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    O VALORDA CINCIA

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    Henri Poincar

    O VALORDA CINCIA

    TRADUO

    Maria Helena Franco Martins

    REVISO TCNICA

    Ildeu de Castro MoreiraInstituto de Fsica da UFRJ

    4 reimpresso

    CONTRAPONTO

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    Ttulo original: La valeur de la science

    desta edio, Contraponto Editora, 1995 da traduo, Maria Helena Franco Martins, 1995

    Vedada, nos termos da lei, a reproduo total

    ou parcial deste livro sem autorizao da editora.

    CONTRAPONTO EDITORA LTDA .

    Caixa Postal 56066 CEP 22292-970

    Rio de Janeiro, Rj Brasil

    Telefax: (21) 2544-0206/2215-6148

    Site: www.contrapontoeditora.com.br

    E-mail: [email protected]

    l edio: julho de 1995

    4 reimpresso: agosto de 2011Tiragem: 2.000 exemplares

    Reviso de originais

    Csar Benjamin

    Reviso tipogrficaTereza da Rocha

    Projeto grficoRegina Ferraz

    CIP-BRASIL. CATALOGAAO-NA-FONTE

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    P812v Poincar, Henri, 1854-1912O valor da cincia / Henri Poincar; traduo Maria

    Helena Franco Martins ; reviso tcnica Ildeu de Castro

    Moreira. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995.

    180 p.

    Traduo de: La valeur de la science

    ISBN 978-85-85910-02-0

    1. Cincia Filosofia. 2. Cincia Histria. 1. Ttulo.

    CDD 501

    95-1094 CDU 5

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    Sumrio

    Cronologia de Henri Poincar 1

    Introduo 5

    Primeira parte As cincias matemticas 11

    I. A intuio e a lgica na matemtica 13

    II. A medida do tempo 27

    III. A noo de espao 41

    IV. O espao e suas trs dimenses 63

    Segunda parte As cincias fsicas 87

    V. A anlise e a fsica 89

    VI. A astronomia 101

    VII. A histria da fsica matemtica 109

    VIII. A crise atual da fsica matemtica 115IX. O futuro da fsica matemtica 127

    Terceira parte O valor objetivo da cincia 135

    X. A cincia artificial? 137

    XI. A cincia e a realidade 157

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    Cronologia

    1854.Jules-Henri Poincar nasce em Nancy, Frana, em 29 de abril,filho do mdico Lon Poincar.

    1862-1872.Estuda no Liceu de Nancy.

    1873-1875.Estuda na Escola Politcnica.

    1875.Ingressa na Escola Nacional Superior de Minas.

    1879.Completa o doutorado em cincias matemticas, defendendotese sobre equaes diferenciais. Darboux, integrante da banca, es-creve, profeticamente: um homem dominado pela intuio. Ten-do atingido seus objetivos, no refaz os seus passos, satisfeito por teraberto o caminho, deixando que outros cuidem de paviment-lo.Aprovado, Poincar nomeado engenheiro de minas e colocado disposio do Ministrio da Instruo Pblica, passando a lecionarna Faculdade de Cincias de Caen.

    1881.Torna-se mestre de conferncias da Faculdade de Cincias daUniversidade de Paris.

    1886. nomeado professor de fsica matemtica e de clculo dasprobabilidades da Faculdade de Cincias da Universidade de Paris.Assume, pela primeira vez, a presidncia da Sociedade Matemticada Frana (voltaria a faz-lo em 1900).

    1887.Por seus trabalhos em matemtica, eleito membro da Aca-demia de Cincias.

    1892.Publica o primeiro volume de Les Mthodes nouvelles de lamcanique cleste.

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    2 CRONOLOGIA

    1893. nomeado engenheiro-chefe de minas. Publica o segundovolume de Les Mthodes nouvelles de la mcanique cleste.

    1895.Publica Analysis situs, tratado pioneiro sobre topologia mate-mtica.

    1896.Torna-se professor de astronomia e mecnica celeste da Fa-culdade de Cincias da Universidade de Paris.

    1899.Assume, pela primeira vez, a presidncia do Bureau des Lon-gitudes (voltaria a ocupar este cargo em 1909 e 1910). Com um arti-

    go antolgico sobre o problema dos trs corpos, ganha o prmiomatemtico mais importante da poca, institudo pelo rei Oscar II,da Sucia e da Noruega, para trabalhos sobre um sistema gravitacio-nal constitudo por n corpos. O tema relevante para as discussessobre a estabilidade do sistema solar. Publica o terceiro volume deLes Mthodes nouvelles de la mcanique cleste.

    1901-1903.Preside a Sociedade Astronmica da Frana.

    1902.Torna-se professor de eletricidade terica na Escola Profis-sional Superior dos Correios e Telgrafos. Assume a presidncia daSociedade Francesa de Fsica. Publica La Science et lhypothese, quecausa forte impresso no jovem Einstein.

    1904.Torna-se professor de astronomia geral da Escola Politcnica.

    1905.Entrega para publicao um importante trabalho, Sur la dy-namique de lletron, no qual antecipa vrios resultados que seroapresentados por Einstein na teoria da relatividade restrita. PublicaLa Valeur de la science, retomando e aprofundando temas presentesem La Science et lhypothese. Antecipa a ideia de que a velocidade daluz inultrapassvel, discorrendo sobre a necessidade de se criaruma nova mecnica.

    1908. Publica Science et mthode, seu terceiro livro de ensaios dedivulgao. eleito membro da Academia Francesa.

    1910. nomeado inspetor-geral de minas.

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    1911.Publica Les Sciences et les humanits, em defesa da culturaliterria e da educao clssica.

    1912.Depois de uma operao, morre em Paris, em 17 de julho,provavelmente de embolia.

    1913.Seus ltimos artigos de divulgao em filosofia das cinciasso publicados postumamente em Dernires penses.

    1916-1956.Sua obra completa, em onze volumes, publicada pelaAcademia de Cincias.

    Em vida, Poincar publicou cerca de quinhentos trabalhos, princi-palmente em mecnica celeste, fsica, eletricidade e em todas as reasda matemtica, pura e aplicada. Foi membro de 35 sociedades cien-tficas de todo o mundo e doutor honoris causa de diversas univer-

    sidades. Recebeu muitos prmios cientficos a partir de 1872. Foimembro de inmeras comisses e conselhos a partir de 1897. Entreseus livros tcnicos, quase sempre baseados em seus cursos, desta-cam-se Potentiel et mcanique des fluides (1886); Thorie mathmati-que de la lumire, t. I (1899) e t. II (1892); Thermodynamique(1892);lectricit et optique, t. I (1890) e t. II (1891); Capillarit (1895); Le-ons sur la thorie de llasticit (1892); Thorie des tourbillons (1893);Les Oscillations lectriques (1895); Thorie analytique de la propa-gation de la chaleur (1895); Calcul des probabilits (1896); Thoriedu potential newtonien (1899); lectricit et optique: la lumire et lesthories letrodynamiques (1899); Leons de mcanique cleste (1905-1910); Leons sur les figures dquilibre dune masse fluide (1900);Leons sur les hypothses cosmogoniques(1910).

    CRONOLOGIA 3

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    Introduo

    A busca da verdade deve ser o objetivo de nossa atividade; o nicofim digno dela. No h dvida de que devemos nos esforar por ali-

    viar os sofrimentos humanos, mas por qu? No sofrer um idealnegativo que seria atingido mais seguramente com o aniquilamentodo mundo. Se cada vez mais queremos libertar o homem das preo-cupaes materiais, para que ele possa empregar no estudo e nacontemplao da verdade sua liberdade reconquistada.

    Entretanto, s vezes a verdade nos amedronta. E de fato sabemosque por vezes ela decepcionante, um fantasma que s nos apare-

    ce para fugir sem cessar, e que preciso persegui-la at mais e maisadiante, sem jamais conseguir atingi-la. E contudo para agir preci-so parar, anagch sthnai, como disse um grego no sei mais sefoi Aristteles ou outro qualquer. Sabemos tambm quo cruel mui-tas vezes ela , e nos perguntamos se a iluso no no s mais con-soladora, mas tambm mais fortalecedora; pois ela que nos d aconfiana. Quando tiver desaparecido, permanecer por acaso a es-

    perana, e teremos ns a coragem de agir? assim que o cavaloatrelado a uma roda de moinho certamente se recusaria a avanar seno tomssemos a precauo de lhe vendar os olhos. Alm disso,para buscar a verdade preciso ser independente, inteiramente inde-pendente. Se, ao contrrio, desejamos agir, se queremos ser fortes,precisamos estar unidos. Eis por que muitos de ns se amedrontamcom a verdade; consideram-na uma causa de fraqueza. E contudo

    no se deve tem-la, porque s a verdade bela.Quando falo aqui da verdade, sem dvida quero falar primeiroda verdade cientfica; mas quero falar tambm da verdade moral, daqual o que chamamos de justia no seno um dos aspectos. Pare-ce que abuso das palavras, que reno sob o mesmo nome dois obje-

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    6 INTRODUO

    tos que nada tm em comum; que a verdade cientfica, que se de-monstra, no pode, de modo algum, aproximar-se da verdade moral,que se sente.

    Contudo, no posso separ-las, e aqueles que amam uma nopodem deixar de amar a outra. Para encontrar uma, assim comopara encontrar a outra, preciso esforar-se para libertar completa-mente a alma do preconceito e da paixo, preciso alcanar a since-ridade absoluta. Essas duas espcies de verdade, uma vez descobertas,iro proporcionar-nos a mesma alegria; tanto uma como a outra,assim que as percebemos, brilham com o mesmo esplendor, de tal

    modo que devemos v-las ou fechar os olhos. Ambas, enfim, nosatraem e nos escapam; jamais esto fixas: quando cremos t-las atin-gido, vemos que ainda preciso caminhar, e aquele que as persegueest condenado a jamais conhecer o descanso.

    preciso acrescentar que aqueles que tm medo de uma tambmtero medo da outra; pois so aqueles que, em todas as situaes,preocupam-se antes de tudo com as consequncias. Em uma palavra,

    aproximo as duas verdades porque so as mesmas razes que nosfazem am-las, e so as mesmas razes que nos fazem tem-las.

    Se no devemos ter medo da verdade moral, a fortiori no deve-mos ter medo da verdade cientfica. E, em primeiro lugar, esta nopode estar em conflito com a moral. A moral e a cincia tm seusdomnios prprios, que se tocam mas no se penetram. Uma nosmostra a que fim devemos visar; a outra, sendo dado o fim, nos faz

    conhecer os meios de atingi-lo. Portanto, jamais podem contrariar-se, uma vez que jamais podem encontrar-se. No pode haver umacincia imoral, assim como no pode haver uma moral cientfica.

    Mas se temos medo da cincia, sobretudo porque esta no podenos dar a felicidade. evidente que no, isso ela no pode nos dar, epodemos nos perguntar se o animal no sofre menos que o homem.Mas podemos ns deplorar a perda daquele paraso terrestre onde o

    homem, semelhante ao animal irracional, era realmente imortal por-que no sabia que devemos morrer? Quando se provou a ma, ne-nhum sofrimento pode fazer esquecer seu sabor, retornamos semprea ele. Poderamos agir de outro modo? o mesmo que perguntar seaquele que j enxergou pode tornar-se cego e no sentir saudade da

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    luz. Assim, o homem no pode obter a felicidade por meio da cin-cia, mas hoje pode bem menos ainda ser feliz sem ela.

    Mas se a verdade o nico fim que merece ser perseguido, pode-

    mos ns esperar atingi-lo? Eis a algo de que se pode duvidar. Osleitores do meu pequeno livro A cincia e a hiptese*j sabem o quepenso sobre isso. A verdade que nos permitido entrever no exa-tamente o que a maioria dos homens chama por esse nome. Querisso dizer que nossa aspirao mais legtima e mais imperiosa aomesmo tempo a mais v? Ou ento, apesar de tudo, podemos nosaproximar da verdade por algum lado? o que convm examinar.

    Antes de mais nada, de que instrumento dispomos para essa con-quista? A inteligncia do homem, ou mais especificamente a inteli-gncia do cientista, no suscetvel de uma infinita variedade? Semesgotar esse assunto, poderamos escrever vrios volumes; no fizmais que aflor-lo, em algumas curtas pginas. Que o esprito domatemtico se parece pouco com o do fsico ou do naturalista, todosho de convir; mas os prprios matemticos no se parecem entre si;

    uns s conhecem a implacvel lgica, outros recorrem intuio eveem nesta a fonte nica da descoberta. E a estaria um motivo dedesconfiana. A espritos to dspares podero os prprios teoremasmatemticos aparecer sob a mesma luz? A verdade que no a mes-ma para todos ser a verdade? Mas, olhando as coisas com maisateno, vemos como esses trabalhadores to diferentes colaboramnuma obra comum que no se poderia realizar sem seu concurso.

    E isso j nos tranquiliza.Em seguida, preciso examinar os quadros nos quais a nature-za nos parece encerrada, e que chamamos de tempo e espao. EmA cincia e a hiptese,j mostrei quo relativo seu valor; no anatureza que os impe a ns, somos ns que os impomos naturezaporque os achamos cmodos, mas quase s falei do espao, e sobre-tudo do espao por assim dizer quantitativo, isto , das relaes ma-

    temticas cujo conjunto constitui a geometria. Era necessrio mos-trar que com o tempo ocorre o mesmo que com o espao, e quetambm ocorre o mesmo com o espao qualitativo; era preciso

    * Edio brasileira, Editora Universidade de Braslia, 1984.

    INTRODUO 7

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    8 INTRODUO

    especialmente investigar por que atribumos trs dimenses ao es-pao. Que me perdoem se volto uma vez mais a essas importan-tes questes.

    A anlise matemtica, cujo objeto principal o estudo dessesquadros vazios, no ser, portanto, mais que um jogo intil do esp-rito? Ela s pode dar ao fsico uma linguagem cmoda; no ser esseum servio medocre, do qual se poderia at prescindir? E no serat mesmo o caso de temer que essa linguagem artificial seja um vuinterposto entre a realidade e o olho do fsico? Longe disso: sem essalinguagem, a maior parte das analogias ntimas das coisas permane-

    ceria para sempre fora do nosso conhecimento; e teramos sempreignorado a harmonia interna do mundo, que , como veremos, anica verdadeira realidade objetiva.

    A melhor expresso dessa harmonia a lei. A lei uma das maisrecentes conquistas do esprito humano; ainda h povos que vivemnum milagre perptuo e que no se espantam com isso. Somos ns,ao contrrio, que deveramos nos espantar com a regularidade da

    natureza. Os homens pedem a seus deuses que provem sua existnciacom milagres; mas a maravilha eterna o fato de no haver milagresa todo instante. E por isso que o mundo divino, j que por issoque ele harmonioso. Se fosse regido pelo capricho, o que nos pro-varia que no regido pelo acaso?

    astronomia que devemos essa conquista da lei, e isso que faza grandeza dessa cincia, mais ainda que a grandeza material dos

    objetos que ela considera.Era muito natural, portanto, que a mecnica celeste fosse o pri-meiro modelo da fsica matemtica; desde ento, entretanto, estacincia evoluiu; ainda evolui, evolui mesmo rapidamente. E j ne-cessrio modificar em alguns pontos o quadro que eu traava em1900, e do qual tirei dois captulos de A cincia e a hiptese. Numaconferncia feita na Exposio de Saint-Louis em 1904, procurei

    avaliar o caminho percorrido; o leitor ver mais adiante qual foi oresultado dessa investigao.Os progressos da cincia parecem pr em perigo os mais esta-

    belecidos princpios, inclusive aqueles que eram encarados comofundamentais. Nada prova, contudo, que no se chegar a salv-los;

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    e mesmo que s se consiga faz-lo imperfeitamente, ainda subsisti-ro, embora transformados. No devemos comparar a marcha dacincia com as transformaes de uma cidade, onde os edifcios en-

    velhecidos so impiedosamente demolidos para dar lugar s novasconstrues, e sim com a evoluo contnua dos tipos zoolgicos quese desenvolvem sem cessar e acabam por se tornar irreconhecveisaos olhares comuns, mas onde um olho experimentado reencontrasempre os vestgios do trabalho anterior dos sculos passados. Nose deve crer, pois, que as teorias antiquadas so estreis e vs.

    Se parssemos aqui, encontraramos nestas pginas algumas ra-

    zes para ter confiana no valor da cincia, mas razes muito maisnumerosas para desconfiar dela; restar-nos-ia uma impresso dedvida; preciso agora recolocar as coisas em seu devido lugar.

    Algumas pessoas exageraram o papel da conveno na cincia;chegaram at a dizer que a lei e o prprio fato cientfico so criadospelo cientista. Isso significa ir muito longe na via do nominalismo.No, as leis cientficas no so criaes artificiais; no temos nenhu-

    ma razo para v-las como contingentes, embora nos seja impossveldemonstrar que no o so.

    Essa harmonia que a inteligncia humana cr descobrir na na-tureza existir fora dessa inteligncia? No, sem dvida impossveluma realidade completamente independente do esprito que a con-cebe, v ou sente. Um mundo assim to exterior, se acaso existisse,ser-nos-ia para sempre inacessvel. Mas o que chamamos de realida-

    de objetiva , em ltima anlise, o que comum a muitos seres pen-santes, e poderia ser comum a todos; essa parte comum, como vere-mos, s pode ser a harmonia expressa por leis matemticas.

    portanto essa harmonia a nica realidade objetiva, a nica ver-dade que podemos atingir; e se acrescento que a harmonia universaldo mundo a fonte de toda beleza, ser possvel compreender o va-lor que devemos atribuir aos lentos e penosos progressos que nos

    fazem, pouco a pouco, conhec-la melhor.

    INTRODUO 9

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    PRIMEIRA PARTE

    AS CINCIASMATEMTICAS

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    CAPTULO I

    A intuio e a lgica na matemtica

    I. impossvel estudar as obras dos grandes matemticos, e mesmoas dos pequenos, sem notar e sem distinguir duas tendncias opos-

    tas, ou antes, dois tipos de espritos inteiramente diferentes. Uns es-to, antes de tudo, preocupados com a lgica; ao ler suas obras, so-mos tentados a crer que s avanaram passo a passo, com o mtodode um Vauban, que investe com seus trabalhos de abordagem contrauma praa forte, sem abandonar o que quer que seja ao acaso. Ou-tros se deixam guiar pela intuio, e na primeira investida fazemconquistas rpidas, mas algumas vezes precrias, como se fossem

    ousados cavaleiros na linha de frente.No a matria de que tratam que lhes impe um ou outro m-

    todo. Se dos primeiros dizemos amide que so analistas, e se chama-mos os outros de gemetras, isso no impede que uns permaneamanalistas mesmo quando fazem geometria, enquanto os outros con-tinuam a ser gemetras, mesmo que se ocupem de anlise pura. aprpria natureza de seu esprito que os faz lgicos ou intuitivos, e

    dela no se podem desvencilhar quando abordam um assunto novo.Tambm no foi a educao que desenvolveu neles uma das duastendncias, abafando a outra. O indivduo nasce matemtico, no setorna matemtico, e parece tambm que nasce gemetra ou nasceanalista.

    Gostaria de citar exemplos, e na verdade eles no me faltam; mas,para acentuar o contraste, gostaria de comear por um exemplo extre-

    mo; perdo se sou obrigado a busc-lo junto a dois matemticos vivos.O sr. Mray quer demonstrar que uma equao binomial temsempre uma raiz ou, em termos vulgares, que se pode sempre subdi-vidir um ngulo. Se existe uma verdade que cremos conhecer porintuio direta, esta. Quem duvidar que um ngulo pode sempre

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    ser dividido em um nmero qualquer de partes iguais? O sr. Mrayno pensa assim; a seu ver, esta proposio de modo algum eviden-te, e para demonstr-la lhe so necessrias muitas pginas.

    Vejam, ao contrrio, o sr. Klein: estuda uma das questes maisabstratas da teoria das funes; trata-se de saber se numa determina-da superfcie de Riemann existe sempre uma funo que admitesingularidades dadas. Que faz o clebre gemetra alemo? Substituisua superfcie de Riemann por uma superfcie metlica cuja condu-tibilidade eltrica varia segundo certas leis. Pe dois de seus pontosem cantato com os dois polos de uma pilha. A corrente dever passar

    diz ele , e o modo como essa corrente se distribuir na superfciedefinir uma funo cujas singularidades sero precisamente aquelasque so previstas pelo enunciado.

    Sem dvida, o sr. Klein bem sabe que ofereceu assim apenas umaabordagem sumria: de qualquer modo, no hesitou em public-la;e provavelmente acreditava encontrar a, seno uma demonstraorigorosa, ao menos alguma certeza moral. Um lgico teria rejeitado

    com horror uma tal concepo, ou antes no teria que rejeit-la, poisem seu esprito ela jamais poderia ter nascido.

    Permitam-me ainda comparar dois homens que honram a cin-cia francesa e que recentemente foram arrebatados do nosso conv-vio, embora j houvessem entrado h muito tempo na imortalidade.Falo do sr. Bertrand e do sr. Hermite. Foram ao mesmo tempo alu-nos da mesma escola; tiveram a mesma educao, as mesmas in-

    fluncias; e contudo, que divergncia! No s nos seus escritos quea vemos eclodir; em seu ensino, em seu modo de falar, at mesmoem seu aspecto. Essas duas fisionomias gravaram-se comtraos in-delveis na memria de todos os alunos; para aqueles que tiveram afelicidade de frequentar suas aulas, essa lembrana ainda muitorecente; para ns fcil evoc-la.

    Enquanto fala, o sr. Bertrand est sempre em ao; ora parece s

    voltas com algum inimigo externo, ora desenha com um gesto damo as figuras que estuda. Evidentemente v, e busca representar: por isso que recorre ao gesto. Quanto ao sr. Hermite, exatamenteo contrrio; seus olhos parecem fugir ao contato do mundo; no fora, dentro que procura a viso da verdade.

    14 AS CINCIAS MATEMTICAS

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    Entre os gemetras alemes deste sculo,* dois nomes so espe-cialmente ilustres; so aqueles dos dois cientistas que fundaram ateoria geral das funes Weierstrass e Riemann. Weierstrass reduz

    tudo considerao das sries e a suas transformaes analticas;melhor dizendo, reduz a anlise a uma espcie de prolongamento daaritmtica; podem-se percorrer todos os seus livros sem neles encon-trar uma figura. Riemann, ao contrrio, recorre geometria: cadauma de suas concepes uma imagem que, uma vez compreendidoseu sentido, ningum pode esquecer.

    Mais recentemente, Lie era um intuitivo; poderamos ter hesitado

    ao ler suas obras, porm no mais hesitvamos depois de conversarcom ele; via-se logo que pensava em imagens. A sra. Kowalevski erauma lgica.

    Entre nossos estudantes notamos as mesmas diferenas; uns pre-ferem tratar seus problemas pela anlise, outros pela geometria.Os primeiros so incapazes de ver no espao, e os outros pronta-mente se cansariam dos longos clculos e neles se enredariam.

    Os dois tipos de espritos so igualmente necessrios aos progres-sos da cincia; os lgicos, assim como os intuitivos, fizeram grandescoisas que os outros no poderiam ter feito. Quem ousaria dizer quepreferiria que Weierstrass jamais tivesse escrito, ou que Riemannnunca tivesse existido? Portanto, a anlise e a sntese tm ambas umpapel legtimo. Mas interessante estudar com mais ateno qual opapel que cabe a uma e a outra na histria da cincia.

    II. Curioso! Se relermos as obras dos antigos, seremos tentados aclassific-los todos entre os intuitivos. E contudo a natureza sem-pre a mesma, e pouco provvel que ela tenha comeado a criarneste sculo espritos amigos da lgica.

    Se pudssemos nos colocar de novo na corrente de ideias quereinavam no tempo deles, veramos que muitos daqueles velhos ge-

    metras, por suas tendncias, eram analista. Euclides, por exemplo,edificou uma estrutura cientfica na qual seus contemporneos nopodiam encontrar defeito. Nessa vasta construo, da qual cada

    * A referncia, evidentemente, ao sculo XIX. (N. da T.)

    A INTUIO E A LGICA NA MATEMTICA 15

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    pea, contudo, deve-se intuio, podemos ainda hoje, sem dema-siado esforo, reconhecer a obra de um lgico.

    No foram os espritos que mudaram, foram as ideias; os espri-

    tos intuitivos permaneceram os mesmos; mas seus leitores exigiramdeles mais concesses.

    Qual a razo dessa evoluo? No difcil descobri-la. A intuiono pode nos dar o rigor, nem mesmo a certeza; percebemos issocada vez mais.

    Citemos alguns exemplos. Sabemos que existem funes cont-nuas desprovidas de derivadas. Nada mais chocante para a intuio

    do que essa proposio que nos imposta pela lgica. Nossos ante-passados no teriam deixado de dizer: evidente que toda funocontnua tem uma derivada, j que toda curva tem uma tangente.

    Como pode a intuio nos enganar a tal ponto? que quandoprocuramos imaginar uma curva, no podemos represent-la semespessura; do mesmo modo, quando representamos uma reta, vemo-la sob a forma de uma faixa retilnea dotada de uma certa largura.

    Sabemos bem que essas linhas no tm espessura; esforamo-nospor imagin-las cada vez mais finas, e por nos aproximarmos assimdo limite; conseguimos isso numa certa medida, mas jamais atingi-remos esse limite.

    Ento claro que poderemos sempre representar essas duas faixasestreitas uma retilnea e a outra curvilnea numa posio talque as duas se invadam ligeiramente, sem se cruzarem.

    Assim, a menos que sejamos advertidos por uma anlise rigorosa,seremos levados a concluir que uma curva tem sempre uma tangente.Tomarei como segundo exemplo o princpio de Dirichlet no qual

    se baseiam tantos teoremas da fsica matemtica. Hoje o estabelece-mos atravs de raciocnios muito rigorosos, mas muito longos; ou-trora, ao contrrio, contentvamo-nos com uma demonstrao su-mria. Uma certa integral que depende de uma funo arbitrria

    jamais pode anular-se. Da se conclua que ela deve ter um mnimo.A falha desse raciocnio nos aparece imediatamente, porque empre-gamos o termo abstrato funo, e porque estamos familiarizadoscom todas as singularidades que podem apresentar as funes quan-do consideramos essa palavra no sentido mais geral.

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    Mas no ocorreria o mesmo se tivssemos utilizado imagens con-cretas; se, por exemplo, tivssemos considerado essa funo comoum potencial eltrico, poderamos ter julgado legtimo afirmar que o

    equilbrio eletrosttico pode ser atingido. Contudo, talvez uma com-parao fsica tivesse despertado algumas vagas desconfianas. Mas setivssemos tomado o cuidado de traduzir o raciocnio para a lingua-gem da geometria, intermediria entre a da anlise e a da fsica, pro-vavelmente essas desconfianas no teriam ocorrido, e talvez assimpudssemos, mesmo hoje, enganar muitos leitores no prevenidos.

    A intuio, portanto, no nos d a certeza. Eis por que a evoluo

    devia realizar-se; vejamos agora como ela se realizou.Logo percebeu-se que o rigor no poderia introduzir-se nos ra-

    ciocnios se no entrasse primeiro nas definies.Por muito tempo os objetos de que se ocupam os matemticos

    eram em sua maioria mal definidos; julgavam conhec-los, porqueos representavam com os sentidos ou com a imaginao; mas deless tinham uma imagem grosseira, no uma ideia precisa sobre a qual

    o raciocnio pudesse atuar.Foi nessa direo que, de incio, os lgicos tiveram que concentrar

    seus esforos. o caso do nmero incomensurvel.A ideia vaga de continuidade, que devamos intuio, resolveu-

    se num sistema complicado de desigualdades que envolvem nme-ros inteiros.

    Desse modo, as dificuldades provenientes das passagens ao limite,ou da considerao dos infinitamente pequenos, foram definitiva-mente esclarecidas.

    Hoje em dia, na anlise, no restam mais que nmeros inteiros,ou sistemas finitos ou infinitos de nmeros inteiros, ligados entre sipor uma rede de relaes de igualdade ou desigualdade.

    A matemtica, como se diz, aritmetizou-se.

    III. Surge uma primeira questo. Estar essa evoluo terminada?Teremos atingido enfim o rigor absoluto? A cada estgio da evolu-o, nossos antepassados julgavam tambm t-lo atingido. Se esta-vam enganados, no estaremos tambm ns enganados, como eles?

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    Julgamos em nossos raciocnios no mais recorrer intuio; os fi-lsofos nos diro que isso uma iluso. A lgica inteiramente puranos levaria sempre a tautologias; no poderia criar coisas novas; no

    dela sozinha que se pode originar qualquer cincia.Esses filsofos tm razo, num sentido; para fazer aritmtica, as-

    sim como para fazer geometria, ou para fazer qualquer cincia, preciso algo mais que a lgica pura. Para designar essa outra coisa,no temos outra palavra seno intuio. Mas quantas ideias diferen-tes se escondem sob essas mesmas palavras?

    Comparemos estes quatro axiomas:

    1 Duas quantidades iguais a uma terceira so iguais entre si.2 Se um teorema verdadeiro para o nmero 1, e se demons-

    tramos que ele verdadeiro para n +1, contanto que o seja para n,ser verdadeiro para todos os nmeros inteiros.

    3 Se, numa reta, o ponto C est entre A e B, e o ponto D entreA e C, o ponto D estar entre A e B.

    4 Por um ponto, s podemos fazer passar uma paralela a uma

    reta dada.Os quatro devem ser atribudos intuio. Contudo, o primeiro

    o enunciado de uma das regras da lgica formal; o segundo umverdadeiro juzo sinttico a priori, o fundamento da induo mate-mtica rigorosa; o terceiro um apelo imaginao; o quarto umadefinio disfarada.

    A intuio no est forosamente fundada no testemunho dos

    sentidos; os sentidos logo se tornariam impotentes; no podemos,por exemplo, representar o quiligono,* e contudo raciocinamos porintuio sobre os polgonos em geral, que compreendem o quiligo-no como caso particular.

    Os senhores sabem o que Poncelet entendia porprincpio de con-tinuidade. O que verdadeiro para uma quantidade real diziaPoncelet deve s-lo para uma quantidade imaginria; o que ver-

    dadeiro para a hiprbole, cujas assntotas so reais, portanto verda-deiro para a elipse, cujas assntotas so imaginrias. Poncelet era umdos espritos mais intuitivos deste sculo; ele o era com paixo, quase

    * Polgono regular de mil lados. (N. da T.)

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    com ostentao; considerava o princpio de continuidade uma desuas concepes mais ousadas, e contudo esse princpio no se ba-seava no testemunho dos sentidos; associar a hiprbole elipse era

    antes contradizer esse testemunho. Havia a apenas uma espcie degeneralizao precipitada e instintiva, que alis no quero defender.

    Temos, pois, vrias espcies de intuio; primeiro, o apelo aossentidos e imaginao; em seguida, a generalizao por induo,por assim dizer calcada nos procedimentos das cincias experimen-tais; temos, enfim, a intuio do nmero puro, aquela de onde seoriginou o segundo dos axiomas que acabo de enunciar, e que pode

    engendrar o verdadeiro raciocnio matemtico.As duas primeiras no podem nos dar a certeza, como mostrei

    acima com exemplos; mas quem duvidar seriamente da terceira,quem duvidar da aritmtica?

    Ora, na anlise de hoje, quando queremos nos dar ao trabalho deser rigorosos, no h mais que silogismos ou apelos a essa intuiodo nmero puro, a nica que no pode nos enganar. Pode-se dizer

    que hoje o rigor absoluto foi atingido.

    IV.Os filsofos fazem ainda outra objeo: O que os senhores ga-nham em rigor, dizem eles, perdem em objetividade. S podemelevar-se ao ideal lgico cortando os elos que os ligam realidade.Sua cincia impecvel, mas s pode continuar a s-lo encerrando-se numa torre de marfim e se interditando toda relao com o mun-

    do exterior. Ser necessrio sair dessa torre, se quiser tentar a menoraplicao.Quero demonstrar, por exemplo, que tal propriedade pertence a

    tal objeto, cuja noo me parece inicialmente indefinvel, porque intuitiva. De incio fracasso, ou devo contentar-me com demonstra-es por aproximao; decido-me enfim a dar ao meu objeto umadefinio precisa, o que me permite estabelecer essa propriedade de

    maneira irrepreensvel.E depois?, dizem os filsofos. Resta ainda mostrar que o objetoque corresponde a essa definio realmente o mesmo que a intui-o os fez conhecer; ou ento, ainda, que tal objeto real e concreto,cuja conformidade com sua ideia intuitiva os senhores julgavam re-

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    conhecer imediatamente, corresponde mesmo nova definio quedele deram. S ento podero afirmar que ele goza da propriedadeem questo. No tero feito mais que deslocar a dificuldade.

    Isso no exato; no deslocamos a dificuldade, dividimo-la. Aproposio que se tratava de estabelecer compunha-se na realidadede duas verdades diferentes, mas que logo no comeo no havamosdistinguido. A primeira era uma verdade matemtica, e agora ela estrigorosamente estabelecida. A segunda era uma verdade experimen-tal. S a experincia pode nos informar se tal objeto real e concretocorresponde ou no a tal definio abstrata. Essa segunda verdade

    no demonstrada matematicamente, mas no pode s-lo, assimcomo no podem s-lo as leis empricas das cincias fsicas e natu-rais. Seria despropositado pedir mais.

    Pois bem! No ser um grande progresso ter distinguido o quepor tanto tempo, erradamente, confundramos?

    Seria o caso de dizer que nada h a reter dessa objeo dos filso-fos? No isso o que quero dizer; ao se tornar rigorosa, a cincia

    matemtica assume um carter artificial que surpreender a todos;esquece suas origens histricas; v-se como as questes podem resol-ver-se, no se v mais como e por que elas surgem.

    Isso nos mostra que a lgica no basta; que a cincia da demons-trao no a cincia inteira, e que a intuio deve conservar seupapel como complemento, quase se poderia dizer como contrapesoou como antdoto da lgica.

    J tive oportunidade de discorrer sobre o lugar que a intuiodeve guardar no ensino das cincias matemticas. Sem ela, os jovensespritos no poderiam iniciar-se na inteligncia da matemtica; noaprenderiam a am-la, e s veriam nela uma v logomaquia; sem aintuio, sobretudo, jamais se tornariam capazes de aplic-la.

    Mas hoje, antes de tudo, sobre o papel da intuio na prpriacincia que eu gostaria de falar. Se til ao estudante, ela o mais

    ainda ao cientista criador.

    V.Buscamos a realidade, mas o que a realidade?Os fisiologistas nos ensinam que os organismos so formados de c-lulas; os qumicos acrescentam que as prprias clulas so formadas

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    de tomos. Isso quer dizer que esses tomos ou essas clulas consti-tuem a realidade, ou ao menos a nica realidade? O modo pelo qualessas clulas so arranjadas, de que resulta a unidade do indivduo,

    no ser tambm uma realidade, muito mais interessante que a doselementos isolados? E um naturalista que s em microscpios tivesseestudado o elefante, julgaria conhecer suficientemente esse animal?

    Pois bem! Na matemtica h algo semelhante. O lgico decom-pe, por assim dizer, cada demonstrao em um enorme nmerode operaes elementares; quando tivermos examinado essas opera-es uma aps outra, e tivermos constatado que cada uma delas

    correta, poderemos julgar ter compreendido o verdadeiro sentido dademonstrao? Teremos mesmo compreendido essa demonstraoquando, por um esforo de memria, formos capazes de repeti-la,reproduzindo todas essas operaes elementares na mesma ordemem que o inventor as dispusera?

    evidente que no, ainda no possuiremos a realidade inteira;aquele no sei qu que faz a unidade da demonstrao nos escapar

    completamente.A anlise pura pe nossa disposio uma quantidade de pro-

    cedimentos cuja infalibilidade ela nos garante; abre-nos mil cami-nhos diferentes, onde podemos nos embrenhar com toda a confian-a; garante-nos que no encontraremos obstculos neles; mas, detodos esses caminhos, qual ser aquele que nos levar mais pronta-mente ao fim? Quem nos dir qual deles preciso escolher? Ne-

    cessitamos de uma faculdade que nos faa ver o fim de longe, e essafaculdade a intuio. Ela necessria ao explorador para que possaescolher sua rota, e no o menos quele que o segue e deseja saberpor que escolheu tal rota.

    Se os senhores assistem a uma partida de xadrez, para compreen-der a partida, no lhes bastar saber as regras da marcha das pedras.Isso lhes permitiria apenas reconhecer que cada lance foi jogado em

    conformidade com aquelas regras, e essa vantagem realmente teriabem pouco valor. Entretanto, isso o que faria o leitor de um livrode matemtica, se ele fosse apenas lgico. Compreender a partida algo inteiramente diferente; saber por que o jogador avana deter-minada pea em vez de outra, que poderia ter movido sem violar as

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    regras do jogo. perceber a razo ntima que faz dessa srie de lancessucessivos uma espcie de todo organizado. A fortiori, essa faculdade necessria ao prprio jogador, isto , ao inventor.

    Deixemos de lado essa comparao e voltemos matemtica.Vejamos o que aconteceu, por exemplo, no que diz respeito

    ideia de funo contnua. No incio era apenas uma imagem sensvel por exemplo, a de um trao contnuo riscado a giz num quadro-negro. Depois depurou-se pouco a pouco, e logo foi utilizada paraconstruir um sistema complicado de desigualdades, que reproduziatodas as linhas da imagem primitiva; quando essa construo termi-

    nou, descimbrou-se, por assim dizer, rejeitou-se essa representaogrosseira que lhe servira momentaneamente de apoio, e que da emdiante era intil; s restou a prpria construo, irrepreensvel aosolhos do lgico. E contudo, se a imagem primitiva desaparecera to-talmente de nossa lembrana, como adivinharamos por que capri-cho todas essas desigualdades se estruturaram daquele modo umassobre as outras?

    Julgaro talvez que abuso das comparaes; concedam-me con-tudo mais uma. Provavelmente j viram esses conjuntos delicadosde espinhas siliciosas que formam o esqueleto de certas esponjas.Quando desaparece a matria orgnica, s resta uma frgil e elegan-te renda. verdade que ali no h s silcio, mas o que interessante a forma que esse silcio tomou, e no podemos entend-la se noconhecemos a esponja viva que precisamente lhe imprimiu essa for-

    ma. assim que as antigas noes intuitivas de nossos antepassa-dos, mesmo quando j abandonadas, ainda imprimem sua forma sconstrues lgicas que colocamos em seu lugar.

    Essa viso de conjunto necessria ao inventor; igualmentenecessria quele que deseja realmente compreender o inventor; po-der a lgica oferec-la a ns?

    No; o nome que os matemticos lhe do bastaria para prov-lo.

    Em matemtica, a lgica se chama anlise, e anlise quer dizer divi-so, disseco. Portanto, no pode ter outra ferramenta que no oescalpelo e o microscpio.

    Assim, a lgica e a intuio tm cada uma seu papel necessrio.Ambas so indispensveis. A lgica, a nica que pode dar a certeza,

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    o instrumento da demonstrao; a intuio o instrumento dainveno.

    VI.Mas, no momento de formular essa concluso, sou tomado deum escrpulo.

    No incio, distingui dois tipos de espritos matemticos: uns lgi-cos e analistas, outros intuitivos e gemetras. Pois bem, os analistastambm foram inventores. Os nomes que citei ainda h pouco medispensam de insistir.

    H a uma contradio ao menos aparente, que necessrio ex-

    plicar.Antes de mais nada, pode-se pensar que esses lgicos sempre pro-

    cederam do geral para o particular, como as regras da lgica formalpareciam obrig-los? No seria assim que teriam ampliado as fron-teiras da cincia; s se pode fazer conquista cientfica por meio dageneralizao.

    Em um dos captulos de A cincia e a hiptese, tive a oportuni-

    dade de estudar a natureza do raciocnio matemtico, e mostreicomo esse raciocnio, sem deixar de ser absolutamente rigoroso, po-dia nos elevar do particular ao geral por um procedimento que cha-mei de induo matemtica.

    Foi por esse procedimento que os analistas fizeram a cincia pro-gredir, e se examinarmos o prprio detalhe de suas demonstraes,ali iremos encontr-lo a cada momento, ao lado do silogismo clssi-

    co de Aristteles.J vemos, pois, que os analistas no so simplesmente fabricantesde silogismos maneira dos escolsticos.

    Alm disso, podemos pensar que eles sempre caminharam passoa passo, sem ter a viso do fim que desejavam atingir? Foi mesmonecessrio que adivinhassem o caminho que a ele conduzia, e paraisso precisaram de um guia.

    De incio, esse guia a analogia.Por exemplo, um dos raciocnios caros aos analistas aquele quese baseia no emprego das funes maximizantes. Sabe-se que j ser-viu para resolver uma quantidade de problemas; em que consisteento o papel do inventor que deseja aplic-lo a um problema novo?

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    De incio, preciso que ele reconhea a analogia dessa questo comaquelas que j foram resolvidas por esse mtodo; em seguida, pre-ciso que perceba em que essa nova questo difere das outras, e que

    da deduza as modificaes que necessrio levar ao mtodo.Mas como se percebem essas analogias e essas diferenas?No exemplo que acabo de citar, elas so quase sempre evidentes,

    mas eu poderia ter encontrado outros onde teriam ficado muitomais ocultas; muitas vezes, para descobri-las, preciso ter uma pers-piccia pouco comum.

    Para no deixar escapar essas analogias ocultas, isto , para poder

    ser inventores, os analistas devem, sem a ajuda dos sentidos e da ima-ginao, ter a percepo direta daquilo que constitui a unidade deum raciocnio, daquilo que constitui, por assim dizer, sua alma e suavida ntima.

    Quando se conversava com o sr. Hermite, jamais ele evocava umaimagem sensvel, e contudo logo se percebia que as entidades maisabstratas eram para ele como seres vivos. No as via, mas sentia que

    elas no eram um agrupamento artificial, e que tinham algum prin-cpio de unidade interna.

    Mas dir-se- isso tambm intuio. Concluiremos entoque a distino feita no incio no passava de aparncia, que h ape-nas um tipo de esprito e que todos os matemticos so intuitivos, aomenos aqueles que so capazes de inventar?

    No, nossa distino corresponde a algo real. Eu disse acima que

    h muitas espcies de intuio. Disse quanto a intuio do nmeropuro, aquela da qual pode provir a induo matemtica rigorosa,difere da intuio sensvel, que depende unicamente da imaginaopropriamente dita.

    O abismo que as separa ser menos profundo do que parece aprincpio? Seria possvel perceber, com um pouco de ateno, queessa intuio pura, ela mesma, no poderia prescindir da ajuda dos

    sentidos? Isso problema do psiclogo e do metafsico, e no discu-tirei essa questo.Mas basta que a coisa seja duvidosa para que eu tenha o direito de

    reconhecer e de afirmar uma divergncia essencial entre as duas es-pcies de intuio; elas no tm o mesmo objeto e parecem pr em

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    jogo duas faculdades diferentes de nossa alma; dir-se-ia dois projeto-res apontados para dois mundos estranhos um ao outro.

    a intuio do nmero puro, a das formas lgicas e puras, que

    ilumina e dirige aqueles que chamamos de analistas. ela que lhes permite no s demonstrar, mas tambm inventar.

    por ela que percebem com um breve olhar o plano geral de umedifcio lgico, e isso sem que os sentidos paream intervir.

    Rejeitando a ajuda da imaginao, que, como vimos, nem sempre infalvel, podem avanar sem medo de se enganar. Felizes, pois,aqueles que podem prescindir desse apoio! Devemos admir-los,

    mas como so raros!No que se refere aos analistas, haver portanto inventores, mas

    poucos.A maioria de ns, se quisesse ver de longe unicamente pela in-

    tuio pura, iria sentir-se logo acometida de vertigem. A fraquezadestes tem necessidade de um basto mais slido e, apesar das exce-es de que acabamos de falar, no menos verdade que a intuio

    sensvel , na matemtica, o instrumento mais comum da inveno.A propsito das ltimas reflexes que acabo de fazer, apresenta-seuma questo que no tenho tempo de resolver nem sequer de enun-ciar com os desdobramentos que ela comportaria.

    Caber fazer um novo corte e distinguir entre os analistas aquelesque se servem sobretudo dessa intuio pura e aqueles que se preo-cupam antes de mais nada com a lgica formal?

    O sr. Hermite, que acabo de citar, por exemplo, no pode ser clas-sificado entre os gemetras que fazem uso da intuio sensvel; mastambm no um lgico propriamente dito. No esconde sua re-pulsa pelos procedimentos puramente dedutivos que partem do ge-ral para chegar ao particular.

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    CAPTULO I I

    A medida do tempo

    I.Enquanto no se sai do domnio da conscincia, a noo de tempo relativamente clara. No s distinguimos sem dificuldade a sen-

    sao presente da lembrana das sensaes passadas ou da previsodas sensaes futuras, como tambm sabemos perfeitamente o quequeremos dizer quando afirmamos que, de dois fenmenos cons-cientes dos quais conservamos a lembrana, um foi anterior ao ou-tro; ou ento que, de dois fenmenos conscientes previstos, um seranterior ao outro.

    Quando dizemos que dois fatos conscientes so simultneos, que-

    remos dizer que eles se interpenetram profundamente, de tal modoque a anlise no pode separ-los sem mutil-los.

    A ordem na qual dispomos os fenmenos conscientes no com-porta qualquer arbitrariedade. Ela nos imposta e no podemosmud-la.

    S tenho uma observao a acrescentar. Para que um conjunto desensaes se torne uma lembrana suscetvel de ser classificada no

    tempo, preciso que tenha cessado de ser atual, que tenhamos per-dido o sentido de sua infinita complexidade, sem o que teria perma-necido atual. preciso que ele tenha, por assim dizer, cristalizado emtorno de um centro de associaes de ideias que ser como uma es-pcie de etiqueta. S poderemos classificar nossas lembranas notempo quando estas tiverem, assim, perdido toda vida do mesmomodo que um botnico arruma em seu herbrio as flores dessecadas.

    Mas essas etiquetas s podem ser em nmero finito. Assim sendo,o tempo psicolgico seria descontnuo. De onde vem a sensao deque entre dois instantes quaisquer h outros instantes? Classificamosnossas lembranas no tempo, mas sabemos que restam comparti-mentos vazios. Como isso seria possvel, se o tempo no fosse uma

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    forma preexistente em nosso esprito? Como saberamos que exis-tem compartimentos vazios, se esses compartimentos s nos fossemrevelados por seu contedo?

    II.Mas no s isso; nessa forma queremos fazer entrar no s osfenmenos de nossa conscincia, mas tambm aqueles dos quais asoutras conscincias so o teatro. Mais ainda, queremos fazer entrarnela os fatos fsicos, esses no sei qu com os quais povoamos o espa-o, e que nenhuma conscincia v diretamente. algo bem necessrio,pois sem isso a cincia no poderia existir. Em uma palavra, o tempo

    psicolgico nos dado, e queremos criar o tempo cientfico e fsico. a que comea a dificuldade, ou antes as dificuldades, pois h duas.

    Eis duas conscincias que so como dois mundos impenetrveisentre si. Com que direito queremos faz-las entrar num mesmo mol-de, medi-las com a mesma toesa? No seria o mesmo que desejarmedir com um grama, ou pesar com um metro?

    E alm disso, por que falamos de medida? Sabemos talvez que

    um determinado fato anterior a um outro, mas no quanto ele anterior.

    Portanto, duas dificuldades:1 Podemos ns transformar o tempo psicolgico, que qua-

    litativo, em tempo quantitativo?2 Podemos ns reduzir mesma medida fatos que se passam

    em mundos diferentes?

    III.A primeira dificuldade j foi notada h muito tempo; constituiuo objeto de longas discusses, e pode-se dizer que a questo estencerrada.

    No temos a intuio direta da igualdade de dois intervalos de tem-po. As pessoas que creem possuir essa intuio so vtimas de umailuso.

    Quando digo que do meio-dia uma hora passou o mesmo tem-po que das duas s trs horas, que sentido tem essa afirmao?A mais breve reflexo mostra que no tem nenhum por si mesma.

    S ter aquele que eu tiver vontade de lhe dar, por uma definio quecertamente comportar certo grau de arbitrariedade.

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    Os psiclogos poderiam ter prescindido dessa definio; os fsicose os astrnomos, no; vejamos como se saram.

    Para medir o tempo, servem-se do pndulo e admitem, por defi-

    nio, que todas as oscilaes desse pndulo tm igual durao. Masessa apenas uma primeira aproximao; a temperatura, a resistn-cia do ar e a presso baromtrica fazem variar a marcha do pndulo.Se escapssemos a essas causas de erro, obteramos uma aproxima-o muito maior, mas ainda no seria mais que uma aproximao.Causas novas, at aqui negligenciadas eltricas, magnticas ououtras , viriam trazer pequenas perturbaes.

    De fato, os melhores relgios devem ser acertados de vez emquando, e os acertos se fazem com o auxlio das observaes astro-nmicas; arranjamo-nos para que o relgio sideral marque a mesmahora quando a mesma estrela passa no meridiano. Em outros ter-mos, o dia sideral, isto , a durao da rotao da Terra, a unidadeconstante do tempo. Admite-se, por uma nova definio que substi-tui a que tirada dos batimentos do pndulo, que duas rotaes

    completas da Terra em torno de seu eixo tm a mesma durao.Contudo os astrnomos ainda no se contentaram com essa de-

    finio. Muitos deles pensam que as mars agem como um freio so-bre nosso globo, e que a rotao da Terra se torna cada vez maislenta. Assim se explicaria a acelerao aparente do movimento daLua, que pareceria andar mais rpido do que lhe permite a teoria,porque nosso relgio, que a Terra, atrasaria.

    IV.Tudo isso importa pouco, diro. Sem dvida nossos instrumen-tos de medida so imperfeitos, mas basta que possamos conceber uminstrumento perfeito. Esse ideal no poder ser atingido, mas bastart-lo concebido, e ter assim introduzido o rigor na definio da uni-dade de tempo.

    A desgraa que esse rigor no se encontra nela. Quando nos

    servimos do pndulo para medir o tempo, qual o postulado queadmitimos implicitamente? que a durao de dois fenmenos idnticos a mesma; ou, se pre-

    ferirmos, que as mesmas causas levam o mesmo tempo para produ-zir os mesmos efeitos.

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    primeira vista, essa uma boa definio da igualdade de duasduraes.

    Acautelemo-nos com ela, contudo. Ser impossvel que a expe-

    rincia desminta um dia nosso postulado?Explico-me; suponho que em certo ponto do mundo se passa o

    fenmeno a, provocando, em consequncia, ao fim de certo tempo,o efeito a. Num outro ponto do mundo, muito distante do primei-ro, passa-se o fenmeno b, que traz como consequncia o efeito b.Os fenmenos ae bso simultneos, assim como os efeitos ae b.

    Numa poca ulterior, o fenmeno a se reproduz em circuns-

    tncias mais ou menos idnticas, e simultaneamente o fenmeno bse reproduz tambm em um ponto muito distante do mundo, maisou menos nas mesmas circunstncias.

    Os efeitos ae bvo tambm reproduzir-se. Suponho que o efei-to aocorra sensivelmente antes do efeito b.

    Se a experincia nos tornasse testemunhas de um tal espetculo,nosso postulado estaria desmentido.

    Pois a experincia nos informaria que a primeira durao aa

    igual primeira durao bb, e que a segunda durao aa me-nor que a segunda durao bb. Ao contrrio, nosso postulado exi-giria que as duas duraes aa fossem iguais entre si, assim comoas duas duraes bb. A igualdade e a desigualdade deduzidas daexperincia seriam incompatveis com as duas igualdades tiradasdo postulado.

    Ora, podemos ns afirmar que as hipteses que acabo de for-mular so absurdas? Elas nada tm de contrrio ao princpio decontradio. Sem dvida no poderiam realizar-se sem que o princ-pio da razo suficiente parea violado. Mas para justificar uma defi-nio to fundamental eu preferiria uma outra garantia.

    V.Mas no s isso.

    Na realidade fsica, uma causa no produz um efeito, mas umamultido de causas distintas contribuem para produzi-lo, sem que setenha qualquer meio de discernir o papel de cada uma delas.

    Os fsicos procuram fazer essa distino; mas s a fazem de modoaproximado, e por maiores que sejam seus progressos, s a faro

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    sempre de modo aproximado. mais ou menos verdade que o mo-vimento do pndulo se deve unicamente atrao da Terra; mas,com todo o rigor, mesmo a atrao de Sirius age sobre o pndulo.

    Nessas condies, claro que as causas que produziram determi-nado efeito se reproduziro sempre de modo aproximado.

    E ento devemos modificar nosso postulado e nossa definio.Em vez de dizer as mesmas causas levam o mesmo tempo paraproduzir os mesmos efeitos, devemos dizer causas mais ou menosidnticas levam mais ou menos o mesmo tempo para produzir maisou menos os mesmos efeitos. Nossa definio, portanto, apenas

    aproximada.Alis, como observa com muita propriedade o sr. Calinon numa

    dissertao recente (tudes sur les diverses grandeurs, Paris, Gauthier-Villars, 1897):

    Uma das circunstncias de um fenmeno qualquer a velocidade darotao da Terra; se essa velocidade de rotao varia, ela constitui, nareproduo desse fenmeno, uma circunstncia que no permanece

    mais idntica a ela mesma. Mas supor constante essa velocidade derotao supor que se sabe medir o tempo.

    Portanto nossa definio ainda no satisfatria; certamente no aquela que implicitamente adotam os astrnomos dos quais eufalava acima, quando afirmam que a velocidade da rotao terrestrevai diminuindo.

    Que sentido tem em sua boca essa afirmao? S podemos com-

    preend-lo analisando as provas que fornecem para sua proposio.De incio, dizem que a frico das mars, que produz calor, deve

    destruir fora viva. Invocam ento o princpio das foras vivas ou daconservao da energia.

    Dizem em seguida que a acelerao secular da Lua, calculada se-gundo a lei de Newton, seria menor do que a deduzida das observa-es, se no se fizesse a correo relativa diminuio da velocidade

    da rotao terrestre.Invocam, portanto, a lei de Newton.Em outros termos, definem a durao do seguinte modo: o tem-

    po deve ser definido de tal maneira que a lei de Newton e a das forasvivas sejam verificadas.

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    A lei de Newton uma verdade de experincia; como tal, apenasaproximada, o que mostra que ainda temos apenas uma definiopor aproximao.

    Se agora supomos que vamos adotar uma outra maneira de me-dir o tempo, nem por isso as experincias sobre as quais est fundadaa lei de Newton deixariam de conservar o mesmo sentido. S que oenunciado da lei seria diferente, porque seria traduzido para umaoutra linguagem; evidentemente, seria muito menos simples.

    De modo que a definio implicitamente adotada pelos astr-nomos pode resumir-se assim: O tempo deve ser definido de tal

    modo que as equaes da mecnica sejam to simples quanto poss-vel. Em outros termos, no h um modo de medir o tempo que sejamais verdadeiro que outro; o que geralmente adotado apenasmais cmodo.

    De dois relgios no temos o direito de dizer que um funcionabem e o outro funciona mal; podemos dizer apenas que vantajosonos reportarmos s indicaes do primeiro.

    A dificuldade da qual acabamos de nos ocupar foi, como eu disse,muitas vezes assinalada; entre as obras mais recentes que dela tratamcitarei, alm do opsculo do sr. Calinon, o tratado de mecnica dosr. Andrade.

    VI.A segunda dificuldade atraiu at aqui muito menos ateno;contudo, ela inteiramente anloga precedente; e mesmo, logica-

    mente, eu deveria ter falado dela de incio.Dois fenmenos psicolgicos se passam em duas conscinciasdiferentes; quando digo que so simultneos, o que quero dizer?

    Quando digo que um fenmeno fsico que se passa fora de todaconscincia anterior ou posterior a um fenmeno psicolgico, oque quero dizer?

    Em 1572, Tycho-Brah notou no cu uma estrela nova. Uma

    imensa conflagrao se produzira em algum astro muito distante;mas produzira-se muito tempo antes; foi preciso que se passassempelo menos duzentos anos at que a luz que partia dessa estrela al-canasse nossa Terra. Portanto, essa conflagrao era anterior aodescobrimento da Amrica.

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    Pois bem, quando digo isso, quando considero esse fenmenogigantesco que talvez no tenha tido nenhuma testemunha, j que ossatlites dessa estrela talvez no tenham habitantes, quando digo que

    esse fenmeno anterior formao da imagem visual da ilha deEspaola na conscincia de Cristvo Colombo, o que quero dizer?

    Basta um pouco de reflexo para compreender que todas essasafirmaes, por si ss, no tm nenhum sentido.

    S podem adquirir um sentido a partir de uma conveno.

    VII.Antes de tudo, devemos nos perguntar como pudemos ter a

    ideia de fazer entrar no mesmo quadro tantos mundos impenetr-veis entre si.

    Desejaramos representar o universo exterior, e s assim pensa-ramos conhec-lo.

    Sabemos que jamais teremos essa representao: nossa deficincia grande demais.

    Desejamos ao menos que se possa conceber uma inteligncia infi-

    nita para a qual essa representao fosse possvel, uma espcie degrande conscincia que tudo visse, e que classificasse tudo em seutempo, assim como classificamos, em nosso tempo, o pouco que vemos.

    Essa hiptese bem grosseira e incompleta; pois essa intelign-cia suprema no seria mais que um semideus; infinita num sentido,seria limitada em outro, j que s teria do passado uma lembran-a imperfeita; e no poderia ter outra, j que, de outro modo, con-

    servaria todas as lembranas igualmente presentes, e para ela nohaveria tempo.E contudo, quando falamos do tempo, no que se refere a tudo

    o que se passa fora de ns, no adotamos ns inconscientementeessa hiptese? No nos colocamos no lugar desse deus imperfeito?E os prprios ateus no se pem no lugar onde estaria Deus, se eleexistisse?

    O que acabo de dizer nos mostra, talvez, por que procuramos fazerentrar todos os fenmenos fsicos no mesmo quadro. Mas isso nopode passar por uma definio de simultaneidade, j que essa inteli-gncia hipottica, mesmo que existisse, seria para ns impenetrvel.

    preciso, pois, buscar outra coisa.

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    VIII.As definies comuns que convm para o tempo psicolgicono poderiam mais nos bastar. Dois fatos psicolgicos simultneosso ligados to estreitamente, que a anlise no pode separ-los sem

    mutil-los. Dar-se- o mesmo com dois fatos fsicos? Meu presenteno est mais perto do meu passado de ontem do que do presente deSirius?

    Foi dito tambm que dois fatos devem ser considerados comosimultneos quando a ordem de sua sucesso pode ser invertida vontade. evidente que essa definio no poderia convir para doisfatos fsicos que se produzem a grande distncia um do outro, e

    tambm evidente que, no que lhes diz respeito, nem sequer se com-preende mais o que pode ser essa reversibilidade; alis, antes detudo a prpria sucesso que seria preciso definir.

    IX.Procuremos ento nos dar conta do que entendemos por simul-taneidade ou anterioridade, e para isso analisemos alguns exemplos.

    Escrevo uma carta; em seguida, ela lida pelo amigo a quem a

    enviei. Eis a dois fatos que tiveram como teatro duas conscinciasdiferentes. Ao escrever essa carta, possu sua imagem visual, e meuamigo, por sua vez, possuiu essa mesma imagem ao ler a carta.

    Embora esses dois fatos se passem em mundos impenetrveis,no hesito em ver o primeiro como anterior ao segundo, porquecreio que aquele foi a causa deste ltimo.

    Ouo o trovo e concluo que houve uma descarga eltrica; no

    hesito em considerar o fenmeno fsico como anterior imagemsonora recebida por minha conscincia, porque creio que ele acausa desta.

    Eis a, portanto, a regra que seguimos, e a nica que podemosseguir; quando um fenmeno nos aparece como a causa de outro,ns o vemos como anterior.

    ento pela causa que definimos o tempo; mas quase sempre,

    quando dois fatos nos aparecem ligados por uma relao constante,como reconhecemos qual deles a causa e qual o efeito? Admiti-mos que o fato anterior, o antecedente, a causa do outro, do conse-quente. portanto pelo tempo que definimos a causa. Como teruma sada para essa petio de princpio?

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    Ora dizemospost hoc, ergo propter hoc, orapropter hoc, ergo posthoc;* conseguiremos sair desse crculo vicioso?

    X.Vejamos, ento, no como chegamos a nos sair bem, pois no oconseguimos completamente, mas como procuramos nos sair bem.Executo um ato voluntrio A e em seguida experimento uma sensa-o D, que vejo como uma consequncia do ato A; por outro lado,por uma razo qualquer, infiro que essa consequncia no imedia-ta, mas que se realizaram fora da minha conscincia dois fatos B e Cdos quais no fui testemunha, e de tal modo que B seja o efeito de A,

    que C seja o de B, e D o de C.Mas por que isso? Se creio ter razes para ver os quatro fatos A, B,

    C, D como ligados um ao outro por um elo de causalidade, por quedisp-los na ordem causal A B C D, e ao mesmo tempo na ordemcronolgica A B C D, em vez de qualquer outra ordem?

    Vejo bem que no ato A tenho a impresso de ter sido ativo, aopasso que experimentando a sensao D, tenho a de ter sido passivo.

    por isso que vejo A como a causa inicial e D como o efeito ltimo; por isso que disponho A no comeo da cadeia e D no fim; mas porque colocar B antes de C, em vez de C antes de B?

    Se nos fazemos essa pergunta, respondemos geralmente: sabemosbem que B a causa de C, j que vemos sempre B ocorrer antes de C.Esses dois fenmenos, quando somos testemunhas, passam-se numacerta ordem; quando fenmenos semelhantes ocorrem sem testemu-

    nha, no h razo para que essa ordem seja invertida.Sem dvida, mas tomemos cuidado; jamais conhecemos direta-mente os fenmenos fsicos B e C; o que conhecemos so sensaesBe Cproduzidas respectivamente por B e por C. Nossa conscincianos informa imediatamente que Bprecede C, e admitimos que Be C se sucedem na mesma ordem.

    Essa regra parece de fato bem natural, e contudo muitas vezes

    somos levados a derrog-la. S ouvimos o rudo do trovo algunssegundos aps a descarga eltrica da nuvem. De dois raios umdistante e outro prximo , no pode o primeiro ser anterior ao

    * Depois disso, logo, por causa disso; por causa disso, logo, depois disso. (N. da T.)

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    segundo, embora o rudo do segundo nos chegue antes do rudo doprimeiro?

    XI.Outra dificuldade; teremos ns realmente o direito de falar dacausa de um fenmeno? Se todas as partes do Universo so solidriasnuma certa medida, um fenmeno qualquer no ser o efeito deuma causa nica, mas a resultante de causas infinitamente numero-sas; ele , como se diz com frequncia, a consequncia do estado doUniverso um momento antes.

    Como enunciar regras aplicveis a circunstncias to complexas?

    E contudo s desse modo essas regras podero ser gerais e rigorosas.Para no nos perdermos nessa infinita complexidade, levantemos

    uma hiptese mais simples; consideremos trs astros, como porexemplo o Sol, Jpiter e Saturno; mas para maior simplicidade, ve-

    jamo-los como reduzidos a pontos materiais e isolados do resto domundo.

    As posies e as velocidades dos trs corpos em um instante dado

    bastam para determinar suas posies e suas velocidades no instanteseguinte, e por conseguinte num instante qualquer. Suas posies noinstante t determinam suas posies no instante t +h, assim comosuas posies no instante t -h.

    E ainda h mais; a posio de Jpiter no instante t, unida deSaturno no instante t +a, determina a posio de Jpiter num ins-tante qualquer, e a de Saturno num instante qualquer.

    O conjunto das posies que ocupam Jpiter no instante t +ee Saturno no instante t +a +eest ligado ao conjunto das posiesque ocupam Jpiter no instante t e Saturno no instante t +a, por leisto precisas quanto a de Newton, embora mais complicadas.

    Portanto, por que no ver um desses conjuntos como a causa dooutro, o que levaria a considerar como simultneos o instante t deJpiter e o instante t +a de Saturno?

    Para isso s pode haver razes de comodidade e de simplicidade muito poderosas, verdade.

    XII.Mas passemos a exemplos menos artificiais; para nos dar contada definio implicitamente admitida pelos cientistas, vamos obser-

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    v-los enquanto trabalham, e busquemos as regras segundo as quaisinvestigam a simultaneidade.

    Tomarei dois exemplos simples; a medida da velocidade da luz e

    a determinao das longitudes.Quando um astrnomo me diz que determinado fenmeno este-

    lar que seu telescpio lhe revela naquele momento ocorreucontudo h cinquenta anos, busco o que ele quer dizer com isso:pergunto-lhe de incio como o sabe, isto , como ele mediu a veloci-dade da luz.

    Comeou por admitir que a luz tem uma velocidade constante, e

    em particular que sua velocidade a mesma em todas as direes.Esse um postulado sem o qual nenhuma medida dessa velocidadepoderia ser tentada. Esse postulado jamais poder ser verificado di-retamente pela experincia; poderia ser contradito por ela, se os re-sultados das diversas medidas no fossem concordantes. Devemosnos considerar felizes por essa contradio no ter ocorrido, e pelofato de poderem explicar-se facilmente as pequenas discordncias

    que podem acontecer.Em todo caso o postulado, em conformidade com o princpio da

    razo suficiente, foi aceito por todos; o que quero lembrar que elenos fornece uma nova regra para a pesquisa da simultaneidade, in-teiramente diferente daquela que havamos enunciado acima.

    Admitido esse postulado, vejamos como se mediu a velocidade daluz. Sabe-se que Roemer serviu-se dos eclipses dos satlites de Jpiter

    e procurou saber em quanto tempo o evento se atrasava em relao predio.Mas como se faz essa predio? Com o auxlio das leis astronmi-

    cas, como por exemplo a lei de Newton.Os fatos observados no poderiam do mesmo modo explicar-se

    se atribussemos velocidade da luz um valor um pouco diferente dovalor adotado, e se admitssemos que a lei de Newton apenas apro-

    ximada? S que seramos levados a substituir a lei de Newton poruma outra mais complicada.Assim, adotamos para a velocidade da luz um valor tal que as leis

    astronmicas compatveis com esse valor sejam to simples quantopossvel. Quando os marinheiros ou gegrafos determinam uma

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    longitude, tm que resolver precisamente o problema que nos ocupa;sem estar em Paris, devem calcular a hora de Paris.

    Como se arranjam eles?

    Podem levar um cronmetro acertado em Paris. O problemaqualitativo da simultaneidade reduzido ao problema quantitativoda medida do tempo. No preciso retornar s dificuldades relativas aeste ltimo problema, uma vez que j insisti longamente sobre eleanteriormente.

    Ou ento observam um fenmeno astronmico, tal como umeclipse da Lua, e admitem que esse fenmeno percebido simulta-

    neamente de todos os pontos do globo.Isso no inteiramente verdadeiro, j que a propagao da luz

    no instantnea; se desejssemos exatido absoluta, haveria umacorreo a fazer, segundo uma regra complicada.

    Ou ento, enfim, servem-se do telgrafo. Antes de mais nada, claro que a recepo do sinal em Berlim, por exemplo, posterior expedio desse mesmo sinal em Paris. a regra da causa e do efeito

    analisada acima.Mas posterior em quanto tempo? Em geral, negligenciamos a

    durao da transmisso e consideramos os dois eventos como simul-tneos. Mas para sermos rigorosos seria preciso fazer ainda umapequena correo, por um clculo complicado; no a fazemos naprtica, pois seria muito menor do que os erros de observao; nempor isso sua necessidade terica deixa de subsistir, no nosso ponto de

    vista, que o de uma definio rigorosa.Desta discusso quero lembrar dois fatores:1 As regras aplicadas so muito variadas.2 difcil separar o problema qualitativo da simultaneidade do

    problema quantitativo da medida do tempo, quer utilizemos umcronmetro, quer tenhamos que levar em considerao uma veloci-dade de transmisso, como a da luz, pois no poderamos medir

    uma tal velocidade sem medir um tempo.

    XIII.Convm concluir.No temos a intuio direta da simultaneidade, nem a da igualda-

    de de duas duraes.

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    Se cremos ter essa intuio, uma iluso.Ns a compensamos com o auxlio de algumas regras que aplica-

    mos quase sempre sem perceber.

    Mas qual a natureza dessas regras?No h regra geral, no h regra rigorosa; h uma multido de

    pequenas regras aplicveis a cada caso particular.Essas regras no se impem a ns, e poderamos divertir-nos in-

    ventando outras; contudo, no poderamos nos afastar delas semcomplicar muito o enunciado das leis da fsica, da mecnica e daastronomia.

    Portanto escolhemos essas regras no porque elas sejam verda-deiras, mas porque so as mais cmodas, e poderamos resumi-lasdizendo: A simultaneidade de dois eventos, ou a ordem de sua su-cesso, e a igualdade de duas duraes devem ser definidas de talmodo que o enunciado das leis naturais seja to simples quanto pos-svel. Em outros termos, todas essas regras, todas essas definies soapenas fruto de um oportunismo inconsciente.

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    CAPTULO I I I

    A noo de espao

    I. Introduo

    Nos artigos que anteriormente dediquei ao espao, insisti sobretudonos problemas levantados pela geometria no euclidiana, deixandoquase completamente de lado outras questes mais difceis de abor-dar, tais como as que se referem ao nmero das dimenses. Todas asgeometrias que eu tinha em vista possuam assim uma base comum o contnuo de trs dimenses que era o mesmo para todas, e ques se diferenciava pelas figuras que nele se traavam, ou quando se

    pretendia medi-lo.Nesse contnuo, primitivamente amorfo, pode-se imaginar uma

    rede de linhas e de superfcies, pode-se convencionar em seguidaconsiderar as malhas dessa rede iguais entre si, e s depois dessaconveno esse contnuo, tornado mensurvel, torna-se o espaoeuclidiano ou o espao no euclidiano. Desse contnuo amorfo podeento provir indiferentemente um ou outro dos dois espaos, do

    mesmo modo que, numa folha de papel em branco, podemos traarindiferentemente uma reta ou um crculo.No espao, conhecemos tringulos retilneos dos quais a soma

    dos ngulos igual a dois ngulos retos; mas conhecemos igualmen-te tringulos curvilneos dos quais a soma dos ngulos menor quedois ngulos retos. A existncia de uns no mais duvidosa que a dosoutros. Dar aos lados dos primeiros o nome de retas adotar a geo-

    metria euclidiana; dar aos lados dos ltimos o nome de retas adotara geometria no euclidiana. Assim, perguntar qual geometria con-vm adotar perguntar a qual linha convm dar o nome de reta.

    evidente que a experincia no pode resolver uma tal questo;no se pediria experincia, por exemplo, que decidisse se devo cha-

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    mar uma reta de AB, ou ento de CD. Por outro lado, tambm noposso dizer que no tenho o direito de dar o nome de retas aos ladosdos tringulos no euclidianos porque eles no so conformes ideia

    eterna de reta que possuo por intuio. Admito que tenho a ideiaintuitiva do lado do tringulo euclidiano, mas tenho igualmente aideia intuitiva do lado do tringulo no euclidiano. Por que teria euo direito de aplicar o nome de reta primeira dessas ideias e no segunda? Em que essas duas slabas fariam parte integrante dessaideia intuitiva? Evidentemente, quando dizemos que a reta euclidia-na uma verdadeira reta, e que a reta no euclidiana no uma

    verdadeira reta, queremos dizer simplesmente que a primeira ideiaintuitiva corresponde a um objeto mais notvel do que a segunda.Mas como julgamos que esse objeto mais notvel? Foi o que inves-tiguei em A cincia e a hiptese.

    Foi a que vimos a experincia intervir; se a reta euclidiana maisnotvel do que a reta no euclidiana, antes de tudo porque diferepouco de certos objetos naturais notveis, dos quais a reta no eucli-

    diana difere muito. Mas dir-se- a definio da reta no eu-clidiana artificial; tentemos por um momento adot-la, e veremosque dois crculos de raio diferente recebero ambos o nome de retasno euclidianas, ao passo que, de dois crculos de mesmo raio, umpoder satisfazer definio sem que o outro a satisfaa, e ento setransportamos uma dessas pretensas retas sem deform-la, ela deixa-r de ser uma reta. Mas com que direito consideramos iguais essas

    duas figuras que os gemetras euclidianos chamam de dois crculosde mesmo raio? porque, ao transportar uma delas sem deform-la,podemos faz-la coincidir com a outra. E por que dizemos queesse transporte se efetuou sem deformao? impossvel dar a issouma boa razo. Entre todos os movimentos concebveis, h algunsdos quais os gemetras euclidianos dizem que no so acompanha-dos de deformao; mas h outros dos quais os gemetras no eu-

    clidianos diriam que no so acompanhados de deformao. Nosprimeiros, ditos movimentos euclidianos, as retas euclidianas perma-necem retas euclidianas, e as retas no euclidianas no permanecemretas no euclidianas; nos movimentos do segundo tipo, ou movi-mentos no euclidianos, as retas no euclidianas permanecem retas

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    no euclidianas, e as retas euclidianas no permanecem retas eucli-dianas. Portanto, no demonstramos que era despropositado chamarde retas os lados dos tringulos no euclidianos; demonstramos ape-

    nas que isso seria despropositado se continussemos a chamar demovimentos sem deformao os movimentos euclidianos; mas tera-mos mostrado do mesmo modo que seria despropositado chamar deretas os lados dos tringulos euclidianos, se chamssemos de movi-mentos sem deformao os movimentos no euclidianos.

    Ento, quando dizemos que os movimentos euclidianos so osverdadeiros movimentos sem deformao, o que queremos dizer?

    Queremos dizer simplesmente que eles so mais notveis do que osoutros; e por que so eles mais notveis? Porque certos corpos natu-rais notveis, os corpos slidos, sofrem movimentos mais ou menosparecidos.

    Ento, quando perguntamos Pode-se imaginar o espao no eu-clidiano?, isso quer dizer Podemos ns imaginar um mundo ondehouvesse objetos naturais notveis que adotassem mais ou menos a

    forma das retas no euclidianas, e corpos naturais notveis que so-fressem frequentemente movimentos mais ou menos semelhantesaos movimentos no euclidianos?. Mostrei em A cincia e a hipteseque se deve responder sim a essa questo.

    Observou-se muitas vezes que se todos os corpos do Universoviessem a se dilatar simultaneamente e na mesma proporo, noteramos qualquer meio de perceber isso, j que todos os nossos ins-

    trumentos de medida aumentariam ao mesmo tempo que os pr-prios objetos que eles servem para medir. O mundo, aps essa dila-tao, seguiria seu curso, sem que nada viesse advertir-nos de umevento to considervel.

    Em outros termos, dois mundos que fossem semelhantes um aooutro (entendendo a palavra similitude no sentido do terceiro livrode geometria) seriam absolutamente indiscernveis. Mas no s

    isso: dois mundos sero indiscernveis no s se forem iguais ou se-melhantes isto , se pudermos passar de um ao outro mudandoos eixos das coordenadas, ou mudando a escala qual se reportam oscomprimentos; sero ainda indiscernveis se pudermos passar de umao outro por uma transformao pontual qualquer. Explico-me.

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    Suponho que a cada ponto de um corresponde um e somente umponto do outro, e inversamente; alm disso, que as coordenadas deum ponto sejam funes contnuas, quanto ao mais inteiramente

    arbitrrias, das coordenadas do ponto correspondente. Por outrolado, suponho que a cada objeto do primeiro mundo correspondeno segundo um objeto de igual natureza, localizado precisamente noponto correspondente. Suponho enfim que essa correspondnciarealizada no instante inicial conserva-se indefinidamente. No tera-mos nenhum meio de distinguir esses dois mundos um do outro.Quando falamos da relatividade do espao, geralmente no a enten-

    demos num sentido to amplo; contudo, assim que deveramosentend-la.

    Se um desses universos nosso mundo euclidiano, o que seushabitantes chamaro de reta ser a nossa reta euclidiana; mas o queos habitantes do segundo mundo chamaro de reta ser uma curvaque gozar das mesmas propriedades em relao ao mundo que eleshabitam e em relao aos movimentos que chamaro de movimen-

    tos sem deformao; sua geometria ser portanto a geometria eucli-diana, mas sua reta no ser a nossa reta euclidiana. Ser justificadapela transformao pontual que faz passar do nosso mundo ao deles;as retas desses homens no sero as nossas retas, mas tero entre si asmesmas relaes que nossas retas tm entre si; nesse sentido quedigo que sua geometria ser a nossa. Se ento quisermos a todo cus-to proclamar que eles se enganam, que sua reta no a verdadeira

    reta, se no desejarmos confessar que uma tal afirmao no temqualquer sentido, ao menos deveremos confessar que essas pessoasno tm qualquer tipo de meio de se dar conta de seu erro.

    2. A geometria qualitativa

    Tudo isso relativamente fcil de compreender, e tenho repetido

    muitas vezes que julgo intil estender-me mais sobre esse assunto.O espao euclidiano no uma forma imposta nossa sensibilidade,uma vez que podemos imaginar o espao no euclidiano; mas osdois espaos euclidiano e no euclidiano tm uma base co-mum: esse contnuo amorfo do qual eu falava no incio; desse

    44 AS CINCIAS MATEMTICAS

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    contnuo podemos tirar quer o espao de Euclides, quer o espao deLobatchevski, assim como, traando uma graduao conveniente,podemos transformar um termmetro no graduado quer em ter-

    mmetro Fahrenheit, quer em termmetro Raumur.Ento, apresenta-se uma questo: esse contnuo amorfo, que nos-

    sa anlise deixou subsistir, no ser uma forma imposta nossa sen-sibilidade? Teramos alargado a priso na qual essa sensibilidade estencerrada, mas continuaria a ser uma priso.

    Esse contnuo possui um certo nmero de propriedades, isentas dequalquer ideia de medida. O estudo dessas propriedades o objeto de

    uma cincia que foi cultivada por muitos grandes gemetras, e emparticular por Riemann e Betti, e que recebeu o nome de analysis si-tus.* Nessa cincia faz-se abstrao de toda ideia quantitativa e, porexemplo, se constatamos que numa linha o ponto B est entre os pon-tos A e C, iremos nos contentar com essa constatao e no nos preo-cuparemos em saber se a linha ABC reta ou curva, nem se o compri-mento AB igual ao comprimento BC, ou se duas vezes maior.

    Os teoremas da analysis situs tm portanto a seguinte particulari-dade: permaneceriam verdadeiros se as figuras fossem copiadas porum mau desenhista, que alterasse grosseiramente todas as propor-es e substitusse as retas por linhas mais ou menos sinuosas. Emtermos matemticos, eles no so alterados por uma transformaopontual qualquer. Foi dito com frequncia que a geometria mtricaera quantitativa, enquanto a geometria projetiva era puramente qua-

    litativa; isso no inteiramente verdadeiro; o que distingue a reta dasoutras linhas so ainda as propriedades que permanecem quantita-tivas em certos aspectos. A verdadeira geometria qualitativa , por-tanto, a analysis situs.

    As mesmas questes que surgiam a propsito das verdades dageometria euclidiana surgem de novo a propsito dos teoremas daanalysis situs. Podem eles ser obtidos a partir de um raciocnio dedu-

    tivo? Sero convenes disfaradas? Sero verdades experimentais?Sero eles os caracteres de uma forma imposta quer nossa sensibi-lidade, quer ao nosso entendimento?

    * Hoje esse ramo da matemtica conhecido como topologia. (N. da T. )

    A NOO DE ESPAO 45

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    Desejo simplesmente observar que as duas ltimas solues seexcluem, o que nem sempre tem sido percebido por todos. No po-demos admitir ao mesmo tempo que impossvel imaginar o espao

    de quatro dimenses e que a experincia nos demonstra que o espa-o tem trs dimenses. O experimentador faz uma interrogao natureza: isto ou aquilo? E no pode faz-la sem imaginar os doistermos da alternativa. Se fosse impossvel imaginar um desses ter-mos, seria no s intil como impossvel consultar a experincia.No precisamos da observao para saber que o ponteiro de um re-lgio no est na diviso 15 do mostrador, uma vez que sabemos

    de antemo que ele s tem 12, e no poderamos olhar para a diviso15 para ver se o ponteiro est l, j que essa diviso no existe.

    Observemos igualmente que aqui os empiristas se livram de umadas objees mais graves que podem ser dirigidas contra eles: aquelaque, de antemo, torna absolutamente vos todos os seus esforospara aplicar suas teses s verdades da geometria euclidiana. Essasverdades so rigorosas, e toda experincia s pode ser aproximada.

    Na analysis situs, as experincias aproximadas podem ser suficientespara gerar um teorema rigoroso. Se vemos, por exemplo, que o espa-o no pode ter nem duas ou menos de duas dimenses, nem quatroou mais de quatro, ficamos certos de que ele tem exatamente trs,pois no poderia ter duas e meia ou trs e meia.

    De todos os teoremas da analysis situs, o mais importante aque-le que exprimimos dizendo que o espao tem trs dimenses. des-

    te que iremos nos ocupar, e faremos a pergunta nestes termos: quan-do dizemos que o espao tem trs dimenses, o que queremos dizer?

    3. O contnuo fsico de vrias dimenses

    Expliquei em A cincia e a hiptese de onde nos vem a noo de con-tinuidade fsica, e como dela pde sair a de continuidade matemti-

    ca. Acontece que somos capazes de distinguir duas impresses umada outra, ao passo que no poderamos distinguir cada uma delas deuma terceira similar. assim que podemos distinguir facilmente umpeso de 12 gramas de um peso de 10 gramas, enquanto um peso de11 gramas no poderia ser distinguido nem de um nem de outro.

    46 AS CINCIAS MATEMTICAS

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    Uma tal constatao, traduzida em smbolos, iria escrever-se:

    A =B, B =C, A < C.

    Essa seria a frmula do contnuo fsico, tal como ele nos dadopela experincia bruta. Tal contradio intolervel foi eliminada coma introduo do contnuo matemtico. Este uma escala cujos graus(nmeros comensurveis ou incomensurveis) so em nmero infi-nito, mas so exteriores uns aos outros, em vez de se invadirem unsaos outros como o fazem, em conformidade com a frmula prece-dente, os elementos do contnuo fsico.

    O contnuo fsico , por assim dizer, uma nebulosa no resolvida:os mais aperfeioados instrumentos no poderiam chegar a resolv-la; sem dvida, se medssemos os pesos com uma boa balana, emvez de avali-los com a mo, iramos distinguir o peso de 11 gramasdaqueles de 10 e 12 gramas, e nossa frmula se tornaria:

    A < B, B < C, A < C.

    Mas encontraramos sempre entre A e B e entre B e C novos ele-mentos D e E, tais que:

    A =D, D =B, A < B; B =E, E =C, B < C,

    e a dificuldade s teria sido adiada, com a nebulosa continuando ano ser resolvida; s o esprito pode resolv-la, e o contnuo mate-mtico a nebulosa resolvida em estrelas.

    Entretanto, at agora no introduzimos a noo do nmero dasdimenses. O que queremos dizer quando dizemos que um contnuomatemtico, ou um contnuo fsico, tem duas ou trs dimenses?

    Antes de tudo, preciso introduzirmos a noo de corte, atendo-nos primeiro ao estudo dos contnuos fsicos. Vimos o que caracteri-za o contnuo fsico: cada um dos elementos desse contnuo consisteem um conjunto de impresses; e pode acontecer ou que um ele-

    mento no possa ser discernido de outro elemento do mesmo cont-nuo, se esse novo elemento corresponde a um conjunto de impres-ses pouco diferentes demais, ou ento, ao contrrio, que a distinoseja possvel; enfim, pode ocorrer que dois elementos, indiscernveisde um terceiro, possam contudo ser discernidos um do outro.

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    Isso posto, se A e B so dois elementos discernveis de um cont-nuo C, poderemos encontrar uma srie de elementos

    E1, E2, ..., En

    pertencendo todos a esse mesmo contnuo C, e tais que cada umdeles indiscernvel do precedente, que E1 indiscernvel de A e Enindiscernvel de B. Poderemos ento ir de A a B por um caminhocontnuo, e sem deixar C. Se essa condio satisfeita para dois ele-mentos quaisquer A e B do contnuo C, poderemos dizer que essecontnuo C ininterrupto.

    Distingamos agora alguns dos elementos de C que podero ou sertodos discernveis uns dos outros ou formar eles mesmos um ouvrios contnuos. O conjunto dos elementos assim escolhidos arbi-trariamente entre todos os de C formar aquilo a que chamarei ocorteou os cortes.

    Retomemos em C dois elementos quaisquer A e B. Ou ento po-deremos ainda encontrar uma srie de elementos

    E1, E2, ..., En

    tais: 1 que pertenam todos a C; 2 que cada um deles seja indiscer-nvel do seguinte; E1indiscernvel de A e Ende B; 3 alm disso, quenenhum dos elementos E seja indiscernvel de qualquer dos elementosdo corte. Ou ento, ao contrrio, em todas as sries E1, E2, ..., En quesatisfaam s duas primeiras condies haver um elemento E indis-cernvel de um dos elementos do corte.

    No primeiro caso, podemos ir de A a B por um caminho cont-nuo, sem deixar C e sem encontrar os cortes; no segundo caso, isso impossvel.

    Se ento, para dois elementos quaisquer A e B do contnuo C, sempre o primeiro caso que ocorre, diremos que C permanece inin-terrupto apesar dos cortes.

    Assim, se escolhemos os cortes de uma certa maneira, alis arbi-trria, poder ocorrer ou que o contnuo permanea ininterrupto ouque no permanea ininterrupto; nesta ltima hiptese, diremosento que ele est dividido pelos cortes.

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    Observaremos que todas essas definies so construdas partin-do-se unicamente do fato muito simples de que dois conjuntos deimpresses ora podem ser discernidos, ora no podem s-lo.

    Isso posto, se para dividir um contnuo basta considerar comocortes um certo nmero de elementos todos discernveis uns dosoutros, diz-se que esse contnuo de uma dimenso; se, ao contrrio,para dividir um contnuo necessrio considerar como cortes umsistema de elementos que formam eles mesmos um ou vrios cont-nuos, diremos que esse contnuo de vrias dimenses.

    Se para dividir um contnuo C bastam cortes que formem um ouvrios contnuos de uma dimenso, diremos que C um contnuo deduas dimenses; se bastam cortes que formem um ou vrios cont-nuos de duas dimenses no mximo, diremos que C um contnuode trs dimenses; e assim por diante.

    Para justificar essa definio