o tratado de versalhes- jean-jacques becker

217
JEAN-|ACQUES BECKER O TRATADO DE VERSALHES

Upload: lo

Post on 26-Sep-2015

224 views

Category:

Documents


53 download

DESCRIPTION

Este livro de Jean-Jacques Becker revisita o pós-guerra para mostrar as limitações que a diplomacia daépoca enfrentava. Com rigor historiográfico, o autorrebate o argumento de que o Tratado de Versalhes foio estopim da Segunda Guerra Mundial ou a antessalado nazismo. Em vez disso, mostra que o acordo - umaárdua tarefa

TRANSCRIPT

  • JEAN-|ACQUES BECKER

    O TRATADO DEVERSALHES

  • Se declarar a guerra no enobrece biografias, a tarefa de construir a paz est longe de significar reconhecimento. Exemplo disso o Tratado de Versalhes. Assinado em 1919 aps a Grande Guerra, o acordo tem m reputao. Mas que outros caminhos poderiam ter seguido os artfices desse tratado? Seria o acordo obra exclusiva do britnico Lloyd George, do francs Georges Clemenceau e do norte-americano Woodrow Wilson?

    Este livro de Jean-Jacques Becker revisita o ps-guerra para mostrar as limitaes que a diplomacia da poca enfrentava. Com rigor historiogrfico, o autor rebate o argumento de que o Tratado de Versalhes foi o estopim da Segunda Guerra M undial ou a antessala do nazismo. Em vez disso, mostra que o acordo - uma rdua tarefa de conciliao entre os povos - lanou as bases de um organismo internacional cujo objetivo seria estabilizar as relaes entre os Estados. E defende que se o revanchismo alemo era uma previsvel conseqncia da derrota na guerra, a deflagrao de um novo conflito mundial no era inevitvel.

    JEAN-JACQUES BECKER, professor emrito de Histria Contempornea na Universidade de Paris X-Nanterre, autor de vrias obras sobre a Grande Guerra, entre as quais Dictionnaire de la

    Grande Guerre (Bruxelas, 2008).

    ISBN 9 7 8 - 8 5 - 3 9 3 - 0 1 0 5 -

    7 8 8 5 3 9 '13 0 1 0 5 !

  • Jean-Jacques Becker

    O T ra ta d o de V ersalhes

    Traduo Constancia Egrejas

    &editoraunesp

  • 2002 Presses Universitaires de France 2010 da traduo brasileira

    Ttulo original: Le Trait de Versailles

    Direitos de publicao reservados :Fundao Editora da Unesp (FEU)Praa da S, 108 01001-900 - So Paulo - SP Tel.: (Oxxll) 3242-7171 Fax: (Oxxll) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br www.livrariaunesp.com.br [email protected]

    CIP - Brasil. Catalogao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    Becker, Jean-Jacques, 1928-O Tratado de Versalhes / Jean-Jacques Becker; traduo Constancia Egrejas. - So Paulo: Editora Unesp, 2011. 224p.

    Traduo de: Le Trait de Versailles ISBN 978-85-393-0105-8

    1. Tratado de Versailles (1919). 2. Guerra Mundial, 1914-1948 - Paz. 3. Europa - Histria - 1914-. I. Ttulo.

    11-1665. CDD: 940.3141

    B356t

    CPU: 94(100)1914/1918'

    Editora afiliada:

    $2Asociacin de Editorlales Universltartas

    de Amrica Latina y el CaribeAssociao Brasileira de Editoras Universitrias

  • Sumrio

    Introduo 1

    1 A surpresa do armistcio 5A deteriorao da situao da

    Alemanha 6O pedido de armistcio 7As reaes diante do pedido de

    armistcio 10A correspondncia

    germano-americana 14Resistir ao mximo? 16As condies do armistcio 19A assinatura do armistcio 22O armistcio foi prematuro? 28

  • 2 A conferncia dos vencedores 31Apenas os vencedores 31 A organizao da Conferncia 34 Os Trs 37Wilson e Clemenceau 40

    3 A Alemanha marginalizada pelas naes 55

    A responsabilidade da Alemanha 55 As clusulas penais 59 As reparaes 60A Alemanha devia ser destruda? 71 A questo da ustria 81 As medidas discriminatrias 84

    4 O direito dos povos autodeterminao 89

    As reivindicaes belgas 90 As reivindicaes dinamarquesas 92 A questo polonesa 93 A Europa Central e Balcnica 102 As divergncias entre os Aliados 115 A questo de Teschen 116 As reivindicaes italianas 117 O problema das minorias 121

    5 A questo russa 127A interveno 129Negociaes com os bolcheviques 132

  • As hesitaes dos Aliados 134 O cordo sanitrio" 139

    6 A Sociedade das Naes 147A grande ideia de Wilson 147A questo do desarmamento 150A organizao da SDN 151Discordncias sobre a organizao

    da SDN 152Os meios de ao 156O Bureau Internacional do

    Trabalho 160

    7 A assinatura do Tratado de Versalhes 163

    O processo de assinatura 163A reao alem 165Os Aliados diante da reao alem 167A assinatura do Tratado de

    Versalhes 172Os tratados da periferia

    parisiense 172A ratificao dos tratados 173 A no ratificao pelos Estados

    Unidos 179

    8 O fracasso de Versalhes 183A queda de Orlando 184 A aposentadoria de Clemenceau 185

  • A partida de Wilson 193 A demisso de Lloyd George 194

    Concluso 201

    Referncias bibliogrficas 205 O texto do tratado 205 Participantes 205 Estudos 206

  • Introduo

    A crise internacional anterior ecloso da guerra, nos primeiros dias de agosto de 1914, foi de curta durao. O ultimato austraco, decorrente do atentado de Sarajevo de 28 de junho, fora enviado Srvia em23 de julho. E, depois de ter sido mantida sob sigilo por quase um ms, a crise durou apenas uma semana. A Alemanha e a Frana decretaram mobilizao geral na tarde de l 2 de agosto. Na opinio geral, tanto para os dirigentes civis ou militares, quanto para o povo, esse conflito seria muito breve, levaria no mximo algumas semanas ou alguns meses. Como se sabe, ele durou mais de

  • Jean-Jacques Becker

    quatro anos. Durante muito tempo, a convico de um conflito a curto prazo por parte dos beligerantes dificultou qualquer tentativa de paz. As tentativas de negociao de variadas origens surgiram somente em 1916, e principalmente em 1917, mas no tiveram chance de xito: pelo lado da Alemanha, um mapa de guerra favorvel tomava quase impossvel qualquer forma de conciliao, enquanto pelo lado da Frana, como seria possvel pensar numa paz branca, isto , sem recuperar a Alscia-Lorena, depois de suportar tantos sacrifcios, mesmo que no tivesse entrado na guerra com o propsito de reconsquist-la?

    Esse obstculo era intransponvel, de modo que no fim de 1917 - na Frana, a formao do governo Clemenceau prova disso - a guerra s poderia terminar pela vitria de um dos dois campos. Apesar do horror da guerra, da fadiga, das recriminaes, das correntes pacifistas, a maioria dos franceses, britnicos e alemes, tanto os soldados quanto os civis, estava resignada a aguentar at o fim.

    Teoricamente, a Alemanha dispunha de melhores trunfos. As revolues russas e a sada da Rssia da guerra (o armistcio

    2

  • O Tratado de Versalhes

    foi assinado em Brest-Litovsk em 15 de dezembro de 1917) deveriam favorecer a vitria Alemanha, pelo fato de o pas ter a possibilidade de deslocar as tropas do front oriental para o ocidental, antes da chegada dos soldados norte-americanos - os Estados Unidos se associaram s potncias da Entente a partir de 2 de abril de 1917 - na Europa, em quantidade suficiente para mudar o poderio das foras.

    A prtica revelou-se diferente da teoria, porque o governo e principalmente o comando alemo no souberam escolher entre uma vitria a leste e uma vitria a oeste. Primeiro, eles quiseram aproveitar o mximo de sua vitria a leste, o que retardou a concluso da paz, a qual foi ainda mais postergada em conseqncia do jogo dos bol- cheviques e particularmente de Trotski em conduzir a situao de maneira morosa, na v esperana de que a revoluo eclodiria na Alemanha. A chamada paz de Brest-Litovsk foi concluda apenas em 3 de maro de 1918, e as ambies da Alemanha obrigaram-na a deixar numerosas tropas a leste. Das oitenta divises dispostas no front russo, apenas quarenta puderam ser transferidas para o Ocidente. Os ataques brutais dirigidos ao

    3

  • Jean-Jacques Becker

    front ocidental pelo general Ludendorff, iniciados em 21 de maro de 1918, tanto contra os britnicos quanto contra os franceses, proporcionaram-lhe importantes vitrias tticas, mas, embora Ludendorff fosse melhor ttico do que estrategista, dez ou vinte divises suplementares permitiram-lhe realmente vencer e transformar suas vitrias tticas em vitria estratgica.

    Ludendorff levou cerca de quatro meses para vencer. Mas, em julho, o corpo expedicionrio norte-americano contava com aproximadamente 1 milho de homens, logo a vantagem numrica passou para o lado dos Aliados e continuou a favorec-los.

    A partir de 8 de agosto, data batizada por Ludendorff como o dia de luto do exrcito alemo, a iniciativa passou para o lado dos Aliados. A dificuldade e a lentido em progredir eram indcios de que o fim da guerra no seria no curto prazo - em 1919 provavelmente, caso no houvesse a interveno de um outro novo elemento. Aps quatro anos de guerra, no havia mais dvidas quanto vitria dos aliados, o incerto era saber quando isso ocorreria.

    4

  • Captulo I

    A surpresa do armistcio

    Embora o comando alemo no esperasse mais vencer, ele pensava obter meios para que a guerra durasse o suficiente para obrigar as potncias aliadas a uma paz que lhe fosse favorvel. Com esse objetivo, no dia 27 de agosto, um novo acordo foi assinado com a Rssia sovitica, possibilitando a transferncia para oeste de grande parte das foras que ainda se encontravam a leste. Todavia, o comando alemo teve a impresso de ter feito um grande passo em direo paz, ao aceitar no dia 12 de setembro, atravs do vice-chanceler Payer, a conservao do statu quo na Europa Ocidental, em troca da

  • Jean-Jacques Becker

    recuperao das colnias. Isso significava que a Alemanha renunciaria Blgica, mas conservaria a Alscia-Lorena. Uma proposta bastante hbil, pois poderia enfraquecer a determinao britnica; porm, era incontestavelmente insuficiente e, por fim, inaceitvel pelos Aliados.

    A deteriorao da situao da Alemanha

    A situao da Alemanha comeou a se degradar durante o ms de setembro, apesar das esperanas de seus dirigentes.

    Um elemento essencial a esse respeito, apesar da indiferena do general Ludendorff, era o enfraquecimento da opinio pblica. A questo alimentar tornou-se insuportvel, e de uma maneira geral os sacrifcios eram cada vez mais inteis, uma vez que no havia mais a esperana de vencer. Do lado alemo, os meios polticos comearam a criticar mais veementemente o poder militar que queria controlar as questes civis, assemelhando-se a uma ditadura.

    Segundo elemento: o definhamento quase total da Austria-Hungria - assim, a Alemanha corria o risco de perder seu principal

    6

  • O Tratado de Versalhes

    aliado no curto prazo. O imperador Carlos no acreditava possvel resistir ao inverno. Em 14 de setembro, contrariando a opinio da Alemanha, o governo austro-hngaro publica uma nota propondo aos beligerantes negociaes de paz. No entanto, no dia seguinte, dia 15, o exrcito aliado de Salnica, comandado pelo general Franchet dEsperey, passa ofensiva nos Blcs. A linha de frente, conduzida essencialmente pelos blgaros, desmantela-se. No dia 25 de setembro, a Bulgria pede o armistcio. No s a Alemanha perdia um valioso aliado, como tambm ficaram abertas as fronteiras meridionais da ustria-Hungria. Alm disso, o general britnico Allenby passou ofensiva na Palestina, rompeu o front turco, e a Turquia se viu imediatamente em situao desastrosa. Era o comeo da fragmentao da Qudrupla Aliana.

    O pedido de armistcio

    Finalmente, tudo dependia da capacidade de o exrcito alemo manter-se no front ocidental. No entanto, Foch, marechal desde7 de agosto, lanou uma grande ofensiva

    7

  • Jean-Jacques Becker

    em todo o front. Os resultados foram diferentes, mas na regio de Saint-Quentin, os britnicos conseguiram forar a Linha Hindenburg, o que causou certa afobao no grande quartel-general alemo. No era iminente uma catstrofe militar? O general Ludendorff julgou rapidamente que, para evit-la, seria preciso pedir imediatamente o armistcio.

    Na prtica, esse imediato levou cinco dias. Um pedido de armistcio competia ao poder civil, e o chanceler local, Hertling, considerado apenas como uma espcie de porta-voz do Estado-Maior, no dispunha de autoridade suficiente para providenci-lo. Encontrar um novo chanceler no era simples: ele teria que agradar ao imperador, ao alto-comando e a uma maioria parlamentar. O escolhido foi um prncipe da famlia imperial, Max de Bade, que h muito tempo, sem contestar o direito da Alemanha, pensava obter a paz atravs da conciliao. Era um humanista e no um homem de ao, mas, paradoxalmente, relutou em aceitar o pedido precipitado do armistcio, alegando que a pressa poderia enfraquecer a posio da Alemanha, o que explica um certo atraso em relao s objur- gaes imperiosas de Ludendorff. Alm

    8

  • O Tratado de Versalhes

    disso, para quem seria enviado o pedido de armistcio? No seria Frana, com quem Clemenceau opunha-se a qualquer conciliao. Ele declarara no Senado no dia 17 de setembro: "Lutar, lutar triunfalmente, cada vez mais e sempre, at o inimigo perceber que no existe mais negociao possvel entre o crime e a lei.

    A melhor soluo seria a de dirigir-se ao presidente dos Estados Unidos. No programa de paz apresentado por [Woodrow] Wilson diante do Congresso norte-americano no dia8 de janeiro de 1918 - os catorze pontos - , constava o oitavo ponto que previa a devoluo da Alscia-Lorena Frana, questo at ento inadmissvel pelas autoridades alems. No entanto, Wilson esclarecera que no queria incriminar a grandeza alem. Ele recusava a ideia de uma paz vingativa. Havia, portanto, a possibilidade de discusso com os Estados Unidos.

    Na noite de 3 para 4 de outubro, o pedido de armistcio foi enviado ao presidente norte-americano, via Sua. Como sabemos, o armistcio s foi assinado no dia 11 de novembro. Por que se passou mais de um ms entre o pedido de armistcio e sua assinatura?

    9

  • Jean-Jacques Becker

    As reaes diante do pedido de armistcio

    Os comportamentos diante do pedido de armistcio alemo foram bastante variados, at mesmo contraditrios. Seria preciso responder antes que a guerra tivesse atingido o territrio alemo? E mais, que tipo de paz esse armistcio poderia proporcionar?

    Era difcil para os governos britnico ou francs revelar claramente sua oposio aos catorze pontos de Wilson, por eles aprovados - sem gerar constrangimentos - , mas eles viam com grande desconfiana essa paz sem vitria defendida por Wilson. Alis, acontecia a mesma coisa com os republicanos norte-americanos: homens como Henry Cabot Lodge ou Theodore Roosevelt tambm consideravam que o objetivo da guerra era aniquilar a Alemanha. Grande parte da imprensa norte-americana tambm pensava assim. A Alemanha devia ficar acuada diante da rendio incondicional. Era impossvel discutir com Guilherme II e sua "camarilha militar. Na Gr-Bretanha, a maior parte da imprensa demonstrava desconfiana, sobretudo porque o comunicado alemo no falava em restituir a Alscia-Lorena. Somente a

    10

  • O Tratado de Versalhes

    imprensa trabalhista acreditava que o militarismo alemo seria aniquilado.

    Na Frana, o pedido alemo provocou igualmente reaes diversas. Alguns viam no comunicado alemo uma manobra, uma armadilha para obter uma trgua necessria. Para o jornal de direita Lcho de Paris, era perigoso - a prazo - aceit-lo, antes de ter invadido o solo alemo: a Alemanha no se sentiria derrotada. Para o jornal de esquerda Oeuvre, a oferta deveria ser acatada conseguindo as garantias militares suficientes, que era tambm a posio do Congresso do Partido Socialista reunido entre os dias 6 e9 de outubro.

    Mas seria simplificar demais as atitudes pela oposio de direita e esquerda sobre esse assunto. A opinio pblica estava bastante dividida. Havia duas tendncias contraditrias, uma que pode ser chamada sentimental: Como manter por um dia a mais uma guerra que j fez tantos mortos?; a outra pode ser caracterizada como realista: O armistcio no deve ser aceito sem que a guerra tenha passado pelo solo alemo.

    Essa diviso se manteve durante todo o ms de outubro, mas aprofundou-se consi- deravalmente. Quando as negociaes entre

    11

  • Jean-Jacques Becker

    a Alemanha e os Estados Unidos se complicaram, a corrente favorvel ao aniquilamento da Alemanha tornou-se mais resistente; quando pareciam avanar favoravelmente, uma grande esperana aguava a ideia de que a guerra logo terminaria.

    Como reagiam os governos? A situao era curiosa, pois o pedido de armistcio tinha sido enviado unicamente ao presidente dos Estados Unidos, mas os chefes dos governos "associados - Lloyd George, Clemenceau, Orlando - no tinham dvidas de que Wilson os consultaria. Durante uma das reunies habituais, no dia 5 de outubro, os trs esperaram - inutilmente e com irritao crescente - a comunicao do presidente norte-americano que no veio. Lloyd George e Orlando ficaram at 9 de outubro!... Enquanto isso, eles chegaram a um acordo sobre os termos de um eventual armistcio. A ideia geral era clara: o armistcio seria aceito assim que as garantias fossem suficientes.

    No entanto, esse no era o consenso geral entre todos os responsveis: os generais britnicos partilhavam da opinio de seu governo, mas o comandante do corpo expedicionrio norte-americano, general

    12

  • O Tratado de Versalhes

    Pershing, era completamente contrrio aprovao, antes de ter entrado na Alemanha. As oposies mais fortes, todavia, ocorreram nos meios polticos e militares franceses. Enquanto o marechal Foch estava mais inclinado a aceitar [o armistcio], o general Ptain, que preparava uma grande ofensiva, decisiva, segundo ele, na Lorena (Foch no estava convencido disso), preferia esperar, assim como o general Mordacq, chefe do gabinete militar de Clemenceau. Mas a troca de argumentos mais forte ocorreu entre Clemenceau e o presidente da Repblica, Raymond Poincar. No dia 7 de outubro, Poincar escreveu a Clemenceau que o armistcio ia desmembrar nossas tropas. A resposta de Clemenceau foi muito violenta e ele ameaou demitir-se.

    Quanto ao presidente Wilson, ele no teve a inteno de ser indelicado com seus parceiros europeus ao no consult-los, antes julgava que, segundo as boas maneiras, a uma carta a ele dirigida, cabia-lhe respond-la ou no - e ele chegou mesmo a ficar chocado ao saber que os lderes europeus haviam deliberado sobre uma proposta de armistcio que no havia sido enviada a eles. O secretrio de Estado Lansing era

    13

  • Jean-Jacques Becker

    a favor de recusar pura e simplesmente o pedido alemo. Em relao ao conselheiro de maior confiana do presidente - que poderamos chamar de seu segundo ego , o coronel House, ele julgava que no era preciso responder. No entanto, Wilson pensava em responder... a seu modo. O que resultou num verdadeiro bal epistolar durante todo o ms de outubro.

    A correspondncia germano-americana

    A primeira nota norte-americana, do dia8 de outubro, era uma resposta primeira nota alem, retrucada por uma segunda nota alem em 12 de outubro. A resposta do presidente Wilson datou de 14 de outubro. A terceira nota alem foi enviada no dia 20 de outubro e a terceira nota norte-americana em 23 de outubro.

    A quarta nota alem do dia 27 de outubro de 1918 aceitava as condies norte-americanas e declarava que o governo alemo estava pronto para receber as propostas dos Aliados.

    Qual era o propsito dessa troca epistolar? Para o governo alemo, era um meio para

    14

  • O Tratado de Versalhes

    conseguir que a paz fosse negociada; para o presidente norte-americano, que suas condies fossem claramente definidas e aceitas pelos alemes. As notas alems, inicialmente bastante imprecisas, tornaram-se cada vez mais definidas graas s presses exercidas por Wilson. Ele queria que a Alemanha, por intermdio do governo representativo - o qual no fosse nem o comando e tampouco o poder imperial - , aceitasse no a capitulao, porm as condies que a colocassem na impossibilidade de retomar a guerra, o que eqivalia a uma capitulao. Na realidade, Wilson no tinha um plano para conduzir os alemes onde ele queria, ele estava decidido a aceitar o armistcio, no queria humilhar a Alemanha, mas seus pedidos de explicaes o tornaram cada vez mais rigoroso. Ele teve atitude semelhante no momento da instaurao do tratado de paz.

    No final do ms de outubro, o governo alemo foi obrigado a reconhecer que tinha fracassado nas negociaes e que no havia outra soluo a no ser aceitar as condies norte-americanas.

    15

  • Jean-Jacques Becker

    Resistir ao mximo?

    A outra soluo seria a de resistir ao mximo e contar com a exausto dos Aliados para obter condies negociadas. Um homem agarrou-se a essa ideia, Ludendorff! Aps ter exigido o armistcio, o intendente- -mor geral do exrcito alemo mudou completamente de posio. Ele percebeu que pedindo o armistcio a Alemanha avanaria muito mais do que havia pensado. O que imaginara, uma trgua, no foi possvel. Ele tambm pde constatar que o desastre militar previsto para o dia 29 de setembro no ocorrera, que o exrcito alemo recuara, verdade, porm resistiu ao mximo para no abandonar o campo de batalha, e que a vitria pelo lado aliado no parecia fcil de ser alcanada. A progresso foi lenta e difcil. Alis, ele fez seus clculos. Na primavera, com a nova turma, com a recuperao dos soldados no interior da Alemanha, dos feridos e dos prisioneiros vindos da Rssia, o exrcito alemo teria capacidade mais uma vez para resistir vitoriosamente. Ele esquecia que nesse meio-tempo os efetivos norte- -americanos desembarcados seriam ainda mais numerosos. Na realidade, essas tropas

    16

  • O Tratado de Versalhes

    norte-americanas eram inexperientes, e os ingleses e franceses seriam obrigados a eliminar algumas divises por falta de efetivo.

    Nos seus clculos, Ludendorff descuidara tambm de vrios outros elementos: a moral alem j bastante fragilizada ficou ainda mais abalada com o pedido de armistcio, e na verdade o nmero de desertores era enorme em todas as linhas de combate.

    Ele esquecia igualmente do agravamento da situao dos aliados da Alemanha. Aps a Bulgria, a Turquia retirou-se. No dia 7 de outubro, os Jovens Turcos no poder, e particularmente o lder Enver-Pacha, foram derrubados. O sucessor Izmet-Pacha queria terminar o mais rpido possvel com a guerra. Comearam as negociaes com o comandante da frota inglesa no Mediterrneo, o almirante Calthorpe. Sem mesmo consultar a Frana, o almirante ingls assinou com o governo turco, em 30 de outubro, o Armistcio de Mudros, atravs do qual os Aliados poderiam ocupar os estreitos (e Constantinopla), os tneis do Taurus, a zona de Batum e de Baku, e ao mesmo tempo as foras turcas foram desarmadas.

    A ustria-Hungria estava em processo de desagregao. A cavalaria francesa chegara

    17

  • Jean-Jacques Becker

    s margens do Danbio no dia 21 de outubro; todavia, desde o dia 18, o imperador Charles oferecera autonomia s diferentes nacionalidades do Imprio no mbito do Estado Federal. Era muito tarde. Aos poucos os conselhos nacionais tomaram o poder e proclamaram a independncia, principalmente dos tchecos e dos eslavos do sul. A Hungria fez o mesmo em 27 de outubro. Por seu lado, aps certa hesitao, o general Diaz, comandante do exrcito italiano, passou ofensiva no dia 27 de outubro e venceu a batalha de Vittorio-Veneto, ainda mais facilmente do que, excluindo os contingentes alemes, os das outras nacionalidades que se negaram a lutar. O armistcio entre a ustria-Hungria e a Itlia foi assinado no dia 3 de novembro, em Villa Giusti.

    Ludendorff negligenciara igualmente que o poder militar tinha cada vez menos condio de impor sua vontade ao poder civil. O governo do chanceler Max de Bade levou metade do ms de outubro para restabelecer sua autoridade, e, em 26 de outubro, Ludendorff foi forado a renunciar, enquanto Hindenburg mantinha o comando supremo do exrcito, o que Lundendorff nunca lhe perdoou.

    18

  • O Tratado de Versalhes

    As condies do armistcio

    Mesmo aps a aceitao alem, levou um certo tempo para o estabelecimento das condies do armistcio, visto que, at ento, Wilson agira praticamente sozinho, ainda que aos poucos tenha informado diretamente seus parceiros e enviado o coronel House Frana, como possvel negociador pelo lado norte-americano. Alm disso, vrios projetos de armistcio foram estudados pelos generais franceses e ingleses e seus governos.

    O consenso sobre as condies militares do armistcio se deu rapidamente, embora Haig tivesse optado por condies menos severas do que as preconizadas pelo marechal Foch. Ele julgava que elas possivelmente dificultariam a aceitao dos alemes em assinar e de estender a guerra por mais um ano.

    As discusses sobre as clusulas polticas foram mais rgidas. Os Aliados haviam aprovado o princpio dos catorze pontos no momento de sua formulao, mas nunca haviam discutido sobre eles. No entanto, para Lloyd George, como aderir ao segundo ponto, relativo liberdade dos mares, pois, segundo ele, foi o bloqueio que permitira

    19

  • Jean-Jacques Becker

    derrotar a Alemanha? Quanto a Clemen- ceau, ele tinha dvidas sobre o primeiro ponto, que condenava a diplomacia secreta e, por conseguinte, ele contestava de certo modo o papel da Liga das naes, que devia solucionar publicamente todos os problemas.

    Muitos dos catorze pontos suscitavam fortes divergncias de interpretao, e a aplicao deles poderia causar riscos potenciais: parte da imprensa francesa havia advertido sobre o risco de ver os alemes da ustria querendo se unir Alemanha, fato que lhe parecia completamente inconcebvel.

    No entanto, diante da ameaa do coronel House de que os Estados Unidos poderiam, nessas condies, separar-se de seus associados, os Aliados foram forados a renunciar e aceitar os catorze pontos, ressaltando, porm, que as negociaes de paz passariam por ajustes. No foi possvel agir de outro modo, o tempo era exguo, mas o fato de o estabelecimento das condies do armsitcio no ter ultrapassado o estgio preliminar prenunciava grandes dificuldades futuras.

    Em compensao, durante as discusses muitas vezes tempestuosas, havia uma questo que abalaria as relaes internacionais

    20

  • O Tratado de Versalhes

    durante toda a dcada de 1920 e incio de 1930 e que no suscitou grandes debates: a questo das reparaes. Ela nem mesmo foi mencionada pelo presidente norte-americano em suas cartas ao governo alemo, mas surgiu durante as reunies de adequaes da Conveno de Armistcio. Clemenceau queria que essa questo constasse da Conveno. Seus parceiros assinalaram que era sobretudo uma questo concernente ao tratado de paz e no ao armistcio. Clemenceau concordou, mas advertiu que o povo francs no compreenderia a razo pela qual ela no fora mencionada desde a conveno do armistcio. O coronel House aderiu proposta de Clemenceau; da a frmula reparao dos danos que era muito mais significativa do que a frmula inicial de Wilson, de "restaurao das regies invadidas (oitavo ponto). De modo que, na ltima nota norte-americana do dia 5 de novembro, a quinta, redigida pelo secretrio de Estado Lansing, e na qual as autoridades alems foram convocadas naquele momento a entrarem em relao com o marechal Foch para receber as condies do armistcio, a questo estava claramente definida:

    21

  • Jean-Jacques Becker

    entre as condies de paz enviadas ao Congresso em

    8 de janeiro de 1918, o presidente declarou que as

    regies invadidas deviam no somente ser evacuadas

    e liberadas, mas tambm restauradas; os governos alia

    dos no gostariam que nenhuma dvida pairasse sobre

    essa clusula. Isso significa que a Alemanha dever

    indenizar todos os danos infligidos populao civil

    dos Aliados e s suas propriedades em conseqncia

    das agresses da Alemanha, por terra, mar e ar.

    A assinatura do armistcio

    Durante essas longas discusses, pairava sempre um receio. Se as condies do armistcio fossem muito rgidas, a Alemanha endureceria sua posio e a guerra continuaria. Na realidade, a situao externa e interna da Alemanha era desastrosa.

    No plano militar, o novo intendente geral do exrcito alemo, o general Groener, teve de enfrentar um avano mais rpido do que o previsto das foras aliadas: na verdade, ele poderia contrapor 198 divises s divises inimigas, mas muitas de suas unidades no passavam de espectros, e face ofensiva retomada em 31 de outubro sobre todo o front, no dia 6 de novembro ele ordenou a

    22

  • O Tratado de Versalhes

    retirada geral para a linha Anvers-Meuse. A tenso tambm aumentou nos Blcs. As vanguardas francesas atravessaram o Danbio, e a ameaa romena se definiu: no dia 10 de novembro, a Romnia retomou as armas e intimou os alemes a abandonarem seu territrio.

    Entretanto, a situao interna estava ainda pior: a revoluo - esperada por Trotski alguns meses mais cedo - eclodiu na Alemanha.

    A primeira manifestao foi em Kiel, o motim da frota de alto-mar, a quem foi dada a ordem de sada em 20 de outubro para prejudicar os transportes entre a Inglaterra e o continente. O motim se transformou rapidamente em manifestaes revolucionrias. De 3 a 5 de novembro, os marinheiros tomaram de assalto os navios, formaram conselhos de operrios e soldados. A revoluo se estendeu aos portos do mar do Norte, depois pelo interior do pas, onde se formaram conselhos de operrios e soldados por todo canto, em Hannover, Colnia e principalmente em Berlim, onde os espar- taquistas, a frao mais progressista surgida do Partido Socialista, muito prxima dos bolcheviques russos, estavam prestes a tomar o poder. No dia 7 de novembro, um

    23

  • Jean-Jacques Becker

    socialista revolucionrio, Kurt Eisner, proclamou a Repblica na Baviera.

    Quem venceria, os revolucionrios ou os socialistas moderados do Partido social- -democrata? Guilherme II tentou resistir, mas em Spa, no Grande Quartel Geral, onde se encontrava, os generais lhe comunicaram que no deveria contar com o exrcito para manter o poder. Diante dessas condies, Guilherme II abdicou e refugiou- -se na Holanda, onde faleceu em... 1941. No mesmo dia, o chanceler Max de Bade transferiu a chancelaria para um dirigente socialista, Friedrich Ebert. Em meio a um grande tumulto, duas repblicas foram proclamadas ao mesmo tempo: a primeira, pelo socialista moderado Philipp Scheidemann; a segunda, batizada de socialista, pelo espartaquista Karl Liebknecht. Os socialistas moderados, que tinham forte apoio do povo alemo, pensavam inibir a revoluo do tipo bolchevique; porm, para isso, era preciso terminar logo com a guerra.

    J no dia 7 de novembro, a comisso alem de armistcio dirigida por um civil, Mathias Erzberger, ministro de Estado, filiado ao Centro Catlico, apresentou-se perante s fileiras francesas. No dia seguinte, 8 de

    24

  • O Tratado de Versalhes

    novembro, em Rethondes, em uma clareira da floresta de Compigne, onde estacionara o trem do comando do marechal Foch, foram lidas as condies definidas pelos Aliados. A resposta era esperada para o dia11 de novembro antes do meio-dia. Quando o mensageiro da delegao alem conseguiu, com grande dificuldade, transpor as linhas para chegar Alemanha e a receber as instrues do governo, as condies j no eram mais as mesmas. O Imperador abdicara e o governo sofrer mudanas. O novo governo no pde dedicar seno alguns instantes para deliberar as condies do armistcio. A ordem dada a Erzberger era simples: assinar, assinar de qualquer maneira, tentando obter algumas atenuantes que admitissem lutar contra a revoluo. Sensveis a esse argumento, os negociadores concordaram com alguns ajustes: a entrega de 25 mil metralhadoras em vez das 30 mil previstas, 1.700 avies em vez de 2 mil, 5 mil caminhes em vez de 10 mil. O prazo para o exrcito alemo se retirar adiante do Reno passou de 25 para 31 dias. A zona neutra na margem direita do Reno foi reduzida de 30 para 10 km para que o governo alemo mantivesse o controle das zonas industriais onde havia

    25

  • Jean-Jacques Becker

    risco de desordem. O bloqueio seria mantido durante a vigncia do armistcio, mas medidas seriam tomadas para abastecer a Alemanha.

    O armistcio foi assinado pelos representantes aliados e alemes na manh do dia 11 de novembro, em Rethondes, e devia entrar em vigor s 11 horas.

    A conveno do armistcio compreendia 34 clusulas, que tinham como objetivo principal impedir a Alemanha de retomar a guerra, obrigando-a a devolver parte importante do material de guerra - canhes, metralhadoras, avies... - do material de transporte - locomotivas, vages, caminhes - , de sua frota - todos os submarinos e grande parte dos navios de grande porte; em seguida, o exrcito alemo teria que desocupar - em certo momento, levou-se em conta seu desarmamento - todos os territrios invadidos, os do oeste - Blgica, Frana, Luxemburgo assim como a Alscia-Lorena, no prazo de quinze dias. As tropas que porventura ainda se encontravam nos territrios da Austria-Hungria, Romnia, Turquia deveriam desocup-los imediatamente. Em compensao, aquelas sediadas nos territrios da antiga Rssia

    26

  • O Tratado de Versalhes

    s poderiam abandon-los no momento julgado oportuno pelos aliados. Paralelamente, os tratados de Brest-Litovsk com a Rssia e de Bucareste com a Romnia foram anulados. Finalmente, uma frao do territrio alemo deveria ser ocupada. As tropas alems tinham um prazo de 31 dias para se retirarem da margem esquerda do Reno, que seria ocupada pelas tropas aliadas, ssim como trs pontes em um raio de extenso de 30 km, na margem direita do rio, perto de Mogncia, Coblenz e Colnia. Finalmente, uma zona neutra de 10 km seria construda da margem direita da fronteira holandesa at Sua.

    As clusulas do armistcio abordavam outros pontos de importncia diversa.

    Enquanto a Alemanha deveria repatriar imediatamente todos os prisioneiros de guerra aliados ou norte-americanos, o destino dos prisioneiros de guerra alemes s seria resolvido no momento da concluso das preliminares de paz.

    A conveno do armistcio era muito mais do que um simples armistcio, a questo do futuro da margem esquerda do Reno era claramente abordada, bem como a das reparaes, sem contar, evidentemente, que

    27

  • Jean-Jacques Becker

    os catorze pontos do presidente Wilson seriam a base de tudo.

    O anncio da assinatura do armistcio foi recebido, particularmente na Frana e na Inglaterra, com grande exaltao, beirando, por vezes, o delrio.

    O armistcio foi prematuro?

    Sabemos que, logo no incio dos contatos entre Alemanha e Estados Unidos, as oposies concluso do armistcio foram bastante fortes, mas aos poucos foram perdendo a intensidade at desaparecerem quase por completo quando as condies foram conhecidas. No entanto, posteriormente, a polmica ressurgiu - e dura at hoje! - , principalmente quando os meios nacionalistas alemes afirmaram que o exrcito alemo no foi derrotado, porm apunhalado pelas costas pela revoluo - um slogan que foi um dos temas importantes do esprito de revanche na Alemanha.

    Essa polmica, na verdade, tem a ver com a propaganda. Tanto de um lado quanto do outro, como conseguir que soldados j desgastados por uma campanha to dura, com

    28

  • O Tratado de Versalhes

    importantes perdas, continuassem a lutar, se tomassem conhecimento que o cessar- -fogo fora possvel, no entanto rejeitado?

    Ademais, na coalizo aliada, a porcentagem das foras francesas e britnicas diminua, enquanto que a das foras norte-americanas no parava de aumentar. Continuar a guerra teria dado aos Estados Unidos uma fora insuportvel.

    Porm, mais importante ainda, os responsveis aliados raciocinaram em funo do que acreditavam; ora, eles estavam convencidos de que o exrcito alemo dispunha ainda de grande capacidade de resistncia. Eles ignoravam que a Alemanha estava beira do colapso. Assim disse Georges Cle- menceau diante da Comisso de Relaes Exteriores, em 5 de fevereiro de 1919:

    No momento do armistcio, desconhecamos a ver

    dadeira situao das foras alems e aceitamos o

    armistcio pensando que no dia seguinte pudesse ser

    muito tarde. Se tivssemos sido mais bem informados,

    teramos imposto condies muito mais duras.

    Quanto ao argumento choque do exrcito alemo apunhalado pelas costas, teria sido muito diferente se as tropas aliadas

    29

  • tivessem penetrado e ditado suas condies em solo alemo, uma vez que a revoluo era mais do que ameaadora?

    Jean-Jacques Becker

    30

  • Captulo II

    A conferncia dos vencedores

    Apenas os vencedores

    Tradicionalmente, fazer a paz o resultado das negociaes entre o vencedor e o vencido, ou seja, basicamente, o vencedor impe sua vontade ao vencido. Nesse caso, no havia apenas um vencido, embora obviamente a Alemanha fosse o principal. Havia tambm a Bulgria e o Imprio Otomano, alm da ustria-Hungria, agora esfacelada em vrios Estados novos. Alguns deles nitidamente faziam parte dos vencidos - a ustria alem, a Hungria - , outros pertenciam ao campo dos vencedores os

  • Jean-Jacques Becker

    tchecos, os eslavos do sul, os poloneses... No havia unicamente um vencedor, porm uma coalizo bastante heterognea.

    Os vencedores somavam 27, sem contar os domnios britnicos - Canad, Austrlia, frica do Sul, Nova Zelndia, ndia - que tinham participado ativamente da guerra e teriam direito a representantes. No entanto, havia uma grande quantidade de Estados cuja participao havia sido negligenciada ou nula, como os pases da Amrica Central ou do Sul, onze no total, ou a China (embora tenha fornecido trabalhadores)...

    Entre os que realmente participaram da guerra, cinco eram importantes potncias - Estados Unidos, Reino Unido, Frana, Itlia, Japo (cuja participao ficou limitada sia Oriental) e mais cinco pequenos Estados Blgica, Grcia, Portugal, Romnia e Srvia - , ou seja, apenas dez pases, alm dos domnios. A grande ausente do lado dos aliados era a Rssia. Eles consideravam que o caos ali existente no permitia sua participao na Conferncia de Paz.

    No era a primeira vez na histria humana que uma conferncia internacional estabeleceria a paz. O ltimo exemplo, um sculo antes, o Congresso de Viena, teve a finalidade

    32

  • O Tratado de Versalhes

    de reoganizar a Europa aps o perodo da Revoluo e do Imprio. No entanto, a Conferncia de Paz que se preparava tinha uma enorme tarefa e os vencedores estavam bem conscientes disso. Certamente, ela teria de reorganizar a Europa com base indita no direito dos povos autodeterminao, mas suas atividades se estendiam tambm, em grande parte, ao resto do mundo. Em todo caso, alm dos representantes oficiais dos pases admitidos na conferncia, uma srie de delegaes, muitas delas segmentadas por povo, mais ou menos representativas, com ideias contraditrias, rumaram para Paris.

    Havia uma grande diferena em comparao ao Congresso de Viena, onde o inimigo - nesse caso, a Frana - havia sido admitido; o retorno dos Bourbons fizera da Frana um Estado frequentvel em meio Europa monrquica. Com a Alemanha foi diferente: embora tenha havido mudana de regime dentro de um processo evolutivo para a democracia, ponto que Wilson gostaria que fosse considerado, prevalecia muita desconfiana e mesmo dio em relao Alemanha por parte, sobretudo, da Frana. A Alemanha no foi admitida seno aps a fixao das Preliminares de Paz. Mesmo

    33

  • nesse momento no foi possvel discutir com os alemes. No dia 23 de abril de 1919, Clemenceau apresentou seu ponto de vista:

    Penso que temos de chegar a um acordo sobre o proce

    dimento a ser adotado antes da chegada dos alemes.

    Proponho que todas as objees surgidas em relao

    aos termos do tratado sejam apresentadas por escrito.

    o nico meio de chegarmos ao fim. Se comearmos

    a fazer ou escutar discursos, isso no acabar nunca.

    Nem Lloyd George, nem Wilson puseram a menor objeo. Na verdade, a excluso total da Alemanha da primeira parte da Conferncia tinha outras razes. Os dirigentes aliados sabiam muito bem que entre eles se interpunham grandes divergncias e no queriam correr o risco de exp-las diante dos representantes alemes... A Conferncia de Paz transformou-se em conferncia de vencedores.

    A organizao da Conferncia

    O nmero de participantes poderia transform-la em uma espcie de feira: eram setenta plenipotencirios oficiais, acompanhados

    Jean-Jacques Becker

    34

  • O Tratado de Versalhes

    de colaboradores, secretrias, tradutores... No entanto, contrariamente a uma tradio forjada mais tarde, e apesar de certos aspectos, a Conferncia de Paz foi rigorosamente organizada e seus trabalhos foram explanados por 52 comisses.

    O bsico das negociaes teve como cenrio, inicialmente, o Conselho dos Dez, com dois delegados para a Frana, os Estados Unidos, o Reino Unido, a Itlia e o Japo. No entanto, o trabalho foi retardado pelo grande nmero de participantes e, alm disso, alguns chefes de Estado foram obrigados a deixar em diferentes datas a Conferncia, tanto Orlando quanto Lloyd George devido aos distrbios sociais em seus respectivos pases, e Wilson, por razes polticas. Para passar dez dias nos Estados Unidos, o presidente norte-americano ficou ausente durante um ms! O Conselho dos Dez era ainda uma instituio muito rdua e foi substitudo, no dia 24 de maro de 1919, pelo Conselho dos Quatro (representado pelos presidentes norte-americanos, do Conselho francs e italiano, alm do primeiro-ministro britnico). O representante do Japo podia tambm participar desse Conselho, mas o fazia apenas quando eram apresentadas questes que

    35

  • Jean-Jacques Becker

    o interessavam diretamente. O presidente do Conselho Italiano, Orlando, amvel e discreto, participava pouco das conversaes, de modo que o verdadeiro diretrio da Conferncia de Paz era constitudo por trs homens.

    Do lado britnico, evidentemente pelo primeiro-ministro Lloyd George, do lado francs pelo presidente do Conselho Geor- ges Clemenceau, embora o posto pudesse ter sido ocupado pelo presidente da Repblica que, normalmente, assumia um papel importante na poltica externa. Mas Clemenceau cuidava de afastar Poincar, que julgava demasiado nacionalista. O presidente da Repblica abriu normalmente a primeira sesso plenria da Conferncia de Paz em 18 de janeiro de 1919, mas foi logo marginalizado. Do lado norte-americano, o coronel House pensou durante muito tempo que comandaria a delegao norte-americana, porque nunca antes ocorrera de o presidente dos Estados Unidos deixar o solo nacional durante seu mandato. Ele sentiu-se profundamente humilhado, quando, para espanto de todos, Wilson anunciou que iria pessoalmente participar da Conferncia de Paz.

    36

  • O Tratado de Versalhes

    Os Trs

    O futuro grande economista John Meynard Keynes, membro da delegao britnica, demitiu-se durante a Conferncia e tornou- -se, em seguida, um enrgico crtico do tratado (ver As conseqncias econmicas da paz). Ele reduziu a Conferncia de Paz em um duelo Clemenceau versus Wilson e assim os caracterizou: o norte-americano, "Dom Quixote cego e surdo; Clemenceau, muito mais inteligente, porm cnico, o Bismarck francs.

    No podemos esquecer que havia um terceiro homem extremamente ativo, o primeiro-ministro britnico, Lloyd George. Inteligente, brilhante, grande orador, talvez tivesse ideias menos consistentes do que seus dois interlocutores, mas que ao menos foram evolutivas. Lder da esquerda do Partido Liberal antes da guerra, poderoso adversrio e temido pelos conservadores, procurou durante a guerra eliminar o poder do seu antecessor, o primeiro-ministro Asquith, que, segundo ele, conduzira a guerra de modo negligente. Ele conseguiu seu intento em dezembro de 1916, quando tornou-se primeiro-ministro liderando uma coalizo

    37

  • Jean-Jacques Becker

    em que os conservadores tinham o papel principal. Aps o armistcio, tomara uma atitude muito rigorosa contra a Alemanha ("fazer a Alemanha pagar at o ltimo centavo). Adquiriu mais fora com a vitria nas eleies gerais de 14 de dezembro de 1918 frente de uma coalizo composta de alguns trabalhistas, de uma frao dos liberais (o Partido Liberal havia se dividido em dois em 1916) e de todos os conservadores, diante de uma segunda coalizo em favor do wilso- nismo e de uma paz de conciliao, liderada por Asquith e que reunia a outra parte dos liberais e a maioria dos trabalhistas.

    Uma verdadeira onda patritica manifestou-se a favor de Lloyd George, mas a vitria foi sobretudo dos conservadores: 334 cadeiras contra 133 dos aliados liberais. Essas eleies cqui foram, antes de mais nada, uma vitria esmagadora da direita inglesa. Os lderes conservadores - Bonar Law, Arthur Balfour - no disputavam com Lloyd George a direo do governo, porm eles o submeteram a fortes presses que o levaram a uma atitude mais rigorosa do que a desejada. Em uma segunda etapa, Lloyd George adotou aos poucos atitudes mais flexveis em relao Alemanha e, por sua vez,

    38

  • O Tratado de Versalhes

    orientou-se para as posies wilsonianas. Um dos seus leitmotiven era evitar, a curto prazo, jogar a Alemanha nos braos do bol- chevismo, e mais tarde, quando recuperasse inevitavelmente suas foras, incit-la ao sentimento impulsivo de revanche. Alm disso, Lloyd George pensava que as organizaes com base nas nacionalidades tinham mais probabilidade de durar e, se existisse uma Sociedade das Naes, como era o desejo de Wilson, isso obrigaria os Estados Unidos a no se descuidarem das questes europeias. Muito sensvel s mudanas de opinio, ele pressentira tambm que, muito rapidamente, a opinio britnica, aps a grande onda nacionalista que atravessara, desejaria que a pgina da guerra fosse virada e que as coisas retomassem seu curso natural.

    Essa mudana no comportamento de Lloyd George provocou duas crises durante a Conferncia de Paz. A primeira - no ms de maro de 1919, quando as clusulas do tratado foram instauradas - , em que discordava da durao do tratado, e uma segunda, entre o dia 25 de maio e 16 de junho. Ele era a favor de levar em considerao as observaes alems e adotar medidas mais brandas. Ele dizia:

    39

  • Jean-Jacques Becker

    Precisamos de um governo alemo que assine. O que

    est no poder uma sombra. Se nossas condies

    forem muito severas, ele vai cair e, ento, ateno ao

    bolchevismo!

    De fato, Lloyd George estava realmente preocupado com a situao na Alemanha. Como observou Arno Mayer (Political Or- gins of the New Diplomacy [Origens polticas da nova diplomacia]), possvel que entre a assinatura do armistcio e a do tratado as condies nunca tenham sido revolucionrias na Alemanha, mas foi a impresso deixada aos contemporneos. A terceira onda revolucionria, aquela entre maro e abril de 1919 (que, na realidade, traduzia o declnio do movimento), impressionou significativamente o esprito dos negociadores, particularmente dos britnicos.

    Wilson e Clemenceau

    Logo, um erro minimizar o papel de Lloyd George. verdade, no entanto, que Wilson e Clemenceau dominaram a negociao, porm, sobretudo no incio, no tinham o mesmo ponto de vista. Wilson

    40

  • O Tratado de Versalhes

    surgia como um idealista, diante do realismo de Clemenceau. Durante as negociaes, todavia, Wilson deu provas de realismo e de habilidade e Clemenceau de idealismo, e que - pode parecer paradoxal - , no fim do percurso, eles no estavam to distantes um do outro.

    Wilson

    Em 1918, Woodrow Wilson tinha 58 anos. Conceituado professor de Cincias Polticas, presidente da Universidade de Princeton, entrou tardiamente na vida poltica como democrata. Eleito governador do Estado de Novajersey em 1910, presidente dos Estados Unidos em 1912 devido diviso dos republicanos, fora reeleito em 1916, graas a uma campanha muito popular cuja ideia-motora era a de conseguir manter os Estados Unidos fora da guerra. Obrigado pela guerra submarina a entrar no conflito alguns meses mais tarde, esse presbiteriano convicto pensou em converter a participao norte-americana em uma cruzada pela democracia que deveria garantir a paz universal. Apoiado nisso, recusou a ideia de uma paz de vingana, queria

    41

  • Jean-Jacques Becker

    uma paz de conciliao, cujo ncleo seria a edificao de uma Liga das Naces.

    No entanto, ele era apoiado pela opinio norte-americana e principalmente pelos parlamentares, em especial os senadores? Questo crucial, uma vez que o tratado devia ser ratificado pelo Senado com maioria de dois teros. No entanto, o presidente dispunha apenas de uma maioria de dois votos, bem diferente dos dois teros necessrios. A data das eleies para o Congresso norte-americano era no dia 5 de novembro de 1918, e, nos Estados Unidos, essa uma regra institucional que nunca pode ser violada, a de que as eleies se realizem na data prevista, quaisquer que sejam as circunstncias. Essas eleies no meio do mandato so muitas vezes desfavorveis ao presidente em exerccio, mas, nas circunstncias, Wilson contava com elas para fortalecer a sua maioria e, portanto, sua autoridade.

    A campanha conduzida por seus adversrios republicanos no influiu sobre a situao econmica geral, porque a guerra trouxe aos Estados Unidos prosperidade econmica e financeira. Devedores da Europa antes de 1914, agora eles eram os credores. Porm, os republicanos eram completamente avessos

    42

  • O Tratado de Versalhes

    paz de conciliao proposta pelo presidente preciso lembrar que a campanha decorreu durante o perodo de correspondncia germano-americana do ms de outubro. Queriam uma rendio incondicional da Alemanha. Dentro dos catorze pontos, eles condenavam sobretudo o livre-cmbio preconizado pelo presidente Wilson, j que toda a tradio norte-americana era protecionista.

    O presidente fez uma campanha bastante inbil ao tentar capitalizar, em prol do Partido Democrata, a unio do povo norte- -americano na guerra e, portanto, de jogar dos dois lados, afirmando a necessidade de manter a recusa dos polmicos parceiros que constitura a regra durante as hostilidades e, ao mesmo tempo, conclamando, como fizera h alguns dias das eleies, o voto democrata, garantindo que uma vitria dos republicanos seria interpretada do outro lado do oceano como um repdio (sua) liderana.

    Wilson foi mal compreendido, e os democratas duramente derrotados, em vez de fortalecerem a maioria no Senado, perde- ram-na por duas cadeiras. Na Cmara dos Representantes [deputados], os republicanos obtiveram uma maioria de 39 cadeiras. Na

    43

  • Jean-Jacques Becker

    verdade, mais do que as grandes questes debatidas, foi principalmente o preo do trigo que fez oscilar o Centro-Oeste em direo aos republicanos.

    Obviamente, a autoridade do presidente foi atingida e os senadores republicanos asseveraram a rivalidade aos seus projetos. Em seu discurso do dia 24 de dezembro de 1918, o influente senador republicano Cabot Lodge reiterou o papel do Senado na negociao e criticou duramente a ideia de Sociedade das Naes.

    Alguns dias aps as eleies norte-ame- ricanas, a vitria da direita na Inglaterra mostrava que tratava-se de um movimento de base entre os povos vencedores. Pelo menos, no incio, a vitria favorecia mais os impulsos nacionalistas do que as intenes conciliatrias.

    A derrota eleitoral do seu partido era suscetvel de modificar os pontos de vista de Wilson? Pensar isso seria conhec-lo mal. Totalmente convencido da justeza de suas ideias, no pretendia modific-las nem um pouco. Alis, ele estava convencido de que, na hora exata, usaria sua autoridade moral para persuadir suficientemente os senadores a ratificarem o futuro tratado. Ele sabia,

    44

  • O Tratado de Versalhes

    como praxe nos Estados Unidos, no haver abismo intransponvel entre republicanos e democratas, e que, graas sua liderana - essa to importante noo na conduta das questes norte-americanas - , ele poderia recuperar a maioria que lhe fora aparentemente desfavorvel. Desse modo, quando ele deixou temporariamente a Conferncia de Paz e ficou nos Estados Unidos do dia24 de fevereiro at 5 de maro, foi com o intuito de pressionar o Senado que atacava o projeto da Sociedade das Naes. Wilson pronunciou grandes discursos e ele tinha a certeza de que a opinio norte-americana estava ao seu lado. Na verdade, seus conselheiros e seus parceiros na negociao estavam muito menos convictos - no dia3 de maro, 37 senadores, portanto, claramente mais do que um tero, protestaram contra uma poltica contrria Doutrina Monroe - , e isso influenciou na negociao, especialmente quando Wilson alegava as garantias norte-americanas.

    A derrota eleitoral de novembro no foi a nica razo que levou Wilson Europa, porm, contribuiu muito para isso. Sua participao direta reforaria sua autoridade pessoal e - nessas condies - ele

    45

  • Jean-Jacques Becker

    estava persuadido de ser o nico que no corria o risco de ser influenciado em suas escolhas.

    De fato, Wilson era mais popular na Europa do que nos Estados Unidos. Ao chegar a Paris em 14 de dezembro, teve um recepo triunfal. Ele arrancava elogios unnimes da extrema-direita extrema- -esquerda, da Action franaise ao peridico LHumanit.

    Na realidade, havia muito equvoco nesse wilsonismo generalizado. O que a opinio pblica aclamava era o aliado - embora ele recusasse o termo - que contribuiu para a vitria, e no para a concepo da paz. Os mais slidos apoios ao wilsonismo foram dados pela esquerda. O norte-americano surgiu, em particular para os socialistas, como um novo apstolo da paz propondo-se a escutar os povos: ele recebia de bom grado as delegaes, peties, ele se reunia com os sindicalistas e seu principal dirigente, Lon Jouhaux. Ele surgiu tambm como o justiceiro dos nacionalismos europeus. Para a faco mais esquerda do socialismo, ele era admirado por sua abordagem mais aberta ao bolchevismo do que as dos outros dirigentes europeus. Mas a esquerda foi

    46

  • O T ra ta d o de V e rsa lhes

    vtima de iluses. Na prtica, Wilson mostrou-se realista. Ao longo da negociao, percorreu um caminho parcialmente inverso ao de Lloyd George. Ele chegou mesmo a manifestar formas de antigermanismo inexistentes no incio. Quanto direita, ela recusou sua poltica, sustentada pela maioria da opinio. O entusiasmo gerado por sua chegada foi substitudo por uma queda paulatina de sua popularidade.

    Clemenceau

    Clemenceau, mdico, escritor, grande amador de arte, era igualmente, se no mais, intelectual do que Wilson. Entretanto, ele no pertencia mesma cultura - era totalmente agnstico - e, catorze anos mais velho, no pertencia mesma gerao. Atrs dele, havia uma longa carreira poltica, era bem mais experiente, sobretudo a respeito das questes europeias. Ele no era cnico, como foi dito vrias vezes deu provas disso, apesar das aparncias, em vrias ocasies, no somente durante o caso Dreyfus, mas ele no tinha mais confiana na natureza humana. No era desprovido de

    47

  • Je an -Jacqu e s Becker

    idealismo, j que era apaixonado por justia e democracia, mas no acreditava mais na paz universal. Nem se opunha Sociedade das Naes, desde que no criasse muitas iluses, e acreditava bem mais nas garantias que pudessem proteger a Frana contra um novo conflito. Diante do otimismo do presidente norte-americano, o presidente francs era um grande pessimista.

    A situao interna da Frana no lhe facilitava a tarefa - s vezes nos esquecemos, e isso era vlido para todos os pases europeus, de que a Conferncia de Paz se desenrolava em um cenrio de grandes dificuldades econmicas e sociais. As finanas pblicas estavam arruinadas, a alta do custo de vida provocara intensa agitao operria na primavera de 1919. Todavia sua popularidade e sua autoridade eram substanciais. Sua maioria era forte. Durante os votos de confiana em 29 de dezembro de 1918, ele obteve 398 votos contra 93; em 16 de abril de 1919, 354 votos contra 21. Muitos parlamentares temiam sua causticidade, mas a nica oposio que ele enfrentara fora a dos socialistas. Ao contrrio do ocorrido nos Estados Unidos ou na Inglaterra, e embora a Cmara dos Deputados, eleita em 1914,

    48

  • O T ra ta d o de V ersa lhes

    tenha prolongado o final de seu mandato, ele rejeitou novas eleies at a elaborao e ratificao do tratado de paz. No foi por falta de esprito democrtico. Se as eleies tivessem ocorrido naquele momento, teriam sido a seu favor, mas ele estava decidido a negociar somente com a colaborao de seus assistentes, especialmente a de Andr Tardieu - piv da delegao francesa - , que estava no incio de uma grande carreira poltica.

    No entanto, Clemenceau sofreria - como Wilson, mas no sentido contrrio - da grande expectativa concentrada sobre ele. Para a opinio pblica, era o homem da paz francesa, aquela que lhe traria a tranqilidade desejada. No entanto, via-se nessa guerra sobretudo uma guerra franco-alem, muito mais do que uma guerra mundial. O fato de a Conferncia de Paz ter sido realizada em Paris e ter sido presidida por Clemenceau somente reforou esse sentimento. Mais uma vez, Clemenceau iria aniquilar seus adversrios, ele seria o Tigre da paz, como fora da guerra. A opinio pblica - como sempre aconteceu com Clemenceau, que gostava de esconder-se em frmulas mordazes no percebeu a complexidade do personagem.

    49

  • Jea n -Ja cq u e s Becker

    Durante a Conferncia de Paz, Clemenceau revelou-se o porta-voz dos horrveis sacrifcios tolerados pela Frana, de seus mortos e de suas destruies. Assim como durante a guerra, quando tambm se mostrou sensvel ao destino dos soldados, e temia que o significado para a Frana de tal conflito casse no esquecimento. Mas isso combinava com uma conscincia aguda das realidades. Embora seu propsito se mostrara veementemente antigermnico, sobretudo durante seu ministrio de 1906 at 1909 - fato que caiu no esquecimento - ele manifestara grande moderao nessa rea, mas no tinha iluso de que Frana pudesse fazer o que pretendia. Ele sabia que a Frana sozinha, a Frana sem seus aliados - independentemente do papel predominante do exrcito francs - no teria vencido. Passara despercebida sua declarao durante o debate parlamentar do dia 29 de dezembro de 1918, que faria qualquer sacrifcio para manter o consenso entre os quatro vencedores. Definitivamente, se ele pareceu ironizar ao falar da nobre ingenuidade do presidente norte-americano, segundo suas prprias palavras, no entanto, foi mais uma expresso

    50

  • O T ra ta d o de Versa lhes

    de simpatia, embora fosse prefervel ater-se s realidades.

    Entre um Clemenceau, mais moderado do que se dizia e um Wilson, mais realista do que se pensava, havia um entendimento. Aps a assinatura do tratado, os dois homens se separaram e nunca mais se viram, as despedidas foram marcadas por demonstraes de grande simpatia e fortes emoes. A imagem propagada por Keynes no correspondia realidade.

    O quarto homem, Vittorio Orlando, presidente do Conselho Italiano, no deve ser descartado apesar da sua discrio. Alado ao poder aps o desastre de Caporetto, presidira a renovao do exrcito italiano, mas at o final parte dos italianos no ficara totalmente convencida da necessidade de sua participao nessa guerra, que era justamente a opinio do homem poltico mais importante da Itlia, Giovanni Giolitti. Ademais, ao acabar a guerra, a situao financeira e econmica era de tal modo precria que ocasionou importantes convulses sociais e obrigou o governo a submeter-se a duas foras: extrema-esquerda, a dos maximalistas, bastante prximos dos bolchevistas; e extrema-direita, uma

    51

  • Je a n -Ja cq u e s Becker

    corrente nacionalista, o movimento fascista (os feixes de vara italianos de combate) criado em maro de 1919 em torno de um ex-socialista, Benito Mussolini. A instabilidade da Itlia era to grave que impedira um bom desempenho de seus representantes na Conferncia de Paz. Alm do mais, sob influncia de seu ministro das Relaes Exteriores, Sydney Sonnino, o homem forte do governo, Orlando fora levado a defender as reivindicaes mximas para a stria e Dalmcia, que lutavam para serem ouvidas pelas outras delegaes. Era o nico ponto de interesse da delegao italiana dentro da organizao da paz. Em compensao, o Gabinete inclua um certo nmero de wilso- nianos que, no final, preferiram retirar-se; foi o caso do socialista independente Bissolati e do ministro da Economia, Nitti.

    Tambm no podemos negligenciar o papel pessoal dos colaboradores dos chefes das delegaes: o secretrio de Estado Lansing e o coronel House - que souberam conquistar a simpatia dos europeus - ao lado do presidente Wilson; Andr Tardieu, que conhecia bem a poltica internacional, pois tinha sido durante dez anos o chefe dos Servios de Poltica Estrangeira do jornal Le

    52

  • O T ra ta d o de Versa lhes

    Temps, e o ministro das Relaes Exteriores, Stephen Pichon, ao lado de Clemenceau. Ao lado de Lloyd George, Arthur Balfour, ex-primeiro-ministro conservador, ministro das Relaes Exteriores com experincia e autoridade, desempenhara um importante papel, embora no estivesse convencido da panaceia que seria o direito dos povos autodeterminao, assim como o chefe do Estado-Maior Imperial, o general Henry Wilson, mais interessado nos problemas de segurana militar do que nos princpios wilsonianos.

    A Conferncia de Paz foi, por excelncia, a conferncia dos vencedores, embora eles estivessem conscientes das reaes alems, amplamente difundidas pela imprensa, que gozava de importncia e influncia na Alemanha daquela poca. Paz de, pelo menos, alguns vencedores, porm, desde o incio, era evidente que as negociaes seriam difceis.

    53

  • Captulo III

    A Alem anha marginalizada pelas naes

    A Conferncia de Paz encarregou-se de inmeras questes, mas a Alemanha era, evidentemente, o centro dos debates - a Alemanha "responsvel pelo maior crime da histria, segundo declarara Clemenceau.

    A responsabilidade da Alemanha

    A questo de consenso entre todos os negociadores era que o drama, a catstrofe que acabara de assolar a Europa, tinha a Alemanha como um nico responsvel. Isso pode parecer surpreendente quase um sculo

  • Je a n -Ja cqu e s Becker

    mais tarde, pois os estudos sobre as origens da guerra mostram que a explicao no to simples assim e que a mobilizao geral russa, para tomar apenas um exemplo factual, no foi provocada pela mobilizao geral austraca, pois ela a precedeu. Ou isso no era conhecido, ou ento era para ser ignorado. No momento da Conferncia de Paz, havia a convico, do lado aliado, de que a primeira mobilizao geral fora a da Aus- tria-Hungria, provocando por sua vez a da Rssia. Para tomar apenas esse exemplo, o futuro e clebre inspetor-geral da Educao Nacional, Jules Isaac - que acabara de assumir a coleo de manuais de Albert Malet (morto em Artois em 1915) - afirmara, em um livro de 1920 destinado s classes do ensino mdio, a anterioridade da mobilizao austraca e era afianado por seus mestres Emile Durkheim e Ernest Denis. Foi somente em 1922 que ele reexaminara essa afirmao, simultaneamente confirmao de Ren Viviani nesse mesmo ano diante da tribuna da Cmara!... Na realidade, como escreveu Jacques Droz:

    A guerra teria sido evitada se a ordem de mobilizao

    geral [russa] no tivesse sido lanada em 30 de julho?

    56

  • O T ra ta d o de Versa lhes

    Muito provavelmente, no. A mobilizao geral russa

    tornaria a guerra inevitvel? Certamente, sim...

    Mas no foi levado em considerao que a mobilizao geral russa fora um elemento determinante na ecloso da guerra, e - para acabar logo com os protestos alemes - a responsabilidade da Alemanha na ecloso da guerra era solenemente citada na resposta das Potncias aliadas e associadas s observaes da delegao alem sobre s condies da paz (Parte VII: Responsabilidades da Alemanha nas origens da guerra).

    Os negociadores se indagavam sobre as responsabilidades pessoais de Guilherme II e sobre a sano que lhe seria infligidi. Assim, em l2 de abril de 1919, Lloyd George declarava: Gostaria de ver o homem responsvel pelo maior crime da Histria ser castigado, e Wilson retrucou: Ele suscita o desprezo universal: no o pior castigo para um homem como ele?; em compensao, sobre as responsabilidades da Alemanha, no havia divergncia. E tampouco quanto ao julgamento a ser aplicado Alemanha. Em um discurso pronunciado em Nova York no dia 17 de setembro de1918, Wilson dizia, sobre as Potncias

    57

  • Jea n -Ja cq u e s Be cke r

    Centrais: Elas nos convenceram que no possuam honra... Elas no cumprem seus acordos, no reconhecem nenhum princpio, seno a fora e seu interesse prprio. A atitude dos alemes suscitava violenta repugnncia. Para dar um exemplo, quando, em 7 de maio de 1919, o ministro alemo das Relaes Exteriores, o conde Von Brockdorff-Rantzau, recusou-se a levantar para responder ao discurso de Clemenceau, sua insolncia provocou a indignao de todos os representantes aliados. Diante da impertinncia de Brockdorff, o presidente norte-americano ficou roxo de raiva.

    As divergncias influram sobre certas concluses: para Wilson, era preciso aceitar que a Alemanha no era mais a mesma. O Imprio entrara em colapso, Guilherme II abdicara e fugira para os Pases Baixos, o presidente da Repblica Ebert e o presidente do Conselho Scheidemann eram socialistas... No entanto, Clemenceau se recusava a fazer distines entre os alemes - o que no significou que houve grande diferena na maneira de tratar a Alemanha. Em uma conversa em 27 de maro, Clemenceau afirmara:

    58

  • O T ra ta d o de Versa lhes

    Ontem, disse que estava de pleno acordo com Lloyd

    George e com o presidente Wilson sobre a maneira de

    como tratar a Alemanha: no devemos abusar de nossa

    vitria; temos que tratar os povos com cuidado e temer

    uma revolta da conscincia nacional.

    Clemenceau discordava principalmente de Lloyd George, que desprezava esses cuidados com o adversrio e com uma eventual revolta. Ele sentia que, de qualquer maneira, os alemes nunca achariam justo o tratamento a eles dispensados...

    As clusulas penais

    A primeira conseqncia desse estado de esprito dos negociadores explica a importncia das clusulas penais do Tratado de Versalhes. Posteriormente, elas perderam notoriedade porque no foram ou foram pouco aplicadas, mas sua repercusso poca foi considervel. O artigo 229 do tratado previa o julgamento de Guilherme II diante de um tribunal internacional "por ofensa suprema moral internacional e autoridade sagrada dos tratados, devido a violao da neutralidade belga. Foi igualmente definido

    59

  • Je a n -Ja cqu e s Becker

    que os crimes de guerra no podiam ficar impunes, e o artigo 228 previa o julgamento perante os tribunais militares de pessoas acusadas de terem cometido atos contrrios s leis e aos costumes da guerra.

    Os negociadores j tinham previsto a dificuldade em extraditar Guilherme II dos Pases Baixos. Eles tentaram encontrar medidas coercivas que pudessem ajud-los na extradio, mas no tiveram xito. Quanto aos criminosos de guerra, cujas listas - diferentes - apresentadas pelos Aliados eram pouco coerentes, at mesmo fantasiosas, a Alemanha tambm recusou-se a entreg-los; ela prpria se encarregaria do julgamento deles, mas os processos daqueles deferidos pelo Supremo Tribunal de Leipzig a partir do ms de maio de 1921 encobriam mais farsa e escndalo do que justia...

    As reparaes

    Por qu?

    Foi, de fato, com as reparaes que revelou-se a responsabilidade alem. Tradicionalmente, o vencido pagava uma indenizao

    60

  • O T ra ta d o de V e rsa lhes

    ao vencedor, indenizao essa que o vencedor fixava mais ou menos arbitrariamente, em funo da estimativa das capacidades de pagamento do vencido. Foi o caso em 1871, quando o Tratado de Frankfurt condenara a Frana a pagar uma indenizao de 5 bilhes de francos-ouro (indenizao, cujo montante, mais tarde, Bismarck lamentara ter fixado to baixo, levando em conta a facilidade - aparente - com a qual a Frana a pagara). No entanto, durante a guerra, surgiu uma nova noo, a das reparaes. Nessa guerra, de espcie at ento desconhecida, em que cada nao tinha conscincia de lutar pela sobrevivncia, e cada nao julgava que a outra era responsvel pela guerra, a ideia de que, em caso de vitria, seria preciso impor reparaes ao adversrio, surgiu muito cedo: era a prpria conseqncia do princpio de responsabilidade. Entretanto, compreensvel que essa noo tenha surgido na Frana, porque a guerra se desenrolara principalmente em seu territrio, onde existiam mais estragos para serem reparados do que na Alemanha, onde houve pouca destruio. Pouco tempo depois, durante a guerra submarina, os britnicos perceberam que as enormes perdas de navios poderiam tambm dar origem a eventuais

    61

  • Je a n -Ja cq u e s Becker

    reparaes. No entanto, durante a guerra, mesmo na Frana, essa noo no despertou muito interesse - Aristide Briand, depois Alexandre Ribot s a mencionaram em 1917 - porque ela presumia uma sada vitoriosa do conflito e essa eventualidade, durante grande parte da guerra, era no mnimo incerta. Todavia, Clemenceau insistira para que as reparaes constassem das condies do armistcio. No Tratado de Paz, elas formavam o artigo que ficou sendo o mais famoso,

    o que despertou mais paixo e crticas (Mantoux)

    [o artigo 231]: "Os governos aliados e associados

    declaram e a Alemanha reconhece que ela e seus

    aliados so responsveis por todas as perdas e todos

    os danos sofridos pelos governos aliados e associados

    e seus cidados em conseqncia da guerra que lhes

    foi imposta pela agresso da Alemanha e seus aliados.

    Este artigo no poderia ser compreendido seno como uma condenao moral da Alemanha, uma condenao aviltante. Podemos facilmente imaginar que ele surgiu como uma verdadeira polmica para os alemes que.no se consideravam responsveis pela guerra e que foi o artigo que mais provocou reaes violentas.

    62

  • O T ra ta d o de V ersa lhes

    No entanto, como documentos de apoio, Pierre Renouvin e Camille Bloch demonstraram em um clebre comentrio publicado em 1931 no Le Temps que esse artigo no tinha valor moral, era simplesmente a base de um contrato que obrigava os alemes a pagarem as reparaes. Com exceo de Clemenceau, que no entanto tinha noes de Direito, os outros trs dos Quatro eram praticamente juristas e professores de direito como Orlando, e na cultura deles, principalmente na cultura anglo-saxnica, o respeito aos contratos era um dado fundamental de civilizao. O detalhe de suas deliberaes comprovava isso, eles tinham a preocupao permanente de que suas decises fossem juridicamente fundamentadas. Portanto, no de supreender que tenham procurado fundamentar no Direito as reparaes impostas Alemanha. No era tarefa fcil, porque, como se tratava de um texto de contrato, era preciso evitar que ele incorresse em reivindicaes interminveis, caso no fosse cerceado. Paul Mantoux, historiador e clebre professor universitrio que foi o intrprete francs e, como tal, assistia as deliberaes, deixou bem claro:

    63

  • Je a n -Ja cq u e s Becker

    Esse texto preponderante resultou da pesquisa de uma

    frmula de compromisso entre as reivindicaes totais,

    mais tericas do que reais, inspiradas nas preocupaes

    da poltica interna da Inglaterra e da Frana, e das

    objees formais do presidente Wilson referindo-se

    aos compromissos assumidos antes da concluso do

    armistcio.

    Da esse postulado de um especialista norte-americano:

    Podemos escrever que a Alemanha moralmente

    responsvel pela guerra e todas suas conseqncias, e

    que, juridicamente, ela responsvel pelos danos aos

    bens e s pessoas...

    Essa frmula foi a vitoriosa, porque o artigo 231 era indissocivel do artigo 232, o qual reconhecia que os recursos da Alemanha [...] eram insuficientes... para garantir completa reparao de todas as perdas e de todos os danos, mas que ela devia pagar por todos os danos causados populao civil.

    A verdade : o que foi escrito estava escrito, e era difcil no identificar a uma condenao moral da Alemanha (mesmo que fosse apenas uma frmula destinada a justificar as reparaes...).

    64

  • O T ra ta d o de V e rsa lh es

    Como?

    Para Clemenceau, o ajuste sobre as reparaes era simplesmente um problema de especialistas - os estadistas franceses, incluindo Clemenceau e o ministro da Economia, Lucien Klotz, no estavam aptos para os problemas econmicos. No era a opinio de Lloyd George, que afirmara no primeiro dia das deliberaes do Conselho dos Quatro, em 24 de maro de 1919, que "a questo das reparaes era a mais difcil entre todas e que, se os lderes do governo no se incumbissem dela, os especialistas nunca chegariam a um consenso. Provavelmente Lloyd George no imaginava a que ponto ele tinha razo!

    As posies iniciais eram duas: a posio norte-americana e a dos Aliados. Para os norte-americanos, bastava aplicar o que estava indicado nos catorze pontos, restaurao das regies invadidas. Eles no reclamavam nada para eles, ficando entendido isso no devia constar do tratado - que seus credores europeus deviam reembolsar as dvidas contradas durante a guerra. Essa questo das dvidas entre os Aliados constituiu, de fato, um grande problema

    65

  • Je a n -Ja cq u e s Becker

    ps-guerra, principalmente entre a Frana e os Estados Unidos, porque a Frana considerava que esse pagamento deveria estar ligado ao das reparaes, determinao inimaginvel para os norte-americanos, que a consideravam como uma violao de contrato... Para os associados europeus, reparao significava que os alemes deviam ressarcir o custo total da guerra. No preciso muita imaginao para perceber que tal definio era descabida e perfaria um montante descomunal, mesmo se o pagamento fosse parcelado ao longo de vrios anos... O governo belga, durante um certo momento, pretendera que casas comerciais, prejudicadas em suas atividades por causa da guerra, fossem indenizadas, o que no era nenhum absurdo.

    Chegar a uma definio das reparaes era impossvel sem antes saber quem pagaria as reparaes e a capacidade de pagamento por parte dos Estados condenados. Para os italianos ou os srvios, a responsvel pelas destruies era essencialmente a ustria- -Hungria. Mas como esse Estado no mais existia, os italianos ou os srvios, assim como todos os outros candidatos s reparaes, foram ento obrigados a se dirigirem ao

    66

    /

  • O T ra ta d o de Versa lh es

    nico Estado ainda existente e, em princpio, solvvel, a Alemanha. Logo, deduziu-se que ela seria a nica a pagar pelas reparaes. O segundo problema era simples: O que a Alemanha podia pagar? Quais eram as capacidades de pagamento da Alemanha? Para certos negociadores - e foi, durante um certo tempo, a posio da Frana isso no constitua uma preocupao maior, o que era totalmente absurdo, mas a verdade que calcular as capacidades de pagamento de um pas extremamente difcil.

    Foi um dos leitmotiven do economista britnico Keynes que definitivamente a capacidade de pagamento de um pas dependia da diferena entre suas importaes e suas exportaes. Definio exata, porm excessivamente sinttica, pois os recursos de um pas podem ter igualmente outras origens, suas capacidades de emprstimo, seus investimentos no estrangeiro, o nvel de vida mais ou menos elevado de sua populao... Assim, para a Alemanha pagar tal dvida, ela tinha de ser poderosa e prspera. Paradoxalmente, para que, a dvida fosse paga, seria preciso promover o desenvolvimento da prosperidade da Alemanha, correndo o risco bvio de que, uma vez prspera, a

    67

  • Je an -Jacq u e s Becker

    Alemanha provavelmente no aceitaria ser explorada durante muito mais tempo pelos seus ex-vencedores.

    Dificuldade adicional - que logo foi assinalada por Lloyd George , os Estados vitoriosos iriam competir na distribuio desse fluxo eventual de reparaes. Isso, Andr Tardieu, do lado francs, havia compreendido rapidamente: quanto mais ampla a esfera das reparaes, mais reduzida seria a parte da Frana... Certamente, o crdito da Frana seria o mais importante na rea das destruies sofridas, mas se a fosse includo um outro critrio, por exemplo, o montante das despesas de guerra, seria, segundo Andr Tardieu no seu livro Lapaix [A paz], a Gr-Bretanha que ocuparia o primeiro lugar com um montante de 190 bilhes de francos (27,1%), seguida dos Estados Unidos, 160 bilhes (22,8%). A Frana estaria apenas na terceira posio com 143 bilhes (20,1%); a Itlia na quarta com 65 bilhes (9,2%).

    Mesmo se as reparaes ficassem realmente restritas aos danos, isto , s destruies acrescidas das penses, o que a delegao britnica reivindicara, a avaliao das reparaes, no poderia deixar de suscitar grandes discusses. Lloyd George

    68

  • O T ra ta d o de V ersa lhes

    contestava veementemente os valores antecipados pela Frana. Ela devia ser muito mais rica do que pensvamos, ele dizia - se a reconstruo de uma parte to pequena custava to caro... - , e acrescentava que o pblico ingls no compreenderia que fosse pago integralmente o custo de cada uma das chamins destrudas na Frana, mas no o das vidas perdidas na Inglaterra (26 de maro).

    Na realidade, qualquer valor apresentado, de qualquer lado, poderia ser contestado. No havia um propsito definido. Mesmo o clculo das penses era muito diferente de um pas para outro...

    Muito ctico em relao soma que os alemes poderiam pagar ou aceitariam pagar, o governo britnico intensificou a discusso sobre as porcentagens que recairiam sobre cada pas, o que provocou longas e speras discusses entre os especialistas dos dois pases... A Frana apoiava-se em suas destruies; a Inglaterra, cujo solo foi pouco destrudo, reivindicava enormes somas para reconstruo de grande parte de sua frota comercial, vtima da guerra submarina.

    As indenizaes de guerra tradicionais no eram evidentemente morais, mas a

    69

  • Jea n -Ja cq u e s Becker

    noo de reparaes levava a um outro impasse: fazer parecer, pelo menos para os vencedores, como se a guerra no tivesse ocorrido.

    Com base nesses elementos, as posies dos trs grandes parceiros eram diferentes.

    Para os Estados Unidos, bastava avaliar as capacidades de pagamento alems e, com base nisso, estabelecer uma soma final fixa.

    A posio britnica sofreu uma evoluo: no incio muito dura, tornou-se em seguida mais moderada, sobretudo sob a influncia de Keynes, tratado por Tardieu como fecundo intrprete de todas as teses alems. O que lhe interessava principalmente era que a porcentagem a ele atribuda no fosse diminuda. A posio francesa, finalmente, foi bastante contraditria: em nome do realismo e, naturalmente, dos seus interesses, a Frana admitiu uma restrio ao limite das reparaes, mas, em nome de seu direito moral, ela recusava aceitar que se levasse em conta a capacidade de pagamento dos alemes. Ela justificava essa posio, primeira vista estranha, atravs do fato real de que as apreciaes dos especialistas eram muito contraditrias e que no era possvel estabelecer uma soma fixa

    70

  • O T ra ta d o de V ersa lhes

    em definitivo. Teria de existir a possibilidade de modific-la.

    Como sair dessa situao confusa? O Conselho dos Quatro e os especialistas consagraram mais de cem reunies s reparaes, sem nenhum xito. Foi preciso apresentar uma soluo provisria: antes do dia l2 de maio de 1921, os alemes deveriam pagar 20 bilhes de marcos-ouro, em dinheiro, e nesse mesmo dia o mais tardar, a Comisso das Reparaes fixaria o montante total da dvida alem. A Comisso tambm decidiria qual seria o volume dos pagamentos anuais distribudos em trinta anos ou mais, se necessrio. Os crditos seriam mobilizados em forma de ttulos emitidos pela Alemanha e cuja cobertura seria feita atravs de pagamentos em dinheiro ou natural (carvo, gado, produtos qumicos, navios, mquinas...). Foi tambm previsto que a Comisso aplicaria sanes em caso de no cumprimento dessas clusulas.

    A Alemanha devia ser destruda?

    Esmagar a Alemanha sob o peso das reparaes e das condenaes morais e penais

    71

  • Jea n -Ja cq u e s Becker

    no era suficiente. No seria preciso simplesmente destruir a Alemanha ou, pelo menos, enfraquec-la de modo radical? Dificuldade imediata: como inserir esse procedimento no direito dos povos autodeterminao? Sem isso determinado, seria preciso excluir os alemes desse direito? Em curto espao de tempo, os princpios de uma paz moral e as realidades revelaram-se contraditrios.

    J na concluso do armistcio surgira essa contradio a respeito da Alscia-Lorena.

    Dentro do contexto da poca, a ideia de que duas provncias anexadas pela Alemanha em 1871 no fossem pura e simplesmente devolvidas Frana era completamente incongruente e inconcebvel para os franceses. Entretanto, no era o ponto de vista dos anglo-saxes. Tanto Wilson quanto Lloyd George sustentavam que era preciso consultar os habitantes e no foi fcil convencer o presidente norte-americano e o primeiro- -ministro britnico que isso era inaceitvel para a Frana. Na teoria, a Frana se entusiasmara com a ideia de um plebiscito com resultado a seu favor, mas a populao da Alscia-Lorena se transformara havia quase cinqenta anos. Muitos alemes ali se estabelececeram, os casamentos mistos

    72

  • O T ra ta d o de V e rsa lhes

    eram numerosos e se, no geral, no pairava dvida quanto ao resultado do voto havia, no entanto, o risco de no ser muito significativo. Todavia, a questo foi resolvida, como sabemos, antes do armistcio, e a Alscia-Lorena restituda Frana. "Restituir a Alscia-Lorena Frana no resolvia tudo, no resolvia a chamada germaniza- o das duas provncias, decorrente muitas vezes de um importante desenvolvimento econmico e dos conseqentes elos tecidos entre a Alemanha e a Alscia-Lorena. Alm disso, existia uma srie de litgios que os especialistas franceses e britnicos tiveram que afrontar. Os alsacianos-lore- nos que combateram no exrcito alemo teriam direito que suas penses entrassem no mbito das reparaes, bem como as eventuais destruies ocorridas na Alscia-Lorena, causadas pelos bombardeios franceses? E tambm, quem devia pagar as aposentadorias dos funcionrios alemes recrutados na Alscia-Lorena? Etc.

    Questo aparentem ente simples, a Alscia-Lorena logo revelou a grande complexidade das questes nacionais induzidas pelos catorze pontos. E, particularmente, a da delimitao das fronteiras. Era muito

    73

  • Je a n -Ja c q u e s Becker

    tentador aproveitar da situao da Alemanha e de sua marginalizao pelas naes.

    Desse modo, a delegao francesa aventou a questo do Sarre e da cidade de Landau. Esses territrios eram franceses no passado, e foram confiscados em 1814 e 1815 - logo era justo que eles retornassem Frana. Ademais, com a destruio sistemtica das minas do Norte, a Alscia-Lorena e a Frana necessitavam do carvo do Sarre, cujas minas podiam reverter 2 milhes de toneladas. Usando um argumento sentimental, Clemenceau tentava vincular a questo dos direitos nacionais reparao moral, qual a Frana tinha direito, negligenciando que era preciso fazer justia aos alemes. Wilson e Lloyd George recusaram gentilmente, porm firmemente. Eles no aceitavam a implicao dos direitos histricos, que alis no possuam bases slidas e, alm disso, a rea do Sarre, outrora francesa, correspondia parcialmente bacia carvoeira. O conflito foi rduo - o mais rduo confronto entre os negociadores, segundo Andr Tardieu. Isso pode parecer surpreendente, pois afinal de contas era uma uma questo secundria, porm reveladora da desavena entre os que pensavam (a Frana) que tudo era

    74

  • O T ra ta d o de V e rsa lh es

    possvel em relao Alemanha e aqueles que acreditavam que os limites deviam ser respeitados (os anglo-saxes). Estudar a questo do carvo, sim, reconhecer os direitos histricos que datavam de mais de cem anos, no. Para Lloyd George, era impossvel criar pequenas Alscias-Lorenas s avessas... Era preciso chegar a um acordo. No em relao a Landau, que continuava alem, mas com o Sarre propriamente dito. O Estado francs receberia com plenos direitos as minas que pertenciam, na sua grande maioria, ao Estado alemo. Durante quinze anos, a administrao do Sarre passaria para a Sociedade das Naes, que a delegaria a uma Comisso de cinco membros. Durante esse perodo, haveria uma aliana alfandegria entre a Frana e o Sarre, mas ao final de quinze anos os habitantes do Sarre votariam por distrito e poderiam escolher entre trs possibilidades: a volta Alemanha, a juno com a Frana, a conservao da autonomia.

    Recuperar a Alscia-Lorena, at mesmo adquirir o Sarre era uma coisa, mas a questo essencial era, sem dvida, o eventual desmembramento da Alemanha.

    O ideal seria a ciso da Alemanha. Unificada somente a partir de 1871, e ainda

    75

  • Je a n -Ja cqu e s Becker

    no mbito de um Estado federal, cujos membros conservavam poderes importantes, essa ideia no estava fora de cogitao, mas os lderes dirigentes franceses civis e militares pensaram primeiramente em enfraquecer a Alemanha, apoderando-se da margem esquerda do Reno. O marechal Foch foi o grande protagonista desse projeto que provocaria no tanto um conflito entre aliados, mas um conflito franco-francs de grande violncia.

    Em nota do dia 27 de novembro de 1918, Foch propunha a Clemenceau a anexao mal dissimulada - da margem esquerda do Reno. Ele voltaria atrs em uma segunda nota de 10 de janeiro de 1919, anunciando que no se tratava mais de anexao, porm da criao na Rennia de um certo nmero de Estados autnomos integrados ao espao alfandegrio francs. O Reno constituiria, ento, a fronteira ocidental da Alemanha em toda sua extenso; de certo modo, um a fronteira militar das potncias ocidentais, noo exposta pelo marechal no comunicado lido em 31 de maro de 1919 diante do Conselho dos Quatro.

    Inicialmente Clemenceau fora favorvel aos pontos de vista do marechal Foch e

    76

  • O Tra ta d o de V e rsa lh es

    encarregara Andr Tardieu de estabelecer uma nota sobre a limitao do Reno como fronteira ocidental da Alemanha, mas ele logo entendeu que os Aliados no aceitariam um projeto que resultasse de um modo ou de outro em anexaes territoriais. O presidente Wilson no se ops imediatamente a esse projeto. Seu grande opositor foi Lloyd George, pois, segundo ele, projetos desse tipo provocariam ocasionalmente a criao de novas Alscia-Lorena e a exacerbao do nacionalismo alemo. Por seu lado, Wilson julgava que essa ideia de fronteira servia apenas para dissimular projetos de anexao, aos quais ele tambm se opunha categoricamente, e, aps sua breve passagem pelos Estados Unidos (final de fevereiro-incio de maro), ele sentira que, em sua ausncia, o coronel House fora condescendente, a sua reao foi enrgica. Clemenceau se conve- cera, ento, de que a posio anglo-saxnica era inflexvel e que foi preciso chegar a um entendimento cuja ideia era a de trocar a margem esquerda do rio Reno por garantias. Essas garantias foram de duas espcies: de um lado, a garantia militar imediata dos Estados Unidos e do Reino Unido em caso de movimento de agresso no provocado

    77

  • Je a n -Ja cqu e s Becker

    pela Alemanha; por outro lado, a de que a margem esquerda do Reno e das cabeas de ponte na margem direita continuassem ocupadas durante quinze anos, com evacuao de um tero a cada cinco anos, se os alemes cumprissem suas obrigaes. Na verdade, era simplesmente a continuao dos dispositivos do armistcio.

    Esse acordo s foi obtido aps penosas discusses entre os Aliados e apesar de uma feroz oposio de um cl francs escudado pelo marechal Foch. O que resultou em verdadeiro duelo entre o presidente do Conselho e o chefe dos exrcitos, que no desapareceu nem com a morte dos protagonistas (Foch, em 20 de maro de 1929; Clemenceau, em 24 de novembro), mantido por publicaes pstumas do Mmorial de Foch [Memorial de Foch] - na verdade, escrito pelo jornalista Raymond Recouly - e a resposta de Clemenceau em sua ltima obra, Grandeurs et misres dune victoire [Grandezas e desgraas de uma vitria].

    Durante toda a Conferncia de Paz, Foch continuou com seus protestos, principalmente em um artigo no Matin do dia 18 de abril, no Conselho dos Ministros em 25 de abril, tambm em 6 de maio em sesso

    78

  • O T ra ta d o de Versa lhes

    plenria da Conferncia de Paz. A atitude do marechal provocou a comoo dos representantes anglo-saxes. O ministro conservador Bonar Law fez, um dia, essa observao a Clemenceau: "Se um general ingls adotasse essa atitude contra seu governo, ele no ficaria nem cinco minutos na sua funo, qual o presidente do Conselho francs respondeu emocionado: "O sr. conhece minha opinio. Se a atitude do marechal inspira certa contrariedade, no devemos esquecer que ele conduziu nossos soldados vitria.

    O marechal Foch tentou tambm utilizar sua funo como comandante em chefe dos exrcitos aliados para procurar desmembrar a Alemanha. Interrogado em 10 de maio de 1919 sobre seu plano de ao, caso o governo alemo negasse assinar o tratado de paz, ele no via nenhuma dificuldade em invadir Berlim, mas para a grande surpresa dos lderes aliados, quase um ms mais tarde, em 16 de junho, o marechal alegava vrios impedimentos e que seria prefervel lidar separadamente com o grande-ducado de Bade, o Wrttemberg, a Baviera - em suma, separar a Alemanha do Sul do resto da Alemanha. O marechal ou pelo menos seus conselheiros, par