obli dezembro 2014 - fevereiro 2015

16
Crime público, transversal à sociedade. A violência doméstica deixa marcas além das físicas e os comportamentos abusivos já veem, muitas vezes, da relação de namoro. Nesta edição, dois retratos no feminino e a opinião de especialistas e de quem presta apoio às vítimas. P. 14 P. 10 Publicação trimestral | Este jornal sai juntamente com a Edição n.º 792 do Barcelos Popular e não pode ser vendido separadamente. Edição 0.7 DEZEMBRO 2014 FEVEREIRO 2015 Jornal Jovem Barcelense Bem-me-quer, mal-me-quer… ‘Sinfonias de Aço’ é o programa de rádio, com já 22 anos, através do qual Manuel Melo partilha um dos maiores arquivos de música independente em Portugal. Nesta edição, o apreciador de música fala-nos dos arquivos de uma vida. Manuel Melo – O barão da Rádio no underground sem reis

Upload: jornal-obli

Post on 07-Apr-2016

219 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

 

TRANSCRIPT

Page 1: Obli dezembro 2014 - fevereiro 2015

Crime público, transversal à sociedade. A violência doméstica deixa marcas além das físicas e os comportamentos abusivos já veem, muitas vezes, da relação de namoro. Nesta edição, dois retratos no feminino e a opinião de especialistas e de quem presta apoio às vítimas.

P. 14P. 10

Publ

icaç

ão t

rimes

tral

| Es

te jo

rnal

sai

junt

amen

te c

om

a Ed

ição

n.º

792

do B

arce

los

Popu

lar

e nã

o po

de s

er

vend

ido

sepa

rada

men

te.

Edição 0.7 DEZEMBRO 2014

FEVEREIRO 2015

Jornal Jovem Barcelense

Bem-me-quer,mal-me-quer…

‘Sinfonias de Aço’ é o programa de rádio, com já 22 anos, através do qual Manuel Melo partilha um dos maiores arquivos de música independente em Portugal. Nesta edição, o apreciador de música fala-nos dos arquivos de uma vida.

Manuel Melo – O barão da Rádio no underground sem reis

Page 2: Obli dezembro 2014 - fevereiro 2015

02

Direção Obli

Diretor: Joaquim José Gonçalves

Editor: Cristina M. Barbosa

Diretor Criativo: Sara Silva

Redação: Tiago Varzim, Emanuel Boavista, Luís Masquete,

Gonçalo Costa Pedro Manuel Magalhães

Imagem e Design: Rafael Peixoto

e André Vilas Boas

Web e Multimédia: Pedro Pontes e Jorge Gonçalves

Colaboradores desta edição:

Pedro Coutinho Campos

Ilustração de capa e artigo

principal por:

Joel Faria

Tiragem: 10.000 exemplares

Impressão: Celta de Artes Gráficas, S.L.,

Colón, 30 – Vigo (Pontevedra), Espanha Tel.

0034/986814600. Fax. 0034/986814638.

Redação e administração Jornal Obli - Bar-

celos Popular, Avenida João Paulo II, 355

4750-304 Barcelos

e-mail: [email protected]

www.obli.pt

O jornal Obli foi escrito segundo as novas regras do Acordo Ortográfico.

As crónicas e artigos de opinião são da responsabilidade dos autores.

Este jornal é um suplemento do Barcelos Popular.

Nesta última edição do ano 2014, o Obli, entre os vários artigos, aborda dois “pesados” assuntos. Poderíamos questionar-nos se são as melhores temáticas para fechar o ano, mas os leitores já nos co-nhecem e o óbvio não faz parte da nossa linha.

O último trimestre do ano foi marcado por várias manchetes que destacavam que durante 2014, em média, quatro mulheres foram assassinadas por mês, vítimas de violência doméstica. Estes dados fazem-nos questionar se, em certos assuntos, em Portugal, o tempo conta para a frente ou para trás.

É inaceitável que uma certa cultura, essencialmente assente num pensamento machista, continue a ter as suas raízes nestes tempos que acreditamos serem de igualdade entre os géneros e de respeito entre os semelhantes. A realidade, como indicam os dados consultados pelo Obli, mostra que este problema social continua a estar presente nas camadas mais jovens, onde a percentagem de jovens que admite já ter praticado violência no namoro é assustadora.

É também destaque nesta edição – e artigo de capa, aliás –, a pro-blemática dos animais abandonados, que é apelidada de «dramática» em Barcelos. Apesar das contínuas demonstrações públicas, sociais e “facebookianas” a condenar os maus tratos e exaltando o amor pelos ‘bichanos’, a realidade apontada pelas Associações zoófilas é bastante negativa e sem boas perspetivas.

Em Barcelos, o Projeto Animais de Barcelos (PAB) aponta a falta de apoios financeiros, a falta de articulação com as entidades públicas e um desinteresse em apoiar de forma real os animais abandonados como os grandes fatores que impedem que, em Barcelos, se solucione este grave problema.

Mais do que uma partilha, bem-intencionada, de apoio numa qual-quer rede social, a associação PAB precisa de um apoio materializado da sociedade barcelense para levar a bom porto a sua nobre missão!

5, 4, 3, 2, 1, 0!!! 2015!!! Tudo igual?Esperemos que não. Há boas novas que nos dão esperança num

2015 diferente. A lei contra os maus tratos de animais é já uma rea-lidade e a prometida inserção da temática da violência doméstica nas escolas aponta para mudanças que se querem urgentes.

Siga para 2015!

EDITORIALEntrar em 2015 a discutir o 2014, o 2013, o 2012…

03

«O PROBLEMA DOS

ANIMAIS ABANDONADOS

EM PORTUGAL É

DRAMÁTICO»

04

07

08

13

10

14

16

JOVENS CRIAM

TECNOLOGIA QUE PREVÊ

E ANTEVÊ CIRURGIAS

ORTOPÉDICAS

SUÉCIA, UMA QUADRA

CALORENTA

BEM-ME-QUER,

MAL-ME-QUER…

MANUEL MELO - O

BARÃO DA RÁDIO NO

“UNDERGROUND”

SEM REIS

CRÓNICAS

PERFIL DO ILUSTRADOR

JOEL FARIA

«BARCELOS FOI SEMPRE –

E CUSTA-ME DIZER ISTO

– UMA CIDADE FECHADA,

MUITO POUCO DADA À

MUDANÇA»

Page 3: Obli dezembro 2014 - fevereiro 2015

Obli - dezembro - 2014 / fevereiro - 2015 03

A ideia surgiu no âmbito do mestrado em Informática Médica de um dos fundado-res da PeekMed, João Pedro Ribeiro, sendo que, na altura,

também um ortopedista propusera o projeto ao seu departamento. Depois de se associar a Sara Silva e Jaime Campos, lançaram um inquérito a nível nacional, a cerca de 50 mé-dicos ortopedistas, e perceberam que havia um problema comum: «Os médicos tinham muita dificuldade em perceber o problema do paciente em situações mais complexas, antes de chegar à cirurgia. E então achamos que era importante desenvolver alguma solução, trazer algo de novo para o mercado, para os auxiliar a fazer essa tarefa».

A aplicação traz, portanto, vantagens para os profissionais de saúde e, por consequência, para os pacientes. Quando os médicos constatam a dificuldade em perceber com clareza o problema do paciente, já no momento da cirurgia, «isso aumenta drasticamente o tempo de cirurgia, bem como o risco de infeção para o paciente enquanto está no bloco, o que pode acabar por inviabilizar a realização da cirurgia». Com esta ferramenta – «simples, bonita e intuitiva» –, explica ao Obli João Pedro Ribeiro, quiseram, então, colmatar esta lacuna: «Com o nosso sof-tware, os ortopedistas conseguem fazer todo o planeamento da cirurgia, conseguindo ver a extensão do problema do paciente, caso exista um trauma, a extensão desse mesmo trauma e que material é que ele vai precisar na cirurgia para resolver esse problema, desde os parafusos ou as placas de apoio, o chamado material de osteossíntese». De forma simples, recorrendo a esta ferramenta – que gera modelos 3D da área a ser intervencionada –, o médico consegue «antever e prever aquilo que vai acontecer na cirurgia».

Após o inquérito, seguiu-se uma fase de tes-tes, junto de cerca de 30 médicos ortopedistas: «Com essa comunidade, fomos desenvolvendo o produto, numa ótica muito de interação». Assim sendo, com vista a melhorar o produto, distribuíram a aplicação por essa comunidade, a meio deste ano. «Eles começaram a testar em cirurgias e o feedback foi extremamente positivo.

Os médicos conseguiram, com facilidade, perce-ber o problema do paciente de uma forma muito clara, muito objetiva, e depois escolheram todo o material, utilizando uma base de dados feita

por nós», conta ao Obli João Pedro Ribeiro. «O objetivo era precisamente saber se eles, com clareza e objetividade, percebiam o problema do paciente. E isso acabou por acontecer e foi muito positivo», avalia.

Tendo em conta o que já se passou até aqui com o protótipo, as expectativas são «bastante elevadas, principalmente pelo facto de a aplica-ção ter sido desenvolvida e pensada para que fosse muito simples, bonita e intuitiva, mas, ao mesmo tempo, para que fosse extremamente poderosa em tecnologia». E como a aplicação foi desenvolvida para que «os médicos não sentissem um grande entrave e para que não fosse muito intrusiva naquilo que eles já esta-vam habituados a fazer», os seus fundadores acreditam que os profisssionais de saúde vão «aderir com bastante facilidade».

Além disso, os criadores deste software querem «chegar ao maior número de médicos

Jovens criam tecnologiaque prevê e antevê cirurgias ortopédicas

possível». «Nós vamos ter um modelo de negó-cio em que o médico consegue utilizar a nossa ferramenta para uma série de funcionalidades e depois terá uma parcela da aplicação que será numa ótica já de premium, com uma série de funcionalidades avançadas», explica João

A PeekMed foi fundada, em janeiro deste ano, por três jovens [Gonçalo Costa]

| Cristina M. Barbosa e Gonçalo Costa |

Tudo indica que, no início do próximo ano, chegue ao mercado um software, através do qual os mé-dicos ortopedistas poderão planear as cirurgias. A ferramenta em questão é o primeiro produto da start-up PeekMed, que foi criada em janeiro deste ano, por três jovens.

Pedro Ribeiro.De resto, esta tecnologia, tal como está pen-

sada e como foi desenvolvida, «vai realocar sem grande esforço de recursos para áreas distintas», acredita João Pedro Ribeiro. «Por isso, faz todo o sentido pegar neste produto e lançar para esses segmentos de mercado [veterinária e ortodontia, por exemplo], logo de seguida», remata.

Quem constitui a PeekMed?Sara Silva tem 25 anos e é natural de Barce-

los. Tem o Mestrado Integrado em Engenharia Biológica, pela Universidade do Minho.

Com 27 anos, João Pedro Ribeiro, de Braga, tem também o Mestrado Integrado em Enge-nharia Biomédica, pela Universidade do Minho.

Jaime Campos, de 26 anos, é de Braga e é formado em Informática para a Saúde, pelo Instituto Politécnico do Cávado e do Ave.

Page 4: Obli dezembro 2014 - fevereiro 2015

04

«O problema dos animais abandonados em Portugal é dramático»

| Gonçalo Costa |

A rotina repete-se, dia após dia: lim-par as boxes, brincar com os cães e dar as medicações e as refeições. É na limpeza das boxes que a vo-luntária Filomena Gomes mais

gosta de passar o seu tempo. «Dá-me prazer ver que, no final, as boxes estão limpas para eles poderem voltar a entrar e estar confor-táveis», diz. Filomena está na associação há cerca de três anos e teve o primeiro contacto com esta através de um panfleto num café. Já Gonçalo Faria, voluntário na associação desde os nove anos de idade, encontrou a associação no facebook enquanto procurava um gato para adotar. Por incentivo da mãe, inscreveu-se para ser voluntário, aliando o gosto pelos animais à vontade de ajudar. «Eu gostava muito de ani-mais e é bom poder ajudar alguém que não se pode proteger a si próprio», explica Gonçalo. Hoje, com 15 anos, mostra-se preocupado com a problemática do abandono dos animais: «As pessoas não têm consciência do que fazem e abandonam os animais com facilidade, como se fossem deitar o lixo».

Patrícia Ramalho também se mostrou sensí-vel quanto a esta problemática desde bem cedo, tentando arranjar soluções para animais que ia encontrando. «Faço isto desde que nasci», conta a presidente da associação PAB. Antes de chegar a Barcelos, fez voluntariado no Canil Municipal de Braga, o que lhe deu a conhecer o «dia a dia de um canil municipal». E o facto de saber que em Barcelos ninguém desenvol-via um trabalho em prol dos animais do Canil

COMER, PASSEAR E RECEBER CARINHO SÃO NECESSIDADES BÁSICAS DIÁRIAS DE UM ANIMAL DE COMPANHIA E OS VOLUNTÁRIOS DO PROJETO ANIMAIS DE BARCELOS (PAB) LÁ ESTÃO PARA SATISFAZÊ-LAS. DIA SIM, DIA SIM. ORA UNS, ORA OUTROS. O OBLI FOI À “CASA” DA ASSOCIAÇÃO E ENCONTROU FILOMENA, GONÇALO E PATRÍCIA, EM MAIS UMA TARDE DE DOMINGO COMO TANTAS OUTRAS, ENTRE OS CÃES. SÃO 26 E ENCONTRAM-SE NA HORA DO “RECREIO”, APROVEITANDO OS MOMENTOS ANTES DE VOLTAREM PARA AS BOXES JÁ LIMPAS PELOS VOLUNTÁRIOS.

Patrícia Ramalho: “não há casas para tantos animais” [Gonçalo Costa]

Municipal da cidade fê-la vir, em 2007, até esta cidade. «Não consegui salvar todos, isso não é possível. Mas, pelo menos, tentei que eles tivessem uma vida melhor, enquanto estavam no canil, e quem sabe ter uma segunda oportunidade», explica Patrícia.

Page 5: Obli dezembro 2014 - fevereiro 2015

Obli - dezembro - 2014 / fevereiro - 2015 05

DIÁLOGO COM A CÂMARA MUNICIPAL? «NÓS TENTAMOS, MAS NÃO»Atualmente o PAB não tem autorização para entrar no Canil Municipal de Barcelos. Os animais que dão entrada no Canil Municipal seguem para o Canil Intermunicipal de Ponte de Lima, sem passar pelas mãos desta associação. Foram feitos esforços para que os animais do canil barcelense tivessem outro destino, contudo, revelaram-se em vão. «Nós tentamos fazer uma parceria com a Câmara [Municipal de Barcelos]: se eles nos cedessem um espaço, nós ajudáva-mos a arranjar soluções para os animais, a gerir melhor a questão dos animais abandonados. Mas o veterinário municipal fez uma parceria com o Canil Intermunicipal de Ponte de Lima para que eles viessem cá buscar os animais e os levassem para lá», conta a presidente.

Os cães que estão com a associação neste momento têm diversas proveniências: foram atirados para dentro das instalações, recolhidos de situações de maus tratos, encontrados na rua em situações de risco e ainda há animais que vieram do Canil Municipal. Foi precisamente a partir do Canil Municipal de Barcelos que Sussu deu entrada na associação, «no dia em que nasceu ou no dia a seguir», conta Patrícia. Foi adotada aos dois meses e descoberta, meses depois, em más condições, na casa do adotante. Foi numa visita rotineira para verificar como se encontra um animal, que a dona «estava sempre a adiar», que a cadela foi encontrada em pânico. «Estava fechada numa varanda e provavelmente sofreu maus tratos, portanto, eu peguei na cadela e trouxe-a embora», relata a presidente. Desde esse momento, Sussu esteve um ano a fazer tra-tamento comportamental em casa de Patrícia. Após isso, voltou para junto dos outros animais da associação, «mas mesmo assim ainda é uma cadela muito receosa com pessoas». No entanto, consegue «ser um animal mais ou menos feliz», acrescenta Patrícia.

A Sussu está disponível para adoção no PAB, assim como outras dezenas de animais, distribuídos por famílias de acolhimento tem-porárias (FAT) e pelas instalações da associa-ção. Os animais que saem da associação vão «chipados, vacinados, esterilizados e as pessoas pagam parte das despesas». «Não faz sentido que nós suportemos as despesas todas», afirma Patrícia. Conseguir adotantes ideais não é fácil, pois não são dados animais «para ficarem presos em varandas, correntes ou por esterilizar para fazer criações», explicita. Atualmente arranjam poucos donos, mas, quando os encontram, são «donos excepcionais». «Há meses que não damos um animal», lamenta.

«A ÚNICA SOLUÇÃO É IMPEDIR QUE NASÇAM MAIS ANIMAIS»O grande problema, identificado pela presidente, que neste momento o PAB enfrenta é a falta de soluções para tantos animais: «Não há so-luções e há animais a mais». A «única solução humanamente aceitável» é a «esterilização maciça dos animais». «A única solução é impedir que nasçam mais animais», frisa a responsável. Todos os animais da asso-ciação são entregues esterilizados, mas, para além disso, o PAB tem promovido esterilizações de gatos de colónias «controladas», ou seja, que têm alguém a cuidar delas. «Nós conseguimos esterilizar a preços muito reduzidos os animais e é isso que estamos a fazer», explica. Só este ano, já foram esterilizados mais de 100 gatos e o objetivo é alargar a medida aos cães, tentando «apoiar pelo menos as pessoas que não têm dinheiro para pagar uma esterilização a um preço normal».

Apesar do crescente interesse da população em geral para esta pro-blemática, manifestado nas redes sociais, Patrícia Ramalho considera que «as coisas estão piores». «Toda a gente pega num animal e entrega-o de qualquer maneira, sem estar esterilizado, sem saber para onde ele vai». «Se tirares um animal de um canil municipal, impedes que esse animal seja abatido, mas se ele não vai castrado, os animais que esse vai gerar provavelmente vão ser abatidos ou morrer atropelados», explicita.

As ajudas à associação são «quase nenhumas, neste momento». Patrícia Ramalho mostra-se, por isso, preocupada com a atual situação financeira do PAB: «Estamos com muitas dificuldades para manter as coisas, é preciso uma ginástica brutal, é preciso fazer milagres todos os dias». A falta de voluntários também é um problema, pois «não é fácil arranjar voluntários». «Do início do ano até agora, inscreveram-se cerca de 50 pessoas para ser voluntários, mas apenas duas ficaram». Ou não voltam a responder aos emails, ou «vêm uma vez e não voltam mais». Patrícia considera que é preciso gostar muito e a maior parte das pessoas «não gosta o suficiente». «Isto é muito bonito, mas dá muito trabalho e, num dia de frio e chuva, em que te apetece ir para casa, tem de se vir aqui na mesma, porque eles têm de comer, passear e brincar todos os dias», explica.

Sussu foi retirada do canil por Patrícia “no dia em que nasceu ou no dia a seguir” [Gonçalo Costa]

Patrícia Ramalho: “não temos grandes instalações, mas os nossos animais são

muito felizes aqui” [Gonçalo Costa]

Page 6: Obli dezembro 2014 - fevereiro 2015

06

«A CRISE É UMA DESCULPA» A presidente do PAB considera «dramático» o problema do abandono dos animais, contudo não o relaciona com a conjuntura económica. Patrícia Ramalho considera que a alimentação não é o mais custoso para manter um animal e apresenta os motivos: «Um cão não precisa de comer uma ração que custa 100€ o saco, pode-se comprar 20kg de ração por 10€, e pode comer restos, os talhos dão restos». No entanto, reconhece que «as pessoas optam sempre pela solução mais fácil». «Há um problema, descartam e pronto», conclui.

De resto, a dedução em IRS de parte dos gastos em veterinários era «fantástico», segundo Patrícia. Como toma os animais que tem em casa como parte integrante da sua família, considera que «devia ser possível deduzir uma parte dos gastos em IRS».

ATÉ SEIS MESES DE PRISÃO PARA QUEM ABANDONAR UM ANIMAL

PUB

Quem abandonar um animal de companhia «é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias». Esta le-gislação, publicada em Diário da República a 29 de agosto, entrou em vigor no passado dia 1 de outubro. Também os maus tratos foram criminalizados: «Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias». E se desses maus tratos «resultar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de lo-comoção», o agressor será «punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias».

Esta lei não define o que são maus tratos e isso é uma «limitação», segundo a presidente do PAB. «Um animal preso numa corrente, sem um sítio para se abrigar, sem comida decente e sem poder sair do sítio... Isso são maus tra-tos, mas para a maior parte das pessoas isso é natural», refere.

Apesar das limitações, para esta lei ser posta em prática são necessárias denúncias às autori-dades. E aqui é identificado outro problema por Patrícia Ramalho: «As pessoas não se querem envolver, não querem apresentar queixas, não se querem chatear». A responsável do PAB denuncia ainda que «as autoridades não querem tratar das queixas», tentanto «dissuadir muitas vezes de as fazer», dizendo que «não é nada com eles». «Eu já tive que imprimir o decreto lei, levá-lo à polícia e mostrar que estava escrito que eles tinham de atuar», conta ao Obli.

Apesar de todos estes problemas identifica-dos à partida, Patrícia espera para ver «como [a lei] vai ser posta em prática».

O Obli procurou obter declarações junto do Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente da Guarda Nacional Republicana, para dissipar todas as dúvidas quanto à recente lei, mas tal não foi possível até ao fecho desta edição.

Filomena e Gonçalo dispendem a sua tarde de domingo para tratar dos animais [Gonçalo Costa]

Page 7: Obli dezembro 2014 - fevereiro 2015

Obli - dezembro - 2014 / fevereiro - 2015 07

Joel Faria

PERFIL DO CONVIDADO

biocriativo

Habituado a desenhar retratos, Joel Faria é o ilustrador da capa desta do edição do Obli. O percurso não é o mais habitual: não tinha boas notas a Educação Visual e Tecnológica, no En-sino Básico, e no Ensino Secundário escolheu Artes para fugir aos fantasmas Matemática e Físico-Química. É na faculdade - ao ter três anos de desenho e “um excelente professor”, como nos conta – que a vontade de viver dos desenhos que faz se vai construindo. “Acabou por mudar a minha perspetiva e o meu interesse pelo desenho”, confessa ao Obli. “Foi o ponto de viragem”. Estudou Design de Equipamento, depois foi designer gráfico e é atualmente um dos alunos que está a tirar o Mestrado de Ilustração e Animação no IPCA (Instituto Politécnico do Cávado e do Ave) que começou em 2013.

“Eu tenho uma sede de querer captar o momento”.

“Sou mais do instântaneo” – é assim que carateriza a criação dos desenhos, longe do estúdio, perto de onde a vida acontece, lá fora. Há dois anos começava o desenho de observa-ção numa altura em que também começou a desenhar concertos: “O feedback mais público começou aí”, revela ao Obli. “Eu tenho uma sede de querer captar o momento”. Nos concertos, satisfazer essa sede é mais difícil: a escuridão leva a que quase não veja o papel, alturas em que o trabalho “não é tão figurativo, é mais de energia”. “Outras vezes, quando a iluminação já permite fazer uma coisa mais figurativa […], e e aí eu tento captar o momento, ou vários momentos, do palco, do público, depende de cada situação”, descreve ao Obli.

“Juro que o Joel não me pagou para dizer isto [risos]”

Colega do Joel no Mestrado em Ilustração e Animação, Eduarda Novo começa logo por dizer que Joel “é impecável, das pessoas mais prestáveis” que conhece, ressalvando uma coisa:

“Juro que o Joel não me pagou para dizer isto [risos]”.

Realça a organização e o empenho do Joel, assim como a sua vontade de ajuda: “Está cons-tantemente a partilhar material; encontra coisas e lembra-se algum de nós e envia-nos”. Recorda--se até que, recentemente, o Joel “comprou uma malinha com dispositivos de animação e levou para as aulas para todos verem como era”, conta Eduarda Novo ao Obli.

Caneta s/papel, Porto, 2014

Grafite s/papel, 2012

Caneta s/papel, Afurada, 2012

Caneta s/papel, pintura digital, 2009

| Tiago Varzim |

Page 8: Obli dezembro 2014 - fevereiro 2015

08

A sociedade barcelense já reconhece na APACI uma associação que desenvolve um trabalho importante?

Eu penso que sim. Nomeadamente a Câ-mara [Municipal] que nos apoia muito. Te-mos uma parceria com várias entidades, entre elas a Câmara, que faz uma divulgação e um acompanhamento que eu diria que é muito im-portante para nós. Para nós como instituição, claro, dando apoio às pessoas com deficiência. Não é para mim. É para as pessoas que aqui estão a receber um benefício de uma equipa de profissionais excelente que a APACI tem nas várias especialidades, e que fazem um trabalho com muito mérito. Não é meu o trabalho. Eu, às vezes, fico-me por uma assinatura. O trabalho é dos nossos colaboradores.

Para quem ainda não conhece, o que é a APACI e como está organizada?

A APACI é uma instituição de solidariedade social com fins não lucrativos. Portanto, é uma IPSS que tem todo o apoio da Segurança Social.

Daí que nós só podemos funcionar tendo acor-dos com a Segurança Social. O trabalho que se faz custa muito, muito dinheiro. Temos acordos também com o Ministério da Educação…

E têm apoios aqui de Barcelos?Vamos tendo apoios particulares, dos só-

cios, temos empresas que nos apoiam, não tanto quanto o que é necessário, mas dentro do que as pessoas têm disponibilidade... E recebem-nos com muito carinho, é um facto.

A APACI tem pessoal contratado, mas tam-bém a nível de voluntariado. Neste último caso, é um número expressivo?

Temos alguns. Sabe que o voluntariado é uma área muito especial. A instituição não tem muitos voluntários. Vai tendo, mas é uma área muito complicada porque nem toda a gente está… [pausa] é difícil fazer voluntariado numa instituição de solidariedade social porque as pessoas ao entrarem no Centro de Atividade Ocupacionais, por exemplo, recuam muitas

vezes porque não é fácil. Até para mim. As primeiras vezes em que olhei para um salão com 50 pessoas, que é o que temos no Centro de Atividades Ocupacionais de São Veríssimo – o primeiro que nós fizemos, num terreno de um benemérito –, e ver tanto jovens a precisar de ajuda… Não é uma área onde nós inves-timos muito porque são situações de alguma caridade, alguns deles, e, por isso, têm de ser acompanhados por pessoas que têm conheci-mentos e são especialistas na sua área. Temos psicólogos, sociólogos, professores de dança, de música, de teatro - são áreas que nós queríamos desenvolver porque são essenciais para o de-sabrochar daquelas pessoas que estão, muitas vezes, [pausa] pensámos nós, sem atividade,

MARIA EDUARDA RÊGO

«Barcelos foi sempre – e custa-me dizer isto – uma cidade fechada, muito pouco dada à mudança»

| Tiago Varzim |

NO MÊS EM QUE SE COMEMORA O DIA INTERNACIONAL DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA, CELEBRADO A 3

DE DEZEMBRO, O OBLI ENTREVISTOU A HÁ MAIS DE 30 ANOS PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO DE PAIS E AMIGOS

DE CRIANÇAS INADAPTADAS (APACI). SOB A MISSÃO – “MELHORAR A QUALIDADE DE VIDA DAS PESSOAS

COM DEFICIÊNCIA E/OU INCAPACIDADES E SUAS FAMÍLIAS DE ACORDO COM OS VALORES DEFINIDOS NO

CÓDIGO DE ÉTICA DA APACI” -, ESTA INSTITUIÇÃO PARTICULAR DE

SOLIDARIEDADE SOCIAL (IPSS) CONTINUA A PRESTAR UM SERVIÇO

À COMUNIDADE BARCELENSE QUE AQUI É DESCONSTRUÍDO

EM VÁRIOS PASSOS. «BARCELOS FOI SEMPRE – E CUSTA-ME

DIZER ISTO – UMA CIDADE FECHADA, MUITO POUCO DADA À

MUDANÇA. TAMBÉM HOJE ISSO ACONTECE, MAS COM A AJUDA DA

COMUNICAÇÃO SOCIAL, QUE ESTÁ MUITO MAIS ABERTA A ESTES

TEMAS, A APACI NUNCA TEVE DIFICULDADE EM COMUNICAR COM

OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO», REVELOU MARIA EDUARDA RÊGO

EM ENTREVISTA AO OBLI..

«Nós descobrimos talentos fabulosos nestes jovens!» [Barcelos Popular]

Page 9: Obli dezembro 2014 - fevereiro 2015

Obli - dezembro - 2014 / fevereiro - 2015 09

A formação é adaptada ou é praticamente igual?

É praticamente igual, embo-ra específica, porque é feita uma avaliação psíquica do utente e do seu estado mental e do ambiente familiar. Estes projetos são feitos com a pessoa em si, à medida do gosto e do querer. […] Depen-dendo da vocação que eles mos-tram ou que eles dizem ser do seu interesse, nós temos de dirigir a pessoa nesse sentido, para a po-der ajudar.

Depois dessa formação profis-sional, qual é a aceitação destes jovens no mercado?

Até aqui tem sido muito boa. Nós integrámos já muitos jovens! […] Hoje, dado o contexto nacional, o contexto atual no desemprego, com empresas em circunstâncias difíceis de contra-tar pessoas, temos muito mais dificuldades em inserir estas pessoas no mercado de trabalho…

Mas não tem que ver com questões sociais; tem que ver com a crise, certo?

Exatamente, a parte social, pela parte dos empresários, é sempre excecional. Tem sido. Há sempre alguns utentes nossos – porque depois nós fazemos o acompanhamento laboral, temos pessoas em constante contacto com as empresas e os funcionários, os utentes neste caso –, sei, feedback que tive, que foi uma mais-valia que tiveram nas suas empresas. Temos exemplos fabulosos que foram integrados em fábricas têxteis, e não só, onde foram exemplo e ala-vancas para os funcionários da própria fábrica.

O que falta à APACI, neste momento, para concretizar a sua missão?

A base é o dinheiro. Há falta de possibili-dades económicas porque todos os projetos, se não forem apoiados por qualquer programa – e, aliás, nós estamos sempre atentos a novas iniciativas da sociedade civil que felizmente têm surgido com alguma frequência… que nos vão ajudar a incrementar a cidadania destes jovens que têm direito a viver uma vida digna, é um facto. Nós aproveitamos tudo para avançar, realmente, com a dignidade da pessoa humana na pessoa deficiente.

sem vontade. E não. Nós descobrimos talentos fabulosos nestes jovens! Temos, por exemplo, uma senhora dentista que nos vem dar apoio, e é voluntária, para que as pessoas se menta-lizem que têm de lavar os dentes. Ela verifica as bocas dos nossos utentes. […] De resto, do voluntariado em si, é toda a Direção que é toda ela voluntária, que trabalha exaustivamente.

Como é que os jovens que estão na APACI são recebidos nas respetivas escolas? Da sua perspetiva, há uma integração?

Apesar de fazer parte do Conselho da Escola Gonçalo Nunes, não lhe posso dizer muito bem isso. Pelo aquilo que me é dado a entender, eu penso que isso está muito bem controlado. Como sabe, porque foi estudante há bem pouco tempo…

Exatamente, sim…Ainda é muito jovem! As crianças, os jo-

vens em si, são maus uns para os outros. E há, sempre, um ou outro que rejeita, que fere, que magoa, que insulta, mas também temos exemplos de crianças e jovens que se amarram àquela pessoa com dificuldade e ajudam em tudo. Isso é que, pelo menos na escola de que eu faço parte, é a preocupação da Direção da escola: é muito projetada para os jovens com deficiência.

Voltando ao voluntariado, em seguimento da questão anterior, têm jovens a fazê-lo na APACI?

Temos, temos muitas vezes jovens estrangei-ros: italianos, sei que temos tido grupos grandes, e também do leste da Europa. Há um intercâm-bio de jovens que vêm, que não têm nada que ver com a área da deficiência…

Mesmo com a dificuldade da Língua, de comunicação, ajudam?

Completamente, são pessoas que fazem um trabalho muito bom. Mesmo tendo a dificuldade

de perceber a Língua ou de se fazer entender, quando realmente as pessoas gostam do traba-lho que fazem e têm a sensibilidade, é quase como a música: é uma fala internacional, toda a gente entende. Aqui é um pouco isso também.

Um dos próximos sonhos da APACI é cons-truir um centro em São Veríssimo. Quão longe está de o concretizar?

Nós fizemos uma angariação de fundos que ainda não acabou. [...] É um projeto com o qual nós nos candidatámos ao poPH 6.12 para a construção de um Centro de Atividades Ocu-pacionais para 30 utentes e um Lar Residencial para 24 pessoas. Nós temos já uma unidade residencial numa casa que comprámos, mas não sendo esse o melhor sítio para que as pes-soas tenham boas condições, este era o sonho maior do fundador: a construção desse edifício está praticamente à espera da inauguração. É em São Veríssimo, ao lado do primeiro onde fizemos, num terreno doado, embora o segun-do tenha sido comprado, mas esse sonho está praticamente concretizado.

E a nível de formação profissional, qual é o futuro destes jovens?

Especialmente uma formação prática, que é a que nós fazemos. A par de continuar a for-mação teórica: é claro que temos professores que vão ajudando esses jovens a ter um conhe-cimento mais prático da vida, para saberem o que é o dinheiro, irem às compras, aprenderem melhor a ler, conseguir aprender os seus direitos e os seus deveres. A par disso, nós temos a formação profissional em si na área da hotelaria, de jar-dinagem, de cerâmica, com várias vertentes práticas para que possam desempenhar uma função que lhes permita dar alguma sobrevivência.

«Até aqui [a aceitação no mercado] tem sido muito boa» [Montepio Geral]

«[…] é difícil fazer voluntariado numa instituição de solidariedade social» [DR]

Page 10: Obli dezembro 2014 - fevereiro 2015

10Bem-me-quer, mal-me-quer…

É uma reportagem quase no feminino. Desde logo porque, indicam os números, a violência é exercida sobretudo sobre mulheres. São elas, pelo menos, quem mais procura ajuda e apresenta queixa nas autoridades competentes. A violência doméstica, apesar desta tendência, é um problema transversal à sociedade, que afeta quer mulheres, quer homens. Estes, po-rém, inibem-se mais na altura de pedir ajuda.

Vamos chamar-lhe “Maria”. Tem 49 anos e esteve casada durante 31. É mãe de dois rapazes e de uma rapariga. Saiu de casa em maio deste ano.

O namoro foi breve, passavam pouco tempo juntos e casaram, a um mês de ela fazer 18 anos. “Maria” procurava «uma vida melhor». Nos primeiros tempos do casamento, conta, «não foi assim muito mau». Depois, após o nasci-mento do primeiro filho, «as coisas começaram a piorar». «Ou tinha ciúmes de uma pessoa se dedicar mais ao filho… e começou sempre a desconfiar de tudo, de todos, eu não podia falar para ninguém nem ir a lado nenhum. Tinha muitos ciúmes e controlava-me o dinheiro, ia revistar as minhas bolsas todas, os casacos, foi sempre assim», resume “Maria”.

Hoje, “Maria” reconhece que pediu ajuda «muito tarde». E explica: «Tinha os meus fi-lhos pequenos e dependia também muito dele [marido agressor]. Deixei de trabalhar quando nasceu o meu filho do meio… Mas as coisas começaram a piorar. Só que eu nunca tive coragem, porque os meus filhos eram muito novinhos».

A coordenadora do Grupo de Ação Social Cristã (GASC), Célia Barbosa, considera que ter filhos «ainda é, para muitas vítimas, consi-derado como um motivo que as deve manter na relação, de forma a que os filhos não sofram mais ao sair de casa», mas, ressalva, «hoje em dia já se vai percebendo gradualmente uma ligeira mudança da compreensão disto», sobre-tudo quando a vítima reconhece que há uma dinâmica de violência, que se está na presença de um crime e que as crianças também sofrem com essa situação.

A juntar aos filhos, poderá haver outras ra-zões: a conjuntura económica – «a elevada taxa de desemprego acentuou algumas situações de dependência económica entre a vítima e o agres-sor», refere Célia Barbosa –, um «descredibilizar da Justiça e, muitas vezes, também a falta de apoio familiar», acrescenta a coordenadora do Projeto SOPRO Feminino da Associação

«EUNUNCA TIVE CORAGEM»

| Cristina M. Barbosa |

Joel Faria

Page 11: Obli dezembro 2014 - fevereiro 2015

Obli - dezembro - 2014 / fevereiro - 2015 11SOPRO, Susana Oliveira.Entretanto, chegou um ponto em que “Ma-

ria” não aguentou mais. «A minha filha já era maiorzinha e eu não aguentei mais. Teve de ser», recorda. A decisão, no entanto, teve um preci-pitador: o agressor dera-lhe um prazo máximo para sair de casa. «Como a minha vida andava muito má – como quem diz que cada vez as ameaças eram maiores –, eu disse que, quando arranjasse uma solução para a minha vida, que saía de casa». Dizia-o na esperança de que ele mudasse, que pensasse melhor. Porém, certa noite, o agressor deu-lhe até ao dia seguinte para sair de casa, mas, de repente, mudou de ideias. «Olha, não é amanhã, é já hoje. Sais já hoje pela porta fora», ordenara. E assim foi: era meia-noite menos um quarto, quando “Maria” saiu de casa e pediu abrigo a uma amiga. «Es-tive lá 15 dias, mas ele encontrou-me e voltou a ameaçar que me matava e que me ia partir o carro», contou ao Obli.

Os episódios de violência por que passou, ao longo de 31 anos, eram sobretudo psicológicos e económicos. Ainda assim, foi agredida duas ocasiões, logo após o casamento. «Bateu-me duas vezes ao princípio, quando casámos», con-ta, resignada, achando «que aquilo era normal, que era uma chamada de atenção». Além disso, diz “Maria”, «a palavra “mato-te” era muito frequente», tal como ainda nos dias de hoje, apesar dos mais de 100kms que distam das suas moradas. E, se antes achava que as ameaças não passavam de ameaças, agora, confessa, tem «muito medo»: «Sempre achei que era normal, que não ia fazer nada, mas agora eu vejo que ele é capaz de o fazer. Está descontrolado. Ele vai fazer uma asneira».

Susana Oliveira, do Projeto SOPRO Fe-minino, atenta que «o risco de morte aumenta, quando há separação». E explica: «A separação pode fazer com que os agressores se precipitem e que sintam que já não têm nada a perder».

Presentemente, longe de casa e dos filhos, “Maria” esbarra na intolerância do filho mais velho: «O meu mais velho não aceitava nem aceita e ainda agora está revoltado. Acho que ele tem muito a ideia do pai, é uma ideia assim antiquada: ele acha que não devia ter saído. O meu do meio dizia sempre “dá-lhe uma opor-tunidade, pensa bem no que vais fazer, porque viver sozinha é difícil, mas eu quero a tua feli-cidade. Segues a tua vida, o pai tem de seguir a dele”. A minha filha [é menor, ainda está com o pai], como viveu mais estas coisas todas, essa é contra eu voltar para casa». Importa talvez aqui realçar que a filha «presenciava muito» as cenas de violência, pois o agressor evitava esses episódios quando os filhos rapazes esta-vam em casa, mas não se coibia na presença da rapariga, a filha.

Recentemente ocorreu a primeira audiência para o divórcio.

Chamemos-lhe “Adelaide”. Tem 60 anos e terminou, há quase quatro, um casamento que durara 35 anos.

Tinham um filho e o marido já não queria o segundo. Foi a partir daí que a relação entre ambos começou a agravar-se. Para trás, tinham ficado já alguns episódios negativos durante os dois anos em que haviam namorado e em que já tinha percebido que «ele era uma pessoa fria». «Ele foi sempre muito agressivo e nessas

ocasiões, como eu o ultrapassava - no caso dos filhos ultrapassei a vontade dele -, as coisas pio-raram», conta “Adelaide”. Às vezes, recorda ao Obli, o ex-marido batia-lhe sem razão, do nada, desculpando-se depois com o dia de trabalho. Outras vezes, não havia qualquer diálogo, «não havia uma palavra».

Certa noite, num momento de tensão, “Ade-laide” desabafara: «Eu só lhe disse “Olha, é triste eu ser a tua mulher e não saber onde trabalhas; não tenho um contacto, não sei nada». Incomodado, o marido terá pegado num objeto que “Adelaide” não sabe precisar e agrediu-a. «Em parte do meu corpo, fiquei toda negra», recorda. Não estando ainda satisfeito com o que já tinha feito, tentou incendiar a casa.

Amparada pelos sogros, que a apoiavam e intercediam por ela, foi ao hospital e fez uma queixa, que foi depois retirada. A esta distância, “Adelaide” percebe que se deixou iludir por um falso arrependimento: «Ele era muito agressi-vo; acho que ele encenou as coisas, porque ele chorou. Ele nunca chorava, era frio. Ele pediu perdão e tudo, claro que depois eu perdoei. […] Cedi porque nunca o tinha visto chorar. Foi a primeira vez».

“Adelaide” não é caso único. A coordenadora do GASC, Célia Barbosa, refere que têm «algu-mas situações em que as pessoas vêm motivadas para sair da relação, mas depois as coisas vão mudando e a pessoa começa a ponderar que se calhar quer dar mais uma oportunidade». E, nota, há uma explicação: «Trata-se de uma dinâmica específica, que tem que ver com o ciclo da violência. E o ciclo da violência é composto por três fases: fase da tensão, da agressão e da lua de mel». De forma sintética, na tensão, «o ambiente em casa começa a ficar um pouco mais pesado; ou não falam, ou quando falam já é num tom diferente, implica-se por tudo e por nada, até que muitas vezes esta fase de tensão culmina num episódio de violência mais grave».

É, muitas vezes, na fase da agressão – que não é exclusivamente física – que a vítima decide pro-curar ajuda. Contudo, é também depois, explica a psicóloga, que o agressor «toma consciência que perdeu o controlo sobre a situação e que quer recuperar a relação; muitas vezes, inicia um processo a que chamamos de “sedução” da vítima, ou com promessas de que vai mudar, com prendas, com justificações». «Isto gera na vítima um grande sentimento de ambivalência e muitas vezes é nesta fase da lua de mel que as vítimas deixam de vir aos serviços, porque acham que ele já deu sinais que vai mudar e, então, a esperança ressurge. Este é um ciclo que tende a repetir-se com o tempo e, por vezes, anos a fio», conclui Célia Barbosa.

“Adelaide”, no entanto, depressa percebeu que nada iria mudar. «A situação foi-se agravan-do sempre, até porque chegou um momento da minha vida em que até o próprio silêncio dele me magoava, ou então eram palavras que me magoavam muito. Ultimamente ele até já nem batia, sabia que me magoava mais assim e agia dessa forma», conta ao Obli. Foi então que procurou ajuda na APAV e foi encaminhada, em maio de 2011, para uma Casa de Abrigo, onde esteve quase um ano.

Célia Barbosa considera que o impacto da violência na vítima «pode ser a vários níveis»: «Muitas vezes, o impacto resulta em sintomato-logia psiquiátrica, ou seja, falamos de mulheres que às vezes apresentam sintomatologia do foro depressivo ou do foro ansioso, portanto, muito descrentes de si próprias, do valor como pessoas, que foram perdendo o gosto por si e com a autoestima minada, muitas vezes muito ansiosas, porque vivem numa situação de medo frequente». Outras vezes, temos alterações que tocam na funcionalidade diária, por exemplo, maior absentismo profissional, vergonha, iso-lamento social ou a própria relação com os fi-lhos está um pouco alterada. Célia Barbosa acrescenta, porém, que há vítimas que lidam melhor com as experiências, preservando as suas competências pessoais.

Entretanto, “Adelaide” fez o 9.º ano e quer ainda completar o 12.º. Escreve, gosta muito de cantar, procurou retomar a sua vida: «A minha vida mudou, mas tudo pela positiva.

«CEDI PORQUE NUNCA OTINHA VISTO CHORAR»

DA AGRESSÃO À ‘SEDUÇÃO’

Joel Faria

Page 12: Obli dezembro 2014 - fevereiro 2015

12

VIOLÊNCIA NO NAMORO: «ELA E ELE SÃO ORA VÍTIMAS, ORA AGRESSORES»

Eu sinto-me bem cá, sinto-me feliz. Claro que gostava de ter os meus netos e os meus filhos perto de mim…». Na voz, nota-se-lhe uma certa tristeza e mágoa. Embora os filhos digam que está tudo bem, “Adelaide” sente que não está. «Eles dizem que eu que fiz bem, que já devia ter feito há mais tempo, mas eu sinto que não está nada bem… Eu sinto que eles têm aquela mágoa… Mas eu não os abandonei…». Certo é que não vê o filho do meio desde que saiu de casa e, o mais velho, só viu uma vez. Do ex-marido, nada sabe. «Ele às vezes pergunta às minhas netas se eu estou bem. “Para mim, ele está arrependido…»”.

“A violência doméstica é um crime público.” Significa que o procedimento criminal pode não resultar de queixa apresentada pela vítima, mas por qualquer pessoa ou entidade. O crime de violência doméstica está previsto no artigo 152.º do Código Penal Português. Segundo dados divulgados até junho deste ano, estavam nas cadeias portuguesas 479 pessoas a cumprir pena pelo crime de violência doméstica.

Os comportamentos violentos e abusivos não são apenas físicos ou psicológicos (intimidação e ameaças). Além destes, o sofrimento infligido pode ainda ser sexual, económico ou social. O problema é transversal à sociedade – atinge as variadas classes sociais e faixas etárias; não é apenas entre o casal, mas também sobre idosos e crianças; existe tanto nos casais hetero como homossexuais.

No início deste mês, a secretária de Estado dos Assuntos Parlamentares e da Igualdade, Teresa Morais, divulgou que a violência domés-tica vai passar a ser tema tratado nas escolas, no próximo ano letivo.

Nos casos de violência doméstica que acom-panha, Susana Oliveira vai-se apercebendo que já no namoro havia sinais que eram des-valorizados, indícios a que não se dera atenção e que eram já indicadores de ciúme, controlo e chantagem por parte do agressor. «Quando chegam a esta fase, as vítimas fazem uma ava-liação da vida delas, puxam um pouco as coisas

atrás e veem que realmente já existiam indícios de violência. E um dos sinais era o controlar, o ameaçar, que depois, mais tarde, passaram para uma situação mais abusiva ainda e, por vezes, de violência física», explica a coordenadora do Projeto SOPRO Feminino.

Também a coordenadora do GASC, Célia Barbosa, confirma que, na exploração da his-tória de vitimação, percebem, muitas vezes, «desde o início do namoro, dinâmicas relacionais que envolvem poder, controlo e alguns precon-ceitos, que, ao longo dos anos, vão muitas vezes acentuando-se de uma forma mais visível».

Os jovens, em teoria e nos discursos, «ten-dem a não legitimar ou aceitar a violência no namoro», notam as investigadoras da Escola de Psicologia da Universidade do Minho (UM), Marlene Matos e Andreia Machado. Porém, «os estudos demonstram que, ao nível das práticas, os jovens perpetram e são vítimas de violência no namoro em números muito preocupantes». Ainda recentemente, a investigadora da Uni-versidade Fernando Pessoa, Madalena Sofia Oliveira, reuniu o depoimento de 1500 jovens, entre os 15 e os 20 anos de idade, e observou que «25% dos jovens admitem ter agredido o/a seu/sua parceiro/a e 29% relatam ter sido vítimas de comportamentos violentos». Entre os mais frequentes, estão insultos e difamações, bem como bofetadas. De resto, é ainda de notar, de acordo com vários estudos, que a violência no namoro parece ser mais «bidirecional», atenta Susana Oliveira: «Ela e ele são ora vítimas, ora agressores».

As investigadoras da Escola de Psicologia da UM notam que no fenómeno da violência no namoro se assiste a «uma maior paridade de género no exercício dessa violência entre rapazes e raparigas». Talvez isso se explique pelo facto de, «comparativamente ao que se passa no contexto marital, a violência nas re-lações amorosas se diferenciar pelo facto de, frequentemente, compreender “atos menos se-veros”». Não impede, porém, que a violência no namoro seja um fenómeno «com um potencial de impacto deveras significativo».

É para prevenir este tipo de experiências – que magoam, humilham e assustam a vítima –, que o Projeto SOPRO Feminino desenvolve ações nas escolas, no sentido de «criar dinâmicas para ensinar aos jovens a distinguir o que é e o que não é uma relação de namoro saudável». Isto porque, alertam Marlene Matos e Andreia Machado, «a violência no namoro é um forte

Queixas apresentadas na

PSP e GNR (Barcelos), por

violência na intimidade,

atentando ao sexo da vítima.

*Em 2014, foram

consideradas as queixas

apresentadas na GNR, de

Janeiro a Outubro de 2014, e,

na PSP, as participações feitas

até Novembro deste ano.

Infografia de Rafael Peixoto

GASC E SOPRO APOIAM

VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA

preditor da violência marital, daí a importância de uma prevenção precoce e a união de esforços na eliminação deste fenómeno».

Em Barcelos, o GASC e a SOPRO são duas instituições onde as vítimas de violência do-méstica/namoro podem procurar ajuda. Num primeiro momento, é feita uma avaliação do risco que a vítima corre, sendo que a intervenção varia sobretudo consoante o grau de risco e as motivações principais apresentadas pelas víti-mas. A partir daí e em função dessa informação, as instituições trabalham com a vítima aquilo que são «as principais necessidades dela e as principais motivações – que pode passar por lidar com a relação de uma forma diferente –, e os planos de segurança», avança Célia Barbosa.

Grande parte das vítimas atendidas nestes espaços não tem como objetivo a separação ou o divórcio. «Há muitas que nos procuram porque querem encontrar uma estratégia, uma alternativa para que a violência pare», observa Susana Oliveira, da SOPRO. Célia Barbosa, do GASC, diz ser importante respeitar a von-tade das vítimas, até porque, ressalva, «num espaço de atendimento a vítimas não é objetivo em si o divórcio e compete às vítimas condu-zirem elas o processo de tomada de decisão, o que nas relações abusivas não acontece ou está fortemente condicionado. O objetivo da intervenção é que a pessoa esteja bem e se a pessoa, naquele momento, sente que não quer uma separação, nós temos é que lhe dar estra-tégias para pelo menos ela gerir as situações de uma forma diferente, reconhecendo que aquilo é um crime, reconhecendo que aquele tipo de comportamento não tem justificação».

A psicóloga e coordenadora do GASC con-sidera, por último, que nunca é tarde para pedir ajuda: «Às vezes, nós estamos à espera do mo-mento para ganhar coragem ou para estarmos mais confiantes para dar aquele determinado passo e se calhar não é preciso esperar tanto». E acrescenta: «As pessoas podem vir mesmo com as suas dúvidas, com as suas angústias, com os seus receios, sem que necessariamente venham a pensar que procurar ajuda significa que se vão separar. Mesmo na dúvida, vale a pena procurar ajuda».

O Obli procurou reunir testemunhos de quem já tenha passado pela experiência de violência no namoro, mas tal não foi possível.

«Trabalhar com o agressor é trabalhar a prevenção de novos ciclos de violência, mesmo que não seja com aquela vítima». (Célia Barbosa, coordenadora do GASC) – Lê mais sobre o trabalho com agressores em www.obli.pt

Page 13: Obli dezembro 2014 - fevereiro 2015

Obli - dezembro - 2014 / fevereiro - 2015 13

ezembro é um mês ambivalente. Escuro por um lado, mas também luminescente por outro. As baixas tem-peraturas da estação são compensadas por um “calor” próprio da quadra natalícia que reconforta muitos de nós (infelizmente não todos). Dezembro é, portanto, um mês que facilmente se deixa seduzir pelo frio e pelos

caprichos do tempo, mas tais insolências meteorológicas são de longe compensadas por um espírito solidário e reconciliador. Dezembro é, por outros palavras, um mês dado a dicotomias que vão muito mais além da chuva, do frio, do vento e da neve.

As dicotomias de Dezembro fazem-se também sentir na Suécia, país onde vivo já a caminho dos quatro anos (mais precisamente na Scania). Hoje, por exemplo, pouco passava das 15h30 e já o sol estava rendido. As temperaturas, talvez devido às mudanças climáticas de que ainda tanto se fala, têm sido meigas em relação a anos anteriores. Com ou sem o bónus do aquecimento global, o certo é que o rigor do Inverno se sente bem por estas latitudes. É talvez por causa dos rigores climatéricos da Suécia que os sueos são tão devotos à celebração da quadra Natalícia.

Os “svenssons” (leia-se suecos) são mestres em fazer desta quadra algo genuinamente acolhedor e calorento. Mesa&comida é um dos “truques” que por cá se usa (e abusa) para fermentar o convívio e confraternização entre familiares, amigos e amigos dos amigos. Ainda íamos em Novembro e já eu ia preenchendo a agenda com convites para preparação e prova de petiscos natalícios (sim, os suecos são organizados quanto baste, de forma que não são só os executivos que se viciam em agendas – até eu, vejam lá!), tanto caseiros, como aqueles que se compram, prontinhos a trincar, nos supermercados (aqui também os há...). “Glögg”, por exem-plo, é uma tradição que verdadeiramente pertence à quadra. Glögg é uma espécie de vinho temperado com gengibre, canela, nóz moscada e cravinho, e aquecido em lume brando antes de ser servido, ao mesmo tempo que se acrescentam amêndoas e uvas passas no copo. Depois não custa nada: é só “enfrascar” o dito, entre goles e colheradas, quase como se de uma sopa se tratasse. É, diria eu, especialmente indicado para aquecer o corpo, elevar o espírito e estimular o convívio.

Enquadrado no espírito natalício, celebra-se também aqui o dia de Sta. Luzia, (em sueco, Lucia), a 14 de Dezembro. Este dia tem bastante significado para os suecos e, um pouco por todo lado, organizam-se procissões e concertos nas igrejas. Porquê Sta. Luzia? Simples. Os suecos suspiram a tempo inteiro por sol (mais ainda em Dezembro) e Sta. Luzia simboliza e representa “luz” – love at first sight! Para adoçar o bico à Sta. Luzia, e assim assegurar que a luz é restaurada de Janeiro em diante, confeccionam-se queques de açafrão, “Lussebullar”, expres-samente a ela dedicados.

E não é só o Natal ou a Sta. Luzia. Os suecos são, a bem dizer, es-

Suécia,

pecialistas em comemorar o que quer que seja. Tudo é pretexto para convívio, mesa e festa. Quando eu para cá vim, há quatro anos, trazia na bagagem algumas ideias pré-concebidas em relação aos países nórdicos, nomeadamente no que toca ao perfil dos escandinavos. Em poucas palavras: frios, calados e introvertidos. Pois nada disso! Quanto mais experiencio o país e a cultura, mais me convenço do contrário. Aqui os valores colectivos e o espírito de socialização estão profundamente entranhados na cultura do país. Os suecos gostam de conviver e falam que se farta (às vezes quase me canso de os ouvir :-)). Este lado convivial dos suecos é saliente também na Língua. “Umgås”, por exemplo, é uma palavra que encapsula toda a noção de passar tempo com os amigos em pura diversão. Ou “samsas”, também um verbo que, numa palavra só, resume a ideia de entrar em acordo e de juntos seguir em frente. Em contrapartida, nós em Portugal exprimimos sentimentos com-plexos de angústia, tristeza, ânsia e nostalgia numa palavra só: SAUDADE.

E de saudades estou também eu repleto. Vai saber-me bem passar o Natal junto da minha família e amigos que já não vejo há precisamente um ano. Significa também que me vou reencon-trar com paisagens, cheiros e sabores, lembran-ças, ruas e vielas, antigas reflexões, sonhos e visões, enfim, reencontrar-me com um passado que é parte de mim e que constantemente me elucida... Espero, claro, poder também dar uma fugida à minha cidade natal, Barcelos, de pre-ferência em dia de feira. Vivi nesta cidade os primeiros dez anos da minha vida e associo-a inevitavelmente com vividas e genuínas recor-dações da minha infância. Barcelos tem, por isso, um lugar cativo no meu coração.

| Pedro Coutinho Campos |

Pedro Campos [DR]

uma quadra calorenta

D

Gostaria finalmente de desejar um próspero Ano Novo a todos os barcelenses.

O autor desta crónica escreve segundo a velha grafia

Page 14: Obli dezembro 2014 - fevereiro 2015

14Manuel Melo O barão da Rádio no underground sem reis

Jogava-se um Portugal x Argentina na televisão do Bar do Xano e a chuva e o frio enchiam o peito por toda a Rua da Palha. Com as duas maiores estrelas internacionais relegadas ao intervalo de uma partida medonha, não era difícil abraçarmos a brisa invernal em detrimento da bola, ainda para mais quando se tem na mesa Manuel Melo, homem de ferro que carrega o Sinfonias de Aço (SdA) por entre 22 anos de emissões, apaixonado pela música e um aficionado da NBA.

| Luís Masquete |

O futebol era dispensável, o seu legado nem por isso: a primeira vida do Sinfonias de Aço – na altura, com emissão na Rádio Cávado –, serviria de esboço para a derradeira aventura: a prioridade de divulgar sonoridades mais pesa-das que o rock dos Beatles, recém-chegadas ao Portugal pós-revolução, com trechos de música erudita cobertos pela voz de Manuel. «Aprendi esse truque com Alan Freeman, antigo DJ da BBC, que costumava falar por cima de obras clássicas nos intervalos das faixas», conta ao Obli. Daí nasce a nomenclatura do programa que se mantém até hoje, com um cardápio mais alargado, mas sempre virado para a música moderna. «Não desvalorizo qualquer géne-ro de música, mas queria fazer um programa onde desse atenção às novas tendências em detrimento de música popular ou tradicional, por exemplo», explica Melo.

A ligação com a cena musical barcelense era umbilical, tendo acompanhado a evolução dos Ad-doc (projeto que entretanto evoluiu para os Astonishing Urbana Fall e, posteriormente, para os atuais La La La Ressonance) e tendo aquela que será a primeira demo barcelense, gravada num concurso de bandas em Vila Verde (no qual foi júri), em 1993.

O primeiro registo do conjunto de André Simão é apenas uma gota no oceano de rarida-des que Melo guarda em casa, consequência do trajeto imaculado que leva enquanto radialista e da sua dedicação no esboço da segunda vida do programa. Com a Internet a dar ainda os primeiros passos, os correios serviam de prin-cipal meio de propagação, com vários panfletos manufaturados a circularem pelo país: «Naquela altura, enviavas cartas que eram encaminhadas pelos próprios destinatários e, em cerca de seis meses, chegavas a muita gente». A muita gente e a muitos artistas. Deu-se o trovão a anunciar a

chuva de demos e maquetes que viria a receber na sua caixa postal, com níveis de precipitação que duram até hoje, fazendo com que não mais precisasse de recolher registos – a exemplo do que fez junto de amigos da Rádio Comercial, «nomeadamente, junto da equipa de António Sérgio» –, aglomerando os suficientes para o programa e para a vida. Com a vida na estrada imaginária do estúdio, guarda boas memórias dos tempos e das amizades, parcialmente mate-rializadas em cassetes de número infinito, com destaque para os primeiros registos de bandas como Tarântula e Blind Zero, ou como “Bem Fundo”, raríssima demo dos punk-rockers Cães Vadios.

Chico Fininho ou Homem-Tripé? Como bom apreciador de música, perde-se

a conta dos concertos que destaca nas suas memórias e percebe-se, através do entusiasmo com que nos fala, o que o fez começar a captar aqueles momentos. Começou por gravar em cassete, mas nem sempre valia a pena a edição devido às condições do som: «A única forma que tinhas para gravar era esperar que o técnico de som te disponibilizasse uma linha da mesa, o que muitas vezes não era fácil». Conta-nos também que a reação das bandas, no início, não era a mais descontraída: «Curiosamente eram as bandas mais conhecidas que mais se mostravam tranquilas pelo facto de os estar a gravar».

De gorro a aquecer uma cabeça focada uni-camente na posição do tripé. Eis a postura a que Melo nos habitou durante os concertos em que deve permanecer, mas onde a estaticidade pare-ce ser a última das suas preocupações: «Gravar não é nada fácil, nomeadamente porque precisas

O ‘Sinfonias de Aço’ conta já com 22 anos de emissões [Gonçalo Costa]

Page 15: Obli dezembro 2014 - fevereiro 2015

Obli - dezembro - 2014 / fevereiro - 2015 15

de encontrar um local estratégico para que pos-sas captar o melhor som possível mediante as condições. Mas nada disto me perturba, precisas de ter paciência para o fazer». «Por vezes, o mais chato baseia-se mesmo no ruído de fundo, nomeadamente as conversas do público, que depois se sobrepõem nas gravações», nota. Não se afigura tarefa fácil, esta de captar espetáculos por anos a fio, mas a possibilidade de captar «pérolas do momento» e de as guardar para si são argumentos para continuar a marcha, em-bora apenas ouça as gravações passados alguns anos. Manuel Melo foca-se no «valor histórico» com que vai encrostando as memórias, exem-plificando com um concerto dos barcelenses Angelica’s Mercy, em Felgueiras: «Foi entre 94 ou 95, eles ainda não tinham editado nenhum disco e a gravação ficou com um som terrível, mas ainda bem que foi gravado!».

Ao todo, contabiliza mais de 1000 concertos gravados por si – «mas muitos mais, se contar com os restantes» –, grande parte dos quais entre nas antigas instalações do Kastrus Bar, em Forjães, e entre o mítico e agora extinto Rendez-Vous, em Lisboa, de onde trouxe para a sua prateleira bandas como os Kú de Judas (1985) e Ena Pá 2000 (1987).

Por enquanto, continuaremos a vê-lo de tripé e gravador na mão, e a movida de Barcelos dá-lhe mais do que motivos para não ficar em casa. Além de registos do Subscuta e do SWR Barroselas Metal Fest, cobre grande parte do Milhões de Festa desde que o festival atracou na Marginal, valendo-lhe surpresas como a sessão de improviso dos Black Bombaim com os britânicos Gnod. «Por acaso, tinha o gravador no bolso, mas fui ver o concerto para desfru-tar... Soube através do Tojo (Black Bombaim) que apenas trocaram algumas ideias pela net e achei interessante captar aquele momento único», recorda ao Obli. De micro saído do bolso, manteve a leveza partilhada por todos os presentes, focados única e exclusivamente na experiência auditiva que os esperava: «Gra-vei todo o concerto atrás da mesa de mistura. Tinha-me sentado, pois as pernas não podiam mais, e apenas me preocupei com o <Play>». Quem esteve presente sabe o quão peculiar se tornou aquela atuação e imagina a tristeza das gentes que, por aquela altura, não faziam ideia que por entre a carga de frequências que a performance concedeu, estava um gravador saído do casaco de um vulto pousado. «Passados uns

Manuel Melo criou o site do SdA em 95/96, embora na altura não fosse fácil partilhar fichei-ros no servidor, pelo que a página se caracte-rizava pela simplicidade e partilha de samples. Mudou-se para um alojamento profissional há dez anos e, desde então, tem estado sempre ativo, adaptando o site e partilhando a relíquias que coletou de acordo com as tendências do momento. Sabe que a melhor maneira de ca-tivar o interesse das pessoas é ir atualizando os conteúdos da página, algo que não parece causar-lhe transtornos: «Por acaso, tenho três ou quatro k7’s e outros tantos cd’s em cima da secretária, que coloco ali precisamente para fazer alguma coisa com aquilo. Mas, por vezes, olho para a prateleira e vejo algo que me dá vontade de pegar na hora ou então quando me é feito um pedido específico por parte de alguma banda». Ironicamente, por vezes também lhe disponibilizam entrevistas ou especiais seus e dos quais não tem qualquer registo, tamanho o número de emissões que carrega ao micro em décadas de serviço público. «Raramente falhei um programa, quando o fiz foi sempre por motivos de força maior, daí ser impossível guardar todas as emissões», considera Melo.

Com um dos maiores arquivos de música independente em Portugal preservado na cidade do Galo, Manuel Melo vai continuar a partilhá--lo connosco e a dar-nos a ouvir as novidades do panorama nacional, aos sábados, na Rádio Barcelos (91.9Mhz FM).

Arquivos de uma vida

Manuel Melo gravou mais de 1000 concertos [Gonçalo Costa]

Melo possui um dos maiores arquivos de música independente [Gonçalo Costa]

dias, começou a falar-se bastante desse concerto e foi então que me lembrei que o tinha, ainda que não fizesse ideia de como estava. Ouvi em casa e, percebendo que a coisa tinha presença, tratei de a masterizar e enviei ao Fua – mentor do festival –, ele encaminhou a cena para os britânicos e eles acharam piada ao ponto de editarem o concerto em vinil» [edição limitada de 150 exemplares], conta. Outros imprevistos acabariam por surgiu, desde os suecos Gra-veyard até à génese da comunhão local entre os Black Bombaim e os La La La Ressonance, cada qual com a sua dose ou ausência de intenção.

Segundo Melo, o programa evoluirá con-soante as circunstâncias, tal como tem sido des-de o início. «O programa já esteve para acabar, nunca sabemos o que pode acontecer com a rádio amanhã», nota, mas garante que se sente bem onde está e que «as restantes pessoas na estação estão agradadas com o programa».

Page 16: Obli dezembro 2014 - fevereiro 2015

16O nosso país está, atualmente, a atravessar uma fase marcada por uma crise económica que tem afetado a nossa sociedade. Assim, uma grande parte da nossa população, nomeadamente a população mais jovem, tem optado por aban-donar o país à procura de um emprego que lhes permita melhores condições de vida.

O abandono do país em larga escala, como o que se verifica atualmente, encaminha para uma grave consequência demográfica, uma vez que a maior parte destes emigrantes são jovens. Ora, o envelhecimento da população coloca em causa a sustentabilidade do nosso país ao nível demográfico, cujos reflexos atuais já se verificam, com a redução da população.

As principais causas deste fenómeno estão relacionadas com as desigualdades sociais e um baixo poder de compra; a falta de emprego, que afeta os jovens, e que, desta forma, adiam a hipó-tese de casar ou de ter filhos; com a entrada das mulheres no mercado de trabalho, de forma mais generalizada, uma vez que estas preocupam-se mais com a atividade profissional e, ainda, com o aumento da esperança média de vida.

A força e a coragem dos meus amigos co-move-me. Põe em causa a dimensão dos meus problemas e relativiza as dificuldades. Isto não seria uma carta aberta, não fosse o título que a suporta. Em novilíngua, chamam-lhes de em-preendedores e uma data de outras coisas. O êxodo (in)voluntário, a luta por uma espécie de sobrevivência espiritual. Caravanas de tem-plários sem ordem nem protetorado, movidos por uma crença inabalável de ressurreição. Da

Todas estas causas originaram consequências que serão sentidas por toda a população. Neste contexto, refiro-me ao relativo declínio da popu-lação ativa e envelhecimento da mão de obra; à Segurança Social, uma vez que as pessoas vivem mais e recebem durante mais anos a reforma, contribuindo desta forma para agravar um pro-blema de sustentabilidade da Segurança Social e do Sistema Nacional de Pensões e Reformas; a desertificação de várias regiões do país, nomea-damente no interior e no sul; o encerramento de instituições essenciais, como hospitais, centros de saúde e escolas. Somos uma população cada vez mais envelhecida, sem renovação de gerações.

Com a rápida ancianidade do nosso país, que se tem verificado nos últimos anos, este tema começa a ter uma preocupação crescente na atualidade, devido às consequências que existirão no futuro, que já se começam a sentir. Assim, torna-se pre-mente criar medidas de incentivo à natalidade, nomeadamente subsídios e aumento do período de maternidade, ou possibilidade dos pais adotarem um período laboral parcial, ainda que com prejuízo na remuneração; desenvolver o interior do país,

através de programas de incentivo aos jovens, a nível de alojamento e de criação de empresas; criar instituições de colaboração e intercâmbio entre jovens e idosos, ou seja, jovens que participem em lares de idosos, de forma a consciencializarem-se com a realidade dos mais velhos; criar programas educativos (disciplinas ou módulos de disciplinas) que se debrucem especificamente sobre o tema dos idosos e do envelhecimento da população.

A questão demográfica deverá constituir um dos temas de análise social e política do ano de 2015, que está prestes a iniciar-se. E como haverá eleições legislativas, nada melhor do que trazer este assunto para o centro do debate.

Manuel A. Fernandes [DR]

Joaquim Gomes (Professor e investigador) [DR]

| Joaquim da Silva Gomes |

frívola obrigação paternalista que os persuade pela única solução do abandono. Que o futuro está ali à frente, nos limites das nossas frontei-ras. Não está. Apenas. Não devia. Apesar das minhas imaturas certezas de aventura frugal, com a mochila às costas. É impressionante a capacidade de resiliência que se descobre nes-tes gladiadores do século XXI, cercados por uma burocrática violência social. Guardo o sorriso de cada um dos meus, a dignidade das suas decisões, os olhos caídos quando lhes per-gunto: «Não pensas em voltar?». É grandiosa, também, a convicção blindada em agarrar a realidade pelos cornos, estampada na cara de quem fica. Sempre pensei que um dos maiores dilemas que um homem pode encontrar, é saber quando desistir. Quando se encerra uma página e se enceta outro capítulo. Uma sensação de impotência brutal. Tenho levado banhos de humildade constantemente, dos que ficam e dos que saem. Entre cafés que se tornaram consultórios psiquiátricos, vigílias silenciosas de solidão colectiva, quedas abruptas de anónimos que insistem em se levantar. Matar o tempo, quando é precisamente o tempo que nos mata velhacamente a nós. Mesmo quando a raiva

desfigura a percepção nebulosa de um destino imperscrutável. Existe na mais copiosa agressão patriótica, uma mágoa profunda a não lhe per-tencermos. O sentimento pária de algemas no fundo do poço. Os cidadãos de segunda. Mas é impossível odiar Portugal. É impossível arrancar isto do peito. O que não significa que lhe seja-mos vassalos. Aritmética de mão-de-obra, filhos bastardos de uma dependência quase mendiga. Ninguém devia pedir licença para viver.

Falo-vos da magnífica transformação humana que brota do vazio, impondo-se no sufocante re-ceio de voar para bem longe. De rasgar o ventre da pátria. Tornando o aeroporto o último elo de ligação com o cordão umbilical. Divididos entre uma utopia despida de idealismo, uma fénix em brasas e a “corrida de Oklahoma” em terrenos pisados de esperança. Como se todo e qualquer português fosse refém dessa puta que é a saudade. Trespassa um calor daqueles quartos que me enche de paz. Numa ávida telepatia de sentidos que alumia a fagulha da nossa lareira. Ao escrever isto penso em todos os anfitriões que fizeram o meu ano de 2014. Gostava de dizer que vos admiro, que o orgulho que sinto por vocês é ilimitado. Voltem. Fiquem. Pouco importa, sejam felizes.

O ENVELHECIMENTO DO NOSSO PAÍS

O direito a não emigrar!| Manuel A. Fernandes | (Roma, 27/11/2014)

PUB