o yoga de sri aurobindo - partes v a vii

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O Yoga de Sri Aurobindo Partes V a VII Nolini Kanta Gupta Editora Shakti

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Os ensaios contidos neste livro compreendem partes V a VII, do Volume 3, das Obras Reunidas de Nolini Kanta Gupta, intitulada "The Yoga of Sri Aurobindo". Foram baseados nas palestras dadas pel’A Mãe, em francês, a seus discípulos do Ashram de Sri Aurobindo. Tra-duzidos livremente em inglês pelo autor, quase todas conservaram a forma direta das narrativas na primeira pessoa, como era no original. Este texto pode ser "baixado" e impresso para uso pessoal ou em grupos de estudo. Ele foi formatado para melhorar a impressão em frente e verso para economizar papel. Pode ser feito em copiadoras. Quem quiser, pode também imprimir pequenas quantidades e colocá-las em lugares onde possa haver leitores interessados (restaurantes vegetarianos, estúdios de Yoga etc.), onde seriam repassados pelo preço de custo. Só não vale imprimir e vender com o intuito de obter lucro.

TRANSCRIPT

Page 1: O Yoga de Sri Aurobindo - Partes V a VII

O Yoga de Sri Aurobindo

Partes V a VII

Nolini Kanta Gupta

Editora Shakti

Page 2: O Yoga de Sri Aurobindo - Partes V a VII
Page 3: O Yoga de Sri Aurobindo - Partes V a VII

O Yoga de Sri Aurobindo

Partes V a VII

Nolini Kanta Gupta

Tradução: Thalysia de Matos Peixoto Kleinert

Livro originalmente publicado pela Editora Shakti 1ª edição 1991 – esgotada

1ª Edição Eletrônica

Julho de 2012

Page 4: O Yoga de Sri Aurobindo - Partes V a VII

Tradução do livro

The Yoga of Sri Aurobindo Parts five to seven

First Combined Edition 1969

© Sri Aurobindo Ashram Trust

Pondicherry, India

Nota da Editora

Os ensaios contidos neste livro compreendem partes V a VII, do Volume 3, das Obras Reunidas de Nolini Kanta Gupta, intitulada "The Yoga of Sri Aurobindo". Foram baseados nas palestras dadas pel’A Mãe, em francês, a seus discípulos do Ashram de Sri Aurobindo. Tra-duzidos livremente em inglês pelo autor, quase todas conservaram a forma direta das narrativas na primeira pessoa, como era no original.

Esses ensaios em inglês já haviam sido publicados anteriormente em um livro separado, em 1969, e foi esta edição que usamos para nossa versão em português.

Page 5: O Yoga de Sri Aurobindo - Partes V a VII

Nota do Editor desta Edição Eletrônica

Esta versão eletrônica faz parte de um trabalho de coleta, editoração e publicação na Internet da maior parte possível dos livros e textos de Sri Aurobindo e da Mãe traduzidos para o português até a presen-te data.

O objetivo deste trabalho é o de divulgar e disponibilizar os ensina-mentos destes grandes mestres do Yoga à qualquer pessoa interes-sada, colocando-os nas estantes virtuais da maior biblioteca que a humanidade já criou.

Temos também a esperança de que, desta forma, muitas pessoas que ainda não conhecem estes ensinamentos venham a descobri-los e talvez utilizá-los em suas vidas, assim contribuindo com a aceleração da evolução da Consciência em nosso mundo.

Agradecemos especialmente aos tradutores destas obras pelo seu grande trabalho e sua dedicação, e também a seus herdeiros e ao Sri Aurobindo Ashram, por permitirem que estes textos sejam publica-dos e distribuídos livremente no formato pdf.

Brasil, julho de 2012

Page 6: O Yoga de Sri Aurobindo - Partes V a VII

Sobre o Autor

Nolini Kanta Gupta, um dos primeiros e mais antigos discípulos de Sri Aurobindo e d’A Mãe, nasceu no dia 13 de janeiro de 1889 em Faridpur, a leste de Bengala, Índia. Quando jovem, participou do movimento de libertação da Índia, ao lado de Sri Aurobindo.

Acusado de sedição, foi preso em 1908 e, depois de libertado, trabalhou em Cal-cutá com Sri Aurobindo. Em novembro de 1910, mudou-se definitivamente para Pondicherry para reunir-se ao Mestre que lá se encontrava. Estava presente quando o Ashram de Sri Aurobindo foi fundado em 1926, e exerceu as funções de Secretario do Ashram por mais de cinquenta anos. Através de seu amor e devoção, através de sua exposição luminosa da visão e trabalho de Sri Auro-bindo e d’A Mãe, Nolini inegavelmente ajudou inúmeros discípulos e seguido-res.

Ele faleceu no dia 7 de fevereiro de 1984, às 16:42 horas, em seu quarto no Ash-ram de Sri Aurobindo, com a idade de noventa e cinco anos. Seu corpo foi enter-rado no cemitério de Casanove, uma propriedade do Ashram, na manhã do dia 9 de fevereiro.

O Ashram de Sri Aurobindo, situado ao sudeste da Índia, na velha cidade de Pondicherry, é a expressão viva dos ideais de Sri Aurobindo e d’A Mãe, sua discí-pula e colaboradora. Referindo-se a seu Ashram, o Mestre disse: "O Ashram foi criado com um objetivo diferente daquele que é comum a tais instituições, não para a renúncia do mundo, mas como centro e campo de pratica para a evolução de uma outra espécie e forma de vida que, no seu termo final, será movida por uma consciência espiritual mais elevada e corporificará uma vida maior do espiri-to."

Page 7: O Yoga de Sri Aurobindo - Partes V a VII

ÍNDICE

Parte V ..................................................................................................... 11

NA ORIGEM DA IGNORÂNCIA ............................................................... 11

MÉDICO, CURA-TE A TI MESMO ........................................................... 12

O CORPO NATURAL .............................................................................. 14

A MEDIDA DO TEMPO .......................................................................... 16

O HOMEM, O PROTÓTIPO .................................................................... 17

O PAPEL DO MAL .................................................................................. 20

O HOMEM E O SUPER HOMEM ............................................................ 21

VERDADEIRA CARIDADE ....................................................................... 24

VARIEDADES DE EXPERIÊNCIA RELIGIOSA ............................................. 26

CRIANÇAS E MENTALIDADE INFANTIL ................................................... 28

A ALMA DE UMA NAÇÃO ...................................................................... 31

A ALMA E SUA JORNADA ...................................................................... 33

Parte VI .................................................................................................... 42

O FIM DE UMA CIVILIZAÇÃO ................................................................. 42

DA ESCURIDÃO PARA A LUZ.................................................................. 45

TIPOS DE MEDITAÇÃO .......................................................................... 46

O SER CONSCIENTE ............................................................................... 49

A HISTÓRIA DA CRIAÇÃO ...................................................................... 50

A TERRA, UM SÍMBOLO ........................................................................ 52

TOTAL TRANSFORMAÇÃO EXIGE TOTAL REJEIÇÃO ............................... 52

O INDIVÍDUO E O COLETIVO ................................................................. 53

COMO ESPERAR .................................................................................... 55

FADIGA E TRABALHO ............................................................................ 56

OS PASSOS DA ALMA ............................................................................ 58

A EXPANSÃO DA CONSCIÊNCIA DO CORPO .......................................... 61

O CORPO, O AGENTE OCULTO .............................................................. 63

A REALIZAÇÃO INTEGRAL ..................................................................... 64

SEMPRE VERDE ..................................................................................... 65

Page 8: O Yoga de Sri Aurobindo - Partes V a VII

UMA PÁGINA DE HISTÓRIA OCULTA ..................................................... 67

MUDANÇA DIRIGIDA ............................................................................ 68

O VALOR DA GINÁSTICA MENTAL OU OUTRA QUALQUER .................... 70

O SILÊNCIO MENTAL ............................................................................. 70

MENTE, ÓRGÃO DA CONSCIÊNCIA SEPARATIVA ................................... 73

O PESSOAL E O IMPESSOAL .................................................................. 74

"NÃO TENHO NADA, NÃO SOU NADA" ................................................. 75

AQUI OU EM OUTRO LUGAR ................................................................ 76

QUANDO A IMPERFEIÇÃO É MAIOR QUE A PERFEIÇÃO ........................ 77

A ALMA INDIVIDUAL E A COLETIVA ...................................................... 78

A MARAVILHA DE TUDO ISSO ............................................................... 79

APRENDER E COMPREENDER ............................................................... 80

A VINDA DO SUPER-HOMEM ................................................................ 81

EM DIREÇÃO À REDENÇÃO ................................................................... 82

DOCES LÁGRIMAS SAGRADAS .............................................................. 85

IDENTIFICAÇÃO DE CONSCIÊNCIA ......................................................... 86

A CONSCIÊNCIA CENTRAL ..................................................................... 89

OS CONSTANTES DO ESPÍRITO .............................................................. 90

O TRABALHADOR DESPRENDIDO .......................................................... 91

SEGUNDA VISÃO .................................................................................. 91

A MÃE SOBRE SI MESMA ...................................................................... 94

PARTE VII .................................................................................................. 96

REALIZAÇÃO, PASSADA E FUTURA ........................................................ 96

O UNIVERSO EM ESPIRAL ..................................................................... 98

ESTE UNIVERSO EM EXPANSÃO .......................................................... 100

O MUNDO SERPENTE ......................................................................... 102

ESTE MISTÉRIO DA EXISTÊNCIA .......................................................... 102

O REGISTRO DA HISTÓRIA DO MUNDO .............................................. 103

LIBERDADE E DESTINO ........................................................................ 105

A VERDADE DIVINA — SEU NOME E SUA FORMA ............................... 107

A IGNORÂNCIA SIMBÓLICA ................................................................. 108

Page 9: O Yoga de Sri Aurobindo - Partes V a VII

DOENÇAS E ACIDENTES ...................................................................... 109

O PROBLEMA DO MAL ........................................................................ 113

ESTA FEIÚRA NO MUNDO ................................................................... 116

A JUSTIÇA DIVINA ............................................................................... 117

O SOFRIMENTO DIVINO ...................................................................... 119

O DESGOSTO DIVINO .......................................................................... 121

COISAS SIGNIFICANTES E COISAS INSIGNIFICANTES ........................... 123

POR QUE ESQUECEMOS COISAS? ....................................................... 123

COMO LIVRAR-SE DE PENSAMENTOS DESAGRADÁVEIS ..................... 124

MÁ FORMAÇÃO DE PENSAMENTO ..................................................... 125

POR QUE OS SONHOS SÃO ESQUECIDOS? .......................................... 129

SOBRE OCULTISMO ............................................................................ 130

MISTICISMO E OCULTISMO ................................................................ 133

MEDITAÇÃO E ALGUMAS PERGUNTAS ............................................... 135

MEDITAÇÃO E MEDITAÇÃO ................................................................ 137

PRECE E ASPIRAÇÃO ........................................................................... 139

OFERENDA E ENTREGA ....................................................................... 141

IGUALDADE DO CORPO — IGUALDADE DA ALMA .............................. 142

O ESFORÇO E VONTADE PESSOAIS ..................................................... 143

COMO SENTIR QUE PERTENCEMOS AO DIVINO ................................. 144

SINCERIDADE É VITÓRIA ..................................................................... 146

IMAGENS DE DEUSES E DEUSAS ......................................................... 148

OS CENTROS YÓGUICOS ..................................................................... 149

O INTERIOR E O EXTERIOR .................................................................. 152

E ESTA RAZÃO ÁGIL ............................................................................ 152

A FORÇA DA CONSCIÊNCIA DO CORPO ............................................... 153

O CORPO E O PSÍQUICO ...................................................................... 154

O SER PSÍQUICO - ALGUNS MISTÉRIOS ............................................... 159

VIDAS PASSADAS E O SER PSÍQUICO ................................................... 164

O SER HOMOGÊNEO ........................................................................... 165

SERVIÇO HUMANO E SERVIÇO DIVINO ............................................... 167

Page 10: O Yoga de Sri Aurobindo - Partes V a VII

A FAMÍLIA DIVINA .............................................................................. 170

A NATUREZA E O DESTINO DA ARTE ................................................... 171

MÚSICA — SUA ORIGEM E NATUREZA ............................................... 175

MÚSICA — INDIANA E EUROPEIA ....................................................... 178

ESPECIALIZAÇÃO ................................................................................ 179

ESBOÇO DA VIDA DA MÃE ...................................................................... 181

ESBOÇO DA VIDA DE SRI AUROBINDO .................................................... 183

ENDEREÇOS PARA OBTENÇÃO DE INFORMAÇÕES .................................. 185

Page 11: O Yoga de Sri Aurobindo - Partes V a VII

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PARTE V

NA ORIGEM DA IGNORÂNCIA

A Divina Consciência, básica e essencialmente uma e única, tem, inerente em si, quatro atributos cardinais — princípios de sua modulação, modos de sua vibração — desenvolvendo-se em, ou aparecendo como quatro aspectos e per-sonalidades. São eles: Luz, Força, Deleite e Conhecimento. Originalmente e no status supremo, os quatro movimentos são unos e indivisíveis e formam uma identidade indissolúvel com a essência pura e a absoluta unidade do Divino. A diferenciação ou variabilidade no Imutável é um jogo imanente na própria natu-reza integral do Supremo. O uno e os muitos formam nesse nível uma única entidade, um todo indivisível: a unidade correndo dentro e através e mantendo a multiplicidade e a multiplicidade sendo o jogo da unidade. Multiplicidade, con-tudo, implica em liberdade de movimento no Único. Em outras palavras, o pró-prio caráter da variabilidade é a absoluta liberdade dos variáveis. O jogo consis-te precisamente na livre escolha e autodeterminação dos parceiros, as unidades diferenciadas, porque uma formação na Consciência Divina, uma formulação individualizada de seu ser, deve ter inevitavelmente a própria liberdade do Divi-no. Bem, o resultado desta liberdade é algo inesperado, não muito explícito nes-se particular, nesse campo de consciência, quer dizer, sob o ponto de vista humano. Pois a liberdade, no curso normal de seu desempenho, alcançou um grau ou chegou a um estado que provocou um deslocamento e um impulso, que motivou uma fenda e uma clara separação: o ímpeto do movimento livre levou a formação individual além do âmbito de seu sentido de unidade e identidade com tudo e com o Único. Cada vez mais ela isolou-se, confinando-se à sua pró-pria órbita e a seu próprio recurso de energia. Deve-se observar que este isola-mento ocorre na origem, sem nenhum senso de perversidade ou revolta ou desobediência por parte da entidade livre, como a lenda formulada pela mente humana imaginou. O movimento de liberdade e formação individual cruza, no seu anseio, uma fronteira, passa, por assim dizer, de uma zona segura, dentro do próprio status do Divino, para uma zona diferente, cria-a, como algo real, através desse movimento livre, fervoroso e autoconcentrado. Mas, como disse, não há premeditação ou arrière pensée1 ou "má vontade" ou espírito de contra-dição na origem do desvio. Não é pecado original; é uma consequência espon-

1 N.E.: segundas intenções

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12 PARTE V

tânea e quase lógica, uma expressão inevitável de liberdade que os indivíduos gozam como parte e parcela do Divino Universal.

E contudo, o resultado é estranho e revolucionário. Uma vez começado, o jogo desenvolve seu próprio esquema, padrão e modalidade. Pois esse passo crucial no movimento de liberdade, esse afastamento definitivo, a afirmação de completa independência e isolamento, resultaram imediatamente numa rever-são de realidades, numa completa negação dos atributos originais. Assim, a Luz tornou-se obscuridade ou inconsciência, a Vida tornou-se morte, o Deleite tor-nou-se dor e sofrimento, o Poder tornou-se incapacidade, o Conhecimento tor-nou-se ignorância, e a Verdade tornou-se falsidade. Em outras palavras, o Espíri-to tornou-se imediatamente Matéria. Contudo, o que parecia não ser nada mais do que um acidente, está impregnado de um sentido e um significado profun-dos. De fato, Deus não criou o mundo por pilhéria. O Espírito tornou-se Matéria, quer dizer, uma negação aparente do Espírito, para demonstrar que a negação é uma forma de afirmação, uma forma mais integral da afirmação do Espírito. A Matéria foi criada para expressar um outro equilíbrio do espírito, o espírito con-cretizado e incorporado.

MÉDICO, CURA-TE A TI MESMO

Não é que a humanidade não saiba nem sinta a necessidade de uma mudan-ça radical em si. Em todo lugar, o homem reconhece que, se os problemas e as dificuldades com os quais se defronta têm que ser resolvidos satisfatoriamente, deve haver uma completa revisão de sua perspectiva e natureza; não meramen-te remendar os sinais e sintomas superficiais de uma doença orgânica através de paliativos, expedientes e panaceias, mas com uma operação de maior importân-cia. De fato, se deseja ser curado, ele deve transcender sua natureza presente e ser alguma coisa mais.

E contudo, ele não muda. Não tem a vontade sincera de mudar. Pelo menos, segue o caminho errado para isso. E a razão é que ele não adota, sem restrição, o curso que sabe ser o único certo. Está dividido em seu ser; uma parte sabe realmente, mas a outra, a maior, a parte dinâmica, não se aproveita desse conhecimento, ignora-o e segue uma trilha oposta, a trilha habitual da ignorân-cia e do laissez-faire.

Ele se consola e se conforta, coloca a unção ilusória em sua alma, escolhen-do um ideal menos exigente, um substituto sem lágrimas, por assim dizer. Por causa disso, procura fora, tenta reformar a sociedade, mudar suas leis e consti-

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MÉDICO, CURA-TE A TI MESMO 13

tuição, acreditando que desta forma a sociedade possa ser remodelada e a humanidade transformada.

Sem dúvida, já deveria ter sido provado que não é isso que ocorre. O único modo de curar o mundo fora, é curar-se primeiro dentro. O antigo provérbio ainda é válido: o macrocosmo é apenas uma ampliação do microcosmo. O microcosmo é o macrocosmo em miniatura. O universo é uma transcrição, uma projeção, em escala maior, da natureza interior do indivíduo. O que está lá, está aqui e o que não está aqui, não é encontrado lá. Quando vemos algum erro no mundo, algo que deve ser retificado, se, em vez de corrermos para fora e ten-tarmos resolvê-lo no campo externo, se nos contivéssemos e olhássemos para dentro, certamente acharíamos, talvez para nossa surpresa e nosso esclareci-mento, um movimento muito semelhante, frequentemente uma réplica exata, em nossa própria consciência e nosso caráter, daquilo que encontramos no movimento anônimo maior da natureza e da sociedade. Bem, podemos argu-mentar que quase não temos nenhum controle sobre nossa natureza, que o mundo exterior está além do nosso alcance e não podemos organizá-lo ou mol-dá-lo como queremos. Mas o mundo menor que somos nós, não está tão longe e nem é tão grande para nós. Nossa própria natureza individual e caráter são nossos, e nos foram dados poder e liberdade suficientes para reformá-los, reno-vá-los e refazê-los como quisermos. Isto é o segredo, embora pareça ser uma verdade muito simples, quase um truísmo.

Se não pudermos corrigir e moldar, à nossa vontade, o pequeno mundo den-tro que é nosso, como poderemos corrigir ou mudar o vasto mundo exterior? Deixar-se ficar como se é e tentar fazer outros mudarem, é evidentemente um absurdo e uma proposição contraditória. Por outro lado, se a primeira coisa que fizermos for corrigir-nos então veremos, para nossa surpresa e satisfação, que há muito pouco para corrigir no mundo, que tudo já foi corrigido automatica-mente.

A cada homem é dado um pequeno domínio dentro de si e ele é senhor des-se domínio. A ninguém é dado mais (nem menos) do que pode dirigir com sucesso: o fardo é medido exatamente de acordo com a capacidade. Pode-se de fato ser um roi fainéant2, se assim quisermos; mas esse não é o destino inevitá-vel do homem. Ele pode realmente ser o rei reinante e exercer ao máximo sua autoridade. É uma verdade simples, o homem tem uma vontade e pode exercê-

2 N.E.: rei preguiçoso, indolente, inativo.

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14 PARTE V

la. Esta vontade ele pode conscientemente desenvolver, aumentar e ampliar, fazê-la um instrumento de ação extremamente poderoso, se não invencível.

Duplo é o poder da vontade: é energia e é luz. A vontade verdadeira, a von-tade em sua pureza essencial, quer dizer, quando se é perfeitamente sincero e determinado em seguir sua própria sinceridade, ela impulsiona correta e infali-velmente. A consciência da coisa certa a fazer existe, e a energia também está inerente nessa consciência para elaborá-la inevitavelmente. Há uma vontade que pertence a um nível inferior, à mente, que é somente uma variante do dese-jo, e com referência a isso diz-se apenas que mesmo que o espírito queira, a carne é fraca. Esta vontade é uma luz, mas sem o fogo que vivifica; e é assim porque há uma divisão na consciência, "pode-se amar e contudo, pode-se trair" (nas palavras de um famoso novelista).

Mas, como já dissemos, o homem não está condenado a esta doença de esquizofrenia; ele não é, por natureza, uma criatura maniqueísta. É completo e inteiro na sua realidade interior e na sua consciência verdadeira, e pode afirmar sua integralidade. Ele tem a liberdade e o poder de fazê-lo — tem que fazer assim e o fará — porque, isso não é meramente uma possibilidade, mas uma inevitabilidade que é para acontecer no curso de seu crescimento e evolução.

E quando ele tiver feito isso, quando se tiver salvado, através disso salvará também o mundo à sua volta. A medida do sucesso interior será a medida do sucesso exterior.

O CORPO NATURAL

A respeito do alimento que o homem ingere, há dois fatores que o determi-nam ou prescrevem-no. Em primeiro lugar, vem a necessidade real do corpo, quer dizer, o que o corpo realmente requer para seu sustento, os elementos de que necessita para enfrentar as mudanças químicas que nele ocorrem, algo bas-tante material e bem definido, isto é, a espécie de comida e a quantidade. Mas geralmente, esta necessidade real do corpo é obscurecida e submersa pelas exi-gências de uma outra espécie de influência, quase totalmente alheia a ela: (1) o desejo vital e (2) as noções mentais. Realmente, o cardápio de nossa mesa, pelo menos 90% dele, é preparado de tal maneira que as exigências da segunda cate-goria, a consideração que deveria vir primeiro, vem, de fato, por último. Atual-mente, o corpo é um escravo da mente e do vital; raramente lhe é dado a liber-dade de escolher suas próprias necessidades, em quantidade e qualidade certas. Por isso o corpo sofre e está geralmente doente durante a maior parte de sua existência na terra, porque foi obrigado a ocupar uma posição anômala no orga-

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O CORPO NATURAL 15

nismo humano, entre estes dois tiranos. O vital age através da voracidade, da repulsa e atração, impulso para o excesso (algumas vezes para seu oposto, a pri-vação). Ao que está acostumado e ao que satisfaz seu capricho, ele se agarra, e se o corpo não cumprir o que ele prescreve, lança-lhe a sugestão de que cairá doente. A mente física tem suas próprias noções e esquemas, ideias e planos favoritos (talvez tirados daquilo que tenha lido em livros ou ouvido de pessoas) a respeito das necessidades do corpo. Ela pensa que se uma determinada pres-crição não for seguida, o corpo sofrerá. A mente e o vital são íntimos amigos e cúmplices em condicionar o corpo. Impõem-lhe suas próprias exigências e pre-conceitos, e o corpo, desamparado acaba por emaranhar-se neles e perde seu instinto natural. O corpo, deixado a si mesmo, é maravilhosamente autocons-ciente; sabe espontânea e infalivelmente o que é bom para sua saúde e força. Geralmente os animais, em especial aqueles da floresta, ainda conservam intac-to este instinto do corpo, pois não têm nenhuma mente para tiranizá-los, nem seu vital é da espécie que vai contra as exigências normais do corpo. O corpo, isolado da mente e do vital, pode facilmente escolher a qualidade certa e a quantidade exata de comida e até mesmo variá-las de acordo com as condições variantes do corpo. Bom senso é um atributo inerente à consciência do corpo; nunca erra do ponto de vista de excesso e imoderação ou perversidade. O vital é dramático, a mente imaginativa, mas o corpo é a própria sanidade. E isto não é um sinal de sua inconsciência ou inércia. A imobilidade apática e surda de que é algumas vezes acusado, talvez seja uma forma de autodefesa contra as divaga-ções desenfreadas da mente e do vital, que tão frequentemente o solicitam para emprestar seu apoio. Na verdade, pode bem ser que a acusação de que a "carne é fraca", seja apenas uma opinião ou sugestão imposta ao corpo pelo vital-mental que lança toda a culpa no corpo, só para fugir de sua responsabilidade. O vital é impaciente e barulhento, e se for pressionado e coagido — em direção à execução e realização físicas — torna-se normalmente confuso, perturbado, obscurecido e duplamente distorcido, quando aconselhado e apoiado por uma mente estreita e superficial, que não enxerga um palmo adiante do nariz, limita-da por uma moldura de noções emprestadas e incorretas.

O corpo, exatamente por causa de sua natureza negativa, sua inércia surda, como é chamada, precisamente porque não tem nenhum problema próprio a resolver, como não tem fantasias e impulsos, planos e esquemas dos quais pos-sa se orgulhar, precisamente por causa de sua inocência infantil, tem uma plas-ticidade formidável e uma estabilidade calma, quando não é perturbado pela mente ou pelo vital. Na verdade, as qualidades divinas que estão ocultas no cor-po, que ele procura conservar e expressar, são as de harmonia estável, de esta-bilidade e de equilíbrio, capazes de suportar o peso total de todos os níveis de consciência, desde o pico mais alto aos abismos mais baixos, assim como fisica-

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16 PARTE V

mente suporta o peso da total densidade atmosférica, facilmente, sem nem mesmo sentir-lhe o peso.

A MEDIDA DO TEMPO

Quando se diz que a Realização está decretada, será que isto significa tam-bém que o tempo para ela tenha sido fixado? Se assim for, todo esforço indivi-dual e de liberdade de ação parecem fora de cogitação, tornando-se irrelevan-tes, nem apressando, nem retardando o processo. O que acontece é um pouco diferente, nem tão simples, nem tão drástico.

Há muito pouco sentido na noção comum de que tudo esteja predetermina-do quanto ao tempo em que acontecerá, que o esquema universal tenha sido arranjado e estruturado de modo inalterável, que nada possa mudá-lo, que tudo siga de acordo com o que foi planejado. Isto é somente uma concepção huma-na, uma construção da mente, uma tradução errada no cérebro de algum fato que é de outra maneira e de algum outro lugar. A mente divide onde não há divisão, dispõe coisas, umas contra as outras, onde há perfeita compatibilidade e harmonia. Determinismo e indeterminismo, livre-arbítrio e mecanicismo são contradições arranjadas pela mente e não têm existência real objetiva. De um certo ponto de vista, em um certo nível de consciência, tudo parece mover-se numa moldura rígida de determinismo mecânico. De outro lado, num outro nível, tudo parece possuir absoluta liberdade.

Considerando as coisas de sua origem superior, o fator tempo, em si, parece uma ilusão. O que é verdadeiro, é um certo conjunto de condições, no qual as forças se exercitam. E neste padrão de condições, o tempo (junto com o espaço) não fornece a disposição fixa e absoluta que possa servir de referência, como é geralmente considerado, mas é um cenário variante, mesmo que não seja um acontecimento secundário ou um subproduto. A força consciente que trabalha no mundo visa uma mudança nas condições. É um trabalho primário de reorga-nização e ordem. O estado da Natureza, no presente momento — de ignorância e de inércia — é de completo caos. O que a Vontade Divina faz por trás, isto é, a Consciência que está acima, é desenvolver um cosmos daquele caos. As coisas são colocadas fora de lugar, ao acaso, desordenadas, e têm que ser escolhidas, arranjadas, rotuladas, cada item no seu devido lugar. Sabemos, por exemplo, que na partícula material, os átomos estão agregados desordenadamente, cada um apontando numa direção diferente, mas quando arranjados de forma que uma metade aponte para uma direção, e a outra, para o lado contrário, temos o que se chama de corpo magnetizado.

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O HOMEM, O PROTÓTIPO 17

Quando as coisas são dispostas desta maneira, a coisa certa no lugar certo, é que a perfeição divina, a Realização no plano material, é alcançada. E para que esta consumação se realize, o processo seguido é uma infiltração cada vez mais alta de forças, dentro do campo da desordem, da nossa vida normal e consciên-cia. O tempo tomado simplesmente indica que o processo está sendo planejado; é uma expressão do ritmo de procedimento. Mas para o Divino, a Consciência Suprema que trabalha, o tempo em si não tem sentido separado, ou qualquer valor intrínseco; para ela, mil ou um milhão de anos não significam mais que um momento para nós. De fato, a lentidão do tempo somente marca os passos dos acontecimentos nos estágios mais baixos da criação; enquanto nos elevamos cada vez mais alto, forças de lá descem para o campo inferior, e o tempo dos acontecimentos torna-se mais rápido. Finalmente, quando o pico mais alto é alcançado e suas forças descem e intervém na ordem dos níveis mais baixos, então a mudança, o arranjo que está sendo planejado, é concluído imediata-mente e sem demora. O atraso do tempo é abolido completamente. O tempo pode ser comparado a uma espécie de fita elástica que liga o mais alto ao mais baixo, passando pelas zonas intermediárias. Contrai-se quando movemos para cima e vai se encaixando no topo, por assim dizer.

O HOMEM, O PROTÓTIPO

A terra foi criada para um propósito especial; tem um papel divino a realizar. E assim, há somente uma terra e não muitas, a despeito do que os cientistas possam dizer. A terra não é uma massa de matéria morta, não é meramente a morada de crescimentos que ocorrem nela, de plantas e animais e homens. Ela é o lar e a mãe de todos eles. Tem uma consciência e uma personalidade. A for-ma externa que vemos é somente seu corpo.

De fato, todos os luminares do céu têm, cada um, a sua personalidade cons-ciente: os planetas, a lua e sobretudo o grande sol. Não é uma fantasia ou ima-ginação fútil que fez os astrólogos atribuírem influências definidas a estes cor-pos celestes. Na astrologia hindu, por exemplo, eles são considerados como pessoas reais, cada um com forma e caráter definidos, um dhvāna rūpa. Os chamados deuses da Natureza, nos Vedas ou na mitologia antiga, não são, geralmente, criações de mera imaginação poética também: são realidades mais reais, num sentido, do que os objetos reais que os representam e os encarnam.

Não apenas isso. Nossa mente e nossos sentidos limitados estão acostuma-dos a ver e reconhecer unicamente indivíduos como pessoas. Mas há personali-dades-grupo da mesma forma. Assim, cada espécie tem uma personalidade genérica, uma consciência e um ideal ou forma intrínseca também: os indivíduos

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18 PARTE V

no plano físico são suas várias encarnações, projeções e formações. O velho Pla-tão não era tão ingênuo como somos hoje propensos a acreditar, quando falou da realidade real das ideias gerais. Os atributos, qualidades e funções da perso-nalidade genérica, são a fonte e o padrão daquilo que os indivíduos que formam o grupo realmente são. A pessoa-grupo é o rei, é também o corpo do Dharma3 governando o domínio. Qualquer mudança na lei do ser da pessoa grupal é necessariamente traduzida em uma mudança semelhante na natureza e na ati-vidade dos indivíduos da espécie. O que os evolucionistas descrevem como uma súbita variação ou mutação, e cuja causa ou gênese nem vestígios eles são capa-zes de achar, é precisamente devido a uma mudança oculta na consciência e vontade da alma-grupo.

O homem, também como uma espécie, tem uma personalidade genérica, seu protótipo. Apenas, em oposição ao ponto de vista científico, isto é um fenômeno anterior, que pertence à própria origem das coisas. O homem, na sua forma e realidade essenciais, é encontrado na fonte e no começo da criação. Quando o Transcendente imanifesto avança para manifestar-se, quando há a primeira expressão de variações de tipos no infinito, como base da criação física, imediatamente aparece o Homem, na sua forma divina essencial e eterna. Lá está ele, quase como uma sentinela, guardando a passagem do sem forma para a forma. De fato, ele é a primeira forma original do sem-forma. Um certo poeta diz que o homem é o arquétipo de todas as formas vivas. Um pássaro é um homem voador, um peixe, um homem nadador, um verme, um homem raste-jante, mesmo uma planta não é senão um homem enraizado. Sua forma perten-ce a uma região que está mesmo além dos primeiros princípios da criação. Os primeiros princípios, que criam e formam e sustentam o universo manifesto, são a trindade: Vida, Luz e Deleite — em outros termos, Sachchidananda. O todo complexo do universo manifesto é solucionável naquela unidade de status tri-plo. Mas mesmo por trás deste supremo, mais adiante, em direção ao desapare-cimento final no absoluto Imanifesto, resumindo nele, por assim dizer, toda a manifestação, permanece esta forma primordial original, esta primeira pessoa, este Homem arquetípico.

A aparência essencial do Homem é, como dissemos, o protótipo do homem atual. Quer dizer, o homem atual é uma projeção, mesmo sendo uma projeção algo desfigurada da forma original. Contudo, há uma singularidade essencial de padrão, uma comensurabilidade entre os dois. Os anjos alados, os querubins e serafins são reputados como sendo figuras ideais de beleza, mas eles não são

3 A lei da conduta do ser.

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O HOMEM, O PROTÓTIPO 19

em nada relacionados com o Protótipo, pertencem a uma linha diferente de emanação, outra que a do Ser humano. Podemos fazer alguma ideia daquilo que é, recorrendo à distinção que os filósofos gregos costumavam fazer entre a cau-sa formal das coisas e a material. O Protótipo é a realidade formal escondida e engastada na realidade material de um objeto. A forma essencial é feita da con-figuração original das vibrações primárias que mais tarde se consolidaram e se tornaram uma massa compacta, chegando finalmente à sua composição final psicoquímica. Contudo, uma harmonia sutil e perfeita de vibrações, que formam um todo vivo, é o que o protótipo é essencialmente. Um artista talvez esteja em melhor posição de entender o que estamos nos esforçando para descrever. O olho do artista não está confinado à forma física grosseira de um objeto, mesmo o artista mais realista não copia a natureza neste sentido; ele vai além e vê o contorno interno, a figuração sutil que está por baixo da massa e do volume externos. É isto que é bonito e harmonioso e significante, e é isto que o artista se esforça para criar e fixar em um sistema ou corpo de linhas e cores. Aquela forma interior não é a forma exterior visível, contudo, é ainda aquela forma fun-damental e essencialmente. É aquilo e não é aquilo. Podemos acrescentar uma outra analogia para ilustrar este ponto de vista. Pitágoras, por exemplo, falou dos números como sendo realidades, as realidades reais de todos os objetos sensíveis. Estava evidentemente referindo-se à verdade básica em cada indiví-duo, e esta verdade aparecia-lhe como um número, a substância e a relação que permanece de um objeto quando tudo concreto e superficial é extraído, ou abs-traído, para fora dele. Para ele, um número é uma qualidade, uma vibração, um quantum de partículas ondas, na terminologia científica moderna, uma norma. O protótipo humano pode ser concebido como algo da categoria do número pitagórico.

A concepção do Purusha4 na origem das coisas, como a própria fonte das coisas, tão familiar à tradição indiana, dá à figura humana esta alta primazia. A divindade cósmica lançada em molde humano também nos é conhecida — embora com cabeças e pés múltiplos — e foi visionada e cantada por sábios e videntes. Os próprios deuses parecem possuir uma moldura humana. Os Upani-shads dizem que, uma vez, há muito tempo, os deuses estavam procurando por um corpo apropriado para habitar. Estavam desapontados com todos os outros, e foi somente quando a forma humana lhes foi apresentada que eles exclama-ram, "Esta é de fato uma forma perfeita, uma forma perfeita de fato". Tudo isto indica o sentimento e a percepção de que há algo eterno e transcendente na moldura do corpo humano.

4 O Ser consciente, a alma, o elemento divino no tornar-se.

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20 PARTE V

O PAPEL DO MAL

O advento ou a presença do mal na terra introduziu certos fatores na vida humana que a enriqueceram, que aumentaram mesmo seu valor. Certas expe-riências não teriam acontecido nela, experiências íntimas e reveladoras, não fosse por essa Sombra Escura. Pode-se, é claro, conceber uma linha de cresci-mento e desenvolvimento na qual tudo seja luz e deleite, tudo seja bom e pelo bem. Mas então teria sido omitida uma região completa de experiências e reali-zações. Há certas experiências que não teríamos gostado de ter perdido, em hipótese alguma, mesmo que tenham implicado em pagamento e pagamento pesado.

Mal é mal, não há dúvida; não é divino e não é uma ilusão. É um borrão real na bela face da criação. Sua existência não pode ser justificada no sentido de que seja a coisa certa e tenha que ser bem-vinda e mantida, já que forma parte da sinfonia universal, não apenas no sentido de um teste e de uma provação colocados pelo Divino, para o justo provar seu mérito. Não foi colocada ali com um propósito definido, mas já que aconteceu, foi a ocasião para um milagre, porque ofereceu a oportunidade para a manifestação de algo único, esplêndido e grandioso, maravilhoso e belo. A presença do mal tocou o Divino — giustizia mosse il mio alto fattore — e a Graça nasceu. Ele desceu, o Distante e o Trans-cendente, em todo seu amor e compaixão, para esse vale de lágrimas. Ele des-ceu direto, dentro de nosso meio, sem parar em nenhum lugar, na infinita gra-dação, que marca a distância entre o mais alto e o mais baixo. Ele desceu, do mais elevado para o mais baixo, nada pedindo, não impondo nenhuma condição à alma na Ignorância, nada exigindo da terra sob as garras do mal. Assim foi que essa Vida alojou-se no lar da morte, a Luz achou seu caminho na caverna distan-te da obscuridade e da inconsciência, o Deleite floresceu no cerne da miséria. A Esperança foi acesa, uma chama se ergueu das trevas mais profundas, em dire-ção à Aurora. Se não fosse o espírito de negação, não teríamos conhecido esta figura da Mãe graciosa, próxima e íntima.

Este é o milagre divino que foi concedido ao homem, o espetáculo do pró-prio Divino, que se tornou uma criatura humana, usando como seu próprio cor-po de carne e sangue, esta moldura mortal de dor e sofrimento e ignorância, de obscuridade e incapacidade e falsidade. Este é o calvário que ele aceitou, o sacrifício de sua divindade concedido por Ele, para que este não-divino também possa graciosamente servir ao Divino, ser consumido e transmutado nesta reali-dade da qual ele caiu, da qual ele é uma aberração.

A glória e a beleza deste gesto não gostaríamos de não ter testemunhado e experimentado e partilhado.

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O HOMEM E O SUPER HOMEM 21

O HOMEM E O SUPER HOMEM

Quando falamos do super-homem, queremos nos referir a uma nova raça — quase uma nova espécie — que aparecerá na terra como resultado inevitável da evolução da Natureza. A nova raça desenvolver-se-á da humanidade presente, parece não haver dúvida quanto a isso; não significa, entretanto, que toda a humanidade será assim mudada. Na realidade, a humanidade, em geral, não pede por tal mudança catastrófica em si ou para si mesma. Mas a Super-humanidade significa uma mudança muito radical: significa abandonar comple-tamente alguns e mesmo vários dos atributos e qualidades humanas verdadei-ramente básicas. Não visa meramente uma elevação moral, quer dizer, uma renúncia das más qualidades, que são consideradas no homem, por exemplo, como predominantemente animais e brutas. Significa, também, um desapego às boas qualidades, pelo menos em relação a algumas ou às que são consideradas como tais. O super-homem não é um homem purificado e moralizado, como também não é um homem animal magnificado e glorificado; é um homem de tipo diferente, qualitativamente diferente.

Tomemos uma analogia. Qual era a situação, no momento crítico em que o homem estava para suceder (ou para ser sobreposto) a uma nova raça de maca-cos? Podemos imaginar uma boa parte daquela velha raça, bastante relutante em aceitar o novo tipo estranho e bizarro, que apesar de não ser inferior no todo, pelo menos era considerado assim em alguns aspectos. Não encaravam com equanimidade o desaparecimento de muitas de suas características e de seus poderes estimados: a glória do rabo, por exemplo, a infinita capacidade de balançar-se e pular, a capacidade de quebrar uma noz com a mera força das mandíbulas. E quem sabe se eles não consideravam sua inteligência mais aguda e mais eficaz do que o tipo de razão, obtusa e vagarosa, demonstrada pelo homem! Eles perderiam muito para ganhar pouco. Este seria, mais provavel-mente, o veredito geral. Assim também a humanidade, na crucial separação dos caminhos, muito naturalmente olharia desconfiada para o valor diminuído de muitas de suas qualidades e de seus atributos, no novo status que viria. Antes de tudo, como tem sido demonstrado, o intelecto e o poder do raciocínio terão de se entregar e abdicar. O próprio poder, pelo qual o homem atingiu seu alto status presente e o mantém no mundo, tem de ser sacrificado por algo mais, chamado intuição ou revelação, cujo valor e eficácia são desconhecidos e têm que ser rigorosamente testados. De qualquer forma, não é o demônio conheci-do, sem dúvida, preferível à entidade desconhecida? E então, o sabor pela vida, peculiar ao homem, que trabalha através de contradições, deleite e sofrimento, vitória e derrota, guerra e paz, dúvida e conhecimento, todo o jogo de luz e sombra, o espírito de aventura, de combate e luta e esforço heroico, terão, tal-

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vez, que desaparecer e dar lugar a algo pacífico e harmonioso, porém monóto-no, insípido, não progressivo. O próprio caráter da vida humana é sua paixão de lutar até o fim, mesmo que nem sempre chegue satisfatoriamente até esse "fim". Pois, é frequentemente dito, que o fim ou o objetivo não importa, o alvo é sempre incerto. São os caminhos, os meios e a ação imediata que são de con-sequência suprema,. pois é isto que testa a maturidade do homem, dá-lhe o valor que possa ter. E acima de tudo, é pedido ao homem que desista da própria coisa que ele se esforçou para construir através de milênios de sua vida terres-tre, sua individualidade, sua personalidade, pois a exigência é de que ele deva perder seu ego para atingir o status de super-homem.

Assim, a probabilidade é de que uma grande parte da humanidade perma-neça devotada à vida humana normal. Mas isto não diminui em nada o valor, a tremenda importância do que acontece com a outra parte, talvez, não insignifi-cante ou inconsiderada. Ao lado daqueles que duvidam ou negam, haverá aque-les que acreditam e afirmam, que apoiarão a divinização, qualquer que seja a desumanização que isto possa implicar.

Bem, pode-se perguntar, qual seria a relação entre as duas humanidades, a humana e a divina? E qual seria o efeito do aparecimento da nova raça sobre a velha linhagem? Aqui, novamente, podemos seguir a analogia animal. Como o advento do homem afetou o reino animal? Afetou até certo ponto, mesmo a um ponto considerável, pode-se aventurar a dizer. Antes de tudo, o homem reuniu à sua volta um grupo razoavelmente grande de animais, domesticou-os, como é designado, empregando-os a seu serviço, usando-os para seus propósitos. Além disso, invadiu as matas, as florestas e montanhas, regiões congeladas e mares profundos, e lá estendeu sua esfera de influência, caçando e aprisionando ani-mais que eram há tanto tempo livres e não molestados, efetuando uma mudan-ça nas condições de vida, mesmo entre os animais selvagens. Não diremos que o super-homem lidará com o homem da mesma forma (embora algo disso possa ser encontrado na ideologia Nietzscheana). Pois o homem era uma criatura de Ignorância, e seu comportamento e sua influência eram naturalmente do tipo ignorante. O super-homem, entretanto, tendo sido libertado da ignorância e vivendo em perfeito conhecimento, tem uma natureza e uma perspectiva dife-rentes. Ele é uno com o universo, com todas suas criaturas. Unido ao Divino, ele encontra e realiza seu próprio eu em toda criatura e coisa. Seu caráter e sua conduta são a expressão automática deste sentido de perfeita identidade. Assim, ele não pode fazer nada que possa escravizar ou causar dano real à humanidade. Pelo contrário, seu amor e seu conhecimento sendo unos com a existência cósmica, inevitavelmente trabalharão pelo progresso e bem estar do

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homem também; de fato, ele será a perfeita ajuda que mesmo a humanidade comum possa desejar e receber.

Apesar de todas as aquisições que ele teve no passado e apesar do cul-de-sac ou beco sem saída no qual parece estar agora se estagnando, há ainda pos-sibilidade suficiente para o homem progredir mais além, quer dizer, mesmo como ser humano, sem dar o mais audacioso salto para a super-humanidade. As misérias atuais da sociedade humana, a má distribuição das necessidades da vida, as devastações das doenças e dos males, a prevalência da ignorância, não são e não precisam ser, afinal, uma característica permanente e irrevogável da organização humana. Possibilidade há de remediá-las grandemente e a socieda-de pode se tornar mais decente para se viver, mesmo que não seja transfigurada na Cidade de Deus. O homem, sem anteceder a sua natureza humana presente, pode ainda ser uma criatura mais humana e humanística, quer dizer, mais ver-dadeiramente humana e menos animal e demoníaca do que está tentando ser. Para este fim, o advento e a presença da raça divina certamente contribuirão em grande escala. A influência que os indivíduos de tal raça exercerão, pela for-ça de sua consciência luminosa e o impacto do seu viver purificado, a simpatia e o conhecimento e a compreensão que sua própria presença traz, irá alterar materialmente a natureza e a composição do homem normal e de sua socieda-de. Emergirá uma espécie de humanidade superior — um intermediário entre a presente humanidade degradada, mais ou menos animal, e a humanidade divina do futuro. As duas humanidades podem muito bem viver amigavelmente juntas e ser de ajuda e utilidade uma à outra.

Podemos mencionar aqui também a outra possibilidade extrema. Por exem-plo, pode acontecer que a velha humanidade no todo, rejeite o Novo Homem e não lhe ceda nenhuma polegada de terreno na terra, que agora mantém como seu feudo e domínio, como pode muito bem acontecer, em vista da evidência que temos da inveja, do ciúme, do ódio, da incompreensão que movem os homens normais, quando entram em contato com homens que não seguem seu modo de vida, que parecem se preocupar com coisas que são sem sentido e até mesmo injuriosas a eles. Se tal for o caso, então, dizemos, significará o fim da humanidade, da mesma forma que algumas espécies se extinguiram, ou mesmo sua reversão a um estado de feroz selvageria, algo como aquele (ou talvez pior) do qual ele veio.

Ou você aceita o Divino e permite ser influenciado e modelado por Ele, e neste caso você está na linha do progresso e da realização, ou então, se você colocar-se contra Ele e entrar em choque com o Poder que guia, inevitavelmen-

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te, em direção a seu alvo elevado, o resultado está nas palavras gráficas da Bíblia:

"Todos os que caírem sobre esta pedra ficarão em pedaços; e aquele sobre quem ela cair ficará reduzido a pó". (Mateus, 21)

VERDADEIRA CARIDADE

A caridade, como é geralmente entendida, consiste em prestar auxílio mate-rial aos semelhantes, dar esmolas aos pobres, remédios aos doentes, dinheiro ou bens materiais àqueles que necessitam deles e também trabalho físico onde for exigido. Tudo isto é bom e bem. O mundo está repleto de doenças e priva-ções e calamidades. E se algo for feito que possa aliviá-lo, está tudo certo, e ati-vidades nessa direção merecem total encorajamento. Mas isto não leva muito longe, não toca a raiz do problema. Essa é a maneira humana de lidar com as coisas e portanto, muito limitada em seu campo de ação e eficiência. Há uma forma mais elevada e mais divina — o caminho do espírito — para a cura dos males terrenos, cura e não meramente alívio. Esta era a inspiração secreta por trás da mensagem de Cristo e de Buda.

Não é verdade que, quando nossas necessidades são resolvidas, ficamos ou continuamos sempre felizes; nem todos os pobres são infelizes, nem são os ricos invariavelmente felizes. Felicidade é uma qualidade que depende de algo mais e vem de algum outro lugar: não é diretamente proporcional ao bem-estar mate-rial. Também a infelicidade é uma entidade psicológica, e consiste de uma vibra-ção especial da mente e da vitalidade — e consequentemente do ser físico — devido a uma deformação da própria consciência, no âmago da personalidade interior. As condições materiais servem apenas para manifestá-la, mantê-la ou agravá-la, mas não a criam na verdade, são criadas por ela. É por isso que os curadores espirituais sempre se referem à bem-aventurança do espírito como único remédio para os males físicos, até para a doença, a miséria e a morte. E os infelizes mortais são sempre chamados para voltar-se apenas para o Divino em suas aflições — bhajasva mam.

A verdadeira caridade consiste em colocar o bálsamo curador sobre a chaga que está escondida por trás de todas as misérias externas, que derivam daquela fonte e sustentáculo. E ela é posse exclusiva apenas daquele que encontrou a bem-aventurança do espírito, e vive sempre nela. Uma pessoa assim não requer acessórios externos para seu trabalho de cura e conforto. Ele não precisa fazer nada, aparentemente, pode mesmo parecer distante e indiferente. Mas sua própria presença é um poder curador; o paciente sente-a e surpreende-se com a

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calma e a felicidade que lhe vem como se fosse do nada. Muitos médicos têm esta espécie de poder curador; na verdade, sem isso, um simples médico, com sua farmacopeia, não é um médico. Pode não ser bem conhecido nem reconhe-cido, mas é um fato que uma boa parte da eficácia dos remédios está na influência sutil, na saúde vital que o médico adiciona a seu remédio ou mesmo diretamente ao corpo do paciente. E no caso de um Bhishak (médico) espiritual, o poder pode ser aumentado ao grau infinito. O curador não precisa nem mes-mo estar presente fisicamente, perto do paciente, porque sua influência pode muito bem agir à distância. É bastante natural e compreensível que seja assim. O poder curador está na consciência espiritual, na felicidade inalienável do pró-prio status no Espírito. Ele se torna identificado com todo objeto, pessoa ou coi-sa, dentro de seu próprio eu, no verdadeiro ser e substância; e a luz e a felicida-de que ele possui transferem-se num fluxo espontâneo para outros que não são realmente outros, mas partes e porções integrais do mesmo eu.

Esta condição é alcançada, completa e soberanamente, quando há ausência absoluta de ego, quando não há consciência de uma pessoa separada, a dual consciência do que ajuda e do ajudado, o reformador e o reformado, o médico e o paciente. O senso humano normal dos valores é baseado nessa divisão, no egoísmo, mamatvam. Um filantropo ajuda outros através de um sentido de simpatia, dando margem a um sentimento de dever e obrigação. Este sentimen-to de piedade, de comiseração, é perigoso pois o coloca numa disposição de mente que tende fazê-lo olhar de cima, a assumir um ar de superioridade em relação a seu objeto de piedade. Você torna-se autoconsciente, com a consciên-cia de seu eu inferior, pensando estar ajudando os outros, estar fazendo bem ao mundo, fazendo algo que aumenta seu valor; este sentido de mérito pessoal é apenas um outro nome para vaidade. Vaidade e ambição são os poderes que motivam e que estão por trás do espírito filantrópico nascido da simpatia. Para indicar uma nuance de sentido diferente daquele que é usualmente expresso pela palavra "simpatia", a psicologia moderna achou uma outra palavra — "empatia". Pode-se dizer que simpatia seja a relação ou contato entre dois egos; é um vínculo ou ponte entre duas entidades separadas e independentes. Empa-tia, por outro lado, significa penetrar no próprio ser e consciência do outro, tor-nando-se aquele outro; é identificação e identidade e somente a consciência espiritual pode fazê-lo. Simpatia leva à filantropia, empatia é a origem da verda-deira caridade, a compaixão espiritual de um Buda ou de um Cristo. Filantropia é humana, caridade (caritas) é divina.

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26 PARTE V

VARIEDADES DE EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Já houve religiões, tentativas de aproximação do Divino, que não acredita-vam na divindade do homem, como por exemplo, a linha da Caldéia ou a Semíti-ca. De acordo com elas, o Criador e o Criado são separados em ser e natureza; chamar de Deus qualquer coisa criada é blasfêmia. Os egípcios antigos, os hebreus ou muçulmanos, colocam Deus lá em cima no paraíso, e, do seu ponto de vista, o homem só pode ser seu servo ou escravo, seu trabalhador ou guer-reiro. O homem é muito pequeno e muito terreno para identificar-se com Deus: só pode ser um adorador. O homem pode amar a Deus, no máximo, como seu Amado. Mas esta devoção é dirigida a algo distante, como o desejo da mariposa pela estrela. E igualar os dois é confundir realidades. O homem, como adorador e devoto, pode alcançar certas qualidades divinas, mas limitadas e modificadas e sempre humanizadas de um modo geral. E Deus nunca pode se tornar homem. Ele envia seu representante, seu vigário, profeta ou apóstolo que age por ele, em e através de quem Ele age, mas Ele próprio não desce e se reveste da forma carnal. O universo é obra de Deus e atesta seu milagre e sua glória; mas o uni-verso não é Deus. Entre o relógio e o relojoeiro há sempre um hiato e uma incomensurabilidade.

Mas podemos nós dizer, "nasci de Deus e contudo não sou Deus?". Assim, os indianos audaciosamente declaram que tudo isto é o Divino supremo, não há nada que não seja o Divino — sarvam khalvidam brahma — Eu sou Ele, Tu és Aquilo, ou ainda, Aquilo que está em mim e o Ser consciente que está lá no sol, são uma e a mesma coisa. Deus criou o homem e o mundo, Ele está no homem e no mundo, Ele tornou-se e é o homem e o mundo. Não apenas isso. Deus não apenas tornou-se o torrão de terra reduzindo Seu potencial a zero, por assim dizer, mas Ele desce, frequentemente, em Seu próprio Ser e consciência, aqui para baixo, assumindo uma forma humana, para um trabalho e propósito espe-ciais. Esta é a concepção indiana do Avatar.

A concepção cristã parece ocupar uma posição intermediária, sendo uma espécie de elo que liga as duas. Cristo não apenas o Filho de Deus, mas é tam-bém o Deus-Homem — ele afirma muito clara e categoricamente que ele e o Pai no céu são um e que todos deveriam ser tão perfeitos como o próprio Deus. Contudo, uma diferença é ainda mantida. Em primeiro lugar, a respeito do nas-cimento. O Deus-Homem não nasceu do pecado como os mortais comuns, mas uma virgem imaculada deu-lhe nascimento. E em relação à união ou identidade de Pai e Filho, a fusão não é absoluta. Pede-se ao homem que seja tão puro e perfeito como Deus, mas unicamente em espécie e não em ser e substância. As almas purificadas e perfeitas sentam-se ao lado de Deus no céu, não se perdem

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VARIEDADES DE EXPERIÊNCIA RELIGIOSA 27

em Deus. A concepção Vaishnava na Índia pertencia à mesma linha. De acordo com ela, a alma liberada mora com Deus no mesmo mundo, possuindo as quali-dades de Deus — a união é a de Salokya5 e Sadharmaya6 — mas ela não se torna una e indivisível com Deus (Sayujya7).

A doutrina Sufi também ocupa uma posição intermediária como a Cristã, entre a da Caldeia e a Vedântica. A absoluta identidade do amante humano e o Divino Amado, a completa fusão dos dois em um estágio particular ou num momento de consciência, é uma das experiências cardinais da disciplina Sufi. Mas este é um estado íntimo, não normal e habitual na vida e na atividade, onde a diferença, a separação entre o adorador e o adorado, é mantida exata-mente para o deleite do jogo. Mas o dualismo da disciplina Hindu é mais do que compensado pela doutrina da Encarnação, que elimina fundamentalmente toda diferença entre o humano e o Divino. De acordo com ela, Deus não se torna homem apenas uma vez, como na concepção Cristã, mas isso é uma de suas funções constantes. De fato, a tradição Indiana diz que Ele é sempre o líder da evolução terrestre; a cada crise, a cada momento quando é necessária sua orientação, Ele desce em carne e osso, na forma de criatura terrena para mos-trar o caminho, como viver e andar e agir.

A contribuição especial da linha de disciplina da Caldeia volta-se para outra direção. Ela não cultivava tanto as linhas mais elevadas de realização espiritual, mas ocupava-se com o que pode ser chamado de regiões intermediárias, o mundo oculto. Este universo material não é movido por forças físicas, vitais ou mentais, que são aparentes ou demonstráveis, mas por outras forças secretas e sutis. De fato, estas são as forças-motivo, os agentes reais que planejam e ini-ciam os movimentos na Natureza, enquanto que as forças aparentes são apenas as formas externas ou mesmo máscaras. Este ocultismo também foi praticado largamente no Egito antigo, de onde os Gregos adotaram umas poucas linhas. Os mistérios — Órficos e Eleusianos — cultivaram a tradição dentro de um círcu-lo restrito e de um modo muito esotérico. A tradição continuou na Igreja Cristã também e num grupo fechado formado no seu coração, que praticou e manteve vivo algo desta ciência antiga. Os princípios e dogmas externos da Igreja não admitiam nem toleravam aquilo que era considerado magia negra, a Ciência do Diabo. A razão evidente disso era que, se alguém seguisse esta linha de ocultis-

5 Salokya: morada da alma do Divino.

6 Sadharmaya: identidade em natureza

7 Sayujya: identificação com o Real e o Eterno.

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28 PARTE V

mo e provasse o poder que ela conferia, podia muito provavelmente desviar-se do caminho direto e estreito que conduzia ao Espírito e à salvação espiritual. Também na índia, os siddhis ou poderes ocultos são sempre evitados por aque-les que são verdadeiramente espiritualizados, embora sejam procurados por muitos que seguem a vida espiritual — frequentemente com resultados desas-trosos. No Cristianismo, lado a lado com os maiores santos, sempre houve um grupo ou uma linha de praticantes que seguiram o sistema oculto, embora externamente observassem o credo oficial. É curioso notar que, geralmente, onde o texto original da Bíblia fala de deuses no plural, referindo-se às deidades ou poderes ocultos, a versão oficial traduz como Deus, para dar a atmosfera e os valores teísticos necessários.

Mas, se o ocultismo deve ser temido por causa do seu mau uso e perigo potencial, a espiritualidade também deve ser colocada no mesmo plano. Todas as boas coisas no mundo têm sua deformação e perigo, mas isto não é razão para que sejam completamente evitadas. É necessário a atitude e discriminação corretas, treinamento e disciplina. Visto sob a luz verdadeira, o ocultismo é espi-ritualidade dinâmica. Em outras palavras, procura expressar, executar e trazer para a vida material, os poderes e princípios do Espírito, através da intervenção de forças mais sutis da mente e da vida e do físico sutil. O ocultismo é natural-mente evitado por aqueles que adoram, que procuram experimentar o Espírito transcendente, Deus nos Céus, mas é um instrumento indispensável para aque-les que se empenham em manifestar o Divino em uma forma concreta.

CRIANÇAS E MENTALIDADE INFANTIL

Muitas vezes as crianças são consideradas cruéis com os animais. Por que é assim? É especialmente notório seu modo de tratar os passarinhos. Procurar ninhos e derrubá-los, capturar filhotes e torturá-los de todos os modos, pegar ovos e esmagá-los, são brincadeiras fascinantes para as crianças. Parecem sentir um prazer especial em variar e intensificar tanto quanto possível a tortura que possam infligir. Uma das razões a que pode ser atribuído o endurecimento da sensibilidade da criança é o seu egocentrismo: ela está inteiramente voltada para si mesma, isolada dos outros, e ainda não aprendeu as necessidades e vir-tudes sociais. Tudo que faz e sente é para si mesma, para seu próprio prazer e autoafirmação. A fim de desenvolver-se, sua crescente individualidade afasta-a dos outros e faz com que ela não respeite o senso de valor que os outros pos-sam ter. Exclusivamente preocupada consigo mesma, deixa de se incomodar com os demais. Sentimento pelo outro é uma sensibilidade que cresce mais tar-de, como resultado de choques de intercâmbio mútuo. Simpatia real é um movimento da consciência madura.

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CRIANÇAS E MENTALIDADE INFANTIL 29

A inquirição que uma criança tão fortemente possui, é também o impulso de uma consciência que está despertando e crescendo. Ela se apraz em quebrar, rasgar, dilacerar por causa desta curiosidade, desta sutileza aguçada de uma consciência em desenvolvimento e experiência. Parece ser dura e insensível, até mesmo uma aberração, precisamente por causa da natureza egocêntrica de sua consciência que ainda não esta familiarizada com valores normais da idade e da experiência.

Mas se é a natureza que até certo ponto torna a criança tão indiferente, preocupada consigo mesma e cruel, esta não é a única causa e não é a história toda. Há outros fatores muito ativos na vida que afetam e moldam a consciência da criança desde o princípio.

A criança, podemos dizer, vem ao mundo com uma ardósia mais ou menos limpa para gravar as reações da vida. No primeiro período, ela ainda está muito perto de seu ser psíquico, que ainda não foi lançado para trás e encoberto pelos impactos e impressões do mundo. Os primeiros contatos conscientes com o mundo não são geralmente felizes para a criança. Ela encontra coisas à sua volta que vão contra a natureza da sua consciência psíquica ainda sensível. A primeira briga que ela presencia entre seus pais, o primeiro comportamento ou movi-mento áspero de um adulto que afete sua observação, a primeira mentira que ela ouve pronunciada por seu professor, agem quase como neuroses de guerra em seus nervos. E, enquanto cresce, lições como essas são derramadas sobre ela de todos os lados e não é de admirar que sua consciência se torne, desde muito cedo, deformada e distorcida, e ela também comece seu próprio jogo, seguindo a mesma linha que observa e experimenta. Apenas, não sendo guiada ou con-trolada pela razão e experiência, ela exagera a coisa e por causa de sua idade, o que no adulto é sem importância, trivial e insignificante, no seu caso assume largas e funestas proporções. O ambiente em que uma criança vive e cresce, forma a atmosfera que ela respira a cada momento e, se há veneno nela, ela o inala e o absorve e ele se torna parte de sua natureza e substância. Um ambien-te puro é necessário para que um impulso de vida puro seja formado e desen-volvido.

Qual é o verdadeiro caráter central da consciência infantil? É a confiança na vida, a certeza de que nada pode impedir a realização do propósito da vida, a confiança que domina todos os reveses e tropeços, que alegremente passa atra-vés de todos os perigos e todas as dificuldades. Nesta confiança, nesta certeza, o próprio corpo toma parte e o impulsiona para os movimentos de ousadia e aventura. Esta é a razão do crescimento do corpo e enquanto ela é mantida, conserva-o jovem. Assim diz o poeta:

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30 PARTE V

Uma simples criança

Que levemente respira

E que sente a vida em cada membro,

O que saberia ela da morte?

A idade se fixa precisamente quando existe um declínio desta autoconfiança e segurança da consciência do corpo, quando o corpo começa a ter medo e se torna cauteloso e apreensivo. Um ferimento, um corte, mesmo um membro quebrado, normalmente não impede a criança de continuar com o mesmo ímpeto e descuido. E esta característica é a fonte, não apenas de sua aptidão e crescimento físicos, mas também da vivacidade e sanidade mentais que são posses inestimáveis da consciência infantil. O professor mais sábio é aquele que não ensina muito a sabedoria da prudência e moderação, mas que encoraja na criança este "élan vital", o impulso da vida, e entretanto, procura organizá-lo e canalizá-lo como um instrumento de ideais e propósitos elevados.

Há duas fraquezas contra as quais o professor deve se proteger — para as quais usualmente tende — se quiser assegurar respeito e obediência e confiança das crianças:

1) dizer uma mentira e

2) perder a paciência.

Uma criança pode facilmente descobrir se você está inventando uma história ou não. Ela é inquisitiva, irreprimivelmente curiosa e, acima de tudo, tem sua maneira e ângulo apropriados de ver as coisas. Ela faz perguntas de todos os modos, sobre todas as coisas e assuntos que parecem estranhos do ponto de vista do adulto. Também suas respostas a perguntas, suas soluções aos proble-mas são pouco ortodoxas e bizarras. Porém é trabalho do adulto de não apenas tolerar todas estas fantasias, mas também, com grande simpatia e paciência, apreciar e entender o que a criança tenta expressar. Se você ficar irritado e com raiva, e tentar censurá-la ou afastá-la, isto significará o fim de toda relação cor-dial entre você e ela. Ou ainda, se você tentar enganá-la, dar uma resposta falsa para esconder sua ignorância, neste caso também a criança não será enganada, porque descobrirá e perderá todo respeito por você. É muito melhor admitir sua própria ignorância, dizendo que não sabe, do que se apresentar como um sabe-tudo. Embora isto possa afetar, de certo modo, o sentimento de adoração, o respeito e a estima com que estava acostumada a admirá-lo, entretanto você não perderá sua afeição e confiança. Do professor ou dos pais que queiram

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A ALMA DE UMA NAÇÃO 31

guiar e controlar uma criança, com sucesso e apropriadamente, são exigidos infinita paciência e um temperamento que não seja nunca desgastado ou per-turbado. Com isso, você pode no fim moldar a criança mais refratária, sem isso, você falhará mesmo com uma criança de boa vontade.

A ALMA DE UMA NAÇÃO

Uma nação é uma personalidade viva, e tem uma alma, do mesmo modo que um indivíduo humano. A alma de uma nação é, também um ser psíquico, quer dizer, um ser consciente, uma formação da Divina Consciência e em direto contato com ela, um poder e um aspecto da Mahashakti8. Uma nação não é meramente a soma total dos indivíduos que a compõem, mas uma personalida-de coletiva da qual os indivíduos são como células, como células de um orga-nismo vivo e consciente. O ser psíquico ou a alma de uma nação é verdadeira-mente consciente; conhece sua raison d'être, seu propósito de vida, seu destino, o papel que tem de desempenhar no esquema divino como instrumento divino. E sua vontade — pois tem uma vontade, a expressão de sua consciência, o impulso Divino nela e através dela — é inevitável, mais cedo ou mais tarde, rea-lizar-se-á. Do mesmo modo que a alma do homem, a alma da nação está por trás de todos os movimentos que formam sua vida externa, apoiando, cons-truindo, guiando sua composição política, econômica, social ou cultural. O indi-víduo pode conhecer e entrar em contato com a alma da nação, dentro e atra-vés de sua própria alma. Somente quando alguém se torna consciente de seu ser psíquico, é que está em condições de tornar-se consciente do ser psíquico da pessoa coletiva de sua nação, ou da nação com a qual tem afinidade interior.

Há períodos no ciclo da vida de uma nação, momentos críticos, quando ela está em perigo mortal, quando sua própria existência está ameaçada, atacada por forças inimigas de dentro ou de fora. Tal foi o caso, por exemplo, da Grã-Bretanha quando foi invadida pela Armada Espanhola, ou quando a França esta-va sendo subjugada pela Inglaterra. Estes foram momentos de muita ansiedade, mas em cada caso, a alma da nação veio à frente e inspirou-a a reagir e passar pela provação e sobreviver. Joana D'Arc pode ser considerada como a incorpo-ração da alma nacional francesa, como ainda numa ocasião anterior, a mesma alma corporificou-se em Santa Genoveva. Mas a nação pode cair em dias piores, ou seja, quando ela perde contato com sua própria alma, desencaminhando-se, e seu movimento de vida desvirtua-se. Uma nação pode negar sua alma, da

8 Mahashakti: a Suprema Mãe.

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32 PARTE V

mesma forma que um indivíduo, e o resultado é desastroso. A Alemanha é um exemplo terrível dessa tragédia em nossos próprios dias.

A índia está oferecendo um espetáculo de uma outra tragédia. O que está acontecendo aqui é o ataque de uma doença que está convulsionando o corpo político. Parece uma doença cancerosa, os membros procurando crescer inde-pendentemente às custas uns dos outros. O paciente está passando por um período muito crítico e é, na verdade, uma questão de vida ou de morte. Mas nós esperamos — estamos certos — que a alma desta antiga nação afirmar-se-á e através de quaisquer vicissitudes, restabelecerá a saúde e a harmonia, pois a missão dessa alma ainda está para ser cumprida.

Como o indivíduo, uma nação também morre. A Grécia Antiga e Roma, Egito e Babilônia e Caldeia, não existem mais. Pode-se perguntar o que aconteceu às suas almas. Bem, o que acontece com a alma do indivíduo, quando o corpo se desagrega? A alma volta para o mundo-alma. Como a Psique individual, a Psique coletiva também se retira para o seio da paz e da luz com todos seus tesouros, com sua beleza e glória acumulados, como um pássaro que vai dormir dentro de suas asas dobradas. O que a cultura e a civilização gregas foram, ainda conti-nuam a existir na sua realidade pura, num mundo ao qual temos acesso se tivermos afinidade de consciência e abertura psíquica necessárias. Essa alma vive no seu próprio domínio, com toda a glória de suas aquisições e realizações na sua forma mais pura; e de lá irradia seu esplendor, exerce sua influência, age como um fermento vivo na herança cultural e no crescimento espiritual do mundo.

Entretanto, quando a alma se retira, quando uma nação, num ciclo particular da manifestação de sua alma, realizou seu papel e sua missão, o corpo da nação entra gradualmente em decadência. Os elementos que compunham a realidade orgânica, a consciência viva da vida nacional, desintegram-se, perdem sua ener-gia e capacidade de coesão. Eles morrem e são dispersos, ou persistem por algum tempo como uma mistura confusa de células desligadas e que se movem mecanicamente. Mas pode acontecer também que, uma nação que está aparen-temente morrendo ou morta, uma alma que se retirou, retorne novamente, não na sua velha forma e modo de vida — pois isto não pode ser (o Egito se vivesse novamente hoje, não poderia repetir as eras dos Faraós e das Pirâmides), — mas teria sim uma nova personalidade, e um propósito de vida renovado. Em tal caso, o que acontece é realmente uma ressurreição nacional, um Lázaro que volta à vida pelo toque do Divino.

Não acreditamos que a índia tenha estado alguma vez completamente mor-ta ou irremediavelmente agonizante: sua alma, embora nem sempre à frente,

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A ALMA E SUA JORNADA 33

sempre esteve presente como uma força viva, presidindo de cima e guiando seu destino. É por isso que existe nela uma capacidade perene de renovação e a capacidade de passar por provações terríveis. E para viver à altura de seu gênio, ela também precisa saber como marchar com os tempos, quer dizer, não se agarrar a formas velhas e passadas — ser fiel à sua alma antiga não significa eternizar as molduras e fórmulas externas que expressaram aquela alma em um tempo ou noutro. De fato, a alma torna-se viva e vigorosa quando encontra uma nova disposição do plano de vida que pode incorporar e traduzir uma atividade criativa renovada, uma nova realização que emana das profundezas da alma.

A ALMA E SUA JORNADA

– 1 –

Quando um homem morre, sua alma ou ser psíquico, depois de algum tem-po, vai para o mundo psíquico e repousa lá até que chegue a hora de nascer de novo num outro corpo na terra. Há, então, estes dois períodos na vida depois da morte. Primeiro, a passagem e depois, o repouso. A passagem significa o des-prendimento gradual de todos os outros revestimentos ou invólucros que envolvem o ser psíquico e foram sua moldura terrestre. Com o corpo físico, desaparece também o corpo sutil, depois o vital, e finalmente o mental. É esta a razão pela qual não nos lembramos de vidas passadas, porque deixamos para trás o instrumento da memória, a mente-cérebro, com a nossa morte. Não car-regamos para cima, com o ser psíquico, as outras partes que constituem a vida terrestre. Elas são dispersas e dissolvidas nas suas respectivas esferas cósmicas. O corpo sutil entrega seus elementos ao plano físico sutil, os elementos vitais são absorvidos pelo mundo vital e os elementos mentais vão para o mundo mental, a não ser que o ser psíquico seja altamente desenvolvido e tenha orga-nizado à sua volta, como seu instrumento de auto expressão, qualquer destes elementos. Nesse caso, o tanto das partes terrestres, isto é, do corpo sutil e vida e mente, que tenha entrado em contato direto com o psíquico e sido impressio-nado e moldado por sua consciência, somente isto, persistirá e participará da imortalidade da alma. Normalmente, os elementos do veículo humano formam um agregado disperso e desorganizado, amontoado à volta do centro psíquico. Quando o centro se retira, eles também caem automaticamente e são espalha-dos no armazém universal da Natureza. Unicamente quando eles forem organi-zados e tiverem adquirido uma forma definida e um caráter que expresse algu-ma coisa da natureza psíquica, é que eles conservam sua identidade, pois sua identidade é parte e parcela da identidade psíquica.

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34 PARTE V

Disse que a memória das vidas passadas é apagada devido ao desapareci-mento do instrumento. Mas há uma memória mais alta que é o atributo da consciência psíquica. O ser psíquico é feito de luz e conhecimento: ele sabe, ou melhor, ele vê e pode supervisionar toda a curva de seu crescimento e desen-volvimento passados. Obviamente, pode não ver ou lembrar-se, e frequente-mente não o faz, de todos os detalhes físicos das coisas e dos acontecimentos de uma vida terrestre, as centenas de incidentes, acidentes e contingências que não estejam diretamente ligadas à sua consciência. Mas todas as coisas que tiverem tido seu toque e contribuído para seu crescimento e desenvolvimento, e, por sua vez recebido sua influência, objetos, pessoas, acontecimentos ou movimentos, encontram-se abrigadas na memória psíquica. Assim, o único caminho certo para relembrar o passado, lembrar, por assim dizer, daquilo que valha a pena ser lembrado, é entrar dentro do ser psíquico, possuir a consciên-cia psíquica. Lá, temos revelado o panorama completo da odisseia da alma. Qualquer outro caminho conduz somente à imaginação, conjectura e engano.

– 2 –

A passagem entre a morte e a chegada ao descanso final no mundo psíquico é a provação mais difícil e mais perigosa para o ser humano. Ele deixou as prote-ções do corpo e ainda não encontrou o refúgio no psíquico: está obcecado e puxado para trás pelo seu passado, os desejos, os anseios, as atrações e repul-sas, os planos não realizados, esquemas problemáticos, tudo ainda o atormenta, coisas feitas e coisas não feitas cercam-no e impedem sua marcha para frente. Não somente seu próprio Karma, mas o Karma de outros também o perseguem: todas as pessoas relacionadas com ele, que pensam nele agora, têm pena dele, choram por ele, lamentam sua ausência, levantam tantas barreiras e tantos obs-táculos no seu caminho, que o obrigam a voltar-se e olhar para trás. Também existem forças e personalidades nos mundos intermediários com os quais a pobre criatura desencarnada tem que entrar em contato e, muito frequente-mente, ela se sente como se estivesse sem pele e todos os nervos expostos desamparadamente a impactos rudes e doloridos.

Na verdade, embora possa parecer algo estranho e maravilhoso, entretanto, é literalmente verdadeiro que o corpo é a fortaleza, por excelência, do ser indi-vidual: não é somente uma vestimenta suja e feia que tem de ser lançada fora para que se possa ir direto gozar da beatitude do Paraíso. Pelo contrário, é, por assim dizer, uma armadura, uma moldura de aço que protege o corpo sutil con-tra os ataques ou toques ásperos e cruéis de outros mundos e de seus seres. Uma vez fora do corpo, existe todo perigo de o indivíduo se perder e ser ferido, a não ser que seja guiado e protegido por um anjo protetor, como Dante que

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teve Virgílio como seu Mestre. Podemos notar aqui, que a passagem de Dante, do Inferno através do Purgatório para o Céu, cruzando seus vários níveis, é qua-se uma imagem exata do que acontece à alma depois da morte. O Céu mais alto onde Dante encontra Beatriz pode ser considerado como o mundo psíquico e a própria Beatriz, a Graça Divina que banha, ilumina e conforta o ser psíquico.

Entretanto, se tivermos dentro de nós uma chama ardente, sincera e não vacilante, podemos atravessá-la sem maiores dificuldades e intocados; mas isto é raro. Mesmo quando vivos, no sono, saímos frequentemente e entramos em outros mundos, e os contatos e experiências estranhas e desagradáveis que temos lá são gravadas na mente-cérebro como pesadelos. Nestas ocasiões, a melhor maneira de escapar, é correr de volta para o corpo, único lugar de segu-rança. Muitos têm a experiência de precipitar-se dentro do corpo, mergulhando de cabeça, por assim dizer, para escapar de um perigo ameaçador no sono e acordar de repente, para descobrir, com alívio, que tudo era ilusão e alucinação.

Uma passagem fácil e rápida para o lugar de repouso é o que ser precisa e pede depois da morte. Isto é determinado pelo Karma de cada um na vida e pelo último desejo e última prece no momento da morte, pois a força de cons-ciência, neste momento crítico, age não somente sobre o caráter da passagem mas sobre o caráter até mesmo do próximo nascimento. Independentemente de seus próprios méritos, pode-se ser ajudado por outros que ainda estão na terra e que se dizem seus parentes e amigos, ou por aqueles que o estimam muito. Não como se faz atualmente, quer dizer, angustiando-se e lamentando-se, ou mesmo executando rituais e cerimônias que frequentemente retardam em vez de acelerar a passagem, mas por um desprendimento interior e prece tranquila e boa vontade. A melhor maneira para ajudá-lo, talvez, seja esquecê-lo. Um auxílio consciente, na verdade, pode ser dado somente por alguém que tenha o necessário poder oculto e realização espiritual, o Guru, por exemplo.

– 3 –

Uma vez no seu lugar de repouso, a alma desfruta de profundo deleite e paz, e fica numa espécie de sono luminoso. Lá, ela assimila todas as experiências de sua última vida, quer dizer, absorve delas toda a substância que vai aumentar e fortalecer sua consciência, a seiva que se oferece para o crescimento da forma e estrutura do ser. Estas experiências têm a função de trazer a alma mais para perto, cada vida sendo um degrau mais próximo, para a plenitude de sua união com a Consciência

Divina, de onde ela veio originalmente e apareceu na terra, como uma mera fagulha, uma parcela ainda separada. Este processo pode ser longo ou curto, de

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36 PARTE V

acordo com a natureza da assimilação empreendida. Aí também, o ser se prepa-ra para o nascimento iminente, quer dizer, reúne todos os elementos que serão necessários para o drama da consciência naquela vida. Um plano amplo também é feito aqui, um esquema, em linhas gerais, da espécie de experiências que serão precisas para um crescimento determinado de consciência, que se tencio-na fazer. Algumas forças de consciência, retiradas do estoque desenvolvido e reunido pelo ser, são retidas como reserva, outras são expostas para uso ime-diato na vida a ser vivida em seguida. Tudo isso , entretanto, não é um processo deliberado e racional da mente, é algo espontâneo, emaranhado, uma gestação e incubação luminosas, algo como o transe de Brahman, dentro do qual a semente da criação está para germinar.

O ser psíquico é um invólucro de poder acumulado, uma bateria carregada, por assim dizer; quando ele desce à terra, reúne à sua volta elementos da men-te, do vital e mesmo do físico sutil, necessários ao propósito da experiência de vida particular, e até mesmo aqueles que irão constituir o corpo físico. O ser psí-quico, usualmente, quando precisa deles, coleta estes elementos de mente, vida e corpo do armazém universal da atmosfera da terra, da mesma forma que os devolve na viagem de volta, depois da morte. Mas, como já disse, há seres que desenvolvem personalidades bem formadas de mente e vida, e mesmo da cons-ciência física. Estas formações não são meros acréscimos dispersos, arranjos temporários para uma vida de experiência, mas são fundidas, organizadas, com uma forma mais ou menos permanente, como um instrumento adequado do ser psíquico, como sua própria expressão. Em tais casos, a personalidade exterior também continua a existir como um modo ou vibrações essenciais, dentro e com a própria consciência psíquica. E quando a alma desce à terra e entra em contato com a atmosfera terrestre, projeta para fora de si mesma uma forma-ção e personalidades externas. Certamente isso não quer dizer que a personali-dade permaneça como algo fixo e rígido, mas que ela adquiriu uma plenitude essencial de forma e, no entanto, conserva a capacidade de mudança e cresci-mento posteriores através de mais crescimento do ser psíquico em outras vidas de experiências.

Contudo, o tempo e a ocasião para um determinado nascimento da alma depende naturalmente, da necessidade íntima daquele ser. Mas deve ser ano-tado — como é um fato no mundo oculto — que as almas não são assim como entidades autossuficientes, absolutamente separadas, não relacionadas e autô-nomas, cada uma indo e vindo como e quando quiser ou escolher. Ao contrário, as almas formam grupos ou famílias de acordo com alguma afinidade secreta. E quando elas descem, fazem-no, de um modo geral, em companhia. Vem um chamado, um sino toca como se estivesse intimando que a hora chegou e elas

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A ALMA E SUA JORNADA 37

correm para baixo. E pode mesmo acontecer que no correr para baixo, o ser psíquico não seja tão cuidadoso ou meticuloso a respeito do instrumento, o veí-culo que escolhe para habitar; qualquer um que esteja à mão e mais próximo, e no conjunto conveniente a seu propósito, ele pega e continua. Ele toma tudo como uma aventura e tem a alegria da luta e o espírito do guerreiro que pode saborear a vitória somente quando obtida com dificuldade. E assim que, comu-mente, encontramos uma discrepância considerável entre o ser interno de um homem e sua habitação terrestre, sua alma e seu caráter externo e sua natureza física. Há um significado na escolha, um sentido na utilização de condições des-favoráveis: há um método na loucura.

Este agrupamento parecerá natural e inevitável quando tivermos em mente o propósito da criação e o papel da consciência psíquica. Porque não é uma questão de salvação individual, de crescimento e desenvolvimento unilaterais e realização de um ser psíquico individual. A alma é um ponto luminoso num uni-verso inconsciente e seu papel é torná-lo consciente, pelo menos uma porção representativa dele. A atividade do ser psíquico é o meio de uma nova criação, a transmutação da consciência-terra, o crescimento e advento de uma raça divina, a manifestação e incorporação do Divino e de seu drama na terra. As almas são os guerreiros, os companheiros, os amados do Senhor. Elas têm que se reunir e de se mover juntas para o bom desempenho do drama. Têm que estar em com-panhia e regimentos e batalhões, em associações e concertos e formações har-monizadas.

– 4 –

As almas agrupam-se em tipos naturais, de acordo com o modo fundamental de consciência e seu dinamismo. E elas formam uma hierarquia: existem e fun-cionam em uma organização cujo tipo e padrão formam a pirâmide. No ápice está o Supremo Único, na base, a infinidade de almas individuais e díspares, fagulhas terrestres, que são emanações, derivações, condensações espalhadas, partes e parcelas daquele Supremo Único. Entre esses dois extremos, do topo para baixo, estão em formações de escala graduada cada vez mais específicas, particularizadas e concretizadas: enquanto subimos, encontramos as formas das mesmas entidades, porém mais amplas, mais vastas e mais inteligíveis, até che-garmos ao típico e original, o ser-fonte. Assim, podemos visualizar uma alma, ao longo de sua linha de emanação da fonte central, como uma série de seres, o mais alto encerrando e cingindo o mais baixo. Não somente assim, uma entida-de mais alta pode ter várias emanações mais baixas e cada uma destas pode novamente emanar várias outras. O número de emanações multiplica-se enquanto se desce e decresce quando subimos. Podemos entender agora o que

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38 PARTE V

significa quando falamos de almas afins. Quando há uma afinidade ou uma simi-laridade inexplicável ou natural entre duas almas, acontece, nesse caso, que as almas são emanações da mesma Sobre-Alma. E também acontece algumas vezes que o anjo protetor ou demônio com quem possamos entrar em contato, não é outro senão a nossa própria Sobre-Alma. O termo Sobre-Alma toma assim um significado literal e profundo.

Aqui, podemos ilustrar um pouco. No ápice da pirâmide da existência está o Divino, a Pessoa Suprema, o Purshottama. Mesmo lá, quando Ele começa a se inclinar e olhar para baixo, Ele se expressa, mesmo no início, como a dupla per-sonalidade de Ishwara e Shakti (o Pai Divino e a Mãe Divina) — sa dvittyam aic-chat, como diz o Upanishad. É ainda o Divino em Seu status transcendente mais alto, paratpara. Em seguida, esta realidade dual ou dupla ou bivalente mostra-se ou projeta-se ainda mais longe, numa valência de quatro facetas da dinâmica consciência-verdade, criando e dirigindo a evolução cósmica. Os quatro Aspec-tos de Ishwara, ornando a linha masculina ou purusha, são os grandes nomes: Mahavira, Balarama, Pradyuma e Aniruddha. E os quatro aspectos correspon-dentes de Ishwari formam o outro grande quaternário: Maheshwari, Mahakali, Mahalakshmi e Mahasaraswati. Eles incorporam os quatro atributos principais do Divino em Sua relação ao universo criado: Conhecimento, Poder, Amor e Habilidade no trabalho. Assim, eles também representam uma ordem divina de quatro facetas. A primeira incorpora a qualidade de Brahmin de grande sabedo-ria, ampla compreensão, uma consciência vasta; a segunda tem a qualidade Kshatriya de força, dinamismo, concentração e impulso de energia; a terceira possui a qualidade Vaishya de harmonia, beleza, mutualidade e a quarta tem a qualidade Shudra de execução perfeita, eficácia de trabalho detalhado, ordem e planejamento.

Os Deuses mais altos, como aqueles, por exemplo, visualizados no Veda, podem ser considerados cada um como uma emanação de um ou outro destes aspectos Divinos. São os habitantes do Swar ou da Sobremente. Varuna parece ser uma emanação de Mahavira, um filho de Maheshwari, pois ele é preeminen-temente o deus da consciência pura e vasta que nos liberta dos laços triplos e nos mostra o caminho tortuoso para o abraço da Mãe infinita. Seu associado, Mitra, é o senhor do amor e harmonia, evidentemente uma emanação de Prad-yuma (ou Mahalakshmi). Outros deuses da mesma categoria são Bhaga e Soma. O aspecto Balarama ou Mahakali é manifestado em Aryaman, sendo Rudra uma outra forma do mesmo. E Mahasaraswati (ou Anirudha) deve ter dado origem e inspirado os Ribhus, que são artesãos da divindade. A trindade Purânica — Brahma, Vishnu e Shiva — com Indra como o quarto membro, forma um sistema paralelo incorporando uma concepção semelhante.

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Uma outra tradição define os Quatro Eternos como: 1) Luz ou Consciência, 2) Verdade ou Conhecimento, 3) Vida e 4) Amor. A tradição também diz que seres que representam estes quatro princípios fundamentais da criação, foram os primeiros e mais antigos deuses que emanaram do Divino Supremo, e que eles se separaram, da sua fonte e um do outro, cada qual seguindo sua própria linha independente de realização, perdendo sua divindade e tornando-se seus opos-tos — a Luz tornou-se obscuridade, a Consciência, inconsciência ou o incons-ciente, a Verdade, falsidade e o Conhecimento, ignorância, a Vida tornou-se morte e finalmente o Amor e Deleite tornaram-se sofrimento e ódio. Estes são os anjos caídos, os Asuras que negam sua essência divina e que agora governam o mundo. Eles se apossaram da humanidade e estão controlando a existência terrestre. Eles têm também suas emanações, forças e seres que nascem deles e os servem em seus vários graus de poder. Os homens falam e agem inspirados e impelidos por estes seres e, quando assim o fazem, perdem sua humanidade e tornam-se piores que animais.

Mas ainda assim, a Realidade Pura desce indesviável na sua própria linha e o homem a entesoura dentro de si, o fogo imortal que o purificará e o conduzirá à fonte de onde veio. E há deuses luminosos que o ajudam e eles próprios querem participar da transformação terrestre. Há uma pressão de cima e há um anseio de baixo, e entre estas duas infinitudes, tudo é triturado e moldado e mudado. Mesmo os Senhores da Negação vão mudar no fim e aprender a aceitar, tornan-do-se novamente o que eram e são verdadeiramente.

– 5 –

Primeiro, então, há as divindades supremas, aspectos ou as próprias perso-nalidades do Divino no seu status supremo, a Supramente; depois vêm as pri-meiras emanações, os deuses puros ou verdadeiros da Sobremente. Deste pon-to ou simultaneamente, há a linha de deformação, aquela dos falsos deuses e divindades, os Asuras e Titãs. Também estes se estendem numa série de ema-nações para baixo até o físico sutil, exceto quando eles próprios se encarnam na terra num corpo terrestre.

Dissemos que o homem, a alma, vem diretamente do Divino e é lançada, quase que cravada na terra como uma centelha, como um ponto luminoso de força-consciência. Esta alma, conforme se desenvolve, assim achamos, pertence a um outro tipo fundamental da personalidade divina, é um descendente linear, por assim dizer, de um dos quaternários e seu crescimento significa crescimento dentro da natureza daquele determinado deus e sua realização significa identifi-cação com ele.

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40 PARTE V

Podemos tentar ilustrar com exemplos, embora seja um jogo um pouco perigoso que possa tender para uma fórmula rígida e matemática, algo que é vivo e variável. Ainda assim servirá para dar uma visão mais clara ao assunto. Napoleão era evidentemente um filho de Mahakali; e César parece ter sido defi-nitivamente moldado pelo princípio de Maheshwari; enquanto Cristo ou Chai-tanya9 são claramente emanações na linha de Mahalakshmi. Gênios construti-vos, por outro lado, como o grande estadista Colbert, por exemplo, ou o próprio Luiz XIV, o grande monarca, pertencem à uma família (ou gotra, como se diz na índia) que se originou de Mahasaraswati. Ainda, poetas e artistas, embora geralmente pertençam ao clã de Mahalakshmi, podem ser reagrupados de acor-do com o princípio que predomine em cada um, o deus que preside sobre sua inspiração. A grande expressão em Homero e Valmiki, o estilo elevado e nobre de seu movimento, a dignidade e amplidão que compõem sua consciência, afi-lia-os naturalmente à linha de Maheshwari. Um Dante, por outro lado, ou um Byron, têm algo em sua substância e estilo que nos faz pensar no selo de Maha-kali. Virgílio ou Petrarca, Shelley ou o nosso Tagore parecem ser emanações de Beleza, Harmonia, Amor — Mahalakshmi. E o perfeito artesanato de Mahasa-raswati encontrou seu especial encorporamento em Horácio e Racine e em nos-so Kalidasa. Michelangelo, na sua fúria de inspiração, parece ser impelido por Mahakali, enquanto Mahalakshmi lança seu favor genial sobre Raphael e Ticia-no; e o cuidado meticuloso e certeza detalhada num Tintoretto faz-nos pensar na graça de Mahasaraswati. Mahasaraswati também parece ter favorecido especialmente Leonardo da Vinci, embora uma presença protetora de Mahesh-wari também pareça estar misturada aqui.

Pois, deve ser lembrado que a alma humana, afinal, não é um ser simples e unilateral, é um pequeno cosmos em si mesma. A alma não é meramente um ponto ou simples raio de luz vindo diretamente do seu arquétipo divino ou do próprio Divino, é também um fogo em desenvolvimento que cresce e se enri-quece através de múltiplas experiências de progresso evolucionário - não ape-nas cresce em altura, como também em amplidão. Mesmo que tenha original-mente emanado de um único principio e Personalidade unos, absorve para seu desenvolvimento e sua realização, influências e elementos de outros também. Na verdade, sabemos que as quatro personalidades primordiais do Divino não são separadas e distintas sem disparidade. Os próprios deuses Védicos são tão interligados, tão interpenetrados que, afinal, se pode afirmar que só há uma única existência, à qual é dada muitos nomes. Todas as personalidades divinas são aspectos do Divino, não podendo ser senão um complexo de muitas perso-

9 Chaitanya: um santo hindu.

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nalidades e frequentemente pode ser difícil e mesmo perigoso descobrir e fixar-se em uma personalidade dominante. O pleno desabrochar da alma humana, sua perfeita divinização, exige a realização de uma personalidade de muitos aspectos, a própria riqueza do Divino dentro de si.

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PARTE VI

O FIM DE UMA CIVILIZAÇÃO

Desde o começo deste século, o curso de degradação do mundo vem se acentuando progressivamente. Um dos grandes sintomas do declínio é a preva-lência das guerras. De fato, pode-se dizer que não tem havido paz real ou mes-mo trégua sobre a terra desde que o século começou com a guerra Russo-Japonesa. As guerras têm continuado ininterruptamente desde então, numa ou noutra parte do mundo. Na verdade, pode-se dizer que tem sido uma única guerra contínua, em muitas frentes, irrompendo em diferentes épocas. Uma outra coisa que se nota nestas guerras é sua natureza. Com o correr do tempo, elas se tornaram cada vez mais prolongadas e devastadoras. Não é mais sim-plesmente um choque de exércitos ou de profissionais, dessa parte da socieda-de cuja profissão é lutar. Nações inteiras, literalmente o todo de um povo, incluindo homens, mulheres, crianças de todas as idades, são agora mobilizados, obrigados a participar da luta e compartilhar do mesmo perigo.

Naturalmente, guerra sempre significou matança; mas a natureza da matan-ça mudou, assim como o motivo. A matança é agora praticada com crueldade, feita com métodos terrivelmente atrozes e revoltantemente engenhosos. E isso afetou a própria consciência e a moral do homem. Não somente não há decên-cia nem decoro, para não falar de magnanimidade e nobreza de atitude e com-portamento — coisas familiares nas histórias dos Kshatriya10, dos Samurais, dos Cavaleiros de antigamente — mas surgiu em campo um fenômeno para o qual ela própria achou um nome, sadismo, violência brutal e em escala maciça. O homem parece ter lançado fora toda máscara, todas as regras da vida social civi-lizada e se tornado pior do que o animal. Ele é agora o Pisacha, o vampiro e o demônio, e parece ter alcançado o fundo do poço.

Sabemos que mundos — mundos vitais — são feitos dos horrores mais ini-magináveis, de fealdade e artes diabólicas. Muitos já tiveram ocasião de entrar em contato com esses domínios, quer conscientemente, no curso de suas expe-riências yóguicas, quer inconscientemente, em pesadelos. Eles dão testemunho da rematada monstruosidade destes mundos — a escuridão e o medo, a dor e a tortura, a perdição e a condenação reinam lá. Todo esse mundo interior parece ter-se precipitado sobre a terra e tomado corpo aqui. Um poeta brilhante falou

10 Kshatria: a classe dos guerreiros.

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O FIM DE UMA CIVILIZAÇÃO 43

do Paraíso que era transplantado para a terra na forma de uma cidade feliz (a cidade de Raghus). Hoje, fazemos o milagre inverso, a capital do demônio está instalada na terra, ou até mesmo algo pior. Pois nos mundos mais sutis há, afi-nal, a graça salvadora. Se você, em algum lugar, tiver dentro de si uma aspira-ção, uma confiança, uma fé, uma luz, o inimigo não poderá tocá-lo ou maltratá-lo gravemente. Você também pode ter lá, à sua volta, seres que o ajudam, um mestre, um guia que esteja perto, visível ou invisivelmente, para lhe dar o necessário aviso ou proteção. Mas, aqui em baixo, quando o inimigo se reveste de forma material e mune-se de armas materiais, você está quase indefeso. Para salvar-se de um choque físico, nem sempre é suficiente possuir consciência inte-rior apropriada. Algo mais é necessário.

Portanto, a miséria campeia livremente sobre a terra. Nada comparado a ela, quer em qualidade ou quantidade, pode a história oferecer como exemplo. O homem não encontra remédio para seus males, não ousa ter esperança algu-ma. Sente que está sendo irremediavelmente arrastado para os braços do arqui-inimigo.

Talvez tenha sido necessário que assim fosse. Um pralaya, um Dilúvio tem que acontecer para terminar uma época e começar uma nova. De fato, a civiliza-ção que o homem construiu através de milênios, alcançou seu auge no cientis-mo moderno. Qualquer contribuição que possa ter acrescentado ao homem, mesmo que tenha sido grande, poderosa e bela, no apogeu de sua própria esfe-ra, foi ainda uma limitação, tendo agido como um freio para um salto e um pro-gresso da consciência no porvir. O ciclo humanístico tem reinado, desde a Grécia antiga até a América moderna. Não é tempo para que uma outra consciência intervenha, outros deuses façam sua aparição?

* * * * *

E, contudo, se a civilização realmente se for, não será algo sem importância, mesmo quando medida na escala cósmica. Uma civilização é para ser julgada e avaliada não no seu nadir, mas no seu zênite, no seu efeito total e não por uma fase temporária do seu curso. O que a civilização realmente significa é a prepa-ração do instrumento: o instrumento humano que deve expressar o Divino. O propósito da criação, temos frequentemente dito, é o estabelecimento da cons-ciência espiritual mais alta na vida incorporada na terra. A vida incorporada sig-nifica corpo e vida e mente do homem. Individual e socialmente, estes consti-tuem o instrumento através do qual a luz mais elevada está para se manifestar. O instrumento tem que ser preparado, pronto para o propósito. No momento atual é obscuro, ignorante, estreito, fraco. A princípio, e por muito tempo, expressa somente, ou principalmente, a natureza animal inferior. Civilização é

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uma tentativa de erguer esta natureza inferior, de refiná-la, de ampliá-la e ele-vá-la, para cultivar e aumentar suas potencialidades e capacidades. A civilização presente, dissemos, é um crescimento de milhares de anos, pelo menos cinco mil anos, de acordo com a computação arqueológica mais modesta. Neste período, o homem desenvolveu seu cérebro, sua inteligência racional, desven-dou alguns dos grandes mistérios da natureza. Controlou e organizou a vida a tal ponto que abriu novas possibilidades de crescimento e conquista. Mesmo com respeito ao corpo, ele aprendeu a tratá-lo com maior habilidade e dotá-lo de maiores e requintadas potencialidades. Houve aberrações e abusos, sem dúvida, mas a essência das coisas adquiridas ainda permanece e é sempre uma posse inestimável: não se deve permitir que isso se vá.

Se a civilização se for, significa que o instrumento também se vai; a base do edifício sobre o qual a consciência Divina deve ser erguidaé demolida, nada res-ta onde se apoiar firmemente. Assim, o labor tem que começar de novo: deve-se começar do princípio. O trabalho tem que ser feito e será feito, não lhe é permitido terminar num labor de Sísifo.

Olhe para o indivíduo. Por que existe nele o impulso-vida para persistir, para perseverar, para sobreviver? Se a vida não tivesse nenhum outro significado do que o mero viver, então a melhor coisa seria deixar o corpo, tão logo ele estives-se seriamente afetado ou incapacitado pela doença, acidente ou velhice. Em vez disso, por que esta tentativa de prolongá-lo, recusando aceitar as dificuldades e desvantagens presentes? A razão é que a vida requer tempo para crescer em consciência, para adquirir experiências, para assimilá-las e utilizá-las e assim transformá-las em poderes de ser, de tempo, quer dizer, de construir e forjar o instrumento para que ele possa abrigar a consciência e existência mais elevadas. Na formação presente, o corpo, a um certo estágio, tem que ser abandonado, pois a moldura torna-se muito rígida e dura para acompanhar o movimento crescente e mais rápido da consciência interior. O fio é retomado novamente em outra vida, mas há sempre uma considerável repetição neste processo natu-ral; deve-se repisar o estágio da infância e imaturidade, uma retempera do ins-trumento, até que este seja capaz de outros usos. Na verdade, alguma coisa das experiências, de sua essência, fica armazenada em algum lugar, nas profundezas do ser; mas não é utilizada completamente, não é um elemento efetivo na cons-ciência normal. E embora uma pessoa sempre se baseie no seu passado, o edifí-cio construído parece novo cada vez. O yoga, no indivíduo, procura eliminar este elemento de repetição e inconsciência e atraso no processo de crescimento e evolução: sua meta é completar o ciclo de crescimento individual numa única vida.

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DA ESCURIDÃO PARA A LUZ 45

Ora, o mesmo princípio pode ser estendido a um desenvolvimento coletivo mais amplo. A civilização hoje alcançou um status em que o próximo status mais alto pode e deve ser tentado. O homem elevou-se a uma considerável altura na esfera mental; o tempo e a ocasião estão agora aqui para avançar em direção ao supramental, o dinamicamente espiritual. Perigos estão à frente, mesmo perto e à volta; todas as forças do infra-humano, os impulsos submersos do atavismo animal, estão empurrando e puxando o homem para baixo, para uma regressão, para uma reversão ao tipo. A escolha é, de fato, crucial. Se a civilização está para perecer, isto significa que a humanidade tem que começar novamente seu curso de vida, começar, quer dizer, do estágio do recém-nascido, uma vez mais, para ir através do processo vagaroso dos séculos, a fim de adquirir o domínio que foi conseguido nas regiões físicas, vitais e mentais. Já tem havido tais períodos per-didos na evolução do homem, agora submersos em sua consciência, e suas vitó-rias estão sendo recuperadas com dificuldade. Mas um desmoronamento nesta hora crítica será uma catástrofe colossal — humanamente falando, algo quase irremediável.

Pois aqui está o sentido da crise. O mantra dado para a nova era é que o homem será transcendido e, no processo, o homem, como ele é, passará. O homem passará, mas algo do veículo que o presente ciclo preparou permanece-rá. Pois essa é precisamente a função da civilização que passa, especialmente nos seus últimos estágios, isto é, construir um templo terrestre para o Senhor. A aberração e a deformação desenfreadas de hoje, representam apenas um excesso de pressão sobre este aspecto, sobre a apresentação externa que foi ignorada ou não suficientemente considerada nas primeiras e mais altas curvas da civilização presente. Os valores espirituais declinaram, porque os valores materiais vieram a ser considerados como destituídos de valor, e isto perturbou a economia ou o equilíbrio da natureza. É verdade que nós fomos longe, muito longe, na nossa revanche. E o problema com o qual nos defrontamos hoje é este: se a humanidade será capaz de mudar suficientemente e transformar-se no ser superior que habitará a terra, como seu coroamento, no ciclo vindouro, ou, sendo incapaz, se extinguira totalmente, desaparecerá de todo ou será rele-gada à estagnação da vida terrestre, e algo como as tribos aborígenes de hoje.

DA ESCURIDÃO PARA A LUZ

A Escuridão é a medida da Luz. O mundo como ele é, é a oposição do que tem que ser e será. E a fim de ser o que será, ele tem que ser o que é agora, jus-tamente o que não será. Os antípodas andam juntos, inevitavelmente: a pro-fundidade do precipício é precisamente a medida de sua altura. A queda do

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homem representa a ascensão que ele tem que fazer, que está destinado a rea-lizar.

Barreiras e obstáculos são colocados aí no caminho, não meramente para testar sua força, mas para treiná-la, fazê-la crescer e discipliná-la. Dificuldades existem em abundância, precisamente porque, vencendo-as, você alcança a plenitude de sua perfeição. Você foi constituído por elementos e forças que estão exatamente na medida de sua capacidade para elaborá-los: você é colo-cado no meio de condições e situações que estão absolutamente na proporção daquilo que você tem que realizar. Na verdade, você carrega dentro de si todas as dificuldades que são necessárias para tornar sua realização perfeita em si mesma.

Quando você receber um golpe, não recue ou pestaneje ou afunde. Levante a cabeça com coragem e firmeza e diga para si: "aqui está uma oportunidade para dar um outro passo à frente". O golpe é o dedo de luz apontado para o ponto escuro a ser iluminado, para o elo fraco que deve ser forjado de novo. Enfrentando e sobrepujando uma dificuldade, você acrescenta um outro degrau à sua ascensão, um outro nervo, por assim dizer, a seu músculo. Lembre-se, uma dificuldade nunca é desproporcional à sua força: ela vem na medida exata de seu poder para enfrentá-la. É sua mente, são suas noções, que fazem a sugestão contrária e uma espécie de ilusão apossa-se de você, de que está diante de uma tarefa além de seu alcance e que deve se desorientar.

Talvez você não possa fazer a coisa ideal num dado momento. Pode não ser capaz de executar o gesto perfeito que é esperado de você num conjunto de circunstâncias. O Divino pode lhe parecer velado e você não ouvir sua voz direta. Mas não tem importância. O que se espera de você é que faça o melhor, o melhor que é capaz de fazer naquele momento. Esse mais elevado que está pre-sente em você, as culminâncias disponíveis no momento e sob as circunstâncias da ocasião — isso deveria ser a fonte e a inspiração de seu ato. Aja das alturas de onde você se encontra e aspire por alturas ainda mais elevadas.

TIPOS DE MEDITAÇÃO

O primeiro tipo é pensar num assunto em ordem lógica e contínua. Quando, por exemplo, você quer encontrar a solução de um problema, vai passo a passo, de uma operação à outra, subsequentemente, até que finalmente chega à con-clusão. O pensamento é retirado de todos os outros objetos e canalizado para uma única linha. Isto é uma espécie de meditação, embora não seja usualmente conhecida por este nome. Marca um progresso na formação da consciência

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TIPOS DE MEDITAÇÃO 47

humana. Pois, normalmente, a mente se move ao acaso, de momento a momento, os pensamentos correm de lá para cá em torno de múltiplos assuntos diferentes, contrários e contraditórios. Não há nem direção, nem consistência ou organização: é uma massa confusa de pensamentos incipientes e incomple-tos. Para começar, o controle e a organização dessa massa numa esfera limitada e numa direção definida, a rejeição do supérfluo e do irrelevante e a disposição e o arranjo dos elementos requeridos constituem o primeiro exercício para o crescimento mental. Toda inteligência superior, todo domínio efetivo do poder de pensamento precisam desta disciplina. Nas circunstâncias atuais do mundo, a escola da vida enseja a melhor oportunidade para este desenvolvimento. Esta é uma meditação que deveria ser obrigatória e universal.

O tipo seguinte podemos chamar de concentração em vez de meditação. Aqui não seguimos uma linha de pensamento, mas fixamos o pensamento em um objeto imóvel. Significa um processo subsequente de retirar a consciência de seu habitual movimento extrovertido e dispersivo. O pensamento é mantido num ponto e a atenção é ali focalizada: é uma atenção contínua e ininterrupta, por exemplo, em torno de uma ideia, de uma frase (mantra) ou de uma imagem. Pode-se também concentrar num ponto físico, digamos, fixar o olhar na ponta do nariz ou num ponto externo luminoso etc. Nesta disciplina, toda a mente fica unificada e focalizada: ou, tudo o mais é excluído, deixando-se apenas uma úni-ca coisa sobre a qual toda a luz da consciência é dirigida. É uma consciência parada como uma chama ereta e imóvel num lugar sem vento.

Há um terceiro estágio, quando a mente se torna um vazio, todos os pensa-mentos são lançados fora e as vibrações estão tranquilizadas. É um vasto silên-cio cheio de uma luminosidade calma. A operação é difícil pois significa uma espécie de drenagem contínua e metódica, ou rarefação que leva mais ou menos um longo tempo. Primeiro, você joga fora ideias e noções bem formadas, processos e produtos de raciocínio e julgamento, as ondas maiores, por assim dizer. Assim que estas se acalmam, você descobre que há ondas menores por baixo ou atrás — pensamentos meio-formados, ideias que desabrocham, noções fugidias e assim por diante. Quando estas são também aquietadas, você depara ainda com uma outra camada de ondulações menores de pensamentos, próxi-ma a sensações, reações nervosas, vibrações de mente-cérebro, preceitos rudi-mentares etc., etc. Pode-se prosseguir assim, se não ad infinitum, pelo menos por um tempo considerável. Por fim, chega-se ao que é praticamente um vácuo, uma mente silente para todos efeitos. Mesmo então é um processo árduo e difí-cil e pode não ser tão absoluto quanto se possa esperar.

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Há outros processos mais seguros e até mais fáceis para alcançar o mesmo fim. Assim, em vez de empenhar-se e lutar e impor a sua vontade sobre as ondas inquietas, você simplesmente relaxa, deixa-as de lado por assim dizer; espera e aspira e abre-se em direção ao Silêncio que paira acima; chama pelo silêncio com fé e confiança e ele vem, frequentemente como uma inundação maciça, um fluxo glacial que automaticamente o domina, afogando-o e enchen-do-o de alto a baixo.

Existe, também, uma outra maneira: contatar, sentir a Presença da Mãe. A Presença da Mãe significa todas as realizações que aspiramos ver concretizadas, trazidas para baixo, perto de nós, dentro de nosso alcance humano. Não temos que andar por toda a parte, escalar alturas inacessíveis, labutar e extenuar-nos com sangue, suor e lágrimas para conseguir o que queremos: todas as possibili-dades estão ali, ao nosso alcance, em nossa atmosfera; temos apenas que saber e perceber, abrir em nós algo para que elas afluam. Esta é talvez, a ação da Gra-ça: silêncio, silêncio absoluto, não apenas na mente, mas em todo o nosso ser, que pode vir desta forma também.

O último processo dá a chave para o quarto tipo de meditação, o tipo que é de fato recomendado por nós, não só por ser o mais fácil, porque segue a linha de menor resistência, como também porque dá a plenitude do resultado dese-jado. Em vez de tentar manipular a força mental com a própria vontade e o pró-prio esforço, em vez de procurar controlar e comandar a consciência, a melhor coisa a fazer seria permanecer quieto, tanto quanto for normalmente possível, sem lutar. Então, voltar o olhar para o outro lado, para o mais profundo ou mais elevado, tornar-se mais consciente da luz, da Vontade que o trouxe para este Caminho, animar-se com o deleite secreto, a aspiração flamejante que está em nós, por trás de todas as turbulências da vida e consciência superficiais.

Esta Presença e Orientação, colocarão espontaneamente, diante de nós, os elementos e movimentos a serem rejeitados e os que são para serem aceitos e receber nosso consentimento sincero, aqueles que nos ajudam a praticar as ações necessárias. De fato, se você não resistir demais, ela eliminará o que é para ser eliminado e atrairá o que é para ser atraído. É desse modo que o ins-trumento será purificado e refinado. O silêncio inserir-se-á, pois essa é a base; mas não o silêncio apenas, porque ele será unificado com um novo dinamismo expressando a Vontade do Divino; não haverá nenhuma escolha pessoal, nem por uma quietude absoluta, nem por mera atividade.

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O SER CONSCIENTE

O ser consciente, em nós, é verdadeiramente o ser psíquico. Mas encontra-se presentemente atrás e fora de ação. O que é normalmente consciente, então, é a mente, essa parte que conseguiu a luz e que é iluminada. Somos conscientes através desta porção e mesmo, identificamo-nos com ela, conhecemo-la, e sen-timo-la como nós mesmos, como "eu".

A mente, contudo, tem uma consciência central que pode ser chamada de Mente Testemunha, o Purusha11 na mente. Ele fica à parte e observa o que está acontecendo na mente, bem como em outras partes; é, de fato, o observador de todo ādhāra12. As outras partes são o vital e o físico. O vital também tem sua própria consciência central, sua testemunha Purusha, que observa todos os movimentos vitais e também as outras partes, através de seu próprio ângulo. Do mesmo modo, o físico tem um Purusha e ele também observa através de sua própria consciência. O Purusha mental diz, "Eu vejo que estou pensando, racio-cinando etc."; o Purusha vital diz, "Eu vejo que estou zangado, violento ou gos-tando, infundindo energia etc."; o Purusha físico diz, "Eu vejo que estou agindo, andando, correndo etc.". Bem, numa pessoa comum, cada um destes três Puru-shas permanece separado e cada um é consciente a seu modo. Eles não são inteiramente conscientes uns dos outros, misturam-se, mas não apropriada-mente, e na maior parte das vezes não se entendem. Muito raramente unificam-se, harmonizam-se ou reúnem-se como um time para servir a um propósito comum, a um único objetivo. Essa união e harmonização somente pode ser feita através do Purusha Supremo, a Testemunha Divina, que é o verdadeiro Ser consciente, o único Purusha atrás e acima de todos os outros, cuja luz, antes de tudo, centraliza-se no ser psíquico e, então, através dele, é canalizado para seus representantes ou emanações nos níveis inferiores, a mente, o vital e o físico.

O que é consciência? É o inverso de Inconsciência. É a essência criativa do universo: sem consciência não existe criação. Inconsciência significa não-existência. O supremo Não-manifesto torna-se consciente de si mesmo, isto é, objetiva-se, vê-se criado ou refletido em múltiplos centros: isto é a origem de toda criação. Pela consciência tudo é, pela inconsciência nada é. Consciência é luz, consciência é vida.

11 Purusha: a alma consciente, o elemento divino no tornar-se

12 Ādhāra: receptáculo; o sistema abrangente composto de 5 invólucros, dos princípios que constituem o físico, o vital, o mental, o supramental e o ser espiritual.

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A consciência original é una, indivisível, no seu mais elevado potencial. Mas quando se desloca e fica dividida, isto é, individualizada, torna-se ao mesmo tempo difratada e reduzida ao mínimo, como os reflexos num espelho áspero. O que normalmente entendemos por consciência é este seu grau diminuído no indivíduo. Mas apesar de diminuída e difratada em muitas formas e modos, a consciência básica é ainda a consciência divina que está ali por trás e na origem de todas as formulações parciais. É através deste cerne da Presença Divina — que nada mais é que o psíquico — que o indivíduo mantém e desenvolve seu contato com o Divino, cresce dentro da plenitude da divina consciência, mesmo como uma incorporação individual e terrena.

A HISTÓRIA DA CRIAÇÃO

A consciência é a fonte e a base da criação. Mesmo o objeto mais material, aparentemente inconsciente, a pedra, por exemplo, tem inerente em si, uma vibração de consciência. Onde não existe consciência alguma, é o Inconsciente. Se alguma vez você descer ao Inconsciente, quer dizer, mais abaixo da escala da pedra inanimada, saberá a diferença. O abismo entre a pedra e o Inconsciente é muito maior, na verdade, do que entre a pedra e o homem. Porque é uma cons-ciência secreta que liga o homem à pedra, porém mais além, existe um hiato, alguma coisa intransponível. O Inconsciente é o Vazio, o zero absoluto (Inane — Sri Aurobindo menciona-o em Savitri): não é substância, é pura negação. A Consciência está por trás do universo material: sem esta Consciência não have-ria a maravilhosa organização que é encontrada dentro da partícula material do átomo. O Inconsciente é preexistente à criação material.

A Realidade indivisível una e sua consciência pura: esta é a origem. Esta Consciência Suprema escolheu objetivar-se, pôr-se em cena para Si mesma, tes-temunhar-se no jogo — o Upanishad diz: o Uno desejava ter um segundo, um companheiro para si mesmo (sa dwitīyam aichhat). Este poder de auto-objetivação é um livre arbítrio dado à consciência para mover-se fora de seu estado unificado original e mover-se amplamente em direção contrária, à von-tade. Assim, o Supremo viu-se a si mesmo como seu próprio poder de automani-festação, e isto é a Mãe-Consciência, Adya Shakti, Aditi — a consciência-poder, que outra vez no seu impulso criativo de ir mais além, expressou-se nas primei-ras quatro principais Emanações (Maheshwari, Mahakali, Mahalakshmi e Maha-saraswati)13. Mas este impulso livre, livre de separar-se e continuar um movi-

13 Maheshwari – sabedoria; Mahakali – força e energia; Mahalakshmi – beleza e harmonia; Mahasaraswati – ordem e perfeição.

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A HISTÓRIA DA CRIAÇÃO 51

mento independente de auto-expressão e evolução, precipitou-se imediatamen-te, quase como consequência lógica de sua carreira de livre escolha, para dentro da Negação, da Nulidade que é a inconsciência. Assim, contra o Supremo, isto é, contra a Divina Consciência, colocou-se a completa Inconsciência: a Luz desapa-receu na absoluta Escuridão. Este foi o resultado da auto-escolha na consciência, mas o fim foi o verdadeiro oposto de consciência.

Era um silêncio de morte, mais silencioso que a Morte e mais morto que o Silêncio mesmo. E era completo o abandono, e total o desespero. A Divina Cons-ciência — Aditi — viu a terrível linha de destino que a liberdade tinha tomado e onde tinha acabado: ela não pode suportar isto por mais tempo e emitiu um gri-to pedindo socorro, por ajuda. E a resposta veio imediatamente, um raio foi dis-parado para baixo pela Única Consciência Suprema e entrou no ventre da Inconsciência. Veja! O milagre, a Matéria nasceu, a primeira criação, a primeira manifestação da Graça Suprema. A Matéria contém em si a centelha da cons-ciência que deve crescer e desabrochar, brilhar cada vez mais dentro da escuri-dão envolvente da Inconsciência, iluminando-a cada vez mais longe, empurran-do suas fronteiras sempre para trás e mais além.

O nascimento da Matéria coincidiu com uma outra descida da Suprema Consciência; é uma descida em estágios gradativos ligando o mais alto ao mais baixo, através de formações intermediárias: elas são formadas de partes que se encaixam umas nas outras dentro da Matéria para que a Matéria possa abrigá-la e expressá-la gradualmente através de sua consciência inerente em desenvolvi-mento, até que o mais alto seja revelado e corporificado aqui, como é sempre autorevelado no mais alto.

Na descida gradativa, na hierarquia de planos e níveis, apareceram forças e seres também próprios de cada domínio. Os mais antigos, os primeiros entre eles são os Asuras, melhor, o Asuras original — o primeiro quaternário (algum vestígio deles parecia subsistir na lenda grega de Chronos e sua descendência). Pois eles corporificam os poderes de divisão, de Inconsciência: eles são a Afir-mação da Negação. Contra os Asuras vieram e classificaram-se na primeira linha de divisão, de um lado da descida da Luz — os primeiros deuses, os principais poderes e personalidades da Divina Consciência. A batalha dos deuses e Titãs pela posse da terra tem continuado desde então. O fim virá um dia. Significará a dissolução das forças da Negação, pelo menos dentro da esfera terrestre, e o estabelecimento nela do reino da Luz.

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A TERRA, UM SÍMBOLO

A terra é o centro do universo material. Foi criada para concentrar a força que vai transformar a Matéria. É o símbolo da potencialidade divina na Matéria. Como dissemos, a terra foi criada através da direta intervenção da Consciência Divina: é apenas na terra que existe e pode haver um contato direto com o Divi-no. A terra absorve, desenvolve e irradia a luz divina; sua irradiação espalha-se pelo espaço e estende-se por onde quer que exista Matéria. O Universo material partilha, até certo ponto, da dádiva que a terra carrega — a luz e a harmonia da Divina Consciência. Mas é somente na Terra que existe o desabrochar pleno e final desta consciência.

O ser psíquico é encontrado unicamente na terra porque é produto da terra: é o toque do Divino sobre a Matéria. O ser psíquico é filho da Terra: nasce e cresce na Terra, não é nativo de nenhum outro lugar. Contudo, quando se desenvolve suficientemente e torna-se uma individualidade adulta, pode ir a outros domínios físicos, como visitar planetas, por exemplo.

TOTAL TRANSFORMAÇÃO EXIGE TOTAL REJEIÇÃO

Para cada lado positivo do "Sadhana"14 deve existir também um lado negati-vo. A Realização ou experiência deve ser acompanhada pela rejeição das coisas que se lhe opõem. As pessoas se admiram que uma experiência desapareça tão depressa ou que não se repita facilmente, ou então, que uma situação feliz não continue por mais tempo, mas seja seguida quase que inevitavelmente por uma condição de desânimo.

A razão é muito simples. A experiência ou realização não é total, quer dizer, pertence apenas a uma parte da natureza e não é partilhada pelas outras. O "Sadhak"15 não é feito de uma só peça: o todo de sua natureza não é trabalhado na mesma intensidade e amplitude, não é igualmente responsivo em todos os lugares. Assim, quando o ser psíquico traz à frente uma experiência e a cons-ciência interior está cheia de luz e energia e alegria e fé, mesmo então, no fundo ou do lado, se você estiver vigilante e observar cuidadosamente, verá que a mente, a mente externa, tem suas reservas ou continua a agir do modo costu-meiro. Olha de soslaio para a experiência, critica ou duvida, ou tenta entendê-la ou explicá-la em seus termos, confinando-a à sua moldura de compreensão. Ou

14 Sadhana – disciplina espiritual.

15 Sadhak – aquele que pratica “Sadhana”.

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então, o vital vem à tona e tenta aprisionar a experiência e utilizá-la para seus próprios fins: é apreciada como uma comida saborosa, feita para servir à sua ambição ou vaidade, algum impulso egoísta, mais baixo e ignorante. Ou ainda, o físico, a consciência do corpo não pode de modo algum participar da experiên-cia, permanece indiferente, apática, inerte, sem impulso ou entusiasmo para por em prática a experiência de sua consciência interior. Qualquer desses empeci-lhos ou dessas tendências contrárias são suficientes para prejudicar e diminuir e até mesmo apagar a experiência. E, geralmente, todos três estão lá, afinal, com-binando-se e empenhando-se para estragar tudo.

O remédio é voltar-se para dentro e apoiar-se no ponto de luz que há na consciência, o clarão ou a aspiração que pertence ao ser interior mais elevado. Isso deve ser usado como um facho, como um bastão para sustentá-lo e guiá-lo nos seus períodos de escuridão e vacilação. Esse raio de luz ardente deveria ser dirigido sobre essas partes que cerceiam com sua obscuridade e inconsciência, dúvida e arrogância, a realização que vem, o progresso no caminho. Isso deve ser feito com firmeza, vigilância e perseverança. A mistura tem que ser selecio-nada, a escória mantida de um lado, e o elemento puro do outro: as impurezas têm que ser colocadas sob a luz-chama para se derreter, queimar-se e ser elimi-nadas. E isso requer uma sinceridade ardente, pois é o combustível que mantém o fogo em chamas.

E sinceridade exige frequentemente um lidar severo consigo mesmo; envol-ve aceitar uma inconveniência, infringindo mesmo uma pressão dolorosa. Deve-se estar preparado para essa reviravolta, deve-se mesmo, às vezes, recebê-la bem. A parte que está de má vontade ou refratária tem que sentir a torcedura, se for para ser purificada e corrigida.

De fato, a experiência da alegria no próprio processo de sofrimento é uma experiência comum ao santo e ao mártir. Conhecemos exemplos incontáveis onde a tortura feroz da carne foi afogada, superada no êxtase da aspiração inte-rior; o entusiasmo vital extraído das chamas interiores espalha-se, corre através dos nervos e tecidos com tal energia e ímpeto que efetivamente bloqueia a rea-ção invasora da dor. É uma disciplina que tem seu valor mesmo para o Sadhak do caminho ensolarado.

O INDIVÍDUO E O COLETIVO

Um Sadhana integral não pode ser confinado ao indivíduo apenas; um ele-mento da coletividade deve entrar nele. Um indivíduo não é, de modo algum, um ser isolado. Existem, é claro, escolas de Yoga e filosofia que procuram isolá-

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lo, considerá-lo como uma entidade circundada por sua própria consciência; na verdade, estas escolas classificam os indivíduos como um todo distinto e sepa-rado, cada qual um círculo fechado ou esfera, mal podendo tocar-se, mas nunca interpenetra-se ou intercomunicar-se. Cada um é como uma ilha solitária, todas juntas formando o vasto arquipélago do universo. Esta é uma posição, não há dúvida, que pode ser adquirida por uma espécie de disciplina de consciência, apesar de não atingir uma grande perfeição; mas não é um equilíbrio natural ou necessário. Normalmente, os indivíduos fundem-se uns nos outros e formam uma trama de dar e receber. Um desejo, um impulso, mesmo um pensamento que surge em você, sai, ultrapassa-o e se espalha à volta e vai até mesmo ao limite extremo da terra, como uma onda hertziana. Repito, qualquer movimen-to, em qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, alcançá-lo-á, penetrá-lo-á e provocará em você uma vibração semelhante, mesmo que não possa reconhe-cê-la mas a considere como algo que lhe pertença exclusivamente. Você emite vibrações para o mundo e o mundo emite vibrações para você. A vida individual é o campo de confluência destas forças de saída e entrada. É precisamente para evitar este círculo ou ciclo de vibrações-mundo que os antigos Yogues costuma-vam deixar o mundo, afastar-se da sociedade, retirar-se para o topo das monta-nhas, dentro da floresta virgem, onde esperavam encontrar-se sozinhos e dis-tantes, para ser um só com o Único Eu. Esta é uma saída, mas não a única ou melhor solução. Não é a melhor solução porque, apesar de aparentemente sozi-nho no topo da colina ou numa cripta deserta ou no seio da floresta, carregamos sempre dentro de nós um mundo inteiro, a natureza normal com todos seus ins-tintos e impulsos, reações, memórias e esperanças; você decepa o exterior, foge para longe dele, mas, e quanto ao exterior que está dentro de você? O gosto por uma coisa gostosa não desaparece com a remoção do objeto. Em segundo lugar, tal solução individual, mesmo que fosse possível, seria ainda um recurso pura-mente pessoal e, em última análise, egoísta.

É por isso que Buda recusou-se a entrar definitivamente no Nirvana e reti-rou-se do isolamento, para trabalhar entre os homens. Na verdade, a solução real está em outro lugar. Não é retirar-se ou fugir, mas achar dentro do campo de ação, aqui, um centro, um foco de consciência que não seja controlado pelas forças exteriores, mas que possa controlá-las, que não seja colorido por elas, mas que possa emprestar-lhes sua própria luminosidade. Isto é a alma ou o cen-tro psíquico.

E este centro não é uma entidade isolada em sua natureza; é como se fosse um centro universal, por assim dizer, que se liga indissoluvelmente, em um sen-tido secreto de identidade, com todos os outros centros. Porque este eu é ape-nas um dos seus, através do qual o Único Eu multiplicou-se em uma auto-

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COMO ESPERAR 55

objetivação variada. A luz que brilha aqui, o fogo que arde aqui e o deleite que flui aqui, ilumina, purifica e revitaliza não apenas o indivíduo no qual mora, mas espalha-se amplamente à volta e estende-se a outros indivíduos com os quais vive em identidade espiritual.

COMO ESPERAR

"Se você souber esperar, ganhará tempo". Geralmente, quando você está para fazer uma coisa, seu impulso é correr para ela e apressá-la. Entre a ideia e a execução, você não deixa nenhum intervalo, não faz uma pausa para olhar à vol-ta, examinar as condições e circunstâncias, pensar na melhor forma de trabalhar em direção ao objetivo. A pressa resulta em mau êxito, muito frequentemente em malogro total. Você tem que começar tudo de novo. Pode ter até mesmo de recomeçar várias vezes se não aprender a lição dada. Evidentemente, você per-de tempo, perde energia e perde seu sucesso.

Em vez disso, o que deve fazer antes de realmente iniciar seu trabalho, não é saltar sobre ele, mas compreender o seu significado e o que ele envolve, ter diante do olho da mente uma clara configuração ou padrão da coisa a ser empreendida. Não se guiar por uma noção vaga e indefinida sobre ela, algo que tomará forma, que cuidará de si mesmo enquanto você prossegue. Deve ter uma nítida concepção do seu trabalho e também descobrir os meios e modos exatos para executá-lo e ter à mão os melhores implementos. Somente quando você estiver completamente armado com o equipamento necessário, é que ele pode estar certo do sucesso, sem desperdício de tempo ou de energia.

E ainda assim existe um tempo, um tempo apropriado para cada coisa. Uma coisa não pode ser feita a qualquer tempo, tem sua própria hora marcada. Você não pode ter sucesso antes da hora certa, mesmo que tente cem vezes. Mas quando o tempo está maduro, como parece fácil empreender algo! No que con-siste esta maturidade do tempo, quais são os sinais da hora propícia? Isto ocorre quando você está na posse completa dos instrumentos corretos e quando a dis-posição das circunstâncias é tal que ela concorre para ajudar e executar, e não para prejudicar e obstruir. Mas como descobrir ou reconhecer quando essas condições estão disponíveis? Não é através de sua mente ou raciocínio externo. Você deve ter a intuição, uma percepção instintiva da situação. A indicação sempre existe no próprio equilíbrio de sua consciência. Quer dizer, quando ela está repleta de grande calma, de fé e confiança e de concentração luminosa.

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FADIGA E TRABALHO

Diz-se que a fadiga vem do excesso de trabalho. Consequentemente, a cura da fadiga é o descanso, quer dizer, não fazer nada. Mas a verdade é que mais frequentemente a fadiga é devida, não ao excesso de trabalho, mas à falta dele, ou melhor, à preguiça ou tédio. A fadiga não deveria ocorrer tão depressa ou tão facilmente, se você soubesse como fazer o trabalho. Se estiver interessado em seu trabalho, você pode continuá-lo por muito tempo sem sentir fadiga. E, precisamente, um dos meios para se recuperar da fadiga, é não se sentar e cair em apatia e tamas16 mas assumir um trabalho que desperte seu interesse. Tra-balho feito com alegria e entusiasmo calmo é tônico. É descanso dinâmico. Tra-balho feito sem interesse, como uma espécie de dever e obrigação, naturalmen-te o cansará logo. Assim, o remédio para a fadiga é manter o interesse desperto. Mas há um outro mistério. O interesse não depende do trabalho: qualquer tra-balho pode tornar-se interessante, até mesmo a um grau extremo. Não há tra-balho que por si só seja monótono, insípido e desinteressante. Tudo depende do valor que você lhe dá e compete-lhe torná-lo tão atraente como um romance ou tão significante quanto um símbolo.

Como fazê-lo? Como achar interesse em qualquer coisa ou em tudo? Não há um trabalho que esteja de acordo com sua natureza, adaptado a seu caráter e à sua capacidade? E não existem trabalhos que vão contra sua natureza e que estão fora de seu alcance e de sua competência?

A questão não diz respeito a seu alcance e sua capacidade. Tudo depende de sua atitude, da consciência com que você se acerca de um trabalho, especial-mente quando você é um sadhak. Quando um trabalho aparece ou quando você tem que fazê-lo, deve assumi-lo como algo que valha a pena ser feito. Seja qual for o valor que lhe é dado normalmente ou que você próprio lhe dá, não deveria ser negligenciado ou meramente tolerado, mas ser bem recebido e você deveria dedicar-se a ele com a máxima escrupulosidade. Mesmo que seja algo insignifi-cante como, por exemplo, um trabalho doméstico, não o considere vil ou abaixo de sua dignidade. Assim que você começar a fazer uma coisa no espírito certo, descobrirá que ela se torna extraordinariamente interessante. Tente trazer per-feição, mesmo para aquele pouco de insignificância. Faça-o de boa vontade, mesmo se for esfregar o chão, dizendo para si mesmo: "Devo fazê-lo o melhor possível, quer dizer, poderei fazê-lo até mesmo melhor que um empregado. Farei com que o chão pareça realmente em ordem, limpo e bonito". Este é o

16 Tamas: inércia, incapacidade, obscuridade.

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FADIGA E TRABALHO 57

ponto crucial do problema. Você deveria exibir o melhor de si e colocá-lo em seu trabalho. Em outras palavras, o trabalho tornar-se-ia um instrumento de pro-gresso. A boa vontade, a atenção, a concentração, o autoesquecimento e o con-trole de si, sobre seus órgãos e nervos, (quanto menor o trabalho, tanto mais detalhado o controle adquirido) tudo que seja necessário para fazer um trabalho perfeito, com o máximo de perfeição possível, são elementos trazidos à tona e que contribuem para torná-lo uma pessoa melhor. Na verdade, um trabalho pelo qual você não tenha inclinações preferenciais, ao qual não esteja emocio-nalmente ligado, mesmo normalmente indiferente, pode ser de especial ajuda, porque, então, você será capaz de fazê-lo com menos perturbação nervosa, com maior desapego e desinteresse.

O homem geralmente escolhe seu trabalho ou é obrigado a escolhê-lo por uma preferência vital, um preconceito ou ideia de que seja a espécie de trabalho no qual possa brilhar ou ter sucesso. Esta vaidade egoísta ou este oportunismo podem ser necessários ou inevitáveis na vida comum. Mas quando se deseja ir além da vida comum e aspirar pela vida verdadeira, este apego e esta escolha pessoal tornam-se mais um impedimento do que um auxílio para progredir em direção ao caminho da vida verdadeira. A atitude yóguica em relação ao traba-lho é, pois, aquela de desapego absoluto, de não fazer nenhuma escolha, mas de aceitar e fazer qualquer coisa que lhe seja dada, qualquer coisa que lhe venha no curso normal de sua vida e de fazê-la com máxima perfeição possível. É desta maneira, e apenas assim, que todo trabalho se torna extremamente interessante e toda vida um milagre de deleite.

Contudo, isso não quer dizer que não haja um trabalho que lhe seja ineren-te, para o qual você não tenha uma aptidão especial, no qual e através do qual sua alma, o Divino, possa expressar-se plena e completamente, de um modo especial. Mas qual é esse trabalho? O kartavyam karma — o trabalho que se tem obrigação de fazer, derivado de seu swadharma — sua autonatureza? Evi-dentemente não é aquele de sua natureza superficial que a mente escolhe, que o vital prefere, e o corpo acha conveniente. Para encontrar seu verdadeiro tra-balho ou o trabalho de sua alma, você deve passar por uma disciplina considerá-vel e por um treinamento rigoroso.

Você não pode desprezar este ou aquele trabalho ao acaso, declarando que não são adequados a você, ou pegar qualquer coisa que sua imaginação favore-ça. Na verdade, não pode desprezar nada, desperdiçar nada, simplesmente por-que seja desagradável ou não suficientemente agradável. Quanto mais violen-tamente tentar afastar uma coisa de si, tanto mais ela se apegará a você. Em vez disso, você deve aprender a deixar uma coisa cair por si mesma, tranquila,

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automática e definitivamente. Esta é a única maneira de se livrar de algo indese-jável ou desnecessário. Antes de mais nada, seja sincero consigo mesmo, quer dizer, tente seguir a luz e a aspiração mais altas em você, a cada momento, e seja fiel a elas e apenas a elas. Nunca se permita ser abalado ou tocado por sim-patias ou antipatias de sua mente ou de seu coração ou de seu corpo. Faça mesmo o que discorde da natureza de seu corpo ou de seu coração ou de sua mente. Se lhe for apresentado como a coisa a ser feita, faça-a tão calma, desa-paixonada e perfeitamente quanto possível e deixe o resto a seu destino mais alto. Se você pertencer todo à sua alma, se for obediente ao Divino somente, então, enquanto esta consciência e este equilíbrio cresceram mais nítidos e fir-mes, você verá que coisas não consoantes com elas abandoná-lo-ão tranquila-mente, sem qualquer esforço ou reação de sua parte, como as folhas de outono caem de galhos que não mais lhes fornecem seiva. Seu trabalho será mudado, suas circunstâncias serão mudadas, seu relacionamento com as coisas e pessoas será automaticamente e inevitavelmente mudado, de acordo com a necessidade e exigência de sua consciência-alma.

OS PASSOS DA ALMA

O indivíduo humano é um ser muito complexo; ele é composto de inúmeros elementos, cada um sendo uma entidade independente, quase com uma perso-nalidade. Não apenas isso, os mais contraditórios elementos convivem juntos. Se houver uma qualidade particular ou uma capacidade presente, a própria opo-sição dela, como se fosse para anulá-la, será também encontrada a seu lado, envolvendo-a. Já vi um homem bravo, corajoso e heroico ao extremo, que não recuava diante de perigo algum, enfrentar corajosamente o perigo máximo, na verdade, o mais bravo dos bravos. E, no entanto, vi esse mesmo homem aco-vardado em terror ignóbil, como o último dos poltrões, em face a certas situa-ções. Vi o homem mais generoso gastando à larga e liberalmente, não contando qualquer despesa ou sacrifício, sem o menor cuidado ou reserva; a mesma pes-soa descobri ser também o mais vil dos avarentos em outras circunstâncias. Vi ainda a pessoa mais inteligente, de mente clara, cheia de luz e entendimento, compreendendo facilmente a lógica e a implicação de um tópico e, contudo, a vi evidenciando a estupidez extrema, de que mesmo o homem comum, sem edu-cação ou inteligência, seria incapaz. Estes não são exemplos teóricos, mas cruzei realmente com tais pessoas na vida.

A complexidade apresenta-se não apenas em extensão, mas também em profundidade. O homem não vive em um plano único, mas em muitos planos ao mesmo tempo. Existe uma escala de gradação na consciência humana: quanto mais alto alguém se eleva na escala, tanto maior é o número de elementos ou

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OS PASSOS DA ALMA 59

personalidades que ele possui. Quer ele viva principalmente no físico ou no vital, ou no plano mental ou em qualquer seção particular destes planos, ou nos pla-nos acima ou além, de acordo com isso existirão diferenças na constituição ou construção psicofísica da personalidade individual. Quanto mais alto se eleva, tanto mais rica é a personalidade, porque ela vive não apenas no seu próprio nível normal, bem como em todos os que estão abaixo, aos quais transcendeu. O homem completo ou integral, dizem alguns ocultistas, possui 365 personali-dades; na verdade podem ser muito mais (os Vedas falam de 3’033’033’000 deuses que podem estar alojados no veículo humano — os três básicos sendo evidentemente o status triplo ou o mundo do Corpo, Vida e Mente).

Qual o significado desta autocontradição, desta divisão no homem? Para compreender isto devemos conhecer e lembrar que cada pessoa representa uma certa capacidade ou qualidade, uma realização particular a ser corporifica-da. Qual a melhor maneira de se conseguir isto? Qual é o modo pelo qual se pode adquirir uma qualidade na sua maior perfeição, sua maior pureza e no mais alto grau? E colocando-se uma oposição a ela. É assim que um poder é aumentado e fortalecido — lutando contra e conquistando tudo que o enfra-quece e o contradiz. As deficiências a respeito de uma qualidade particular mos-tram-lhe onde você deve consertar e reforçar e qual o modo de melhorá-la a fim de torná-la rigorosamente perfeita. É o martelo que malha o ferro frágil e mole, para transformá-lo em aço duro. A discordância é útil e necessária, para ser utili-zada a fim de se conseguir uma harmonia mais elevada. Há o segredo do auto-conflito no homem. Você é mais fraco exatamente neste elemento que está des-tinado a ser a sua maior conquista.

Cada homem tem, então, uma missão a cumprir, um papel a desempenhar no universo; uma parte que lhe foi dada para aprender e ocupar no Propósito cósmico, que somente ele é capaz de executar e nenhum outro. Isso ele tem que aprender e conquistar através de experiências-vida, quer dizer, não em uma vida única, mas em vida após vida. De fato, este é o significado da cadeia de vidas que o indivíduo tem que atravessar, isto é, para adquirir experiências e recolher delas o fio da meada de qualidades e atributos, poderes e capacidades para o modelo de vida que ele tem que tecer. Bem, o ser mais profundo, a ver-dadeira personalidade, a consciência central do indivíduo que evolui, é o seu ser psíquico. É como se fosse uma minúscula partícula de luz situada muito, muito atrás das experiências, nas pessoas normais. Em almas adultas, a consciência psíquica tem uma luz acrescida, aumentada em intensidade, volume e riqueza. Assim, existem almas velhas e novas. Velhas e antigas são aquelas que alcança-ram ou estão para alcançar plenitude da perfeição; elas vieram através de um longo passado de vidas incontáveis e desenvolveram uma personalidade mais

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complexa e, contudo, mais integrada. Almas novas são aquelas que são recém-emergidas ou estão emergindo da mera existência físico-vital; estas são como organismos simples, feitas de poucos componentes, relacionando-se geralmente com a vida corporal, com apenas um mínimo do mental. É a alma, entretanto, que cresce através de experiências e é a alma que constrói e enriquece a perso-nalidade. Qualquer porção da vida exterior, qualquer elemento na mente ou no vital ou no corpo que entrar em contato com a consciência psíquica, quer dizer, que for capaz de sofrer sua influência, é absorvido e lá abrigado: ele permanece no ser psíquico como sua memória viva e aquisição permanente. São esses ele-mentos que formam a base, o campo de trabalho sobre o qual a estrutura de personalidade verdadeira e integral é levantada.

A primeira coisa, então, a fazer é descobrir o que você quer realizar, qual o papel que você tem que desempenhar, sua missão particular e a capacidade ou qualidade que você tem que expressar. Você tem que descobrir isto e também o que se lhes opõem ou não permite seu florescimento ou que cheguem a plena manifestação. Em outras palavras, você tem que se conhecer, reconhecer sua alma ou ser psíquico.

Para isso você tem que ser absolutamente sincero e imparcial. Você deve se observar como se estivesse observando e criticando uma terceira pessoa. Você não deve começar com a ideia de que isso é a missão de sua vida, de que essa é sua capacidade particular, que vai fazer isto ou tem que fazer aquilo, que nisso está seu talento ou gênio, etc. Isto levá-lo-á para longe de sua verdadeira trilha. Não é o gostar ou desgostar de seu exterior, sua escolha mental ou vital ou física que determina a verdadeira linha de seu crescimento. Nem deveria você assu-mir a atitude oposta e dizer: "Eu não sirvo para nada neste assunto, sou inútil naquele outro, isso não é para mim". Nem vaidade, arrogância, autodepreciação ou falsa modéstia deveriam movê-lo. Como disse, você deve ser absolutamente imparcial e despreocupado. Você deveria ser como um espelho que reflete a verdade e não julga.

Se você for capaz de conservar essa atitude, se tiver esta tranquilidade e calma confiança no seu ser e esperar pelo que lhe possa ser revelado, então é provável que alguma coisa aconteça. É como se você estivesse em uma floresta escura e silenciosa. Você vê à sua frente um lençol de água escura e parada, apenas visível, um pedaço de charco mergulhado na escuridão, sobre o qual incide um raio de luar e na luz fria e tênue emerge a superfície líquida e calma. Assim é como a sua secreta verdade de ser aparecer-lhe-á e se lhe apresentará ao primeiro contato com ela; ali você verá gradualmente refletidas as verdadei-

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A EXPANSÃO DA CONSCIÊNCIA DO CORPO 61

ras qualidades de seu ser, os vestígios de sua personalidade divina, o que você realmente é e o que tenciona ser.

Aquele que assim se conheceu e se possuiu, conquistando toda oposição dentro de si, por causa disso, estendeu-se a si mesmo e à sua conquista, tornan-do mais fácil para outros alcançar conquista igual ou semelhante. Estes são os pioneiros ou a elite que, por sua campanha vitoriosa dentro de si, ajudam outros em direção à vitória deles.

A EXPANSÃO DA CONSCIÊNCIA DO CORPO

O campo de nossa atividade física é muito limitado. Se você examiná-lo mais de perto, descobrirá que é, na verdade, extremamente estreito e nossas capaci-dades estão confinadas dentro de um pequeno círculo. Somos limitados pelo contorno de nosso corpo material. Não posso, por exemplo, estar sentada em meu quarto e ao mesmo tempo fazer ginástica no pátio. Se você quiser fazer uma coisa, não pode fazer outra. Se você estiver num lugar, não pode estar em outro simultaneamente. Como seria conveniente se, enquanto estivesse escre-vendo à escrivaninha, pudesse pegar um livro para consulta diretamente da pra-teleira distante, sem mover-me ou pedir ajuda de alguém! Contudo, é a coisa assim tão impossível? Sabemos, por exemplo, das coisas extraordinárias — pelo menos estranhas — que acontecem nas chamadas "sessões espíritas", coisas que não podem ser explicadas pelo funcionamento normal dos sentidos físicos e que o são pela intervenção do mundo do espírito. Na realidade, entretanto, espíritos ou fantasmas têm, em geral, muito pouco a ver com isso. Não é a ação de seres desencarnados, mas de energias humanas normais — especialmente o vital ou energia-vida — libertas do controle do corpo e trabalhando independen-temente. Um exemplo, um fato verdadeiro que aconteceu, ilustrará melhor o que quero dizer.

Um jovem, em Paris, um funcionário de uma estação ferroviária, costumava receber de tempos em tempos, a visita de sua noiva, acompanhada da mãe. Um dia ele aguardava-as e esperava pela hora do trem; elas viriam de trem. Enquan-to estava ocupado com o trabalho à sua mesa, perto da hora marcada, as pes-soas à sua volta viram-no de repente, inclinar a cabeça para a frente, dar um gri-to e depois apoiá-la sobre a mesa; ficou inconsciente. Nesse entretempo acon-teceu um terrível desastre com o trem em que as duas mulheres viajavam. O trem ficou estraçalhado e todos os passageiros ou morreram ou ficaram grave-mente feridos. Mas, curioso dizer, a jovem, a noiva, foi encontrada viva e quase ilesa, no meio dos destroços, dentro de uma espécie de cobertura feita por uma trave caída que estava atravessada sobre ela. Puxada para fora, apresentava

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apenas algumas escoriações no corpo. Agora, vejamos a versão do jovem sobre o acontecimento. Ele disse que, enquanto trabalhava à mesa, de repente ouviu a voz de sua noiva gritando por socorro e viu, num lampejo, por assim dizer, a situação em que ela se encontrava. Precipitou-se para fora, não fisicamente, é verdade, correu e jogou-se sobre o corpo da noiva para resguardá-la. Era a única coisa que poderia fazer para protegê-la, como de fato aconteceu. Na realidade, ele não saiu fora do corpo, porque se o tivesse feito não teria sido nenhuma uti-lidade. O que saiu dele foi seu corpo vital, uma formação daquela energia-vida que está mais próxima ao corpo e que é tão concreta quanto a energia física, mas muito mais poderosa e efetiva. Este poder vital, concentrado e projetado para fora, agiu como um verdadeiro escudo sobre a mulher. O próprio jovem, curioso dizer, trazia sinais de escoriações na cabeça, como se um enorme peso tivesse caído sobre ela. Um impacto forte sobre o vital pode e deixa cicatrizes sobre o corpo material. Não é um fenômeno incomum. Dizem que muitos san-tos cristãos (São Francisco de Assis, por exemplo) apresentavam no corpo as marcas, os estigmas da crucificação do corpo de Cristo. Ramakrishna também, dizem, uma vez mostrou marcas de escoriações nas costas quando um menino foi chicoteado na sua presença.

Tudo isso significa que o corpo físico não é o único meio de ação do homem no mundo físico. O físico estende-se e expande-se em modos de atividade cada vez mais sutis e, contudo, efetivos por essa mesma razão. Por trás do físico está o físico sutil, atrás do qual está o físico vital e as várias gradações do vital. Na verdade, o vital ou energia-vida, como um todo é o dinamismo real de todas as nossas atividades físicas e, se ele usualmente age através dos instrumentos do corpo, pode agir independentemente deles também. De modo geral e frequen-temente, ele age deste modo, só que não somos suficientemente conscientes ou observadores para notar. Uma concentração consciente da energia vital diri-gida sobre um objeto material pode lidar com ele com a efetividade da energia material. Quando necessita de condições físicas, ela as cria como a energia pro-tetora vital do jovem criou a disposição física dos objetos que formaram uma cobertura para a moça.

No caso presente, o fenômeno aconteceu automaticamente, sem nenhuma premeditação por parte das pessoas envolvidas. Porque a simpatia entre os dois era muito forte, outras considerações não entraram em jogo. Desnecessário dizer que, se desejamos obter um domínio consciente sobre este poder oculto, devemos nos submeter a uma longa e árdua disciplina. Mas, se difícil, a coisa não é impossível. Com relação a feitos físicos, por exemplo, um desenvolvimen-to determinado pode parecer, no momento, além de seu alcance; mas com prá-tica e perseverança, vontade obstinada e orientação sábia, você pode não ape-

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nas alcançar seu fim imediato, mas fazer muito mais. A história de muitos que quebraram recordes olímpicos comprova isso. Do mesmo modo, pode-se domi-nar as forças sutis, se se fizer a coisa honestamente e da maneira certa. É mais difícil — muito mais talvez — mas o caminho está aí, desde que a vontade tam-bém esteja.

O CORPO, O AGENTE OCULTO

O corpo tem uma individualidade própria. É uma formação organizada e age como um todo em cada uma de suas partes. O corpo humano é essa formação por excelência, pois é movido e controlado pela consciência que o protege ou o informa, que é sua orientadora, cuja vontade ele executa escrupulosamente.

O corpo é um epítome do mundo. Abriga em sua moldura o mundo inteiro, particularmente a terra — sendo a própria terra um epítome do mundo — numa escala em miniatura, o mikros reproduzindo todos os traços e caracteres do makros.

Sendo assim, um corpo totalmente consciente, governado e inspirado pela Consciência Suprema, vive e move-se no ritmo cósmico. Não somente registra em si os acontecimentos do mundo, mas também possui um poder ativo para controlar e até mesmo mudar esses acontecimentos por seu movimento indivi-dual. Podemos imaginar o corpo como se fosse uma espécie de mapa ou carta da terra. Cada lugar na terra é representado por um lugar específico, um certo grupo de células no corpo, por exemplo. Se a consciência que rege o corpo con-centrar-se sobre aquele ponto e induzir lá uma mudança, uma mudança corres-pondente pode resultar automaticamente, em escala maior, na parte e condi-ções da terra com a qual está ligado. Assim, sem sair ou mover-se, sem ser o "homem no local da cena" para saber as coisas "em primeira mão", pode-se, sentado em seu quarto, ligando uma chave, por assim dizer, num canto do cor-po, colocar em movimento um processo completo de acontecimentos numa região particular da terra. Através de uma redisposição consciente de umas poucas células no seu corpo, você pode produzir uma mudança desejada nas circunstâncias do mundo. Assim, o corpo é a sala de controle da consciência em relação aos acontecimentos na terra. Naturalmente, nem todo corpo pode fazê-lo, somente um corpo destinado e treinado para esse propósito.

Um corpo torna-se, desta forma, um instrumento, uma alavanca para pro-duzir mudanças e criações poderosas na terra. Esta concepção da potência ocul-ta do corpo é a base do ritual ou instituição do sacrifício, que era a feição carac-terística da sociedade de antigamente. Ifigênia foi oferecida em holocausto para

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evitar a ira dos deuses e trazer vitória aos gregos. Algumas vezes, um animal substituía a vítima humana e servia ao mesmo propósito e do mesmo modo. E num sentido mais elevado, realmente num sentido mais alto, um corpo pode sacrificar-se de tal modo — total e integralmente — para produzir uma reversão ou reavaliação integral correspondente no mundo físico. Um corpo humano que faz de si um holocausto, que se oferece no altar do Divino, não guardando nada para si, vivendo para o Divino apenas, chamando para dentro de si a vontade divina, traz também para a vida da terra uma presença e transformação divinas. Um total sacrifício físico resulta inevitavelmente numa total expressão e incor-poração do Divino ao mundo físico.

A REALIZAÇÃO INTEGRAL

Infindáveis são os caminhos para o Divino. Cada um, seguido até o fim com sinceridade, honestidade e persistência, leva ao mesmo alvo. Bem, se o fim fos-se unicamente alcançar as alturas supremas, o ponto além, o Deus transcenden-te, e estabelecer-se lá, qualquer linha seria inteiramente suficiente para esse propósito. E mesmo se diversas ou todas fossem experimentadas, como Ramak-rishna fez, isto seria apenas para provar o fato e encorajar a todos a palmilhar seu próprio caminho, e não ficar desencorajados se outros não o aprovarem ou mesmo o negarem. No máximo, seria uma experiência mais rica no sentido de que a mesma verdade fosse testada e apreciada de vários modos.

Mas tal não é o caráter do Yoga Integral ou Supramental. Este Yoga não visa dar um pontapé na escada da existência, uma vez que se esteja lá em cima, além. Procura integrar o Além e o Aqui-Embaixo, fazer do mundano uma expres-são e encorporamento do Espírito. Assim sendo, as tentativas de aproximação em direção ao Divino não são meras verdades provisórias, mas facetas de uma realidade total orgânica encarnando a consciência divina em uma vida divina.

Nos outros métodos que levam a uma fuga, você alcança um estado em que fica feliz e satisfeito, sente que atingiu o mais alto, o máximo que vale a pena alcançar e não necessita avançar ou procurar por nada mais. O yogue integral não fica preso a uma única experiência. Ver-se-á sempre fugindo do status já alcançado, não importa quão elevado seja, e explorando além. Mesmo que ten-te repetir uma experiência que tenha apreciado e considere válido repeti-la e tente os passos usuais para recobrá-la, poderá descobrir que, em vez da expe-riência desejada, foi-lhe dada uma completamente nova.

O problema para ele não é rejeitar ou minimizar qualquer experiência, ou apegar-se a alguma como a mais valiosa, mas abraçá-las todas e colocá-las jun-

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SEMPRE VERDE 65

tas, fazer delas uma síntese. Esta síntese é o verdadeiro caráter do Yoga Integral. E pode ser alcançada unicamente elevando-se além das experiências dadas para a síntese. Só um elevado equilíbrio de consciência pode encontrar o ponto de união entre os diferentes elementos e a função e o papel de cada um na harmo-nia composta. O status supra-mental é o centro sintético mais alto; aí, todas as experiências e realizações elevam-se até sua realidade original e verdadeira e acham sua perfeita expressão.

SEMPRE VERDE

Quando você tem uma experiência interior, sua tendência natural é repeti-la e repeti-la, seguir pelo mesmo caminho e do mesmo modo. Em meditação, por exemplo, você se abstrai dos contatos exteriores e entra num estado que se lhe tornou familiar, que o agradou e que considera suficientemente elevado, um equilíbrio recomendável de consciência. Assim, todas as vezes que se senta para meditar, automaticamente você segue a mesma trilha habitual, sem nenhum esforço, e lá permanece o tempo que lhe é conveniente. Evidentemente, a experiência tornou-se um hábito, isto é, mecânica e sem vida, mas você se tor-nou tão inconsciente que não o percebe. Isto significa que não há mais progres-so, que você se fechou numa caixa trancada, por assim dizer. E pode continuar a proceder deste modo durante a vida inteira, que não avançará um único passo; ao contrário, poderá até regredir.

O grande segredo do progresso — e também de uma permanente juventude — é sentir a cada momento que você está justamente começando sua vida e sua experiência de vida. Comece sempre de novo. Mesmo que você trilhe o mesmo caminho e pareça andar na mesma direção, pela centésima vez, você deve sentir como se fosse a primeira vez que empreendesse a jornada, como se fosse sua tentativa virgem em direção a uma nova descoberta. Esqueça-se de todas as ideias passadas, noções, experiências que se amontoam em sua mente; varra para sempre toda a poeira acumulada que obstrui seu cérebro. Torne sua cons-ciência limpa e clara como a de um bebê recém-nascido, tudo em linha reta, sem nenhuma das circunvoluções e rugas de um cérebro envelhecido. Você entrará em contato com o mundo e com as coisas em toda simplicidade e espontaneidade de uma consciência pura, e o mundo e as coisas sempre lhe apresentarão sua maravilha e beleza e verdade sem fim.

Todas as vezes que você se interiorizar para buscar equilíbrio, não procure por conhecimentos antigos, por experiências familiares, não carregue nas costas o fardo do passado, mas prossiga como se fosse uma trilha virgem, fazendo des-cobertas totalmente novas e abrindo perspectivas inesperadas a cada passo.

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Você poderá fazer até uma experiência com seu corpo físico, isto é, levar sua consciência física a partilhar também de sua aventura de descobertas sempre novas. Então você pode, por exemplo, esquecer seu hábito de comer ou mesmo andar, verdadeiramente esquecer e tentar aprender uma vez mais, assim como fez pela primeira vez quando criança. Você deve conquistar conscientemente uma capacidade do corpo, que se tenha tornado quase uma ação reflexa incons-ciente. É uma experiência maravilhosa e estimulante. Naturalmente você não pode repetir como frequência, ou levar muito longe uma experiência desta espécie, no plano físico. Mas pode relacionar-se livremente com sua vida e consciência interiores. Você pode fazer de sua mente e de seu vital uma lousa limpa, tanto quanto quiser, não apenas uma vez na vida, mas a cada momento. Que descobertas e novas aberturas lhe chegam continuamente, quando você constata as pressões exercidas pelo mundo exterior sobre sua consciência! Pode sempre livrar-se das vibrações costumeiras nos níveis normais de sua existência, o físico, o vital e o mental; e mesmo, ir além de sua formação psíquica e ser o amplo, o vasto, o ilimitado, o próprio Infinito, vazio de todo nome e forma. E assim, com essa consciência virgem, cair direto dentro do mundo de vida e for-ma materiais, dentro de seu corpo e reações corpóreas. O mundo entregar-se-á a você em sua pureza prístina, sua beleza e verdade originais, sempre luminosas e gloriosas. Esta experiência deve ser a maneira normal de seu viver, não sim-plesmente a culminância ou acme de seu ser, um status fixo e estagnado, mes-mo se for considerado o mais elevado, o summum bonum. É assim que você pode conservar-se, e ao mundo ao redor, sempre vivificado e jovem e novo.

Geralmente o pregador que fala a verdade e a transmite a seus ouvintes, só tem sucesso na primeira vez ou em algumas primeiras ocasiões, quando ele sen-te a verdade de sua verdade e é sincero quando a está transmitindo. Mas com o passar do tempo, sua verdade também se esvai, pois se torna estereotipada, um mero hábito. A experiência não é mais vivida, mas mecanicamente distribuída. Você é sincero unicamente quando a experiência é nova, louçã e viva; isso deve-ria ser sempre feito, a todo momento, de outro modo é letra morta, letra que destrói.

Esse é o segredo da vida espiritual e mesmo da vida normal. Para conservá-la sempre verde, você pode saber como derramar sobre ela um fluxo contínuo de nova seiva. Olhe para si mesmo, olhe para o mundo sempre com olhos reno-vados, nunca sobrecarregados ou obscurecidos pelos padrões que experiências e aquisições passadas recolheram. Desaprenda o passado, comece sempre do começo, como um principiante — cada momento, um impacto revigorado, uma nova revelação, uma abertura inesperada. Assim é que a vida permanece sem-pre jovem e sempre progressiva.

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UMA PÁGINA DE HISTÓRIA OCULTA

No começo da criação, quatro formações individuais — as primeiras perso-nalidades — fizeram seu aparecimento. Eram: 1) um Ser de Luz ou Consciência, 2) um Ser de Verdade ou Realidade, 3) um Ser de Amor ou Ananda e 4) um Ser de Vida. E a primeira lei da criação foi a liberdade de decisão. Estes seres eram manifestações dentro do movimento livre do Divino; eles próprios moviam-se livres, segundo sua vontade individualizada. Salientavam-se, como num ousado relevo, no cenário da Existência Divina. Pois originalmente, embora diferencia-dos entre si e o Divino, formavam contudo uma harmonia unificada e viviam e se moviam e tinham seu ser como se fossem membros diferentes do mesmo Corpo Divino. No princípio eles se salientaram, mas ainda ligados aparente e essencialmente à sua fonte e origem. Bem cedo, porém, desligaram-se do Divi-no, afastaram-se Dele, para longe, desvinculados, procurando realizar sua von-tade e destino individualizados. O Divino não impôs sua vontade ou forçou a estas individualidades que voltassem, porque frustraria o verdadeiro propósito da criação. Ele permitiu que estes seres independentes desfrutassem sua com-pleta independência, apesar de terem nascido dele e serem uma parte essencial e uma parcela de seu próprio ser. Partiram para uma viagem de aventura, cada um escolhendo sua própria linha de crescimento e realização. Os primeiros fru-tos, a inevitável reação de liberdade, foi precisamente, como foi dito, a separa-ção do Divino, cada um circundado por seu ego, limitado e confinado às suas próprias reservas de potência: individualismo significa limitação. Então, uma vez separados, a conexão com a fonte rompeu-se, quer dizer, na atividade aparente, no movimento dinâmico ou no tornar-se (não no ser essencial) e os Quatro Independentes degeneraram aos poucos em seus opostos: a Luz tornou-se Escu-ridão, isto é, a consciência em inconsciência, a Verdade tornou-se Falsidade, o Deleite tornou-se Dor e Sofrimento, e a Vida tornou-se Morte. Foi assim que os quatro princípios não divinos, os Poderes do Não Divino começaram a reinar e a moldar a criação material.

Dentro do coração desta Escuridão e Falsidade e Dor e Morte, uma semente foi plantada, um grão que é para ser o epítome e o símbolo da criação material e no qual e através do qual o Divino reclamará de volta todos os elementos extra-viados, os pródigos que retornarão para reconhecer e realizar o Divino. Era a Terra. E a terra, por sua vez, em seu labor em direção à Realização Divina, lan-çou fora de seu seio, um ser que outra vez simbolizaria e sintetizaria a terra e a criação material. Ele é o homem. Pois o homem veio com uma alma dentro de si, o Ser Psíquico, a Flama Divina, a centelha de consciência no meio da incons-ciência universal, uma miniatura da Luz-Verdade-Amor-Vida Divinas originais. Entrementes, para ajudar a evolução, para dar as mãos à alma aspirante no ser

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humano, foi criada, por causa da rebelião dos Primeiros Senhores (a Quaterni-dade Asúrica), uma segunda hierarquia de seres luminosos, os Devas, os deuses. (Alguma coisa desta história interior do mundo está representada na lenda Gre-ga da luta entre os Titãs e os Olimpienses). Estes deuses, contudo, sendo uma criação posterior, talvez por serem mais jovens e inexperientes, não podiam de imediato competir em pé de igualdade com seus antepassados mais fortes. É por isso que vemos nas lendas mitológicas, os deuses muitas vezes derrotados pelas mãos dos Asuras, Indra escondendo-se em baixo do mar, Zeus ameaçado frequentemente pela derrota e desastre. Era apenas a intervenção do Supremo (os Gregos chamavam a isto de Destino) que os salvava no fim e restaurava o equilíbrio.

Contudo, os Asuras mudaram de ideia a respeito do jogo e consentiram em usar sua liberdade a favor do Divino, para o cumprimento do Divino, quer dizer, concordaram em se converter. Então, aceitaram nascer como seres humanos ou neles, para assim poder entrar em contato com a alma humana — Psique — que é a única porta ou passagem para o Divino neste mundo material. Mas a ques-tão não era fácil; o processo não era direto. Pois, mesmo concordando em ser convertidos, mesmo aquecendo-se ao sol brilhante da psique humana, estes antepassados incorrigíveis não podiam esquecer ou desistir completamente de seus velhos hábitos e natureza. Eles agora queriam trabalhar para a Realização Divina, para engrandecer-se desse modo; consentiram em servir ao divino, para fazer o Divino servi-los, utilizar o Desígnio Divino, para seus próprios propósitos. Queriam ver a nova criação, segundo os desejos de seus próprios corações.

Foi assim que as coisas se tornaram difíceis sobre a terra e estão atrasando a consumação final que, entretanto, virá a seu tempo, quando a roda do Tempo ou do Destino tiver fechado seu círculo completo.

MUDANÇA DIRIGIDA

Nunca ficar preso às experiências do passado, nunca experimentar recuperar e ficar apegado ao conhecimento ou realização adquiridos, mesmo que possam parecer particularmente inestimáveis ou únicos. Este é o lema que deveria estar sempre presente diante de sua mente. Quando você tenta repetir o que disse uma vez, ou fez, ou experimentou, descobrirá logo que a coisa vai se tornando cada vez mais sem vida, mecânica, rotineira, e por conseguinte, completamente inútil. A alma desapareceu, o esqueleto continua. Você deve viver a palavra que profere no momento que a está proferindo; você deve viver a experiência que quer se lembrar ou expressar. Só assim a verdade se torna viva; só assim possui força e luz e ganha seu pleno valor.

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Na verdade, entretanto, não existem dois movimentos sucessivos que sejam os mesmos, quer em sua consciência ou no movimento do mundo. Mesmo que você tente séria e sinceramente, não poderá nunca trazer de volta uma coisa do passado como ela era ou como lhe aconteceu, quer dizer, não exatamente da mesma maneira. Porque você não é mais o mesmo, nem o mundo. O mundo é um fluxo contínuo, foi declarado muitas vezes, mas não é uma repetição ou recorrência contínua ou uma ordem meramente cíclica. Por outro lado, renova-ção constante é o verdadeiro caráter da mudança. A todo momento algo novo está descendo no cenário, algo que ali não estava, pulsa de repente. A Natureza exibe a cada passo alguma coisa que estava escondida ou latente nas suas pro-fundezas secretas, algo que é pingado de cima no seu movimento normal, algo imprevisto e inesperado. A marcha do tempo significa evolução, quer dizer, a adição de um novo fator aos fatores existentes, fazendo manifesto algo que era imanifesto "mrtam kancana bodhayanti," como diz o Rishi Védico. Mesmo que à aparente visão tudo pareça continuar o mesmo, contudo não é assim na reali-dade; sempre um novo elemento está sendo derramado dentro das circunstân-cias existentes, sempre uma centelha adicional ou influência entra no drama atual de forças. É a pressão acumulada de todas as variáveis que acarreta as grandes mudanças sobre a terra e na humanidade, e que são resumidas na pala-vra evolução — mudanças cosmológicas e psicológicas.

Você tem que aceitar este princípio de mudança e continuar, para ser uno com o espírito cósmico, e nunca ficar parado ou voltar atrás, mas olhar para frente e avançar. Ficar estagnado significa morrer e tornar-se fossilizado. Assim, se as coisas mudam continuamente, significa que as coisas podem mudar e devem ser mudadas. Só que se deve ver em que direção a mudança ocorre. Uma mudança pode ser, afinal, para melhor ou para pior. E você tem o poder, se esti-ver consciente e com a consciência certa, de dirigir a mudança ou mesmo iniciar uma que seja da ordem certa. Você já escalou um morro? Existem vários modos, caminhos e saídas que levam ao topo, alguns mais ou menos diretos, alguns em zigue zague, outros serpenteantes ou fazendo uma longa curva. Não importa, desde que olhe para cima e tenha o senso da direção para o cume, você poderá então escalar. Caso contrário, se tiver seu rosto virado para baixo ou olhar Para baixo, você se dirigirá para baixo, afastando-se do topo. Da mesma forma, as mudanças que ocorrem serão dirigidas de acordo com a direção de seu olhar. E existe apenas uma direção para onde você deve volver seu olhar: em direção ao cume, em direção ao objetivo mais elevado. E crescer consciente, crescer cada vez mais consciente, ser consciente de si, ser consciente do universo e ser cons-ciente do Divino que mora em você e permeia o mundo e assim manifestar o Divino na sua vida física e na vida física no mundo.

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O VALOR DA GINÁSTICA MENTAL OU OUTRA QUALQUER

A atividade intelectual é uma espécie de ginástica. Qual o valor da ginástica física? Desenvolver os músculos, torná-los fortes, flexíveis e ágeis. Mas simples-mente desenvolvê-los, fazê-los crescer tanto quanto possível ou ter prazer num mero corpo musculoso não é o ideal e antes frustra o verdadeiro objetivo da ginástica. O propósito é desenvolver, fortificar, modelar todos os membros do corpo e organizá-los e harmonizá-los num todo belo e capaz. Um determinado exercício não deve ser permitido pelo seu próprio valor: toda energia do corpo é voltada para isso apenas e toda atenção devotada a essa única coisa. Uma con-centração exclusiva sobre uma só atividade física não favorece a capacidade total do corpo. É para este fim, para a plenitude do potencial do corpo que a cul-tura dos membros do corpo deve ser dirigida. Da mesma forma, a cultura men-tal — o poder de pensar, raciocinar, argumentar — tem seu valor com relação à cultura total da mente e da consciência. Há regiões mais altas de consciência além do alcance do intelecto; e você deve parar toda atividade intelectual, fazer em sua mente um vazio total, antes que possa chegar lá. E indulgência, mesmo a respeito das chamadas especulações elevadas ou, filosóficas, pode apenas blo-quear o caminho para a consciência e conhecimento verdadeiros. Todavia, você não pode descuidar-se das faculdades intelectuais ou não desenvolvê-las sob o pretexto de que algo mais alto é necessário.

No corpo físico não precisa que seu ideal seja tornar-se um "homem-músculo". Entretanto você não gostaria de ter membros frágeis, mal desenvol-vidos e raquíticos, que fossem fracos e desproporcionados. Com relação a seu corpo mental também, não seria de nenhuma utilidade ter uma mente ou um intelecto que fosse incapaz de pensar com energia, convicção e clareza. E preju-dicial quando você se dedica à ginástica mental apenas por ela mesma, dispon-do-se a acrobacias exclusivamente intelectuais — discussões, disputas, sofismas verbais etc. etc. Isso resulta em crescimento desproporcionado. Mas o desen-volvimento da mente, mesmo da mente lógica, pode e deve fazer parte do desenvolvimento integral, deve alcançar sua forma, estrutura e força verdadei-ras, como finalidade e auxílio em direção de uma expressão, no seu próprio campo, da divindade, a consciência mais rica e mais alta no homem. Assim tam-bém, o corpo deve expressar e tornar concretos a beleza e o vigor supremos do ser perfeito.

O SILÊNCIO MENTAL

Normalmente a mente está agitada, está ansiosamente ativa. Antes de tudo, está preocupada com seus problemas e quer sua solução. Sabe apenas pensar,

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ver os prós e os contras, pesar, raciocinar, deduzir; chega a uma espécie de con-clusão que leva ao sucesso ou ao fracasso, quase por acaso. Aparte desta ativi-dade consciente ou voluntária', existe na mente uma região inteira de atividades involuntárias, quer dizer, ela é assaltada, por todos os lados, por centenas de pensamentos, ideias e noções Que vêm de fora e enchem sua cavidade cerebral e sobre as quais você não tem nenhum controle. Cada qual experimenta empur-rar para frente, assegurar um lugar para si, clamar por satisfação e realização. Estão todos excitados por propósitos contrários e a mente não conhece paz ou alternativa.

É possível colocar uma pressão violenta sobre si mesmo e expulsar à força todo este movimento confuso e tornar a mente vazia. Mas o efeito da vontade mental sobre a mente não pode ser perfeito ou duradouro. Ademais não é isso, o vazio absoluto, que é nosso alvo. Um outro modo ou jeito tem que ser encon-trado para aquietar as atividades da mente.

É chamar para dentro a paz que está além, que já existe lá em algum lugar. Acontece por uma sincera insistência ou aspiração na consciência, uma certa disponibilidade no ser. Quando isso sucede (algo da maneira do Upanishadico vivṛṇute tanun svām — ele revela a si mesmo seu próprio corpo), você sente como se houvesse um completo branco, mesmo como se um vazio negro o hou-vesse penetrado e aprisionado. Até no meio do turbilhão das atividades, vem uma parada repentina. Não há nada lá, agora, nenhuma ideia, nenhum pensa-mento, nenhuma noção, nenhum movimento mesmo — um imenso vazio devo-rou e engolfou tudo. Fique firme e espere. Nesta quietude, alguma coisa se ergue — para cima, para cima — e escapa para longe, um tranquilo raio de consciência. E então algo desce, de longe — uma paz, uma luminosidade, autên-tica e absoluta em sua realidade. Ela desce, penetra-o, apossa-se de seu cérebro e de seu corpo. Você descobre que ela resolveu todos os problemas, harmoni-zou todos os contrários e conflitos, porque vem do lar da verdade-mãe. Agora você não luta, mas conhece: você não tateia, porque é guiado. Você espera e a cada momento recebe a direção quanto ao que deve ser feito; não tem nenhum pensamento ou preocupação, o movimento inspirado vem automática e infali-velmente.

Algumas vezes acontece também que o silêncio súbito ou imobilidade inte-rior causa um atordoamento e você é tomado pelo medo de estar ficando com-pletamente desorientado, de estar se tornando um absoluto idiota ou coisa pior. Alguns, em pânico, têm deixado escapar a graça que veio. Em tal condição deve-se ser firme, persistente, e continuar.

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Disse que normalmente você é assaltado por toda sorte de pensamentos. Eles entram em seu cérebro, vindos de todo lugar, e exigem audiência e satisfa-ção. É necessário que os pensamentos entrem no cérebro para que as ações se tornem possíveis através deles, e lhes deem forma e moldura para sua ação. Mas, a dificuldade reside no fato de serem os pensamentos não apenas varia-dos, mas quase sempre contrários uns aos outros. Por isso vemos frequente-mente o homem agindo em direções opostas e contradizendo-se a cada passo. Assim está destinado a ser, se as portas da mente forem deixadas inteiramente abertas. Algumas vezes, contudo, em certas pessoas, um pensamento dominan-te toma posse da mente e expulsa todos os outros. Nestes casos, quando uma única ideia governa, é possível que a pessoa se amesquinhe, estreite-se e force o ser numa camisa de força para andar em uma trilha apertada. O ser, em sua totalidade, não encontra autoexpressão ou autorealização. Deste modo, você pode ter a ideia, a ideia fixa, de que o mundo é irrevogavelmente miserável e incorrigível e, portanto, planejará naturalmente toda sua vida neste sentido, todas as suas ocupações e preocupações serão para fugir deste mundo, procurar uma solidão longínqua, interior e exterior, procurar livrar-se da existência e mergulhar no Transcendente ou no Vazio. Por outro lado, se você tiver a ideia de que, a despeito de todas as aparências contraditórias, o mundo é remediável e regenerável, então sua vida toma um aspecto diferente. Você procurará encontrar os caminhos e os meios para o remédio e saberá quais as possibilida-des de achá-lo.

Bem, o valor de uma ideia não pode ser determinado pela própria ideia. Usualmente ela é escolhida por causa de uma outra razão externa: a própria educação, o ambiente, o temperamento de cada um, gostos e antipatias têm uma grande influência em determinar a própria escolha. Assim, a primeira coisa que você tem a fazer, é não permitir que pensamentos venham em confusão, como e quando quiserem. Pensamentos devem vir apenas quando você os esco-lher e apenas aqueles que escolher. Deve haver uma seleção consciente. Como proceder neste trabalho? Como seus próprios pensamentos não podem esco-lher-se a si mesmos, o que você deve fazer, no início, é invocar uma direção mais elevada e colocar-se absolutamente imparcial e passivo em suas mãos. Um vazio é necessário, um branco, em algum lugar atrás, mesmo que ele não venha para ocupar a fronte também. Desista da escolha pessoal e espere pela Direção Mais Alta — o Divino — para fazer com você aquilo que Ele quiser. Propiciados o necessário silêncio e confiança, a decisão vem inevitavelmente e você é impul-sionado a fazer automaticamente o que é preciso ser feito, de momento para momento.

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MENTE, ÓRGÃO DA CONSCIÊNCIA SEPARATIVA 73

A princípio, você pode não tomar conhecimento do porquê e do para quê de sua ação, você age meramente como um autômato, mas com um silêncio lumi-noso dentro e uma aspiração tranquila, assistindo. Uma vez treinado nesta doci-lidade inquestionável, então o conhecimento lhe será dado gradualmente, no início, apenas uns poucos passos à frente, mais tarde, uma perspectiva mais plena e completa.

MENTE, ÓRGÃO DA CONSCIÊNCIA SEPARATIVA

O mundo é uno, indissoluvelmente e solidamente uno: nenhuma parte pode ser separada uma da outra. Qualquer ação, em qualquer lugar, afeta o todo e nada pode ser movido por um centésimo de milímetro, sem alterar 0 equilíbrio inteiro. Cada elemento literalmente vive, move-se e tem seu ser num outro e a totalidade é uma massa rigidamente unificada.

Se assim é, então levanta-se uma dificuldade, um dilema. Se o mundo tem que progredir nestas circunstâncias, ele deve progredir como um todo, em mas-sa; ele não pode progredir aos pedaços. A totalidade deve avançar para que cada elemento possa progredir, e cada elemento deve avançar para que a tota-lidade possa progredir. Talvez isto seja o que está acontecendo presentemente no mundo, mas o resultado tem sido bastante vagaroso. Levará não apenas milênios, mas éons para que a humanidade possa fazer algum progresso digno de nota.

Contudo, não precisaria ser assim. O homem é solidamente uno com o uni-verso, é verdade, mas tem em si uma faculdade pela qual pode separar-se e iso-lar-se do resto do mundo. É o poder mental de autodivisão e dissociação. Atra-vés desta faculdade, o homem pode colocar o mundo de lado e fora de si (pelo menos por algum tempo), desligar-se dele e concentrar-se em seu próprio ser, sua verdade interior. Em outras palavras, fazer o progresso em si mesmo, tão rápido quanto possível, independentemente, sem esperar pelos outros ou pelo progresso do mundo, em qualquer grau. E então quando, por sua vez, tiver feito o progresso em si, alcançado um status mais elevado, ele pode retornar ao mundo, fazer valer a força de seu progresso e estabelecer um progresso mais amplo.

Este poder, que na consciência inferior humana aparece como mente ou dis-cernimento mental, é a imagem ou representação aqui em baixo daquela mes-ma força de consciência que originalmente separou o mundo do Divino, criou o ego e colocou-se como uma realidade objetiva contra si mesma. Era uma força de consciência divisória de concentração exclusiva que criou a brecha no status

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original indiviso do Divino: foi isto que precipitou o mundo de negação, de igno-rância e de inconsciência para fora da Luz e Realidade supremas.

Um poder de contestação separou o mundo de sua fonte pura. Esse mesmo poder pode ser agora utilizado para o regresso, para a reintegração. O poder que se desligou do Divino é capaz de se desligar do mundo; a consciência que se afastou para longe do Divino Único, pode afastar-se também da Ignorância Múl-tipla. Assim como o elemento individualizado isolou-se da consciência indivisa do Divino, do mesmo modo, o elemento individualizado no homem pode man-ter-se afastado do ser unitário do mundo. Assim como desceu a escada de cons-ciência da luz suprema do espírito e alojou-se na mais baixa profundidade da matéria morta inconsciente, ele pode tomar o mesmo caminho no lado oposto, e da inconsciência elevar-se até a plenitude da luz original. A alma escolheu livremente a servidão, ela é livre também para escolher a liberdade outra vez! Isto é o que o Upanishad17 que significar quando diz: "avidyayā mṛtuym tirtwā", "pela Ignorância ele deverá cruzar a morte".

O PESSOAL E O IMPESSOAL

Quando você se eleva em consciência até a origem das coisas, chega final-mente ao término de tudo: encontra-se além dos nomes e das formas que cons-troem o universo, além mesmo dos nomes e formas sutis.

Chega a algo sem forma, impessoal, inimaginável, único, infinito e eterno. É, quando muito, uma vasta força ou um estado de consciência. Quando entra em contato com isso, você perde sua forma pessoal, sua individualidade separada e torna-se o absoluto sem feições. Muitas religiões e filosofias consideram este o supremo status, o mais elevado e a origem das coisas. Na realidade, contudo, não é o fim das coisas, nem o supremo status. Você pode ainda elevar-se mais além. Sua consciência penetra no impessoal e sem forma, incorpora-se a ele e então emerge outra vez; ela contempla uma realidade que não é sem forma, mas tem uma forma, que não é impersonalidade, mas uma Pessoa, com a qual ou com quem você pode ter uma relação pessoal diferente da relação ou falta de relação com o Impessoal. Porém esta forma, além do sem forma, não é como as formas da consciência inferior: é a forma das formas. E não uma pessoa como um ser humano ou mesmo como um ser divino ou deus, mas uma Personalidade essencial, a Pessoa das pessoas. Não tem a limitação ou exclusividade da indivi-dualidade limitada pelo ego (mesmo os deuses são ego-limitados). Tem uma

17 Upanishad – livro sagrado dos Hindus.

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"NÃO TENHO NADA, NÃO SOU NADA" 75

espécie de demarcação ou esboço definido que é reconhecido como o de uma Pessoa definida, mas não tem a fixidez ou dureza das formas inferiores.

E, no entanto, para chegar a esta Pessoa suprema, para entrar em contato com Ela, é necessário atravessar e ter a experiência do infinito impessoal e sem forma. Porque isso quebra os moldes inferiores, as formações egoístas estreitas, que são apenas aberrações ou imagens obscuras da verdadeira Pessoa.

De modo mais ou menos semelhante o vital, também, tem que proceder assim para transformar-se. Ele deve livrar-se de seus impulsos ignorantes e vio-lentos, suas formações obscuras: deve ser totalmente limpo e purificado. Para isso, deve aprender a ficar quieto e silencioso — absolutamente imóvel e passi-vo, e nessa passividade tranquila, sentir, tornar-se consciente da Presença Divi-na, saturar-se dela. Quando isso acontecer, é preciso voltar e tomar parte na vida ativa. Normalmente, a tendência daqueles que, tendo se retirado para viver a tranquila vida interior, retornam à vida exterior, é reatar os velhos modos e reações costumeiras e recair nas antigas trilhas habituais de consciência. O vital deve então fazer a experiência e a realização da Divina Presença dinâmica para torná-la, assim, uma realidade viva; ele deve tornar-se consciente dela no meio de todas as atividades e não meramente no estado interiorizado. A energia do vital deve ser expressa num modo de viver completo e perfeito, sem contudo trilhar os velhos moldes e voltar aos costumeiros hábitos. Com o constante sen-so do Divino, com a sempre presente verdade e beleza da consciência Divina, o vital possuirá uma nova vida e criará um novo padrão de viver.

"NÃO TENHO NADA, NÃO SOU NADA"

Esse é um estado absolutamente comum. O sentimento de que estou fazen-do Yoga, de que sou algo e tenho um trabalho especial a fazer, de que alguma coisa tem que ser alcançada, de que a vida tem um propósito etc. etc., tudo isso acabou, deixando dentro um vazio e um vácuo e um autômato absolutamente mecânico por fora. Faço as coisas mais comuns da vida, como qualquer outro homem comum, como o trabalho de rotina de uma máquina; não sei nada e não tenho impulso de saber ou planejar o que deveria fazer, como devo andar ou porque tudo é como é. Uma grande tranquilidade e silêncio permeiam todo o ser. Não há nenhum eu, nenhuma pessoa a quem se referir na consciência: a individualidade foi totalmente abolida, um arremesso de universalidade passa através da consciência tornando-a, por assim dizer, uma terra de ninguém. A mente descarrega seu fardo e diz que está livre agora e obediente ao chamado que lhe vier. Também o vital se submete e espera a ordem: não tem inclinação própria ou escolha. O físico, do mesmo modo, torna-se totalmente dócil.

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Este estado de vazio supremo e de passividade aproxima-se da experiência da ilusão — a ilusão do mundo e a vaidade ou o vazio da vida. A criação parece uma concha vazia, sem nenhum sentido ou propósito e até mesmo sem a ver-dade real de existência. É um drama sombrio que não se apoia em nada e desa-parece no nada. Os grandes expoentes da Ilusão devem ter tido uma experiência desta espécie e assim consideraram que — O NADA — seria a última verdade e mistério da existência.

Agora quando todo o sentido de personalidade — não apenas o sentido mas também o fato em si — dissolveram-se totalmente, a voz do Divino Supremo foi ouvida e Seu impulso gravado. "As Preces e Meditações" daí em diante foram escritas através desse impulso; foi uma escrita verdadeiramente automática — o instrumento não sabia o que estava escrevendo e até mesmo não entendia o significado das palavras registradas. Era meramente um copista, olhava para a escrita como uma terceira pessoa o faria.

Assim todo o ser, em todas suas partes agia como um agente que grava e transmite. Foi sob estas condições — no ponto zero da personalidade e cons-ciência humanas — que o instrumento, que por tanto tempo vivera aparte e por trás, preocupado mais ou menos consigo próprio, foi levado à frente e assumiu o trabalho que o Divino dele exigia. O recipiente estava completamente vazio, uma forma universal e transcendental começou, gradualmente, a plenificar-se com a própria vontade do Divino e suas formações.

AQUI OU EM OUTRO LUGAR

É fácil e agradável entrar dentro de si e numa consciência interior encontrar e manter uma união, mesmo uma íntima união com o Divino. É por causa desse estado de paz e ventura que muitos, até mesmo a maioria que chega lá, não quer voltar para a vida normal na terra. E mestres, grandes e pequenos, quase invariavelmente, ensinaram que afinal é melhor dessa forma, e talvez seja a úni-ca coisa a fazer sob este estado de coisas. Pois esta vida e esta terra significam o próprio oposto daquele céu interior e daquele bem maior. Mas a alguns não é dada esta solução agradável da dificuldade. A eles é pedido que voltem e vivam a vida da terra. Não lhes é concedido permanecer aconchegados em um lugar estreito para se ocupar apenas de si mesmos. Na verdade não é egoísmo mes-quinho procurar somente a própria salvação? Quando alguém se salvou a si próprio, não é seu dever — o resultado e a implicação lógicos de sua liberdade pessoal — que ele deva procurar ajudar outros a se salvarem? Essa era, de fato, a atitude do Amitabha Buddha.

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QUANDO A IMPERFEIÇÃO É MAIOR QUE A PERFEIÇÃO 77

Uma casa está pegando fogo. Tem um telhado de piche. Pode-se facilmente entender a fúria do fogo. Alguns moradores que estavam presos conseguiram sair a tempo, embora um tanto machucados e queimados. Mas havia outros, algumas crianças deixadas no seu interior. Um daqueles que havia saído, corre novamente para dentro, através das chamas, num vai e vem, até que todos sejam salvos. Ficou gravemente queimado, arriscou a vida: ele não se importou porque não podia permanecer afastado a uma distância segura. Não podia se contentar em salvar-se, o que era certamente uma aquisição suficiente sob um aspecto. Esta alma tinha consciência de seu eu mais amplo.

Do mesmo modo, há almas que emergiram do fogo da vida terrena e estão gozando a segurança e proteção AOS céus; mas elas foram chamadas para voltar ao mundo, acrescentar à experiência da tranquilidade do alto a experiência da dificuldade aqui em baixo. Certamente isto aumenta o alcance de sua consciên-cia. Mas retornar a0 mundo significa também reentrar na ignorância, pois este mundo como ele é significa ignorância, não é nada senão ignorância. A missão, então, daquele que volta, é abraçar mais uma vez a ignorância, com a intenção de trazer para ela a luz e a ventura que ele alcançou lá em cima, o estofo do mundo atual com a substância da consciência superior. É um sacrifício exigido dele, devendo abandonar a felicidade eterna dos altos céus — a ininterrupta união com o Divino acima — para entrar nas profundezas "deste mundo grande e perigoso". Mas é um privilégio também trazer consolo aos aflitos, a luz trans-formadora às almas sombrias, a energia radiante à terra inerte. É um alto privi-légio pelo qual a alma luminosa fica grata: ela modestamente aceita essa dádiva da graça do Supremo. Aceita a Ignorância e oferece-a: deposita-a aos pés do Supremo para que possa ser transmutada em luz — luz aqui em baixo. Sua pró-pria missão é a daquele de um modesto intermediário.

QUANDO A IMPERFEIÇÃO É MAIOR QUE A PERFEIÇÃO

Uma consciência aperfeiçoada atinge o mais alto status do ser quando é cheia de luz e deleite, paz e pureza, una com a Consciência Divina. Essa cons-ciência, quando desce à terra, na sua clareza original não misturada, vive como um elemento estranho e não tem real contato com o mundo; pode ter apenas uma influência indireta sobre os homens e as coisas. Se a Divina Consciência, Perfeita, tiver que ser verdadeiramente efetiva, tiver que mudar a natureza humana e do mundo, deve assumir, pelo menos parcialmente, esta natureza; deve partilhar da imperfeição da ignorância para assim poder mostrar como essa imperfeição pode ser trabalhada e transformada. O Divino tem que se tor-nar humano, mesmo o humano comum, em um sentido, no aspecto exterior instrumental, num grau maior ou menor, como for necessário, para que Ele pos-

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sa entrar em contato vivo com a consciência obscura mais baixa e nela colocar Sua Luz e, gradualmente, purificá-la e iluminá-la. Se, contudo, a consciência reti-ver sua plenitude de poder e luz e aparecer como tal, ela pode deslumbrar e conquistar, como um milagre meteórico, mas não deixa nada substancial atrás. Isto é o que tem acontecido no passado da história do homem. Os santos e os sábios, os maiores e mais genuínos dentre eles viviam em consciência, na sua grande maioria, apartados da humanidade e mesmo longe do contato humano. A terra, por conseguinte, não podia se beneficiar inteiramente de seu exemplo.

Por isso a Mãe diz em suas "Preces e Meditações" que tendo passado além de todos os desejos, teve, no entanto, que viver no meio do desejo. Sem escolha própria, sem nenhuma preferência, nenhum apego, nenhuma necessidade de nada, foi, contudo, colocada em condições comuns de vida, de vida normal humana. Teve de lidar com o homem comum, tratar de objetos pequenos e insignificantes da existência material. Numa parte de seu ser, ela tinha que se identificar com a ignorância e obscuridade, de tal modo que mesmo a distinção entre consciência e inconsciência — o consciente e o inconsciente — ficou obli-terada por algum tempo. Naturalmente, o ser mais interior no seu recôndito eu permaneceu sempre calmo, luminoso, inviolável, mas colocou à sua volta este corpo de natureza comum para se defrontar com suas reações normais e, atra-vés delas, gradualmente elevá-lo e treiná-lo para manifestar e encarnar o Divino mais profundo.

Os deuses são perfeitos; mas, dizem, têm que se tornar homens, descer à terra e assumir proporções humanas — quer dizer, imperfeições — se quiserem progredir mais além, atingir níveis ainda mais elevados de consciência. Pois os deuses são perfeitos, cada um em seu próprio tipo limitado, bem definido e, portanto, imutável; mas o homem significa uma alma aspirante, quer dizer, infi-nita — sua própria imperfeição é um sinal e um símbolo de possibilidades sem-pre maiores. A fluidez de sua natureza significa uma oportunidade.

A ALMA INDIVIDUAL E A COLETIVA

O indivíduo tem uma alma. Do mesmo modo, um conjunto de indivíduos, um grupo, também tem uma alma. Quando pessoas se encontram habitualmen-te para um certo propósito, formam um círculo ou sociedade e gradualmente tendem a desenvolver uma consciência comum, que é o princípio de uma alma. Na escola, aqueles que leem juntos, a classe, aqueles que jogam juntos, o time, todos que vivem e andam juntos inspirados por impulsos e ideias iguais ou semelhantes, possuem uma alma rudimentar. Do mesmo modo, um grupo maior, a nação, tem também uma alma, cada uma a sua própria, de acordo com

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A MARAVILHA DE TUDO ISSO 79

sua natureza, tradição e cultura. Mesmo um continente tem uma alma. Pode-se falar da consciência da alma da Europa, da Ásia ou da África. De fato, cada célula de um organismo tem uma consciência própria; ela pode ser chamada de a consciência da unidade individual. Muitas destas células se combinam para for-mar o organismo, o indivíduo (que deste modo pode ser visto como um ser composto ou coletivo). Muitos indivíduos formam a família — cada família com suas consciências de grupo (daí a ideia de kuladharma, o gênio da família ou tradição e o selo da Casa Real). Muitas famílias formam a tribo, aqui também, cada uma com sua consciência particular. E então famílias e tribos formam a nação moderna, cada uma com uma alma distinta e quase bem desenvolvida. O agrupamento continua a alargar-se e temos as várias nações combinando-se para formar o grupo humano como um todo. A humanidade também tem sua própria consciência e sua própria alma. Não há um limite de volume ou dimen-são de um grupo. A terra tem sua consciência de alma, assim como o sol ou uma estrela ou qualquer outro planeta. O sistema solar ou um sistema galáctico tam-bém é movido por sua própria consciência secreta.

A MARAVILHA DE TUDO ISSO

A consciência comum aceita graciosamente as coisas como elas são. Não questiona, considera tudo muito natural e presumível. Ela vê e espera ver repe-tidas as mesmas coisas antigas e familiares, e não fica impressionada por nenhuma nota extraordinária nelas. Isso é a inconsciência da consciência comum. Mas quando você começa a se tornar consciente, quando olha à volta e se extasia diante das coisas, desperta do sono, por assim dizer, e começa a se perguntar, a maravilhar-se. O que é isso, por que é assim, como aconteceu, qual o propósito? Normalmente você vê o sol nascer, a chuva cair, a terra girar, mas não dispende um pensamento sequer a respeito destas coisas ou acontecimen-tos, exceto para considerar até que ponto são úteis ou simples transtornos. Mas, quando em você existe uma luz que o torna consciente, consciente de si mesmo e das coisas à sua volta, tudo adquire importância, um sentido, e você fica cheio de admiração, extasiado diante da criação maravilhosa.

Quanto mais avança, quanto mais a luz cresce em você, tanto mais sua admiração aumenta. Conforme sua percepção cresce, seu interesse também se amplia. Uma nova beleza rodeia, emana de cada objeto e de cada acontecimen-to. Você não aceita graciosamente as coisas e as deixa passar mecanicamente, mas cumprimenta cada uma delas como a um convidado, com quem você quer travar conhecimento e tornar-se familiar, cada qual tendo uma mensagem para você e você mesmo algo para transmitir. Essa é a fonte de inexaurível deleite e de um conhecimento sempre crescente.

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APRENDER E COMPREENDER

Uma coisa é aprender (apprendre), outra bem diferente é compreender (comprendre). No aprender você percebe uma coisa através da mente superfi-cial, é algo que vem de fora como um corpo estranho. É colocada em você e empurrada para dentro. Não é absorvida, não se torna totalmente sua. Se você não estiver atento, se deixá-la de lado por algum tempo, ela desaparecerá de sua memória. Por outro lado, compreender uma coisa significa absorvê-la, rece-bê-la no âmago de seu ser, vivê-la na sua consciência interior. Quando você compreende uma coisa, não a esquece jamais; ela se tornou um elemento de sua consciência. Anos e anos podem passar, e, no entanto, a coisa se conservará tão viva e clara como no primeiro dia. Por que você se esquece tão facilmente das lições que aprendeu, com sacrifício e dificuldade, de livros ou de professores na escola? É porque você simplesmente as aprende, mas não as compreende. Você retém no cérebro as palavras, as formas ou fórmulas externas, anota a informação; mas o que elas representam, sua importância e lei interior, a verda-de viva escapa-lhe totalmente. Você lê Einstein, lê e relê suas fórmulas e equa-ções e até mesmo confia-as à memória, aprende de cor. Mas depois de algum tempo, se perder contato, elas somem de sua mente, ou tornam-se muito vagas e nebulosas e você tem de começar de novo. É porque você aprendeu Einstein meramente como uma lição, enquanto que, se entrasse nas percepções que estas formas corporificam, os princípios interiores que as determinam, se a consciência de Einstein tivesse se tornado de alguma forma sua consciência, então você teria compreendido e nunca esquecido. Não teria sido uma lição, mas uma experiência. Assim, o que é necessário é este despertar interior pelo qual você vive uma coisa, identifica-se com ela, torna-se uno com ela e não sim-plesmente a encontra e acena meramente com a cabeça. A não ser que haja este despertar ou abertura na consciência como se diz, por mais que uma lição seja empurrada para dentro, não entranhará profundamente. Você pode apren-der como um papagaio, mas não compreenderá, passará por cima de sua cabeça e logo será esquecida.

Na verdade, não era necessário que os sábios e ocultistas de antigamente tivessem tentado esconder seu conhecimento em linguagem obscura, em códi-gos e símbolos e números, por temerem o mau uso pelo não iniciado comum. Mesmo se eles tivessem expressado seu conhecimento na linguagem usual, pes-soas comuns não os teriam compreendido de forma alguma. Seria como se eu falasse chinês e vocês não compreendessem nada. Compreende-se somente aquilo que já se possui, quer dizer, deve-se ter dentro de si algo daquilo que se quer conhecer e compreender, algo que corresponda a isso, que seja semelhan-te em natureza e vibração. Isto é o que quero expressar quando digo que você

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A VINDA DO SUPER-HOMEM 81

deveria ser aberto, que sua mente e sua consciência deveriam voltar-se e afinar-se com o objeto que querem apreender. Deve haver alguma luz nelas para rece-berem a luz de fora e além. Se for mera escuridão, a luz não iluminará; mesmo que consiga vir, irá embora logo ou será engolfada pela escuridão.

A mente humana só pode captar coisas em três dimensões. Um conheci-mento tridimensional é sua posse normal. Mas há uma quarta e uma quinta dimensão (das quais alguns intelectuais da Europa começaram a suspeitar). Realmente, há pelo menos umas doze dimensões com referência à presente criação. Não podemos de imediato, imaginar um objeto em quarta dimensão, uma quinta dimensão aproxima-se do bizarro e além dela, tudo é um vazio para a consciência humana. Se eu falasse destas experiências multidimensionais, o que fariam vocês delas?

Por exemplo, você lê constantemente e ouve muito falar do Divino. O que é Ele ou Isto para você na realidade? Algo vago, nebuloso, prolixo. A percepção não é concreta para vocês. Pode duvidar, negar, recusar, dar crédito, como qui-ser. Mas se você experienciá-lo uma vez, apreendê-lo em seu ser e na sua cons-ciência interiores, mesmo de uma forma pequena, um pouco que seja, se você entrar em contato direto, de qualquer maneira — bem, a coisa se torna ines-quecível e viva, viva para sempre. Se o mundo inteiro negar e zombar, você permanecerá inabalável, sorrirá do mundo porque sabe o que sabe.

Então, qual é o caminho para esta experiência, para esta abertura da cons-ciência? A Presença está aí, a Luz está aí, a Graça sempre se inclina para você, cercando-o. Por seu lado você deve fazer um gesto correspondente. Deve pedir pela coisa com sinceridade, com seriedade, aspirar por ela incansavelmente. Deve pedir por ela persistentemente, sem perder a fé ou a confiança, deve con-tinuar perseverantemente, sem contar o tempo gasto.

Lá está uma porta de ferro, pregada e fixa. Tem que ser arrombada. É a por-ta que o fecha dentro de sua estreita consciência-ego. Você tem que derrubar a barreira e abrir-se para fora. Tem que desejar isso, lutar por isso com uma cons-tância decidida. Há a pressão do outro lado também, a pressão da Graça. Quan-do sua vontade aspirante encontrar a Graça, certamente fará a abertura neces-sária na parede morta.

A VINDA DO SUPER-HOMEM

Dizem que quando o supramental descer, virá com tal força, irresistível e esmagadora, que toda a humanidade será transformada imediatamente. Quer dizer, que todos os homens, quer queiram ou não, quer a procurem ou não,

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serão automaticamente transformados? Não pode ser assim: esta é uma doutri-na cômoda que premia a preguiça e a inércia.

Não é necessário que todos os homens se tornem superhomens e a raça humana normal desapareça completamente. A humanidade não precisa se extinguir como os antigos mamutes e mastodontes, para dar lugar ao super-homem. As duas raças podem viver juntas; a terra é suficientemente ampla. O homem apareceu; mas nem por isso o macaco desapareceu, embora se diga que o homem tenha vindo da espécie do macaco. O super-homem virá e viverá sua nova lei de vida; o homem também continuará com seu dharma18 humano. Não apenas isso, eles não precisam ficar separados em compartimentos estanques, pode haver interação ou troca entre os dois. Com a vinda do super-homem haverá naturalmente uma descida de harmonia e paz e felicidade e boa vontade para a atmosfera da terra, e a humanidade provavelmente será beneficiada com isso. As condições de vida serão mudadas e afetarão a vida do homem também. Um elemento de luz e alegria e tranquilidade entrará no comportamento nor-mal da humanidade. E o homem, por seu lado, pode oferecer seus serviços como base de recrutamento da super-raça. Além disso, o todo da Natureza sen-do um movimento unificado, e nenhum nível de criação sendo totalmente sepa-rado dos outros, a mudança pode muito bem tocar o reino animal e mesmo o vegetal. A planta pode vestir, por exemplo, um colorido mais verde ou luminoso, e o animal pode desenvolver um salto mais feliz e mais animado. Pode haver menos escassez, privações, aridez, menos convulsões e catástrofes na terra.

Entretanto, exceções são sempre possíveis. Mesmo agora, onde as condi-ções de vida são mais felizes e onde as coisas deveriam ser mais tranquilas e harmoniosas, há pessoas que são por natureza, tão obscuras, tão briguentas e turbulentas, que não são tocadas de modo algum e continuam seu caminho, encontrando sempre ocasiões para discutir e brigar e criar confusão. Elas serão, no meio da nova humanidade, como são hoje, os hotentotes ou caçadores de cabeça, — aborígines e selvagens — aos olhos da humanidade civilizada.

EM DIREÇÃO À REDENÇÃO

Como tenho dito frequentemente, a criação é a auto-objetivação do Divino Supremo; é a suprema consciência projetando-se fora de si, para poder se olhar. Assim fazendo, auto-objetivando-se e autodividindo-se, ela se espalhou para longe: o uno infinito multiplicou-se em infinitos átomos. Não apenas isso, desta-

18 Dharma – a lei do ser, a verdade do ser.

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EM DIREÇÃO À REDENÇÃO 83

cando-se de si mesma, a consciência tornou-se sua própria oposição: a cons-ciência tornou-se inconsciência, o espírito tornou-se matéria, o deleite tornou-se dor, o conhecimento tornou-se ignorância e a luz tornou-se escuridão. Uni-versalidade sem fronteiras era a natureza essencial do Divino e agora ela ficou coagulada dentro dos nódulos de egoísmo nos quais está baseada esta criação inconsciente. No meio desta completa nulidade, desta negação de sua origem pelo universo, o Amor Divino desceu e alojou-se para levar a criação errante de volta a seu lar perdido. O Amor Divino envolveu-se e emaranhou-se no Incons-ciente, tornou-se uno com ele. Só assim poderia Ela (na verdade, a Mãe Divina na sua graça), inundar o universo inconsciente com sua própria substância e transmutá-la em sua natureza original. O primeiro efeito ou sinal visível desta descida ou infusão é o mergulho do psíquico ou do elemento-alma no corpo material. É a partícula da consciência engastada na matéria, que habita a partí-cula aparentemente morta ou agregado de partículas que continuamente cresce nela, através de sua relação de ação e reação com a inconsciência circunvizinha, e ao mesmo tempo, expande sua luz dentro dessa escuridão, transformando-a gradualmente no que era originalmente em sua fonte.

* * * * *

A origem da criação é uma individualização — a manifestação ou emanação de muitos, como unidades, emitidas do Uno individido e indivisível. Significou liberdade para cada unidade escolher. O indivíduo tornou-se, por assim dizer, uma unidade de liberdade. O resultado imediato, contudo, não foi aparente-mente muito bem sucedido, pode-se dizer. Pois a unidade individual escolheu seguir um caminho exatamente oposto à sua origem: a individualização aconte-ceu como um elemento que tivesse ressaltado abruptamente da unidade infini-ta, arremessando-se em seu ímpeto, tão distante quanto possível, ao outro polo. Foi assim que o espírito único tornou-se partículas infinitas da matéria inconsciente. O propósito e o problema então colocados, eram trazer os ele-mentos extraviados de volta à sua fonte e origem.

Era um longo e árduo trabalho. Levou e está levando, mesmo agora, séculos e mais séculos para o único Ser que podia fazer isso, preparar-se vagarosamen-te, escalar gradualmente os degraus pelos quais a criação escorregara, recupe-rar penosamente o terreno e alcançar o propósito escondido, reivindicando amplamente o desvio e a queda. Através de caminhos tortuosos, longos e sinuo-sos, através de caminhadas árduas, o espírito de evolução labuta há milênios; foi o instrumento utilizado pela Graça Divina.

O indivíduo original era um ponto duro concentrado de ego, preocupado única e exclusivamente consigo mesmo. Então foi provocada uma situação de

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dar e tomar, para que até mesmo existir significasse existir através dos outros. A sociedade humana começou desse modo. O animal humano solitário, em bene-fício próprio, teve de sair de sua solidão, tomar uma companheira e assim gra-dualmente constituir família. A parede do egoísmo foi derrubada até este ponto, sua esfera ampliada. Este alargamento do ego continuou — e ainda continua — aumentando a capacidade da unidade. Da família, o ego humano ampliou-se na tribo e o ego tribal alargou-se agora na nação. Agregados cada vez mais exten-sos estão sendo formados em lugar das unidades individuais originais. As nações também estão agora se aproximando e interpenetrando-se e de muitos modos o todo da humanidade começou a viver como um agregado. O indivíduo tem assim aprendido a encontrar-se a si mesmo na vida da humanidade como um todo. Ele tem que olhar — ou logo terá de fazê-lo — para toda criação como uma única existência na qual e através da qual ele tem que existir. Assim, o uni-verso está recobrando a sua unidade indivisível original, tendo também ganho alguma coisa no processo; porque não é mais a unidade inexpressiva da fonte, mas a unidade enriquecida e múltipla em expressão. Sobretudo o indivíduo pode continuar ainda mais além. Ele tem e agora está apto, não somente em sua consciência individual como também na coletiva, a voltar-se e caminhar direto para sua unidade original; ele pode estabelecer contato direto, comungar e unir-se com o Próprio Divino de onde veio e do qual se afastou. Os planos de ascensão estão dentro de si e são paralelos àqueles no exterior, que o universo está percorrendo no seu caminho de evolução. Tal é o processo que a Graça Divina empreendeu para cumprir o propósito Divino na criação.

* * * * *

O sentido primitivo de "ego" ou "eu" é limitado e confinado ao próprio eu, como se estivesse em oposição aos outros e às outras coisas. É assim que se tem o sentido de querer e pedir por coisas que não se têm. Ele excluiu da extensão de suas asas, homens e coisas, por sua própria iniciativa, para gozar seu livre arbítrio individual mas agora é compelido a pedir-lhe coisas materiais para des-frutar, para crescer e aumentar mesmo para existir. Mas por outro lado, se você se ampliar, identificar-se com todos, então achará dentro de si todas as coisas, não tem necessidade de sair e procurá-las, não tem o sentido do querer. O que for necessário para um propósito definido ou para uma circunstância particular, no tempo e lugar certos, aparece automaticamente, de imediato. Contudo, você não perde seu "Eu" real. Seu "eu" acha seu "eu" em todos os outros "eus" e todos os outros "eus" no "eu" que você próprio se chama. Perdeu seu ego anti-go, a pessoa pequena e estreita, e o transcendeu e o transmutou no ego cósmi-co e transcendental. O Divino é esse ego e essa pessoa individual. Na realidade, só o Divino é isso, no sentido supremo e mais verdadeiro.

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DOCES LÁGRIMAS SAGRADAS 85

DOCES LÁGRIMAS SAGRADAS

As lágrimas que a alma derrama são santas, são doces. Enviadas pelo Divino, são abençoadas por Sua Presença. Como o orvalho do céu, são puras, espontâ-neas, jorrando de um coração de franqueza inocente. A sensação é infinitamen-te impessoal, completamente desligada do ego. Há apenas um intenso movi-mento de autodoação, total e simples. As lágrimas são a expressão natural de alguém que precisa de ajuda, que tem a entrega completa e a simplicidade de uma criança, a abdicação de toda a vaidade. Estas lágrimas são bonitas em sua natureza e benéficas em caráter. São como gotas de orvalho que pertencem aos céus e vêm de lá com uma virtude curadora soberana. Estas lágrimas não são "lágrimas frívolas", como diz o poeta inglês num veio de melancolia, mas são investidas de um poder, uma energia efetiva que traz alívio, calma e paz. Este sentimento formado de intensidade e aspiração e entrega tranquilas, sem mis-tura, livre de qualquer exigência ou necessidade de recompensa ou devolução não é somente puro, mas purificador. É tão impessoal que a aspiração torna-se, por assim dizer, até mesmo independente do objeto pelo qual existe.

Numa suprema crise da alma, quando parece não haver solução, se você se abrir, na simplicidade singela de todo seu ser, numa torrente de autodoação, Àquele que possa ser seu refúgio — no fim, só o Divino pode ser isso — e que possa responder totalmente à intensidade e ardente sinceridade de sua aproxi-mação, quando vier segurando sua alma em lágrimas, numa completa autodoa-ção, você nem sabe que tremenda resposta evoca, a bênção divina que você traz para si e à sua volta.

"Eu preparei o Banquete".19

Foi um banquete que preparei para os homens. Em vez de uma vida de miséria e sofrimento, de obscuridade e ignorância eu lhes trouxe uma vida de luz e alegria e liberdade. Passei por todos os sofrimentos que o dever exigia e quando o banquete estava pronto, ofereci-o à humanidade para que dele parti-cipasse. Mas o homem na sua insensatez e teimosia o rejeitou, não o quis. Pre-feriu ficar no seu covil escuro e miserável. Agora, que vou fazer com meu Ban-quete? Não posso deixar que se estrague, atirá-lo aos ventos. Assim eu o ofereci ao meu Senhor e o depositei a seus pés. Ele aceitou-o. Apenas ele pode desfru-tá-lo e honrá-lo.

19 “Preces e Meditação” da Mãe, 03/09-19

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O Banquete é aquele da Transformação, a Vida Divina na terra. O homem não é capaz dele naturalmente, não pode alcançá-lo por seu próprio esforço ou valor pessoal. É o próprio Divino que deve trazê-lo. Ele deve Se manifestar e assim estabelecer Sua própria vida aqui embaixo. Apenas então, será possível para a criatura humana abrir-se à urgência da nova beleza e oferecer sua entre-ga.

Não foi fácil preparar o Banquete. Tive de suportar o peso total da cruz e ascensão ao Calvário. Jesus, enquanto subia para seu destino com a Cruz às cos-tas, tropeçava frequentemente, e caía e se levantava novamente, com membros feridos, para começar novamente a penosa jornada. Mesmo assim, este ser também teve que passar através de muitas desilusões e decepções, muitas experiências brutais e dolorosas. Não foi uma caminhada suave e reta, mas uma subida tortuosa e perigosa. Mas no fim do túnel sempre existe a luz. O Calvário e a crucificação culminaram na Ressurreição: a divina Paixão de Cristo floresceu nesta suprema Recompensa. Aqui também, depois de todas as vicissitudes escu-ras e adversas, está a realização da transformação. Deve-se passar através de todo o vale da morte e elevar-se ao cume mais alto para receber e alcançar a plenitude da glória. Deve-se deixar para trás todos os níveis inferiores de igno-rância, o domínio inteiro da consciência humana, e sair da imperfeição da qual o homem é feito. Somente então ele vestirá a natureza divina como seu próprio corpo e substância.

* * * * *

A Cruz simboliza todo o sofrimento e toda a dificuldade, a renúncia e o autodespojamento que a subida à Meta envolve. O Calvário da lenda cristã signi-fica a Ascensão, e a Ressurreição é a Transformação em nosso sadhana. A Cruz é também o símbolo da consciência Transformada. Tem três ramificações e repre-senta o Divino triplo, o Divino em seus três modos de existência. O ramo supe-rior, a porção vertical acima da linha transversal, representa o Divino supremo ou transcendente, aquele que está acima da manifestação. O do meio, ramo transversal ou horizontal, representa a expansão da consciência universal, o Divino Cósmico. E a porção inferior, a linha vertical abaixo da transversal, repre-senta o Divino individual imanente ou imerso na manifestação. Você notará que a flor que chamamos de "transformação" tem uma forma semelhante à Cruz.

IDENTIFICAÇÃO DE CONSCIÊNCIA

"As Preces" sempre falam da identificação da consciência com o Supremo. Além disso, há também outra identificação da consciência, quer dizer, com coi-

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sas e seres, com o mundo exterior. A isso as "Preces" também se referem cons-tantemente. Na realidade, entretanto, há somente uma consciência; está em todo lugar, em todos os objetos, no universo e além. Quando, em algum lugar, um limite é colocado à sua volta, uma moldura é levantada, então ela se torna ou parece se tornar uma consciência individual. É o ego do homem, um lugar ou ponto que separa e se isola da consciência global, e assim se desliga do Divino; é a esse ego, a essa consciência separativa que se pede para exceder os próprios limites e recuperar sua unidade natural com a consciência única. E quando ela pode fazê-lo, diz-se ter sido feita a identificação com o Supremo. Contudo, ao lado disso, apesar da consciência ter se separado e se individualizado em dife-rentes centros, mesmo assim ela existe e age escondida em todas as múltiplas variedades de formas, desde a mais pequenina até a maior. A mesma consciên-cia está viva no átomo, na pedra, na planta, no animal, na terra e no sol e nas estrelas, no universo como um todo. Cada objeto, grande ou pequeno, vivo ou não, consciente ou inconsciente, contém essa consciência no seu centro e incorpora-a ou expressa-a de vários modos.

Considere, por exemplo, seu país, a índia. Quando você diz "Índia", o que quer expressar? É o limite geográfico que recebe esse nome ou a expansão de solo contida dentro daquele limite, ou seus morros e rios, florestas e campos, ou as feras que nela vagueiam, ou seus habitantes humanos, ou tudo isso junto? Não, é algo mais, é um centro de consciência que tem como sua moldura corpó-rea um limite geográfico particular. É isto que habita nas suas montanhas e pra-dos, vibra em sua vegetação, vive e se move no seu reino animal. E é isto que está por trás da mente e da aspiração de seu povo, animando sua cultura e civi-lização e movendo-a em direção à iluminações e conquistas cada vez mais ele-vadas. Não é apenas a índia, mas cada país na terra tem sua consciência que é o núcleo central de sua vida e cultura. Não apenas isso, mas a própria terra, a ter-ra como um todo, tem uma consciência no seu centro e é a incorporação dessa consciência; e a evolução da terra significa o crescimento e a expressão dessa consciência. Da mesma forma, o sol também tem uma consciência solar, um ser solar que preside seu destino. Além disso, o universo também tem uma cons-ciência cósmica, una e indivisível, movendo-o e guiando-o. E ainda além existe a consciência transcendental fora da criação e da manifestação.

Sendo a consciência uma e a mesma, fundamentalmente, em todos os luga-res, através de sua própria consciência, você pode se identificar com a consciên-cia que habita qualquer outra formação particular, qualquer objeto ou ser ou mundo. Você pode, por exemplo, identificar sua consciência com a de uma árvo-re. Saia a passear numa tarde, encontre um lugar sossegado no campo, escolha uma grande árvore — uma mangueira, por exemplo — e sente-se à sua raiz,

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com as costas apoiadas ou encostadas no tronco. Acalme-se, fique quieto e espere, veja e sinta o que acontece em você. Sentirá como se algo estivesse subindo dentro de você, de baixo para cima, correndo como um fluido, algo que o faz sentir-se imediatamente feliz e contente e forte. É a seiva que sobe na árvore com a qual você entrou em contato, a força vital, a consciência secreta na árvore que é confortadora, repousante e saudável. Bem, viajantes cansados sentam-se sob uma figueira de Bengala, pássaros descansam sobre seus galhos ramificados, outros animais — e mesmo seres também (você deve ter ouvido falar de fantasmas que assombram uma árvore) — abrigam-se lá. Não é mera-mente pela sombra fresca e aconchegante, não meramente pela proteção física que ela dá, mas pelo refúgio vital ou pela proteção que ela oferece. Às árvores são tão vivas, tão sensíveis que podem ser quase tão amistosas como um animal ou mesmo um ser humano. A pessoa se sente em casa, aquietada, protegida, revigorada sob sua folhagem generosa.

"Dar-lhe-ei um exemplo. Havia uma velha mangueira em um de nossos jar-dins, muito velha, sem folhas e seca, decrépita e aparentemente morrendo. Todos achavam que devíamos derrubá-la para desimpedir o lugar para flores ou verduras. Olhei para a árvore. Subitamente vi dentro da casca seca, no âmago, uma coluna de luz fraca e tênue, uma luz de cor esverdeada, subindo, algo mui-to vivo. Eu estava una com a consciência da árvore e ela disse-me que não deve-ria permitir que fosse cortada. A árvore ainda estava viva e gozando saúde razoavelmente boa''.

"Quando mocinha, apenas entrada na adolescência costumava passear pelos bosques, não longe de Paris (Bois de Fontainebleau), onde havia enormes carva-lhos talvez centenários. E embora na época não soubesse nada de meditação costumava sentar-me quieta, sozinha, e sentir a vida em volta, a presença viva de algo em cada árvore que trazia invariavelmente para mim a sensação de saú-de e de felicidade."

"Um outro exemplo mostrará uma outra espécie de identificação. É uma experiência à qual tenho frequentemente me referido. Estava sentada, recolhida e meditando. Senti que meu corpo físico estava se dissolvendo ou mudando; estava tornando-se cada vez mais vasto, perdendo suas características humanas, e gradualmente tomando a forma de um globo. Braços, pernas, cabeça, não mais existiam: o corpo tornou-se esférico, tendo exatamente a forma da terra. Senti que tinha me tornado a terra. Era a terra em forma e substância e todos os objetos terrestres estavam em mim, animais e pessoas, vivos e mo vendo-se em mim, árvores e plantas e mesmo objetos inanimados como parte de mim mes-ma, membros do meu corpo: eu era a consciência da terra encarnada".

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Mas a questão é ser esta consciência individual em todo e qualquer lugar e ainda manter a consciência suprema, a mais alta, a universal e transcendente, ser simultaneamente consciente em ambos os modos até o máximo grau.

A CONSCIÊNCIA CENTRAL

Muito frequentemente esta era a experiência: a união com o Supremo acon-tecia, mas assim que a consciência estava para se afirmar e submergir na ventu-ra da união, era chamada de volta e tinha de retornar ao mundo exterior, para os afazeres comuns da consciência comum. Era como se fosse para entender que não devia esquecer e rejeitar a vida do mundo físico e passar para o Além, mas manter o contato, o contato mais íntimo, entre este mundo e o Além, man-tê-los juntos em uma única consciência. O processo é algo assim: você retira a consciência do mundo exterior e volta-se para dentro; retira-se mesmo de suas próprias atividades e percepções físicas. Desta forma se retira ainda mais, passo a passo, através de todas as gradações de movimentos da vida e movimentos mentais, interioriza-se e se eleva até alcançar o cume mais elevado: o silêncio absoluto e a unidade indivisível com a única realidade imutável. Esta era a meta e, geralmente, o fim de todas as maiores disciplinas espirituais do passado. Nós também temos que possuir esta realização; mas para nós ela é a base, a base indispensável sem dúvida e ao mesmo tempo é o ponto de partida. Sri Aurobin-do sempre disse que nosso Yoga começa onde os outros Yogas terminam. Pois o que almejamos não é meramente a conquista da realidade suprema, a consciên-cia além, mas trazê-la para baixo, torná-la uma realidade autêntica e viva no mundo físico. Os Yogas antigos pretendiam salvar o mundo, mas conseguiam apenas a salvação do indivíduo, do seu próprio eu, passando além do mundo, realizando o supremo Espírito e Verdade, e nunca retornando. Dessa forma, o mundo permaneceu como sempre tem sido: somente uns poucos escaparam dele. Nosso Yoga entra em sua fase crucial, sua mudança de direção mais difícil e característica, quando procura trazer para baixo a consciência mais elevada, que foi realizada nas alturas e fazê-la entrar na vida do mundo e lá fixá-la como a posse permanente da vida terrestre.

A chave é descobrir o equilíbrio onde ambos os extremos se encontram, a junção dos dois níveis de consciência, o transcendente e o manifesto, onde os dois não apenas não se contradizem nem se opõem, mas são aspectos ou modos da mesma Verdade, indissoluvelmente unidos e unificados. É justamente a linha limítrofe, o último ponto do mundo manifesto e o primeiro ponto do Não-Manifesto (quando vai-se para cima). Se você for capaz de descobrir o pon-to, não terá de fazer a escolha entre dois irreconciliáveis, o Brahman ou o mun-do. É somente quando não encontra o ponto que você é forçado a fazer a esco-

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lha: alguns escolhem o outro lado da fronteira, a consciência estática, o ser puro, eterno e imutável, absorvido em si mesmo e autossuficiente; outros que não ousam fazer isso, voltam-se para o mundo e permanecem emaranhados e afogados na sua escuridão, na ignorância, na sua luta, no desencanto, na impo-tência e miséria. Mas, como disse, não é essa a solução necessária ou inevitável — se é que é solução — do enigma.

A primeira condição, entretanto, para se chegar ao estado de consciência crucial ou sintético (que é de fato a consciência supramental básica, como Sri Aurobindo a chama) é a compreensão de que o mundo, quer dizer, a consciência física não existe por si mesma. Por si mesma ela não é nada. Como a ' 'Prece" diz "ela não sabe nada, não pode fazer nada, não é nada". Esta realização não deve ser meramente uma percepção mental, uma percepção da consciência interior somente; mas o corpo, a própria existência física deve ser consciente e nessa consciência ver e experimentar a verdade que por si mesma é um vazio, não existência: no entanto, torna-se assim apenas para descobrir que ela é real, supremamente real quando é inundada com sua substância verdadeira, quando é o incorporamento ou o veículo da consciência supramental.

OS CONSTANTES DO ESPÍRITO

O Divino existe em três modos: 1) Existência, 2) Consciência e 3) Bem-aventurança. Pura Existência, pura Consciência e pura Bem-aventurança — Sat-Chit-Ananda — estes são os três elementos fundamentais dos quais o mundo foi feito. Estão em todo lugar, em todas as coisas, em todos os seres, em todos os domínios e níveis de ser. Sachchidananda é a suprema realidade que está por trás de tudo, mesmo aqui em baixo, por trás da mente, por trás da vida e por trás do corpo também, e por trás de cada forma em cada um desses domínios. É isso que mantém e sustenta tudo. Portanto, a fim de realizá-la, não é necessário elevar-nos, deixando para trás o mental, o vital e a existência física, e passarmos além. Geralmente quando procuramos Sachchidananda, procuramo-la fora do universo, acima e além da criação, no transcendente. Na realidade, contudo, podemos encontrá-la onde quer que estejamos, quer na mente ou no vital ou mesmo no físico. Temos apenas que nos recolher e nos aprofundar, ou ir por trás: ela está sempre lá. Encontrar Sachchidananda na existência física ou atra-vés dela não é muito mais difícil ou mais raro do que os outros modos; é mais difícil ou raro mantê-la constantemente lá e conscientemente fazer dela uma posse física dinâmica. Este é o trabalho a ser feito e para o qual Sri Aurobindo veio.

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O TRABALHADOR DESPRENDIDO 91

O TRABALHADOR DESPRENDIDO

A Prece diz: "Eu procuro minha mente consciente e não a acho mais..." Nor-malmente, a pessoa é consciente de si. Tudo que faz, ou todas as vezes que faz algo, a consciência sempre permanece por trás, "Eu estou aqui, Eu estou fazen-do". E se esta percepção de "Eu estou" não estiver lá, não se pode fazer nada. Toda ação para automaticamente se eu não vejo ou não sinto que estou agindo. Mas esta é a natureza da consciência comum; na consciência espiritual, as coisas são de outra forma. Consciência espiritual significa a consciência na qual este sentido de "Eu estou fazendo" ou mesmo "Eu sou" desapareceu, dissolveu-se. Na verdade, o trabalho é feito não por mim, no sentido "Eu-ismo", mas pela Prakriti, a Natureza, aparentemente pela Natureza Inferior, secretamente pela Natureza Superior. Quando o "Eu" desaparece, a força que estava trabalhando, continua a trabalhar, somente o senso do "Eu" ligado a ela (na ignorância e por ignorância) não está mais aí. Ou, o "Eu" submergiu completamente na Força que trabalha e está uno com ela. O que é consciente não é a personalidade ou o Eu individual, mas a Força de ação.

SEGUNDA VISÃO

Sabemos que os animais possuem, geralmente, sentidos aguçados a um grau extraordinário. Eles podem ouvir e sentir cheiros a uma distância muito além do que é normal para o sentido humano. Dê a um cão um lenço usado por um homem, que ele o localizará entre mil. Um elefante o levará direto a um lugar distante várias milhas, onde exista água, se acontecer de você estar em dificul-dade num local sem água. Mesmo independente da visão ou do olfato, os ani-mais percebem coisas de um modo estranho: certa vez um elefante, por exem-plo, recusou-se a prosseguir numa estrada porque, como foi descoberto depois, ela estava oca e teria afundado se o animal a tivesse pisado. Há outros incontá-veis fenômenos para provar a perspicácia e a sutileza do sentido animal ou ins-tinto, como é chamado.

Percepção significa contato com o objeto. Bem, o que é este contato? Na percepção sensorial humana normal, por exemplo, é a vibração física emanente do objeto que contata o órgão físico. A distância em que a vibração pode ser recebida depende da sensibilidade dos nervos receptores. No homem a sensibi-lidade é limitada, no animal é altamente intensa. Contudo, isto é apenas um dos fatores do fenômeno. Explicaremos:

Como é bem sabido, existem três níveis de consciência: o físico, o vital e o mental; no momento deixamos de considerar o quarto ou o espiritual (inclusive

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o psíquico). Não apenas isto, em cada nível ou plano todos os outros estão envolvidos, isto é, acham-se ocultos. Assim, na mente existe uma mente vital e uma mente física; no vital, há um vital mental e um vital físico. Assim no físico também existem estas três gradações: 1) o físico físico, 2) o físico vital e 3) o físi-co mental.

Agora entenderemos melhor o processo do contato na percepção sensorial. O contato puramente material, a vibração física que toca os nervos físicos de um órgão particular, é um exemplo da percepção física física: o cão que cheira ou o elefante que escuta a distâncias extraordinárias. Temos ouvido falar de homens que, colocando o ouvido no chão, são capazes de perceber sons que vêm de uma grande distância e que praticamente são inaudíveis a outros que estão por perto.

Mas existe uma outra classe onde não se cogita de vibração material; é a vibração vital no físico que toca o físico vital do receptor. O elefante que acha água ou sente a estrada oca é um exemplo disso. O físico mental, o último dos três, é uma espécie de intuição no físico; é o que usualmente se chama "instin-to". Um gato, por exemplo, colocado num saco e levado de sua casa a uma dis-tância de várias milhas, achará seu caminho de volta. Um cão andará quase o mundo todo e achará e reconhecerá seu dono mesmo depois de muitos anos (o primeiro a reconhecer Ulisses foi seu cão).

No homem, também o físico vital, mais especialmente o físico mental, não raro encontra ocasião para se manifestar, embora seu físico físico, isto é, sua sensibilidade puramente material seja extremamente limitada. Esta limitação da sensibilidade física em geral, qualquer que seja a esfera a que pertença, é devida a preferências intelectuais ou racionais que se desenvolveram nele. Nas raças ou tipos mais genuínos, a sensibilidade ainda se conserva. O homem pode, contu-do, cultivar e conscientemente desenvolver estas faculdades: isto se torna então o que se chama um sistema de Yoga. O exemplo familiar da ação física mental quando cultivada no homem é oferecido pelo adivinhador de água ou o rabdo-mante, como o chamam. Mas, como disse, o efeito normal da racionalidade humana é inibir a ação espontânea dos sentidos, como ela se apresenta natu-ralmente nos animais.

É interessante notar que os animais no estado selvagem, mantém intacta sua capacidade instintiva, sua "segunda visão", mas começam a perdê-la quando convivem com os homens, quando sob a influência da mente e da razão humana se tornam "domesticados". Uma vaca habituada a pastar livremente nos cam-pos, nunca tocará a grama venenosa, evitá-la-á sempre e tomará apenas a variedade inofensiva e saudável. Mas confinada dentro do estábulo, acostuma-

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SEGUNDA VISÃO 93

da a uma vida fechada, perde seu instinto natural, torna-se confusa e não sabe distinguir a comida certa da errada, porque lhe dão sempre coisas preparadas pelo dono.

O contato humano exerce assim um efeito prejudicial à vida instintiva do animal. Mas de outro lado, pode também ter uma influência enaltecedora. Alguns dos sentimentos humanos refinados — simpatia, gratidão, fidelidade, autosacrifício — num modo humano pronunciado, encontram expressão em animais domesticados, que vivem perto do homem e dentro de sua atmosfera. É verdade que muitos destes sentimentos não estão totalmente ausentes no reino animal (especialmente nos níveis mais elevados), em seu estado natural ou sel-vagem, mas pertencem a um nível de puro sentimento ou impulso e não se ele-varam ao nível de sentimentos que têm um elemento mental infuso em seu estofo vital. Na verdade, um forte elemento mental, uma capacidade de raciocí-nio se desenvolve às vezes muito claramente no animal doméstico.

Dizemos que o animal age por instinto, quer dizer, ele vai direto à coisa a ser feita. A fim de fazê-la, ele não faz uma escolha entre possibilidades, não há nenhum processo seletivo em sua consciência. E somente a consciência humana que diz, "isto não é para ser feito, mas aquilo é para ser feito, não isto mas aqui-lo", ou formula a pergunta "qual deles, ser ou não ser?" Isto é o que queremos dizer por discriminação ou deliberação. Normalmente esta faculdade está ausente no animal. Falamos de sentimentos refinados no homem; "refinados" aqui não significa sempre enobrecidos ou moralmente elevados. Também podem significar mais sutis, mais complicados e ser aplicados a alguns sentimen-tos mais básicos — acentuadamente perversos — que são talvez peculiarmente humanos. Os animais domésticos, algumas vezes, os contraem dos homens: inveja, desprezo, represália, vingança a um extremo grau, provavelmente se encontram mais entre animais que convivem com homens do que entre os que se encontram em estado selvagem. Ouvimos falar de elefantes remoendo-se durante longos meses por causa de um ferimento ou mesmo um insulto, e vin-gando-se quando a ocasião se lhes apresenta. E ouvimos falar de um gato que se atirou de uma janela para a rua e se matou, simplesmente porque pensou que sua dona mostrasse mais amor por um outro gato.

A humanização de animais que convivem com os homens, através de seus efeitos bons e maus, tem um valor evolucionário: quer dizer, alguns animais atingem deste modo quase um estado humano em suas almas. E os ocultistas dizem que as almas passam desta maneira da encarnação animal para a huma-na.

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94 PARTE VI

A MÃE SOBRE SI MESMA

Há duas coisas que não deveriam ser confundidas uma com a outra, a saber, o que se é e o que se faz, o que se é essencialmente e o que se faz no mundo exterior. Elas são muito diferentes. Sei o que sou. E o que os outros pensam e dizem ou qualquer coisa que aconteça no mundo, não altera essa verdade que permanece inabalável, inalterável, um fato. É real para si mesma e a negação ou a afirmação do mundo não aumenta nem diminui essa realidade. Mas sendo o que sou, o que faço realmente é totalmente uma questão diferente: dependerá das condições e circunstâncias onde as coisas estão e nas quais e através das quais eu deva trabalhar. Conheço a verdade que trago, mas quanto dela acha expressão no mundo, depende do próprio mundo. O que trago, o mundo deve ter a capacidade e a vontade de aceitar: de outra forma mesmo se eu trouxesse comigo a verdade mais alta e mais imperativa, ela seria, absolutamente inexis-tente para uma consciência que não a reconhecesse nem a recebesse: o ser com essa consciência não tiraria dela o mínimo proveito.

Você dirá que, se a verdade que eu trago é suprema e onipotente, porque ela não obriga o mundo a aceitá-la, porque ela não pode quebrar a resistência do mundo, forçar o homem a aceitar o bem que ele recusa? Mas esse não é o modo pelo qual o mundo foi criado, nem a maneira pela qual ele se move e se desenvolve. A origem da criação é liberdade: é um livre arbítrio na consciência que se projetou como o mundo objetivo. Esta liberdade é o próprio caráter de sua natureza fundamental. Se o mundo nega sua verdade suprema, seu bem mais elevado, assim o faz no deleite de sua livre escolha; e se for para voltar e reconhecer essa verdade e esse bem, deverá assim fazê-lo no mesmo deleite de livre escolha. Se ao mundo errante fosse obrigado a se corrigir e imediatamente assim o fizesse, se as coisas fossem feitas num instante, através de milagres, então, não haveria razão para se criar um mundo. Criação significa um jogo de crescimento: é uma jornada, um movimento no tempo e no espaço através de passos e estágios graduados. É um movimento para longe — longe de sua fonte — e um movimento direcionado: esse é o princípio ou plano sobre o qual ela se mantém. Neste plano não há compulsão sobre quaisquer dos elementos que compõem o mundo para renegar seu movimento natural, para obedecer a um ditame do exterior: tal compulsão quebraria o ritmo da criação.

E contudo há uma compulsão. É a pressão secreta da própria natureza da pessoa que a impulsiona para a frente através de todas vicissitudes, de volta novamente à sua fonte original. Quando se diz que a Graça Divina pode e deve-ria fazer tudo, isso significa nada mais e nada menos do que isso: a Graça Divina apenas acelera o processo de retorno e reconhecimento. Mas ao lado do ele-

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A MÃE SOBRE SI MESMA 95

mento que viaja, a alma, uma colaboração consciente deve ser despertada, um consentimento inicial e uma adesão renovada constantemente. É isto que traz para fora, pelo menos ajuda a estabelecer no exterior, no plano físico, a força que já está e tem sempre estado a trabalhar dentro e nos planos mais altos e mais sutis. Esse é o esquema do jogo, o sistema de condições sob os quais o jogo é executado. A Graça trabalha e se incorpora em e através de um corpo de cola-boradores conscientes e de boa vontade: estes tornam-se parte e parcela da Força que trabalha.

A verdade que eu trago manifestar-se-á e será incorporada sobre a terra; pois, é o destino inevitável da terra e do mundo. A questão de tempo é irrele-vante. Em um aspecto, a verdade que digo que será manifestada, já está total-mente manifesta, já está realizada e estabelecida: não há questão de tempo lá. Ela está em uma consciência interminável ou eternamente presente. Há um processo, um jogo de tradução entre o equilíbrio infinito e o equilíbrio no tempo que nós conhecemos aqui em baixo. A medida desse hiato é muito relativa, rela-tiva à consciência que mede, longo ou curto de acordo com o metro que cada um traz. Mas isso não é a essência do problema: a essência é que a verdade está lá, ativa, no processo de "materialização", apenas dever-se-ia ter a visão para vê-la e a alma para saudá-la.

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PARTE VII

REALIZAÇÃO, PASSADA E FUTURA

Todo o mundo material e físico, toda a terra — refiro-me à terra porque nos preocupamos mais diretamente com ela do que com outras regiões — tem sido até agora governada por forças de consciência que vêm daquela região que Sri Aurobindo chama de Sobremente. Mesmo a coisa que o homem chama de Deus é uma força, um poder na Sobremente. O universo inteiro tem estado, por assim dizer, sob o domínio deste status de consciência. Mesmo assim, você tem de passar por muitos graus ou níveis intermediários para chegar à Sobremente e quando você chega lá, a primeira impressão é de uma luz ofuscante que quase o cega. Mas pode-se e deve-se pressionar e ir além. Sri Aurobindo diz que a regência da Sobremente está agora justamente chegando ao fim e a regência da Supermente tomará seu lugar. Todas as experiências espirituais do passado foram concernentes à Sobremente. Assim, isso é uma coisa conhecida de todos que encontram o Divino e que estão identificados com Ele. O que Sir Aurobindo diz é que existe alguma coisa além da Sobremente, que está situada num degrau mais alto e que agora é a vez deste status mais elevado descer e reinar. Não precisamos falar muito da Sobremente, porque todos os santos e videntes, todas as religiões e disciplinas espirituais, escrituras e filosofias falaram dela detalhadamente. Todos os deuses conhecidos e familiares aos homens estão lá no seu panteão. O que queremos, o que é necessário agora é uma nova revela-ção, uma manifestação de certo modo nova, da qual muito poucos estiveram conscientes no passado. Não estamos aqui meramente para repetir o passado.

Mas isso é tão difícil! É difícil para as pessoas deixarem experiências que tiveram, largarem aquilo que, repetidamente e em toda parte, ouviram e leram a respeito. E difícil não pensarem na Supermente em termos de Sobremente, não confundirem a Supermente com a Sobremente. São incapazes de conceber algo além ou diferente. Sri Aurobindo costumava sempre dizer que seu Yoga começava onde todos os Yogas passados terminavam. Para realizar o Yoga dele já se deve ter chegado ao limite extremo daquilo que os antigos realizaram. Em outras palavras, já se deve ter tido a percepção do Divino, a união e identifica-ção com o Divino. Esta divindade, diz Sri Aurobindo, é o Divino da Sobremente, que já é em si algo bastante inconcebível para a consciência humana e mesmo para chegar lá, é necessário elevar-se através de muitos planos de consciência e, como disse, fica-se ofuscado e atordoado, mesmo neste nível.

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REALIZAÇÃO, PASSADA E FUTURA 97

Há seres do mundo vital que, todas as vezes que aparecem aos homens, são por eles tomados por deuses supremos. Você pode chamar isso de ilusão mas é uma aparência enganosa muito bem sucedida, pois frequentemente pessoas que os veem ficam totalmente convencidas de que aquilo que veem é na verda-de o próprio Deus. Contudo, esse Deus é somente um ser vital. Mesmo assim, os seres da Sobremente são tão assombrosos em comparação conosco, seres humanos, que ficamos verdadeiramente atordoados toda vez que entramos em contato com essas entidades. E a Supermente e os seres supramentais estão ainda mais além. Assim, você pode compreender a distância a ser ainda percor-rida.

Mas há uma espécie de Graça que vem a seu auxílio. Se um cientista tivesse novamente que repassar todas as experiências que já foram feitas, tudo que os outros descobriram no passado em seu ramo, para fazer um progresso mais além, para chegar a uma nova descoberta, então, ele teria de passar toda a vida repetindo o passado e não sobraria tempo para nada mais. O cientista, em vez disso, abre um livro ou consulta uma outra pessoa que esteja familiarizada com o passado e adquire todo o conhecimento que requer sobre o assunto. Sri Auro-bindo quis fazer algo semelhante no domínio espiritual. Pede-lhe para recolher a experiência do passado — está toda aí gravada na história da terra — e conti-nuar. Baseando-se nisso você se eleva a planos ainda mais altos. Entretanto, você pode perguntar pertinentemente, porque nós não começamos com seres sobrementais; deveríamos ter aqui, digamos, apenas Vivekanandas e não criatu-ras frágeis e comuns.

Você pensa que o trabalho teria sido mais fácil? Tais seres, ao contrário, teriam sido menos controláveis e maleáveis. Pois é muito difícil convencer alguém que já tenha tido uma realização. Ele acredita que já alcançou a meta e que nenhum progresso posterior lhe seja necessário. Geralmente acontece, especialmente com homens que se esforçaram e realizaram o objetivo de seus esforços, que eles não progridem mais e param nisso, porque sentem que já alcançaram sua meta final. Acomodam-se e lá se fixam. Era seu alvo pessoal e o conseguiram. O cérebro deles torna-se cristalizado e sua consciência fossilizada. Viverão lá toda a vida e nunca saberão como continuar. Assim, digo eu, aqueles que tiveram uma experiência ou realizaram algo em si próprios, não são neces-sariamente os mais adiantados porque falta-lhes um elemento de simplicidade, de modéstia, de plasticidade, que ocorre com alguém que sinta que não se desenvolveu plenamente e tem que se desenvolver ainda mais.

Uma pessoa realizada, se posso assim dizer, literalmente e de certo modo veementemente, é um produto terminado para ser guardado na caixa de vidro

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de um mostruário, num museu. Ela é uma amostra do que foi feito e do que pode ser feito. Mas aí você não tem o estofo para prosseguir. Preferiria, para meu trabalho, alguém Que tivesse talvez pouco conhecimento mas muita boa vontade, uma grande aspiração, que sentisse dentro de si esta chama, esta necessidade de ir para frente. Digo, ela pode saber pouco, ter realizado ainda menos, mas aqui está um bom material, com o qual se pode ir longe, muito lon-ge. Além disso, há um outro ponto a ser considerado. Como no alpinismo, um guia é muito útil, mesmo indispensável, para que possa lhe mostrar o caminho certo e torná-lo mais fácil para que você possa escalar alturas cada vez mais ele-vadas. Assim, na ascensão espiritual, um guia, se você tiver a boa sorte de encontrar um, ajudá-lo-á a elevar-se muito mais alto do que poderia fazê-lo por sua força e visão pessoais de um objetivo fixo. Você não fica orgulhoso de sua descoberta e não perde tempo ou energias em buscas e investigações inúteis.

É por isso que prefiro crianças — crianças no corpo ou na alma — e temo adultos saturados de erudição e realização.

O UNIVERSO EM ESPIRAL

A evolução não se processa em linha reta, mas em espiral. Quer dizer, não é um constante progresso em uma única direção, mas consiste em progressão, regressão e uma progressão final. O movimento em espiral significa que todas as coisas devem entrar no fenômeno de evolução, para evitar que apenas uma úni-ca coisa progrida deixando as outras para trás, mas que tudo se mova para fren-te — tudo se move para frente mas em diferentes velocidades e também de diferentes pontos de partida. E elas se movem, não em linha reta como o vôo do corvo, mas em círculo, como a águia que paira nas alturas. Se você concentrar-se sobre um ponto do círculo, verá, em relação a ele, que muitos outros não avançam de modo algum, mas recuam e o ponto mesmo parecerá às vezes estar retrocedendo em direção a uma posição ocupada anteriormente. Anda-se para trás para apanhar certos elementos que não foram incluídos no progresso, não devidamente trabalhados. Acontece, usualmente, que quando você progride numa coisa, esquece outra; assim tem que voltar para apanhar o elemento negligenciado. Então, você tem que dar voltas e mais voltas, por assim dizer, até abranger a totalidade de seu ser, até mesmo abraçar a totalidade do universo. Contudo, quando tiver reunido o fator negligenciado e voltado à posição original de onde tinha aparentemente regredido, você descobrirá que não está exata-mente no mesmo ponto, mas num ponto correspondente em um plano mais alto. Isto forma uma espiral, não meramente um círculo.

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O UNIVERSO EM ESPIRAL 99

Existe no universo um infinito número de pontos se movendo, cada um for-mando uma espiral; portanto existe um número infinito de espirais. E estas espi-rais, não apenas se situam lado a lado, mas entrecruzam-se dando um aspecto de oposição e de contraditoriedade. Portanto, se quiser ter uma visão total do movimento do progresso universal, você ficará de certo modo perplexo. Existem umas tantas linhas que avançam e outras tantas que retrocedem ao mesmo tempo. Algumas vêm em direção à luz, outras vão para o fundo e nenhuma é independente ou autossuficiente. Há uma espécie de mesclagem, até mesmo de coordenação.

O universo pode então ser concebido como um globo, consistindo de um número infinito de espirais que se interceptam. Pode-se dar a cada espiral uma cor diferente, cada uma representando um aspecto do movimento da natureza. Um globo, modelo desta espécie, pode talvez ser construído. Apenas uma sec-ção da curva da espiral fica do lado de fora, o resto permanece dentro do globo e pode ser visto por causa de sua cor especial, desde que consideremos o globo como algo transparente. Estas secções múltiplas de fora formam a superfície do globo. O interior está, naturalmente, cheio de espirais, exceto aquela secção da espiral que está no exterior. B entretanto, apesar de se cruzarem e entrecruza-rem, não formam uma massa opaca. Pode-se ver através e seguir as linhas bri-lhantes de cores variadas. É assim que vejo isso. Você pode tentar fazer dele uma figura geométrica, se for possível. A natureza tem um plano próprio. Não é como o plano coerente e racional do homem. O plano da Natureza é feito de uma aspiração, uma decisão e um alvo. Mas o modo é realmente fantástico, pelo menos é o que aparenta ao homem. A Natureza parece mover-se de momento a momento, sob a pressão da ocasião; há avanços, retrocessos, tenta-tivas, contradições, demolições de coisas, construções laboriosas e outras vezes, destruições. É um completo caos. Ela começa uma coisa, deixa-a pela metade, toma outra, rejeita-a completamente, começa de novo algo deixado de lado, faz, refaz, desfaz, separa, mistura. Ela segue um milhão de linhas de progresso ao mesmo tempo, mas não do mesmo ponto de partida e cada uma com sua própria velocidade e ritmo. Há tal emaranhado que parece não fazer sentido. Contudo, existe um plano, ela persegue um objetivo que lhe parece muito claro, apesar de velado ao olho humano. O globo em espiral de que falei, pretende dar alguma ideia desta unidade complexa do plano da Natureza.

Você pode trazer para dentro dele uma ordem melhor, com menos desper-dício e mais eficiência, uma organização mais consciente. Mas para isto, o homem deve mudar primeiro sua própria organização interior. Em sua própria consciência e ser, ele deve introduzir uma nova ordem, um novo cosmos.

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100 PARTE VII

ESTE UNIVERSO EM EXPANSÃO

O universo é uma manifestação, quer dizer, o desdobramento de infinitas possibilidades. O desdobramento não parou, está continuando e continuará, lançando fora ou trazendo para dentro da expressão física tudo aquilo que está por trás e latente. O universo pode ser considerado como uma esfera ou um globo, uma totalidade ou conjunto contendo tudo que existe aqui e está sendo manifestado. Além e fora, por assim dizer, deste círculo de criação, encontra-se o transcendente, o Divino Supremo, em seu próprio status. O transcendente significa o não-manifesto. Entretanto, não significa o vazio, porque contém tudo aquilo que é para ser manifestado, todas as coisas com suas potencialidades, suas essências, em forma de semente. Tudo se encontra ali como uma possibili-dade latente, uma verdade fundamental de ser — tudo está ali, não simples-mente como ideia geral, mas em todos os detalhes, como se fosse em escala microscópica, algo como os cromossomos na vida da célula. O transcendente está além do tempo e do espaço. A Manifestação ou a criação começa com a formulação do tempo e do espaço, a moldura para a qual aquilo que existe em forma latente é gradualmente trazido para fora e exposto. O transcendente é a consciência absorvida em si mesma, identificada consigo mesma; a manifesta-ção é a consciência despertando e olhando-se como seu objeto (La prise de conscience objective de soi).

Assim, pode-se permanecer inativo ou estacionado exclusivamente no status do imanifesto. Para essa pessoa o infinito e o eterno são realidades sempre pre-sentes, não há nada como passado ou futuro, tudo é. Ela sabe e está na presen-ça de uma verdade fixa; tudo que aconteceu, tudo que acontecerá — como se nos aparenta — lá está realizado no mesmo plano e no mesmo momento (embora os termos plano e momento não se apliquem bem aqui). E o mundo ou status do absolutamente determinado. A livre escolha ou a não determinação, o inesperado e o imprevisto não têm lugar aí.

A esfera de manifestação, ao contrário, é precisamente o campo do súbito e do incalculável, quer dizer, do livre arbítrio. Aí as coisas que não estavam ante-riormente aparecem, forças que não eram esperadas ou mesmo imaginadas, entram em jogo. Todas elas movem-se por linhas que mudam e trocam conti-nuamente. Este é o status do tornar-se — sambhuti, como é designado pelo Upanishad e descrito pelo filósofo grego Heráclito, nas palavras panta rei, tudo flui continuamente. Aqui, frequentemente, uma certa disposição que parece bastante estável ou previsível, é perturbada de repente pela invasão de um fator novo e recente, que veio de algum lugar.

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Mas entre os dois, como se fosse na fronteira, há um equilíbrio de consciên-cia que combina ambos numa percepção integral e é um único movimento dos dois, do ser e do tornar-se: é a Supermente. É o ponto onde o que é ou existe no imanifesto, justamente torna-se no manifesto, a verdade e a realidade puras, acima, imóvel, agita-se e começa a sair ou desprender-se através de um jogo de possibilidades. É como um filme de cinema que é enrolado e conservado na bobina até que seja posto no projetor e desenrolado gradualmente sobre a tela da vida, numa apresentação em tamanho natural.

O transcendente é então uma realidade integral, pois ela contém o todo, mas é de dimensão fixa — avyaya, ele não cresce nem decresce: é o Estável, o Estagnado — sthānuracaloyam. O cosmos, por outro lado, não está apenas se movendo ou mudando, está também sempre crescendo e se expandindo. Pois novos possíveis estão se tornando reais aqui e acrescentando algo à soma de seus fatores. Do transcendente, do não-manifesto, potenciais estão sendo cons-tantemente emitidos para baixo e se tornado dinâmicos no universo, fazendo-o cada vez mais rico.

Além do mais, esta expansão não é meramente acréscimo, mas um cresci-mento, quer dizer, é dirigido e tem sentido, um propósito e um fim em vista. De fato, todos os possíveis que encontram âmbito de ação, os elementos que entram aqui embaixo, são necessários pelo modo como contribuem para o signi-ficado do Drama, para o desenrolar do enredo. Podemos tomar outra vez a ana-logia do filme de cinema e dizer que o filme que se desenrola é interessante porque tem uma história para contar, contínua e em desenvolvimento, com um princípio, um meio e um fim. Da mesma forma, a manifestação também conta um história interligada — não é um disparate, mas tem um alvo; é um processo elaborado por uma causa final. Do mesmo modo que um ser individual, ela é um organismo que está sempre crescendo e trazendo para fora suas possibilidades latentes, movendo-se em direção a uma alta fruição de sua aspiração e de seu destino.

Nesse sentido, a manifestação é uma realidade mais completa — e cada vez mais completa — do que a do Supremo não-manifesto. O Não-Manifesto, o Transcendente, é uma realidade integral, a manifestação uma realidade comple-ta, uma vez que ela acrescenta à sua própria realidade, a atualidade da expres-são concreta.

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102 PARTE VII

O MUNDO SERPENTE

O universo é frequentemente concebido como uma serpente enroscada, comendo-se a si mesma, com a cabeça virada e engolindo o rabo. A imagem é a de um esfera ou globo abrangendo toda a existência, de algo sem fim ou come-ço, infinito. Também dá a ideia de uma extensão perpétua, quer dizer, de cons-tante criação, mas ao mesmo tempo de um retorno. O desenrolar do universo não segue uma linha reta, mas circular.

Entretanto, o universo é uma entidade complexa. Não é constituído de um plano único, mas consiste em muitos planos sobrepostos, uns sobre os outros. Assim, no fundo, como base, está o físico — a matéria — e no topo, como o acme, está o mais sutil, o espiritual; entre eles há gradações cujo número varia segundo a modalidade da perspectiva.

Voltando à imagem da serpente, pode-se dizer que a cabeça representa o espírito, a consciência suprema, e o rabo, o outro extremo, a matéria de supre-ma inconsciência. A imagem, sobretudo, dá uma ideia gráfica da grande verdade de que os extremos se encontram, a cabeça curva-se e pega o rabo. Psicologi-camente, isto significa que se alguém elevar-se cada vez mais alto em consciên-cia, começando da consciência do corpo, atravessando a Vida e a Mente e a Sobremente e alcançar a própria fonte, isto é, a cabeça e fronte de consciência, então, curioso dizer, encontra-se subitamente imerso no coração da matéria. Em linguagem oculta, isto quer dizer que a consciência que brilha no pico mais elevado está impregnada também aqui em baixo no abismo da matéria morta. Se alguém se elevar suficientemente alto, degrau por degrau, até o extremo fim da escada, voltará exatamente ao ponto de onde começou, sem ter que passar através de todos os degraus. Reversamente também, se alguém sondar profun-damente, no mais longínquo canto da matéria, o último limite da inconsciência, sairá para a luz intensa da mesma infinitude que abrange acima e abaixo e em volta.

Podemos relembrar aqui a curiosa conclusão alcançada por alguns cientistas modernos a respeito do caráter esférico do universo que, sendo ele uma super-fície de fronteiras sem fim, é bem possível que uma determinada estrela que você vê à sua frente, possa não estar ali situada, mas esteja enviando raios que vieram à volta de toda a esfera, atingindo-o por trás, por assim dizer.

ESTE MISTÉRIO DA EXISTÊNCIA

Alguma vez você já se perguntou porque este universo existe afinal, pelo menos esta terra com a qual estamos tão preocupados e que nos parece tão

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O REGISTRO DA HISTÓRIA DO MUNDO 103

real, tão autêntica? Seria talvez mais sábio de sua parte não perguntar. Frequen-temente tenho lhes falado de Théon. Ele era verdadeiramente um sábio, a seu modo. As pessoas costumavam procurá-lo e fazer-lhe perguntas. Muitos per-guntavam porque existia um universo. Ele respondia: "Mas o que lhe importa isso?" Alguns perguntavam "Por que o universo é assim?" a isso ele dizia: "Ele é o que é, que diferença faz para você?" Outros ainda comentavam: "Eu não con-sidero o mundo um acontecimento satisfatório". Agora chegamos mais ao ponto principal. Para aqueles que acham o mundo insatisfatório, dizia: "Comece a tra-balhar, tente mudá-lo. Descubra um modo de fazê-lo de outra forma, para que possa torná-lo melhor". As coisas são o que são, não adianta especular a respei-to e preocupar-se. Procure meios de remediá-las para que possam tornar-se o que deveriam ser. Por que as coisas são o que são? Não que não se possa saber a razão, embora nunca se tenha certeza. A melhor coisa a fazer é aceitar o que quer que seja como é, e tentar mudá-lo naquilo que deveria ser. Agora, a mara-vilha disto é que se você for sincero, se desejar saber verdadeiramente e traba-lhar honestamente, saberá porque as coisas são o que são — a causa, a origem e o processo — pois são apenas um. Há uma única verdade na base das coisas; se ela não estivesse lá, nada existiria. Se você captar essa verdade, conhecerá ao mesmo tempo a origem da criação e os meios de mudá-la também. Em outras palavras, se estiver em contato com o Divino — pois o Divino é essa base — você estará de posse da chave de todas as coisas, saberá 0 porquê, o como e o processo para a mudança. A coisa a fazer, então, é começar a transformá-la. Mas você Poderá dizer que ela é grande demais, muito difícil, enorme, para que você possa trabalhá-la no mundo ou para o mundo. Muito bem, comece então por você mesmo. Você é uma pequena massa de substância, um símbolo ou representante do universo. Que seu trabalho seja o de formar e remodelar essa partícula. Concentre-se nela, aprofunde-se dentro daquela sua pequena pessoa e achará a chave há tanto procurada.

O REGISTRO DA HISTÓRIA DO MUNDO

Tudo que aconteceu na terra, tudo, desde o começo da criação até agora, tudo sem exceção, foi registrado em algum lugar, em algum mundo particular ou região de consciência. Tudo que o homem pensou, suas pesquisas e desco-bertas, seus achados e suas conclusões são conservados intactos, cuidadosa-mente armazenados. Se você quiser saber qualquer coisa da história passada da terra, algum acontecimento num determinado tempo e lugar, você deverá sim-plesmente transportar-se para aquele mundo e procurar nos registros.

É um lugar muito curioso, algo como uma vasta biblioteca. Consiste de um número infinito de celas, por assim dizer, cada uma contendo todas as informa-

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ções sobre um assunto determinado. Parecem quadradas na forma e permane-cem fechadas normalmente. Se você tiver que consultar um quadrado determi-nado, você aperta um botão, ele se abre e vem para fora um rolo de matéria escrita. Você o desenrola e descobre o que quer. Há milhões e milhões destas celas e rolos, à volta, acima, em todo lugar. Felizmente, no mundo mental, você pode mover-se em qualquer direção, não precisa de elevadores, nem de escadas para subir.

A questão, entretanto, é como chegar até lá. Bem, a primeira coisa a fazer é silenciar sua mente completamente. Cogitações mentais e agitações devem ser deixadas para trás, nenhum pensamento deve entrar em sua consciência, ela deve estar tranquila e imóvel como um lençol de água transparente ou lisa e polida como um espelho. A descrição que fiz de uma biblioteca é apenas uma imagem, a coisa real é algo diferente. Entretanto, desta forma você tem alguma ideia para se basear. Na mente silenciosa você forma um ponto de consciência e o envia como mensageiro para colher a informação requerida. Este ponto de consciência deve estar totalmente desligado e ter a liberdade de ir para onde quiser, pois se ficar preso a qualquer forma dos movimentos normais de sua própria mente, então, você não irá mais longe do que existe em sua cabeça. Você deve ser capaz de tornar seu cérebro vazio, não deve ter nenhuma noção preconcebida, nenhuma ideia de que a solução de seu problema esteja neste ou naquele caminho. Como disse, sua mente tem que se tornar uma página absolu-tamente em branco, uma lousa limpa, sem nada escrito nela,nem mesmo uma marca. Deverá haver, em vez disso, uma aspiração sincera para conhecer a ver-dade, sem postular de antemão que espécie de verdade deverá ser, senão você encontrará no cérebro sua própria formação.

Certamente você poderá testar e corrigir a informação que conseguir da via-gem interior pela informação exterior, do que outros acharam ou do que foi anotado em livros. O conhecimento interior não precisa nem deveria tomar o lugar do conhecimento exterior, mas suplementá-lo, e ambos deveriam apoiar-se e completar-se mutuamente. Mas há uma mistura sobre a qual você deve ser muito cuidadoso. Sua mente silenciosa, sua consciência interior recebe o conhe-cimento necessário, mas quando você quer expressá-lo ou traduzi-lo em termos normais, Quer dizer, quando seu cérebro se torna ativo novamente, pode, e de modo geral o faz, fornecer seus próprios materiais e formações, e o conheci-mento original é perturbado e distorcido. Algumas vezes o que você pode fazer é ditar passivamente as coisas que vê ou percebe e deixar que outra pessoa anote, por escrito, enquanto você prossegue. Você deve dizer exatamente o que vê e o outro tomar nota exatamente do que ouve.

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LIBERDADE E DESTINO 105

É como a imagem de ler um livro que lhe dei. Mas é, como disse, apenas uma imagem. O que ocorre realmente, é uma espécie de percepção. E a percep-ção pode ser na forma de uma imagem, pode ser na forma de uma narrativa. Outras vezes pode ser uma simples resposta a uma determinada questão. Há muitas espécies e variedades de registros, diferindo de acordo com os tipos ou níveis de consciência que você alcança.

Naturalmente, o processo não é fácil e disponível para todos, como um livro comum. Requer uma aptidão e uma disciplina especial.

LIBERDADE E DESTINO

De um certo ponto de vista, qualquer coisa que aconteça aqui no mundo material é a reprodução ou realização do que já aconteceu ou existiu em um outro nível de realidade. Portanto, neste mundo, não há livre escolha, tudo é predeterminado. Contudo, por outro lado, pode-se dizer, com igual verdade, que o mundo aqui está sendo recriado a cada momento. Não é meramente uma repetição ou volta ao passado, de um evento acontecido antes, um fenômeno preexistente, mas algo sempre novo e recente. Tome, por exemplo, o corpo material de uma composição química particular, tendo algumas propriedades bem definidas. Ele se comporta de acordo com esta natureza e produz inevita-velmente resultados derivados dela. Bem, se um novo elemento for introduzido dentro dele a qualquer momento, a qualidade inteira da composição e seu com-portamento sofrerão uma mudança. Algo parecido com isto acontece no univer-so.

O universo é uma massa enorme constituída de inúmeros elementos que formam uma certa composição e, de acordo com esta composição, tudo está organizado dentro dele. Mas este arranjo não é o fim ou o acme; não é estático, mas move-se para frente e está em processo de desenvolvimento. Porque a qualquer momento, através da ação de uma espécie diferente, um ou mais ele-mentos novos podem ser introduzidos na massa total que forma o universo a um dado momento e, inevitavelmente, mudará toda a composição interna, O universo, isto é, o universo material, é a concretização de um certo aspecto ou emanação do Supremo. Esta concretização é progressiva, não necessariamente de um modo regular e constante, mas em resposta a uma lei, com uma qualida-de sutil ou grau de liberdade. Assim, na composição do universo, a cada momento, novos elementos estão penetrando e alterando a organização. A organização, que era perfeita em si mesma e movia-se e desenrolava-se de acordo com um plano e padrão definidos, muda subitamente e as relações inte-riores também são modificadas e atingem um equilíbrio diferente. Isto pode dar

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a impressão de algo incoerente ou impreciso ou milagroso de acordo com a maneira como se olha o problema. Assim, existem estes dois fatos ou fatores simultâneos: há um determinismo que é absoluto, a seu modo, com um movi-mento complementar de liberdade e há a adição imprevista dentro de uma soma existente fixa.

Esta adição vem da aspiração pela suprema Consciência. No fenômeno não existe nada para causar admiração. Há uma aspiração agindo no mundo, movendo-se com um certo fim em vista. O propósito é trazer de volta a cons-ciência decaída e obscura ao seu estado normal e original da consciência divina. Cada vez que esta consciência aspirante encontra um obstáculo ao seu trabalho, uma resistência nova para conquistar ou transformar, ela chama por uma nova Força; e esta nova Força é uma espécie de nova criação. No ser humano tam-bém, há domínios diferentes, em obediência à lei de correspondência; em cada um há um destino diferente e cada um é absoluto em sua linha. Mas há também nele, através de sua aspiração, a capacidade de entrar em relação com um domínio mais alto do que aquele onde ele acontece estar, e trazer para baixo a ação desta região mais elevada para o determinismo inferior. Assim, podemos dizer que há um determinismo horizontal em cada domínio, absoluto em seu trabalho normal. Mas há também uma intervenção vertical de outros planos mais altos ou mesmo do mais elevado e, então, o determinismo mais baixo é mudado completamente. Desta forma, cada ser humano é, ao mesmo tempo, uma soma dos vários determinismos, absoluta a seu modo, e há também uma liberdade absoluta que pode intervir trazendo para baixo outras forças dentro da moldura aparentemente rígida do destino dos mundos inferiores e alterá-la. Isto é como as coisas no mundo dão a impressão de imprevisível, do incalculá-vel, do milagroso.

Você pode chamar a isto de intervenção da Graça, porque sem a Graça Divi-na isto não podia acontecer. Existe uma consciência e uma visão das coisas na qual tudo é trazido de volta a esta única força; apenas a Graça existe, não há nada mais ali. Isso faz tudo. Mas como você não se elevou até este ápice, não teve essa realização extrema, tem que tomar em consideração sua própria pes-soa, sua aspiração pessoal, a coisa que chama pela Graça, à qual a Graça res-ponde. Os dois são necessários aqui. Enfim, ambos são modos de ver a mesma verdade, a mente, contudo, acha difícil conceber os dois em um movimento simultâneo. As rígidas distinções que faz, desperdiçam muito da verdade inte-gral, sutil e flexível de uma experiência total.

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A VERDADE DIVINA — SEU NOME E SUA FORMA 107

A VERDADE DIVINA — SEU NOME E SUA FORMA

A verdade divina no âmago das coisas tem sido chamada por toda espécie de nome, cada um apresentando-se segundo seu próprio ângulo de experiência. Mas ela é sempre a Realidade única. Há milhões de modos que conduzem a ela. Mas uma coisa é certa: você pode encontrá-la e qualquer que seja o caminho que siga, qualquer que seja a forma que lhe dê, o resultado é sempre o mesmo, a experiência final é idêntica. Se todos tiverem-na alcançado, esbarram sempre na mesma coisa. E a prova de que entraram em contato com a verdade divina é que ela é a mesma para todos; se não fosse a mesma coisa, não a teriam tocado. Você pode lhe dar o nome que quiser, pois um nome é apenas uma palavra.

Qual é o valor de uma palavra, afinal? Você já notou que há pessoas que não o entendem, embora lhes fale claramente? Há outras, ainda, que o entendem mesmo que você pronuncie apenas duas palavras. A forma externa — o som de uma palavra — só tem sentido se existir uma força de pensamento por trás. Quanto maior a força de pensamento, mais poderosa e precisa e clara ela é, maior a chance das pessoas receberem a força e entenderem a palavra que car-rega a força. Mas quando alguém fala sem pensar, de modo geral, é impossível entendê-lo; ouve-se apenas um barulho.

Você deve ter notado também que pessoas que vivem juntas e estão habi-tuadas ao pensamento e ao modo de falar uma da outra, não necessitam definir as palavras que usam ou mesmo usá-las em profusão para se entenderem. Hou-ve um ajustamento mental e as palavras são apenas o pretexto para o contato interior, o contato entre o cérebro e cérebro, que está subjacente ou mesmo precede as palavras. Mas quando você faz um novo conhecimento, leva algum tempo para se adaptar, e se ajustar para compreender as palavras que o outro usa.

É o significado, o pensamento por trás da palavra que é importante. Quando o pensamento é poderosamente pensado, ele produz uma vibração da qual a apalavra é apenas o mensageiro, um intermediário. De fato, você pode desen-volver a força-pensamento a tal ponto que seja capaz de estabelecer um conta-to material direto com um mínimo de palavras ou, até mesmo, sem usá-las absolutamente. É claro que isso requer um forte poder de concentração. Mas você descobrirá que o mecanismo do corpo é apenas um meio mecânico; é um instrumento, mas nem sempre importante ou indispensável.

Quando somos conscientes do Divino, vemo-lo em todas as coisas, em uma forma particular?

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Você espera ver uma forma divina em todas as coisas? Pode acontecer, mas não posso afirmar com certeza. Tenho a impressão de que há uma grande dose de imaginação nessas experiências. Você pode, por exemplo, ver a forma de Krishna ou de Cristo ou Buda em cada ser ou coisa. Mas digo-lhe que muito da concepção humana entra nesta percepção. De outra forma, como estava dizen-do justamente agora, não seria verdade. Disse que todos que têm a consciência do Divino, todos que entram em contato com o Divino, onde quer que estejam, em qualquer era ou país a que pertençam, todos têm a mesma experiência essencial. Se não fosse assim, os hindus veriam sempre um de seus deuses, os europeus um de seus, os japoneses uma terceira variedade e assim por diante. Isso pode ser uma adição da própria formação mental de cada um, mas não seria a Realidade na sua essência ou pureza, que está além de qualquer forma. Uma pessoa pode ter uma percepção da Presença Divina, uma percepção muito concreta, pode mesmo ter um contato pessoal com o Divino. Mas não precisa acontecer na forma e através da forma específica que imagina. É algo inexprimí-vel, além de toda explicação ou definição, evidente apenas para aquele que tem a experiência. Quando você é subitamente elevado a uma condição peculiar e se encontra na presença do Divino, pode ser que Ele tome uma forma que lhe pareça familiar, uma forma que você esteja acostumado a associar ao Divino por causa de sua educação, de sua formação e tradição. Mas, digo, não é a suprema essência da experiência: afinal, a forma dá uma limitação à experiência, tira dela sua universalidade e grande parte de seu poder.

A IGNORÂNCIA SIMBÓLICA

Como pode haver manchas escuras na luz da consciência plena (a consciên-cia da Mãe)? A escuridão é apenas relativa e depende do grau e do status da consciência. No princípio, nos níveis inferiores e mais limitados, a luz é vaga e embaçada, circundada por uma área de escuridão maior e mais densa. Confor-me a consciência cresce, quer dizer, se manifesta, enquanto ela se eleva e se amplia, a obscuridade também diminui cada vez mais e vagarosamente desapa-rece. Esta consciência não é pessoal, mas algo impessoal. Em outras palavras, ela abrange em si o universo, incluindo especialmente a terra. E a terra é um objeto escuro feito de ignorância e inconsciência. A luz a envolve e gradualmen-te a penetra e a transforma. A consciência da Mãe e portanto, a consciência representativa: representa tudo o que ainda está inconsciente e lutando secre-tamente, sem saber, em direção à consciência. É também, ao mesmo tempo, a própria luz que age e transforma. A consciência divina encarnada agindo sobre si mesma, simboliza e incorpora sua ação sobre 0 Que poderia ser visualizado como outros.

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DOENÇAS E ACIDENTES

"Se o corpo ficar doente, a mente também ficará?"

Não necessariamente, sem dúvida. Doenças são geralmente, como lhes dis-se, um deslocamento entre as diferentes partes do ser, uma espécie de desar-monia. Pode ser que o corpo não tenha acompanhado o movimento ! de pro-gresso, possa ter ficado para trás enquanto as outras partes, ao contrário, fize-ram progresso. Neste caso existe um desequilíbrio, uma quebra de harmonia que produz uma doença, quero dizer, no corpo, pois a mente e o vital também podem continuar bem. Há muitas pessoas que estão doentes há anos, sofrendo de doenças terríveis e incuráveis e contudo mantém seu poder mental maravi-lhosamente claro e ativo e continuam, a fazer progresso naquele setor. Houve um poeta francês, um ótimo poeta chamado Sully Prudhomme que estava mor-talmente doente; foi durante essa época que escreveu seus poemas mais boni-tos. Estava sempre de bom humor, encantador e sorridente, agradável a todos, enquanto seu corpo decaía. Você deve se lembrar como o grande Luiz XIV cos-tumava brincar e rir quando, nos últimos dias de sua vida, seu corpo estava sen-do dilacerado e entregue às sanguessugas pelos médicos e cirurgiões. Varia de indivíduo para indivíduo. Pois há pessoas de outro tipo que ficam totalmente perturbadas, da cabeça aos pés se houver a mais leve indisposição física. Cada um tem sua própria combinação de elementos.

É claro que há uma relação entre a mente e o corpo, uma relação bem ínti-ma. Na maioria dos casos é a mente que faz o corpo ficar doente, pelo menos é o fator mais importante na doença. Como disse, há pessoas que mantém a men-te clara embora o corpo sofra.

Mas é muito raro e muito difícil manter o corpo sadio quando a mente sofre ou está desequilibrada. Não é impossível, mas muito, muito raro. Pois como lhe expliquei, a mente é que é a mestra do corpo, o corpo é um servo obediente e obsequioso. Infelizmente, não sabemos como usar a nossa mente, não apenas isso, usamo-la mal, da pior forma possível. A mente possui um considerável poder de formação e de ação direta sobre o corpo. É precisamente este poder que é usado pelas pessoas para fazerem seus corpos doentes. Assim que algo não vai bem, a mente começa a se preocupar, cria formações de catástrofes vindouras, cultiva toda espécie de futuros perigos imaginários. Bem, se em vez de deixar a mente atacar e destruir, se a mesma energia fosse usada para um propósito melhor, se boas formações fossem feitas, por exemplo, dando auto-confiança ao corpo, dizendo-lhe que não há nada para se preocupar, que é ape-nas um mal estar passageiro e assim por diante, nesse caso, o corpo seria colo-cado numa certa condição de receptividade e a doença iria embora tranquila-

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mente como veio. Assim é que se deve ensinar a mente a dar boas sugestões ao corpo e não amesquinhá-lo. Resultados maravilhosos serão conseguidos se você fizer isto apropriadamente.

Quando um acidente acontece, existe nele um momento crítico. Por exem-plo, você escorrega e cai. Bem, entre o momento em que você escorrega e o momento em que cai, há apenas uma fração de segundo quando lhe é dada a escolha, por assim dizer. Pode não ser nada ou algo muito sério. Mas para fazer a escolha deve ter uma consciência perfeitamente desperta e o seu ser estar permanente contato com o psíquico, Não há tempo para se fazer o contato, deve-se já estar em contato. Assim, justamente entre o escorregar e o cair, se a formação mental e psíquica for suficiente, você sairá ileso. Se, ao contrário, o corpo pensar, como é seu hábito: 'Oh, eu escorreguei" e ficar apreensivo — é, como digo, uma Questão de fração de segundo, até menos — então, a catástro-fe acontece. Você tem a capacidade de prevenir um acidente que está para acontecer, a você é dada a escolha. Mas para isto você deve aprender a estar bem desperto, e ser totalmente consciente. Se estiver nessa condição, você pode prevenir um acidente, pode impedir uma doença que esteja a caminho. Mas é apenas uma questão de fração de segundo e você não deve perdê-la.

Contudo, existe ainda um outro momento. Quando tiver caído e já estiver machucado, lhe é oferecida a escolha de torná-lo sem importância ou grave, se será apenas um contratempo ou se vai transformá-lo em algo realmente sério ou tão sério quanto possível. Não sei se você já notou que há certas pessoas que não perdem nenhuma ocasião de sofrer um acidente. Toda vez que há uma pos-sibilidade, elas a agarram. E o acidente nunca é leve, tende a ser sério e fre-quentemente, muito sério. As pessoas dizem: "que pessoa sem sorte! A sorte nunca está do seu lado! etc. etc." Mas tudo isso é pura ignorância. Tudo depen-de absolutamente do trabalho da consciência. Poderia citar inúmeros exemplos e uns curiosos. Há pessoas que poderiam ter sido mortas, mas saíram sãs e sal-vas de acidentes. Com outras o que foi completamente inofensivo no começo, torna-se cada vez pior e, no fim, até fatal.

Mas você deve entender que não é o trabalho do pensamento, do pensa-mento comum. O pensamento pode ser tão bom em um caso quanto no outro. Tudo depende do momento da escolha. Há pessoas que sabem como reagir da maneira certa e no momento certo. E o caráter que importa. Tais pessoas têm uma consciência desperta e alerta; não estão dormindo, estão de guarda cons-tantemente dentro de si mesmas. E no momento certo chamam pela ajuda, invocam a força divina, sim, exatamente no momento certo. E o perigo é afasta-do. Caso contrário, toda vez que algo esteja errado, algum deslocamento no ser,

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se você for tomado pelo medo, por previsões tenebrosas ou se em sua cons-ciência se sentir derrotado, então, você estará perdido.

Como digo, não é a mente que decide. É uma atitude interior, um equilíbrio do ser, a consciência certa que reage da maneira certa. Seu efeito vai muito lon-ge. Você não sabe que poder é. Mesmo se for somente por uma fração de segundo, ela faz milagres. Só que ela já deve estar lá, você já deve estar no esta-do de alerta, porque naquele momento você não tem tempo de invocá-la.

Você pode dizer outra vez que é a Graça Divina que salva. Mas poderia expli-car como ela trabalha? Seria interessante, na verdade, descobrir que, quem tinha precisamente a consciência desperta, tinha também fé e confiança inte-rior, havia chamado por auxílio e tinha em si aquilo que respondeu automatica-mente — e mesmo de uma certa forma inconscientemente — a algo que veio para dentro. A inteligência humana é uma coisa relativa e tem graus de poder que variam. Usualmente ela entende por contrastes e opostos. Não entende uma verdade na sua tonalidade. Por exemplo, tenho recebido centenas de car-tas de pessoas agradecendo-me por terem sido salvas do perigo. Mas não me lembro de ter recebido nenhuma carta agradecendo-me por que as coisas foram normais e nada aconteceu. Os homens percebem a a ação da Graça somente quando há a atmosfera pessimista e há um perigo do qual escapam, quer dizer, quando já há prenuncio do acidente e quando o acidente foi evitado. Quando escapam do perigo em segurança então é que prestam atenção à força que sal-va. De outra forma não teriam sequer pensado nela. Se a viagem que fizeram tiver ocorrido sem nenhum acidente, não pensariam que estivesse Presente qualquer ação da Graça. Aceitam-na como uma coisa normal. Mas precisamente porque é assim, talvez haja uma Graça de uma ordem superior atuando aí e pos-sa já existir uma harmonia pré existente mais profunda entre a consciência da pessoa e a força mais alta à qual ela responde. A chance de um acidente já é o começo do deslocamento do qual falei. Mas a situação torna-se complicada se é o caso de acidente coletivo. O resultado então depende da atmosfera das pes-soas envolvidas. É a proporção destes dois elementos nas pessoas envolvidas num acidente coletivo, que determina o caráter e a magnitude do acidente.

Vou lhe contar uma história, quero dizer, uma história verdadeira a esse res-peito. Havia um piloto que era considerado o que se chama de um ás entre os seus companheiros da Primeira Guerra Mundial. Era um aviador extraordinário e um herói de muitas vitórias. Nada jamais lhe acontecera em tempo algum. Mas perto do fim da vida, um acidente ocorreu — alguma tragédia particular — e subitamente teve a sensação de que algo iria lhe acontecer, um acidente talvez e tudo estaria terminado para ele. Havia saído da guerra mas ainda estava no

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exército. Queria fazer um vôo à África do Sul, da França direto ao sul da África. Partiu da França e dirigiu-se à Madagascar, ao que me lembro, e então queria voar de volta para a França. Bem, meu irmão era nessa época o governador do Congo e precisava voltar a seu posto o mais breve possível. Ele pediu um lugar no avião do piloto de quem estou falando. Não era um avião de serviço regular, mas um destes usados para testes, para mostrar a habilidade do aviador e a capacidade das máquinas. Muitos tentaram dissuadir meu irmão de fazer a via-gem, dizendo que estas viagens aventurosas eram sempre perigosas. Meu irmão, contudo, não se importou com o risco. Nada sério aconteceu, exceto um ligeiro enguiço no meio do Saara, que foi facilmente reparado e o avião fez uma jornada a salvo e deixou-o em seu lugar no Congo. O avião continuou em dire-ção à Madagascar. Bem, o piloto começou a voltar, fez metade da viagem, e então seu avião espatifou-se e ele morreu imediatamente. Explicarei a vocês o que realmente ocorreu. O que aconteceu tinha que acontecer, era um resultado previsto. Meu irmão tinha uma absoluta fé no seu destino, uma certeza que nada o tocaria. A consciência do outro era, ao contrário, cheia de dúvidas e apreensões. Assim, a mistura das duas atmosferas fez com que em primeiro lugar, o acidente não pudesse ser evitado, mas impediu que se tornasse uma catástrofe.

Mas já que o destino de meu irmão não estava lá na máquina — como o destino de César que fez o barqueiro remar a salvo pelo rio e através de uma tempestade — a proteção foi também retirada e o piloto teve que cair sob o peso da força de seu destino malfadado. Posso narrar uma outra história análo-ga a respeito de um navio. Havia duas pessoas, marido e mulher. Foram para a Indochina pelo ar. Tiveram um acidente, um acidente muito sério. Todos morre-ram, exceto estes dois. Agora, tinham que voltar à França. Não queriam viajar pelo ar porque já haviam tido uma experiência desagradável. Assim, tomaram um barco, ou melhor, um navio, que pensavam seria completamente seguro. Bem, o que aconteceu foi absolutamente inesperado, completamente extraor-dinário. No meio do Mar Vermelho, em plena luz do dia, o navio bateu de encontro a um banco de areia e afundou — coisa que acontece uma vez em um milhão de casos. Todos os passageiros se afogaram, exceto, outra vez, milagro-samente, o casal. Existem pessoas como estas — carregam a infelicidade em si, mas o infortúnio é para os outros, eles próprios escapam de algum modo.

Se você olhar a coisa de um modo comum, não percebe nada. Mas o fato está aí. Você deve ser muito cuidadoso com suas associações. Uma associação infeliz pode ser desastrosa para você. O Karma dos outros pode cair-lhe em cima, a não ser que você tenha o conhecimento interior, a visão e o necessário poder. Se você vir uma pessoa com algo como um redemoinho escuro à volta,

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evite-o de todos os modos. A moral disto tudo é que, é muito útil olhar para as coisas um pouco mais profundamente do que observar apenas a superfície.

O PROBLEMA DO MAL

Deus criou o mundo, o mundo material como ele é? Sim e Não, mais "Não" do que "Sim". Porque Ele não criou diretamente. Houve muitos criadores, melhor "formateurs", fazedores de formas, entre o mundo e Deus, que se junta-ram no trabalho da criação, quem eram eles? Deram-lhes vários nomes. A cria-ção geralmente segue um princípio de gradação. É feita passo a passo, mundo surgindo de mundo, sucessivamente. Cada mundo é um estado particular de ser, um modo particular de consciência. Cada estado é habitado por entidades, individualidades, personalidades e cada uma criou um mundo à sua volta ou ajudou na criação de certos tipos ou espécies na terra . Os últimos destes cria-dores ou formadores foram os do mundo vital. No topo estão aqueles que moram na região que Sri Aurobindo chama de sobremente. Pode-se dizer que foram estes que deram as primeiras formas aos seres e coisas terrestres. Eles emitiram suas emanações e estas, por sua vez, emitiram outras e assim por diante. Então, não foi a Vontade Divina que agiu diretamente sobre a Matéria e deu ao mundo a forma que podia ou deveria ter tido. Existem camadas ou pla-nos, gradações intermediárias sucessivas, através das quais a Vontade teve que agir. Falei do plano sobremental e do plano vital. Há também o plano mental entre eles. Existem os seres mentais que são também criadores, dando forma a alguns seres que tomaram corpo na terra.

Por isso, existe uma tradição que diz que o mundo dos insetos é produto dos criadores do mundo vital. É por essa razão que quando você vê insetos sob o microscópio, eles assumem aparências que são absolutamente diabólicas. Aumentados numa tela, parecem verdadeiros monstros, tão horríveis são. São monstros microscópicos. Dizem então, que seres do mundo vital pensaram em se divertir e criaram estas coisas detestáveis e insuportáveis, que tornam a exis-tência humana desagradável.

É claro que você pode perguntar como estes intermediários chegaram a existir se não vieram do Divino. Os intermediários procedem de outros interme-diários ainda mais elevados, até que a cadeia alcança o Supremo. Originalmente, quer dizer, se você remontar à fonte original, é claro que só existe o Divino. Então, como aconteceu a deformação? Eu expliquei uma vez que se você per-manecer uno com o Divino, sob sua direta influência, se não seguir o movimento da criação ou expansão, exatamente como o Divino quer, esta ruptura de conta-to é suficiente para motivar o maior de todos os males, a divisão. Mesmo o mais

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luminoso, o mais poderoso dos seres pode seguir seu próprio movimento , em vez de obedecer ao movimento divino. Eles podem ser até mesmo seres maravi-lhosos e os seres humanos, se os vissem, tomá-los-iam pelo próprio Divino e contudo eles podem, se seguirem sua própria vontade e trabalhar em desarmo-nia com o universo, ser a fonte das maiores desordens. Não existe nada que não seja Divino, só que acontece uma desordem, quer dizer, cada coisa não está no seu devido lugar. O problema é como isso vai ser remediado.

Quanto à questão porque existe este desvio, este mal, posso dizer em pri-meiro lugar, que o que você chama de mal, pode ser apenas aquilo que não é conveniente a você. Mas do ponto de vista da disposição universal, isto pode ser o mais acertado. Segundo, a coisa pode ter sido só um acidente, por assim dizer, no começo. E o que lhe diz respeito não é tanto o seu porquê ou mesmo como, mas o remédio a ser encontrado para o mal que está aí.

Contudo, considerando filosoficamente, podemos notar que o universo em que vivemos é evidentemente um movimento entre muitos (atual e possível). Ele segue sua própria lei, que não é a mesma em todo lugar. Se o princípio sobre o qual este universo foi criado é o do livre arbítrio, então você não pode evitar que o movimento desordenado aconteça, até que um conhecimento venha e ilumine a escolha. Se alguém for livre para escolher, pode escolher a coisa erra-da, não necessariamente a coisa certa, porque se fosse decidido de antemão que a escolha seria sempre boa e na direção certa, então haveria mais livre escolha.

Mas na realidade, estas questões não podem ser adequadamente respondi-das desta maneira. E um problema para o qual respostas mentais — e mesmo formulações metais — servem apenas para diminuir as dimensões do problema. A própria questão reduz o problema a uma fórmula mais ou menos elementar, correspondendo só vaga e superficialmente e não de todo à realidade das coi-sas.

Para ser capaz de entender, você deve tornar-se. Se você quiser entender o "porquê" e o "como" do universo, você deve identificar-se com o universo. E isto não é fácil.

Na verdade, a própria questão está errada. É infantil. Ela pressupõe coisas que são, elas mesmas, questionáveis. Há certas ideias sobre a criação que têm sido quase universalmente correntes e, de modo geral, permanentemente acei-tas pelo pensamento humano através das épocas: são de uma simplicidade espantosa. Existe um universo aqui, dizem, e lá em cima, em algum lugar, há um ser chamado Deus. Um dia, esta pessoa pensou em criar alguma espécie de coi-

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O PROBLEMA DO MAL 115

sa, uma forma visível. O mundo foi o resultado. Evidentemente vemos uma por-ção de erros em seu trabalho. Concluímos que o criador é, talvez, uma pessoa benevolente e bem intencionada, mas não toda-poderosa: uma outra coisa ou um outro ser existe que o contradiz. Ou talvez, ele seja todo-poderoso mas não tem coração e deve ser a crueldade em pessoa — considerando as condições de sua criação, que é uma história de tristeza e transtorno e miséria. Tal ideia digo, é a própria simplicidade, a simplicidade do cérebro de uma criança. Quando se fala de Deus, o criador, como de um oleiro fazendo um vaso, pensa-se nele como um ser humano, só em proporções maiores. Na verdade, não foi Deus quem fez o homem à sua imagem, foi o homem quem fez Deus à sua imagem.

Como disse, a questão está colocada erradamente. A própria forma da ques-tão já pressupões uma certa noção de Deus e da criação. Seus próprios postula-dos e axiomas são viciados.

O universo e seu criador não são coisas separadas, são unas e idênticas em sua origem. O universo é o próprio Deus projetado no Espaço (e no Tempo). Assim, o universo é o Divino num aspecto ou noutro. Você não pode dividir os dois fazendo um, o criador, e o outro, seu trabalho, o relojoeiro e seu relógio. Você coloca suas ideias do Divino Nele, e pergunta porque Ele criou um mundo tão sórdido. Se o Divino fosse responder, diria: "Não sou Eu, é você. Torne-se outra vez Eu mesmo e você não sentirá ou verá como vê agora. Você não é você mesmo, por conseguinte sua questão e seu problema!" Na verdade, quando você une sua consciência à Consciência Divina, não existe mais qualquer pro-blema. Tudo então parece natural e simples e correto e como deveria ser. É quando você se separa de sua origem e fica fora, face a Ela ou contra Ela, que todos os problemas começam. Certamente você pode perguntar como é que o Divino tolerou que uma parte de si fosse embora, separando-se, criando toda esta desordem. Eu responderia, em favor do Divino: "Se você quiser saber, seria melhor unir-se ao Divino, pois este é o único modo de saber porque ele fez assim". Não é questionando-o com sua mente que você receberá a resposta. A mente não pode saber. E eu repito, quando você chegar a esta identificação, todos os problemas estarão resolvidos. O sentimento de que as coisas não estão certas, de que elas deveriam ser de outro modo, procede exatamente do fato de que há uma vontade divina desdobrando-se em uma progressão contínua. Coi-sas que eram e são, têm que dar lugar às coisas que serão e serão melhores do que têm sido. O mundo que ontem era bom, não será assim amanhã. O universo talvez tenha aparentado ser completamente harmonioso em alguma outra épo-ca, mas agora parece totalmente discordante: é porque vemos uma possibilida-de de um universo melhor. Se o achássemos como deveria ser, não faríamos o que temos de fazer, não tentaríamos fazê-lo melhor. Mesmo assim, concebe-

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ríamos o Divino de modo bastante humano, porque permanecemos aprisiona-dos dentro de nós mesmos, confinados a esta nossa consciência que é como um grão de areia na infinita imensidade. Você quer compreender a imensidão? Não é possível somente sob uma condição: seja uno com a imensidão. Uma gota de água não pode saber muito bem o que o oceano é: ela tem que se perder no oceano.

ESTA FEIÚRA NO MUNDO

Se tudo no mundo tem na sua fonte a Verdade Suprema, como é que o mundo se tornou feio em sua expressão? Por que as coisas são assim, tão horrí-veis? Porque existem outras coisas que intervém entre a Fonte e a manifesta-ção. Por exemplo, se eu lhe perguntar: "Você conhece seu verdadeiro ser, que diria você?" Você não o conhece; seria maravilhoso se conhecesse. É o mesmo com todos os seres e coisas. E contudo, você já é um ser suficientemente desen-volvido, um ser pensante que já passou através de muitos estágios de refina-mento; não é de modo algum uma lagartixa que rasteja pela parede! E contudo, você não sabe qual é a verdade de seu ser. Esse é o segredo da deformação do mundo. É o porquê da existência de toda essa inconsciência — o Inconsciente — que surgiu por causa da separação da própria origem. E esta inconsciência que impede a Fonte de se manifestar em sua própria natureza, apesar de estar sem-pre presente. Como está presente, todas as coisas existem, o mundo existe; mas, na sua expressão, está deformado, porque tem que se manifestar através da inconsciência, através da ignorância e da obscuridade. Mas como aconteceu isto? A vontade de criar era originalmente uma vontade que se projetava em direção à formação individual. Contudo, ao que chegou, não foi ao verdadeiro ser, (ou individualização), mas a um despedaçamento da unidade sólida em fragmentos infinitesimais. A unidade original indivisível tornou-se uma soma das unidades infinitamente divididas. Estas unidades ou itens eram individualizações de coisas separadas, sentindo e agindo como tal. É exatamente o sentimento de separação dos outros que lhe dá a impressão de que você seja um indivíduo. Do contrário, sentir-se-ia como se fosse apenas uma massa fluida. Quer dizer, não seria apenas consciente de sua rígida forma exterior e de tudo que o separa dos outros e o faz um indivíduo separado, mas seria consciente das forças vitais que se movem em todo lugar, do inconsciente, que é a fundação de tudo. Você teria a impressão de ser uma massa que se move, com toda sorte de movimentos contraditórios nela, que não podem ser separados uns dos outros. Você não teria a impressão de ser uma individualidade, mas de ser algo como uma nota ou vibração num todo complexo. A vontade original era formar seres individuais capazes de se tornarem conscientes outra vez de sua origem divina. Este proces-

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A JUSTIÇA DIVINA 117

so de individualização criou a necessidade de, para tornar-se um indivíduo, devesse sentir-se separado: é por isso que fomos separados da consciência ori-ginal, pelo menos aparentemente, e caímos na inconsciência. Pois apenas a Vida de vida é a Origem e se ela for separada dessa fonte, a consciência transformar-se-á naturalmente em inconsciência e você perderá os vestígios da verdade de seu ser. Esse é o processo da criação ou formação do mundo, no qual a origem pura não se manifesta diretamente na sua essência e pureza, mas através de deformação, quer dizer, inconsciência e ignorância. Foi assim que a feiura apa-receu: a morte, a doença, a maldade, a miséria e tudo mais. O movimento cau-sado pela necessidade de formação individual produziu estas coisas, todas elas, e isto é a única fonte do mal múltiplo em todos seus modos e vibrações. Não digo que fosse indispensável, deste problema vou me ocupar mais tarde. Mas, no momento, quero conduzi-lo à fonte para mostrar o remédio. E não há razão para discutir porque é assim. Como disse, a única maneira de resolver o proble-ma do mundo é tornar-se consciente outra vez, recuperar a consciência perdida. E claro que se você disser, como algumas religiões, que o bem é o bem e o mal é o mal e que eles permanecerão para sempre assim, então não existe mais pro-blema algum. Uma luta eterna interliga os dois e quem ganhar num momento, fará o mundo um pouco melhor naquele momento, e no outro, um pouco pior. Mas os dois existem e continuam a existir eternamente e indissoluvelmente ligados. Porém, você viu que não é assim; pode-se sair do emaranhado para a unidade perfeita da verdade, porque essa é a fonte única e original.

É esta perfeita verdade, deixe-me repetir, que se espalhou para longe, nes-ses inúmeros pequeninos átomos, nestas insignificantes células do cérebro que, apesar de toda a sua ignorância, são ainda movidas por um estímulo secreto de consciência. Estas pequenas partículas de escuridão esforçam-se para alcançar a luz, que podem encontrar, porque está dentro delas. Elas chegarão ao que pro-curam. Pode levar mais ou menos tempo, mas alcançá-la-ão no fim. Esse é então o remédio: encontra-se dentro do próprio coração do mal.

A JUSTIÇA DIVINA

Por que as pessoas recebem força do Divino, mesmo quando Ele sabe que elas não estão sendo sinceras?

Você deve compreender de uma vez por todas que o Divino quando age, não é movido por noções humanas. Possivelmente ele faz coisas mesmo sem aquilo que chamamos razão. Em todo caso, as razões não são de espécie humana; aci-ma de tudo, o Divino não tem esse senso de justiça que o homem tem. Por exemplo, quando você vê um homem cheio de ganância por dinheiro, tentando

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enganar pessoas apenas para ganhar algumas rupias a mais, sua ideia de justiça clama que ele seja despojado de todo dinheiro, e reduzido à pobreza. Mas na realidade, você descobre que as coisas acontecem ao contrário. Contudo, essa é somente a aparência das coisas; por trás, existe um quadro completamente diferente. O ganancioso consegue o objeto de sua ganância, mas ele tem que fazer uma troca, desistir de algumas outras possibilidades. Ele consegue dinhei-ro, mas decai em sua consciência. E então, acontece também frequentemente que, quando ele consegue aquilo que tanto desejou, não se sente assim tão feliz, geralmente, até menos feliz do que antes; está atormentado pela riqueza que ganhou. Você não deve julgar nada pelo sucesso ou fracasso aparente. Pode-se dizer, de modo geral, que o Divino dá aquilo que se pede e esse é o melhor modo pelo qual se aprende a lição. Se seu desejo for ignorante, incons-ciente, obscuro e egoísta, você cresce em ignorância, inconsciência, obscuridade e egoísmo, quer dizer, afasta-se cada vez mais da verdade e consciência e felici-dade, em outras palavras, afasta-se do Divino. Para o Divino, contudo, existe apenas uma coisa que é verdadeira, a divina consciência, a divina União. Cada vez que você coloca coisas materiais à sua frente, você se torna mais e mais material, empurra cada vez mais para trás o Divino. Do ponto de vista do igno-rante, você pode ter toda a aparência de sucesso maravilhoso, mas este suces-so, do ponto de vista da verdade, é uma terrível derrota, porque você trocou a verdade pela falsidade.

Julgar pelas aparências, pelo aparente sucesso, é um ato de completa igno-rância. Mesmo se a pessoa for completamente empedernida, e tiver aparente-mente o máximo sucesso, existe uma contraparte. Exatamente este endureci-mento, este véu que se vai tornando cada vez mais espesso entre a consciência exterior e a verdade interior, torna-se também cada vez mais insuportável. O sucesso exterior tem que ser pago por um preço muito alto. Deve-se ser muito grande, muito puro, deve-se ter uma consciência espiritual muito elevada, muito altruísta, para ser capaz de ter sucesso e contudo, não ser afetado por ele. Não existe nada tão difícil de suportar quanto o sucesso. Esse é o verdadeiro teste na vida. Quando você não tem êxito, você se volta muito naturalmente para si mesmo, para dentro de si, e lá procura conforto para o fracasso exterior. E aqueles que têm a Chama dentro de si e o Divino para ajudá-los verdadeiramen-te, quer dizer, se estão amadurecidos bastante para conseguir ajuda, se estão prontos para seguir o caminho, eles devem esperar golpes, um depois do outro, porque isso ajuda. Na verdade, esta é a mais poderosa, a mais direta e a mais efetiva ajuda. Mas se você tiver sucesso, cuidado! Pergunte-se a que preço o conseguiu. O que é que você tem que pagar pelo sucesso? É claro, existem pes-soas de uma espécie diferente. Aqueles que forma além, que estão conscientes de sua alma, que se entregaram completamente; estes podem ter sucesso e o

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sucesso não os toca. Mas a pessoa tem que se elevar muito alto para ser capaz de suportar o fardo do sucesso. É talvez o último dos testes a que o Divino sub-mete alguém. Ele diz: ''Agora que você é nobre e elevado e desprendido, você Me pertence a Mim somente, fá-lo-ei triunfar. Veremos se você pode suportar o golpe!"

Aos Asuras também o Divino dá o que eles pedem. Geralmente é deste modo que seu fim chega mais rápido. Um Asura é um ser consciente. Ele sabe que tem um fim. Ele sabe que a atitude que tomou neste universo destruí-lo-á necessariamente depois de algum tempo. É claro que o tempo do Asura é mais longo que o do humano. Mesmo assim, ele sabe que o fim chegará para ele, porque se separou da Eternidade. O que ele procura é satisfazer seus desejos ao máximo, até o dia de sua condenação, quando a derrota final vier. E possivel-mente, se lhe foi permitido viver à sua maneira, a derrota será apressada. E por isso que, no momento em que grandes coisas estão para acontecer, as forças adversas se tornam mais ativas, mais violentamente ativas e aparentemente mais bem sucedidas. Um campo lhes é dado por assim dizer, para apressar sua sentença.

O SOFRIMENTO DIVINO

Falando de um modo geral, quando alguém está infeliz, é um sofrimento a mais acrescentado ao sofrimento coletivo do Divino. O Divino age sobre a Maté-ria num estado de profunda compaixão: esta compaixão é traduzida na Matéria e é lá representada pelo que chamamos de Tristeza Psíquica. É, por assim dizer, uma imagem inversa da realidade original.

A compaixão do Divino, traduzida na consciência física individual, torna-se uma tristeza que não é egoísta, uma tristeza que é uma expressão da identifica-ção de alguém com a tristeza universal através da simpatia. Descrevi a experiên-cia de uma maneira extensa em uma das "Preces e Meditações". Lá, falei "das mais doces lágrimas que derramei na vida", pois aquelas lágrimas não foram por minha causa, não estava chorando por mim. Quase sempre o homem sofre por razões egoísticas, de maneira humana. Toda vez que ele perde alguém que ama, ele sofre e chora, mas não pela situação da pessoa. Em 99 casos em 100, ou mesmo mais, as pessoas desconhecem quais as condições em que está a pessoa que partiu, não sabem e não podem saber se a pessoa está feliz ou infeliz, se está sofrendo ou em paz. É o sentido da separação que causa o sofrimento, o sentimento de não estar mais com ela, como era tanto desejado. Na raiz de toda tristeza humana, está este retorno ao próprio eu, mais ou menos consciente., mais ou menos admitido. Mas quando você se sente infeliz pela infelicidade dos

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outros, então surge uma mistura. Quer dizer, ao seu pesar pessoal, é acrescen-tado um elemento psíquico que descrevi como a imagem reversa da Compaixão Divina. Agora, se você puder distinguir entre os dois, a angústia pessoal e a tris-teza desinteressada, sair do que é egoístico e se concentrar no elemento divino, tornar-se uno com ele, desta forma você poderá entrar em contato com a gran-de compaixão universal, que é algo imenso, vasto, calmo, poderoso, profundo, que é paz perfeita e Bem-Aventurança infinita. Se você souber como entrar em seu sofrimento, descer fundo nele, passar além da porção que é egoísta e pes-soal, avançar mais, então você chegará às portas de uma revelação maravilhosa. Não que deva procurar o sofrimento por amor ao sofrimento e para ter a expe-riência. Mas quando ele tiver chegado, quando se abater sobre você, então ten-te o que sugeri, cruze a fronteira, a barreira do egoísmo do seu sofrimento. Ano-te primeiro onde está a parte egoísta, o que é que o faz sofrer, qual a razão egoística do seu sofrimento, então passe através e além de tudo isso, em dire-ção a algo universal, em direção a um princípio maior. assim, você entra na vas-tidão, na compaixão infinita, a porta do Psíquico abre-se para você. Se, neste domínio, você me vir em lágrimas, como disse que me viu em seu sonho, você poderá se identificar comigo naquele momento, entrar naquelas lágrimas, por assim dizer, derreter-se nelas. Isso abrirá a porta e lhe trará uma experiência, uma experiência muito especial que deixa sempre uma profunda marca na consciência. Nunca é apagada de todo, mesmo que a porta se feche novamente e você volte a ser o que era em seus movimentos comuns. Aquela experiência, aquela marca, permanece por trás e você pode recordá-la, retornar a ela, recor-rer a ela em seus momentos de concentração. Então, você sente a imensidão de uma doçura infinita, uma grande paz, permeando todo seu ser, não somente em seu pensamento; ela sai e se compadece de tudo e pode curar tudo.

Só que você deve desejar sinceramente, deve ter a vontade de ser curado. Tudo está aí. Bem, eu sempre volto ao mesmo tema. Você deve ter sincero. Se desejar uma experiência por causa da experiência, e quando a conseguir, retor-nar a seu modo de viver comum, isto de nada lhe servirá. Você deve desejar sin-ceramente ser curado — curado precisamente dos caminhos comuns — deve ter a aspiração, a verdadeira aspiração para superar o obstáculo, elevar-se cada vez mais alto, acima e além de si mesmo, para que possa derrubar tudo que o puxe para trás, que o arraste para baixo, que possa quebrar todos os limites, esclarecer-se e purificar-se, livrar-se de tudo que está em seu caminho. Se você tiver esta vontade, a verdadeira vontade intensa de não cair novamente nos erros passados, de elevar-se da obscuridade e da ignorância em direção à luz, despojar-se de tudo que é humano, muito humano — muito pequeno, muito ignorante — então, essa vontade e essa aspiração agirão, agirão gradualmente, intensa e positivamente, trazendo-lhe um resultado completo e definitivo. Mas

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O DESGOSTO DIVINO 121

tome cuidado, não deve existir nada que se apegue a movimentos antigos que não se revelam mas que escondem a cabeça e quando a ocasião se apresenta, põem o nariz para fora.

Assim, digo que você deve ser verdadeiramente sincero, verdadeiramente. Se descobrir algo que se agarre, grudado em algum lugar nas profundezas, você deve estar pronto para extirpá-lo completamente e não deixar nenhum resquí-cio dele atrás. Sim, algumas vezes você repete seus erros. Você os repete até que seu sofrimento se torna tão agudo que é impossível suportá-lo e o força a ser sincero a despeito de si mesmo, por assim dizer. Mas você não precisa tentar essa linha. É um método, mas um mau método: mau, porque destrói muitas coi-sas, gasta muita energia, deixa tantas vibrações erradas! Na intensidade de seu sofrimento, você realmente descobre a vontade em direção à sinceridade per-feita. Mas você pode ser sincero também de um modo menos árduo e tortuoso.

Chega um momento na vida de cada um, há um momento quando esta necessidade de sinceridade perfeita vem como uma questão de escolha supre-ma. Há um momento na vida do indivíduo, e há também um momento na vida do grupo ao qual o indivíduo pertence, quando essa escolha tem de ser feita, a purificação final tem de ser executada. Então, é quase uma questão de vida ou de morte, o progresso tem de ser feito se alguém quiser sobreviver.

O DESGOSTO DIVINO

É um "desgosto" repleto de compaixão. É algo que assume a responsabilida-de das vibrações erradas nos outros para curá-las. Em vez de lançar um movi-mento errado de volta ao agente infrator, num espírito de fria justiça, atrai-o para dentro de si, absorve-o a fim de eliminá-lo ou transformá-lo, reduzindo, tanto quanto possível, suas consequências materiais. Você conhece a lenda antiga de Shiva que diz que ele tem uma mancha escura na garganta porque engoliu todo o veneno do mundo. Pois é a figura do desgosto divino.

Naturalmente o veneno não produzirá no Divino o mesmo efeito que no homem, pois há uma diferença essencial entre o estado de ignorância e o esta-do de conhecimento. Por exemplo, algo desfavorável lhe acontece, em seu estado normal de ignorância, que tem um certo caráter e produz mentalmente certos resultados. Se a mesma coisa lhe acontecer num estado de conhecimento não acarretará o mesmo efeito. Tome uma coisa muito material, um golpe, um verdadeiro golpe físico. Bem, se você estiver num estado de inconsciência e ignorância como geralmente está, terá que sofrer a consequência total deste golpe, que, por sua vez, depende inteiramente da força usada, quem e o que o

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motivou e a desproteção do objeto. Mas, se o mesmo golpe for desferido do mesmo modo, pelo mesmo agente, mas sobre um ser que seja consciente e cheio de conhecimento, ele produzirá instantaneamente uma reação que reduz ao mínimo as consequências naturais, até mesmo anulando-as completamente, porque a reação neste caso é a de conhecimento, de luz, e não de ignorância e de obscuridade.

No nível moral, a ação pode ser claramente notada. Por exemplo, você pode sofrer um choque emocional, não em cegueira egoística, quer dizer, identifican-do-se com ele ou afogando-se nele. Você pode mantê-lo afastado de si, observá-lo de modo objetivo, ver o que é, notar a natureza de suas vibrações etc., etc., e então colocar a luz de seu conhecimento sobre ele, o raio ultra violeta da verda-de. Disso resulta uma nova disposição e o choque perde seu efeito. Todavia, o resultado físico de um golpe físico pode ser remediado. Se não fosse possível, qual seria a utilidade do Divino tomar sobre si a coisa errada? O mal continuaria igual e o mundo a sofrer do mesmo jeito. Precisamente porque as vibrações são transformadas em vibrações de luz na divina consciência, é que o Divino toma sobre si e dentro de si todos os males do mundo.

No caso de uma ocorrência física, o conhecimento de que falo, é o conheci-mento interior das células do corpo, sua existência, composição, distribuição e o conhecimento das consequências do golpe, seus efeitos naturais e esperados. Também, ao mesmo tempo, deveria haver o conhecimento de como as células deveriam ser, como elas deveriam reagir ao golpe. E o procedimento adotado também é bem diferente daquele da Natureza física que leva horas, dias, meses para reparar um dano; o conhecimento interior pode fazer isso imediatamente. Este conhecimento interior pode ser trazido de sua fonte mais alta para baixo. Em vez de um mero conhecimento psicológico, pode-se chamar para baixo o conhecimento supramental e focalizá-lo sobre a parte do corpo em perigo. Se os elementos do corpo, as células, ficaram sob a influência da força da verdade e recebê-la, então pode haver uma nova disposição dos elementos, de acordo com a lei mais elevada. Isso provocará não apenas a cura do golpe recebido, o restabelecimento dos danos do acidente, mas iniciará um grande progresso na consciência geral. Este poder de controlar a consciência não tem limite. Se tiver cometido um erro, mesmo um erro grave, mas ainda assim puder invocar sobre ele a consciência da verdade, este poder do supramental, e permiti-lo trabalhar, você terá ocasião de fazer um progresso imenso. Em outras palavras, não fique nunca desencorajado se tiver errado, mesmo que seja mais de uma vez. Apenas você deve manter firma sua vontade e tomar de vez a resolução inabalável de não repeti-lo. Pode ficar certo de que, no fim, você triunfará sobre sua dificul-dade.

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COISAS SIGNIFICANTES E COISAS INSIGNIFICANTES 123

COISAS SIGNIFICANTES E COISAS INSIGNIFICANTES

Todas as coisas são insignificantes na vida comum. Os pensamentos que você pensa, as ações que faz, os sentimentos que experimenta, todos os seus movimentos não têm o menor significado, não possuem qualquer valor. Perten-cem à parte superficial do seu ser, vêm e vão como ondulações no mar, não dei-xando nenhum traço ou efeito nas profundezas. Apenas num raro momento, quando você entra em contato com um canto de sua alma, se algo daquela consciência mais profunda tocar ou se detiver em qualquer de seus membros, aquela fração de segundo é a única coisa significante que ocorre no meio de toda massa inútil que é sua vida. Este é o único ponto precioso, e o resto, um mundo de disparates. Para tornar sua vida significante, para dar-lhe seu verda-deiro valor e sentido, você deve então afastar-se das trivialidades da superfície e procurar por alguma coisa mais, que está por trás. Na verdade, você deve se aprofundar muito se quiser que as coisas deixem de ser insignificantes.

POR QUE ESQUECEMOS COISAS?

Há muitas razões, é claro. A primeira e a mais importante é que usamos a faculdade da "memória" para lembrar. A memória é um instrumento mental que depende da formação e do crescimento do cérebro. Seu cérebro está se desen-volvendo constantemente, a menos que, é claro, já esteja em degenerescência. O desenvolvimento pode continuar por um longo tempo, mais longo do que o do corpo. No processo há, inevitavelmente, coisas que são substituídas por outras; e enquanto o instrumento cresce, elementos que foram úteis num esta-do, não mais o são num estado subsequente e têm que ceder lugar a outros mais convenientes. O resultado líquido de nossas aquisições permanece lá em essência, mas tudo aquilo que levou a isso, os passos intermediários são supri-midos. De fato, uma boa memória significa nada mais do que isso, quer dizer, lembrar-se apenas dos resultados, para que o essencial seja peneirado e arma-zenado, isto é, somente aquilo que for útil para construções posteriores. Isto é mais importante do que simplesmente tentar reter alguns itens especiais de maneira rígida.

Há outra coisa. À parte do fato de que a memória seja por si mesma, em sua própria natureza, um órgão imperfeito, temos que considerar a existência de diferentes estados de consciência, que são sucessivos. Cada estado grava fiel-mente os fenômenos daquele momento, quaisquer que sejam. Bem, se sua mente estiver tranquila e clara, ampla e forte, você pode, concentrando sua consciência naquele momento, trazer para fora e recordar, em seu estado ativo presente, o que foi gravado lá dos seus movimentos naquela ocasião. Quer

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dizer, você pode retornar a um determinado estado de consciência de um dado momento e vivê-lo novamente. O que está registrado em sua consciência não é nunca obliterado, e portanto, não realmente esquecido. Você pode viver mil anos e não se esquecerá deles. Assim, se você não quiser esquecer uma coisa, deverá retê-la através de sua consciência, e não através de sua memória mental. Como disse, a memória mental gradualmente se desvanece, novas coisas, coisas de hoje, substituem coisas velhas, coisas de ontem. Mas, daquilo de que você é consciente em sua consciência, nunca pode esquecer. Permanece em algum lugar no cenário de fundo e lhe volta quando chamado. Você tem apenas que se retirar para esse estado de consciência onde aquilo está guardado. Desta forma, pode relembrar coisas que sabia, talvez, há séculos. É assim que você se lembra de suas vidas passadas. Pois um movimento de consciência nunca se extingue, somente as impressões na superfície da mente-cérebro é que são fugidias. Aqui-lo que você aprendeu laboriosamente com este instrumento superficial — coi-sas que tenha apenas lido, ouvido, anotado, sublinhado — não deixam marca duradoura, mas o que está embebido, inalado no estofo da consciência, isto permanece. O cérebro está sendo constantemente renovado e reformado. Célu-las velhas, células que se tornaram fracas e atrofiadas, são substituídas por outras mais jovens e mais fortes, ou as células velhas combinam-se de maneira diferente ou entram em outras organizações. Assim, as velhas impressões ou memórias que carregava são obliteradas.

Portanto, como disse, só entrando num estado de consciência anterior, onde se tenha experimentado algo, é que você pode sempre trazê-la de volta. Só que deve saber como chegar à esse ponto, submerso em algum lugar nas profunde-zas. O corpo, depois da morte, dissolve-se; a maior parte do vital e da mente também — somente uma pequena porção que tenha sido bem organizada, à qual tenha sido dada uma forma compacta e coesa, é que permanece. Tal aqui-sição é um fenômeno raro. Mas, com a consciência, não é assim. A consciência é eterna. Se você entrar em contato com a consciência, descobrirá o mistério completo da terra e da criação. É a consciência que pode criar.

COMO LIVRAR-SE DE PENSAMENTOS DESAGRADÁVEIS

Há várias maneiras e também depende do caso. O primeiro modo e o mais fácil, é pensar em alguma outra coisa. Concentre sua atenção num assunto que nada tenha a ver com aquilo que o perturba. Você pode ler alguma coisa inte-ressante ou assumir um trabalho que necessite de cuidado e reflexão. Algo cria-tivo seria mais efetivo; escritores e artistas, por exemplo, quando estão mergu-lhados em suas ocupações específicas, esquecem tudo o mais e a mente toda fica absorvida neste assunto particular. Mas é claro, assim que o trabalho termi-

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MÁ FORMAÇÃO DE PENSAMENTO 125

na, a preocupação volta, se ele não tiver aprendido a controlar seus pensamen-tos neste entretempo. Assim, existe o segundo método que é um pouco mais difícil. Você tem que aprender um movimento de rejeição. Do mesmo modo que rejeita ou joga fora um objeto físico, você deve lançar fora e rejeitar o pensa-mento. É mais difícil, mas se conseguir, será o mais eficaz. Deve praticar e se esforçar, repetir e perseverar e não há razão para temer o insucesso, desde que seja absolutamente sincero e autêntico.

Existe um terceiro método. É trazer do alto uma luz maior, que é em sua natureza o oposto dos pensamentos com os quais você está preocupado, oposto num sentido muito radical e profundo. Quer dizer, se os pensamentos que o perturbam forem obscuros e ignorantes, especialmente se eles brotarem do subconsciente ou do inconsciente, suportados por meros instintos, então, cha-mando para baixo a Luz de cima e dirigindo-a sobre os pensamentos sombrios, você pode simplesmente dissolvê-lo ou transformá-los, sempre que for possível. É o meio supremo, mas talvez não esteja ao alcance da capacidade de todos. Mas se você tiver sucesso nisto, os pensamentos não mais ocorrerão porque sua verdadeira causa foi removida. O primeiro método é desviar, o segundo enfren-tar e lutar, o terceiro é elevar-se e transformar. No terceiro você não apenas fica curado, mas faz um progresso — um verdadeiro progresso.

MÁ FORMAÇÃO DE PENSAMENTO

Um mau pensamento é um ato mau. Você pode não saber, mas um pensa-mento maldoso é verdadeiramente um ato maldoso. Se você pensar mal de um homem e desejar-lhe mal, será responsável pela infelicidade que lhe possa advir, no mesmo grau como se fosse um ato concreto. Infelizmente, um pensa-mento maldoso não é um crime reconhecido e ninguém intervém quando você pensa mal. Não apenas isso, existe muita gente boa que se diverte em estimular pensamento perverso nos outros. Fazem-no assim (inocentemente, pensam) algumas vezes por pura estupidez, mais frequentemente por vaidade, com um ar de autoimportância por terem dito algo interessante.

Quando tem um mau pensamento, você faz uma má formação e carrega-a consigo ou a espalha. Algumas vezes acontece que, passando por um homem, você se sente mal de repente. Você pode nem mesmo ligar os dois casos, e até não saber nada do assunto, mas a verdade é que o homem podia estar entre-tendo um mau pensamento que pulou sobre você.

Quando descobre a causa, o que deve fazer é espantá-la como se fosse uma mosca. As moscas são, às vezes, muito importunas; quanto mais você as espan-

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ta, tanto mais elas vêm e acham o jogo divertido. Mas se você levar isto a sério e persistir, conseguirá expulsá-las. Do mesmo modo, quando uma má formação procurar se apossar de você ou tocá-lo, afaste-a imediatamente, continuamen-te, até ela desaparecer.

"Por que existe uma inclinação maldosa", pergunta você?

Você deve ir à própria origem das coisas. Por que existe ignorância, incons-ciência e obscuridade? Você pergunta o porque e a razão do universo. Por que a criação é assim e não de outro modo? Cada um tem explicado à sua maneira. Os filósofos assim o fizeram e os cientistas também, em linhas diferentes. Mas nin-guém encontrou uma saída. Você pergunta porque existe uma má vontade, mas a coisa verdadeiramente interessante e importante é achar os meios pelos quais ela possa deixar de existir. Qual a utilidade de perguntar porque há dor e sofri-mento e miséria, a não ser para achar o remédio? Se você procurar o porquê, pode achar tantas explicações quantas quiser, cada uma útil a seu modo, mas nenhuma que o leve a algum lugar, exceto a um beco sem saída.

Existem muitas coisas no mundo que você não aprova. Algumas pessoas, como elas assim colocam, querem ter o conhecimento para saber porque é assim. É uma linha do conhecimento. Mas eu digo que é muito mais importante descobrir como fazer as coisas diferentes do que são presentemente. Isso foi exatamente o problema que Buda colocou diante de si. Ele sentou-se em baixo de uma árvore e continuou lá até achar a solução. A solução, contudo, não é muito satisfatória: "Você diz que o mundo é mau, vamos então acabar com o mundo", mas em benefício de quem, como Sri Aurobindo pergunta pertinente-mente? O mundo não será mais mau, já que não existe mais. O mundo terá que ser enrolado de volta à sua origem, à pura existência original ou não-existência. Então o homem será, nas palavras de Sri Aurobindo, o senhor todo-poderoso de algo que não existe, um imperador sem império, um rei sem reino. É uma solu-ção. Mas existem outras que são melhores e consideramos a nossa, a melhor. Alguns dizem, como Buda, que o mal vem da ignorância; remova a ignorância e o mal desaparecerá. Outros dizem que o mal vem da divisão, da separação: se o universo não fosse separado de sua origem, não haveria mal. Outros declaram ainda que um propósito iníquo é a causa de tudo, da separação e da ignorância. Então, a questão é, de onde vem o propósito iníquo? Se fosse da origem das coi-sas, deveria estar na própria origem. E alguns questionam até mesmo o propósi-to iníquo — não existe tal coisa, essencialmente, fundamentalmente, é pura ilu-são.

“Têm os animais uma inclinação perversa?”

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MÁ FORMAÇÃO DE PENSAMENTO 127

Acho que não. As coisas monstruosas faladas a respeito de animais não são devidas realmente a esta inclinação. Tomemos, por exemplo, o mundo dos inse-tos. De todos os animais é esta a espécie que parece ter a maior característica de maldade, algo parecido com uma índole má. Contudo, pode ser que esteja-mos simplesmente aplicando nosso próprio modo de consciência ao deles, atri-buindo uma índole má a uma ação que não é realmente assim. Por exemplo, existem insetos cuja larva só pode viver sobre um ser vivo; tem que se alimentar de uma criatura viva, não pode conseguir nutrição de carne morta. Assim, os pais do inseto, antes de deitarem os ovos que se tornarão larvas, preparam pri-meiro o terreno. Encontram um outro inseto ou um animal pequeno, dão-lhe uma picada no centro nervoso e paralisam-no; então, colocam os ovos com segurança neste corpo paralisado que, não sendo morto, alimenta as larvas quando saem dos ovos. Tudo isso parece muito maquiavélico. Mas nada é racio-cinado aí, é puro instinto. Chamaria você a isto de índole má? É simplesmente a vontade de multiplicar-se. Você pode dizer que estes insetos são movidos por um espírito das espécies que é consciente e tem uma vontade consciente e que esta vontade é de inclinação perversa. Estes seres que criam ou formam as várias espécies do mundo dos insetos — muitos agindo de modo muito mais monstruoso do que o exemplo que dei — devem ser, então verdadeiramente assustadores, inspirados por uma imaginação perversa e diabólica. Bem possí-vel. Pois é dito que a origem do mundo dos insetos está no vital; os construtores deste mundo pertencem ao vital e não ao plano material de consciência. Em outras palavras, eles não apenas simbolizam, mas representam e vivem a incli-nação perversa. Estão inteiramente conscientes dela e a exercitam deliberada-mente e com um propósito definido. A inclinação perversa do homem é fre-quentemente um reflexo, apenas uma imitação da índole malévola dos seres vitais, que é de uma determinação claramente hostil ao mundo criado, e cuja expressa intenção é fazer as coisas tão dolorosas, tão difíceis, tão feias, tão monstruosas quanto possível. Estes seres , dizem criaram os insetos. Mesmo assim, os insetos não podem ser descritos como representantes desta intenção má, já que não fazem o mal propositadamente, mas são movidos por uma von-tade inconsciente neles. Na verdade, a inclinação perversa é essa vontade que faz o mal pelo amor ao mal, que procura destruir por amor à destruição, que tem prazer em fazer o mal. Não penso que exista no animal esta espécie de inclinação perversa, especialmente nas espécies mais elevadas. O que existe é o instinto de autopreservação, reações obscuras e violentas, mas não a espécie de mal que a vontade humana mostra no mental humano perverso. Acredito que é a mente humana, sob a influência direta de seres vitais que começa a trabalhar de maneira perversa. Titãs, Asuras, são os seres de determinação malévola que pertencem totalmente ao mundo vital e, quando eles se manifestam nesse nos-

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128 PARTE VII

so mundo, fomentam discórdias, fazem o mal por amor ao mal, destroem por amor à destruição, têm o deleite na negação.

O que é o instinto, exatamente? É a consciência da Natureza. A Natureza é consciente de sua ação; não é uma consciência individual. É uma consciência global ou coletiva. Existe também uma consciência das espécies. Cada espécie tem sua consciência que é chamada algumas vezes de espírito das espécies, quer dizer, um ser consciente que preside uma espécie em particular. A Nature-za é consciente no sentido de que ela sabe o que quer, sabe para onde vai, sua maneira de agir, seus fins e como alcançá-los. Muito da Natureza parece incoe-rente ao homem porque a consciência dele é estreita e não tem uma visão glo-bal. Quando você olha para os pequenos detalhes, os pequenos fragmentos, você não compreende; não encontra qualquer ligação, qualquer sequência, qualquer sentido. Mas a Natureza tem uma vontade consciente, ela é um ser consciente. A palavra "ser" talvez seja muito humana. Quando falamos do ser da Natureza, pensamos naturalmente em um ser humano, somente um pouco maior, mas trabalhando mais ou menos do mesmo modo. Mas não é assim. Em vez da palavra "ser", preferiria a palavra "entidade". A entidade consciente que é a Natureza tem uma vontade consciente e faz as coisas muito mais delibera-damente e propositadamente do que o homem e tem forças formidáveis à sua disposição. O homem fala da Natureza cega e violenta. Mas é o homem quem é cego e violento, não a Natureza. Você diz que um terremoto é uma coisa terrí-vel. Milhares de casas transformam-se em poeira, milhões de pessoas são mor-tas, cidades inteiras devastadas, regiões inteiras da terra são engolidas etc., etc. ... Sim, do ponto de vista humano, a Natureza parece monstruosa. Mas, o que fez ela afinal? Quando você leva uma pancada no corpo, nesse lugar aparece uma mancha roxa. Preocupa-se você com isso? Seu terremoto nada mais é do que uma reorganização de uma célula em seu corpo. Você destrói milhares de células a cada momento de sua vida. Você é monstruoso! Esta é a proporção relativa. E considere, estamos falando da terra e dos acontecimentos terrenos. Mas o que é esta terra em si mesma no seio do universo? Um ponto, um zero. Você está andando no chão e não olha para baixo. Coloca um passo à frente e então outro e pisa em milhares de formigas inocentes sob seus pés. Se você fos-se uma formiga gritaria: que força cruel e estúpida! Imagine outras forças andando com passadas largas e pesadas, muito maiores que as suas e, sob seus passos casuais, milhões de criaturas como você são esmagadas, continentes são empurrados para baixo e montanhas viram poeira. Elas nem mesmo notam tais acontecimentos catastróficos! A única diferença entre o homem e a formiga é que o homem sabe o que acontece com ele e a formiga não sabe. Mas, mesmo assim, você tem certeza?

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POR QUE OS SONHOS SÃO ESQUECIDOS? 129

POR QUE OS SONHOS SÃO ESQUECIDOS?

É porque os sonhos não ocorrem sempre no mesmo domínio. Não é sempre a mesma parte do ser que sonha, e nem é no mesmo lugar, onde se sonha. Se você estivesse em comunicação consciente com todas as partes de seu ser, então poderia lembrar-se de todos os sonhos. Mas é apenas com umas poucas partes de seu ser que você permanece em contato consciente no sono. Por exemplo: você tem um sonho no físico sutil, quer dizer, no domínio muito perto do físico. Isto geralmente acontece perto do fim da noite, nas primeiras horas da manhã, pouco antes de você se levantar (digamos, entre quatro e cinco horas). Antes de se levantar da cama, se você permanecer muito quieto, sem fazer qualquer movimento e concentrar-se um pouco, será capaz de se lembrar dos sonhos que teve momentos atrás. Sendo a comunicação entre o físico e o físico sutil muito próxima, você será capaz de se lembrar com muita facilidade. Bem, se você começar do início, o que acontece é algo assim: quando você adormece, o corpo torna-se quieto e o vital também vai descansar; mas a mente continua ativa, não vai dormir. Você tem então os sonhos chamados de mentais, cons-truídos de toda espécie de ideias e imaginações liberadas. Depois de algum tempo, a mente fica cansada e silencia; o vital descansou suficientemente e acorda, por seu turno, e movimenta-se para lá e para cá. Seus sonhos do domí-nio mental são empurrados para trás, dando lugar aos sonhos vitais. Quando você fica ativo no vital muito frequentemente, sai fora de seu corpo, visita toda a espécie de lugares e envolve-se em várias explorações e aventuras. Se você então acordasse subitamente, lembrar-se-ia de suas explorações vitais no sono. Algumas pessoas treinam-se para levantar-se a uma hora fixa da noite. Assim, trazem à memória os sonhos que tiveram logo antes de acordar. Agora, o vital também, depois de ter estado suficientemente ativo, cansa-se e vai repousar. Contudo, uma outra parte do ser toma o lugar do vital e vem para frente. Pode ser a vez de o turno do físico sutil entrar na arena. O vital é empurrado para trás e você perde contato com ele.

Para tornar-se consciente de todos os vários movimentos de suas noites, para trazê-los de volta à sua memória, uma espécie de treino é necessário. Os diferentes estados do ser nos quais você perambula à noite são, como viu, usualmente separados uns dos outros. Há uma brecha entre dois estados; você pula de um para o outro. Não há caminho que passe por todos os domínios de sua consciência ligando-os sem quebra ou interrupção. Isto significa esqueci-mento. Quando você pula de um para o outro, você empurra para trás, quer dizer, esquece aquele que você deixou atrás. Assim, você tem que construir uma ponte e muito poucas pessoas sabem como fazê-lo. Requer maior habilidade de engenharia do que para construir uma ponte material. Você pode ter experiên-

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130 PARTE VII

cias maravilhosas durante o sono, mas esquece-as todas. Talvez se lembre, como disse, da última, a mais próxima da mente física. Então o melhor meio de lembrar-se e tornar-se consciente da noite inteira, é começar pelo fim e cami-nhar para trás. Agarre a última imagem que ainda persiste em sua memória, como a ponta solta de um fio e então puxe, puxe vagarosamente, até que ima-gem após imagem retorne. É algo como o desenrolar de um filme de cinema no sentido inverso. Quando você perder a trilha, pare e concentre-se um pouco; tente recuperar qualquer pedaço perdido ou impressão vaga que ainda persista ou que possa ser mais facilmente revivida e então puxe de novo, vagarosamen-te, gentilmente, apanhe qualquer coisa que apareça, tente juntar os pedaços. Desta forma, depois de algumas tentativas e treino você será capaz de recuperar uma boa parte do submundo perdido.

Há, entretanto, muitos modos de organizar a coisa. Pois você deve saber que suas noites não são todas do mesmo modo. Cada uma é diferente e traz sua própria espécie de sono e sonho. Como cada dia é diferente, tendo sua própria característica particular de atividade, da mesma forma cada noite também vem com suas experiências peculiares. Você pode pensar que um dia seja mais ou menos exatamente como o anterior, que você está fazendo a mesma coisa dia após dia; mas não é assim. Externamente, as atividades podem aparentar ser as mesmas mas, realmente, sua natureza e seu significado variam de um dia para outro. Nunca dois momentos são iguais no universo. Sua noite também é um universo de sua própria espécie. Cada noite traz seu próprio problema e precisa de sua própria solução.

SOBRE OCULTISMO

Diz-se frequentemente, e é bem verdade, que assim que você entra no domínio do invisível, as primeiras coisas que encontra são literalmente apavo-rantes. Você só estará a salvo se não tiver medo; o mais leve medo significa o máximo perigo. Por esta razão, antigamente, o aspirante tinha que se submeter a uma severa disciplina Durante um longo tempo, precisamente para livrar-se do medo e portanto, de todas as possibilidades de perigo, antes que lhe fosse per-mitido começar o caminho.

É por isso que eu, até agora, ainda não lhes havia falado disso. Mas se alguém entre vocês sentir inclinação para estes assuntos, ou alguma aptidão especial nesta direção e estiver pronto para sobrepujar todas as fraquezas, bem, estou à disposição, pronta para ajudá-lo e iniciá-lo nestes mistérios. Mas receio que vocês tenham ainda que crescer um pouco mais, tornar-se mais maduros antes que eu possa assumir a responsabilidade.

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SOBRE OCULTISMO 131

É claro que a idade não é realmente uma barreira. Já praticava ocultismo quando tinha 12 anos. Mas devo dizer-lhes que não tinha medo, não tinha medo de nada. Porque, quando você sai do corpo, fica ligado a ele por um minúsculo fio, quase imperceptível, por assim dizer. Se o fio se rompe, termina tudo, é o fim de sua vida. Então, você entra num outro mundo e começa a olhar à volta e ver que espécie de mundo ele é. Geralmente as primeiras coisas que vê, como disse, são absolutamente horrorosas. Para sua visão normal, o ar à sua volta é vazio; não existe nada — você vê o azul do céu ou as nuvens brancas ou o sol brilhando e tudo é belo. Mas quando tem a outra visão, a cena é completamen-te diferente. Você vê que toda a atmosfera está cheia de uma multidão de pequenas formações, que são restos de desejos e deformações mentais. E elas se aglomeram à sua volta de tal modo que a coisa toda lhe dá uma impressão muito desagradável, de fato, positivamente mais feia do que se imagina. Apro-ximam-se de você, atacam-no, pressionam-no e você sente medo e treme. Então, assumem proporções imensas. Mas se você não ficar abalado, puder olhar com olhos de calma curiosidade, descobrirá que não há nada realmente aterrorizante. As coisas não são bonitas talvez, mas também não são assustado-ras.

Contarei uma história para ilustrar o meu ponto de vista. Conheci um dina-marquês que era pintor, um pintor de algum talento. Estava interessado em ocultismo. Alguns de vocês talvez tenham ouvido falar nele. Havia vindo para cá e encontrado Sri Aurobindo. Ele fez um retrato de Sri Aurobindo também. Foi durante a Primeira Grande Guerra. Retornou à França e veio ver-me. Pediu-me para ensinar-lhe esta ciência. Eu lhe ensinei como sair do corpo, como manter o controle etc., etc., e disse-lhe especificamente, o que digo a vocês agora, para não ter medo. Então, um dia, ele me procurou e narrou sua experiência de uma noite. Havia tido um sonho, mas é claro que não foi um sonho, soube como sair do corpo e ficar fora conscientemente. Uma vez fora, ele estava tentando des-cobrir onde estava. De repente, viu, movendo-se em sua direção, um tigre, enorme e formidável, evidentemente com terríveis intenções. Contudo, ele se lembrou de meu aviso. Assim, conservou-se calmo e quieto e disse para si mes-mo: "Não há perigo, eu estou protegido, nada pode me acontecer, estou cerca-do pelo poder de proteção". E olhou direto para o animal, calma e destemida-mente. Enquanto ele mantinha firme o olhar, estranho dizer, viu o tigre diminuir de tamanho, encolher, encolher, até tornar-se, finalmente um gatinho inofensi-vo.

O que representava o tigre? Disse ao pintor que talvez no decurso do dia ou em algum momento, ele tivesse ficado com raiva de alguém e alimentado pen-samentos violentos, desejando-lhe mal etc. Bem, como acontece no mundo físi-

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co, assim também no mundo oculto existe uma lei de ação e reação ou de movimento de retorno. Você alimenta um mau pensamento, ele retorna como um ataque de fora. Assim, o tigre poderia representar algum mau pensamento ou impulso que retornou a ele, como se fosse um bumerangue. Esta é exata-mente, uma das razões porque se deveria ter controle sobre os próprios pensa-mentos, sentimentos e sensações. Pois se você pensar mal de alguém, desejar-lhe coisas desagradáveis, então em seu sonho, provavelmente, você verá a pes-soa vindo para atacá-lo, mais violentamente talvez do que você pensou fazê-lo. Na sua ignorância e impulso de autojustificação, você diz: "Ora veja, não estava eu certo nos meus sentimentos para com este homem, ele queria me matar!" Contudo, o contrário é que é a verdade. Existe uma lei comum no ocultismo que, quando você faz uma formação — uma formação mental, por exemplo, com o propósito de que um acidente ou algo desagradável aconteça a uma pes-soa, e manda a formação fazer seu trabalho, então, se acontecer que a pessoa em apreço esteja num nível mais elevado de consciência, quer dizer, que não deseje mal a ninguém, seja completamente desinteressado e indiferente a esse respeito, então, quando a formação se aproxima dela, não entra na sua atmos-fera ou a toca, mas retorna àquele que o enviou. Neste caso, um sério acidente pode acontecer ao que mandou a formação: se alguém desejar a morte do outro, a morte pode vir para ele próprio. Este é frequentemente o resultado da magia negra, que é uma deformação do ocultismo.

As formações são de várias espécies. Uma formação é feita para um trabalho determinado. Quando o trabalho termina, a formação também se dissolve. Mas isto é um assunto vasto e complexo. Você não pode aprender toda a química em uma hora.

Contar-lhe-ei uma outra história com relação a isso, porque tem um signifi-cado oculto.

Havia um cientista muito conhecido em Paris. Ele escreveu esta história num livro seu. Queria saber até que ponto a razão humana poderia afetar ou influen-ciar seus movimentos reflexos, até onde era possível controlar os próprios impulsos instintivos ou subconscientes pela força da inteligência consciente. Assim, um dia, ele foi ao Zoológico. Entre os animais, havia cobras enormes, uma delas particularmente conhecida por seu caráter malévolo, quer dizer, podia ser facilmente excitada e enfurecida. Era um animal enorme, negro, no entanto, belo. As serpentes eram evidentemente guardadas em caixas de vidro, sendo o vidro suficientemente grosso para prevenir qualquer possibilidade de acidente. Ele chegou antes da hora da refeição, quando ela estava faminta, por-que depois elas vão dormir. Ficou diante da vidraça, bem perto, e começou a

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MISTICISMO E OCULTISMO 133

provocar e excitar o animal. Não me lembro o que fez exatamente para irritá-la, mas lá estava ela louca de raiva; saltou como uma mola e se arremessou no ros-to do senhor que estava justamente do outro lado do vidro, quase tocando-o. Ele sabia muito bem que nada podia lhe acontecer, a barreira era completamen-te segura e, no entanto, cada vez que a cobra se arremessava contra ele, ele pulava para trás, como se fosse para evitar o golpe. A coisa se repetia continua-mente e não obstante todas as provas de proteção e segurança que incessan-temente dava a si mesmo, o gesto reflexo não podia ser controlado.

Só que o cientista não sabia de uma coisa — um elemento de conhecimento oculto escapava-lhe. O movimento físico da serpente era acompanhado de uma considerável quantidade de projeção vital de sua energia nervosa. Era isso que o golpeava com força irresistível. Era quase como um choque físico violento e a mera razão não tinha o poder de controlá-la. Para reprimir e controlar, você deve aprender o caminho oculto.

MISTICISMO E OCULTISMO

Misticismo é uma relação mais ou menos emocional com aquilo que senti-mos ser o Poder Divino — é uma relação mais íntima, emotiva e intensa com algo invisível que tomamos pelo Divino.

Ocultismo é o conhecimento das forças invisíveis e o poder de lidar com elas. É uma ciência, inteiramente uma ciência. Sempre comparo o ocultismo com a química ou a física, pois o conhecimento oculto é muito parecido com o conhecimento científico. Só que a ciência trata de objetos e forças, enquanto o ocultismo trata de entidades e energias invisíveis, seus potenciais de combina-ção e associação. E como pelo conhecimento químico e físico você controla fenômenos materiais, do mesmo modo, pelo conhecimento oculto você contro-la fenômenos sutis, torna-os ativos e efetivos. O procedimento também é com-pletamente científico. É para ser aprendido exatamente como você faz com uma ciência. Não se trata de sentimento ou emoção: não é nada vago ou incerto. Você deve trabalhar como num laboratório. Tem que aprender as leis de ação e reação e aplicá-las. Mas não há muitas pessoas para ensiná-lo. Também não é sem perigo. Há neste campo combinações tão explosivas como qualquer combi-nação química.

Todavia, é uma coisa que pode ser aprendida. Mas deve-se ter aptidão. Se você tem o poder latente em si, pode desenvolvê-lo pela prática, mas se você não o tiver, pode tentar 50 anos que não chegará a nada. Nem todos podem ter o poder oculto; é como se você dissesse que qualquer pessoa no mundo poderia

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ser um músico ou um pintor ou um poeta. Existem pessoas que podem e outras que não podem. A não ser que seja por mera curiosidade, de modo geral, se você estiver interessado no assunto, é sinal de que tem o dom. Então você expe-rimenta. Mas como disse, é para ser feito com grande precaução.

Assim, por exemplo, quando se sai do corpo — frequentemente lhes falei sobre este fenômeno — mesmo que seja a uma distância pequena, mesmo se apenas mentalmente — então o que sai é uma parte da consciência que contro-la as atividades normais do corpo, que está situada na parte automática que produz os movimentos involuntários espontâneos, tais como a circulação do sangue ou a secreção etc., e também outros movimentos nervosos e mecânicos do pensamento. Esta região não está mais sob o controle da parte pensante consciente. Bem, sempre há na atmosfera à sua volta um bom número de pequenas entidades, frequentemente diminutas, que são em geral formadas de restos desintegrados de um ser humano morto: são como micróbios, os micró-bios do vital. Têm forma e podem ser visíveis e possuem uma vontade própria. Você não pode dizer que sejam sempre maldosas, mas são cheias de malícia, quer dizer, gostam de se divertir às custas dos seres humanos. Assim que elas veem alguém não suficientemente protegido, correm e tomam posse da mente mecânica e provocam toda espécie de acontecimentos desagradáveis — pesa-delos, perturbações físicas — você se sente sufocado, morde ou engole a língua e mesmo coisas mais sérias. Quando você deseja entrar em transe, ter a expe-riência de estar fora do corpo, deve ter alguém a seu lado, não apenas para tomar conta de seu corpo físico, mas também para prevenir que as entidades vitais tomem posse do centro nervoso que, como disse, não estão mais sob o controle e proteção da inteligência consciente. Há ainda um perigo maior. Quando se sai do corpo de um modo mais ou menos concreto ou material, man-tendo apenas um contato tênue e frágil com o corpo — um fio de luz, por assim dizer — este fio de contato deve ser protegido pois o ataque dos hostis pode cair sobre ele e cortá-lo; se for cortado, não se pode mais voltar ao corpo, o que significa morte.

Tudo isto quer dizer que ocultismo não é uma brincadeira ou um mero jogo; você não pode interessar-se por ele simplesmente para divertir-se. Deve-se lidar com ele como deve ser feito, sob condições apropriadas e com grande cuidado. A única coisa absolutamente essencial, repito mais uma vez, é ser totalmente destemido. Se encontrar em seus sonhos cenas terríveis e ficar amedrontado, então você não deve se aproximar do ocultismo. Caso contrário, se você puder permanecer perfeitamente tranquilo em face das ameaças mais assustadoras, e elas simplesmente o divertirem, se puder lidar com tais situações em segurança e com sucesso, isto mostra que você tem alguma capacidade e assim pode ten-

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MEDITAÇÃO E ALGUMAS PERGUNTAS 135

tar seriamente. Há pessoas que são verdadeiros lutadores em seu sono, se encontram um inimigo, elas o enfrentam; podem não somente defender-se mas atacar e conquistar.

MEDITAÇÃO E ALGUMAS PERGUNTAS

“Por que sou incapaz de meditar?”

Porque não aprendeu a fazê-lo. Uma fantasia súbita se apossa de você e diz: "Agora vou me sentar e meditar." Mas sentar-se de pernas e braços cruzados e olhos fechados, não é fazer meditação. Você tem que aprender a meditar, como aprende matemática ou tocar piano. Há cursos regulares de meditação dados por professores, em todas as épocas e países. Há muitas regras e regulamentos. Há toda espécie de instrução, tais como conservar a mente quieta, como ficar silencioso e não pensar, como reunir todos seus pensamentos e concentrá-los etc. etc. Ensinaram-lhe como sentar-se, ficar de pé, andar e comer. Você não se lembra do método e da disciplina, porque aprendeu-os quando era muito crian-ça. Se, da mesma forma, na sua infância tivessem lhe ensinado como meditar, hoje você não teria dificuldade em fazê-lo. Infelizmente não lhe ensinaram. Coi-sas dessa espécie não são ensinadas. Não lhe é ensinado nem mesmo como dormir. Você acha que ir para a cama e deitar-se de qual quer jeito é a maneira de dormir. De forma alguma. Você deve aprender a dormir exatamente como aprendeu a andar ou comer. Muitas coisas você não aprendeu porque não lhes foram ensinadas. Conforme vai crescendo, vagarosamente, laboriosamente, através de experiências desagradáveis, através de sofrimento e erro, você chega finalmente a conhecer certas coisas fundamentais. E quando fica velho e seus cabelos grisalhos, verá que está começando a aprender algo, mas já é muito tar-de. Em vez disso, se seus pais, se as pessoas que cuidaram de você, tivessem tido a preocupação de ensinar-lhe o que devia fazer, e fazê-lo bem — agir bem, pensar bem, sentir bem, da maneira correta — então poderia ter evitado todos os enganos que fez durante toda sua vida. Você fica surpreso quando fica doen-te, quando se sente cansado e exausto, porque não sabe nada. Anos são exigi-dos para aprender alguma coisa, para aprender mesmo as coisas mais elementa-res, como, por exemplo, ser limpo.

Viver como se deveria, de modo correto, é uma arte muito difícil. Requer estudo, requer pratica. Tente simplesmente conservar o corpo sadio, mente quieta, e o coração cheio de boa vontade — estes são apenas alguns dos ele-mentos indispensáveis para a base de uma vida decente. Você verá que a coisa não é fácil.

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136 PARTE VII

“Temos necessidade de fazer algum espécie de trabalho, além de nossos estudos?”

Depende de você, de sua meta. Se você desejar fazer Sadhana, deveria natu-ralmente dedicar pelo menos algum tempo a um trabalho que não fosse egoísta, que não fosse feito para si mesmo. Estudo é muito bom, muito necessário, até mesmo indispensável, precisamente porque é exatamente uma das coisas a que me referi um pouco antes, que você deveria aprender quando jovem, porque torna-se difícil mais tarde quando for adulto. Pode chegar, naturalmente, a uma idade em que, depois de ter feito seus estudos básicos, sinta o impulso de fazer Sadhana. Então você deve dedicar-se a algo que não seja exclusivamente pes-soal. Deve fazê-lo desinteressadamente, sem que lhe diga respeito. Importando-se apenas consigo mesmo, você se fecha dentro de uma espécie de concha e não se abre às forças universais. Um movimento desinteressado, uma ação altruísta, embora pequena, abre a porta para algo mais que seu pequeno eu. Normalmente você está aprisionado em sua concha e toma conhecimento da existência de outras conchas semelhantes somente quando se choca com elas. Mas ser consciente da única Força que permeia tudo, da mútua dependência das coisas e dos seres, é um outro assunto muito diferente: é a base indispensá-vel para o Sadhana.

“Mas não se pode estudar por amor ao Divino, e preparar-se para trabalho divino?”

Pode-se, mas isso requer uma atitude bastante diferente. Você tem que estudar com um espírito completamente diferente. Antes de tudo, não deveria existir assunto que lhe agrade, nenhum que lhe desagrade, nenhuma aula que o aborreça, nenhuma que o divirta. Não deveria haver lições difíceis nem fáceis, nem deveria haver professor que fosse desagradável, nem um outro que fosse agradável. Todos estes gostos e desgostos, preconceitos e preferências desapa-recem. Você entra num estado em que começa a aprender de tudo que encon-tra, tudo é uma ocasião para uma experiência, um conhecimento. Tudo o prepa-ra para o trabalho divino, tudo é interessante. Se você estudar com este espírito, está tudo bem.

“Por que é permitido que tanto dinheiro seja desperdiçado aqui? As pessoas incumbidas de um trabalho parecem gastar profusamente de acordo com seus caprichos?”

Dinheiro não é a única coisa que é desperdiçada. A Energia, a Consciência, é desperdiçada mil vezes mais, infinitamente mais do que o dinheiro. Não há um segundo em que não haja desperdício, talvez até coisas piores. Existe um hábito,

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MEDITAÇÃO E MEDITAÇÃO 137

espero que seja inconsciente, de absorver tanta energia, tanta consciência quanto se for capaz, e então, usá-la para uma satisfação pessoal. É a coisa que acontece a todo minuto. Se toda esta energia, toda esta consciência que está sendo ininterruptamente derramada em você, se tudo fosse usado para o pro-pósito certo, quer dizer, para o trabalho divino, para preparar o trabalho divino, já teríamos percorrido muito mais do caminho, ido muito mais longe do que até onde chegamos agora. Mas infelizmente, todo mundo, se não conscientemente, pelo menos instintivamente, absorve tanto quanto possível deste presente divi-no e abusa dele para fins egoístas.

Quem pensa nisso? — que exista esta Força, que é infinitamente maior, infi-nitamente mais preciosa do que todo poder do dinheiro, que esta força exista e esteja sendo dada conscientemente, constantemente, com uma paciência e per-severança infinitas, com uma simples finalidade em vista, a de realizar o traba-lho divino — digo, quem pensa em não desperdiçá-la? Quem se lembra de que todos têm um dever sagrado de progredir, preparar-se para que possam com-preender melhor e viver melhor? É porque você vive pela energia divina e pela divina consciência, que você pode nutrir-se delas, e gastá-las para seu próprio benefício. As pessoas ficam chocadas quando veem um punhado de mil rupias desperdiçadas, mas não percebem que uma torrente inteira de consciência e conhecimento está sendo desviada de sua verdadeira direção.

Se alguém quiser fazer um trabalho divino na terra, deve vir com toneladas de paciência e resignação, deve ser capaz de viver na eternidade e esperar até que a consciência desperte em cada um, a consciência da verdadeira honestida-de.

MEDITAÇÃO E MEDITAÇÃO

Algumas pessoas quando se sentam para meditar, pensam que entraram num estado fora do comum e se orgulham disso. Mas a maior parte das vezes o que fazem em meditação é simplesmente deixar seus pensamentos vagarem como se uma espécie de caleidoscópio estivesse se movimentando em suas cabeças. Alguns entretanto podem permanecer sem pensar por algum tempo, mas se de repente forem chamados enquanto meditam, por uma ou outra razão, despertam furiosos, clamando que uma boa meditação foi estragada e ficam irritados com o mundo inteiro. Mesmo assim, existem alguns que sabem meditar e chegam a uma espécie de união com o Divino. Certamente isso é mui-to bom. Outros podem seguir a sequência de uma ideia até certo ponto, até

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mesmo a seu ponto central. Isso também é muito bom. Mas a maioria entra num estado de semi sonolência muito tamásica20. A mente fica inerte, a aspira-ção inerte, o ser completo inerte. Podem permanecer assim por horas a fio. Bem, nada é mais durável que a inércia. E quando saem dela, pensam que alcan-çaram algo muito elevado. Mas elas simplesmente caíram na inconsciência.

Sim, há pessoas que sabem meditar. Porém mesmo supondo que você saiba como entrar na consciência divina, essa experiência deve ter algum efeito sobre sua vida exterior — é claro que isso difere de pessoa para pessoa. Existem algu-mas que se dividem distintamente em duas. Estas, como disse, quando entram em meditação, têm ou pensam ter experiências e experiências muito boas. Porém quando voltam à consciência normal e começam a agir, tornam-se pes-soas bem comuns, com as reações mais comuns, fazendo toda espécie de coisas que não deveriam fazer. Pensam somente em si mesmas, ocupadas em arrumar suas próprias vidas, sem um pensamento sequer para os outros ou se poderiam ser úteis ao mundo ou não. E entretanto, em meditação atingem um contato com alguma consciência e realidade mais alta e mais profunda. É por isso que aqueles que acharam difícil mudar a natureza humana declararam ser isso impossível e aconselharam que a única coisa a fazer sob as circunstâncias pre-sentes era abandonar o mundo e escapar. Naturalmente se todos pudessem fugir, não haveria mais mundo algum. Mas felizmente ou infelizmente, a exis-tência do mundo não depende da vontade de indivíduos que não tiveram nenhuma influência na criação dele e nem mesmo sabem como ele surgiu. Não é simplesmente porque alguns fogem do mundo que ele deixará de existir — para estes talvez, mas quanto aos outros? Não tenho nem mesmo certeza se realmente conseguem escapar. Em todo caso, não acredito que possam se transformar através da meditação. No entanto, se houver um trabalho a fazer e você o fizer bem quanto possível e enquanto o estiver fazendo tomar o cuidado de não se esquecer do Divino e se entregar a Ele para que possa mudar seu ser, mudar suas reações em algo bonito e luminoso, então, de fato, o Divino irá transformá-lo.

Nunca vi ninguém que tendo deixado tudo de lado para se sentar em medi-tação mais ou menos vazia, fazer qualquer progresso. Mesmo se o fizer, será um progresso muito pequeno. Contudo, já tive ocasião de encontrar pessoas cheias de entusiasmo pelo trabalho de transformação do mundo, devotando-se a esse trabalho sem reservas, entregando-se sem nenhuma ideia de salvação pessoal. Sim, são essas pessoas que vi fazerem progressos maravilhosos. Por outro lado,

20 Tamas: inércia.

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PRECE E ASPIRAÇÃO 139

tenho visto muitas vivendo em mosteiros; bem, não vale a pena falar delas. Não é fugindo do mundo que você irá mudá-lo. É somente trabalhando constante-mente nisso que você pode efetuar a mudança.

“Quer dizer que a meditação não tem nenhuma utilidade?”

Meditação virá tanto quanto lhe for necessário. Quando vier ela apoderar-se-á de você, então não deveria resistir-lhe. Você se senta, volta-se para dentro de si, recolhe-se e faz o progresso interior necessário. Depois disso, você sai e começa de novo seu trabalho. Mas acima de tudo, não seja vaidoso. As pessoas que se consideram criaturas excepcionais e cheias de mérito, colocam uma bar-reira a todo progresso. Devo insistir na necessidade da humildade. Fala-se muito a respeito dela, mas sem entendê-la muito bem. Seja humilde, mas da maneira certa. Se você pudesse desenraizar esta erva daninha que é a vaidade! Como é difícil, sim, como é difícil! Você não pode fazer uma única coisa boa, fazer o mais leve progresso sem ficar inflado secretamente em algum lugar, acariciando uma autossatisfação escondida! Você deve martelar várias vezes para quebrar esse duro cerne de egoísmo. Tem de trabalhar toda sua vida para destruir essa erva venenosa. Você pensa que o conseguiu e fica muito satisfeito com a ideia de tê-lo feito finalmente.

PRECE E ASPIRAÇÃO

As preces são de várias espécies. Há uma que é externa e física, quer dizer, palavras simplesmente aprendidas de cor e repetidas mecanicamente. Não sig-nifica muito mas, geralmente, consegue acalmá-lo. Se você repetir continua-mente umas poucas palavras ou sons durante algum tempo, eles acabarão por levá-lo a um estado de tranquilidade. Há uma outra que é a manifestação natu-ral de um desejo; você almeja uma determinada coisa e a expressa claramente. Pode-se orar por uma pessoa ou por si mesmo. Há ainda uma outra espécie na qual a prece se aproxima da aspiração e as duas se encontram: é a formulação espontânea de uma experiência que se teve. Ela brota das profundezas do ser; é a expressão oral de alguma coisa vivida dentro que deseja manifestar gratidão pela experiência e pede por sua continuação ou busca uma explicação. É, como disse, quase uma aspiração. No entanto, a aspiração não é formulada necessa-riamente em palavras; se as usa, faz delas uma espécie de invocação. Por exem-plo, você deseja alcançar um certo estado. Encontrou dentro de si algo que não está em harmonia com seu ideal, um movimento de obscuridade ou de ignorân-cia, mesmo de má vontade e quer transformá-lo. Você não vai expressá-lo em muitas palavras, mas uma prece se eleva dentro de si como uma chama, uma oferenda ardente feita da própria experiência que procura crescer e ampliar-se

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para se tornar mais clara e precisa. É verdade que tudo isso pode ser expresso em palavras, se você tentar recordar e anotar a experiência. Porém, a experiên-cia, a própria aspiração é, como disse, uma chama que se arremessa para cima levando em seu âmago a coisa que pede. Digo "pede" mas o movimento não é absolutamente de desejo; é verdadeiramente uma chama, a chama da vontade purificadora que carrega em seu cerne o verdadeiro objetivo que deseja realizar. A descoberta de uma falta dentro de si oferece uma ocasião para um maior pro-gresso, uma maior autodisciplina, uma ascensão mais elevada em direção ao Divino. Ela abre uma porta para o futuro que você gostaria que fosse mais claro, mais verdadeiro e mais intenso. Tudo isso se reúne no seu interior como uma força concentrada que você lança para cima num movimento de ascensão. Não é necessário expressá-la em palavras. Na verdade é uma chama que se eleva. Assim, é verdadeiramente uma aspiração. A prece é, geralmente, uma coisa mais externa e trata de um objetivo mais preciso.

E sempre formulada porque a própria formulação faz da prece o que ela é. Você pode ter uma aspiração e transcrevê-la em prece, mas a aspiração em si excede a prece. É algo muito mais íntimo, muito mais desinteressado, que vive apenas para o objetivo que deseja se tornar ou para a coisa a fazer, quase iden-tificada com ele. Uma prece pode ser de qualidade muito elevada. Em vez de um pedido para a realização de um desejo específico, pode expressar seu agradeci-mento e gratidão pelo que o Divino fez ou está fazendo por você. Seu pequeno eu não o preocupa, nem seus interesses egoístas; ela pede pelos modos de agir do Divino em você e no mundo. Isso o leva às fronteiras da aspiração, pois a aspiração tem muitos graus e é expressa em muitos planos. Porém o cerne da aspiração está no ser psíquico, onde se encontra na sua forma mais pura, por-que lá é sua origem e fonte. As preces podem vir de outros planos mais baixos ou secundários do ser, como as preces físicas ou materiais, as preces vitais ou as preces mentais. Também há as que são espirituais e psíquicas. Cada uma tem seu próprio caráter e seu próprio valor. Repito, há um certo tipo de prece que é tão espontâneo e tão desinteressado que mais parece um apelo ou invocação, não para rogar por si mesmo, mas para pedir a intercessão do Divino em benefí-cio de alguém. São extremamente poderosas. Já vi inúmeros casos em que pre-ces dessa espécie resultaram na sua realização imediata. Denotam uma grande fé, um grande fervor, uma grande sinceridade e, também, uma grande simplici-dade de coração, algo que não calcula, que não negocia ou regateia, não dá com a ideia de receber. A maioria das preces são feitas precisamente com este intui-to. Porém estava falando dessa variedade mais rara, que também existe e é uma espécie de agradecimento, um cântico ou um hino.

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OFERENDA E ENTREGA 141

Resumindo, então, pode-se dizer que uma prece é sempre formada de pala-vras. As palavras têm diferentes valores, de acordo com o estado de consciência da pessoa no momento em que é formulada. Mas a prece é sempre uma coisa enunciada. A aspiração, no entanto, não necessita de expressão. A prece tam-bém precisa de uma pessoa a quem orar. Existe uma certa classe de pessoas cuja concepção do universo é tal que não há lugar para o Divino (Laplace, o famoso cientista francês, por exemplo). Essas pessoas provavelmente não reco-nhecem a existência de nenhum ser superior a quem possam apelar ou procurar orientação ou ajuda. Podem não acreditar em Deus, mas podem acreditar no progresso. Talvez concebam o mundo como um movimento progressivo que vai se tornando cada vez melhor, elevando-se cada vez mais, crescendo constante-mente em direção a uma realização mais nobre. Eles podem pedir, desejar, aspi-rar por esse progresso; não necessitam procurar pelo Divino. A aspiração requer fé, certamente, mas não a fé especificamente num Deus pessoal. Porém a prece é sempre dirigida a uma pessoa, uma pessoa que ouve e responde. Ai está a grande diferença entre as duas. Os intelectuais admitem a aspiração, mas consi-deram a prece como uma coisa inferior, adequada aos não intelectuais. Os mís-ticos acham que a aspiração está certa, mas para que sua aspiração seja ouvida e realizada, você deve também orar, saber como orar e a quem — a quem mais senão ao Divino? A aspiração não precisa ser dirigida a alguém: pede por um estado de consciência, um conhecimento, uma realização. A prece acrescenta a isso a relação com uma pessoa. E uma coisa pessoal endereçada a alguém para implorar por uma coisa que só ele pode conceder.

OFERENDA E ENTREGA

Não são bem a mesma coisa. Melhor, são dois aspectos da mesma coisa. Não pertencem inteiramente ao mesmo nível de consciência. Por exemplo, você resolveu fazer uma oferenda de sua vida ao Divino. Então, de repente, acontece alguma coisa muito desagradável que você não esperava. Seu primeiro movi-mento é de reagir e protestar. E no entanto, você fez a oferenda. Mas algo em você se revolta. Se, entretanto, estiver firme em sua oferenda, você segurará em suas mãos a parte que protesta e a colocará diante do Divino dizendo, "que seja feita a Tua vontade". Na entrega, por outro lado, há uma adesão natural, espon-tânea e sem protesto. Mesmo se acontecer algo desagradável ou contrário às suas expectativas, você ficará igualmente imperturbável e tranquilo.

No começo, você faz uma entrega ou submissão geral, em princípio, como se fosse em seu ser interior. Ela deve ser trazida à frente do ser exterior, gradual-mente, elaborada em todos os detalhes da vida. É assim que surgem as dificul-dades. Você diz que fez sua oferenda. Mesmo que tenha trabalhado nela por

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muito tempo, trabalhando arduamente, dedicando-lhe muito tempo e muita força de vontade, subitamente, você descobre, perturbando seus planos, algu-ma coisa acontecer de outro modo. Você não alcançou sucesso em alguma coi-sa. Portanto, há uma revolta, um retrocesso e assim por diante. Mas o que você deve fazer é renovar sua oferenda, reafirmar sua fidelidade. Quando ela é com-pleta, quando há uma aceitação espontânea da Vontade Divina em tudo, em toda espécie de acontecimento, então vem a entrega, a perfeita obediência, que é calma, tranquila, em paz, independendo do modo como as coisas acontecem.

Você pergunta se não é possível cometer um erro indesejável, um engano, mesmo sem querer. Não é provável. Se você for sincero até o âmago, será sem-pre consciente e não poderá ser apanhado desprevenido. É alguma forma ou grau de insinceridade que encobre seu sentido do certo e errado, tornando-o, por assim dizer, inconsciente. Sua discriminação torna-se nublada, porque você deseja que as coisas aconteçam de uma certa maneira, ou que aconteçam de outra. Por outro lado, se você for correto, se for indiferente a qualquer coisa que aconteça e apenas esperar pela vontade do Divino, você sempre perceberá imediatamente se existe ou não um movimento errado em você. Reconhece-o intimamente, de uma forma muito precisa, pois está pronto para corrigi-lo.

A sinceridade perfeita não quer errar: desistirá de tudo para não viver numa ilusão. É um movimento muito preciso, porém muito delicado. Pois quando você faz uma coisa, mesmo a coisa certa, o mental e o vital estão presentes para pro-curar se aproveitar dela, pelo menos um proveito de satisfação pessoal, para ter uma boa opinião de si mesmo. É muito difícil alguém não se enganar a si pró-prio.

IGUALDADE DO CORPO — IGUALDADE DA ALMA

Igualdade do ser externo significa boa saúde, um corpo sólido, nervos con-trolados, quando você não é abalado pelo menor choque, quando é calmo, quie-to, equilibrado, ponderado. Nessas condições, você pode receber dentro de si uma grande força de cima (ou, da energia que o cerca) e contudo não ficar per-turbado. Se qualquer um de vocês, em algum momento, houver recebido essa força, deve saber por experiência que, sem uma saúde física perfeitamente sã, não poderá contê-la ou conservá-la. Você não consegue permanecer quieto, fica agitado, anda para lá e para cá, fala, grita, chora, pula ou dança, somente para lançar fora a energia que não é capaz de reter. Você espalha ao redor o que não pode reunir e assimilar. Para poder reunir e assimilar a força, o corpo e os ner-vos devem estar quietos e fortes.

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O ESFORÇO E VONTADE PESSOAIS 143

Igualdade da alma é diferente, é psicológica, não física. E o poder de supor-tar o impacto de coisas boas ou más, sem ficar triste ou eufórico, desencorajado ou entusiasmado, sem nenhum transtorno ou perturbação. Qualquer que seja a coisa que aconteça, você permanecerá sereno e em paz. Mas as duas igualdades são necessárias. Na verdade, há várias igualdades. À parte de igualdade do vital e da igualdade do corpo, há também a igualdade da mente propriamente dita. Quer dizer, todas as ideias, de todas regiões, mesmo as mais contraditórias, podem vir à sua cabeça e ainda assim você se conserva quieto, imperturbável e até mesmo indiferente. Você é uma testemunha, você as vê, seleciona-as, arran-ja-as, põe cada ideia no seu devido lugar, aprecia o valor de cada uma, determi-na a relação de uma com a outra e com o todo, mas não fica agitado por nenhuma em particular.

O ESFORÇO E VONTADE PESSOAIS

No esforço pessoal há uma sensação de empenho, de tensão. Ele é sentido como pessoal, isto é, você confia em si e tem a impressão de que se não fizer a cada passo o que é para ser feito, tudo está perdido. Vontade é diferente. É a capacidade de concentrar-se sobre o que se faz para fazê-lo bem feito e conti-nuar assim até que a coisa termine.

Suponhamos que, sob certas circunstâncias, um trabalho lhe tenha sido dado. Por exemplo, tome um artista, um pintor. Ele tem uma aspiração e decidiu fazer uma pintura. Sabe muito bem que se não tiver inspiração não será capaz de fazer nada bom, a pintura produzida não passará de um borrão. Se ele se conservasse simplesmente passivo, sem esforço ou vontade, poderia dizer ao Divino: "Aqui está a paleta, o pincel e a tela, agora você fará a pintura". Mas o Divino não age dessa forma. O próprio pintor deve arranjar tudo, concentrar-se sobre um motivo, colocar toda sua vontade na execução perfeita. Por outro lado, se ele não tiver inspiração, poderá trabalhar muito e no entanto o resulta-do será apenas um trabalho sem valor como milhares de outros. Você deve sen-tir o que sua pintura quer expressar e saber ou descobrir como fazê-la. Um grande pintor quase sempre consegue uma visão muito exata da pintura que quer fazer. Tem a visão e se dispõe a trabalhar baseado nela. Trabalha dias con-secutivos, com vontade e consciência para reproduzir exatamente o que vê cla-ramente com sua visão interior. Ele trabalha pelo Divino, sua entrega é ativa e dinâmica. Com o poeta também acontece a mesma coisa. É assim para qualquer um que queira fazer algo pelo Divino.

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COMO SENTIR QUE PERTENCEMOS AO DIVINO

“Como sentir que pertencemos ao Divino e que o Divino está agindo em nós?”

Não com a cabeça, embora seja possível começar por ela, porque a luz toca primeiro a cabeça. Deve-se sentir com a própria sensação, isto é, senti-lo em uma aspiração flamejante que procura se realizar. Por exemplo, como pode acontecer às vezes com um atleta; suponhamos que você está tentando levantar um peso e está intensamente concentrado nisso. De repente, você sente sem saber como, que uma outra Força está levantando o peso: algo que se apossou de suas mãos, obrigando-as a fazer o impossível. O corpo parece não existir nes-se momento. Muitos escritores têm também a mesma experiência. Há alguma coisa nele que não é seu próprio eu, que pensa, vê muito mais claramente, é infinitamente mais consciente, que organiza os pensamentos e as palavras. Não é o escritor quem escreve mas esse algo mais. Nesses momentos a pequena pessoa que se esforça e tenta, não está mais presente. De fato, para a experiên-cia ser completa e não ser perturbada, a pessoa física deve conservar-se quieta tanto quanto possível.

Para ter essa experiência, você deve primeiro ter vontade de tê-la; deve querer e aspirar, tentar ser cada vez menos egoísta, ter cada vez menos o sen-timento de ser uma pessoa particular. Deve ter dentro de si esta flama, este anseio ardente, esta necessidade de união. É uma espécie de entusiasmo lumi-noso que se apossa de você, uma necessidade irresistível de seu ser para dissol-ver-se no Divino e não ficar separado dele. É verdade que é um estado que não dura muito no começo, a experiência contrária vem imediatamente depois. Porém, se continuar, se persistir na sua vontade e aspiração, o outro estado vol-tará. Os dois se alternam por algum tempo até que a completa fusão é alcança-da. Finalmente não há mais distinção entre o seu ser pessoal e o Ser Divino, os dois são unos. Não há mais o estado de ansiedade em direção a um sentido estático de submissão no qual os dois estão ainda separados. O estado de fusão e mistura, de completa identidade são extremamente simples e supremamente espontâneos. Ouvi, uma vez, de um Sufi Indiano, em Paris, algo referente a este estado de consciência. Eles também conhecem-no.

“Então é este o estágio final e não há mais progresso depois disso?”

Não há fim para o progresso. Porque esta união perfeita pode acontecer antes da transformação do corpo. União é uma coisa da consciência. Há uma grande diferença mesmo entre a consciência física e a matéria física. O mais avançado místico pode alcançar a realização na consciência física, mas isso não

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COMO SENTIR QUE PERTENCEMOS AO DIVINO 145

inclui a matéria física. A transformação do corpo material não foi feita ainda, nem mesmo tentada no passado. Só pode ser feita se a vida for suficientemente prolongada; você não deixa o corpo, a não ser que queira, e assim tem a seu dispor o tempo necessário para realizar a mudança. Sri Aurobindo disse uma vez — e ele disse isso sem a menor hesitação — que levará cerca de trezentos anos para fazê-lo e eu posso acrescentar, como descrevi, que será a partir do momento em que o último estágio de união com o Divino for alcançado.

Trezentos anos é o mínimo, diria. Você deve imaginar o que significa trans-formar o corpo. O corpo com todos seus órgãos e funcionamento trabalha automaticamente sem a intervenção de sua consciência e é construído de acor-do com um plano animal. Se seu coração parar por um centésimo de segundo, seu corpo vai embora. Você não pode dispensar nenhum de seus órgãos e deve observar seus próprios funcionamentos. Transformação significa a substituição deste arranjo puramente material por uma concentração sistemática de forças. Você deve provocar uma distribuição de forças de acordo com uma certa espé-cie de vibração, substituindo cada órgão por um centro de energia auto-consciente que governe através da concentração de uma força mais elevada. Não haverá mais um estômago, nem mesmo um coração. Estas coisas darão lugar a um sistema de vibrações que representem o que eles realmente são. Os órgãos materiais são símbolos de centros energéticos; não são a realidade essencial, eles apenas dão uma forma ou figura a ela sob certas circunstâncias. O corpo transformado funcionará através de seus centros de energia, não atra-vés de seus representantes como foram desenvolvidos no corpo animal. Para isso deve-se, primeiro que tudo, ser consciente destes centros e de seus funcio-namentos e em vez de um movimento inconsciente automático, deve haver um movimento de controle consciente. Assim, ter-se-á ao dispor não órgãos físicos animais, porém vibrações simbólicas, as energias simbólicas. Isso não significa que não haverá alguma forma reconhecível definida. A forma será construída com qualidades, em lugar de partículas sólidas (poeira). Será, por assim dizer, uma forma prática ou pragmática: será flexível e móvel, diferente da forma fixa grosseiramente material. Como a expressão de seu rosto muda conforme seus sentimentos e impulsos, do mesmo modo o corpo mudará de acordo com a necessidade do movimento interior. Você nunca teve esta espécie de experiên-cia em seu sonho? Você se eleva no ar e dá com seu cotovelo um empurrão numa certa direção e seu corpo se estende para lá; você dá um chute com o pé e vai parar em outro lugar; você pode ficar transparente à vontade e pode pas-sar facilmente através de uma parede sólida! O corpo transformado se compor-tará mais ou menos do mesmo modo, será leve, luminoso, elástico. Leveza, luminosidade, elasticidade serão as verdadeiras qualidades fundamentais do corpo.

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Para preparar tal corpo, 300 anos não é nada; mesmo mil anos não será mui-to. Naturalmente, estou falando do mesmo corpo. Se você trocar o corpo nesse meio tempo, não será o mesmo corpo. Aos 50 anos o corpo já começa a decli-nar. Mas se, ao contrário, você tiver um corpo que for se aperfeiçoando, se cada ano representar um passo em progresso, então você pode continuar indefini-damente, porque, afinal, você é imortal.

Há uma outra dificuldade que se tem que enfrentar no trabalho da trans-formação. Um corpo particular não pode mudar, a não ser que haja uma espécie de mudança correspondente nos corpos à volta e geralmente, também, no ambiente circunvizinho; porque você vive e se move através de mútuo inter-câmbio no meio dos outros. Uma mudança coletiva leva mais tempo que uma transformação individual. Assim, não é mais uma consciência individual, mas uma consciência coletiva que tem que fazer o trabalho.

O mundo progride. E estando no mundo você também deve progredir. Con-tudo, é um progresso que o Divino efetua em você sem seu conhecimento ou colaboração. O progresso é, portanto, muito lento. A Natureza não calcula o tempo que leva para fazer seu trabalho, ela tem a eternidade diante dela e não está com pressa. Séculos e milênios são meros instantes em sua marcha para frente. Um dia alcançará o alvo que fixou para si, mesmo até a completa trans-formação do corpo e o advento do super-homem. A maior parte, de fato a gran-de maioria, não está consciente da ação do Divino nela. Ser consciente significa estar atento ao que está sendo feito, ser receptivo e ser passivo à sua influência. Quanto mais você se dá e quanto mais sincero for, mais rápida e mais segura será sua realização. Você pode fazer em uns poucos momentos o que, de outro modo, levaria anos. Esse é o alvo do Yoga.

SINCERIDADE É VITÓRIA

Ser sincero e ser cândido não é a mesma coisa. Ser cândido significa uma simplicidade baseada, em grande parte, na ignorância das coisas. Uma criança é cândida porque é simples e ignorante e não esconde nada. E incapaz disso e não tem vontade de enganar ninguém. Mas sinceridade é diferente.

Sinceridade é a coisa mais difícil de se possuir, mas também a mais positiva. Se você for sincero pode estar certo da vitória. Mas deve ser sinceridade verda-deira. Sinceridade significa que todos os elementos de seu ser, todos seus movimentos, todos, sem exceção, do mais espiritual ao mais físico, do mais inte-rior ao mais exterior, do mais elevado ao mais baixo, todas as partes separadas e em conjunto, igualmente, estão voltadas para o Divino. Elas não pedem nada

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SINCERIDADE É VITÓRIA 147

mais que o Divino, vivem para Ele e por Ele. E isso não é coisa fácil. Ser sincero numa parte, ser sincero no todo, ser sincero em momentos, é bastante fácil, todos podem fazê-lo ou chegar a esse ponto. Está dentro da capacidade de qualquer ser humano de boa vontade normal, ser sincero em seus movimentos psíquicos, mesmo se estes forem raros. Mas ser sincero em cada célula do corpo físico é uma façanha ainda mais rara e mais árdua. Dirigir as células do corpo para essa única direção, a tal ponto que sintam que não podem viver senão para o Divino, nele e, através dele, é sinceridade verdadeira e é o que você deve ter.

Primeiro, você deve observar que não há um dia em sua vida, nem uma hora, nem mesmo um minuto em que não tenha de retificar ou intensificar sua sinceridade. Não digo que você engane ao Divino. Ninguém pode enganá-Lo, nem mesmo o maior dos Asuras. Mesmo quando você tiver entendido isso, sempre haverá momentos em sua vida diária em que tentará enganar-se a si mesmo. Quase automaticamente, você apresenta razões para qualquer coisa que faça. Não falo de coisas mais vulgares, como quando você briga com uma pessoa, por exemplo, e na sua raiva, lança toda a culpa nela. Conheci uma crian-ça que dava um chute na porta porque pensava que ela fosse culpada. E sempre a outra parte que está errada. Mas mesmo que você tenha passado além deste estágio infantil, quando já é de se esperar que tenha um pouco mais de bom senso, você faz as maiores tolices e tenta justificá-las de todo modo. O teste real de sinceridade, do mínimo de sinceridade verdadeira, está na sua reação a uma dada situação: se você pode assumir automaticamente a atitude certa e fazer exatamente a coisa a ser feita. Por exemplo, quando alguém lhe fala zangado, você se contagia e fica bravo também, ou é capaz de manter uma calma e clare-za inabaláveis, ver o ponto de vista do outro e comportar-se como deve?

Bem, isto é exatamente o começo da sinceridade, seus rudimentos. E se você se examinar com olhos mais perspicazes, descobrirá milhares de insinceri-dades mais sutis e no entanto, palpáveis. Tente ser sincero e então você saberá como isso é difícil. As ocasiões em que se apanha sendo insincero se multiplica-rão. Você diz que pertence ao Divino, somente ao Divino e a mais nada e a mais ninguém: "é o Divino que me move e faz tudo em mim". É assim você faz tudo que lhe agrada e usa o Divino como capa para encobrir sua complacência a desejos e paixões. Isto também é insinceridade vulgar e não deveria ser difícil detectá-la, embora enganar-se a si próprio seja uma ilusão mais comum do que enganar aos outros. A mente se apodera de uma ideia e diz: "Tudo isto é Brah-man" "Eu sou Brahman", — e você acredita ou finge acreditar que O realizou e não pode fazer nada errado. Há entretanto movimentos mais sutis de insinceri-dade ou falta de sinceridade, mesmo quando você não vestiu o manto divino como disfarce para acobertar seus lapsos. Mesmo quando você pensa que é sin-

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cero, pode haver movimentos que não sejam muito corretos, atrás dos quais, se você sondar persistentemente, encontrará escondido algo indesejável. Observe os pequenos movimentos, os pensamentos, as sensações e impulsos que se amontoam à margem de sua vida diária. Quantos são unicamente voltados para o Divino, quantos são inflamados por uma aspiração em direção a algo mais ele-vado? Você deveria se considerar feliz se encontrasse pelo menos alguns dessa espécie.

Quando digo que se você for sincero estará seguro da vitória, quero dizer aquela espécie de sinceridade total e não dividida, a flama pura que se queima em oferenda, a intensa alegria de existir para o Divino somente, onde nada mais existe, nada que tenha qualquer significado ou razão para a existência, a não ser o Divino. Nada tem valor ou interesse se não for este chamado, esta aspiração, esta abertura à verdade suprema, a tudo isto que chamamos de Divino. Você deve servir à única razão pela qual o universo existe: remova-a e tudo o mais desaparece.

IMAGENS DE DEUSES E DEUSAS

“São as imagens comuns de deuses e deusas fiéis à realidade?”

Bem, quando uma criança pequena faz um desenho de um objeto, existe alguma semelhança nele? É quase o mesmo aqui, ou até pior. Pois a criança é simples e sincera, enquanto aquele que faz imagens está cheio de preconceitos e ideias preconcebidas, repleto de coisas que ouviu ou leu. E está preso às suas construções mentais. Mas algumas vezes, aqui e ali, muito raramente de fato, aparecem artistas com visão interior, com grande aspiração e pureza de alma e fazem coisas que são aceitáveis. Mas são exceções, o contrário é a regra.

Tenho visto algumas destas formas no mundo vital e também no mental; são verdadeiramente criações do homem. Há um Poder do além que se manifesta, mas neste mundo triplo de Ignorância o homem cria o Próprio Deus à sua ima-gem e os seres que lá aparecem são mais ou menos o resultado do pensamento humano criativo. Assim, algumas vezes, vemos realmente coisas que são real-mente assustadoras. Tenho visto formações tão obscuras, tão incompreensíveis, tão inexpressivas! Há alguns seres divinos que são tratados de maneira pior que outros. Tome, por exemplo, esta pobre Mahakali21. O que o homem fez dela foi

21 Mahakali: a deusa da suprema força, um dos quatro principais Poderes e Personalidades da Mãe.

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OS CENTROS YÓGUICOS 149

um pesadelo além da imaginação, tremendamente horrível. Tais criações, entre-tanto, vivem em um mundo muito inferior, no mundo vital mais baixo; e se exis-te alguma coisa nelas do ser original, é reflexo tão distante que dificilmente é reconhecível. E contudo, é isso o que é atraído pela consciência humana. Quan-do, por exemplo, uma imagem é feita e instalada e o sacerdote chama para den-tro dela uma forma, uma emanação de um deus, através de uma invocação inte-rior (há geralmente uma cerimônia completa para esse fim), se o sacerdote for alguém que tenha o poder de evocação, então ele é bem sucedido (o que Ramakrishna fez no templo de Kali). Mas, geralmente, sacerdotes são pessoas com ideias muito comuns e com treino e educação os mais tradicionais. Quando pensam em deuses, dão-lhes atributos e aparências que são populares, que normalmente pertencem às entidades do mundo vital, ou quando muito, à for-mações mentais, mas que não representam de forma alguma a verdade dos seres que deveriam representar. Todos os ídolos de templos ou deuses domésti-cos, adorados por muitos, são habitados por seres que podem apenas levá-lo à infelicidade e ao infortúnio. Estão muito distantes da divindade que se pretende adorar. Há certas Kalis familiares que são verdadeiros monstros. Tenho aconse-lhado a algumas pessoas a jogar fora essas imagens no Ganges para se livrarem da influência perniciosa que emana delas. Mas, obviamente, é sempre culpa do homem e não da divindade, pois é o homem que deseja tanto fazer seus deuses à sua própria imagem!

OS CENTROS YÓGUICOS

Existem é claro, os sete centros yóguicos bem conhecidos do corpo humano. Eles são, começando de baixo: 1) o fim da espinha, 2) o baixo abdômen, 3) o umbigo, 4) o coração, 5) a garganta, 6) entre as sobrancelhas, e 7) a coroa da cabeça. Mas há outros que se estendem abaixo da espinha e que não são tão bem conhecidos. É verdade, entretanto, que os centros no ser individual termi-nam com a espinha; o que está abaixo pertence mais à natureza universal. Há um centro acima e além da coroa da cabeça. Há também, do outro lado, um centro abaixo e além da sola dos pés. Os centros yóguicos são centros de cons-ciência e energia; são fontes de vários tipos e qualidades de consciência e ener-gia — indicam os vários planos de energia da consciência. Há pessoas que real-mente sentem que sua força e sua energia vêm de baixo, como se estas fluíssem para dentro delas, de uma fonte situada abaixo dos pés. Esta região abaixo, é o domínio do inconsciente. Podemos distinguir ainda cinco centros nesta região inferior ou infra espinhal, à parte do próprio fim da espinha (muladhara): 1) o joelho, 2) a perna, 3) os pés, 4) a sola do pé e 5) abaixo dos pés. Estes perfazem o total de doze centros, — o número místico da plenitude ou integralidade.

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O centro no final da espinha, que é a base da consciência individual, é visto como uma serpente — a serpente enrolada e adormecida, talvez apenas com a cabeça se projetando de um modo muito sonolento. Representa a consciência humana normal, contida, estreita, ignorante e adormecida; também, a energia humana neste nível é obscura e mecânica, extremamente limitada. O potencial total de energia, a força-consciência, está confinada na consciência do corpo físico. Bem, a serpente não permanece adormecida para sempre. Ela tem que acordar e acorda. Isto quer dizer, a consciência do homem desperta, cresce e lança-se para cima. Um dia, a serpente sacode a cabeça, ergue-a um pouco mais, começa a balançá-la, como se estivesse tentando livrar-se do sono e ficar atenta. Vagarosamente vai se desenrolando e se levantando cada vez mais. Ergue-se e passa através dos centros, um por um, torna-se cada vez mais des-perta, acumulando nova luz e potência a cada centro. Finalmente, inteiramente desperta, cresce até atingir sua altura total, ereta, esticada como uma vara, o fim do rabo na base da espinha e a cabeça tocando a coroa da cabeça do homem.

Então, ele se torna completamente desperto, o homem perfeitamente auto consciente. Contudo, o movimento não para aí, pois a serpente pressiona mais adiante, bate com a cabeça no fundo da coroa e, finalmente, abre passagem e passa além como a chispa de um relâmpago. Não se precisa temer a passagem, não há quebra ou fratura física e real do crânio, embora se tenha dito que, ten-do chegado acima e além da cabeça, você provavelmente não volta e se vai para sempre. Em outras palavras, o corpo não se sustenta por muito tempo após a experiência, desfalece e morre. E contudo, não precisa ser assim. Isso não é toda a verdade. Pois quando você tiver passado além, pode voltar também, trazendo a luz superconsciente consigo. Isto quer dizer, a serpente, agora luminosa, — energia pura e livre — pode entrar no corpo novamente, desta vez com a cabeça para baixo e o rabo para cima. Entra brilhando, iluminando os centros um por um, com sua luz superconsciente, dando ao homem uma consciência, energia e vida cada vez mais ricas, transformando o ser cada vez mais. Facilmente, a luz desce até a região do coração. Depois começa a dificuldade, porque as regiões abaixo, gradualmente, tornam-se mais escuras e mais densas e é um árduo tra-balho para a Luz penetrar enquanto desce mais abaixo. Se conseguir chegar até a base da espinha, pode-se dizer que alcançou algo milagroso. Mas há mais um progresso necessário, se o homem (e o mundo com ele) tiver que realizar uma vida supraconsciente totalmente transformada. Em outras palavras, a Luz deve tocar e penetrar não somente o stratum físico de nosso ser, mas também os outros que estão abaixo, o subconsciente e o inconsciente. Isto tem sido até agora uma masmorra selada, algo impossível de qualquer aproximação e captu-ra.

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OS CENTROS YÓGUICOS 151

E, contudo, não é irrealizável. Não apenas é factível como temos que torná-lo possível. E também porque o destino do homem exige que isto seja inevitável. Se o homem tiver que se transformar, se for para encarnar aqui embaixo algo da Realidade Divina, se a sua vida social na terra tiver que ser a expressão da luz e da harmonia da Consciência do Espírito, então ele tem que descer até estas regiões afastadas, romper o mais baixo, como fez em relação ao mais alto, e unir os dois.

Aqui temos uma estória curiosa sobre o homem e seu destino. O que é ele, o homem normal? É um escravo. Ele pode ter a ilusão de que tem ideias e movi-mentos que lhe pertencem, tem até mesmo campo livre para pô-los em execu-ção. Mas não levará muito tempo para descobrir que é uma ilusão, uma grande decepção. Seus planos não amadurecem, seus esforços batem numa parede de ferro. Quanto mais ele observa e vê as coisas corretamente, tanto mais desco-bre que está atado pelos pés e mãos. Ele é guiado por forças e coisas sobre as quais não tem o mínimo controle. É um escravo das circunstâncias, e reprimido pela vontade dos outros. Sua própria vontade não tem nenhum poder ou alcan-ce, é totalmente ineficaz. Cada vez mais sente uma grande carga que pressiona a cabeça, empurrando-a para baixo; um grande peso está sobre seus ombros. De algum modo, arrasta-se como um animal de carga. Não tem livre escolha nem vontade própria; suas vontades e desejos não são consultados. Desamparada-mente, ele é conduzido para a frente.

Mas a história não termina aqui. O homem pode, se quiser, alterar a situa-ção, mudar a sorte. Tem em si a fonte da liberdade, o que ele vagamente sente na sua consciência externa. Há um centro de onde ele é capaz de reagir e rea-firmar-se. É o centro onde esta o seu dharma, a lei de seu ser. É sua alma. Uma vez em contato com ela, se fizer dela a base de sua vida, daquele momento em diante está livre. Mantém a cabeça ereta, não mais se curva. A carga de circuns-tâncias inexoráveis não mais pesa sobre si. Tendo transcendido as circunstân-cias, permanece acima delas, olha por cima delas. Agora é o senhor e elas o obedecem, não tem mais que obedecê-las.

Esta consumação é supremamente realizada quando há o duplo rompimen-to da barreira da qual estava falando. O primeiro, é o rompimento do véu acima, quando a consciência ascende para o superconsciente, quando leva o ser huma-no para dentro do ser divino. O segundo é o lacerar do véu inferior e a descida da consciência divina no mais material, o subconsciente e o inconsciente, reali-zando a vida divina na terra.

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O INTERIOR E O EXTERIOR

A parte externa do ser está voltada para o Divino: você está consciente de seu ideal e tanto quanto possível, ajusta seu comportamento a ele. Você apa-renta o que quer ser. Mas exatamente por trás da linha, no outro lado de sua consciência — no subconsciente como é chamado — o quadro é diferente. A luz não chegou lá: os movimentos vão em outra direção. Coisas — pensamentos, impulsos, sentimentos — escondem o que você não gostaria de possuir. Não que consciente e deliberadamente os esconda: mas eles estão lá como uma par-te e parcela inevitáveis da natureza comum original. Eles formam o quintal da consciência; há toda espécie de ângulos e cantos, até mesmo espaços inteira-mente abertos, que acumularam escuridão e sujeira. Esta dualidade é comum, de fato, universal; você tem que ser unificado, quer dizer, numa só peça, intei-ramente voltado para a luz. Deve ser consciente destes elementos escondidos e trazê-los para fora, expô-los à luz, calma, cândida e destemidamente, para que assim, a força luminosa possa agir sobre eles. Eles têm que ser empurrados e rejeitados, se possível, purificados e mudados. Alguns são capazes de mudança e tornam-se movimentos corretos; outros, que são totalmente errados, perten-cem à consciência inferior e têm que ser lançados fora sem piedade.

E ESTA RAZÃO ÁGIL

A razão é um ginasta de agilidade. Pode mover-se em toda espécie de cami-nhos, fazer infinitas curvas, as mais impossíveis contorções com igual facilidade e habilidade. Não procura a verdade, embora pretenda fazê-lo, pois não pode encontrá-la. A lei da incerteza ou da indeterminação parece também ser a últi-ma palavra da ciência moderna. O que a Razão faz e pode fazer, é justificar, encontrar argumentos para qualquer posição em que for colocada ou obrigada a se apoiar. Seu dever é fornecer "provas"; pode fazê-lo como a aranha projeta para »fora de si toda a trama e urdidura da teia. Não há verdade, quer dizer, não há conclusão que não possa demonstrar, e tudo com igual convicção. Esta foi, na verdade, a grande descoberta do grande Kant que a descreveu como as antino-mias da Razão. A Razão se diverte imensamente fazendo piruetas "ad infinitum", isto é, fazendo rodeios sem se importar em procurar pelo fato ou realidade escondida no interior.

É então para se dizer que esta faculdade é uma mentira e que ela pode ape-nas levar à falsidade? Não necessariamente. Torna-se uma mentira quando você experimenta viver de acordo com ela, de acordo com uma ideia ou ideias com as quais se encantou; porque então está destinada a levá-la a contradições. De outro modo, se não for uma questão de aplicação prática, se for meramente um

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A FORÇA DA CONSCIÊNCIA DO CORPO 153

jogo ou uma brincadeira no mundo mental, é acrobacia inofensiva; e mesmo, a seu modo, pode ter alguma utilidade tornando seu cérebro afiado, atento, forte e flexível.

A Razão é um mau senhor, autônomo e frequentemente enfurecido. Mas controlada e subjugada, refreada e guiada por uma luz mais alta, é um auxílio, mesmo uma necessidade, porque ela dá a forma imediata para sustentar e fixar no mundo físico os movimentos-verdade da consciência mais elevada.

A FORÇA DA CONSCIÊNCIA DO CORPO

Há um estado de consciência no qual você percebe que o efeito das coisas, circunstâncias, movimentos, de todas as atividades da vida sobre você, depen-de, quase exclusivamente, da sua atitude em relação a eles. Então você se torna consciente, consciente a ponto de entender que as coisas em si mesmas não são nem boas nem más; assim o são unicamente em relação a nós mesmos. Seu efeito, digo, depende inteiramente da maneira pela qual você as recebe. Se tomarmos, por exemplo, uma situação como uma dádiva de Deus, como uma Graça divina, como um resultado da harmonia total, isto ajudará a nos tornar mais conscientes, mais verdadeiros e mais fortes. A mesma circunstância idênti-ca, se a tomarmos de um modo diferente, como um golpe do Destino, como uma força má que nos deseja mal, torna-se, ao contrário, um bloqueio em nossa consciência, suga nossa força, traz obscuridade, cria desarmonia. E contudo, em ambos os casos, é exatamente a mesma situação.

Gostaria que você tivesse a experiência direta e fizesse o teste, já que seu ideal é ter domínio sobre si mesmo. Mas não apenas isso. Você não deveria ser apenas senhor de si, mas também dominar as circunstâncias de sua vida, pelo menos aquelas que estão imediatamente à sua volta e que lhe dizem respeito. Você deve notar que isto é uma experiência que não é confinada à mente somente. Não precisa acontecer na sua cabeça apenas, pode, e na verdade deve, continuar no corpo. É certamente uma realização que exige grande esfor-ço, muita concentração e autocontrole. Você tem que forçar a consciência para dentro do corpo, para dentro da matéria densa. É a atitude do corpo que final-mente determinará tudo: choques e contatos do mundo exterior mudarão sua natureza de acordo com o modo pelo qual são recebidos pelo corpo. E se você alcançar a perfeição nesta linha, poderá até mesmo tornar-se senhor de aciden-tes.

Isso é possível, não apenas possível, mas fadado a acontecer, pois é um pas-so à frente no progresso do homem. Antes de tudo, você deve realizar o poder

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na sua mente, a ponto de ser capaz de agir sobre as circunstâncias e mudar seus efeitos sobre si. Então, o poder pode descer dentro da Matéria, dentro das subs-tâncias, dentro das células de seu corpo e dotá-lo com esta capacidade de con-trole sobre as coisas exteriores e a seu redor.

Não há nada impossível no mundo. Nós mesmos é que colocamos a barreira. Sempre dizemos, isto é possível, aquilo é impossível, pode-se fazer isto, não se pode fazer aquilo. Algumas vezes, admitimos que uma coisa seja possível, mas perguntamos se existe alguém capaz de fazê-la. Daí concluímos que seja impos-sível, e assim por diante. Como escravos, como prisioneiros, nós nos cingimos a nossos limites. Chamamos a isto de bom senso, mas é um senso tolo, estreito e ignorante que não conhece realmente as leis da vida. As leis da vida não são o que pensamos que sejam, como nossa mente ou nosso intelecto as concebe; são completamente diferentes.

O CORPO E O PSÍQUICO

— 1 —

Você me pergunta porque o corpo tem um poder receptivo limitado. A razão é que no mundo físico as coisas não devem se misturar, devem permanecer estáveis, em forma e posição. Por exemplo, se seu corpo subitamente começas-se a se derreter e fluir em direção a outro, isto seria de certo modo embaraçoso. Você acharia desagradável se o corpo de seu vizinho, como um fluido, jorrasse no seu próprio corpo fluido. É para prevenir essa mistura, que uma concentra-ção maior nas massas tornou-se necessária, uma espécie de fixidez de forças, que as separam. Na verdade, foi para separar uma individualidade da outra que foi necessária esta fixidez. E é precisamente esta fixidez, novamente, que impe-de o corpo de progredir tão rapidamente como poderia e deveria. Quando você cresce e atinge seu tamanho e constituição normais, você torna-se cada vez mais rígido em seu corpo. Como criança, você tem esta plasticidade de cresci-mento. As crianças mudam continuamente, mudam visivelmente. Esta plastici-dade, este crescimento e desenvolvimento continuam enquanto você permane-ce jovem. Mas além dos quarenta, digamos, as pessoas geralmente sentem que alcançaram seu objetivo, sentam-se para colher os frutos de seus esforços e tor-nam-se gradualmente secos como poeira, duros como madeira velha e mesmo como pedra, no fim. Então o corpo, não sendo capaz de se adaptar ao movimen-to da mudança interna, fica fossilizado e desagrega-se, o que significa a morte.

“Depois da morte não há, então, mais progresso?”

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O CORPO E O PSÍQUICO 155

Isso depende. Algumas vezes há uma espécie de progresso. Há, por exemplo, escritores, músicos, artistas, pessoas que viveram num alto nível mental, que sentem que ainda têm algo a fazer sobre a terra, que não terminaram seu traba-lho, não realizaram sua missão, não alcançaram a meta que colocaram diante de si. Assim, desejam permanecer na atmosfera da terra tanto quanto possível, para reter tanta coesão de seu ser quanto necessário e procurar manifestá-las e progredir através de outras formas humanas vivas. Vi muitos casos como esses. Vou contar-lhe o caso muito interessante de um músico, um pianista, um pianis-ta de uma categoria muito alta; ele tinha mãos que haviam se tornado algo maravilhoso, cheias de habilidade, exatidão, precisão, de força e de rapidez; eram realmente notáveis. Ele morreu relativamente jovem, com a sensação de que se tivesse vivido, teria continuado a progredir na sua autoexpressão musi-cal. Tal foi a intensidade de sua aspiração, que suas mãos sutis retiveram a for-ma sem se dissolver, e em qualquer lugar que houvesse alguém passivo e recep-tivo e fosse ao mesmo tempo um bom músico, as mãos do morto entrariam nas mãos vivas que estavam tocando. No caso que vi, esse homem costumava tocar normalmente muito bem, mas de maneira comum. Tornava-se, enquanto conti-nuava a tocar, subitamente, não só um virtuoso, mas um artista maravilhoso; eram as mãos da outra pessoa que faziam uso dele. A mesma coisa pode acon-tecer com relação a um pintor; neste caso também, as mãos são o instrumento. Tal coisa pode acontecer também com certos escritores; mas neste caso é o cérebro do homem morto que retém sua formação e é isto que entra no cére-bro do escritor vivo, que deve ser suficientemente receptivo para permitir a formação em toda sua precisão. Vi um escritor que não era nada extraordinário na sua capacidade normal, mas costumava escrever coisas muito mais bonitas, naqueles momentos, do que era capaz de fazer ou que fazia usualmente. Conheço o caso de um compositor de música, não um executor como o outro a quem me referi antes que era particularmente notável. No caso do compositor, como do escritor, é o cérebro que o serve; para o executor, as mãos é que são o instrumento principal. Beethoven, Bach, César Franck foram grandes composito-res, embora o último fosse também um executor. A composição de música é uma atividade cerebral. Bem, o cérebro de um grande músico costumava entrar em contato com o daquele compositor e fazer com que escrevesse peças mara-vilhosas. O homem estava escrevendo uma ópera musical. Você deve se lembrar como uma música de ópera é uma coisa complicada. É um todo complexo no qual os papéis são distribuídos a um grande número de executores, cada qual tocando de maneira diferente, em diferentes instrumentos e todos eles devem juntos expressar rigorosamente a ideia e o tema que o compositor tem em men-te. Bem, esse homem de quem estou falando, quando se sentava com o papel em branco à sua frente, costumava receber a formação musical no seu cérebro

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e escrever continuamente como se estivesse gravando algo já concluído coloca-do diante de si. Eu o vi enchendo uma página completa de cima a baixo, com todos os detalhes de orquestração. Não tinha necessidade de escutar nenhum instrumento, ele fazia tudo no papel e a distribuição era perfeita. Ele próprio não era muito inconsciente, costumava sentir que algo entrava nele e o ajudava a produzir a música.

Você deve notar aqui que quando falo de uma formação entrando em uma pessoa viva, a formação não significa o próprio homem que está morto, quer dizer, sua alma ou ser psíquico. Eu digo que é somente uma faculdade especial que continua a permanecer na atmosfera da terra, mesmo depois da morte do homem a quem a faculdade pertencia. Era tão bem desenvolvida, tão bem for-mada que continuou a reter sua identidade independente. A alma, o verdadeiro ser do homem, não mais está aí; tenho falado frequentemente que depois da morte ela vai embora, assim que possível, para o mundo psíquico, seu próprio mundo, para descanso, assimilação e preparação. Não que não possa acontecer de outra forma. Uma alma que se encarna como um grande músico, pode se encarnar outra vez num músico ou como um grande músico, embora tenha dito em outra referência que uma alma geralmente prefere variar, mesmo para con-trastar e contradizer suas outras encarnações.

Tome, por exemplo, o grande violinista Isaie; ele era belga e o violinista mais maravilhoso do seu século. Eu o conheci e tenho certeza que era uma encarna-ção, pelo menos, uma emanação da alma que fora o grande Beethoven. Pode não ter sido o ser psíquico total que assim reencarnou, mas a alma na sua capa-cidade musical. Ele tinha a mesma aparência, a mesma cabeça. Quando o vi apa-recer no palco pela primeira vez, fiquei muito surpresa e disse para mim mesma que ele se parecia muito com Beethoven, o próprio retrato daquele grande gênio. E lá estava ele de pé, o arco equilibrado, um acorde, eram apenas três ou quatro notas, mas três ou quatro notas supremas, cheias de poder, de grandeza e magnificência; a sala inteira ficou impregnada de uma atmosfera maravilhosa e única. Pude muito bem reconhecer o gênio musical de Beethoven por trás. É bem possível que neste caso, também a alma de Beethoven em sua totalidade — o ser psíquico total — não estivesse presente; o psíquico central poderia estar em qualquer outro lugar juntando experiências mais modestas e comuns, como a de um sapateiro, por exemplo. Mas o que sobrou e o que se manifestou era algo muito característico do grande músico. Ele tinha disciplinado seu ser mental e vital e até mesmo seu ser físico em função de sua capacidade musical e esta formação permaneceu firme e procurou se reencarnar. O ser musical foi originalmente organizado e moldado em volta da consciência psíquica e assim adquiriu seu poder peculiar e sua força de persistência, quase uma imortalidade.

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Tais formações, embora não em si o ser psíquico, têm uma qualidade psíquica, são seres independentes, possuem uma vida própria e procuram sua realização, manifestando-se e encarnando-se sempre que a ocasião se apresente.

“Pode o Ser Psíquico tomar dois corpos ao mesmo tempo?”

O assunto não é tão simples assim. Já lhes disse frequentemente que o ser psíquico é o resultado de uma evolução, quer dizer, é a expressão da consciên-cia divina que entrou e se espalhou na matéria, elevando-a e desenvolvendo-a vagarosamente para que possa retornar ao Divino. O ser psíquico é formado progressivamente pelo centro divino através de muitas vidas ou encarnações. Depois vem um período em que ele atinge uma espécie de perfeição, a perfei-ção de seu crescimento e formação. Frequentemente tem então uma aspiração em direção a uma realidade maior, um progresso posterior para manifestar o Divino melhor ou acrescido. Como resultado deste impulso, geralmente atrai para si um ser de uma ordem superior, de um plano mais alto, da Sobremente, como Sri Aurobindo diz, um ser de involução que se encarna no ser psíquico. Estas entidades sobrementais são classificadas pelos homens de deuses e divin-dades. Então, quando a fusão acontece, de um deus com um ser psíquico, este último naturalmente cresce em estatura e partilha da natureza do deus e adqui-re também a capacidade de produzir emanações; que dizer, projeta para fora de si uma parte que possui uma existência independente e pode encarnar em outros. Deste modo poderá haver não somente duas, mas várias emanações ou projeções do mesmo ser original. Em outras palavras, pode haver uma única ori-gem psico-divina, mas muitas personalidades que vêm dela. Assim o que acon-tece, é que algumas vezes pessoas diferentes sentem uma espécie de afinidade e mesmo identidade, e com razão, porque carregam dentro delas a mesma divindade, da qual eles, isto é, seu ser psíquico veio. Não é a mesma coisa que a dupla personalidade, onde lançando-se para fora, perde-se uma parte, como quando você corta um corpo em dois: há somente duas metades. Aqui a proje-ção é um todo e uma personalidade independente. Se você emanar um ser para fora de si, você permanecerá inteiro e total, sem perder nada de si mesmo e a emanação também será um ser total vivendo sua vida independente.

— 2 —

"Qual é o trabalho do Psíquico? Qual a sua função?"

O Psíquico é como um fio entre o gerador e a lâmpada. O que é o gerador e o que é a lâmpada, ou melhor, quem é o gerador e quem é a lâmpada? O Divino é o gerador, e o corpo, o ser visível, é a lâmpada. Então, a função do Psíquico é estabelecer contato entre os dois. Em outras palavras, se não houvesse o Psíqui-

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co na Matéria, a Matéria não podia entrar em contato direto com o Divino. Todos os seres humanos, inclusive você, carregam o Divino dentro de si e, para achá-lo, é necessário apenas interiorizar-se. É uma especialidade única do ser humano, melhor dizer, de todos os seres vivos incorporados na terra. No ser humano, o psíquico torna-se mais consciente e mais formado, mais consciente e portanto, também, mais livre, é mais individualizado. Você deveria notar que é uma especialidade apenas da terra. É a direta infusão de um agente purificador e redentor dentro da Matéria mais obscura e inconsciente para despertá-la por etapas, e dirigi-la para a consciência divina, a presença divina, ao Próprio Divino. É a presença psíquica que torna o homem um ser excepcional. Talvez não seja bom dizer-lhe isso frequentemente, porque como ele já é orgulhoso e se tem em alta consideração, não há necessidade de encorajá-lo nesse sentido. Contu-do, é um fato, tanto que os seres dos outros mundos, mundos dos que são conhecidos como semideuses ou mesmo deuses, seres daquela região que Sri Aurobindo chama de Sobremente, estão ansiosos para tomar um corpo físico sobre a terra, a fim de que possam ter experiência do Psíquico, porque eles não o possuem. Nestes seres existem inúmeras qualidades que os homens não têm, mas falta-lhes esta presença divina que é algo bem excepcional, pertencente à terra somente. Todos os habitantes dos mundos mais elevados — a Mente Superior, a Sobremente e outros domínios — não possuem o ser psíquico. Natu-ralmente, os seres dos mundos vitais também não o têm. Mas estes seres do vital não se importam com isso, pois não o querem. Há, contudo, alguns seres excepcionais desse nível que querem ser convertidos e por isso desejam um corpo físico; porém os outros não querem, eles estão atados à lei de seus seres e não podem repudiá-la.

Assim digo, somos obrigados a admitir que é uma virtude excepcional no ser humano abrigar o ser psíquico em si. Mas para dizer a verdade, ele não parece ter se beneficiado com isso. Ele não parece considerar essa sua virtude como algo muito desejável pela maneira como tem tratado esta presença. Ele prefere seus ideais mentais a ela, prefere suas exigências vitais a ela e seus hábitos físi-cos a ela. Não sei quantos de vocês já leram a Bíblia. Nela há uma história que sempre gostei muito. Havia dois irmãos, Esaú e Jacob. Esaú havia saído para caçar e sentia-se cansado e faminto. Voltou para casa e encontrou seu irmão preparando um prato. Pediu a Jacob que lhe desse comida. Jacob disse que lhe daria se ele, Esaú, vendesse seu direito de primogenitura. Esaú pensou, "de que me serve o direito de primogenitura agora", e vendeu-o a seu irmão. Você com-preende o significado? Você pode, é claro, tomar isso de um modo superficial. Mas eu o entendi de maneira diferente. O direito de primogenitura é o direito de ser filho de Deus. E Esaú estava pronto a ceder seu direito divino por um pra-to de sopa. É uma velha história, mas eternamente verdadeira.

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O SER PSÍQUICO - ALGUNS MISTÉRIOS

“Progride sempre o ser psíquico?”

Há duas espécies de progresso no psíquico que são muito diferentes. Uma consiste na sua formação, construção e organização, pois o psíquico começa como uma pequena faísca divina escondida na pessoa interior. Desta faísca sur-ge e gradualmente desenvolve-se, uma pessoa consciente e independente que tem sua própria vontade e atividade. Como disse, o ser psíquico originalmente é como uma faísca da consciência divina: ele cresce até se tornar uma individuali-dade consciente, através de experiências de vidas sucessivas. Este progresso então é parecido com o de uma criança que cresce. É uma coisa em formação e permanece assim por um longo tempo, na maior parte dos seres humanos. Não é ainda um ser plenamente individualizado, não totalmente consciente e senhor de si; necessita de vários nascimentos, um depois do outro, para se construir e tornar-se inteiramente consciente. Contudo, no fim, acaba chegando um tempo em que se torna uma personalidade completa, plenamente individualizada, ple-namente consciente de si e de seu destino. Quando este ser psíquico se encarna num ser humano há uma grande diferença. Porque ele nasce livre, por assim dizer, não está preso às suas circunstâncias, ao seu meio ambiente, ou à sua ori-gem ou atavismo, como as pessoas comuns. Quando vem à terra, sente que tem um trabalho a fazer no mundo, que tem uma missão a cumprir. Então, neste ponto, seu ciclo de progresso está completo, quer dizer, ele não tem mais necessidade de nascer num corpo para fazer um progresso adicional. Até esse momento, o renascimento é uma necessidade, é compulsório. Porque é através da reencarnação, isto é, tomando um novo corpo, que ele progride, desenvolve-se e cresce. É na vida física e no corpo físico que a alma vagarosamente se estru-tura para tornar-se um ser plenamente consciente. Mas logo que esteja inteira-mente formada, ela está livre, quer para nascer outra vez, quer para não fazê-lo, à sua vontade. Assim, uma espécie de progresso chega ao fim. Porém, se o ser completamente formado quiser agora tornar-se um instrumento para o trabalho do Divino, se ele escolher ser um trabalhador na terra para ajudar a cumprir o propósito cósmico do Divino, em vez de ir embora e descansar na bem-aventurança psíquica de seu próprio mundo, então ele tem que fazer uma nova espécie de progresso, um progresso em direção à capacidade de trabalhar, de organizar e executar o trabalho, de expressar e corporificar a vontade do Divino. Enquanto o mundo continuar, enquanto escolher trabalhar para o Divino, ele continuará a progredir. Mas, se quiser retirar-se para o mundo psíquico e desis-tir, ou recusar trabalhar para o Plano divino, então ele pode permanecer num estado estático, além do âmbito do progresso. Pois, como disse, o progresso existe apenas sobre a Terra, no mundo físico. Você não pode progredir em outro

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lugar. No mundo psíquico existe uma espécie de repouso jubiloso. Você perma-nece o que é e onde está, sem avançar.

Tudo na terra progride, tem que progredir. Todos os homens, sem exceção, mesmo aqueles que não têm a mínima noção do psíquico, quer desejem ou não, devem progredir. O psíquico progride neles a despeito de si mesmos e eles têm que seguir a curva de seu crescimento e desenvolvimento. Quer dizer, o homem ascende na escala da vida e cresce, cresce exatamente como faz uma criança. No processo de crescimento chega um tempo em que ele alcança o ápice e muda a direção ou o plano de seu progresso. No começo existe o progresso puramente físico, como o de uma criança. Então vem o progresso mental, mais tarde o progresso psíquico e o espiritual, de modo que, a não ser que o progres-so mude sua direção, quando tiver alcançado seu limite num nível particular, é necessário descer a curva, quer dizer, em vez de progressão haverá regressão, que significa, no fim, desintegração e decomposição. Precisamente porque, no mundo puramente físico, não pode existir um progresso perpétuo e constante: há neste domínio esta curva de crescimento, apogeu, declínio e decomposição. Tudo que não avança, deve retroceder. Isso é exatamente o que acontece no domínio da matéria. A matéria não sabe como progredir indefinidamente, não aprendeu; assim, depois de algum tempo, está cansada de progredir ou crescer. Alcançada esta estrutura, não pode ir além do limite. Mas existe no homem, ao lado de seu crescimento físico, um crescimento vital, bem como um mental. O mental especialmente pode progredir por longo tempo, depois que o corpo tenha cessado de fazê-lo. O corpo não cresce; mesmo quando está declinando, a mente ainda pode continuar a crescer, a elevar-se a alturas mais altas. Existe uma ascensão mental, em oposição à descida física. Mas aqueles que fazem Yoga, que se tornaram conscientes de seu ser psíquico e estão identificados com ele, que vivem com a vida dele, nunca cessam de progredir, avançam para cima até o último alento de sua vida; mesmo quando morrem, seu progresso não pára. O corpo declina porque não pode acompanhar a marcha progressiva inte-rior, não pode transformar-se e moldar-se dentro do ritmo da consciência inte-rior. A discrepância aumenta de tal modo entre os dois que ocorre, no fim, uma ruptura e isso é a morte. Contudo, no nível puramente espiritual também não há progresso. O domínio do espírito puro significa uma condição estática; não há movimento progressivo lá, porque está além da esfera de progresso, além de toda manifestação. Pois quando você imerge no Espírito é excluído da criação e a questão de progresso, ou mesmo de qualquer movimento, deixa de ser impor-tante.

“Quando o psíquico está para renascer, escolhe ele sua forma com antece-dência?”

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Depende. Como disse agora, existem seres psíquicos que estão exatamente no caminho de formação e crescimento e esses, geralmente, não podem esco-lher no começo, não podem escolher muito. Mas quando chegam a um certo grau de desenvolvimento e consciência, eles fazem a escolha. Geralmente, quando ainda estão no corpo, quando juntaram uma certa quantidade de expe-riência, decidem qual será seu próximo campo de experiência. Dar-lhe-ei uma ilustração, apesar de ser, de certa forma, superficial. Um ser psíquico, por exemplo, precisava da experiência de poder, de autoridade, de comando e que-ria conhecer as reações destes movimentos e também saber como virá-los em direção ao Divino para aprender, em outras palavras, o que estas coisas podem ensinar. Assim, a alma tomou o corpo de um rei (ou de uma rainha). Quando teve a necessária experiência, aprendeu o que queria aprender, deixou o corpo que não lhe era mais útil. É nesse momento, quando ele decide deixar o corpo, que a alma, ainda no corpo, faz a escolha para a próxima experiência. A escolha, frequentemente, toma o curso de ação e reação. Se a alma experimentou e estudou um setor particular, sua escolha, na oportunidade seguinte, cai num campo contrário. Assim, se a alma tiver tido a experiência de uma posição real e trabalhado através disto para entrar em uma consciente relação com o Divino então, no momento de deixar o corpo que serviu com Poder, autoridade e comando, dirá talvez: "Desta vez escolherei uma posição média, nem alta nem baixa, onde não exista nenhuma necessidade de levar, principalmente, uma vida exteriorizada, onde não se esteja nem em grande luxo, nem em grande miséria". Com essa resolução, retorna ao mundo psíquico para o necessário descanso, para assimilação das experiências passadas e preparação para a futura. Quando chega o tempo de retornar à terra, para a descida dentro de um corpo físico, ela naturalmente se lembra da escolha que fez, mas daquele plano mais alto e mais sutil, naquele momento, o mundo material não é visto do mesmo modo como o vemos, aparece de forma diferente. Contudo pode-se notar as diferenças no ambiente e nas atividades. Não se tem a visão total e global dos detalhes. Ela pode escolher uma atmosfera, pode escolher mesmo um país particular.

Tem em vista uma certa espécie de educação, de civilização e de influência, a espécie de vida que quer levar. Então, enquanto desce e olha ao redor, distin-gue muito claramente as diferentes espécies de vibração e toma seu caminho de acordo com a sua decisão. Visa, por assim dizer, o lugar onde vai cair. Mas pode atingir o alvo apenas aproximadamente. Porque existem um ou dois outros fato-res, ao lado disso, que entram em jogo. Pois não é apenas a sua própria escolha que conta de cima, deve existir também uma receptividade de baixo, uma aspi-ração que puxe para si o ser particular ou o tipo particular de ser. Usualmente o chamado é da mãe, algumas vezes de ambos os pais. Se os pais tem alguma aspiração ou receptividade, algo que seja suficientemente passivo e aberto e

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esteja procurando por algo mais elevado, neste caso, a coisa aparece para o ser psíquico como uma luminosa vibração que acena para ele. É a resposta à sua vontade, Ela mostra o lugar para onde ir. Não pode fixar o dia de seu nascimen-to. Haverá naturalmente um período de incerteza mas que não ultrapassará mais que um ano. O segundo fator, que de algum modo modifica ou qualifica sua escolha, vem da natureza do próprio nascimento. A alma, o ser consciente, precipita-se dentro da inconsciência, porque o mundo físico, mesmo a consciên-cia humana mais elevada, são inconscientes quando comparados à consciência psíquica. É como se a alma caísse de ponta-cabeça. Isto a faz atordoada e por um longo tempo não sabe o que acontece. Não sabe onde está, o que está fazendo e porque está lá; fica num completo vazio. Não é capaz de se expressar, especialmente como um bebê que não tem a apropriada quantidade de cérebro para compreender ou manifestar alguma coisa. As crianças muito raramente mostram o ser excepcional que contêm escondido. Casos ocorrem, na verdade, mas são muito raros e pouco frequentes. Geralmente leva tempo para a alma se achar. Ela acorda vagarosamente de seu entorpecimento, e apenas gradualmen-te, começa a compreender que está lá por alguma razão e por escolha. Este esquecimento é ocasionado pela presença da mente e da educação mental que a separam completamente da consciência psíquica. Todas as espécies de cir-cunstâncias, acontecimentos, experiências — externas e emocionais — são então necessárias para arrombar as portas internas, para trazer à memória de que se veio de outro lugar e por uma razão muito especial. É o processo normal mais longo. Mas pode-se ter a chance de encontrar bastante cedo alguém que sabe; então, em vez de tatear e procurar às cegas através da ignorância e escu-ridão, ela consegue a luz e o auxílio que lhe dá o contato rápido e direto.

A vontade e o desenvolvimento psíquico são coisas que estão completamen-te fora da esfera de noções comuns. Ideias de justiça e recompensa e punição não têm, de modo algum, lugar aqui. Muitas pessoas vêm a mim e se queixam: "O que fiz eu na minha vida passada para me encontrar agora em tais condições difíceis, para sofrer tanto!" Eu sempre respondo: "Mas não vê que é uma bên-ção para você, a graça divina sobre você? Em sua vida passada talvez você pró-prio tenha pedido por essas condições, para assim fazer um progresso maior através delas!" Este modo de olhar as coisas pode parecer muito novelesco. Mas a verdade se encontra neste caminho.

“Como é possível para um ser psíquico que viveu uma vez uma vida de inteli-gência e criatividade entrar de novo numa vida de estupidez e vulgaridade?”

Não disse que é bem assim. O ser psíquico não é estúpido. O que acontece pode ser descrito desta maneira: por exemplo suponhamos que o ser psíquico

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tenha tido a experiência da vida de um escritor. A função do escritor é expressar suas percepções, observações e julgamentos em palavras; tem um certo campo de atividade, um certo âmbito de associações e condições onde viver e movi-mentar-se. Mas há outros campos e raios de ação além e fora do qual ele não tem experiência. Assim ele pode dizer para si: "vivi com minha cabeça, conheço algo das reações intelectuais sobre a vida, agora deixe-me viver com meu cora-ção e experimentar as reações de sentimento e paixão". Na verdade, algumas vezes a capacidade excessiva do intelecto empobrece as capacidades do cora-ção. Assim, o ser psíquico, a fim de ter esta nova modalidade de experiência, abandona suas alturas intelectuais, por assim dizer, e desce para o plano vital. Ele não é mais um gênio criativo, mas um homem comum, porém com um cora-ção enriquecido e enriquecendo-se com seus movimentos intensos ou genero-sos. (Pode-se lembrar, a esse respeito, a história de Shankaracharya, que, tendo sido um Sanniasi desde a infância, não havia tido a experiência de amor; ele entrou no corpo de um rei para reunir esta experiência). Não é raro ver seres psíquicos que alcançaram o máximo de seu crescimento em certas direções, assumirem uma vida muito modesta e comum em alguma nova direção ou para um outro propósito. Alguém que tenha sido um rei, por exemplo, como já contei uma vez, que havia tido experiências de poder e autoridade e domínio de altu-ras imperiais, escolheu descer para uma vida comum a fim de trabalhar como uma pessoa obscura, sem ser perturbado pelas pompas da alta posição. Ele pode escolher ambientes bem burgueses, condições muito monótonas, entre homens e coisas monótonas para procurar, por assim dizer, uma espécie de incógnito para assim poder trabalhar em paz e tranquilidade. Pode você dizer que é um declínio e uma queda? É apenas enfrentar a vida e encontrar seus problemas de um outro ângulo, de um outro ponto de vista. Você deve saber que, para a consciência, a verdadeira consciência — a consciência do psíquico — a glória e a obscuridade, sucesso e fracasso são a mesma coisa. O que é impor-tante é o crescimento de consciência. Certas condições, que a seus olhos huma-nos parecem favoráveis, podem na realidade ser bem desfavoráveis para o cres-cimento de consciência. Com seus pensamentos comuns e suas reações comuns, você julga tudo de acordo com o sucesso e o fracasso. Mas isso é a última moda-lidade de julgamento, pois é a mais artificial, a mais superficial e absolutamente contrária à verdade. Na vida humana como é organizada atualmente, em um milhão de casos, talvez até menos, é que à verdade é dado o primeiro lugar; sempre há um elemento de exibição misturado nela. Quando um homem tem sucesso, muito sucesso, você pode estar certo de que há muito "show" mistura-do nele.

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VIDAS PASSADAS E O SER PSÍQUICO

A maior parte das pessoas não está, de modo algum, consciente do que está acontecendo dentro de si. Sua consciência ou ser é uma mistura de elementos mentais, vitais e físicos, uma confusão. Há muito poucos, muito poucos na ver-dade, que são conscientes — conscientes do que está além desses três elemen-tos, isto é, de seu ser psíquico. Porque é somente esse elemento que perdura, persiste através de vidas sucessivas. Certas pessoas tiveram conhecimento ou aprenderam alguns rudimentos do assunto e acreditam em renascimento, mas o concebem da forma muito pueril. A ideia deles é a de que se muda de corpo como se muda de roupa. Há pessoas mesmo que escreveram livros descrevendo seriamente todas as vidas que viveram, desde o tempo em que eram macacos! Como disse, é o elemento psíquico apenas que persiste depois da morte, todo o resto se dissolve. E em 999 casos em 1000, o psíquico é uma formação muito pequena que está por trás e toma pequena parte na vida real da pessoa. Estou falando do homem médio, não de um Yogue, quer dizer, aquele que tem um ser psíquico desenvolvido a tal ponto que é capaz de controlar e guiar sua vida exte-rior. Quantas vezes um homem comum entra em contato com seu ser psíquico? Anos e anos passam para que muitos, ou a maioria, tenham só um vislumbre passageiro deste movimento. É este momento que perdura e é levado para a próxima vida, todas as outras coisas são simplesmente apagadas. Num dado momento de nossa vida, há uma situação especial, há um chamado interior, uma absoluta necessidade que faz aflorar o psíquico e o contato se faz, talvez por um instante. Essa experiência é preservada na memória psíquica. Mais do que as circunstâncias exteriores e os eventos físicos, o que é guardado com cari-nho na consciência é a emoção íntima, a vibração que acompanha a percepção do momento. Quando muito, uma palavra dita, uma frase ouvida, simplesmente uma cena que passa, é tudo que é guardado, límpido e transparente, como se fosse uma gravação. Mas acima de tudo, é o estado da alma que é o mais impor-tante. São estes elementos esparsos que servem de degraus ou faróis durante a progressiva jornada da alma para frente. Eles são a constante que constrói a personalidade de um homem. Em raras ocasiões existe uma clareira mais ampla, as situações preservadas são suficientemente definidas para determinar uma data e uma pessoa pertencente ao passado. Usualmente, contudo, não se pode dizer, "Fui tal pessoa, vivi em tal país ou fiz tais coisas". Estes lampejos psíquicos, mais em alguns casos, do que em outros, são os únicos marcos genuínos e autênticos da história das vidas de uma pessoa.

Somente um ser que estiver completamente identificado com seu psíquico, que tenha organizado toda sua pessoa, em todas as suas partes, ao redor deste centro, de fato, um ser todo inteiro, completo e unicamente voltado para o

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Divino, é que pode se lembrar ou conservar na sua consciência algo como a tota-lidade de sua história pessoal. Pois nesse caso, mesmo quando o corpo cai, as outras partes, estando integradas e assimiladas na substância da alma, mantêm sua existência individual. A personalidade formada ao redor do psíquico conti-nua a existir com sua memória intacta: pode até mesmo passar de uma vida para outra sem perder a consciência.

A memória psíquica tem um caráter muito definido; tem uma maravilhosa intensidade. Armazena os momentos inesquecíveis da vida, aqueles em que a consciência estava mais luminosa, mais poderosa, mais ativa. Eles são os momentos mais felizes e mais afortunados da vida. Mas deles não se pode falar.

Há pessoas que dizem e talvez acreditem que foram tais e tais pessoas e chegam a dar descrições detalhadas de suas vidas passadas. Existe também as tão conhecidas comunicações através de um médium nas sessões espíritas. Alguém vem e lhe diz que era Napoleão, um outro era Shakespeare e assim por diante. Quantos Shakespeares e Napoleões e Césares se manifestaram deste modo, não há conta! Há espíritos que são extremamente falantes e enfeitiçam-no com histórias extraordinárias, muitas delas que parecem, à primeira vista, verdadeiras e genuínas; outras, é claro, cheias das mais vulgares contradições. O fato, contudo, é que usualmente estes espíritos são pequenos seres do vital, muitas vezes, restos de uma pessoa morta, pedaços partidos de sua decomposta personalidade, de desejos que persistiram, imaginações coaguladas libertas que andam de um lado para o outro e procuram possuir e apossar-se de uma pessoa viva. Estes pequenos espíritos do vital não são frequentemente de boa índole; divertem-se à custa do crédulo ser humano, fazendo-o de tolo. Nesse mundo é fácil ler a mente dos outros: o espírito vê claramente o que está lá na sua cabe-ça, mesmo que você não diga o que pensa. Deste modo, ele revela segredos conhecidos apenas por você, mesmo os totalmente esquecidos. Podem imitar outras personalidades. Eles conhecem muitos outros pequenos truques para confundi-lo ou espantá-lo.

O SER HOMOGÊNEO

Uma coisa é homogênea quando todas as suas partes são semelhantes, iguais umas às outras, em outras palavras, quando o ser inteiro está sob a mes-ma influência, movido pela mesma consciência, pelo mesmo impulso, pela mesma vontade. Normalmente, o homem é formado de muitos tipos de frag-mentos, todos distintos, cada um, por sua vez, tornando-se ativo em diferentes momentos. Uma parte pode tornar-se ativa de modo tão diverso da anterior que o homem parece totalmente uma nova pessoa. Cada elemento em nós tem

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sua própria natureza e atividade, exige sua própria realização, age quase como uma personalidade independente. Somos, de fato, compostos de personalida-des múltiplas.

Assim, por exemplo, você pode agora estar num estado de consciência mui-to bom. Tem a sensação de que, realmente, vive por um ideal, pelo Divino, e está feliz. Subitamente algo acontece; você encontra alguém não muito desejá-vel ou faz algo não muito recomendável, ou está no meio de alguma ocorrência adversa e descobre que perdeu sua experiência a tal ponto que pode até perder a lembrança dela. Você se admira de como isso possa ter acontecido. Uma parte submersa do seu ser veio à tona, um elemento que estava de lado, agora está à frente, e veio obscurecendo ou empurrando o outro para trás.

Há muitos exemplos dessas personalidades duplas, triplas, quádruplas ou múltiplas. As personalidades separadas não estão conscientes umas das outras, cada uma age independentemente e segue seu próprio caminho. Vivem juntas, mas não se misturam ou mesclam-se umas com as outras; estão contidas no mesmo corpo e essa é a única conexão que existe. É como num saco onde seixos e pérolas — se forem pérolas verdadeiras — foram jogados juntos e o único tra-ço de união é o saco. Isto não é homogeneidade, é heterogeneidade.

Conheci uma pessoa que tinha uma vontade firme, uma clareza de pensa-mento e ideias, que preparava inteligentemente tudo que precisava ser feito em relação a um trabalho determinado. De repente, acontecia uma reviravolta no ser inteiro. Uma outra pessoa irrompia, que não apenas não executava o traba-lho de seu predecessor, mas desmanchava-o completamente. Destruía em dez minutos aquilo que tinha levado meses para o outro construir. E você pode entender o desalento da primeira pessoa quando voltava e via a devastação fei-ta e tinha que começar tudo novamente.

“Sendo assim, o que se deve fazer? Qual é o remédio?”

Você tem que descobrir em si uma base de consciência, um farol firmemen-te cravado lá dentro de seu íntimo, que seja ao mesmo tempo um espelho. Todas as coisas, todos os acontecimentos, devem passar em frente ao espelho onde serão refletidos em sua verdadeira natureza, exatamente como são na sua verdade e não como aparentam ou pretendem ser. E de acordo com sua nature-za e qualidade você deve dar-lhes lugares à volta; o farol mostrará qual o lugar de cada um. O espelho julgará e testará cada sentimento, cada impulso, cada sensação que surja. Se for agradável, se for luminoso, se for o que deveria ser, dê-lhe um lugar perto do centro. Se, por outro lado, for triste, obscuro, duvido-so, afaste-o para bem longe. Se, por acaso, qualquer um dos elementos desa-

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gradáveis tiver forçado seu caminho para cima e ocupado um lugar próximo ao centro, você deve adverti-lo severamente e afastá-lo e dar-lhe seu lugar apro-priado. Quando ele tiver se reconhecido e se transformado, somente então lhe será permitido um lugar dentro de um círculo mais próximo. E desta forma que você deveria arranjar e agrupar todos os elementos de seu ser, de acordo com o valor e a qualidade de cada um, à volta da consciência central. Assim é como você organiza seu ser. Você constrói um modelo de anéis concêntricos e quanto mais próximo do anel do centro, mais puros devem ser os elementos que o compõem e consequentemente, de maior valor e significado. Se, dessa forma, você puder arranjar todas as partes e parcelas do seu ser em volta do ser psíqui-co, cada um em seu lugar apropriado, de acordo com seu papel e função, todos voltados em direção à consciência central e por ela inspirados e movidos, e não houver nenhum elemento que toque uma nota discordante, então você terá a perfeita homogeneidade de sua natureza.

É um exercício muito interessante ao qual você pode se dedicar. Se experi-mentá-lo e segui-lo regular e assiduamente, irá se divertir imensamente e com proveito. O tempo nunca será monótono e produzirá frutos dourados. No final, digo, no fim de dois ou três anos, se olhar para trás, você verá o quanto mudou e se admirará de como pode pensar ou agir como fazia antes. Descobrirá uma personalidade consideravelmente mudada. Pode começar a experiência hoje mesmo e ver como a vida se torna cada vez mais divertida, interessante e signi-ficante.

SERVIÇO HUMANO E SERVIÇO DIVINO

“Querer servir à humanidade, fazer bem a ela, denota orgulho e egoísmo? Como?”

Por que você quer servir à humanidade? Qual o seu propósito? Qual o seu motivo? Você sabe em que consiste o bem da humanidade? E você sabe melhor que a própria humanidade o que é bom para ela? Ou você sabe melhor que o Divino? Você diz que o Divino está em todo lugar, assim, se servir à humanidade, é ao Divino que você serve. Bem, se o Divino está em todo lugar, ele também está em você; portanto, a coisa melhor e mais lógica seria começar servindo a si mesmo.

Não há, então, nenhuma necessidade de serviço à humanidade? Hospitais, organizações assistenciais, instituições de caridade não têm sido úteis à humani-dade? O espírito de filantropia não consertou e melhorou as condições da vida humana?

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Foi assim, pergunto eu? Você tentou ajudar algumas pessoas aqui e ali. Mas o que vale isso comparado ao que precisa ser feito? A proverbial gota no oceano ou até menos que isso! Você se lembra da história de São Vicente de Paula? Ele começou dando esmolas aos pobres. No primeiro dia havia dez, no segundo mais ou menos vinte, no terceiro mais que cinquenta e o número continuou aumentando mais do que uma progressão geométrica. E então, Colbert, o Ministro do Rei observou, vendo a situação do santo: "Nosso irmão parece que está gerando continuamente seus pobres".

Não penso que o espírito de caridade tenha, de modo algum, melhorado as condições humanas. Não acho que o homem tenha se tornado mais ou menos sujeito a doenças e indigências do que antes. A caridade esteve sempre presen-te e a miséria sempre coexistiu com ela. Não penso que a proporção entre as duas tenha diminuído de modo algum. Você se lembra da observação irônica, mas pertinente, de alguém que disse, em vista das tentativas da ciência de curar e erradicar a miséria: "Os pobres filantropos estariam em triste situação, suas ocupações acabariam". A verdadeira razão pela qual alguém deseja fazer cari-dade, está alhures: é para deleitar-se, é para sua própria satisfação. Fazer coisas o diverte, dá-lhe a sensação de que está fazendo algo, que é um membro valioso da humanidade, não como os outros, que você é alguém. Que outra coisa pode-ria ser, senão que você é vaidoso, cheio de auto-importância, cheio de si mes-mo? Isto é o que tenho em mente quando digo que é a presunção ou o egoísmo que faz de você humanitário. É claro, se lhe agrada fazer o trabalho, se você sen-te-se feliz fazendo-o, tem toda a liberdade de fazê-lo e de continuar assim. Mas não imagine que está fazendo algum serviço real e efetivo para a humanidade, especialmente não imagine que com isso você está servindo a Deus, levando uma vida espiritual ou praticando Yoga.

Apenas uma ilustração da qualidade do espírito que anima o humanitarismo: um homem caridoso dá generosamente a uma causa conhecida, reconhecida, apreciada; será liberal se seu nome for vinculado ao trabalho, anunciado e apre-goado, se isso lhe der fama. Mas peça-lhe uma doação para algo genuíno, com-parativamente modesto ou fora do comum, algo que seja verdadeiramente espiritual e divino, e você verá os cordões de sua bolsa se estreitarem, seu cora-ção fechar-se. Uma dádiva que não traz importância para o doador, não tenta o humanitário comum. Existe, é verdade, uma outra categoria diferente de doa-dores, de uma espécie oposta, daqueles que querem precisamente conservar-se anônimos, dos que ficariam descontentes se seus nomes fossem anunciados. Mas o motivo aqui também não é muito diferente, é, de fato, o mesmo motivo agindo ao contrário, como se fosse para trás. Aí existe um elemento adicional de

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auto glorificação: dá-se e não se sabe quem deu. E algo a mais para se ficar orgulhoso.

Você deve olhar-se dentro, questionar-se, antes de empreender qualquer coisa, e não fazê-lo simplesmente porque é a coisa normalmente feita. Você pode fazer bem aos outros, se souber qual é este bem e se possuí-lo dentro de si mesmo. Se quiser ajudar aos outros você deve estar num nível superior ao deles. Se estiver em pé de igualdade com eles, no mesmo plano, em natureza e consciência, que pode você fazer, a não ser partilhar de sua ignorância e de movimentos cegos e perpetuá-los? Assim, acontece que, realmente, a primeira coisa a fazer, é servir a si mesmo.

Você fará uma descoberta notável quando começar a saber o que você é e quem você é. É assim que deveria principiar: "Quero servir à humanidade. Como posso eu servi-la? Quem é este "eu" que quer servir?" Você diz: "Eu sou esta pessoa, esta forma e este nome". Mas a forma que você é agora, não é aquela que você tinha quando era um bebê. Ela está mudando constantemente. Todos os elementos de seu corpo estão sendo completamente renovados. Nem as suas impressões e sentimentos são aqueles que você tinha há poucos anos atrás. Seus pensamentos e ideias sofreram revoluções. O "eu" cobre uma soma de fatores sempre mutáveis. Não há nada especialmente para ser chamado de "eu", é apenas um círculo de mudanças. Um nome vazio parece ser a única coisa constante. Um elemento, num certo momento, vem à frente — uma ideia, um sentimento, um impulso — e isso é seu "eu" por um momento. Num outro momento, um outro elemento surge e se torna seu "eu". Você não é um "eu" único, mas uma multidão de muitos "eus". Portanto, que valor tem a afirmação de que um destes "eus" encontrou o alvo, a verdade, o dever que você tem que seguir? E se você prosseguir mais além, questionando-se e analisando-se com-pleta e sinceramente, tropeçará na realidade. Você descobrirá que o "eu" não existe de modo algum. O que existe é alguma coisa mais: é a realidade indivisí-vel, o Divino apenas.

É esta auto descoberta que lhe dará o conhecimento básico, a fundação de sua vida, a descoberta de que seu "eu", como você mesmo, não existe; na ver-dade você não é nada. Este sentido de nulidade deve permear seu ser, encher todos os elementos de seu ser, antes que a verdade possa raiar em você e a Pre-sença Divina possa ser sentida. E o que você tem feito todo o tempo é exata-mente o contrário, afirmando seu egoísmo, sua vaidade, pretendendo que você seja alguém que possa fazer algo, que o mundo precisa de sua ajuda e que você tem a possibilidade de dar esta ajuda. Nada disso. Quando você descobre esta

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verdade e a aceita, quando é humilde e, em verdadeira humildade, se acerca da vida e da realidade, você encontrará sua verdadeira carreira e vocação.

Num sentido mais profundo é, na verdade, servindo a si mesmo que você serve melhor aos outros. Quando você descobre um ponto escuro em si, um grão de egoísmo, de ambição, de amor próprio, quando você não cede a seu impulso, mas supera-o, quando conquista em si um movimento que o levaria a se extraviar, nesse mesmo gesto, você faz a conquista em benefício dos outros também, cria a mesma possibilidade nos outros. Não pode haver nada mais dinâmico do que esta colocação do exemplo pessoal. Não é para que os outros o observem e o imitem; a influência é mais sutil e mais poderosa. Você cria a oportunidade, faz a abertura, traz a força de sua realização para o jogo ativo, mesmo sem o conhecimento dos outros. E eles são beneficiados unicamente pela ajuda invisível que lhes é prestada. Mas você deve também tomar cuidado aí. Não deve dizer: "Devo melhorar-me para ajudar aos outros". Não deve haver o mais leve vestígio desse espírito de intercâmbio ou barganha. Limite-se à sua própria vida; como os outros são ou não afetados, não é da sua conta. Se você abrigar esta espécie de ideia, estará convidando a mesma vaidade e egoísmo pela porta traseira. Sua vida deveria ser como o desabrochar de uma flor que floresce pela própria alegria da autorealização. No processo, pelo simples fato de existir, espalha seu perfume à volta, enche os arredores com sua vibração alegre. Mas isto simplesmente acontece, não se faz com um propósito ou inten-cionalmente. Do mesmo modo, procede a alma que se aperfeiçoa: a vitória que ela ganha para si é contagiosa, e se expande automaticamente.

Disse que seu ego é uma ilusão. Seu "eu" não existe em absoluto. Não há nada como individualidades distintas e separadas e realização individual. Somente o Divino existe e a Vontade Divina. Ele é a realidade solitária e única e omni-abarcante. O que é então a fonte desta variedade e diversidade de exis-tências? Qual é a significação, se existe alguma, das várias individualidades e personalidades, seu aparecimento e desempenho no palco do mundo?

Esta é uma outra história. Deixo-a para uma outra ocasião.

A FAMÍLIA DIVINA

Quando pessoas separadas e distantes umas das outras, pertencendo a dife-rentes partes do mundo ou seguindo as mais diversas profissões, encontram-se, unem-se, e trabalham para um propósito comum, significa que são almas afins, que já se encontraram e trabalharam juntas anteriormente em outras vidas. Sentindo que já pertenciam à mesma família, resolveram agir em conjunto e

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colaborarem num esforço comum para um ideal comum. Na verdade, as almas, na sua realidade psíquica, são agrupadas em grande famílias, por assim dizer; descem constantemente em grupos para assumir, continuar o trabalho em que estão empenhadas, até que chegue a seu término.

A um dado momento, quando chega a hora, elas são chamadas. As almas são como crianças adormecidas, na paz e no repouso do mundo psíquico, aguardando o impulso ou ordem para um outro nascimento. Assim que a ordem é dada, elas despertam e correm para baixo, em direção à terra. Deste modo quando caem na atmosfera terrestre, não permanecem juntas, mas são espa-lhadas em todas as direções na terra. Não sabem nem mesmo onde caem. Tam-bém, uma vez sob as condições e circunstâncias materiais aqui embaixo, as coi-sas assumem um aspecto muito diferente, pois o impulso interior, o propósito original torna-se velado. O psíquico não se lembra e está agora circundado e cercado por forças, coisas e pessoas que são talvez completamente estranhas e contraditórias à sua natureza. Agora vem o labor da alma para achar-se, para procurar o fio perdido da meada. A ânsia interior deve ser bastante forte, a von-tade original bastante categórica para o ser sobrepujar todos os obstáculos, pas-sar através de todas as vicissitudes, trabalhar através de todas as circunvoluções de uma jornada em labirinto e finalmente chegar. Alguns talvez não cheguem, absolutamente, numa vida determinada ou cheguem apenas para parar à dis-tância; outros não chegam em linha reta, mas como disse, depois de peregrina-ções tortuosas e em todas as direções. Em outras palavras, na sua mente e impulso externos, procuram por outras coisas, estão interessados em objetos que estão longe de ser os do interesse da alma — como a pessoa que procurou pelo Yoga é porque pensava que um Yogue podia restituir-lhe sua beleza perdi-da. E contudo, a alma faz uso de tal meio absurdo e trivial para voltar o homem sobre si mesmo, guiá-lo gradualmente para o lugar ou a família a que pertence realmente.

O mundo material está cheio de coisas que o afastam da busca de sua alma, do aproximar-se de seu lar. Normalmente, você é jogado de lá para cá por forças da Natureza ignorante e é levado mesmo a fazer as piores tolices. Existe uma única solução, achar seu ser psíquico; e quando o tiver achado, agarrar-se a ele desesperadamente e não permitir ser afastado dele por nenhuma tentação, nenhum outro impulso que seja.

A NATUREZA E O DESTINO DA ARTE

A Arte verdadeira significa a expressão da beleza no mundo material. Em um mundo totalmente convertido, quer dizer, expressando integralmente a realida-

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de divina, a arte deve servir como reveladora e mestra desta beleza divina na vida. Em outras palavras, o artista deve ser capaz de entrar em comunhão com o Divino e receber a inspiração quanto à forma ou formas para a realização mate-rial da beleza divina. Ao mesmo tempo, ao expressar a verdadeira beleza no físi-co, ele também estabelece um exemplo, torna-se um instrumento de educação. A arte não apenas cria beleza, mas educa o gosto das pessoas para encontrar a beleza verdadeira, a beleza essencial que expresse a verdade divina. Esse é o verdadeiro papel da arte. Mas entre isso e o que existe agora, há uma grande diferença.

O declínio apareceu no curso normal da evolução, que segue um movimento em espiral. Desde o início até a metade do último século, a arte tornou-se, totalmente, uma coisa depreciada, comercial, obscura, ignorante, algo muito distante de sua natureza e funções verdadeiras. Mas o espírito da arte não pode morrer; apenas porque surgiu como um movimento de protesto ou revolta, as formas foram igualmente bizarras. Ao tentar contrabalançar a degradação geral do gosto, ela inclinou-se para o outro extremo, como é característico de todos os movimentos da natureza. Uma era a cópia servil da natureza, era intencional ou nem mesmo isso. Naqueles dias costumava ser chamada de arte fotográfica, como se fosse para condená-la. Mas hoje não é mais um termo de condenação, pois a fotografia desenvolveu-se em uma arte consumada. Nem poderia ser ver-dadeiramente chamada de realismo, pois há pinturas realistas que pertencem a uma classe muito alta. Essa arte era convencional, artificial, sem vida. Bem, a reação a este movimento dizia: não nos importamos mais com a vida física, a realidade que vemos com nossos olhos exteriores não é mais do nosso interes-se; em vez disso queremos expressar a vida vital, a vida mental!

Em seguida veio uma legião inteira de reformadores e rebeldes — cubistas, surrealistas, futuristas e assim por diante — que procuravam criar arte com a cabeça. Esqueceram-se da verdade simples, que em arte não é a cabeça que comanda, mas o sentimento da beleza no coração. Assim a arte chegou ao mais absurdo, ridículo e assustador dos mundos. De fato, com duas guerras atrás de nós, fomos bem longe nessa direção. Cada guerra trouxe para baixo um mundo em decomposição. E agora parecemos estar no próprio âmago do caos.

Talvez estejamos no fundo da curva e seja tempo de subir. Essa desintegra-ção é um prelúdio necessário. E mesmo, sob certo ponto de vista, uma condição melhor do que aquela da época da Rainha Victória ou do Segundo Império da França, a idade do prático, da burguesia bem sucedida, do contentamento agra-dável e da mediocridade entorpecida, da morte em vida. Como digo, o movi-mento de progresso segue uma curva. Em certas épocas, coisas bonitas são

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expressas de um modo belo. Então, segue-se uma época que está cansada das coisas velhas e tenta encontrar coisas novas e expressá-las de outra maneira. A época de Louis XIV, por exemplo, foi uma era dominada pela criação artística e representou o ápice de um certo tipo da verdadeira beleza na arte e na vida. No decorrer da evolução social, outras ideias, outras necessidades apareceram — as da era comercial. Assim a curva tomou um curso para baixo. Não há nada mais contrário à arte do que o comércio. Pois a associação do comércio com a arte significa a popularização de algo que é excepcional, é colocar ao alcance de todos uma coisa que é compreendida e apreciada somente por uns poucos esco-lhidos, a elite. Talvez seja por causa disso que a arte não teve escapatória no mundo, porque havia se voltado nestes dias para outras direções, para os domí-nios do mental e do vital, para desvios e veredas da consciência. Quando, entre-tanto, melhores condições prevalecerem, quando, em vez do espírito de mer-cantilismo aparecer sobre a terra o senso de uma realidade mais bonita, então a arte renascerá e voltará a ser o que era. Isso parece estar ainda muito distante.

A arte desta época decadente é o que chamo de arte de cogumelo. Você sabe como crescem os cogumelos? Proliferam em qualquer lugar e nem pare-cem formar parte daquilo que se cultiva ou do lugar onde se cultiva. Pense nis-to! Há um lugar na parede que ficou úmido e você logo o vê coberto com essa vegetação. Há uma árvore que não recebe luz do sol e você descobrirá suas raí-zes cobertas de cogumelos. É uma espécie de crescimento espontâneo que não está ligado ao lugar onde cresce. Não é parte de seu ambiente, mas algo estra-nho a ele acrescentado. Em vez de cogumelos poderia ter falado de parasitas porque pertencem à mesma categoria. Você já viu plantas parasitas? Crescem nas árvores, fixam-se lá. Não têm vida e órgãos próprios, não retiram seu ali-mento diretamente da terra como fazem todas as plantas normais. Vivem da vida de um outro, fazem uso do trabalho de um outro. Há também animais parasitas que vivem de um outro animal, crescendo e se aproveitando do seu trabalho. Parasitas ou cogumelos não têm razão de estar onde estão — são invasores, interpoladores, anomalias.

Nos tempos antigos, nas grandes épocas, na Grécia por exemplo, ou mesmo durante a Renascença Italiana, mais particularmente na Grécia e no Egito, cons-truções eram feitas e monumentos erigidos para ser de utilidade pública. As construções tinham a finalidade, na maioria das vezes, de servir de templos e santuários, de abrigar seus deuses e suas divindades. O que tinham em vista era algo total, completo e inteiro, bonito e integral em si mesmo. Era o propósito da arquitetura incorporar a harmonia de linhas impetuosas e majestosas. A escultu-ra era parte da arquitetura, fornecendo detalhes de expressão e mesmo a pintu-ra servia para completar a expressão. Mas o todo mantinha-se coeso em uma

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unidade coordenada que era o próprio monumento; não que elas fossem sepa-radas umas das outras e existissem por si mesmas e não soubessem porque estavam lá. Na índia, quando um templo estava sendo construído o que se tinha em vista era uma criação total, todas as partes combinadas para dar efeito a um fim, para fazer uma vestimenta bonita para Deus, o único objetivo de sua adora-ção. Todas as grandes épocas da arte foram desse tipo. Mas nos tempos moder-nos, na última parte do século passado, a arte tornou-se um negócio. Um qua-dro era feito para ser vendido. Você faz suas pinturas, coloca-as cada uma em uma moldura e arranja-as lado a lado ou agrupa-as, isto é, amontoa-as juntas sem muita razão. O mesmo em relação à escultura. Você faz uma estátua e a instala em qualquer lugar, sem qualquer conexão com o ambiente. É sempre algo alheio, estranho ao cenário, como o cogumelo ou o parasita. A coisa em si pode não ser muito feia, mas está deslocada, não faz parte de um todo orgâni-co. Hoje exibimos arte. De fato, é exibicionismo, é uma demonstração de malí-cia, talento, habilidade, virtuosismo. Uma peça de arquitetura não encarna uma força viva como costumava ser antigamente. Não é mais a expressão de uma aspiração, de algo que enaltece o espírito, nem a expressão da magnificência do Divino, para quem a moradia deveria ser destinada. Você constrói casas aqui e ali desordenadamente ou de uma forma justaposta, sem nenhuma ideia coor-denada governando-as, sem qualquer relação com o meio ambiente onde estão situadas. Quando você entra numa casa, é a mesma coisa. Algumas pinturas aqui, algumas esculturas ali, uns objetos de arte num canto, outros em outro canto. Sim, é uma exibição, um museu, uma coleção caleidoscópica. É chocante para o gosto artístico verdadeiramente sensível.

Não digo que um museu não seja necessário ou útil. É um bom meio de edu-cação, quer dizer, para se conseguir informações sobre o que as pessoas de outras épocas fizeram. E um auxílio para o conhecimento histórico das coisas. Mas está longe de ser artístico. Um museu não é um lugar onde a arte possa encontrar sua expressão verdadeira e mais elevada. Há uma arte que procura coordenar, integrar objetos contrários, distintos e desagregados. É chamada de arte decorativa. E à medida que esta arte tiver sucesso, estaremos dando então um passo à frente em direção à arte verdadeira.

Aqui na índia as coisas são e deveriam ser um pouco diferentes. A despeito da invasão da Europa moderna e a despeito de certos lapsos em algumas dire-ções — posso me referir ao que Sri Aurobindo chama de interlúdio Ravi Varma — o coração da índia não é anglicizado ou europeizado. A Escola de Calcutá é um sinal — embora sua tentativa seja numa pequena escala — contudo é um sinal de que o gosto artístico da índia, apesar da educação moderna, ainda se volta para o que é essencial e permanente na sua cultura e civilização. Você ain-

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da tem diante de si, a seu alcance, os velhos templos, as velhas pinturas, para ensiná-lo que a criação de arte é para expressar uma fé, para dar-lhe um sentido de totalidade e organização. Você notará a este respeito um outro fato que é muito significativo: todas essas pinturas, todas essas esculturas em cavernas e templos não trazem assinatura. Não foram feitas com a ideia de fazer nome. Hoje você grava seu nome em cada pedaço de trabalho que faz, anuncia o acon-tecimento com grande estardalhaço nos jornais, para que a coisa não seja esquecida. Naqueles dias, o artista fazia o que tinha de fazer, sem se importar se seria lembrado pela posteridade ou não. O trabalho era feito num impulso de aspiração para expressar uma beleza superior e, acima de tudo, com a ideia de preparar uma morada adequada para a divindade a quem invocava. Na Europa, nas catedrais da Idade Média, as coisas eram feitas com o mesmo espírito. Tam-bém naquela época, os trabalhos eram anônimos e não traziam a assinatura do autor. Se qualquer nome veio a ser preservado, foi mais ou menos por acidente.

Entretanto, mesmo a comercialização de hoje, hedionda como é, tem uma vantagem em si. O comércio proporciona a mistura de artigos de todas as partes do mundo. Anula a distinção entre o Oriente e o Ocidente, traz o Oriente para perto do Ocidente e o Ocidente próximo ao Oriente. Com a troca de mercado-rias, acontece um intercâmbio de ideias e mesmo de hábitos e costumes. Nos dias da antiguidade, Roma conquistou a Grécia e, através dessa conquista, ela própria foi conquistada pela cultura e civilização da Grécia. O mesmo está acon-tecendo hoje em uma escala muito maior e mais intensa talvez. Em uma certa época o Japão estava se educando nos padrões americanos; agora que a Améri-ca conquistou o Japão fisicamente, ela está sendo conquistada pelo espírito do Japão. Mesmo nos objetos manufaturados na América, nota-se a influência japonesa, de um modo ou de outro.

MÚSICA — SUA ORIGEM E NATUREZA

Você deve se lembrar que a música, como qualquer outra arte, é um meio de expressar algo — uma ideia, um sentimento, uma emoção, uma certa aspira-ção e assim por diante. Há até um domínio onde todos estes movimentos exis-tem e de onde são trazidos para baixo sob uma forma musical. Um bom compo-sitor com alguma inspiração costuma produzir boa música; é então chama do de bom músico. Um mau músico pode também ter uma boa inspiração, pode rece-ber algo de regiões mais altas, mas não possuindo capacidade musical, sua com-posição torna-se medíocre, vulgar e desinteressante. Contudo, se você for além, precisamente acima deste lugar onde está situada a origem da música, captar a ideia, a emoção, a inspiração que está por trás poderá então ter a experiência destas coisas, sem ser retido pela forma. Entretanto esta forma musical pode ser

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acrescentada àquilo que está por trás ou além da forma pois é isso que origi-nalmente inspira o músico a compor. Bem, há casos em que não existe inspira-ção alguma, onde a fonte é apenas uma espécie de sons mecânicos, nem sem-pre agradáveis. O que quero dizer é que há um estado interior no qual a forma exterior não é a coisa mais importante: lá encontra-se a origem da música, a inspiração que está além. É banal dizer, mas frequentemente a pessoa esquece que não é o som que faz a música; o som tem que expressar algo.

Existe música que é bem mecânica e não tem inspiração. Há músicos que tocam com grande virtuosidade, quer dizer, dominam a técnica e executam impecavelmente os movimentos mais complicados e rápidos. Talvez seja música embora não expresse nada; é como uma máquina. É engenhosa, hábil, mas não prende a atenção porque é sem alma. A coisa mais importante, não apenas na música, mas em todas as criações humanas e em tudo que o homem faz, é, repi-to, a inspiração que está por trás. Espera-se naturalmente que a execução esteja ao nível da inspiração; mas para expressar-se verdadeiramente bem, deve-se ter realmente grandes coisas para expressar. Não que a técnica não seja necessária, ao contrário, deve-se possuir uma técnica muito boa; é até mesmo imprescindí-vel. Apenas não é a única coisa indispensável, nem é tão importante quanto a inspiração. Porque a qualidade essencial da música vem da região onde está situada sua fonte.

Fonte ou origem significa a coisa sem a qual um objeto não existiria. Nada pode se manifestar na terra fisicamente a não ser que tenha sua fonte em uma verdade mais elevada. Assim a existência material tem sua fonte e inspiração no vital, o vital por sua vez tem atrás de si o mental, o mental tem o sobremental e assim por diante. Se o universo fosse um objeto plano, tendo sua origem em si mesmo, ele rapidamente deixaria de existir. (Isto é talvez o que a ciência quer dizer quando postula a impossibilidade do movimento perpétuo). É porque há uma fonte superior que o inspira, uma energia secreta que o impulsiona em direção à manifestação, que a Vida continua. De outra forma, esgotar-se-ia mui-to cedo.

Existe uma escala graduada na fonte da música. Uma inteira categoria de música lá se encontra, que vem do vital mais alto. É muito contagiante, talvez até um pouco vulgar, algo que se entrelaça em seus nervos, por assim dizer, e os torce. Atinge-o em algum lugar próximo aos quadris — no centro do umbigo — e encanta-o, a seu modo. Como existe uma música vital, há também o que se pode chamar de música psíquica, vinda de uma fonte completamente diferente. Existe, além disso, uma música que tem origem espiritual. Na sua própria região esta música superior é magnífica, toca-o profundamente e transporta-o para

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outro lugar. Mas se fosse para expressá-la perfeitamente, executá-la, você teria que passar também esta música através do vital. A música que vem do alto pode, contudo, resultar em algo completamente inexpressivo na execução, se você não tiver aquela intensidade de vibração vital que, exclusivamente, lhe pode dar seu poder e esplendor. Conheci pessoas que possuíam inspiração mui-to elevada, mas sua música resultava bastante medíocre porque não conse-guiam motivar o seu vital, que ficava quase completamente adormecido pela prática espiritual. Sim, estava literalmente adormecido e não trabalhava de for-ma alguma. Sua música, dessa forma, vinha direto para o físico. Se você pudesse chegar mais além e captar a fonte, veria que, mesmo lá, realmente havia algo maravilhoso, embora externamente não fosse tão vigorosa ou efetiva. O que vinha para fora era uma melodia muito pobre e fraca, não tendo nada do poder de harmonia que existe quando se pode trazer para o jogo da vida a energia vital. Se alguém pudesse colocar todo este poder de vibração que pertence a esse vital, dentro da música de origem superior, teríamos a música de um gênio. De fato, para a música e para toda criação artística, na verdade, para a literatu-ra, para a poesia, a pintura etc. um intermediário é necessário. Qualquer coisa que se faça nestes domínios depende, sem dúvida, para seu valor intrínseco, da fonte de inspiração, do plano ou da altura onde se está. Mas o valor da execu-ção depende da força vital que expressa a inspiração. Para um gênio verdadeiro ambos são necessários. A combinação é rara, geralmente é um ou outro, mais frequentemente é o vital que predomina e ofusca.

Quando apenas o vital está presente, você tem a música de café-concerto e cinema. É extraordinariamente engenhosa e ao mesmo tempo terrivelmente medíocre, até mesmo vulgar. No entanto, como é muito engenhosa, toma conta de seu cérebro, persegue sua memória, vibra (ou torce) seus nervos. Torna-se tão difícil livrar-se de sua influência precisamente porque é tão bem feita e tão hábil. É feita vitalmente com vibrações vitais, mas o que está por trás não é nem mesmo saudável. Agora imagine o mesmo poder vital de expressão ligado à ins-piração vinda de cima, digamos, à inspiração mais alta possível, quando todo o céu parece se abrir. Isto então é música de verdade! Algumas coisas em César Frank, alguma em Beethoven, algumas em Bach, algumas em outros, possuem esta soberania. Mas afinal, tudo é apenas um momento, vem por um momento e não permanece. Não há um único artista cujo trabalho completo seja executa-do em tal nível. A inspiração vem como a luz de um relâmpago mas, frequente-mente, dura somente o suficiente para ser captada e mantida em uns poucos momentos.

Algo semelhante a essa experiência pode lhe acontecer quando sua cons-ciência está toda atenta e concentrada. Você sente, subitamente, que está sen-

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do arrebatado, que todas suas energias estão reunidas e elevadas, como se sua cabeça se abrisse e você fosse lançado no espaço livre para espaços distantes, de alturas extraordinárias e luzes magnificentes. A experiência lhe dá, em uns poucos segundos, o que se pode alcançar no curso normal das coisas, depois de muitos anos de difícil Yoga. Só que, imediatamente após a experiência, você despenca para baixo porque a base não foi construída; até mesmo você poder começar a duvidar se realmente teve a experiência. No entanto, a consciência foi preparada, algo definitivo foi feito e permaneceu.

MÚSICA — INDIANA E EUROPEIA

A diferença é tanto em relação à fonte e à expressão, como inversamente. Na música europeia uma inspiração muito alta, a espiritual, é uma coisa muito rara. A fonte psíquica também é rara. Mas, se existir, é uma fonte espiritual mui-to alta, ou então o vital é a fonte. A expressão está sempre presente, à parte, naturalmente, de algumas exceções; mas é quase sempre vital, porque a fonte é muitas vezes puramente vital. Algumas vezes, como disse, ela vem de muito alto, então é realmente maravilhosa. Outras, mais raramente, é psíquica. Algo disso existe na música religiosa, mas não é frequente. A música indiana, por outro lado, quase sempre, quer dizer, quando temos bons músicos, tem uma fonte psíquica, como por exemplo, a origem das Ragas. Não vem das alturas máximas, tem antes uma origem íntima e interior. Mas dificilmente apresenta um corpo vital suficiente. Já ouvi muita música indiana, na verdade uma grande quantidade. Raramente encontrei alguma que tivesse uma grande força vital, não mais do que quatro ou cinco vezes. Mas tenho ouvido com frequência as que têm inspiração psíquica por trás. É uma música diretamente traduzida do interior para o físico. Para escutá-la você deve concentrar-se, porque é algo mui-to frágil, muito delicado e tênue, não contendo nada da vibração vital em suas ressonâncias fortes e intensas. Você pode deslizar para dentro dela, deixar-se escorregar pela correnteza, penetrando na fonte psíquica. Tem esse efeito, age como uma intoxicação, algo que o leva a uma espécie de transe. Se escutar bem e estiver atento e deixar-se levar, você vagarosamente desliza e mergulha, mer-gulha na consciência psíquica; mas se você permanecer na consciência externa, o que se expressa nela é uma corrente tão fina, sem resposta no vital e você a considera extremamente enfadonha e monótona. Se houvesse, entretanto, ao lado da vibração psíquica também uma força vital expressando-a, o resultado seria realmente interessante.

Gosto dessa espécie de música, que tem um tema, um único tema, moven-do-se e desenvolvendo-se gradualmente com variações: inúmeras variações executando o mesmo tema constante, variações ramificando-se e voltando

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ESPECIALIZAÇÃO 179

novamente ao tema básico original. Na Europa houve também alguma coisa dessa espécie, mas em estilo muito diferente. Bach o possuía, Mozart também. Nos tempos modernos, alguns músicos como Debussy, Ravel e o russo Borodine e uns poucos outros captaram algo disso. Você toma um certo número de notas, em uma certa relação, e sobre esse esquema toca variações, um número quase infinito de variações. É maravilhoso: leva-o profundamente para dentro e, se você estiver pronto, dá-lhe a consciência do psíquico, algo que o afasta da cons-ciência física externa e o liga a alguma coisa dentro, em algum lugar.

ESPECIALIZAÇÃO

Você deve expandir, ampliar e enriquecer sua mente. Ela deve ser repleta de pensamentos e ideias. Deve acumular os resultados de sua observação e de seus estudos para não ter uma "mente pobre", uma mente, por assim dizer, sem muitas ideias ou capacidade de raciocínio e argumentação. Sua mente deve ser capaz de pensar sobre diversos assuntos, reunindo conhecimento de várias espécies, considerando um problema de diversos ângulos, não apenas seguindo uma única linha ou trilha. Deve ser como um leque japonês abrindo-se em um círculo completo, em todas as direções.

Você tem, por exemplo, várias matérias para aprender na escola. Bem, aprenda tantas quanto puder. Se você estudar em casa, leia tanto quanto possí-vel. Sei que, de modo geral, aconselham-no a seguir um caminho diferente, isto é, que você deve escolher o menor número possível de matérias e "especializar-se". Sim, essa é a ideia geral: "especialização", ser um perito em qualquer coisa. Se você desejar ser um bom filósofo, leia apenas filosofia; se desejar ser um bom químico, faça apenas química; dizem até mesmo que você deveria concen-trar-se sobre um único problema ou tema de filosofia ou química. Pedem que faça o mesmo nos esportes. Escolha um item e fixe sua atenção apenas nisso. Se você desejar ser um bom jogador de tênis, pense somente em tênis. Entretanto, não sou dessa opinião. Minha experiência é diferente. Acredito que há faculda-des gerais no homem que ele deveria adquirir e cultivar mais do que se especia-lizar. Obviamente, se sua ambição é ser um Monsieur ou Madame Curie que queriam descobrir uma coisa determinada, um mistério novo de uma espécie definida, então você deve se concentrar sobre essa única coisa. Mas, mesmo assim, quando tiver alcançado seu objetivo, você pode muito bem voltar-se para outras coisas. Além disso, não é impossível, no meio da busca em uma única direção, achar ocasião e oportunidades para se interessar por outras coisas.

Desde minha infância tenho ouvido a mesma observação. Receio que ela tenha sido ensinada também nos dias de nossos pais e avós e bisavós, isto é,

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que se você quiser ter sucesso em alguma coisa, deve se concentrar apenas nis-so e nada mais. Fui muito repreendida porque estava ocupada com coisas dife-rentes ao mesmo tempo. Disseram-me que no fim eu não serviria para nada. Estudava, pintava, fazia música e muitas outras coisas. Repetidamente fui adver-tida que minha pintura seria sem valor, minha música seria sem valor, meus estudos seriam incompletos e falhos se seguisse meu modo de ser. Talvez fosse verdade; mas descobri que meu caminho também tinha suas vantagens — pre-cisamente as vantagens das quais estava falando no começo, quer dizer, de ampliar e enriquecer a mente e a consciência, torná-la ágil e flexível, conferindo-lhe um poder espontâneo para compreender e lidar com qualquer coisa nova a ela apresentada. Se, entretanto, tivesse a intenção de me tornar um executor de primeira classe, para tocar em concertos, então, é claro, teria que me restringir. Ou na pintura, se tivesse por objetivo ser um dos grandes artistas da época, poderia ter feito isso e nada mais. É perfeitamente compreensível esta posição, mas é somente um ponto de vista. Não vejo porque deveria me tornar a maior musicista ou a maior pintora. Parece-me não ser nada mais que vaidade.

Mas é um movimento muito natural e espontâneo do homem mudar de um trabalho para outro, para manter uma espécie de equilíbrio. Mudanças também significam descanso. Frequentemente temos ouvido falar de grandes artistas ou acadêmicos que precisavam de descanso e, tendo grande necessidade dele, encontravam-no mudando de atividade. Por exemplo, Ingres foi um pintor; pin-tar era sua ocupação maior e normal. Mas toda vez que encontrava tempo ele pegava seu violino. Curiosamente era o violino que lhe interessava mais do que a pintura. Não era muito bom em música, mas encontrava grande prazer nela. Suficientemente bom na pintura, ela o interessava menos. Mas a coisa impor-tante é que precisava de uma pausa ou compensação estável. A concentração sobre uma única coisa é muito necessária, como disse, se a pessoa visar um resultado definido e especial. Mas pode-se seguir uma linha diferente, mais sutil, mais compreensiva e completa. Naturalmente há um limite físico aproxi-mado para o aumento de suas capacidades, pois no plano físico você está confi-nado ao tempo e ao espaço. E também é verdade que grandes coisas são difíceis de alcançar se não houver uma concentração especial. Mas se você quiser levar uma vida mais elevada e mais profunda, pode controlar capacidades que são maiores do que aquelas disponíveis com métodos de restrição e limitação per-tencentes à consciência normal. Há uma vantagem considerável em libertar-se dos próprios limites, se não do ponto de vista de aperfeiçoamento real, pelo menos do ponto de vista da realização espiritual.

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ESBOÇO DA VIDA DA MÃE

A Mãe (Mirra Alfassa) nasceu em Paris em 21 de fevereiro de 1878. Ela recebeu sua educação inicial em casa e em uma escola par-ticular. Mais tarde, ela frequentou um estúdio de arte em Paris per-tencente à Academie Julian. Uma artista consumada, algumas de suas obras foram expostas no Salão de Paris. Ela também foi uma pianista talentosa e escritora.

Sobre o início de sua vida espiritual a Mãe escreveu: "Entre onze e treze uma série de experiências psíquicas e espirituais revelou-me não só a existência de Deus, mas a possibilidade do homem de unir-se com Ele, de realizá-Lo integralmente em uma vida divina." Em 1906 e 1907, a Mãe estudou ocultismo em Tlemcen, na Argélia, com um adepto polonês, Max Théon, e sua esposa. Retornando a Paris, fundou um grupo de buscadores espirituais. Entre 1911 e 1913 ela deu muitas palestras a vários grupos em Paris.

Em 1914 a Mãe viajou para Pondicherry, na Índia, para encontrar Sri Aurobindo, patriota indiano, poeta, filósofo e místico. Após uma estadia de 11 meses, ela voltou para a França por um ano e depois foi para o Japão por quase quatro anos. Em abril de 1920 a Mãe retor-nou à Pondicherry para retomar a sua colaboração com Sri Aurobin-do. Com sua vinda, o número de discípulos em torno de Sri Aurobin-do aumentou gradualmente. Este agrupamento informal eventual-mente tomou forma como o Sri Aurobindo Ashram. Desde a sua cria-ção em novembro de 1926, Sri Aurobindo confiou o material comple-to e carga espiritual do ashram para a Mãe. Sob sua orientação, que abrangeu um período de quase 50 anos, o ashram cresceu e se tor-nou uma grande comunidade multifacetada.

Entre outras realizações da Mãe durante este período foram a criação do Sri Aurobindo International Centre of Education em 1952 e a fundação de Auroville em 1968. Esta vila em crescimento, localiza-da a oito quilômetros ao norte de Pondicherry, é um experimento ousado na vida internacional, com um elevado ideal espiritual.

A Mãe supervisionou pessoalmente as atividades diárias do ash-ram até a idade de 84 anos. Em março de 1962, ela se retirou para seu quarto, mas, de lá, continuou durante a próxima década a guiar o

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ashram e receber pessoas regularmente. Em 17 de Novembro de 1973, com a idade de 95 anos, a Mãe deixou seu corpo.

Sobre a relação entre a Mãe e ele, Sri Aurobindo escreveu: "A consciência da Mãe e a minha é a mesma", e novamente: "Não há diferença entre o caminho da Mãe e o meu; temos e sempre tivemos o mesmo caminho, o caminho que conduz à mudança supramental e à realização divina .... ".

Em seu nonagésimo aniversário, a Mãe resumiu sua vida e seu trabalho da seguinte forma:

"As reminiscências serão curtas. Eu vim à Índia para encontrar Sri Aurobindo, permaneci na Índia para viver com Sri Aurobindo. Quan-do ele deixou o seu corpo, eu continuei a viver aqui, a fim de fazer o seu trabalho que é, servindo à Verdade e iluminando a humanidade, acelerar o governo do Amor do Divino sobre a terra."

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ESBOÇO DA VIDA DE SRI AUROBINDO

Sri Aurobindo nasceu em Calcutá, Índia, a 15 de agosto de 1872. Aos sete anos foi enviado por seu pai com seus dois irmãos mais velhos para estudar na Inglaterra. Muito cedo começou a escrever poesias e durante uma brilhante carreira acadêmica em St. Paul’s, Londres, e no King’s College, Cambridge, aprendeu e dominou com-pletamente o inglês, o grego, o latim e o francês. O alemão, o italiano e o espanhol também lhe eram familiares. Estudou durante catorze anos na Inglaterra, onde adquiriu um profundo conhecimento da cul-tura europeia antiga, medieval e moderna.

Em 1893, aos 21 anos, retornou à Índia, com uma completa edu-cação ocidental. Começou então a procurar pela sabedoria e verdade do Oriente. Aprendeu o sânscrito e várias línguas indianas, e assimi-lou o espírito da civilização da Índia, em todos os seus aspectos. Pas-sou treze anos em Baroda, a serviço administrativo e educacional para o Estado. Foram anos de aprendizado cultural e de atividades literárias, porém uma grande parte deste período passou-os em silenciosa atividade política.

Em 1906 foi para Bengala assumir abertamente o comando do movimento revolucionário, que durante anos havia organizado em segredo. Ele foi o primeiro a publicar nas páginas de seu jornal “Ban-de Mataram” o ideal da completa independência da Índia. Três vezes processado por suas atividades, todas as vezes foi liberado por falta de provas. Finalmente, o governo britânico conseguiu prendê-lo e mantê-lo no cárcere durante um ano, entre 1908 e 1909. Foi nesse período que Sri Aurobindo passou por uma série decisiva de expe-riências espirituais que determinaram o curso de seu trabalho futuro. Liberado e certo do sucesso do movimento libertador da Índia, e res-pondendo a um chamado interior, Sri Aurobindo retirou-se do campo político e em 1910 e viajou para Pondicherry, no sul da Índia, para devotar-se totalmente à sua missão espiritual.

Depois de quatro anos de recolhimento, em 1914, ele começou a editar, em colaboração com sua discípula, Mirra Alfassa, que mais tarde se tornou conhecida como A Mãe, um jornal filosófico chamado “Árya”. Os mais importantes trabalhos seus – The Life Divine, The Synthesis of Yoga, Essay on the Gita e The Ideal of Human Unity apa-

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receram pela primeira vez. Esses trabalhos incluíam muitos dos conhecimentos interiores adquiridos em sua prática de Yoga. Tendo reunido todas as verdades essenciais de experiências espirituais pas-sadas, ele trabalhou por um método mais completo de Yoga, que pudesse transformar a natureza humana e divinizar a vida neste mundo.

Sri Aurobindo anteviu a possibilidade de uma vida divina na Terra e lutou por ela. Durante quarenta anos em Pondicherry permaneceu absorvido em seu trabalho espiritual, porém conservou-se a par de tudo o que estava acontecendo na Índia e no mundo. Quando neces-sário interferia, mas apenas com sua força espiritual e ação silencio-sa.

Seu trabalho espiritual tornou-se conhecido como “O Yoga Inte-gral de Sri Aurobindo”, segundo o qual “Toda vida é Yoga”.

Sri Aurobindo deixou seu corpo em 1950, aos 78 anos de idade.

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ENDEREÇOS PARA OBTENÇÃO DE INFORMAÇÕES

Sobre a Mãe, Sri Aurobindo e o Yoga Integral desenvolvido por eles.

Para informações em português:

Site da CASA Sri Aurobindo www.casasriaurobindo.com.br

Grupo no Facebook (Sri Aurobindo Brasil) www.facebook.com/groups/162421040488460/

Sri Aurobindo no Wikipédia http://pt.wikipedia.org/wiki/Sri_Aurobindo

Sobre Auroville: www.auroville-international.org/avi-centres/brazil/informacoes-gerais-sobre-auroville.html

Para informações em inglês:

Site do Sri Aurobindo Ashram na Índia www.sriaurobindoashram.org

Página com livros da Mãe que podem ser baixados no formato pdf: www.sriaurobindoashram.org/ashram/mother/writings.php

Página com livros de Sri Aurobindo que podem ser baixados no for-mato pdf: www.sriaurobindoashram.org/ashram/sriauro/writings.php

Site de Auroville http://www.auroville.org/