o trabalho imaterial em discussÃo: teoria e política

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CADERNO CRH, Salvador, v. 27, n. 70, p. 9-12, Jan./Abr. 2014 9 Henrique Amorim DOSSIÊ INTRODUÇÃO Henrique Amorim * O TRABALHO IMATERIAL EM DISCUSSÃO: teoria e política Nas últimas duas décadas, o trabalho imaterial foi objeto de muitas análises nas Ciências Sociais. Grosso modo, as considerações sobre o tema foram influenciadas por duas grandes transforma- ções nas sociedades contemporâneas. De um lado, o fim da bipolaridade político-econômica entre Es- tados Unidos e União Soviética e, de outro, as trans- formações, tais como a robótica, a microeletrônica e as novas formas de gestão empresarial da mais re- cente reestruturação produtiva caracterizaram os pilares empíricos de redimensionamento das aná- lises sobre a produção e o trabalho. A diminuição de postos de trabalho nas indústrias de países de economia avançada e, ao mesmo tempo, o aumento das ocupações profissi- onais que passam a exigir maior intervenção inte- lectual pareciam indicar a tendência de eliminação do trabalho imediato e a predominância de traba- lhos mediatos, isto é, atividades predominantemen- te intelectualizadas ou imateriais. Em fins da década de 1970, um conjunto de teses procurou explicar como a nova constitui- ção da produção não mais poderia ser analisada pelo marxismo, já que a sociabilidade não era mais determinada pelo trabalho. Nos anos 1980, essa perspectiva se radicaliza com a expansão do setor de serviços e do trabalho imaterial e o corpo teóri- co da análise marxiana é questionado. O trabalho imaterial foi, a partir de então, um objeto de estudos recorrente no debate socioló- gico, político e econômico contemporâneo, na me- dida em que trazia consigo novas formas de explo- ração e de luta política ainda não mapeadas e não problematizadas teoricamente. Nesse contexto, pelo menos duas grandes perspectivas analíticas, com muitas nuanças internas, se digladiaram. De um lado, vislumbrou-se o esgotamento do capitalismo como uma sociedade organizada em torno do traba- lho e da indústria e, por consequência, das utopias revolucionárias. De outro, houve uma retomada de Marx para qualificar as transformações produtivas e gerenciais como expressão de uma nova fase do processo de valorização e acumulação capitalista. * Doutor em Ciências Sociais. Professor de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós- graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP/Guarulhos). Av. Monteiro Lobato, 679. Bairro Macedo. Cep: 07112-000. Guarulhos – São Paulo – Brasil. [email protected]

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O TRABALHO IMATERIAL EM DISCUSSÃO: teoria e política

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    Henrique Amorim

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    INTRODUO

    Henrique Amorim*

    O TRABALHO IMATERIAL EM DISCUSSO: teoria e poltica

    Nas ltimas duas dcadas, o trabalhoimaterial foi objeto de muitas anlises nas CinciasSociais. Grosso modo, as consideraes sobre o temaforam influenciadas por duas grandes transforma-es nas sociedades contemporneas. De um lado,o fim da bipolaridade poltico-econmica entre Es-tados Unidos e Unio Sovitica e, de outro, as trans-formaes, tais como a robtica, a microeletrnica eas novas formas de gesto empresarial da mais re-cente reestruturao produtiva caracterizaram ospilares empricos de redimensionamento das an-lises sobre a produo e o trabalho.

    A diminuio de postos de trabalho nasindstrias de pases de economia avanada e, aomesmo tempo, o aumento das ocupaes profissi-onais que passam a exigir maior interveno inte-lectual pareciam indicar a tendncia de eliminaodo trabalho imediato e a predominncia de traba-lhos mediatos, isto , atividades predominantemen-

    te intelectualizadas ou imateriais.Em fins da dcada de 1970, um conjunto

    de teses procurou explicar como a nova constitui-o da produo no mais poderia ser analisadapelo marxismo, j que a sociabilidade no era maisdeterminada pelo trabalho. Nos anos 1980, essaperspectiva se radicaliza com a expanso do setorde servios e do trabalho imaterial e o corpo teri-co da anlise marxiana questionado.

    O trabalho imaterial foi, a partir de ento,um objeto de estudos recorrente no debate sociol-gico, poltico e econmico contemporneo, na me-dida em que trazia consigo novas formas de explo-rao e de luta poltica ainda no mapeadas e noproblematizadas teoricamente. Nesse contexto, pelomenos duas grandes perspectivas analticas, commuitas nuanas internas, se digladiaram. De umlado, vislumbrou-se o esgotamento do capitalismocomo uma sociedade organizada em torno do traba-lho e da indstria e, por consequncia, das utopiasrevolucionrias. De outro, houve uma retomada deMarx para qualificar as transformaes produtivase gerenciais como expresso de uma nova fase doprocesso de valorizao e acumulao capitalista.

    * Doutor em Cincias Sociais. Professor de Sociologia doDepartamento de Cincias Sociais e do Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais da Universidade Federalde So Paulo (UNIFESP/Guarulhos).Av. Monteiro Lobato, 679. Bairro Macedo. Cep: 07112-000.Guarulhos So Paulo Brasil. [email protected]

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    Estruturadas por diferentes horizontes te-ricos e polticos, essas perspectivas de leitura dotrabalho imaterial tiveram como referncia inicialos Grundrisse de Karl Marx, texto escrito entre1857-1858. No entanto, a apropriao do conceitode trabalho imaterial, de incorporao da tecnologiae cincia produo, da reduo do tempo de tra-balho necessrio e de ampliao do tempo livre,da constituio do general intellect e do indivduosocial desenvolvida por Marx nesse texto foi reali-zada de diferentes formas no debate sobre o traba-lho imaterial.

    Assim, Marx dos Grundrisse foi base, aomesmo tempo, tanto para explicar a transio docapitalismo industrial para um suposto capitalis-mo cognitivo como para demonstrar como a ex-plorao do trabalho no se limitaria exploraodo trabalho na fbrica e, portanto, que a valoriza-o do capital pode ser realizada tanto sob o signodo trabalho material quanto do trabalho imaterial.

    Em linhas gerais, as questes colocadas peladiscusso sobre o trabalho imaterial giraram em tor-no de qual seria o sentido da produo imaterial? Otrabalho imaterial indica um novo padro de orga-nizao de sociabilidade ou aprofunda o padrocapitalista atual? Ele expresso de uma nova lgi-ca social de sociedades ps-industriais ou recom-pe e conserva a base estrutural das sociedades ca-pitalistas caractersticas dos sculos XIX e XX?

    Buscando dar respostas, pistas e possveisdiagnsticos para essas questes, o dossi, O tra-balho imaterial em discusso: teoria e poltica trazdiversificadas abordagens, compilando autores eteses com perspectivas analticas distintas sobre otrabalho imaterial e tambm sobre temas fundamen-talmente atuais. Assim, questes que cercam a re-lao entre o tempo de trabalho necessrio e o tem-po livre, o trabalho produtivo, o improdutivo e osservios, o trabalho intelectual e o trabalho manu-al, o conhecimento, o saber e as qualificaes pro-fissionais, as classes sociais, a valorizao do capi-tal e a renda, entre tantas outras, so desenvolvi-das nos artigos que compem esse dossi.

    Com a expectativa de se caracterizar comouma importante referncia em estudos e pesqui-

    sas que procuram tanto se introduzir na discus-so quanto ambicionam uma leitura mais detalha-da e profunda do tema, o dossi traz oito artigosque, alm de se fundamentarem em elementos te-ricos e empricos, indicam a complexidade dotema e, portanto, a necessidade de seu desenvol-vimento intelectual.

    O artigo que abre nosso dossi o de UrsulaHuws, Vida, Trabalho e Valor no Sculo 21: des-fazendo o n. Nesse texto, Huws analisa as atu-ais formas de trabalho imaterial ou digital, como objetivo de indicar quais seriam os espaos oulugares nos quais a produo de valor se realiza.Com base em um esquema analtico que divide otrabalho em trabalho remunerado e trabalho noremunerado e os relaciona s formas do trabalhoreprodutivo e do trabalho diretamente produti-vo, sustenta que, com base nas teses de Marx, possvel definir o que uma mercadoria, identifi-car os locais nos quais so produzidas (materiais eimateriais) e definir a classe trabalhadora globalimersa nessa produo.

    Fundamentando sua anlise em uma crticas teses que indicam ser o trabalho imaterial a novafora produtiva do capitalismo contemporneo,Henrique Amorim, em seu artigo, As teorias dotrabalho imaterial: uma reflexo crtica a partir de

    Marx, retoma algumas das obras centrais de Marxna tentativa de descrever as diferenas entre as for-mulaes desse autor acerca dos conceitos de tra-balho, valor e classe social e a interpretao dessesconceitos realizada pela chamada economia doconhecimento. Identifica, assim, um reducionismoanaltico, exposto, sobretudo, nas teses que res-tringem os conceitos marxianos produo fabril.

    No terceiro artigo, O trabalho imaterial nociclo de material do capital e a determinao das

    classes sociais no capitalismo contemporneo,Adrin Sotelo Valencia relaciona o trabalhoimaterial aos problemas atuais das sociedades con-temporneas e, em especial, s crises ocorridas nosculo XXI. Para isso, parte da tese segundo a qualo trabalho intelectual parte da fora de trabalho e pensado como uma forma social do trabalhadorcoletivo, utilizado pelo capital como meio de pro-

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    duo do valor. O autor aponta para uma articu-lao virtuosa entre o trabalho material e o traba-lho imaterial que opera dialeticamente na produ-o de informao, cincia e tecnologia.

    Com o ttulo Subsuno do trabalhoimaterial ao capital, Eleutrio F. S. Prado e JosPaulo Guedes Pinto trazem elementos conceituaissignificativos para a reflexo sobre como o traba-lho imaterial pode ser considerado expressotendencial da indstria ps-taylorista. Ao diagnos-ticar diferenas estruturais entre a produotaylorista e a ps-taylorista, os autores desenvol-vem a tese de que estaria em curso uma transfor-mao do sistema capitalista que caracterizaria osurgimento de um novo modo de produo. Coma substituio de regras externas e arbitrrias decontrole do trabalhador pela garantia de que eleatue como um colaborador aparentemente volun-trio, configurar-se-ia a transformao da grandeindstria na ps-grande indstria, na qual o traba-lho imaterial exerce protagonismo.

    Com o objetivo de discutir a produo devalor e mais-valia no setor de servios, Sadi DalRosso, em seu artigo Teoria do valor e trabalhoprodutivo no setor de servios, percorre as determi-naes da relao entre o que ou no produtivoem cada setor da produo capitalista. Faz, assim, oexame dos setores primrio, secundrio e tercirio,procurando diagnosticar, para cada um deles, emque medida se produz valor e mais-valia. Noobstante, seu foco central visa ao estabelecimentode distines, dentro do setor de servios, entre otrabalho produtivo e o trabalho improdutivo, res-saltando a atualidade da teoria do valor-trabalho deMarx para qualificar essas relaes sociais.

    Benedito Rodrigues de Moraes Neto, no tex-to: Emprego e trabalho no Sculo XXI: revisitandoKeynes e Marx, como o subttulo sugere, retomaKeynes e Marx para dar pistas sobre como analisaras formas de utilizao da fora de trabalho nosltimos anos. Partindo das noes de trabalhodesprovido de contedo e trabalho atividade,o artigo de Moraes Neto objetiva ilustrar, com baseem fontes empricas, as possibilidades de efetivaosocial do trabalho livre e emancipado, sobretu-

    do tendo como referncia a relao entre o desen-volvimento das foras produtivas e as relaes deproduo capitalistas no quadro da produotaylorista-fordista e as atuais formas de organiza-o do trabalho.

    Retomando as principais teses que consti-tuem o edifcio terico de Andr Gorz, Josu Perei-ra da Silva, com o texto Tempo de trabalho eimaterialidade na teoria social de Andr Gorz,procura discutir a perspectiva de Gorz em relaoao trabalho imaterial e identifica mudanas na es-trutura de produo do capitalismo contempor-neo, ao indicar que o trabalho imaterial, baseadona produo e no conhecimento, no poderia sermedido em unidades de tempo. Essa transforma-o implicaria, para Silva, a substituio do traba-lho pelo conhecimento como principal fora pro-dutiva. Assim, o modelo baseado no tripconceitual trabalho, valor e capital seria substi-tudo pelo trip conhecimento, valor e capital, oque abriria novas formas de luta poltica fora douniverso do trabalho.

    Por fim, o dossi sobre o trabalho imaterial seencerra com o texto, Valor, renda e imaterialidadeno capitalismo contemporneo, de Svio Cavalcan-te. A porta de entrada para a discusso do trabalhoimaterial de Cavalcante se d pela articulao entreos conceitos de valor e renda. Analisa, assim, asteses da teoria do trabalho imaterial, mostrando comoo capitalismo, na atualidade, se fundamenta no ca-rter rentista da economia, ocasionado por uma re-lativa autonomizao do capital em relao ao traba-lho vivo.

    O sculo XXI, nesses primeiros anos deexistncia, radicalizou as formas de explorao dotrabalho. Tanto as atividades profissionais ligadas produo de mercadorias materiais quanto aque-las que produzem bens imateriais passaram porum processo de radicalizao de suas formas decontrole gerencial e de intensificao do trabalho.Nesse quadro, de degradao da classe trabalha-dora, o dossi Trabalho imaterial em discusso:teoria e poltica procura apresentar algumas alter-nativas, propostas e, sobretudo, um exame do tra-balho imaterial no mbito da produo capitalista.

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    Gostaria, por fim, de agradecer a Dad Mar-ques pela presteza e ateno durante o processode organizao do dossi, a Svio Cavalcante pelatraduo do texto de Ursula Huws, a todos ospareceristas que gentilmente realizaram o trabalhode avaliao dos artigos, aos autores que pronta-

    Henrique Amorim Doutor em Cincias Sociais. Professor de Sociologia do Programa de Ps-Graduao emCincias Sociais da Universidade Federal de So Paulo (UNIFESP-Campus Guarulhos). Ps-doutor no Depar-tamento de Sociologia (IFCH/UNICAMP) e na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales. Coordenador doprojeto de pesquisa, financiado pela FAPESP e pelo CNPq: Classes Sociais e Valor na Teoria Social Contempo-rnea. Atua na rea de Sociologia, com nfase em sociologia do trabalho e teoria social, trabalhando princi-palmente com os seguintes temas: trabalho, movimentos e classes sociais, produo, processos de trabalho evalor. Alm de artigos nesses temas, autor dos livros: Valor-trabalho e imaterialidade da produo nassociedades contemporneas, publicado pelo CLACSO em 2012; Trabalho Imaterial: Marx e o debate contem-porneo, publicado pela Annablume/FAPESP em 2009; e Teoria Social e Reducionismo Analtico: para umacrtica ao debate sobre a centralidade do trabalho, publicado pela EDUCS em 2006.

    mente aceitaram participar dessa empreitada e atoda a editoria do Caderno CRH, que nos conferiua oportunidade de organizar o dossi que aqui seapresenta.

    Recebido para publicao em 15 de dezembro de 2013Aceito em 20 de dezembro de 2013