olhares e vozes sobre a literatura contemporÂnea de …

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DOI:10.12957/palimpsesto.2019.39921 Nº 29 | Ano 18 | 2019 | pp. 528-546 | Estudos de Literatura | 528 OLHARES E VOZES SOBRE A LITERATURA CONTEMPORÂNEA DE ANGOLA: LEITURAS DE MAYOMBE E NOITES DE VIGÍLIA Derneval Andrade Ferreira Doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFET) [email protected] Adelino Pereira dos Santos Doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) / Campus de Santo Antônio de Jesus [email protected] RESUMO Este artigo tem por objetivo apresentar reflexões e discussões sobre as narrativas Mayombe, de Pepetela, e Noites de Vigília, de Boaventura Cardoso, problematizando- as no sentido de buscar e construir respostas agenciadoras da nova realidade sociocultural dos angolanos, pós- independência de Angola. Assim, questões a respeito dos discursos sobre os romances, os itinerários espaciais percorridos pelos autores, narradores e personagens, palavras, expressões, gestos, e outras formas discursivas, como instrumentos de linguagem que cadenciam a consciência social, foram considerados elementos relevantes para que novos olhares e dizeres fossem construídos e reconstruídos. Uma primeira versão deste texto foi apresentada como parte de um capítulo da tese de doutorado em Estudos Étnicos e Africanos, de um dos autores deste trabalho, defendida em 2016. Palavras-chave: Pepetela, Boaventura Cardoso, Angola, anticolonialismo ABSTRACT This article aims to present reflections and discussions about the narratives Mayombe, by Pepetela, and Noites de Vigília, by Boaventura Cardoso, problematizing them in the sense of seeking and building responses to the new socio-cultural reality of Angolans, after the independence of Angola. Thus, questions about discourses on the novels, the spatial itineraries traveled by authors, narrators and characters, words, expressions, gestures, and other discursive forms, as instruments of language that cadence the social conscience, were considered relevant elements so that new lights and sayings were built and rebuilt. A first version of this text was presented as part of a chapter of the doctoral thesis on Ethnic and African Studies, by one of the authors of this work, defended in 2016. Keywords: Pepetela, Boaventura Cardoso, Angola, anticolonialism.

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Nº 29 | Ano 18 | 2019 | pp. 528-546 | Estudos de Literatura | 528

OLHARES E VOZES SOBRE A LITERATURA CONTEMPORÂNEA DE ANGOLA: LEITURAS DE

MAYOMBE E NOITES DE VIGÍLIA

Derneval Andrade Ferreira Doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFET) [email protected]

Adelino Pereira dos Santos Doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) / Campus de Santo Antônio de Jesus [email protected]

RESUMO Este artigo tem por objetivo apresentar reflexões e discussões sobre as narrativas Mayombe, de Pepetela, e Noites de Vigília, de Boaventura Cardoso, problematizando-as no sentido de buscar e construir respostas agenciadoras da nova realidade sociocultural dos angolanos, pós-independência de Angola. Assim, questões a respeito dos discursos sobre os romances, os itinerários espaciais percorridos pelos autores, narradores e personagens, palavras, expressões, gestos, e outras formas discursivas, como instrumentos de linguagem que cadenciam a consciência social, foram considerados elementos relevantes para que novos olhares e dizeres fossem construídos e reconstruídos. Uma primeira versão deste texto foi apresentada como parte de um capítulo da tese de doutorado em Estudos Étnicos e Africanos, de um dos autores deste trabalho, defendida em 2016.

Palavras-chave: Pepetela, Boaventura Cardoso, Angola, anticolonialismo

ABSTRACT This article aims to present reflections and discussions about the narratives Mayombe, by Pepetela, and Noites de Vigília, by Boaventura Cardoso, problematizing them in the sense of seeking and building responses to the new socio-cultural reality of Angolans, after the independence of Angola. Thus, questions about discourses on the novels, the spatial itineraries traveled by authors, narrators and characters, words, expressions, gestures, and other discursive forms, as instruments of language that cadence the social conscience, were considered relevant elements so that new lights and sayings were built and rebuilt. A first version of this text was presented as part of a chapter of the doctoral thesis on Ethnic and African Studies, by one of the authors of this work, defended in 2016.

Keywords: Pepetela, Boaventura Cardoso, Angola, anticolonialism.

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Introdução

A segunda metade do século XX foi um período decisivo para muitos países

africanos. Se, de um lado, crescia a pressão do poder colonial para manter suas formas,

como condição para prolongar no tempo as fronteiras do império, a outra parte debatia-

se incessantemente pelo desejo de transformação, redefinição e de reestruturação. Dessa

relação, nasceu como consequência uma conflituosa concepção de mundo que não

poderia prescindir do surgimento de um discurso ambíguo, contraditório e complexo na

relação dicotômica entre colonizador e colonizado.

Se a literatura situa- se no tempo e no espaço como instrumento capaz de trazer à

tona os desenhos, imagens e representações de um povo em um dado momento

histórico, em terras africanas ela contribuiu significativamente para a repercussão desse

cenário, principalmente no contexto angolano. É nessa perspectiva que “a literatura,

instrumento de libertação e arma de guerra, precisa descrever, criticar, projetar ensinar.

[Nesse sentido, a literatura...] chamada de engajada, de protesto, é um epítome da

essência, existência e ethos de um povo que ainda está para ser livre” (OJO-ADE, 2006, p.

251).

A ideia de colonialismo e anticolonialismo abordada nas narrativas Mayombe, de

Pepetela, e Noites de Vigília, de Boaventura Cardoso, passa, neste trabalho, pelo viés da

relação entre história e literatura e das discussões acerca do anticolonialismo. Esses

caminhos foram marcados por discursos e diálogos no campo da literatura angolana,

tomando-se as narrativas dos escritores angolanos como instrumentos de análise, a partir

de uma revisão bibliográfica concisa, o que possibilita ao leitor uma expectativa de leitura

e uma perspectiva na construção de sentidos.

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Desse modo, este artigo tem por objetivo apresentar reflexões e discussões sobre

as narrativas em foco, problematizando-as no sentido de buscar e construir respostas

agenciadoras da nova realidade sociocultural dos angolanos. Assim, questões a respeito

dos discursos sobre os romances, os itinerários espaciais percorridos por autores,

narradores e personagens, as palavras, expressões, gestos, e outras formas discursivas,

como instrumentos de linguagem que cadenciam a consciência social, foram

considerados elementos relevantes para que novos olhares e dizeres fossem construídos

e reconstruídos.

Assim, na segunda seção deste trabalho, as discussões circulam em torno de

Mayombe, de Pepetela. Já a terceira seção volta-se para os olhares sobre Noites de

Vigília, de Boaventura Cardoso. Por fim, na última seção, em considerações finais, segue-

se o cruzamento das ideias em torno de ambas as obras, comentários sobre o papel da

memória no transcurso das narrativas. Uma primeira versão deste texto foi apresentada

como parte de um capítulo da tese de doutorado em Estudos Étnicos e Africanos, de um

dos autores deste trabalho, defendida em 2016.

1. Olhares sobre Mayombe, de Pepetela

Os países africanos foram historicamente marcados por lutas de libertação,

guerras internas, confrontos armados, violentas revoltas e conflitos interétnicos que

contribuíram, por muitos anos, inclusive pós o período colonial, para a construção e

reconstrução do cenário geográfico, político, social e humano de diversos lugares. A

reconfiguração da nova paisagem, consequente de catástrofes provocadas por guerras,

criou cenas traumáticas com feridas não totalmente cicatrizadas na memória histórica,

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social e cultural de diversos países, dentre eles Angola, onde recai mais de perto a

reflexão, neste trabalho.

Além de conviverem cotidianamente com esses cenários, diversas sociedades

africanas também enfrentavam exaustivas censuras, bruscas situações de monitoramento

político, apagamento cultural, situações postas pelo próprio colonialismo, porque, como

afirma Ferreira (s/d),

o colonialismo, de caso pensado ou por força do seu sistema interno,

despersonaliza o colonizado, deprime-o, destrói-lhe a imagem que ele

forma do seu universo singular, coisifica-o e não lhe permite que ele se

torne sujeito de história. Cria-lhe o complexo de inferioridade em

relação à sua cultura, deforma-o, aniquila-o como cidadão africano

(FERREIRA, s/d, p. 29).

Esse cenário catastrófico e as imagens criadas e sedimentadas a partir dele

constituem-se em fontes fecundas de motivação da escrita literária, que produziu textos

com abordagens de diversas espécies. Tais textos foram responsáveis pela criação de

discursos que podem revelar outros discursos e questionamentos sobre a cultura e a

história de povos relegados pela sociedade ocidental. Muitos autores e diversas obras,

principalmente a partir da década de 1980, tentaram produzir uma arte com tendência de

frequente reavaliação crítica do passado, a fim de que se entenda melhor o presente,

visto que, de acordo com Secco (2008), “sendo a literatura uma instância crítica de

reflexão sobre a história, reinventa, ficcionalmente, a realidade e, assim, problematiza

questões existentes nas sociedades” (SECCO, 2008, p. 97).

Dessa forma, é preciso analisar como obras literárias e autores representam e

pensam as tensões existentes entre passado e presente, entre fantasia e realidade, entre

história e literatura, revisitando e repensando os antigos e atuais sonhos libertários. Os

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romances Mayombe e Noites de Vigília podem ser expressivos em temas recorrentes

sobre processos coloniais e anticoloniais e de histórias ainda não totalmente esgotadas

de interpretações.

Como a literatura também é um recurso usado pelo homem para ajudá-lo a

reescrever o passado, autores como Pepetela e Boaventura Cardoso, sob o calor dos

fatos, muitos inclusive vivenciados por eles, dedicam partes de suas produções literárias a

uma pesquisa de cunho histórico, social e político. Chaves (2005), discutindo a

importância do passado no contexto literário, reconhece a relevância do trabalho de

Pepetela, ao afirmar que

Pepetela, autor de Mayombe, um romance que traça a épica da luta

guerrilheira, fará, anos mais tarde, uma espécie de balanço dessa

geração que apostou na independência e que, enquanto grupo, se

esfacela na experiência complicadíssima de gerir o país que a utopia

queria ter construído. [...] Agora identificado com o período de gestação

da liberdade, o passado não é nem glorificado, nem rejeitado.

Transforma-se em objeto de reflexão mesmo para quem tão vivamente

participou desse itinerário (CHAVES, 2005, p. 57).

Pepetela exercita o gosto pela investigação histórica e a faz seu principal recurso,

transformando, muitas vezes, a realidade em histórias ficcionais, gotejadas de

experiências que resultam em um texto muito próximo do real. A conversão dos fatos em

ficção é feita de tal modo que os sujeitos imaginários e suas descrições são recobertas de

um saber extraído de fatos e acontecimentos memoráveis pelo autor e pela sociedade na

qual ele está inserido. Dessa forma, Mayombe não recupera na totalidade todos os signos

da guerra precedente à independência de Angola, até porque o objetivo do texto literário

não é marcado por tal propósito; não obstante, o romance apresenta importantes

referências que podem integrar e retomar o passado como um elemento revelador de

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matrizes que ajudam a reavaliar momentos historicamente importantes na construção de

uma nação e na formação cultural do povo angolano.

Nessa perspectiva, o itinerário literário angolano caminha em direção à construção

de uma relevante história de resistência ao domínio lusitano e de uma ordem adversa da

imposta pelo colonialismo. Os autores tentam produzir uma arte que se integra numa luta

contra o apagamento, o esquecimento e o silêncio e que se revele a favor da vida, do

homem e da história, erguendo o compromisso com a história do país. Nascem, portanto,

os projetos ideológicos objetivando cortes de laços com a metrópole, condição

indispensável para abominar o colonialismo, já que, segundo Chaves (2005, p. 45), “como

herança, o colonialismo deixava uma sucessão de lacunas na história dessas terras e

muitos escritores, falando de diferentes lugares e sob diferentes perspectivas, parecem

assumir o papel de preencher esse vazio que a consciência vinha desvelando”.

As narrativas literárias delineiam-se a partir de alterações ocorridas na sociedade,

e as mudanças históricas são fundamentais para o direcionamento de novas abordagens

e itinerários. Por isso, o curso do texto literário é definido por ocorrências históricas que

sofrem ações mutáveis ao longo dos tempos, e os novos signos, as novas paisagens e a

constituição de novos sujeitos são determinados de acordo com as feições históricas de

cada momento. Ainda de acordo com Chaves (2005, p. 189), “em todos os territórios

africanos colonizados por Portugal, a produção literária chamada nacional nasce sob o

signo da reivindicação”.

No entanto, a mesma autora lembra ainda que as primeiras narrativas que contam

a história da literatura angolana não conseguem despir-se completamente de uma visão

lusitana. Por isso, nos textos surgidos até a década de 1950, o angolano aparece como um

ser exótico, com pouca expressividade, e só mais tarde novos textos conseguem

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paulatinamente engajar o africano em situações mais concretas e sólidas. Sobre essa

nova visão do ser angolano, Chaves (2005) conclui que

Mayombe, tal como ocorre em outras datadas da década de 1970,

revela que a literatura angolana não se define como um conjunto de

ilhas utopicamente situadas no mar do exótico. A capacidade de inovar

também no plano da expressão, criando suas próprias marcas, livra o

texto do risco do pitoresco sem que isso implique a assimilação de um

comportamento culturalmente servil. Solidariamente plantada na

realidade de seu chão, a consciência social do escritor atua também na

busca de soluções de linguagem que atendam à representação das

questões formuladas pelo projeto ideológico (CHAVES, 2005, p. 74).

Observe-se que a autora elege a obra Mayombe como uma narrativa que

consegue percorrer espaços diferentes de textos produzidos em décadas anteriores,

muito embora a crítica lhe reserve algumas considerações pormenorizadas quanto à

abordagem temática e sua constituição ideológica.

Em relação ao autor Pepetela, Chaves (2005) também reconhece sua imensurável

importância no contexto literário angolano. Em seu capítulo Pepetela: romance e utopia

na história de Angola, a autora discute o papel relevante do escritor no curso da literatura

angolana, mostrando grandes influências que o romancista teve nas conquistas e nos

avanços dos projetos de libertação e de nacionalização de Angola.

O romancista angolano valeu-se da própria literatura e dos acontecimentos

históricos para organizar a sua visão sobre a constituição da sociedade angolana. Para tal

propósito, a escolha temática, a definição do estilo e a seleção de referências que

atendam adequadamente à sua proposta são fundamentais para a formação de um

escritor que logrou êxitos ao longo de sua carreira.

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Discutindo lugares assinalados ou algumas imagens espaciais na ficção de

Pepetela, Padilha (2003) reconhece que há um claro empenho dos produtores ficcionais

de se debruçarem sobre o que se passou e se passa no palco da história de Angola, a fim

de que se dispensem esforços na construção de um projeto coletivo de reescrita da

nacionalidade. A pesquisadora cita obras do autor angolano, mostrando a importância da

constituição de diversas vozes presentes nelas, na elaboração de um projeto pela

construção de uma nação livre e soberana. Sobre essa ideia, torna-se relevante

considerar o pensamento de Padilha (2003), quando ela afirma que,

como se dá com Mayombe, há uma pluralidade de vozes narrativas a se

suplementarem umas às outras. Indica-se, com isso, não ser factível

pensar-se em qualquer singular monolítico. Entrelaçados, o mito, a

história e a ficção criam um lugar de forças dos mais surpreendentes no

espaço ficcional angolano. Como se não bastasse isso, o produtor textual

orquestra uma polifonia de gêneros artísticos, na tentativa de construir

simbolicamente Angola e seu contexto multifacetado. Assim, a história

de Luanda e da fundadora do império – lembremo-nos de Muatiânvua,

nome igualmente mítico, ressurgido em Mayombe – se representa não

só no registro literário, que tudo engloba, mas no plano das mais

variadas linguagens artísticas, como a do balé (como espetáculo); a da

música; a da dança; a do roteiro escrito, etc. (PADILHA, 2003, p. 320).

É inegável o reconhecimento dos projetos políticos e literários de Pepetela para

com seu povo e sua nação; por isso, trazer à luz da análise crítica e interpretativa

qualquer de suas obras significa revisitar fragmentos da história da sociedade angolana

em diversos momentos e, assim, “apoiado na sua própria experiência, Pepetela firma o

seu itinerário e organiza as linhas de uma obra onde se podem recolher fios expressivos

da própria história de Angola” (CHAVES, 2005, p. 88).

Como as obras de Pepetela estendem-se do épico ao lírico, do romântico às causas

sociais, do complexo ao ambíguo, é bastante provável que o próprio período histórico,

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pelo qual Angola passou, tenha contribuído fortemente na sua produção literária,

tornando-a muitas vezes contraditória, visto que o romance tenta materializar no texto as

hesitações experimentadas diante das contradições postas pela sociedade. Dessa forma,

pontuar possíveis aspectos contraditórios em discursos literários de Pepetela quanto aos

fatores dos ideais colonialistas e anticolonialistas significa apresentar as próprias

vivências e experiências conflitantes de um período selado por ambiguidades,

contravenções e contradições, características essas bem peculiares à sociedade em

estágio de constituição e de tensões cotidianas.

Secco (2008), em ensaio intitulado Mayombe: os meandros da guerra e os

“feitiços” do narrar, apresenta considerações importantes sobre o romance de Pepetela,

conduzindo o leitor a perceber a polifonia existente no texto literário. Segundo a autora,

a narração das guerrilhas evidencia a crítica ao colonialismo português e o repúdio a

qualquer forma de opressão. Pontua-se ainda que a temática do romance ultrapassa tal

propósito e, a partir de uma narrativa, às vezes, mística, outras vezes romântica, o texto

revela diferentes temas relacionados ao poder, à liberdade, repensados dialeticamente

não só pelo prisma social, mas também pelo existencial.

Dessa forma, as diversas vozes desfilam entoando muitas vezes um som uniforme,

simbolicamente harmônico; por outro lado, a acústica produzida diverge e provoca

dissonâncias dentro da própria constituição textual, gerando assim efeitos ambíguos e

contraditórios. Essas vozes que ora se aproximam, ora se fundem, ora se rechaçam,

migram para diferentes itinerários e marcam o período histórico extremamente

conflituoso da sociedade angolana à beira de sua independência.

A obra do escritor angolano aborda diferentes temáticas, gerando inúmeros

signos, e sempre está sujeita a múltiplas possibilidades de leituras e releituras. Sendo

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assim, no caso específico de Mayombe é inapropriado trilhar caminhos seletivos e

temáticos apenas sobre a guerrilha, para que não se opere e nem se restrinja a evidenciar

o dualismo entre colonizador e colonizado. Não se trata apenas de elevar a categoria

entre dominador e dominado, enfocando a ideia maniqueísta, é preciso atentar-se aos

possíveis desdobramentos existentes nas entrelinhas do texto, percebendo as

demarcações rizomáticas reveladoras de sentidos que muitas vezes estão escamoteados

ou ocultos.

2. Miradas sobre Noites se Vigília, se Boaventura Cardoso

Como muitos outros que se empenharam na luta contra as armadilhas do

colonialismo e seus resquícios, Boaventura Cardoso não hesita em produzir uma literatura

consistente e, ao mesmo tempo, consciente em prol de uma consolidação nacional e da

liberdade de seu povo. Grande parte de sua produção literária volta-se quase que

exclusivamente para a criação de uma literatura que se identifique com a sociedade

angolana, e seus personagens tentam revelar por meio de cenas, atitudes e

comportamentos o lado desumano da exploração colonial.

Além disso, revivendo histórias do passado, numa espécie de arquivo

memorialístico, o autor cria um discurso que parece ir de encontro ao discurso colonial e

busca incessantemente a criação de uma arte capaz de reavaliar o passado e modificar o

presente, apresentando, aos leitores, características intervencionistas no pensar, no agir

e refletir. Assim, “com uma intenção marcadamente política, a escrita literária tornava-se

instrumento de rebeldia, capaz de subverter a ordem instalada e de trazer para o fazer

literário as tensões do contexto de sua produção” (FONSECA, 2003, p. 83).

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Mesmo em contextos diferentes, percebe-se uma aproximação temática das obras

Mayombe, de Pepetela, e Noites de Vigília, de Boaventura Cardoso, principalmente por

trazerem cenas da vida política e cultural angolana e se firmarem como uma literatura de

luta. Sobre a possibilidade de estabelecer relações entre narrativas literárias, Santilli

(2003) afirma que

a opção de aproximar obras literárias pelos temas em torno dos quais se

estruturam, corresponderia, então, ao propósito de partir de

similaridades básicas que a recorrência temática indicasse, para a busca

da diversidade que adviria do tratamento peculiar que, em cada

literatura ora determinada, viesse a receber (SANTILLI, 2003, p. 238).

Assim, a similaridade que une as narrativas em análise refere-se aos recortes

realizados pelos seus autores sobre as problemáticas políticas e culturais de um país

historicamente marcado pelo colonialismo e por conflitos internos, principalmente

quando Boaventura Cardoso retoma aspectos políticos do período da independência

angolana. Insistindo nas abordagens realizadas pelos escritores, confirma-se ainda certa

aproximação entre eles quando se percebe que tentam produzir uma arte capaz de

levantar vozes contra o mundo da exclusão, trazendo para as páginas de romances cenas

cotidianas - vivenciadas por seres quase humanos - objetos, valores, práticas culturais,

novos dramas e novos dizeres que se contrapõem ao sistema colonial.

Esses autores, além de eleger a condição angolana como eixo temático para seus

textos, têm em comum um compromisso estético, gerado por um cenário em que os

princípios literários despontam ações de execução intervencionista e/ou reivindicatória.

Discutindo literatura e nacionalismo em Angola, Andrade (2010, p. 22) reconhece que “se

bem conscientes do facto de que seus escritos não podiam atingir o grande público

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africano (iletrado na esmagadora maioria), estes criadores apresentaram-se a si mesmos

como os perturbadores da ordem colonial”.

Perceber a importância da produção literária de Boaventura Cardoso significa

reconhecer a própria constituição dialética da formação histórica e cultural de Angola,

compreendendo as diversas matrizes culturais estampadas e expressas em muitas

tensões ocorridas no âmbito político, econômico e social. Muitos momentos relevantes

da história de Angola constituíram-se em verdadeiros projetos arquitetados por muitos

autores, inclusive Boaventura Cardoso, que objetivavam expressar desejos, angústias,

revoltas, ambições e conflitos sociais, redesenhando a história do povo angolano.

Na esteira dessa discussão, pode-se situar Boaventura Cardoso como um escritor

proeminente em recortes da sociedade angolana. Apresentando reflexões sobre a

condição pós-colonial, Inocência Mata (2003) reconhece que a descolonização é um

processo reconstitutivo e que essa reconstituição identitária não tem que pressupor uma

ruptura com os discursos hegemônicos, mas, sobretudo, criar estratégias discursivas que

abordem essa nova ordem. A esse respeito, a autora afirma que os próprios autores

angolanos se empenharam nesse percurso, destacando o nome do romancista

Boaventura Cardoso, como um autor que

viaja da representação do quotidiano colonial dos musseques de Luanda

em Dizanga Dia Muenhu (A lagoa da vida), 1977, e em Fogo da fala

(1980), para a releitura do imaginário popular e a sua compreensão no

contexto de uma Angola moderna em A morte do velho Kipacaça (1989)

e para a reconstituição rememorativa de um passado incômodo colonial

( a resistência interna e as tensas relações entre negros e brancos no

seio dela) através de mediações simbólicas ( como em O signo do fogo,

1992); por outro lado, o romancista faz, desapaixonadamente, a

nomeação de terrível passado pós-colonial, o período de 27 de maio de

1977 e o ano de 1997 e os meandros de uma sociedade gerida pelo

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medo, através de uma alegoria de cães e desmaios em Maio, mês de

Maria, 1997 (MATA, 2003, p. 55).

Segundo as considerações de Mata (2003), observa-se que o autor angolano

apresenta uma trajetória literária diversificada e eclética quanto à tematização e às

abordagens, referenciando diversos aspectos que ajudam a compor o quadro de

tendências literárias, extremamente importantes na formação da literatura de Angola.

Em Noites de Vigília, por exemplo, percebe-se que as histórias são recobertas por

passagens históricas e sociais, estendendo a visibilidade do romancista não apenas a um

narrador de história de seu povo, mas, sobretudo, a um pesquisador/experimentador que

com sabedoria e perspicácia soube valorizar tão bem as histórias e os conflitos de seu

país, transformando-os em denúncias literárias de forte expressividade.

Em muitas circunstâncias, o texto literário identifica ou tenta recriar figuras

históricas, conflitos, acontecimentos, dramas vividos, lugares e tipos humanos, por meio

de discursos que em vários momentos ultrapassam a dimensão ficcional, beirando a

realidade. Muitas vezes, levando em consideração essas ideias, “a literatura em Angola

parece atribuir-se a função de desenhar o rosto de um povo ainda sem ele, de dar voz a

uma gente ainda condenada ao silêncio” (CHAVES, 2005, p. 70).

Por isso, pode-se eleger o texto ficcional como um meio, uma possibilidade de

releitura do passado, numa perspectiva de entendimento do presente. Sobre essa

possibilidade de expressão, de reinterpretação do passado tentando moldá-lo às

exigências das interpretações eficazes e iluminar segmentos sociais, ideias e eventos

históricos, Mata (2003) aponta que é possível, por meio de estratégias contradiscursivas,

uma espécie de renomeação discursiva. E, segundo ainda essa pesquisadora, isso ocorre

também em produções literárias de Boaventura Cardoso e Pepetela:

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em Boaventura Cardoso e em Pepetela consistem no destecer das teias

do logro, em olhares prismáticos, em desnudar silêncios e sombras da

História – e nisso reside o diálogo que as suas escritas mantêm. Por

outro lado, a inovação contida na obra romanesca de Pepetela reside no

repovoamento da paisagem e na remitologização do espaço da utopia

roída pelos descasos da revolução (MATA, 2003, p. 60).

Essa possibilidade de abordar aspectos históricos, permitindo releituras de fatos

ditos e interditos confere aos textos de Pepetela e de Boaventura Cardoso uma

característica metaficcionista com feições historiográficas. Observe-se que os autores, por

meio de uma leitura estética, ventilam fatos ocorridos, criando representações como se

houvesse sucedido na realidade. Assim, o discurso literário pode ultrapassar muitos

fenômenos da língua e “funciona como um logro ou lugar que dialoga com o dentro e o

fora, com o interior e o exterior da linguagem literária” (FONSECA, 2008, p. 27).

Analisando o romance Maio, mês de Maria (2001), de Boaventura Cardoso, sob a

ótica da nova história cultural, Secco (2008) afirma que o romancista faz a ficção dialogar

com a história, percebendo que a abordagem realizada pelo autor apresenta uma ótica

que se aproxima da nova história cultural, pois ele consegue recriar o contexto angolano

pós-independência por intermédio da captação das múltiplas representações discursivas

presentes nas práticas sociais. Ancorado nessas ideias, pontua-se ainda que a história não

se baseia apenas na materialização dos fatos, numa perspectiva socioeconômica, mas,

sobretudo, tenta dar ênfase aos diversos processos de representações culturais formados

a partir de comportamentos, de relatos, de experiências que revelam o imaginário social.

A literatura, por sua vez, nutre-se dessas novas experiências e timidamente fornece

elementos que permitem a construção de diálogos entre diversos campos e áreas do

conhecimento.

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Dessa forma, percebe-se que a produção literária de Boaventura Cardoso é

resultante de uma experiência vivida e de uma pesquisa histórica sobre aspectos culturais

e políticos de um povo que experimentou os ásperos anos do colonialismo e de suas

heranças que, infelizmente, perduraram por anos. Cenas essas que se fundem, imbricam-

se e revelam-se numa profusão de imagens representativas da sociedade angolana antes

e pós-independência. Além disso, seus textos promovem uma necessária reflexão crítica

sobre as histórias políticas e culturais de seu país, principalmente, por traçar um

panorama histórico-cultural de uma nação politicamente nova.

Boaventura Cardoso consegue apresentar sua terra natal metaforizada de diversas

formas no texto. Criando e recriando a linguagem, ele torna a narrativa dinâmica e lúdica,

convidando o leitor a ultrapassar limites da leitura para que se crie uma situação de

cumplicidade que só os textos instigantes conseguem provocar. Uma das principais

características, que talvez percorra quase todas as suas narrativas, é forjar a tradição e a

história como elementos referentes, para que formas de resistência cultural, política e

social possam vir à tona por meio de diversos personagens, formados pelos fios cruzados

e intercruzados de várias histórias. Dessa forma, o autor consegue pontuar episódios

extremamente importantes sobre o que se passou e se passa no palco da história de

Angola, fazendo uma profunda e crítica leitura desse país, que desde a independência,

política, tem sido marcado por momentos contraditórios.

Em relação à narrativa Noite de Vigília, ainda há poucos olhares sobre ela, devido

à sua recente publicação (2012). Não obstante, pode-se verificar que Boaventura

Cardoso convida o leitor a realizar uma releitura de processos históricos ligados à

independência de Angola, com o objetivo central de prolongar as discussões sobre as

diversas contradições emergentes à instalação do sistema político pós-independência.

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Assim, a narrativa de Noites de Vigília é marcada por dois planos que no jogo de ir

e vir revelam pontos de vista bem distintos sobre a ação colonial e a ação anticolonial,

sobre o sistema político que visava à libertação e também sobre os posicionamentos

desse sistema pós a almejada independência. E para tal proeza literária, o autor dedica-se

à criação de dois personagens: Quinito, aparentemente o protagonista, que se inclina a

uma visão com tendências marxistas, inspirando-se no ideário comunista-socialista; e

Saiundo, personagem que é marcado pela poder reflexivo e consciente do diálogo e,

sobretudo, tenta relativizar os fatos e os acontecimentos, permitindo múltiplas visões.

Ao ser questionado, em entrevista por e-maili, sobre uma possível crítica ao

Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) na figura de Quinito, e à União

Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) na construção de Saiundo, como

uma espécie de revisionismo do passado histórico do pós-guerra angolano, Boaventura

Cardoso afirma que,

mais do que críticas a este ou aquele partido, subjaz no romance uma

invectiva contra o regime de partido único (em vigor até 1991) e todas

as práticas dele decorrentes; contra os ideólogos do marxismo-leninismo

(Lénine e Estaline sobretudo); contra a União Soviética e outros países

do então Bloco Socialista. Por exemplo: o culto às figuras de Marx,

Engels e Lénine; a visão marerialista do mundo como indispensável e

necessária para análise de qualquer fenómeno social; o ilusório combate

às igrejas e às religiões em nome de uma dita "concepção científica do

mundo" que previa, de entre outras medidas, a educação ateísta no seio

das "massas populares" (CARDOSO, 2013).

Enquanto se acompanha os trâmites narrativos por meio da voz do narrador e de

personagens, muitos acontecimentos vão se desenrolando nos bastidores, e leituras e

releituras são possíveis de serem realizadas, tomando como escopo as diversas vozes

ditas e interditas ao longo do processo enunciativo. Assim, as diversas vozes, os

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pensamentos, as reminiscências vividas, exprimidas e divulgadas por personagens e

narradores formam assim um texto dentro do texto, dando mais solidez, corpo e sentido

às diversas passagens que ora se revelam firmes, ora instáveis e ora ainda contraditórias.

Considerações finais

A história da humanidade é registrada de diversas formas e pode ser

compreendida e (re)interpretada de diferentes maneiras, levando-se em consideração os

contextos que se apresentam em distintas épocas. Figuras, desenhos, imagens e textos

são produzidos, cotidianamente, deixando marcas e delineando aspectos culturais de

lugares e espaços modificados pelo próprio homem. Essas experiências vividas e

experimentadas pelo homem constituem-se em elementos capazes de gerar inúmeras

representações que podem ajudar na composição e na recomposição da esfera social e

cultural do homem ao longo de sua formação histórica. Muitas dessas experiências ao

longo dos anos vão se perdendo, fragmentando, e é por meio da memória que se pode

restabelecer imagens e recuperar fatos, visto que ela deve ser vista não somente como

ferramenta para guardar lembranças, mas, sobretudo, como capacidade de

(re)significação de coisas e de si mesmo.

Assim, quando se propõe discutir aspectos relacionados à cultura africana não se

pode dispensar discussões relevantes aos estudos sobre memória, até porque a história

desse continente é marcada pela heterogeneidade cultural formada ao longo dos anos e

sua constituição histórica guarda elementos importantes, que revolvidos por processos

memorialísticos podem ajudar na reinterpretação e ressignificação de fatos, criando

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novas imagens e linguagens capazes de (re)ensinar e (re)traçar os caminhos genuínos em

direção aos costumes tradicionais como formas de resistência cultural, política e social.

Dessa forma, as experiências vividas pelos autores e por determinados

personagens tanto em Mayombe quanto em Noites de Vigília demonstram que as

mazelas e os discursos despóticos resultantes de muitos séculos não foram totalmente

superados em pouco mais de alguns anos após a libertação nacional, “alcançada pela via

das armas, a independência, perseguida por tanto tempo, não conseguiu pôr fim a um

quadro complicado de acirradas contradições” (CHAVES, 2005, p. 288). Essas

incongruências são vistas e revistas por ângulos, por situações e em contextos diferentes

nas narrativas de Mayombe e de Noites de Vigília. Afinal, a urgência de novos tempos

impõe olhares inquietos para os conceitos e observações postas pelo colonialismo.

Referências

ANDRADE, Mario Pinto de. Literatura e nacionalismo em Angola. In: MATA, Inocência e

PADILHA, Laura. Mário Pinto de Andrade: um intelectual na política. Lisboa: Colibri, 2010.

CARDOSO, Boaventura. Noites de Vigília. São Paulo: Terceira Margem, 2012.

CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. São

Paulo: Ateliê, 2005.

FERREIRA, Derneval Andrade. Vozes em diálogo na literatura angolana: Mayombe, de

Pepetela e Noites de Vigília, de Boaventura Cardoso. Tese (Doutorado Multidisciplinar em

Estudos Étnicos e Africanos). 228 f. Universidade Federal da Bahia. 2016.

FERREIRA, Manuel. O discurso no percurso africano I. Lisboa: Plátano, (s/d).

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Literaturas africanas de língua portuguesa: percursos

da memória e outros trânsitos. Belo Horizonte: Veredas e Cenários, 2008.

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______. Presença da literatura brasileira na África de língua portuguesa. In: LEÃO, Ângela

Vaz (org.). Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa. Belo

Horizonte: PUC Minas, 2003.

MATA, Inocência. A condição pós-colonial das literaturas africanas de língua portuguesa:

algumas diferenças e convergências e muitos lugares-comuns. In: LEÃO, Ângela Vaz (org.).

Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa. Belo Horizonte: PUC

Minas, 2003.

OJE-ADE, Femi. Negro: raça e cultura. Tradução Ieda Machado Ribeiro dos Santos.

Salvador: EDUFBA, 2006.

PADILHA, Laura Cavalcante. Lugares assinados ou algumas imagens espaciais na ficção de

Pepetela. In: LEÃO, Ângela Vaz (org.). Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de

língua portuguesa. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.

PEPETELA, Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos. Mayombe. 7. ed. Publicações Dom

Quixote.1990.

SANTILLI, Maria Aparecida. Paralelas e tangentes. São Paulo: Arte & Ciência, 2003.

SECCO, Carmem Lúcia Tindó. A magia das letras africanas: ensaios sobre as literaturas de

Angola e Moçambique e outros diálogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Quartet, 2008.

Recebido em 4 de fevereiro de 2019.

Aceite em 25 de março de 2019.

i Entrevista por e-mail: CARDOSO, Boaventura. Sobre a narrativa Noites de Vigília. [mensagem pessoal]

Mensagem recebida por: [email protected], em 30 dez. 2013.