o vinho da madeira (breve resenha...
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ALBERTO VIEIRA
O VINHO DA MADEIRA
(BREVE RESENHA HISTÓRICA)
Edição Electrónica
NESOS
2005
Perfuma e alegra o solo um vinho histórico, produto de
castas primitivas, sangue de raça a perpetuar na ilha o
nome de Portugal. Foi este vinho companheiro dos
colonos na rota da descoberta; postou-se de guarda à
porta de suas casas, de braços abertos, numa ramada
acolhedora a parentes, amigos e vizinhos; dá-lhe vida no
trabalho; vibra-lhe na alma em festas de família e todos
os anos se renova no barril ou quartola para o aquecer
no Inverno, estugar-lhe o passo nas romarias de Verão,
firmar promessas, selar contratos, fechar negócios e ser
providência económica no seu lar.
(Eduardo C. N. Pereira — Ilhas de Zargo,
Funchal, 1967, I, pp. 558/9)
I - INTRODUÇÃO
Ao saborearmos um cálice de vinho Madeira Velhíssimo ficamos extasiados com o seu
aroma e sabor, pondo de parte a imagem que o mesmo reflecte, da sua laboração há um ou
dois séculos; a época de esplendor do vinho Madeira. Ignoramos a parte amarga: o colono
na sua labuta diária no campo e nas adegas, o árduo trabalho das vindimas, os borracheiros
no seu passo cadenciado - denunciado pelo eco dos seus cantares - por entre as encostas
da ilha.
Para podermos recriar essa ambiência temos que agarrar os restos materiais e documentais
e fazê-los reviver na sua labuta sazonai, ou antes, fazer desbobinar o filme que se esconde
por entre a ferrugem, a traça e o pó. São o único elo de ligação com esses momentos de
esplendor da faina viti/vinícola do povo ilhéu, durante cerca de três séculos.
O calendário da História insulana mantém inapagável algumas colheitas:
1730 - Vinho de Roda - o Madeira adquire novo paladar nas zonas tropicais e cedo se
divulga a notícia e se apura o gosto da aristocracia inglesa, que passa a preferir o «East
índia Madeira» ao «Common Madeira», «London Market», «London Particular». O Madeira
salta das escuras adegas para o soalheiro porão das naus.
1794 - Vinho Estufado - o vinho de roda dá lugar ao vinho estufado; a grande procura faz
evoluir as técnicas de trato, enquanto vai perdendo qualidades, facto que merece a sua
rejeição a partir de 1814.
1815 - Battle of Waterloo - época de mudança e, de triste memória, para os interesses
hegemónicos de Napoleão, ficou na História do vinho ilhéu a marcar uma colheita de boal
oferecida ao infeliz imperador, quando passou pela ilha. A tradição refere que a referida
oferta regressou à ilha depois da morte do imperador, tendo sido comprada e engarrafada
em 1840 por C. Blandy.
Beber um Madeira de 1730, o «East India Madeira», é fazer o impossível, é deleitar-se com
um dos mais famosos rubinéctares, que concerteza mereceria a aprovação dos deuses do
Olimpo.
Beber o Madeira de 1794, o vinho estufado, será uma sensação gustativa horrível que
poderá levar à sua rejeição. E hoje, que bebemos?
O Vinho Madeira, celebrado por poetas, monarcas, príncipes, generais, exploradores e
expedicionistas, há alguns anos a esta parte vem perdendo o seu mercado e os seus po-
tenciais apreciadores. Tal estado deve-se à situação criada entre finais do séc. XVIII e prin-
cípios do séc. XIX, em que a grande procura fez nascer da sua água e do fogo quantidades
apreciáveis de vinho velho. Depois foi o fastio em 1814. Mais tarde a natureza fez acabar
com as cepas de boa qualidade, fazendo-as substituir pelo produtor directo, as quais hoje
permanecem lado a lado com as castas europeias numa prosmiscuidade escandalosa.
Sendo ponto assente que foram as castas nobres europeias que criaram e mantiveram a
fama do vinho Madeira durante mais de 2 séculos, torna-se imperiosa a regulamentação/
/reconversão da viticultura madeirense, caso seja nossa intenção manter viva a lembrança
desse famoso vinho.
«O vinho da Madeira correu mundo - singrou por todos os mares e rompeu todas as
fronteiras» (E. Nunes, Porque me orgulho de ser Madeirense, p.27). Como tal foi um
capitoso embaixador natural que levou o nome da ilha da Madeira aos confins do Mundo.
O Vinho Madeira desde tempos recuados adquiriu fama no mundo colonial europeu,
tornando-se a bebida preferida do militar, expedicionista, aventureiro, em terras da América
ou da Ásia. Escolhido pela aristocracia colonial manteve-se no mercado londrino, europeu e
colonial como o seu vinho por excelência, durante séculos.
O Vinho da ilha não só deu fama à ilha, como se evidenciou, desde meados do séc. XVI,
como o único meio de sustento tendo, deste modo, caracterizado o devir histórico insulano
por 3 séculos.
O ilhéu desde 1575 fez mudar os canaviais por vinhedos, os quais alastraram a todas as
terras cultivadas, devorando a floresta a norte e a sul. Nesta febre vitícola o madeirense
esqueceu que devia semear cereais e plantar árvores de fruto. O vinho era a sua única fonte
de sustento; com ele se adquiria o alimento necessário, trazido da América nas naus
americanas, ou a indumentária e manufacturas trocadas aos ingleses por pipas de vinho.
Viveu a Madeira, desde o séc. XVII a princípios do XIX, embalada pela opulência derivada
do comércio vantajoso do vinho e, com tão avultados proventos o madeirense adquiriu o luxo
exuberante do meio aristocrático londrino. O íncola habituou-se à vida cortesã europeia,
ganhou hábitos ingleses e, nas suas quintas rodeadas de sumptuosos vinhedos e jardins
rivalizava o estrangeiro. Os arredores do Funchal, nomeadamente o Monte, St.º António, S.
Martinho, povoaram-se de quintas, onde se esboçava uma vida cortesã em miniatura
mergulhada no mais opulento luxo, sustentado pelos proventos do vinho.
Erguia-se assim a cidade do Vinho, que escapava ao apertado burgo do açúcar. O Funchal
engalanava-se de palácios, igrejas e capelas; ao mesmo tempo que crescia na direcção E e
N. Temos os majestosos palácios de S. Pedro, da Câmara Municipal, a casa Ornelas (R. do
Bispo) e Tomaszewski (R. Ferreiros).
II - A VINHA E O VINHO NA HISTÓRIA
A vinha existe desde a mais remota an-
tiguidade (período terciário), tendo sido di-
vulgada no mundo através cios hebreus,
gregos e romanos. É de admitir que a
viticultura tenha como ponto de partida a
Ásia meridional, donde se estendeu à
Ásia central, Europa e Extremo Oriente.
No entanto algumas transformações de
ordem social e religiosa fizeram com que
esta cultura fosse abandonada em
algumas áreas, como no Japão, China e
em muitos países muçulmanos; em
detrimento da sua expansão na Europa
cristã e colonial (África do Sul e Austrália).
A origem do vinho deu lugar a uma série
de lendas e mitos despoletados a partir do
relato bíblico de Noé, a que se aliou a fan-
tasia do narrador. Segundo Ezler
(Ibagoge Phisico magico medicale,
Augsburgo, 1630), Noé teria tomado
conhecimento com as propriedades da
labrusca por intermédio dum cabrito que
o mesmo soltou em Córico (montanha da
Silicia) e que comendo a dita planta se
embebedou, de tal modo que começou a
atacar o restante rebanho. Outra lenda,
contada por Cornai (Theologia vitis
viniferae, Heidelberg, 1614) refere que o
pastor Staphylos da Etólia, que servia
habitualmente Oinos notou, enquanto
apascentava o seu rebanho que uma das
cabras saía habitualmente do rebanho e
se demorava mais que as outras. Tempos
depois veio a descobrir que esta se
demorava a comer o fruto de uma árvore -
a uva. Levando o fruto ao seu senhor este
o espremeu e fez com ele um líquido
suave - o vinho, que deu a beber a Liber
Pater, seu hóspede e este como prova de
agradecimento deu o seu nome ao vinho
(em grego oinos) e à videira o nome do
pastor (em grego Staphyle). Por outro lado
a mitologia grega atribui essa façanha a
Dionísio, enquanto a latina refere que foi
Saturno quem introduziu as primeiras
videiras em Creta e ensinou aos povos do
Lacio os segredos da viticultura.
Desde tempos imemoráveis que os poetas
e escritores fizeram o elogio ao vinho: A
Ilíada e Odisseia, Vergilio na Eneida...
Anacreonte cantou-o e imortalizou-o no
«Elogio ao vinho», Catz e Aguiquiloco,
filhos de Paros e do sacerdote Telésides
divinizaram-no, Safo exulta-o e Salomão,
no Cântico dos Cânticos elogia-o. Mas,
sem dúvida o repositório mais numeroso e
contraditório de referências ao vinho
encontra-se na Bíblia. Aí no Antigo e Novo
Testamento o vinho ora é exultado - O
Eclesiastes, Provérbios, Livro de
Zacarias, os Evangelhos, Cântico dos
Cânticos —, ora é vilipendiado— O
Edesiasfes, Provérbios, livro do profeta
Isaías e Jeremias, livro de Oseas. Mas
no fundamental a literatura bíblica e cristã
fala do vinho com certo benemérito, pois
que este faz parte do sacrifício
eucarístico. Aliás tal situação conduziu a
uma forte expansão da cultura da vinha
no mundo cristão.
O ritual cristão fez do pão e do vinho os
dois elementos substanciais da sua
prática, fazendo-os símbolos da essência
da vida humana e do seu Salvador-Cristo.
O vinho e o pão avançaram
conjuntamente com a Cristandade,
levados por monges e bispos. Tal rea-
lidade veio revolucionar os hábitos
alimentares do ocidente cristão, a partir do
séc. VII, estabelecendo o comer pão e
beber vinho como o símbolo do sustento
humano.
Foi assim que o vinho chegou à Madeira
no séc. XV; a expansão europeia aliava-
se à expansão da cristandade e como tal
o vinho, produto essencial não podia ser
esquecido na relação das bagagens dos
aventureiros que reconheceram e
promoveram a ocupação do arquipélago.
Os poucos grãos de trigo e cepas ao
encontrarem solo virgem e fértil adapta-
ram-se rapidamente às condições
mesológicas do meio insular e
conquistaram aos poucos a totalidade do
solo cultivável da ilha, mantendo-se em
perfeita harmonia, adocicados por uma
nova especiaria - o açúcar. Mais tarde o
ilhéu alheio ou esquecido desta dualidade
harmoniosa e adocicada, esqueceu o pão
e o açúcar e entregou-se com todas as
suas forças ao vinho; única cultura capaz
de manter o seu sustento, mercê de uma
forte rentabilidade. O vinho tornava-se
assim no alimento e moeda de troca do
ilhéu.
Acompanhar os primórdios da história da
vinha na ilha é uma tarefa arrojada, pois
que os nossos avoengos nos legaram
poucas referências documentais, onde
seja possível colher dados sobre a sua
introdução e expansão. No entanto aqui e
acolá podemos colher elementos que
devidamente articulados nos podem dar
uma ideia da fase inicial da história do
vinho na ilha.
Em meados do séc. XV, com o movimento
de ocupação e aproveitamento da ilha
temos como certa a introdução de cepas
vindas do reino e mais tarde das zonas
vitícolas do mar Mediterrâneo. João
Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira e
Bartolomeu Perestrello ao receberem o
domínio das capitanias do arquipélago,
sob a direcção do monarca e do Infante D.
Henrique, procederam ao desbravamento
e ocupação ao solo com diversas culturas
trazidas do reino - o trigo, a vinha e a
cana.
Num curto espaço de tempo a paisagem
ilhoa havia-se transformado e em terras
onde apenas se vislumbrava o
esplendoroso e denso arvoredo começam
a surgir clareiras humanizadas,
devidamente assinaladas pelo casario.
Nas planuras ribeirinhas do oceano, onde
havia local para varar um barco viu-se
surgir o Homem na sua fúria constante
contra a natureza. No Funchal do funcho
fez resplandecer os campos dourados de
trigo, entremeados aqui e acolá por
canaviais e vinhedos. Em Câmara de
Lobos, depois de afugentarem os lobos-
marinhos, subiu encosta acima de pica-
reta na mão traçando o rendilhado dos
socalcos donde fez plantar a videira em
vistosas latadas.
Assim foi a vinha conquistando o solo
ilhéu em todas as direcções, tornando-se
o vinho um produto importante na
actividade agrícola do ilhéu. Já em 1455,
Cadamosto ao passar pela ilha ficou
deslumbrado com o que viu na área
vitícola do Funchal ;
«... tem vinhos, mesmo
muitíssimos bons, se se considerar que a
ilha é habitada há pouco tempo. São em
tanta quantidade, que chegam para os da
ilha e se exportam muitos deles» (A.
Aragão — A Madeira vista por estrangeiros,
Funchal, 1981, p. 37).
O vinho na Madeira do séc. XV apresen-
tava-se com um produto competitivo do
trigo e do açúcar, com grande peso na
economia local. Desde o início foi um
potencial produto do mercado externo da
ilha. Sendo já exportado em 1455,
segundo testemunho de Cadamosto,
comprovado em documento de 1461 em
que se dá conta do dízimo de exportação
pago pelo vinho à saída. Aliás em 1478
temos referenciada a sua exportação para
o mercado londrino, segundo o
testemunho de Shakespeare que nos dá
conta de o Duque de Clarence ter
manifestado o desejo de morrer afogado
numa pipa de malvasia; o mesmo refere
na peça Henry IV (parte I) que Falstaff
teria vendido a alma ao diabo, por um
copo de vinho Madeira e uma perna de
capão.
A cultura da vinha absorvia assim, já na
segunda metade do séc. XV, uma porção
considerável da área arroteada da ilha,
nomeadamente na zona vizinha do
Funchal, onde encontramos II vinhas e II
latadas. No século seguinte a cultura da
vinha aumenta a sua área e alarga-se
além Funchal; na primeira metade do séc.
XVI temos 19 vinhas e 6 latadas no
Funchal, 7 vinhas em C. de Lobos e 6 vi-
nhas e 7 latadas distribuídas por Ponta de
Sol, Ribeira Brava, Caniço e Calheta. Será
a partir da segunda metade do século que
a vinha conquista em definitivo o solo da
ilha, substituindo os canaviais do Funchal
e zonas limítrofes, ocupando as clareiras
então abertas no norte — Ponta Delgada,
Porto da Cruz...
Os trigais e canaviais davam assim lugar
às latadas e bolseiras; a vinha tornava-se
na cultura exclusiva do colono
madeirense, à qual este dá todo o seu
engenho e arte. O vinho adquiria o
primeiro lugar na actividade económica da
ilha, mantendo-se na dianteira por mais
de três séculos. O ilhéu, desde o último
quartel do séc. XVI dedicou-se por
exclusivo à cultura da vinha, tirando dela o
necessário para o seu sustento diário e,
igualmente, para manter uma vida de
luxo, sumptuosos palácios e igrejas.
Se em 1547 Hans Standen refere que a
economia da ilha se define pelo binómio
vinho/açúcar, já em 1578 Duarte Lopes
colocava o vinho em primeiro lugar nas
exportações e em 1669 o cônsul francês
afirmava que o vinho era o principal
negócio da ilha. Toda a documentação
dos sécs. XVIII/XIX é unânime em
considerar o vinho como a principal e total
riqueza da ilha; a única moeda de troca. A
Madeira não tinha com que acenar aos
navios que por aí passavam, ou a
demandavam, senão o copo de vinho ; o
resto que necessitava para o seu viver
quotidiano era trazido pelos navios
estrangeiros, que aí trocavam por vinho.
Esta situação tornava a economia insular
numa situação periférica delicada, pois
que a sua posição de dupla dependência
em relação ao mercado externo minava
os alicerces da sua base material,
fazendo-a oscilar consoante a conjuntura
favorável ou desfavorável do mercado
fornecedor (inglês e americano) e
consumidor (colonial britânico).
Contra esta política exclusivista imposta
pelo mercantilismo inglês se
manifestaram, quer o governador e
capitão general Sá Pereira, em regimento
de agricultura para o Porto Santo, quer o
corregedor e desembargador António
Rodrigues Veloso em 1782 nas instruções
que deixou na Câmara da Calheta,
quando aí esteve em alçada. Mas foi tudo
em vão, ninguém era capaz de frenar a
febre vitícola, nem seria possível
convencer o viticultor a abandonar a vinha
num momento em que o vinho da ilha
tinha grande procura no mercado
internacional. E, poucos eram os anos em
que a colheita era suficiente para satis-
fazer a grande procura; por vezes
socorria-se aos vinhos inferiores do norte
e, até mesmo, ao vinho dos Açores e
Canárias para poder saciar-se o
colonialista europeu sedento.
Saciado o colonialista europeu, a pro-
dução passou a ser excedentária e o vinho
da ilha passou a ser preterido em favor do
vinho de França, Espanha e Cabo. O fim
das guerras europeias, em princípios do
séc. XIX, abriu as comportas do vinho
europeu ao potencial mercado colonial
asiático e americano. A retirada do
colonialista das áreas colonizadas fez
perder o gosto pelo vinho da ilha. Como
consequência disto temos a manifestação
dos primeiros sintomas da rejeição a partir
de 1814; agravando-se a situação de ano
para ano. As colheitas de 1819 a 1821
mantiveram-se estagnadas nos armazéns
sem comprador, isto de tal modo que em
1820 20 000 pipas aguardavam
comprador. A situação era de tal modo
aflitiva que em documento da época se
referenciava: «Estão as casas ricas de
vinho, pobres de sustento e de alimento» (ANTT — Provedoria e J. R. Fazenda do
Funchal — N.° 4, II, p.23).
Reviver a ilha no período que decorre dos
anos de 1840 a 1860 será rememorar um
dos momentos ímpares da fome, miséria
da história insulana que se poderá igualar
aos momentos aflitivos da Europa da
segunda metade do séc. XIV. Se à
Europa de então se seguiu o surto
expansionista europeu, à ilha se sucedeu
a diáspora madeirense, mercê da
solicitação e aliciamento feito pelos
ingleses e seus acólitos. Entre 1840/50 o
madeirense perde o amor à sua terra e vai
ao encontro dum novo paraíso fugaz,
criado pelo inglês nas Antilhas.
O oídio (1852), a filoxera (1872) deram o
golpe final à cultura da vinha na ilha; a
Madeira perdeu o seu sustento, o seu
mercado, as suas parreiras. A
recuperação é a meta de todas as
iniciativas, mas de pouco tem valido este
extremado sebastianismo vitícola, pois o
processo apresenta-se como irreversível.
Ao ilhéu apenas poderá gravar na
memória a ideia de esplendor, que
caracterizou esse vasto período da
história insulana.
Ill - A VITICULTURA MADEIRENSE
A região vitivinícola da Madeira estende-
se por cerca de 1850ha, representando
2,5% da superfície total da ilha (782 km2)
e 8% da área agricultada (248 km2).
Tempos houve em que essa área era
superior, como em 1845 em que mercê da
redução derivada do oídio, ainda ocupava
2 500ha. Na primeira metade do séc. XIX
essa área, que se estendia a quase todo o
solo arável, do norte e do sul, cifrava-se
em cerca de 50% da área cultivada.
A vinha mercê das condições orográficas
e climáticas estende-se até aos 700
metros de altitude no sul e 300 metros no
norte. Igualmente a distribuição das
diversas espécies de vitis-vinifera - sercial,
verdelho, malvasia, terrantez - obedece a
um escalonamento em altitude; que aliado
às condições climáticas dão ao vinho
produzido as qualidades características:
- o sercial nas zonas altas entre os 600 e
700 metros, na área do Jardim da Serra e
no alto do Estreito de C. de Lobos, St.º
António.
- o verdelho, zonas intermédias junto ao
mar entre os 500 e os 400 metros, Ribeira
da Janela.
- o boal, desde os 400m. nas áreas ri-
beirinhas, Campanário, Ponta do Pargo.
- tinta negra mole, aos 300m., C. de Lo-
bos, S. Martinho, St.ª Cruz, Gaula.
- malvasia, nas zonas baixas junto do
mar, conhecidas por fajãs, Fajã dos
Padres, Paul e Jardim do Mar, Arco da
Calheta, Madalena, Canhas.
Estas são as castas mais apreciadas que
deram nome ao vinho da Madeira,
infelizmente no séc. XIX com a filoxera
muitas destas foram exterminadas ou
preteridas em favor das cepas
americanas, resistentes à filoxera e de
maior produção. Tardou e ainda continua
a tardar a reconversão da viticultura
madeirense, facto que vem contribuindo
para uma certa desconfiança por parte do
potencial mercado consumidor.
A cultura da vinha na ilha faz-se desde
tempos imemoráveis em latadas, armadas
sobranceiras aos passeios, terreiros,
veredas ou nos poios construídos encosta
acima a partir do litoral. Entretanto
nalgumas regiões do norte da ilha
predominou durante muito tempo a vinha
de pé ou as bolseiras. Mas hoje é do-
minante o sistema de latadas construídos
com arame.
A faina vitícola estende-se por todo o ano
agrícola, obrigando o viticultor madeirense
a uma acção constante de cuidados. Mas
sem dúvida, o período de maior actividade
situa-se na época da vindima, que decorre
de Agosto a Outubro. De Janeiro a Julho
as tarefas e cuidados assíduos com a
vinha surgem espaçadamente de acordo
com o ciclo da vinha:
- em Janeiro poda-se, cava-se e aduba-
se.
- de Maio a Junho sulfata-se, esfolha-se e
enxofra-se.
O viticultor madeirense faz das suas vi-
nhas um jardim e a ele se dedica o ano
inteiro, acompanhando a passo e passo o
evoluir da videira e o aparecimento,
crescimento e amadurecimento do cacho
do qual extrairá o vinho.
De Agosto a Outubro o meio rural anima-
se com a azáfama das vindimas, atraindo
forasteiros e assalariados sazonais.
Velhos, adultos, novos e crianças, numa
alegria inexcedível marcada pelos
cantares regionais, povoam os vinhedos e
áreas circunvizinhas dos lagares.
Enquanto os velhos e novos, munidos de
facas e navalhas, cortavam os cachos e
enchiam os cestos «vindimos», os homens
de «molhelha» ao ombro transportam os
barreleiros acogulados ao respectivo
lagar.
Ao findar o dia, terminada a apanha da
uva, os homens, de pé descalço e calça
arregaçada, esmagam as uvas fazendo
cair o mosto na tina. Ao longo da noite
prossegue esta árdua tarefa com a impesa
e repisa, acompanhada de um farto
manjar regado com vinho e aguardente,
de modo a que a noite se anime com os
cantares cadenciados. Depois, alta
madrugada, os homens munidos de bor-
rachos ou barris transportam o mosto às
adegas.
Nos tempos que decorrem esta fama per-
deu todo o seu aspecto busólico que a
caracterizava, ao mesmo tempo que
retirou ao homem o fardo pesado. A
tecnologia moderna veio substituir o
homem e amenizar as suas tarefas, de tal
modo que não mais vimos os borracheiros
ou barrileiros e os lagares de vara vêm
sendo substituídos por prensas me-
canizadas ou máquinas mais avançadas.
Mesmo assim em certas zonas
permanecem estes hábitos arcaizantes a
dar um traço peculiar à paisagem; no
Porto da Cruz, por exemplo, o vinho
americano ainda continua a ser trans-
portado em borrachos.
Tempos houve em que a produção de
vinho na ilha atingiu as 40.000 ou 20.000
pipas, sendo 1/3 de superior qualidade.
Na actualidade o seu volume não
ultrapassa as cifras referentes ao de
superior qualidade.
IV - O MADEIRENSE E O VINHO
- VINIFlCAÇÃO
Se ao madeirense, em geral, é facultada a
arte e engenho da viticultura, a
vinificação, pelo contrário, mantém-se no
segredo dos deuses, sendo tarefa da
exclusiva responsabilidade do
comerciante do Funchal.
O Funchal, feitas as vindimas, adquire
uma nova dinâmica que se prolongam por
alguns meses; o tempo suficiente para
fazer fermentar e envelhecer o vinho na
estufa. Depois as restantes tarefas que
imprimem ao vinho as características
químicas e organolépticas fazem-se
espaçadamente ao longo dos anos
enquanto o vinho envelhece nas escuras
adegas.
A urbe funchalense setecentista e oitocen-
tista adquiriu uma nova fisionomia; a área
ribeirinha da alfândega e porto apinham-se
de complexos vinícolas dos exportadores
de vinho, compostos por lojas escuras e
espaçosas, uma estufa e oficina de
tanoaria num ambiente amenizado por
corredores e latadas de vinho.
Até meados do séc. XVIII apenas se co-
nhecia o envelhecimento e trato no
canteiro, foi a partir de então que se
experimentaram novos processos,
primeiro com o adicionamento de
aguardente, depois com a estufagem
(1794). Este último processo generalizou-
se e hoje em dia todo o vinho Madeira é
submetido à estufagem durante três
meses, findos os quais permanece 3 ou 4
anos no canteiro até ser engarrafado.
O trato aliado às condições mesológicas
imprimem ao vinho produzido
características gustativas inestimáveis e
inconfundíveis:
- o malvasia - SWEET - conhecido pela
sua doçura e aroma, que se serve a
acompanhar o queijo.
- o bual - MEDIUM SWEET - vinho
equilibrado que sabe bem em todos os
momentos, devendo beber-se acompa-
nhado com doces, nomeadamente o
bolo de mel.
- o sercial - DRY - côr de topázio claro,
seco e alcoólico, sendo habitualmente
usado como aperitivo a acompanhar
azeitonas e peanuts.
- Verdelho e Terrantez - MEDIUM DRY -
cor de rubim, apreciado em todos os
momentos, ou como aperitivo, sendo
servido habitualmente a acompanhar a
sopa.
V - 0 VINHO DA MADEIRA NO MUNDO
Desde o séc. XV que o vinho ilhéu traçou
a sua rota no mercado internacional,
acompanhando o colonialista europeu nas
suas expedições e fixação na Ásia e
América. O comerciante inglês, aqui
implantado desde o séc. XVII soube tirar
partido deste produto fazendo-o chegar
em quantidades volumosas às mãos dos
seus compatriotas que se haviam
espalhado pelos quatro cantos do mundo
colonial europeu.
Vários factores de ordem conjuntural fi-
zeram com que o comerciante inglês se
instalasse na ilha e cá se afirmasse como
um potencial negociante do seu vinho.
Destes podemos salientar: Richard
Pickford (1638/82), W. Boltom
(1695/1714), James Leacock (1741),
Francis Newton (1745), Blandy (1811).
O movimento do comércio do vinho da
Madeira ao longo dos sécs. XVIII e XIX
imbrica se de modo directo no movimento
das rotas marítimas coloniais que tinham
passagem obrigatória pela ilha na ida. A
estas rotas fundamentais se juntavam
outras subsidiárias. De um modo geral
estas ordenavam-se segundo aquilo a que
se ousou chamar comércio de
triangulação, dando assim ao comércio do
vinho da ilha características peculiares;
são as rotas da Inglaterra colonial que
tocam a Madeira para refresco e carga de
vinho e se dirigem ao respectivo mercado
das índias Ocidentais e Orientais, donde
regressam, via Açores, com o recheio
colonial. São os navios portugueses da
rota das índias, ou do Brasil que fazem
escala na ilha onde recebem o vinho que
conduzem às praças onde se dirigem,
donde regressam com o saque pelo largo
passando pelos Açores. São, ainda, os
navios ingleses que se dirigem à Madeira
com manufacturas e fazem o retorno
tocando Gibraltar, Lisboa, Porto. E,
finalmente, os navios americanos que da
América trazem as farinhas para a ilha e
regressam carregados de vinho.
A impedir e bloquear este movimento te-
mos as guerras europeias e coloniais, a
acção dos piratas argelinos, insurgentes...
E, finalmente, as condições climáticas, os
ventos e correntes marítimas; as primeiras
restringindo o trânsito atlântico a
determinadas épocas, as segundas
demarcando as rotas aos veleiros.
Por todas estas razões o vinho ilhéu con-
quistou, desde o séc. XVI o mercado
colonial europeu na África, Ásia e América
afirmando-se até meados do séc. XIX
como a bebida por excelência do
colonialista e das tropas coloniais em
acção. Regressado o colonialista à sua
terra de origem, depois do surto do mo-
vimento independentista, trouxe na
bagagem o vinho da ilha e fê-lo apreciar
pelos seus patrícios.
O momento de apogeu de exportação do
vinho da ilha para estes mercados situa-
se entre finais do séc. XVIII e princípios
do séc. XIX, altura em que a saída atingiu
a média de 20.000 pipas. Durante este
período mais de 2/3 do vinho exportado
destinava-se ao mercado colonial
americano, de que se destacam as
Antilhas, as plantações do sul da América
do Norte e N. York. A primeira metade do
séc. XIX é pautada por uma acentuada
alteração na geografia do mercador
consumidor do vinho da Madeira ; é o
período de afirmação dum novo mercado
para cobrir as exigências de novos e
velhos apreciadores. A Inglaterra, Rússia
tomam o lugar do mercado colonial a
partir de 1831.
VI - CONCLUSÃO
Hoje, passados mais de quinhentos anos
sobre a introdução da vinha na Madeira,
todos nós mantemos bem vivo no rol das
nossas recordações os tempos áureos do
comércio e apreciação do vinho ilhéu.
Mas, infelizmente, hoje essa imagem
histórica que marcou o nosso vinho foi
defraudada ou rejeitada; defraudada
porque depois dos momentos de grande
procura se fazia vinho Madeira de tudo e
mais tarde com a filoxera se substituiu as
castas nobres pelo produtor directo,
resistente ao insecto e de maior
rentabilidade; esquecida ou rejeitada
porque o ilhéu fez desaparecer a maior
parte dos testemunhos materiais que
documentavam esse provir, destruindo ou
lançando ao lixo os últimos resquícios
desses momentos de esplendor, isto de tal
modo que nos tempos que decorrem são
poucos os restos disponíveis que possam
ser utilizados ou depositados em lugar
conveniente, de modo a que possamos
legar aos nossos vindouros aquilo que os
nossos pais e avós menosprezaram.
Que perspectivas para um vinho que du-
rante muito tempo apenas teve como
suporte de comercialização a sua imagem
histórica rememorada por monarcas,
poetas ou dramaturgos?
Que fazer perante uma actividade
vitivinícola rotineira e costumeira alheia
aos avanços tecnológicos e botânicos?
Estas e muitas mais questões pairam no
panorama político-económico regional
faltando aqui e acolá soluções adequadas
capazes de reabilitarem ou fazerem
perdurar a imagem, fama e qualidade do
vinho da Madeira.
Na visão do historiador, o vinho da Ma-
deira celebrado e saboreado por
monarcas e aristocratas quinhentistas e
seiscentistas, companheiro de viagem de
exploradores e colonialistas setecentistas
e oitocentistas; aquele que os deuses do
Olimpo se o bebessem trocavam pelo
néctar; perdeu-se nos pergaminhos da
história.
A capacidade e ganância do ilhéu oito-
centista fê-lo perder qualidades e clientes.
E, a natureza castigou-o com o oídio e
filoxera, fazendo destruir as cepas que
produziam o vinho afamado.
Das soluções à reposição do «status quo»
caduco passaram muitos anos e o
potencial apreciador do rubinéctar insular
fê-lo substituir pelas hodiernas bebidas
alcoólicas.
A História é um movimento irreversível e
progressivo da acção do Homem, daí que
o historiador manifeste o seu desagrado
com as medidas ou soluções que militem
uma reposição num meio onde se torna
impossível. Apenas nos resta, a nós
(historiadores e historiados) agarrar o fio
condutor do tempo e retemperados com
as exigências e acções passadas avançar
pelo rumo que o passado/presente nos
traçar.
Deste modo a vitivinicultura madeirense
está carecida duma política capaz de
abarcar os problemas existentes, cujas
raízes históricas são muito profundas, a
qual passa pela existência duma região
demarcada e a condução, até às últimas
consequências da reconversão da vitis
vinífera, repondo o conjunto de castas que
deram e continuam a dar nome à ilha.
Praz-nos salientar a acção e impulso do
Instituto do Vinho da Madeira que teima
em dar aos nossos avoengos a imagem
merecida do vinho ilhéu.
NOTA:
Para a elaboração desta breve resenha
histórica sobre o vinho da Madeira servimo-
nos do material colhido para a elaboração de
alguns trabalhos, em vias de publicação, sobre
o referido tema. Remetemos as informações
complementares e a constatação do que aqui
se refere para os seguintes textos:
1.º - O vinho da Madeira - séculos
XVIII/XIX (produção, preços, circuitos e
mercados). No prelo.
2.º - O vinho da Madeira - Álbum. No
prelo.
3.° - História do Vinho da Madeira, séculos
XV a XX
ANTOLOGIA DE TEXTOS
ALUSIVOS AO VINHO
DA MADEIRA
Ao saborearmos um cálice de vinho
Madeira velhíssimo, ficamos extasiados
pelo seu aroma e sabor pondo de parte a
imagem que o mesmo reflecte, da sua
laboração há já um ou dois séculos; a
época de esplendor do vinho da Madeira.
Ignoramos a parte amarga: o colono na
sua labuta diária no campo e nas adegas,
o árduo trabalho das vindimas, os
borracheiros no seu passo cadenciado,
denunciado pelo eco dos seus cantares,
por entre as encostas da Ilha.
Para podermos recriar essa ambiência
temos que agarrar os restos materiais e
fazê-los reviver na sua labuta sazonal, ou
antes fazer desbobinar o filme que se
esconde por entre a ferrugem e a traça.
Os restos materiais, já carcomidos pela
traça e ferrugem e, ainda, exalando o
aroma característico do vinho Madeira,
são o único elo de ligação com esses
momentos de esplendor.
No princípio, foi a idade da madeira com
as latadas, o almude, o funil, o barril e o
lagar; depois tivemos a idade dos metais,
com as prensas, medidas de cobre e
folha, os filtros, cubas...; e, finalmente na
era da tecnologia, altamente sofisticada,
toda essa utensilagem foi devorada em
favor d'outra padronizada e
universalizada.
Os materiais ora expostos traçam-nos a
História e Ciclo de Vida do Vinho da
Madeira: - A enxada, o podão, a máquina
de sulfatar, o fole, documentam a faina
vitícola de Janeiro a Julho.
- Os cestos, o lagar, a prensa, as medidas,
o barril recriam-nos a ambiência
característica da faina das vindimas.
- O borracho aviva-nos o ambiente
nostálgico das manhãs e tardes de
Setembro, em que os borracheiros
animam a paisagem com o seu cantar ca-
denciado e triste. Hoje, o barril e
posteriormente o automóvel destronaram-
no.
- A tanoaria, com a sua utensilagem
característica, a partir da qual o tanoeiro
trabalha a madeira, com engenho e arte.
- Os materiais de laboratório - pipetas,
alcoómetros, colorímetros, areómetros,
ferrómetros... - que apuram a qualidade e
trato do vinho.
- Os materiais de engarrafamento -
máquina de encher, de capsular,
rotular - que preparam o célebre
rubinéctar de modo a que possa chegar
atempadamente ao lugar de consumo.
São vestígios de um passado, relíquias
preciosas até hoje esquecidas, que
atestam o viver e a faina quotidiana dos
nossos vindouros.
- Há três cousas por excelência boas e
deliciosas na Madeira: é o clima, são as
mulheres e são os vinhos; umas como
outras, como que nos embriagam; umas
como outras são dignas de elogio e
pedem apreciações moderadas.
É que o clima excita-nos a vida, é que
tanto as mulheres como os vinhos sabem
enlevar o espírito fazendo palpitar
corações. (...)
O vinho não é uma simples combinação; é
um problema de gosto, é um alimento e
um grande agente terapêutico de primeira
ordem.»
- Perfuma e alegra o solo um vinho
histórico, produto de castas primitivas,
sangue de raça a perpetuar na ilha o
nome de Portugal. Foi este vinho
companheiro dos colonos na rota da
descoberta; postou-se de guarda à porta
de suas casas, de braços abertos, numa
ramada acolhedora a parentes, amigos e
vizinhos; dá-lhe vida no trabalho; vibra-lhe
na alma em festas de família e todos os
anos se renova no barril ou quartola para
o aquecer no Inverno, estugar-lhe o passo
nas romarias do Verão, firmar promessas,
selar contratos, fechar negócios e ser
providência económica no seu lar.»
- O vinho da Madeira correu mundo -
singrou por todos os mares e rompeu
todas as fronteiras. Está
permanentemente nos festins de
Francisco I de França e de Carlos II da
Inglaterra; faz parte das refeições de
Fernando da Bulgária e é colocado nos
porões da nau-cárcere que conduz
Napoleão ao cativeiro de Santa Helena.
Anda por congressos internacionais,
conquistando fama e enriquecendo-se e
prémios, desde a medalha de ouro à
legião de Honra. (:...)
Ê oferecido a reis e a príncipes regentes, a
chefes de estado e a ministros, a senhores
feudais e a burgueses opulentos...
O vinho de Anacreonte, que o levava a
coroar-se de rosas quando esvasiava a
última taça, não seria um malvasia de cuja
casta vieram para a Madeira algumas
cepas?...»
O MADEIRENSE MODELA O ROCHEDO
E o vilão ataca e tritura a rocha para a
transformar em solo agrícola; geme sob o
peso de enormes pedras para construir
um socalco; marinha pelas falésias para
conquistar um palmo de terra, mesquinha
gleba, pouco maior por vezes do que um
ninho de águias alcandorando no pendor
de uma fraga. Antes de ser agricultor, é
cabouqueiro e arquitecto. Labuta de sol a
sol e transforma o seu horto, a sua
courela, num jardim. Onde a água corre, o
agricultor heróico e operoso faz milagres;
a levada empurra-o e ele empurra a
levada. Novos poios se sobrepõem a
outros poios, e assim esse trabalhador
humilde, além de transportar sobre os om-
bros o peso da sua cruz, constrói nos
degraus da montanha o seu próprio
calvário, lã a Madeira sobrepovoada que
luta heroicamente para viver.
Este vilão madeirense, de torso hercúleo,
máscara rude e austera, personificação
da paisagem, figura de painel
quinhentista; o homem que cinzela
montanhas, escala abismos e amansa
torrentes, é uma figura estranha. Não se
deixou vencer pelas seduções traiçoeiras
do clima desta antessala dos trópicos que
despertam em nós, lusíadas indolentes,
sonhadores e sensuais, o horror ao
esforço paciente e metódico. A meus
olhos, o vilão é um português que teve a
coragem de partir a guitarra, aquela
guitarra que todos nós trazemos na alma
e no coração a consolar-nos, cora seus
acordes de plangente fatalismo, dos
desencantos e dos fracassos da vida.
A VINHA NA MADEIRA
EXCLUSIVISMO DO VINHO
- O vinho é o único género abundante que
produz esta ilha e faz toda a sua riqueza é
a moeda que mais gira como equivalente
do mais que importa para sustento de
seus habitantes alimentados unicamente
do seu produto sem recurso de nenhuma
outra produção de outras bebidas
capazes de adulterar os vinhos bons de
embarque ou paralisar a venda dos baixos
nas tabernas, que desta forma não
vendidas se exportam com descrédito dos
legais de embarque.
- A Madeira é uma província de precária
subsistência e não produz grão que
chegue para consumo de dois meses e
outros vegetais frutuosos apenas darão
subsistência para mais um mês, de ma-
neira, que o sustento de 8 para 9 meses
lhe é importado. Ela não tem fábrica, nem
produção alguma outra filha da natureza,
ou de arte que socorra a esta e as outras
precisões, além dos seus vinhos ge-
nerosos.
O VINHO CAI EM DESGRAÇA
As aturadas guerras continentais e o
recíproco bloqueio que impuseram o
governo inglês e Napoleão Bonaparte,
fizeram com que a ilha da Madeira se
encontrasse com vinhos no mercado
inglês e ser por isto ela só quem fornecia a
Grã-Bretanha e suas imensas colónias
deste artigo. Foi por esta simples causa
que este produto do seu solo obteve uma
demanda prodigiosa a par de um prego
excessivo e por esta só também simples
razão os habitantes destas ilhas
abandonaram toda a espécie de
agricultura e indústria que não fosse a
cultura dos vinhos, fazendo-se
indiscretamente dependentes da sorte,
boa ou má deste só único produto. Com o
produto das vinhas pagavam toda a classe
de artigos necessários à vida e de luxo e,
apesar de tudo a circulação de então em
metais preciosos foi prodigiosa, a pro-
priedade civil e rural se elevou a um valor
difícil de se acreditar e a principal de
todas, o jornal seguiu a mesma proporção
regulando e sendo regulada pelo valor dos
vinhos e de toda a espécie de pro-
priedades.
Após dos ingleses que se apoderaram do
comércio e das riquezas acidentais que
promoviam, veio o luxo e este fatal
companheiro da riqueza também seguiu
aos habitantes destas ilhas em todas as
suas direcções.
Tal era o estado da província em 1815,
quando pela queda de Napoleão
Bonaparte teve lugar a paz continental. É
pois nessa época que principiam as
misérias desta ilha, ainda que desde esse
instante se não manifestassem, porém foi
desde então que as nações do continente
ficaram habilitadas a concorrerem ao
mercado inglês e do mundo com os
vinhos da Madeira e ainda mais a suprir
esta província dos géneros e do mundo
com os vinhos da Madeira e ainda mais a
suprir esta província dos géneros de
primeira necessidade que possuindo-os
como é da natureza desta operam
infinitamente mais baratos e regulando
estes toda a espécie de valores, lançaram
estas causas e esses efeitos a esta
capitania em embaraços extraordinários,
porém consequentes.
A imensa circulação de capitais, a carestia
consequente dos jornais e a exclusão que
tinham seus vinhos no mercado inglês
formou a base natural da carestia deste
produto. A paz continental rompeu toda a
espécie de equilíbrio nas relações e
interesses desta ilha.
As nações da Europa que pela guerra
tinham sido distraídas dos exercícios
pacíficos e pelo bloqueio continental
privadas de concorrerem com seus vinhos
no mercado a par dos da Madeira, se
apressaram ansiosas a aparecer com este
produto não só no mercado inglês, mas
também no do Mundo. Em tempo desse
bloqueio as nações que o sofreram se
aplicaram a criar entre si recursos de toda
a espécie e que conforme as visitas do
seu valor criaram em último resultado a
base da independência desses povos.
A Madeira nesse tempo mais feliz, excluiu
pela mesma razão toda a espécie de
agricultura e indústria que não fosse a
criação dos vinhos. B por isto que agora
se vê nas tristíssimas circunstâncias de
compra de todo o artigo de necessidade e
luxo e essas nações que habilitadas agora
com a paz, com esta província igualmente
concorrem com os vinhos infinitamente
mais baratos. Se a isto se acrescenta a
natureza custosíssima da agricultura da
Madeira comparada com a dessas nações
que além de a fornecerem de trigo e milho
e, enfim, de tudo, rivalizam com ela com
seus vinhos por preços inferiores, se
achará à primeira vista a razão da posição
desesperada e difícil em que estes povos
se encontram agravados cada vez mais
por outras causas imediatas, acidentais e
secundárias, que por sua enorme
gravidade e transcendência passo a
expor.
No tempo da prosperidade, os ingleses
aqui estabelecidos com o fim de
amadurecer os vinhos e de dar a maior
quantidade possível ao mercado, es-
tabeleceram as estufas, nas quais fazendo
ferver os vinhos lhe davam uma
naturalidade ou velhice forçada e
prematura e como tais os vendiam. Então
pela escassez deste artigo no mercado
inglês e do mundo, livre do bloqueio
continental foi dissimulada ou não
advertida esta falsificação, sempre em
descrédito da real e superior qualidade
dos vinhos, como também da pública fé;
por uma fatalidade e ao mesmo tempo
justiça os médicos decidiram que os
vinhos da Madeira e não havendo uma
corporação poderosa, que revestida de
certos privilégios separasse os bons
vinhos dos maus, todos caíram em
descrédito.
Por estas causas, os vinhos destas ilhas
têm. há seis anos ficado estancados nos
seus armazéns ou nos do mercado de
Londres e outras partes, pois o que se
tem embarcado de então para cá tem sido
mais objecto de uma operação forçada e
prejudicial, do que efeito de ordens
encomendadas para esses mercados.
Desde que esses transtornos tiveram lu-
gar foi preciso comprar tudo,
absolutamente tudo com o dinheiro que se
tinha acumulado no tempo dessa efémera
prosperidade, porém como o comércio
inglês era o comércio por excelência
destas ilhas e o que portanto se tinha
apoderado do seu giro grosso e meúdo,
esta apenas viu o transtorno a que estas
ilhas eram condenadas, passaram seus
principais agentes com seus capitais para
Inglaterra e outras partes, deixando
apenas seus caixeiros recompensados
com. a firma da casa, estes sem fundo
não puderam derramar espécie alguma de
recursos no país e só se destinaram a
exercer a perniciosa operação das
liquidações que não tiveram lugar nos
tempos de prosperidade. O comércio
nacional foi cousa que não existiu de 1810
e por isso sobre seus recursos nada se
pode ventilar nem esperar. O dinheiro que
nesse tempo se acumulou nas mãos dos
habitantes teria sido suficiente a amparar
este golpe se instantaneamente o luxo não
lhes houvesse arrancado.
A MOLÉSTIA DAS MOLÉSTIAS
Apareceu entre nós a moléstia das vinhas
em 1852, com ela a aniquilação completa
da produção quase exclusiva do nosso
país, da única produção agrícola que
ainda dava vida às nossas relações co-
merciais com os povos estrangeiros e de
que vivíamos bem ou mal...
Já antes da moléstia das vinhas, não
éramos ricos, nem felizes; a nossa
indústria agrícola a tropeçar todos os dias
em graves erros económicos não se
aperfeiçoara, nem desenvolvia, as vinhas
em muitas localidades não produziam as
despesas da cultura e pode-se dizer que
os lavradores as cultivavam, não já por
interesse, mas por amor, ou por uma
espécie de gratidão aos interesses
passados.
Já antes da moléstia das vinhas, milhares
de colonos abandonavam esta terra
desgraçada e emigravam para países
pestíferos da América, alguns levados, é
verdade, pela ambição e fascinados por
promessas sedutoras de vis aliciadores,
mas a maior parte fugidos da fome e
miséria.
Já antes da moléstia das vinhas éramos
um povo desgraçado, que marchávamos
descuidados e a passos surdos no
caminho que nos havia de conduzir à
ruína inevitável. Já nessas épocas
passadas, aquele que despertasse da
espécie de torpor em que todos jazíamos
e reflectisse um pouco, havia por certo de
antever um futuro mais horrendo e
assustador, do que o presente que tanto
nos assombra.
Então será porventura a causa única de
nossos males, ou a que devamos prestar
maior atenção, a moléstia das vinhas,
quando a despeito desta havíamos de
sentir aqueles? Ou será verdade que a
moléstia das vinhas não fez mais do que
apressar uma crise, porque mais cedo ou
mais tarde, havíamos de passar devido a
outras?»
DA DESGRAÇA AO DESEJADO
Do vasto Oceano flor, gentil Madeira,
Que de murta viçosa o cimo enlaças,
Sóbria a teu seio amamentando as Graças
Co' o vítreo suco da imortal Parreira.
Daquele, que em ti viu a luz primeira,
Se acaso é crível que inda apreço faças,
Entre o prazer das brincadoras taças,
Recolhe a minha produção rasteira.
É donativo escasso, eu bem conheço;
Mas o desejo, que acompanha a of'renda,
Lhe avulta a estima, lhe engrandece o
preço.
Deixa que a roda o meu Destino prenda;
Em cessando estes males, que padeço,
Talvez então mais altos dons te renda.
(
A desgraça da Madeira
foi a doença da vinha
escusa procurar mestre
p'ra aprender a doutrina
CULTURA DA VINHA
«As terras menos alagadas, como é
natural, são as que dão melhores vinhos.
Nas propriedades mais bem cuidadas, o
solo é aberto até à profundidade de dois
metros; o bacelo, plantado fundo, alonga-
se pelo gavião a procurar a humidade do
subsolo, única que lhe dissolve os
elementos necessários à sua nutrição.
Para que a vinha se não tente com a
alimentação fácil de Inverno, mas
improfícua no Verão, das mais altas
camadas de terreno, as raízes superiores
são cortadas permitindo-se-lhe
unicamente esse árduo trabalho de
mineiro que há-de garantir-lhe, por longos
anos, o sustento e a produção dos seus
saborosos e abundantes cachos de ouro.
Só no fim de três anos é que o bacelo dá
colheita apreciável. O seu tratamento não
é muito trabalhoso: dá-lhe uma cava em
Janeiro para arejar a terra, metendo-se-
lhe o empoçamento da água das chuvas e
o seu escoamento profundo na direcção
do pé.
Duas enxofrações, uma esfolha depois da
flor vingada, e outra mais tarde para
amadurecer o bago, é tudo quanto se
concede de mais privativo à vinha.
Indirectamente recebe ela outros
benefícios que visam ao desenvolvimento
de certas culturas hortícolas, medrando
sob as latadas durante o tempo em que a
ausência da folha permite a luz do sol
chegar ao terreno agricultado».
AZAFAMA DAS VINDIMAS
«Os colonos ao passo que as uvas
amaduravam, dirigiam-se ao senhorio ou
feitor a pedir licença para fazerem a
colheita, a apalavrarem o dia de em-
préstimo dos lagares. (...)
...por toda a parte, em montados, fajãs,
cabeços, fraldas da montanha, um agitar
de braços fazia estremecer as folhas das
vinhas. Velhos e gente nova, munidos de
facas e navalhas, cortavam os cachos que
lançavam para dentro dos cestos peque-
nos, os quais por sua vez, se despejavam
em barreleiros, que se enchiam, até que
as uvas, acamadas umas sobre as outras
para cima da roda da beira se
acogulavam.(...) trabalhadores a
carregarem os barreleiros às costas a
caminho do lagar...»
Por Regimento de 12 de Agosto de 1785
se regulamentou o processo das vindimas
na ilha, de modo a evitar os abusos
praticados pelos colonos, que «não
esperão que as suas uvas estejão perfei-
tamente sazonadas para as vindimarem;
nem no tempo da vindima fazem a precisa
escolha que se requer para que não se
misture o verde com o maduro...».
No mesmo regimento se estipulava a data
certa para a vindima em cada localidade,
ficando o cumprimento desta
regulamentação a cargo de um inspector
coadjuvado por inspectores locais.
TROVAS Á VINDIMA
O LAGAR TÍPICO MADEIRENSE
DESCRIÇÃO
A espremadura das uvas faz-se a pé
calcante, a dentro dum reservatório que
antigamente era um simples tronco
escavado, em geral de dragoeiro, que
constituía o velho lagar de coxo.
Fez-se depois de tábuas justas,
calafetadas em caixa aberta com biqueira
na base, sobre um suporte de traves,
encimando-o a vara do lagar, grossa viga
articulada num extremo e apoiada no outro
por uma porca, onde vem morder um alto
parafuso de madeira, ligado a um pesado
bloco de pedra. Esta suspende, ao elevar-
se o parafuso de pau branco, transfurando
a vara, e actua como reforço, premindo de
alavanca inter-resistente sobre o bagaço,
depois deste ter sofrido o primeiro piso, a
pé nu lavado.
Há pequenos lagares mais simples, sem
parafuso, e então o reforço do peso é feito
num prato, como os de balança decimal,
onde sucessivamente se vão colocando
pedras, aumentando a potência de
espremeção, sobre o «frascal», em forma
de pão de açúcar, formado pelos engaços
e folhelho, apertado espiralmente por uma
resistente corda fabricada de esparto ou
raízes de era.
(
EVOLUÇÃO
Pisam os homens as uvas nos lagares, de
calça arregaçada até ao joelho, músculos
estriados e faces congestionadas. E há 44
lagares em actividade, construídos de
cimento, assim como as tinas. Os de ma-
deira de til com tinas feitas de ripas
arcaizaram-se e aproveitaram-se as
tábuas. O cimento conferiu aos lagares
uma eternidade que a madeira não podia
dar. E, de feito, a substituição desta por
aquele trouxe vantagens ao lavrador. Pois
os lagares de madeira, todos os anos, por
altura das colheitas, tinham de ser
calafetados. Através das juntas das
tábuas, com o batuque das repisas e no
ardor ainda maior de tirar do bagaço a
água-pé, as pranchas davam de si e o
mosto começava de pingar. As tinas
apertadas por arcos de ferro também se
desconjuntavam. Deixou, portanto, de
haver a preocupação do conserto,
semanas antes das vindimas, além de
que era outra a durabilidade.
Introduziu-se, há muitos anos, a prensa
no lagar, mas, no norte da ilha não vingou
o moderno aperfeiçoamento da técnica no
espremer das uvas. Mais dispendioso,
menos pratico e de resultados não su-
periores ao processo primitivo. Pelo que o
sistema da vara corpulenta de pinho ou de
castanho e o fuso de pau branco, das
nossas serras, continua mantendo o
costume, posto que obsoleto, dos
avoengos. A mesma corda grossa a
enrolar o monte dos engaços, se bem que
o chincho a vá substituindo, as mesmas
peças de madeira, o tampão e os
dormentes, sobrepostos àquele e até
tocarem a parte inferior da vara, a mesma
pedra redonda, volumosa e pesada, com
um buraco ao de cima, onde sai um ferro
que se encaixa na base do fuso e se
prende a ele.
O TRANSPORTE DO VINHO
O BORRACHO
A pele (de cabra) emprega-se no fabrico
de borrachos (odres) para transportar
vinho dos lagares para os armazéns. O
borracho é feito de preferência da pele do
macho, voltada de dentro para fora, depois
de sangrado junto dum ouvido e de es-
folado pelas orelhas. Pelas aberturas do
pescoço e dos ombros, cortados nas
articulações inferiores, aparta-se a pele da
carne deixando parte do tecido da barriga
para fortalecer aquela nessa região. «Fe-
chado o borracho pelos membros e
extremidades deste é lavado interiormente
com água e cinza, a fim de se poder
arrancar mais facilmente parte do pelo. É
deitado em seguida a curtir num banho de
casca de vinhático que lhe dá uma cor
avermelhada. Passadas estas operações,
procede-se à insuflação do ar pela
abertura do pescoço, apertando o borra-
cho pela parte média para que forme
cintura e se torne mais cómodo para o
transporte (horizontalmente) sobre os
ombros. A suspensão faz-se ligando a
pele dos membros próximos, anteriores e
posteriores, em forma de ansas, as quais
se prende a testeira-arriscol-formada de
duas cordas paralelas (de lã, linho ou
estopa entrançada) que vem apoiar--se
sobre o frontal do condutor»
CONDUÇÃO DOS VINHOS EM 1777
«...não se praticão as colheitas como no
reino, que vão passando dos lagares a
encubar nas adegas, mas como as terras
estão aqui divididas em porções módicas
de colonos, estes pisando suas módicas
porções, que logo imediatamente
conduzem a meia parte respectiva ao
senhorio para a cidade, nem dão lugar a
tirar guias, o que é impraticável por ser a
condução em barris de dois almudes, ou
odres sobre ombros de homens, porque a
escabrosidade dos caminhos faz
impraticáveis outras condições.»
A CORÇA
...aqui não há barros, há um equivalente,
vem a ser um madeiro, que é conduzido
de rastos, preso ao jugo dos bois, a que
dão o nome de corça. E este veículo
conduzem pipas de vinho, pedras, paus de
todo o tamanho, pesos extraordinários...
O BARCO
Enchem-se as pipas que os camiões hão-
de levar para a cidade. Vieram eles em
corças que arrastavam juntas de bois,
seguiam para o calhau. Eram amarradas
em grossas cordas e, uma atrás da outra,
empurradas pelos barqueiros na maré-
cheia, geralmente, quando a ondulação
permitia. O bolinete de bordo enrolando a
corda presa à primeira pipa ia puxando a
bicha enorme de pipas.
VINIFICAÇAO MADEIRENSE
Era então pequeno o número de cepas,
principalmente cultivadas na Madeira:
verdelho, malvasia, boal, sercial, tinta. O
vinho feito de uvas de uma só variedade
tomava o nome da cepa que o produzia;
quando no vinho entravam uvas de
diversas variedades, ele tomava o nome
de vinho Madeira.
Na apreciação do vinho tinham-se em
conta o sítio e a exposição; a maturação
da uva, que muitas vezes se queria que
estivesse meio passada, o que exigia
sempre uma rigorosa escolha, para que o
vinho da uva bem madura ficasse
separado do da uva menos madura, que
era chamado vinho de escolha, ou vinho
verde; os anos mais chuvosos e frios
eram cuidadosamente notados nas
reservas anuais; de modo que quando as
casas exportadoras compravam o vinho
antes da colheita, os cultivadores não
tinham, geralmente licença para a
vindima, senão depois de terem sido
enviados inspectores para essas casas,
para verem se as uvas estavam capazes.
Mas, a esse tempo, os exportadores, para
mais segurança costumavam comprar o
vinho, depois de claro, aos colonos, aos
senhorios ou a comerciantes
intermediários. Por isso a colheita da uva
era feita sempre com maior cuidado; só
depois o vinho ia dos lagares para as
adegas; onde permanecia enquanto
fermentava.
Se era sercial, a fermentação durava
enquanto havia açúcar no vinho, que por
isso, ficava seco e mais alcoólico, e se
tornava, depois mais aromático. Se era
malvasia ou boal, numa palavra, era vinho
que não contivesse fermentos suficientes
para desdobrarem todo o açúcar, o vinho
ficava doce, menos alcoólico, e não se
tornava tão aromático.
Se era vinho Madeira ficava, mais ou
menos doce, mais ou menos aromático
segundo as variedades das uvas que o
tinham produzido.
O vinho era especialmente notável por sua
cor escura que perdia com o tempo».
O vinho clarificava «quando os fermentos
tinham desdobrado todo o açúcar, ou
quando havia mais fermentos em
actividade que desdobrado sem o
açúcar». A partir de então retirava-se as
borras e os exportadores os conduziam ao
trato no canteiro. Os vinhos menos
alcoólicos incapazes de manter inertes os
fermentos eram submetidos a maiores tra-
tamentos com clarificações, balde, celha e
por vezes a clarificação deveria fazer-se
com ovos, goma, leite, sangue, barro.
O sercial, de todos o mais alcoólico, é
também o que requere menos trabalho (...)
Mas ao passo que as clarificações e
transfegas se iam tornando menos
frequentes à medida que os fermentos iam
sendo eliminados, o vinho ia perdendo,
sem sair do canteiro, o gosto, o sabor, o
cheiro e cor de novo, e adquirindo o gosto,
sabor, o cheiro e a cor de vinho mais
velho; até que quando, passados quatro
ou cinco anos, o vinho podia conservar-se,
por muito tempo, sem alteração, em
vasilha fechada e longe de vinhos mais
novos, era considerado pronto para
consumo, tendo adquirido as qualidades
especiais que o caracterizavam.
Assim o sercial, côr de topázio claro,
tornava-se seco, muito alcoólico e muito
aromático; o malvasia, também côr de
topázio, talvez mais apertada, do que a do
sercial, conservara-se menos doce do que
o malvasia mas tornara-se um pouco mais
alcoólico e menos aromático; o boal, de
côr semelhante à do sercial, conservara-
se menos doce do que o malvasia mas
tornara-se um pouco mais alcoólico e
aromático; o tinto, era especialmente ca-
racterizado pela sua côr escura que os
anos fazia desaparecer; o Madeira, em
que encontrava, em grande parte o
verdelho e, muitas vezes, o tinta a côr de
rubim mais ou menos viva e apresentava
qualidades um pouco variáveis, segundo
as variedades das uvas que nele
predominavam.»
A ESTUFA
Consiste o processo de estufar vinho, na
seguinte maneira. Qualquer que seja o
edifício (em geral são de abóbada), deve
ser hermeticamente rebocado a estuque,
deixando-se-lhe apenas a porta por onde
entra o vasilhame, a qual é também
entaipada, depois que a cascadura se
acha estivada dentro, e apenas se lhe
deixa um postigo por onde um só homem
possa caber, para ir diariamente examinar
com uma lanterna se há novidade dentro.
No edifício deve haver uma fornalha,
praticamente no interior, porém de
maneira que facilmente seja alimentada de
fora com o necessário combustível, findo o
que é fechada. Em todo o circuito do muro
da mesma estufa há um cano ou tubo de
cantaria ou tijolo, que faz circular o intenso
calor da fornalha por toda a parte, calor
que muitas vezes excede a 160 graus de
Farenheit, e então líquido ferve dentro da
vasilha, como uma chaleira em cima de
brasas, tendo-se-lhe previamente feito um
furo no fundo superior para não
arrebentar. Durante 3 meses ou 100 dias
se acha nesta contínua fermentação na
qual perde em geral 10 p 100 da sua
totalidade; então apaga-se a fornalha e
dias depois vão as pipas para o canteiro a
fim do vinho ser tratado. Ê notável, que até
durante o mais auge do calor, entrão neste
Inferno artificial homens a isso
costumados, e com a ajuda da lanterna
correm os sinuosos espaços com que o
vasilhame está estivado, o estancão
facilmente algum esvaziamento, ruptura
ou broca.»