o vento me soprou - perse · o homem, intransitivo e intransigente, é chamado à transi- gência,...

15
Ana Paula Lemes de Souza O vento me soprou...

Upload: phamdan

Post on 09-Nov-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Ana Paula Lemes de Souza

O ventome soprou...

São Paulo - 2010

Ana Paula Lemes de Souza

O ventome soprou...

1ª edição

créditosEsta obra é uma publicação da

Editora Livronovo Ltda.CNPJ 10.519.646/0001-33www.livronovo.com.br© 2010. São Paulo, SP

Editor-responsávelZeca Martins

Projeto gráficoFábio Aguiar

Controle editorialBianca Lucinda Gonçalves

DiagramaçãoEstúdio Criare

CapaZeca Martins

Ilustração de capaGabriel Lemes de Souza

RevisãoRaquel Benchimol (coordenadora)

Ao adquirir um livro você está remunerando o trabalho de escritores, diagramadores, ilus-tradores, revisores, livreiros e mais uma série de profissionais responsáveis por transformar boas ideias em realidade e trazê-las até você.

Catalogação na Fonte. SNEL – Sindicato Nacional dos Editores de Livros. Rio de Janeiro, RJ

Impresso no Brasil. Printed in Brazil.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser copiada ou reproduzida por qualquer meio impresso,

eletrônico ou que venha a ser criado, sem o prévio e expresso consentimento dos editores.

S713v Souza, Ana Paula Lemes de, 1989- O vento me soprou... / Ana Paula Lemes de Souza. - São Paulo : Livronovo, 2010. ISBN 978-85-62426-27-8 1. Conto brasileiro. 2. Crônica brasileira. 3. Poesia brasileira. I. Título.

10-2345. CDD: 869.93 CDU: 921.134.3(81)-3

19.05.10 27.05.10 019309

À Sarah que, desviando-me de meu caminho, abriu-me muitos outros.

PREFÁCIO

Este livro, como o título sugere, foi-me soprado em sussur-ros. São histórias migalhadas ao vento, que poderiam ter aconteci-do comigo, acontecido contigo ou acontecido em alguma esquina qualquer. Se não existiram, bom, foi o vento que me soprou. Assim, isenção à autora! Pois ganharam vida apenas no plano subjetivo e imperfeito da imaginação.

Alguns podem acusar minha literatura de ser a literatura que clama a voz dos sem-voz. Talvez isso seja apenas em parte verdade, pois, com ela, reclamo a igualdade dos desiguais. O homem é cha-mado ao desprender, intrapessoal e interpessoal. Faço, então, a revo-lução sem voz. Pois meus versos são mudos, são nós desmanchados em uma tarde qualquer.

O homem, intransitivo e intransigente, é chamado à transi-gência, a projetar-se em muitas direções. É chamado a ventilar-se na solidariedade do mundo pós-moderno, a embriagar-se da diferença e não mais da desigualdade.

Meu livro é um aglomerado. É um tanto pessoal e é um tanto impessoal. É um tanto construção e é um tanto alienação. É abismo e é chão.

Ou, talvez, não seja nada disso. Mas, afinal, quem ousa encarar o espelho?

Bom apetite!

“Então, da escuridão, fez-se a luz. Mas foi uma luz rou-ca, ruidosa, temível! Pois era a luz da verdade. A luz que não enaltece, nem louva. Apenas um fulgor que cospe a sombra de que se embriaga. De verdades nuas e cruas. Que o vento sopre e a leve daqui para, a cada vez, ela aparecer como no primeiro momento em que a vi. Luzes que cintilam na ventilação da descoberta.”

Mandrágora

SUMÁRIOO Banqueiro e o MarginalO vendedor de sonhosO entardecer (Ou “O Mal do Alzente”)João NegrinhoArdor e dorA clave de solO homem das chavesA Bela AdormecidaO primeiro amorAs ruas da cidadeSer MãeMinhas descobertasPara meus amigos...Quem sou eu? Filosofando.Dona Didi...Sobre o tempo: Reflexões.RepulsaO redentor e o rebentoRetalhosSarahNenúfarDevaneios

11151923273335394143454749535761656769737577

11

2009

Arthur saía de mais um dia de trabalho estressante. Queria res-pirar ar puro, pois estivera longas horas enfurnado em sua sala. Um recinto de grande design e beleza, é claro, mas, ainda assim, somente uma sala. Até então, o dia parecia ser comicamente normal, as mes-mas atividades de sempre: supervisionar o funcionamento de seus subordinados, oferecer novos planos de pacotes bancários e, claro, oferecer novos empréstimos. Mas uma pergunta não queria calar. Era tempo de bois magros, mas sua classe sempre se dera bem, pen-sava ele, pois “banqueiros e grandes acionistas sempre lucram com o pacote anticrise econômica”. Ele era, afinal, um senhor responsável, dono de seus negócios, homem estimado entre colegas e logo a preo-cupação ia embora, mas voltavam os mesmos pensamentos cíclicos. Preocupações banais, sufocantes, “típicas de grandes homens, como ele”. Preocupações cotidianas. Paraísos fiscais, iates, scotchs, amantes. Era, sem dúvida, um senhor servido pela esposa, esta que era servida por brilhantes. Tinha filhos que estudavam nas melhores escolas do país e, apesar da idade, ainda era um bon vivant. Enfim, ia tudo de vento em poupa e de poupa em vento e otras cositas más.

Caminhava estritamente pela avenida, envolto em seus pensa-mentos cotidianos e repetitivos. Aspirava seu “bom e velho cigarro”, que lhe dava um luxo que ficou perdido nos anos 60. “Bons tem-pos”, pensava ele, vestido em terno e gravata.

O BANQUEIRO E O MARGINAL

12

Tão ocupado em seu próprio ego ele estava, que mal reparou que já escurecia. A rua parecia condenadamente vazia, quando, sem que ele pudesse perceber, um homem encapuzado o abordou. Uma arma estava apontada em sua direção, colada em seu peito, embora ele não pudesse perceber instantaneamente, de tão surpreso e per-plexo que ficou.

Não houve qualquer reação. Os olhos se encontraram. Dois olhos separados no espaço e no tempo que, de repente, encontra-ram-se no escurecer. Um rapaz que começa a viver, e nada tem, e um senhor que tudo tem e, de repente, teve seu velho mundinho em colapso.

Tratou-se, sem dúvida, daqueles segundos em que toda a vida passa diante dos olhos e em que toda futilidade perde o sentido. O outro cheirava a desespero, tinha as mãos trêmulas e apontadas in-certamente. Mas Arthur também cheirava a asco.

Para ele, o outro se tratava de uma classe parasitária da socie-dade, dessas que devem ser eliminadas, encarceradas, sem nenhum convés. Um mero trombadinha, ladrão e todas as adjetivações de quem vive além desse submundo.

Mas então, uma avalanche de pensamentos o dominou, trans-formando toda aquela situação ignóbil em uma luz, mas que foi uma luz tortuosa e vergonhosa. Percebeu então que o outro que lhe apontava não era somente uma possibilidade dele, mas que, no fundo, eram bem parecidos. E mais. Como invejava sua coragem, roubar dignamente, e não como vinha fazendo, enfurnado em sua sala, enfurnado em sua vida, em seus paraísos fiscais, roubando em nome da sua instituição, em nome de um bem-estar e salvaguarda da comunidade, quando, no fundo, era mais digno roubar pra comer. Percebeu então que tinha roubado também a vida de sua mulher, que poderia ter tido rumos melhores sem ele, que a traía sem pena e a compensava com presentes fúteis, que nada valiam. Tinha rou-bado de clientes sem face, que se perderam no caminho da estrada. Tinha roubado um amor paterno de verdade, que poderia ter dado

13

a seus filhos, em lugar de um amor material de bens econômicos e pouca ética. Queria possuir a imaterialidade, a vida livre, daquele que lhe apontava a vida.

Arthur nada tinha a oferecer, senão seu carro, seu paletó, car-tões de crédito. De repente, espelhos se refletiram. Um invejava ao outro, mas, por dentro, eram iguais, humanos, com medos e frus-trações. Não se conheciam, mas, naquele momento, olharam em seus espelhos e viram que eram ambos miseráveis: cada qual à sua maneira, mas viviam miseravelmente. Um, de bens, outro, de alma.

Arthur sentiu sua alma ser lavada, queria tudo dar. Queria re-nascer. Abriu os braços para abraçá-lo, abraçá-lo em um silêncio profundo e esclarecedor. Mas o homem, que nada sabia, não enten-deu o seu gesto louvável e partiu correndo, com um medo gritante estampado na face e lágrimas nos olhos. Sequer deu tempo de Ar-thur agradecer-lhe. Seu êxtase fora tão insofismável que nem ouviu o barulho ensurdecedor que disparou no silêncio monumental. Era um tiro, que partiu na escuridão. Renascimento...

14

15

2009

Era dia de domingo de Natal. A família estava toda reunida na sala para o jantar: mãe, pai, tia, avô, avó, primos, sobrinhos... De repente, alguém perguntou a Carlitos:

– Carlitos, o que você quer ser quando crescer?Nos seus oito anos de idade, a pergunta soou meio estranha.

“Ora!” – pensou Carlitos, tomado de surpresa – “Como assim o que quero ser quando crescer? Vou ser grande, oras!” Na sua cabeça de menino, ele não conseguiu apreender o significado daquela indaga-ção repentina, mas uma voz ficou ressoando durante um tempo em seu ouvido até que, então, de repente, ele soltou: “Vou ser vendedor de sonhos!”.

Na hora, a família inteira começou a rir. Ele mesmo chegou a rir, pois tentou analisar e explicar o que significava tal coisa e não conseguiu. Mas saiu tão repentinamente, tão espontaneamente... Ele se dirigiu à sala onde estava posta a árvore de Natal, afundado em sua inocência suntuosa.

Então, uma acalorada discussão tomou conta da mesa. Afinal, o que significava ser alguma coisa? Seria ser ou ter? Ser seria status? Seria emprego? O que era ser para o paradigma do mundo atual? As discussões se dividiam: os mais velhos tendiam a defender posições mais conversadoras e chegaram até a começar a traçar o futuro de

O VENDEDOR DE SONHOS