Aquele homem ali, em pé, ao seu lado, silencioso, era uma fortaleza moral que fazia Daniel sentir-se ainda mais diminuído, envergonhado até. Mas era hora de alguém quebrar o gelo. “Você aceita um café, meu filho? Eu não costumo jantar...” “Claro, pai. Seria ótimo.” “Mas eu tenho comida pra esquentar, se você quiser...” “Não, eu também não costumo jantar, só faço um lanche. Estou precisando mesmo entrar em forma.” “Mas você está magro.” “É, mas tenho uma barriguinha aqui que não vai embora. Deve ser da cerveja.” O pai riu. Fez um gesto para que fossem à cozinha. Daniel sabia que ele não perguntaria o que o filho fazia ali. Era um homem perspicaz e avesso a inquirições. Talvez até mesmo já soubesse o motivo da visita. E o que Daniel mais desejava era que o outro iniciasse aquela difícil conversa. Porém, tão logo ele sentou-se à mesa da cozinha enquanto o pai colocava pó na cafeteira, este o surpreendeu com uma pergunta.

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“E a moça com quem você vive, como é mesmo o nome dela?” “Vivian. Nós nos separamos.” “Ah.” A falta de comentário do pai pesou mais do que uma admoestação. Sim, pensou Daniel, eu sou mesmo um fracasso em todos os sentidos. Covarde, mimado e fracassado. E cá estou eu, humilhado diante de meu pai, de quem eu me recusei a aprender qualquer coisa, como um perfeito idiota. Por que eu não puxei a ele? Por que não aceito a vida como ele, sereno, equilibrado, íntegro, senhor de suas vontades? Será que eu amei Vivian como ele amou a minha mãe? E, se assim for, será esse amor suficiente para me arrastar pelos dias solitários e intermináveis, até que a morte venha, misericordiosa, me buscar? “Você quer açúcar?”, perguntou-lhe o pai. “Ah, sim, por favor.” “Eu parei de tomar com açúcar, sabia? Açúcar faz mal, e você não sente o gosto do café.” “Eu sei, o certo é tomar puro. Mas é que é difícil acabar com o hábito de uma vida inteira.” “É verdade.” O pai colocou duas xícaras sobre a mesa, e Daniel achou curioso o fato de elas serem diferentes e ele não usar pires. “O pão é de hoje de manhã, mas dá pra comer. Se você quiser, posso ir ali na padaria...” “Não precisa, pai. Está ótimo assim. O senhor tem margarina?” “Tenho uma manteiga feita aqui mesmo na cidade, é uma delícia.” “Melhor ainda!” O cheiro de café invadiu toda a cozinha, e, por um momento, Daniel teve vontade de abraçar novamente aquele homem que quedava-se em pé, ao lado da cafeteira, esperando que o café escoasse todo.

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“Lembra do Armando, filho? Aquele meu amigo que mora aqui na rua de cima?” “Lembro. O que tem ele?” “Ele começou a produzir o vinho dele faz uns dois anos, e agora está muito bom. Ele me deu uma garrafa semana passada, está coisa de profissional. Se você quiser, a gente toma uma taça mais tarde.” “Perfeito. Eu quero provar, sim.” “Você precisa vir aqui durante a Festa. Tem vinho pra todo gosto.” “É, preciso mesmo. Quem sabe na próxima eu não venho?” O café finalmente acabou de escoar, e seu pai serviu as duas xícaras, lenta e cuidadosamente. Daniel adoçou o seu, enquanto o pai sorvia silenciosamente seu café amargo. Em seguida, Daniel cortou um pedaço de pão, passou a manteiga amarela e gordurosa e comeu. Em seguida, passou a faca para o pai, que fez o mesmo. Os dois seguiram comendo em silêncio. A cada sorvo, Daniel imaginava como iniciar aquela conversa. A cada sorvo, mais aflito ficava com o silêncio do outro. Por fim, perguntou: “Como ela era?” Seu pai pousou a xícara na mesa, soltou a fatia de pão que segurava, colocou os dois cotovelos sobre a mesa e esfregou as mãos, pensativo. Seu olhar encheu-se de lágrimas. “Ela era como você: impetuosa, um espírito livre, quase rebelde.” As palavras saíam pausadas, graves, caindo nos ouvidos de Daniel como raios sobre um descampado. “Quando eu a vi pela primeira vez, já me apaixonei. Ela trabalhava no banco. Era linda, se vestia bem, cumprimentava todos, se dava com todos. Mas confesso que eu me sentia meio intimidado com ela, porque ela tinha uma atitude um tanto rara em mulheres naquela época: ela falava alto, era extrovertida, era amiga tanto dos homens quanto das mulheres. Mas o pior foi que eu soube que ela tinha um namorado. Por isso, eu jamais tentei uma aproximação. Ficava a observando de longe, admirando a sua beleza, encantado com sua simpatia, sonhando acordado...”

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Daniel ouvia atento e surpreso porque, pela primeira vez em sua vida, seu pai aquiescia em falar de sua mãe. Anotava mentalmente cada palavra, cada frase do pai, sem interrompê-lo, temendo que o outro interrompesse aquele fluxo tão inesperado e tão raro. “Até que, um dia, eu soube que ela havia se separado do namorado. Pelo que me disseram, ele a havia traído, e ela não o perdoou. Mas, ainda assim, eu não tive coragem de me aproximar dela. Ela me dava um certo... medo. Eu me sentia pequeno perto dela, menor. Até que... eu me lembro como se fosse hoje... um dia eu estava tomando café – com açúcar – numa salinha que tinha lá no banco. Eu estava sozinho lá, pensativo, e ela entrou. Eu senti um frio na barriga, estava totalmente apaixonado por ela. Ela me cumprimentou, eu a cumprimentei, mas não disse mais nada. Mas eu bebia o meu café e percebia que ela me olhava, sem disfarçar. Até que olhei para ela, que sorriu e me disse: ‘Você não fala muito, não é?’. Eu não sabia o que dizer, então só fiz que ‘não’ com a cabeça. Aí nós dois começamos a rir.” Pai e filho riram baixinho, mas o homem mais velho tinha os olhos mareados. “E foi aí que ela começou a me seduzir, veja só. Ela abria um sorriso toda vez que me via, mas eu não notava nada, porque ela vivia sorrindo. Eu comecei a desconfiar que ela também estivesse interessada em mim, mas tinha medo de estar enganado e estragar o que talvez pudesse ser uma boa amizade. Toda vez que ela me via, puxava algum assunto, mesmo quando não tinha o que dizer. Quando eu notava o esforço dela em iniciar uma conversa, sem medo de parecer ridícula, eu ficava mais apaixonado ainda. Mas eu nunca tive muito jeito com as mulheres, sabe? A sua mãe foi a minha primeira namorada, e a única, até o fim. Até que, um dia, e isso foi a coisa mais bonita de todas, ela me encontrou de novo na salinha do café e me disse – eu me lembro de cada palavra como se fosse hoje: ‘A gente fica aqui tomando esse café ruim... Por que você não me convida pra tomar café em outro lugar?’ E quando ela disse isso,

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Daniel, eu soube que ela seria a mulher com quem eu me casaria e viveria até o fim de meus dias.” Seu pai secou os olhos, tentando se recobrar. “Eu não sei muito bem o que ela viu em mim. Ela era tão linda; todos os homens do banco estavam de olho nela. Mas ela escolheu a mim, aquele homem tímido e desajeitado que não tinha coragem nem de chamá-la para sair. Mais tarde ela me disse que estava cansada de homens cafajestes e mulherengos, como os que ela havia namorado. Ela disse que enxergou em mim... pureza, veja só. Ela disse que, olhando para mim, teve a certeza de que eu era um homem bom. Que era isso que ela queria: um homem bom. Veja, Daniel, linda e inteligente como era, ela poderia ter tudo, dinheiro, status, viagens, um marido com uma posição melhor, luxo até. Mas, mesmo sendo impetuosa e livre, tudo que ela queria era um homem bom. Então eu prometi a mim mesmo: eu serei o melhor homem que puder para essa mulher, e ela há de me amar como eu a amo. E foi isso que eu fiz, e continuo a fazer até hoje. Espero ter sido um homem bom.” Um silêncio reverencioso se fez na cozinha; os dois homens curvavam-se, pesarosos, diante das duas xícaras de café. Daniel tentava encontrar em si algo que lembrasse remotamente aquela história de amor quase perfeita, mas, embora fosse ele o seu fruto, ele nada encontrava. Ele viera em busca de respostas, mas, no fundo, ele nem sabia quais eram as perguntas; só sabia que estava solto no ar, à espera de um rumo, ou um mote. Dentro de sua cabeça ecoavam inúmeras vozes, e entre tudo que ele havia ouvido nos últimos dias, três letras hebraicas e dois seres que viveram um amor idílico, ele continuava a tatear no escuro. No fundo, talvez tudo que ele sempre quisera era ser feliz, como qualquer pessoa, mas a felicidade sempre lhe parecera uma quimera e, diante de sua dor e de sua solidão, ele havia erguido uma barreira intransponível. Que aquele homem diante dele e aquela mulher mítica tivessem vivido a felicidade que lhe parecia impossível era um pensamento ao qual ele tentava se agarrar, esperançoso de sorver um mínimo daquela seiva e dela se refazer, se reinventar, num último esforço de sobrevivência.

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“Vocês foram felizes juntos?” “Muito. Todos os dias de nossa vida. Depois que sua irmã nasceu, decidimos que ela deixaria de trabalhar para cuidar dela e da casa. Ela aceitou de bom grado; ela gostava de ser mãe, e eu havia sido promovido no banco. Lembro da alegria que eu sentia, todos os dias, ao chegar em casa e encontrá-la com sua irmã. Ela estava tão feliz. Dois anos depois, você nasceu. Foi outra alegria. Ela tinha um espírito livre, mas gostava de criar os filhos, de cuidar da casa, de ser minha esposa. Eu me sentia grato por tê-la. Ela foi o maior presente que eu já recebi na vida.” “Vocês nunca brigaram?” “Nunca, Daniel. Jamais. Eu tinha prazer em fazer todas as vontades dela. Se ela dizia: ‘Acho que a parede está precisando ser pintada’, no dia seguinte eu comprava tinta e pintava com o maior esmero. Tudo para deixá-la feliz. Porque quando ela estava feliz, eu estava feliz. Se ela queria comer algo, eu corria para comprar. Ela era como algo precioso para mim, e algo precioso você protege e venera. E, sabe, meu filho, eu sempre fui muito solitário, muito tímido. Durante a adolescência, todos os meus amigos começaram a namorar, a sair com as meninas do bairro, mas eu, não. E também porque eu não tinha dinheiro, meus pais eram pobres, eu não tinha como ter um carro, não tinha dinheiro para cinema, essas coisas. Eu fui muito solitário. E teria continuado solitário a vida toda, se a sua mãe não tivesse aparecido. Meu Deus, a alegria que eu sentia! Ela era tudo para mim, e ter vivido esse amor, ainda que durante alguns poucos anos, é algo que me traz alegria até hoje.” Daniel reuniu forças para fazer a próxima pergunta. “E como foi quando ela morreu?” Seu pai recostou-se na cadeira, pensativo, o rosto contorcido. “Foi uma tristeza que quase me matou. Acho que só não morri porque tinha que criar você e sua irmã. Eu nem gosto de lembrar; é um pensamento que sempre afasto. Ela descobriu o câncer quando você tinha três anos. Sofreu quase um ano inteiro. Deu muita pena dela, e mais ainda de você e de sua irmã. Você era tão pequeno... Mas, sabe, assim que você começou a engatinhar e falar as primeiras

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palavras, eu já sabia que você tinha puxado a ela. Você era tão diferente da sua irmã, tão voluntarioso, tão curioso... Até os traços você herdou dela. A sua irmã é mais quieta, acho que puxou a mim...” “O senhor nunca pensou em se casar de novo?” “Como eu poderia? De jeito nenhum. Eu prometi a ela, quando nos casamos, que eu a amaria até que a morte nos separasse. O curioso é que eu não acho que a morte tenha nos separado. Acho até que ela nos uniu mais ainda. Eu ainda sinto a presença dela. Não passa um dia sem que eu me lembre do tempo que passamos juntos...”, disse o pai, abrindo um sorrido pela primeira vez, para logo em seguida mostrar-se preocupado: “Sabe, Daniel, eu desisti de lhe dar conselhos antes mesmo de você sair de casa. E, agora, você é um homem formado, já tem suas próprias opiniões, já teve suas experiências. Mas, filho, eu vejo você aí com essa cara... Você não me parece feliz. Eu não conheci essa moça, Vivian, mas quando nos falamos ao telefone, você parecia feliz por estar morando com ela. O que aconteceu?” “O que aconteceu, pai, é que eu jamais serei capaz de amar uma mulher como o senhor amou a minha mãe.” “E por que não?” “Porque eu sou um idiota.” “Não fale assim. Você não é um idiota. É um tanto impetuoso, talvez, um pouco insensato. Mas qualquer um pode amar. Só que, eu acho, as pessoas amam da forma errada. Misturam amor com possessão, acham que podem controlar o outro, modificar o outro. Mas, o que é pior, elas só pensam na própria felicidade. Se eu posso lhe dar um conselho agora, meu filho, é esse: não se case para ser feliz, mas para fazer a sua esposa feliz. E eu lhe garanto: se você conseguir, será o homem mais feliz do mundo. Eu fui feliz com a sua mãe, e sou feliz até hoje, toda vez em que penso nela.” A devoção do pai sempre lhe parecera uma leve insanidade, e tal conselho, tivesse Daniel o ouvido anos antes, soaria como o ápice da submissão e da estupidez, mas agora ele fazia todo o sentido do

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mundo. Agora ele percebia por que seus pais haviam sido tão felizes um com o outro: porque cada um, a seu modo, estava empenhado em fazer o outro feliz. Seu pai, o homem desajeitado e solitário, se sentia grato e felizardo por finalmente ter encontrado uma esposa tão encantadora, e fazia de tudo para manter o seu idílio; sua mãe, maltratada por inúmeros relacionamentos com homens infiéis, finalmente havia encontrado um que era pacato e “bom”, enfim, um homem em que ela poderia confiar e com quem poderia ter uma família. Um completava o outro. Um era o bilhete premiado do outro. Mas, como a vida nos prega peças gigantescas e sem graça, veio a morte e a carregou, no auge da vida. Ele, Daniel, era uma das vítimas dessa peça, desse golpe ainda inexplicável que Deus, Elohim, a Luz Infinita ou coisa que o valha havia dado naquela família – um golpe cruel, indelével, quase insuportável. Daniel ainda tinha uma última pergunta a fazer a seu pai, antes de ir embora. “O senhor não sente raiva?” “Raiva do quê?” “De Deus, da vida, sei lá...” “Mas por que eu teria raiva de Deus?” “Por Ele ter tirado a minha mãe do senhor.” “Mas Deus não me tirou a sua mãe; Ele me deu a sua mãe. Eu agradeço a Ele por tê-la conhecido. Meu filho, nós não devemos passar a vida reclamando do que não temos, mas agradecendo o que temos.” O silêncio agora se prolongava mais do que o suportável, e Daniel decidiu que era hora de ir embora. Levantou-se, ao que foi seguido pelo pai. Os dois abraçaram-se mais uma vez, em silêncio. “Você não quer dormir aqui, filho? Tem o quarto vago aí...” “Não, pai, obrigado. Eu preciso voltar para São Paulo. Amanhã eu acordo cedo para ir trabalhar. Não posso me arriscar a pegar o trânsito na estrada. Aquele vinho fica pra outro dia.” “Tudo bem, tudo bem. Mas volte mais vezes. Eu gosto quando você aparece.” “Eu virei mais vezes. Pode deixar.”

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Daniel seguiu em silêncio pela sala, cruzou a porta e o pequeno jardim, entrou no carro e o ligou. Antes de partir, abaixou o vidro do carro e perguntou ao pai, que estava parado do lado de fora do portão: “Antes de ela morrer, ela disse alguma coisa sobre mim?” Seu pai se aproximou, apoiou uma das duas mãos sobre o teto do carro e olhou bem dentro dos olhos de Daniel: “Ela disse que tudo que desejava era que você e sua irmã fossem felizes como ela foi.”

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Capítulo 10

Keter A estrada de volta a São Paulo serpenteava, cinzenta e ligeira, sob o negrume da noite; carros passavam zunindo, deixando um rastro de luzes vermelhas. Daniel seguia dirigindo abaixo do limite de velocidade, confuso e cansado. Ele certamente sabia qual era o seu destino mais imediato – a sua casa – mas era como se seguisse sem rumo, levado apenas pelo instinto de seguir adiante, não importando aonde iria chegar. Os acontecimentos dos últimos dias, as conversas que tivera com o anjo, com o rabino e com o seu pai, misturavam-se a lembranças de Vivian e de sua mãe. Tais reminiscências e tais imagens formavam um imenso mosaico, mas Daniel sentia que o equilíbrio entre as peças era precário – bastaria um sopro para tudo ruir. E ele sabia, agora, de forma cada vez mais clara, que o elemento que unia todas as peças e que, em última instância, as manteria íntegras, era ele próprio. Ele era o mestre artesão de sua própria obra, não havia mais como imputar a culpa pela sua infelicidade no caos ou em quem quer que fosse. O que estava claro, dolorosamente claro, é que suas forças haviam chegado ao limite; ele sentia-se derrotado e, pela primeira vez na vida, ele o admitia. E um pensamento sombrio imiscuía-se nesse turbilhão – a consciência de que ele tinha, irremediavelmente, duas escolhas: refazer-se ou aniquilar-se. Não havia um meio-termo. Mas se a hipótese do suicídio havia parecido até mesmo romântica na juventude, hoje parecia apenas fria e desesperada. Não, era preciso se refazer, quantas vezes fossem necessárias – isso ele sabia também. Viver é estar eternamente disposto a cair e a levantar-se, dizem, e que quem está no fundo do poço só pode subir. Mas, como começar?, pensava Daniel, enquanto vencia a marginal Tietê, a sombra daquele rio negro e fétido acompanhando-o insistentemente. Bem, comecemos apenas! Mais uma vez, comecemos!, ordenou a si mesmo, súbita e estranhamente altivo. O

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primeiro passo é livrar-me do excesso de crítica, essa praga que se agarrou a mim. Que venham a mim os crédulos e suas sentenças, talvez entre eles esteja o Messias. Que se abata sobre mim a compaixão sem fim por tudo que existe, esse amor que a tudo vence e há de vencer também a mim. Ó, Deus, se Vós existis, permiti que Vossa Luz, quiçá infinita, banhe os meus pensamentos e expurgue as toxinas de anos e anos de covardia e cinismo. E, acima de todas as coisas, protegei-me de mim mesmo! Ao sair da via marginal, Daniel ganhou avenidas, que desembocaram em ruas, que desembocaram em alamedas silenciosas e familiares. Estava de novo em casa, desta vez com novo ânimo. Acendeu todas as luzes, tirou a roupa e meteu-se debaixo do chuveiro. Mal sabia ele que aquele elemento era a coroação de um recomeço, pois assim as coisas são. Escorrendo pelo seu corpo, na dádiva absoluta da humildade, a água morna fez com que lágrimas rolassem pelo seu rosto. Lágrimas deliciosas, como ele jamais, jamais havia sentido. Após o banho, colocou roupas limpas, tomou um café e fumou um cigarro à janela. O ar fresco da noite lhe pareceu agradável. Não pensou em estrelas ou falta delas. Pensou apenas em pequenas pessoas caminhando sobre a Terra, para lá e para cá, diminutas, feito formigas. Vistas de cima, são dignas de compaixão, pensou. Ele sentia-se leve, desejava apenas seguir fazendo parte do cortejo, mais uma pobre alma em busca de redenção. Sim, disse a si mesmo, tentarei ser um bom homem e ser feliz. Como todo mundo. Mas o que é ser feliz? Isso eu terei que descobrir sozinho. Eu saberei quando o for. Por ora, basta-me ter esperança. Eu aceito essa promessa de felicidade; já baixei a minha guarda, estou pronto para o espancamento e a humilhação. Abaixo as elegias ao Homem Oco e que venham as preces e as canções de amor! Que venham os simples de coração, as moças apaixonadas e os bebês que querem nascer! O medo é o pior inferno. Há um certo conforto no ventre da besta. Que ela venha, então. Eu estou pronto. Eu aceito. Eu-sim. Daniel fechou a janela, apagou todas as luzes do apartamento e deitou-se na cama. Ele sentia-se gloriosamente enlevado, não havia

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outra forma de explicar. Fechou os olhos, na escuridão, concentrou-se o máximo que pôde e pronunciou lentamente: hei-hei-ain...

FIM