o tortuoso caminho da sustentabilidade: tendências recentes da agricultura na região sul

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AGENDA 21 Agricultura Sustentável O tortuoso caminho da sustentabilidade: tendências recentes da agricultura na região Sul Ricardo Abramovay (FEA e PROCAM/USP - [email protected]) São Paulo, janeiro de 1999

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Estudo de Ricardo Abramovay (FEA e PROCAM/USP). AGENDA 21 Agricultura Sustentável. São Paulo, janeiro de 1999

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AGENDA 21 Agricultura Sustentável

O tortuoso caminho da sustentabilidade: tendências recentes da agricultura na região Sul

Ricardo Abramovay (FEA e PROCAM/USP - [email protected])

São Paulo, janeiro de 1999

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O tortuoso caminho da sustentabilidade: tendências recentes da agricultura na região Sul

Ricardo Abramovay *

1. Apresentação

Durante a década de 1990, a relação entre a agricultura e o meio ambiente na região Sul mudou de qualidade, ao menos em dois sentidos, fundamentais para a formulação da Agenda 21: por um lado são melhor conhecidos tanto os efeitos nefastos de certas práticas agropecuárias, como boa parte de suas alternativas economicamente viáveis. Por outro lado, a região Sul vem sendo capaz de construir as instituições a partir das quais os temas de natureza ambiental incorporam-se - de maneira desigual, insatisfatória e, em muitas circunstâncias, polêmica, é bem verdade - às práticas cotidianas dos produtores.

Para fundamentar sua idéia central - de que há na região Sul um processo de transição para uma agricultura menos predadora dos recursos naturais - este trabalho divide-se em cinco partes, além desta apresentação.

Primeiramente expõem-se (parte 2) os elementos principais referentes à ocupação do território pela agropecuária. À oposição inicial - desde o início do Século XIX - entre florestas e campos sucedeu-se uma nítida separação entre lavoura e pecuária que marca toda história agrária da região. Por um lado, é sobre as superfícies florestais derrubadas e queimadas que se realizam as culturas, reservando-se os campos naturais à exploração pecuária a partir de grandes extensões territoriais. Por outro lado, nas unidades produtivas familiares - cujo peso social, econômico e espacial é maior que em qualquer outra região do País - as lavouras crescem, mas sem estarem articuladas organicamente à pecuária. A solução trazida pelas tecnologias da Revolução Verde ao esgotamento da rotação de terras - forma dominante de recuperação das energias do solo até o final dos anos 1960 - responde pela grande maioria dos problemas ambientais até hoje existentes na agricultura da região.

A parte 3 dedica-se aos mais importantes impactos ambientais das atividades agrícolas, sobretudo a partir dos anos 1970, quando o próprio Estado brasileiro subvencionou mecanismos que estimularam os agricultores na adoção de práticas ambientalmente insustentáveis.

Já ao final dos anos 1970, as próprias instituições estatais de pesquisa e extensão - bem como um conjunto importante de organizações não governamentais - começam a procurar alternativas a estas práticas. Nos últimos dez anos muitas delas - sobretudo as que procuram evitar a erosão dos solos como o plantio

* Departamento de Economia/FEA e PROCAM/USP - [email protected]

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direto - acabaram sendo massivamente adotadas, como se mostra na parte 4 do texto. Estas mudanças não dependeram apenas da constatação feita pelos agricultores da insustentabilidade de muitas das técnicas embutidas no �“pacote tecnológico�” a cujo uso foram estimulados por créditos fartamente subsidiados - sobretudo quando estes subsídios foram reduzidos e posteriormente eliminados. Elas basearam-se também num processo altamente capilarizado de organização local e regional, que contribuiu para que centenas de milhares de agricultores começassem a sensibilizar-se não apenas para a preservação dos recursos de suas unidades produtivas, mas para a garantia da manutenção da integridade das microbacias hidrográficas em que estão inseridos. Nos três Estados do Sul, as microbacias hidrográficas converteram-se - com o apoio da pesquisa e da extensão estatais, das ONG�’s, das prefeituras, dos Estados e do Banco Mundial - em �“unidades lógicas e técnicas de planejamento�” (EMATER/RS, 1995:12).

Apesar de sua importância, a organização em microbacias hidrográficas não foi ainda capaz de resolver alguns dos mais sérios problemas na relação entre agricultura e meio ambiente. É excessivamente lento o processo de mudanças na agricultura da região Sul: os meios técnicos disponíveis estão muito além do que já é praticado pelos produtores.

Com relação às outras regiões brasileiras, é certamente no Sul do País onde mais se desenvolveram trabalhos de pesquisa e ações práticas visando o desenvolvimento de uma agricultura sustentável, seja qual for o significado preciso que se atribua a este termo. Apesar disso, é importante lembrar que não existe um trabalho de síntese a respeito, nem sob o aspecto histórico, nem tampouco a partir dos problemas mais recentes. Além deste limite evidente, como contribuição à Agenda 21, optou-se aqui pela concentração nos mais importantes aspectos da relação entre agricultura e meio ambiente. As lacunas são muitas e deverão ser preenchidas no curso da discussão a que este trabalho pretende contribuir. Não se estudam aqui alguns elementos importantes como os referentes aos recursos pesqueiros - sabidamente ameaçados tanto em Santa Catarina como na região Lagunar do Rio Grande do Sul - ou às atividades de desmatamento ilegal nas superfícies de araucária e na região da Mata Atlântica.

Da mesma forma, convém alertar que não são expostas as inúmeras experiências técnicas bem sucedidas feitas tanto por órgãos estatais como por Organizações Não Governamentais (sobretudo as ligadas à rede Tecnologias Alternativas) e que têm contribuído para ampliar o leque de possibilidades em direção a uma agricultura capaz de preservar os recursos naturais.

2. A formação dos problemas ambientais

Foi na região Sul que mais se massificou o emprego em larga escala dos meios biológicos, químicos e mecânicos característicos da Revolução Verde: sementes de alta potencialidade, aplicação de fertilizantes químicos e agrotóxicos, mecanização do preparo do solo, dos tratos culturais, das colheitas e, sobretudo,

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especialização em algumas poucas culturas em regime de sucessão com largos períodos de exposição da terra nua às intempéries climáticas, em nenhuma região brasileira como no Sul, uma quantidade tão grande de agricultores familiares teve acesso aos meios que lhes permitiram aumentar a produção, elevar os rendimentos do solo e os efetivos da pecuária.

A profunda transformação na base técnica da agropecuária brasileira, a partir do final dos anos 1960, apoia-se num verdadeiro pacote tecnológico, cujo uso em larga escala está na raiz de seus mais importantes problemas ambientais até hoje. Sua ampla difusão teve por base um poderoso aparato institucional, que ia da extensão e da pesquisa estatais ao sistema nacional de crédito rural, passando pela publicidade e pela crença irrestrita de muitas organizações agrícolas (sobretudo as cooperativas) em suas virtudes modernizantes. Mas é importante salientar que o pacote tecnológico ao qual camada significativa dos agricultores familiares da região Sul teve acesso, veio solucionar - ainda que provisoriamente e criando novas dificuldades - problemas reais que enfrentavam.

2.1. Lavoura e pecuária: uma história desarticulada

Florestas e campos: a ocupação territorial da região Sul pela agropecuária desde o início do Século XIX respeitou uma primeira grande divisão natural, mas que era, ao mesmo tempo, a expressão espacial de categorias sociais claramente distintas. As regiões de campos naturais - Palmas e Campos Gerais, no Paraná, Lages, em Santa Catarina, e todo o Sul do Rio Grande do Sul - foram tomadas fundamentalmente pela pecuária extensiva com base em grandes extensões e pouca mão-de-obra. Já os migrantes de origem européia que, a partir de 1824, chegaram ao Rio Grande do Sul - bem como a população cabocla que contribuiu para o povoamento do Brasil meridional - foram ocupando fundamentalmente as áreas florestais.

Apesar das dificuldades envolvidas no desmatamento, da proliferação de doenças, do isolamento e da precariedade do acesso aos cuidados mais elementares de saúde, a floresta representava um trunfo na formação das unidades produtivas destes agricultores - e não só pela proliferação de empresas madeireiras na região: por meio da derrubada e da queimada, eles convertiam a mata em elemento decisivo de fertilidade natural de suas lavouras. O plantio sobre as cinzas da floresta recém queimada dispensava o trabalho de aração do solo, a utilização de fertilizantes químicos ou orgânicos e as atividades de capina, já que, em virtude da queimada recente, o cultivo não sofria a concorrência de ervas adventícias. Os rendimentos do solo nestas circunstâncias eram muito altos durante dois ou três anos, ao final dos quais deixava-se em pousio a área recém queimada (que representava de cinco a dez por cento da área total da propriedade, no módulo colonial típico de 25 hectares) para repetir a operação em outra, adjacente. Sobre a área então queimada - agora deixada em descanso ou pousio - vinha uma vegetação (capoeira) que iria preencher num

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futuro mais ou menos distante a mesma função da mata original: sobre suas cinzas emergiriam lavouras durante mais dois ou três anos.

Durante a primeira metade do século XX este sistema de exploração do solo foi consideravelmente melhorado pela incorporação da aração com tração animal. Conservou-se, entretanto, nas propriedades familiares, um dos mais importantes limites ao desenvolvimento agrícola brasileiro como um todo, já apontado por Caio Prado Jr. (1965): a separação entre lavoura e pecuária. Nossa situação, neste sentido, é bem diferente da que Mazoyer e Roudart (1997) chamaram de Primeira Revolução Agrícola européia que se caracterizou pela integração orgânica entre criação animal e produção vegetal: parte das lavouras consagrava-se à alimentação animal cujos dejetos, por sua vez, serviam para a fabricação de compostos que iriam voltar-se à fertilização das próprias lavouras.

A mais importante pesquisa histórica sobre o desenvolvimento dos sistemas agrários no Sul do País - do geógrafo Leo Weibel (1969) - mostra que, embora quase metade das explorações familiares da região Sul, ao final dos anos 1950, já utilizasse a tração animal, eram raríssimos os casos em que a rotação de terras tinha sido substituída pela rotação de culturas com utilização dos dejetos da pecuária como forma de fertilização dos solos. Até hoje se constata na região Sul pocilgas na beira dos córregos em que corria o esterco suíno e esta era a forma típica de construção até o início dos anos 1980: nenhum reaproveitamento do esterco nas plantações, salvo nas hortas em torno das residências. É que o trabalho envolvido na preparação dos compostos orgânicos e sobretudo em seu transporte às plantações ainda podia ser evitado uma vez que existiam dentro das propriedades - embora em franco processo de exaustão - superfícies em que se praticava a rotação de terras.

A existência de fronteiras agrícolas abertas aos processos migratórios permitia que a ocupação ou a compra de novas terras e a reprodução deste sistema produtivo baseado na rotação de terras fossem mais vantajosas para os novos agricultores que para aí se deslocavam que a intensificação produtiva representada pelo caminho da integração orgânica entre lavoura e pecuária. E é assim que, desde o final dos anos 1920, do Alto Uruguai no Rio Grande do Sul tem origem a migração que vai ocupar todo o Oeste de Santa Catarina, o Sudoeste e o Oeste do Paraná até o final dos anos 1950.

Este sistema de utilização das terras é característico das áreas em que predominam a policultura de lavouras temporárias (milho, feijão, arroz e mandioca, basicamente) junto com formas diversificadas de pecuária - e sobretudo uma suinocultura voltada à produção de banha. Mas é importante lembrar que, na ocupação do Norte do Paraná a partir dos anos 1940, com base na cafeicultura, tampouco se observa o uso de compostos orgânicos baseados em dejetos animais para aumentar a fertilidade do solo. A terra é explorada com investimentos correspondentes fundamentalmente ao próprio trabalho da família do agricultor (além da venda de madeira, existente na vegetação de origem, é

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claro) e sem que haja reposição sistemática da grande fertilidade das áreas florestais recém desmatadas. É da floresta que o agricultor retira parte importante do que será seu capital de exploração, seja vendendo a madeira, seja, sobretudo, transformando-a em cinzas sobre as quais serão feitos seus plantios.

Os lotes formados com base na ocupação florestal - que se trate das colônias gaúchas do primeiro quarto do Século XIX ou dos cafezais que seguiam a trilha da Estrada de Ferro no Norte do Paraná a partir dos anos 1940 - são formados em tiras que partem do alto das colinas para terminar na beira dos córregos ou rios. Este formato transversal com relação aos cursos d�’água vai contribuir de maneira significativa para os problemas de erosão, a partir dos anos 1970, quando a rica policultura e a proteção do solo pelos restos da floresta forem substituídas pela especialização produtiva e pela eliminação dos obstáculos físicos à mecanização das lavouras.

Nas áreas de lavoura temporária, quanto maior o tempo de pousio, mais produtivo tornava-se o solo em que se derramavam as cinzas da queimada. Ao contrário, conforme acelerava-se o ritmo desta rotação de terras (seja por necessidades de mercado, seja pelo crescimento da própria família), mais claramente apareciam os seus limites aos olhos dos próprios agricultores. Aos pousios longos de mais de dez anos - em que chegava a crescer uma vegetação de aspecto florestal - sucediam-se períodos inferiores de descanso dos quais apenas uma vegetação arbustiva emergia.

Assim, o aumento da pressão populacional e da demanda de mercado apontava de maneira cada vez mais nítida - para os próprios agricultores - os limites destes sistemas produtivos onde a recuperação das energias que as culturas tomam do solo dependia fundamentalmente da rotação de terras. É na forma como foram enfrentados estes limites, a partir do final dos anos 1960, pelo conjunto das instituições voltadas à transformação das bases técnicas da agropecuária, que se enraízam os principais problemas que, até hoje, caracterizam a relação entre agricultura e meio ambiente na região Sul.

2.2. O pacote tecnológico: acentuando a separação

O esgotamento da rotação de terras nas áreas de lavouras temporárias foi superado (para aquela parcela muito significativa de agricultores que teve acesso aos financiamentos bancários), fundamentalmente, pela adoção de métodos químicos de fertilização do solo. Não se tratava entretanto de uma inovação isolada: os fertilizantes químicos eram, na verdade, apenas um elemento de um conjunto bastante coerente que envolvia:

• o preparo mecânico do solo e portanto a eliminação dos remanescentes florestais (tocos de árvores, palha das culturas) que poderiam impedir a passagem das máquinas;

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• a utilização de sementes - compradas - cujo potencial dependia de fertilizantes químicos;

• a substituição da consorciação de culturas pela especialização (1), necessária às colheitas mecanizadas;

• a gradual eliminação da força humana e animal no combate às ervas adventícias e o uso cada vez mais intenso de herbicidas e

• o emprego de outros pesticidas (inseticidas, acaricidas, fungicidas, etc.) em virtude não só do empobrecimento da diversidade biológica nas áreas de lavoura, como também da eliminação dos inimigos das pragas vindos das superfícies florestais eliminadas.

Não foi na pecuária e sim na indústria química que as áreas de lavoura, em franca expansão - no Paraná, por exemplo, passam de 1,4 milhão para 6 milhões de hectares entre 1950 e 1980 (tabela 1) - encontraram os meios de organizar o espaço para permitir o aumento das safras. Se até o início dos anos 1970, este crescimento baseou-se, como foi visto no item 2.1., acima, na rotação de terras, a partir de então, a dependência de adubos químicos torna-se crescente: no Estado do Paraná, por exemplo, o consumo de fertilizantes químicos (nitrogênio, fósforo e potássio, NPK) aumenta de 100 mil para mais de 500 mil toneladas anuais entre 1970 e 1980 (Banco Mundial, 1997), crescimento muito maior que o da área agrícola ou mesmo da área de lavoura no mesmo período e que mostra bem a forma dominante, a partir de então da intensificação do uso do solo e cujos impactos ambientais serão estudados no próximo item.

Tabela 1 Evolução da ocupação e uso da terra no Paraná - 1950 a 1980

1950 1960 1970 1980

Estabs. 89.461 296.146 554.488 454.103

Área (mil ha)

8.033 11.385 14.626 16.380

Área lavs. (mil ha)

1..358 3.441 4.717 6.085

Perms. 489 1.657 1.306 952

Temps 870 1.784 3.412 5.132

Fonte: Censo Agropecuário de 1980 - Paraná - Fundação IBGE

1 Estudo recente do International Food Policy Research Institute (IFPRI) mostra que o aumento no consumo de pesticidas na agricultura origina-se, em grande parte, de �“mudanças nas técnicas culturais, particularmente na intensificação das colheitas, na redução da rotação de culturas, tudo isso contribuindo para o aumento das pragas�” (Yudelman et al., 1998:4).

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A soja é certamente o produto emblemático das profundas mudanças por que passou a agropecuária da região Sul desde o final dos anos 1960: não só pelas mudanças que trouxe na paisagem agrícola regional (substituindo áreas de cafeicultura no Norte do Paraná, produtos básicos como o feijão e o arroz e pastagens naturais em todo o Sul), mas também por sua fortíssima dependência de insumos químicos, mecânicos e biológicos de origem industrial, bem como pelo destino igualmente industrial de boa parte do produto. A tabela 2, também referente ao Estado do Paraná, mostra a espetacular expansão do produto, a partir do final dos anos 1960. Boa parte do declínio na superfície de feijão, arroz, amendoim e mandioca entre 1970 e 1980 vem exatamente da expansão da soja - em consorciação com o trigo, ao menos enquanto perduraram os subsídios a esta cultura.

Tabela 2 Evolução do uso da terra com lavouras anuais no Paraná - 1960-1983

Culturas 1960 1970 1983

Algodão 151.939 373.287 440.000

Amendoim 4.000 110.167 21.340

Arroz 206.694 441.645 216.400

Batata 36.389 25.932 45.004

Cana-de-açúcar 24.692 30.035 110.930

Feijão 382.488 926.975 699.685

Mandioca 28.875 87.445 69.870

Milho 843.932 2.121.206 2.361.800

Soja 5.059 395.484 2.022.000

Trigo 82.495 250.213 898.265

Outras. anuais 70.663 267.416 129.142

Total 1.837.226 5.029.805 7.014.436

Fonte: Sorrenson e Montoya, 1989:20

Da mesma forma (tabela 3) a redução nas superfícies cultivadas com café no Norte do Paraná corresponde, em grande parte, a sua substituição pela cultura de soja em rotação com o trigo, cuja área, mais que decuplica entre 1960 e 1983 (tabela 2).

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Tabela 3 Evolução do uso da terra com a cultura de café no Paraná - 1950-1980

Ano -> 1950 1960 1970 1980

Área (ha) 267.259 1.335.601 1.048.400 635.877

Fonte: Sorrenson e Montoya, 1989:20

Não foi apenas nas áreas em que se praticavam lavouras que a soja se expandiu, mas também em superfícies até então ocupadas com pastagens naturais. Campo Mourão, Palmas e diversas áreas tradicionais de pecuária no Rio Grande do Sul rapidamente converteram-se ao cultivo do binômio soja-trigo a partir dos anos 1970. E é exatamente em regiões de pecuária ou nas de declínio da cafeicultura que se voltaram a lavouras temporárias, que se manifestam os mais graves problemas de erosão, já em meados dos anos 1970. O município de Paranavaí (PR), por exemplo, foi dos primeiros a iniciar um programa de combate à erosão a partir de microbacias (Banco Mundial, 1997:8).

Convém lembrar que o pacote tecnológico característico da Revolução Verde não se limita ao binômio soja/trigo, mas atinge todas as culturas, inclusive as consideradas durante muito tempo como básicas ou alimentares. Feijão, arroz e milho também são cultivados dentro dos parâmetros que à época traduzem-se juntos aos agricultores como sinônimos de modernidade. Fumo, fruticultura (importantíssimos no Rio Grande do Sul e Santa Catarina) e hortaliças (expressivas nos grandes centros urbanos dos três Estados), encontram na utilização intensiva de agroquímicos os meios de sua expansão.

Em suma, o caminho adotado pela agricultura do Sul do País para superar os impasses resultantes do esgotamento dos solos pelos sistemas agrícolas praticados majoritariamente até o final dos anos 1960 foi a utilização em larga escala dos meios biológicos, químicos e mecânicos característicos da Revolução Verde. O papel do Estado foi decisivo na construção do ambiente social, econômico e institucional que favoreceu a adoção das práticas agrícolas responsáveis pela grande maioria dos problemas ambientais de hoje, como se verá a seguir.

2.3. O papel do Estado

A rapidez das transformações técnicas e sociais da agropecuária brasileira a partir do final dos anos 1960 só se explica pela intervenção do Estado da qual vale ressaltar cinco dimensões básicas:

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a) O Sistema Nacional de Crédito Rural, implantado a partir de 1967, permitiu o acesso de centenas de milhares de agricultores a créditos altamente subvencionados e cuja utilização previa, obrigatoriamente, a utilização de insumos de origem industrial. A propriedade de uma extensão de terra suficientemente grande e bem localizada para justificar o emprego produtivo destes recursos era uma condição básica a sua obtenção. Assim, para a grande maioria dos estabelecimentos - no País como um todo, mas também na região Sul - a Política Nacional de Crédito Rural acabou acelerando seu empobrecimento e mesmo sua eliminação social: entre 1970 e 1985 é nítida a redução na quantidade de parceiros e arrendatários nos três Estados do Sul: eles não obtinham crédito e a facilidade com que os proprietários da terra podiam mecanizar as lavouras e reduzir a necessidade de trabalho pelos subsídios embutidos na compra de máquinas estimulava que ampliassem suas áreas de cultivo, dispensando estes parceiros e arrendatários . A erradicação dos cafezais, a partir do final dos anos 1960 teve este mesmo efeito: os cofres públicos subsidiaram os proprietários para que convertessem suas lavouras de café em plantio de soja/trigo ou pastagem, estimulando não só a dispensa dos agricultores que ali viviam e trabalhavam mas o uso intensivo do solo com culturas temporárias em áreas freqüentemente pouco adequadas a esta finalidade e que, muito cedo, responderam a esta utilização na forma de erosão dos solos.

b) Além de subvencionar o crédito, o Estado chegou a subsidiar diretamente, durante os anos 1970, certos insumos como fertilizantes e calcáreo. Estas subvenções acabavam estimulando os agricultores, na prática, a substituir solo - que corria rio abaixo - por adubos (2).

c) A própria implantação do parque industrial produtor dos insumos químicos em que se apoiou este processo de transformação técnica e das indústrias responsáveis pelo esmagamento da soja foi amplamente apoiada por recursos públicos vindos de bancos federais e estaduais.

d) A pesquisa e a extensão rural estatais voltaram-se de maneira decisiva à divulgação dos meios necessários a este conjunto de transformações. É claro que sempre houve no interior das instituições de pesquisa e extensão críticas severas contra os rumos tomados pelo crescimento agrícola brasileiro. Mas o essencial do trabalho de pesquisa e extensão ao final dos anos 1960 e durante ao menos a primeira metade dos anos 1970 voltou-se à divulgação e à legitimação deste pacote tecnológico.

e) Com relação especificamente ao binômio soja/trigo, foram muito importantes tanto as políticas de mini desvalorizações cambiais (que protegiam os preços

2 Conforme mostram Veiga et al. (1998) esta substituição acaba sempre se mostrando inadequada: �“a produtividade não pode ser recuperada para os níveis de produtividade do solo sem erosão apenas com a aplicação de corretivos e fertilizantes químicos nas quantidades recomendadas...�” (Veiga et al., 1998:25).

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da soja, com relação aos produtos cujos preços eram formados no mercado interno) como a proteção e os subsídios de que se beneficiaram os produtores brasileiros de trigo.

3. Principais impactos

Os primeiros sinais de alarme vieram, timidamente, em meados dos anos 1970, do Estado do Paraná: os próprios agricultores e os técnicos de campo davam-se conta de que a erosão dos solos começava a assumir magnitude preocupante. Pouco depois, já ao final dos anos 1970, engenheiros agrônomos, biólogos e militantes de ONG�’s gaúchos faziam denúncias e propunham formas locais de controle da utilização de agrotóxicos. Quanto à terceira das mais importantes fontes de comprometimento da integridade ambiental pela agropecuária do Sul do País - o despejo nas águas do esterco suíno -, foi somente a partir dos anos 1980 que se adotaram medidas preservacionistas.

Muitos destes problemas estão hoje solucionados ou ao menos fortemente atenuados. É importante entretanto mencioná-los (mesmo quando hoje não têm mais o a gravidade de dez ou quinze anos atrás) por duas razões básicas.

Em primeiro lugar, porque não estão inteiramente resolvidos: a contaminação dos rios do Oeste Catarinense por dejetos suínos ainda é grave, mesmo que tenha havido melhoria com relação ao que se observava no início dos anos 1980. A erosão dos solos está fortemente reduzida, mas ainda é grave em muitas regiões: em Santa Catarina, apesar do avanço de formas menos predatórias de preparo do solo, 60% das áreas de lavoura são cultivadas com base nos chamados sistemas convencionais, com uso de arado e grade (Governo do Estado de Santa Catarina, 1998:8).

Além disso, existem várias propostas de solução para os problemas ambientais, que refletem pontos de vista e interesses por vezes conflitantes: quem deve responder pela armazenagem das embalagens de agrotóxicos ? A crescente concentração nos plantéis de suinocultura é um fator que auxilia na solução ou agrava o problema do destino dos dejetos suínos ? É importante uma visão de conjunto dos impactos ambientais das mudanças tão rápidas e generalizadas sofridas pela agropecuária do Sul do Brasil para que se entendam os caminhos que está tomando sua atual - e excessivamente lenta, como veremos - transição rumo a práticas menos predadoras dos recursos naturais.

Vamos nos concentrar aqui nestes que são os problemas ambientais mais estudados (erosão, agrotóxicos, poluição por esterco suíno) e, sobre os quais formularam-se as mais ambiciosas propostas de mudanças.

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3.1. A erosão dos solos

A impressionante derrubada das florestas que reduziu drasticamente a superfície de matas nativas no Sul do Brasil (3) e os métodos de cultivo rapidamente descritos no item 2.1. contribuíram, é claro, para a degradação dos recursos naturais, comprometendo a biodiersidade, eliminando parte significativa da flora e da fauna. Mas as formas de plantio, tratos culturais e colheita adotadas não provocavam perda significativa de terra.

A erosão dos solos está associada fundamentalmente à �“...passagem abrupta de áreas de florestas e pastagens naturais para sistemas agrícolas de monoculturas contínuas, associadas a uma mecanização intensiva e desordenada�”, explicam, Sorrenson e Montoya (1989:7) num dos mais completos estudos a respeito. A intensidade do uso e o excessivo revolvimento da terra acabam levando �“à compactação do solo agrícola, provocando a erosão pela não-inflitração das águas pluviais�” (EMATER/RS, 1995:13).

Suscitada fundamentalmente pelo impacto das águas (e, em menor proporção dos ventos), a ocorrência mais comum é da erosão laminar que, diferentemente, da erosão em sulco ou das vossorocas, é pouco perceptível aos olhos dos agricultores, mas traz efeitos altamente destrutivos sobre os rendimentos das lavouras.

3.1.1. Custos e magnitude

Sorrenson e Montoya apontavam ao final dos anos 1980 uma situação catastrófica: com as práticas mais freqüentemente adotadas de preparo do solo até o início daquela década (utilização de trator para uma gradagem pesada de disco e duas ou mais gradagens niveladoras) perdia-se, numa declividade média de 9% a 22% e em condições médias de precipitação natural quase 30 toneladas de solo por hectare. Nesta forma de preparo do solo, �“a superfície do solo é praticamente pulverizada até uma profundidade de aproximadamente 12 centímetros, abaixo da qual forma-se uma camada compactada devido ao peso dos tratores e discos�” (Sorrenson e Montoya, 1989:32). Só para se ter uma idéia do que isso representa, convertendo-se este solo erodido em seus elementos químicos componentes (nitrogênio, fósforo, potássio, magnésio e cálcio) a perda elevava-se, em 1984, a nada menos que US$ 60 por hectare. A margem bruta de um produtor de soja era, na época, de US$ 112 por hectare. Considerando que 70% dos produtores paranaenses (e não há razão para se supor que nos outros Estados a situação fosse significativamente diferente) praticavam estas formas predatórias de preparo do solo, é clara a insustentabilidade da situação.

Embora, como será visto no item 4 deste trabalho, a ampliação do plantio direto tenha atenuado os impactos negativos desta especialização cultural, até hoje 3 O Paraná possuía há um século, 83,41% de sua superfície coberta por florestas. Hoje, este total não passa de 5% (IAP, 1998:4).

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persistem situações críticas: na região metropolitana de Curitiba, por exemplo, perde-se, segundo pesquisa do IAPAR (Darolt, 1998:9), nada menos que 200 toneladas de solo por hectare/ano no cultivo de batata.

Pesquisa realizada pela EPAGRI em Santa Catarina mostra também que as perdas de solo num Cambissolo eutrófico com declividade média de 24% e cultivado em sistema de preparo convencional (uma aração e duas gradagens) variou de 15 a 38 toneladas por hectares. A este respeito, a EPAGRI cita um estudo segundo o qual �“a liberação de CO2 de solos arados é superior ao emanado pelo consumo de combustíveis fósseis em todo o mundo. A aração, além de provocar a perda de carbono, causa o aquecimento da superfície da terra pela exposição à radiação solar, importante fator para o aumento do efeito estufa�” (Governo do Estado de Santa Catarina, 1998:8).

Embora menos freqüente que a erosão laminar, a erosão em sulcos e as vossorocas agridem até hoje a paisagem rural do Sul brasileiro. Na vasta área de latossolos e associações da bacia do Rio Guaíba, foi estimada, em 1991, a presença de 20 metros de extensão de vossorocas por hectare (EMATER/RS, 1995:56). Em avaliação recente do Programa Paraná Rural, constata-se igualmente, na microbacia do rio Inhacanga em Altônia, no Noroeste do Estado �“...a ocorrência de erosão em sulcos ocasionais, com formação de voçorocas em áreas de Areias Quartzosas�” (Governo do Paraná, 1997:6). O estudo mostra que as pastagens vêm ocupando o lugar de uma cafeicultura degradada comprometendo a lotação dos pastos e contribuindo ainda mais para o processo erosivo. Mas o uso de terras inaptas para certas atividades econômicas, não é, nem de longe, um problema isolado e contribui consideravelmente para agravar os problemas de erosão. É o que mostra o item a seguir.

3.1.2. Conflitos de uso

São raros os casos em que os agricultores submetem o uso das terras à análise de seu potencial agronômico. Na maior parte das vezes, a localização das culturas e das áreas de pastagem respondem a um conjunto variado de fatores onde o potencial produtivo raramente resulta de uma análise sistemática. Além disso, a própria limitação em suas superfícies faz com que os produtores não possam distribuir suas atividades em virtude de seus atributos agronômico. Este problema abre o caminho à existência daquilo que a engenharia agronômica chama de conflito de uso, severamente agravado pela distorção nos preços dos fatores produtivos trazida pelas políticas estatais de subsídio ao crédito rural e a certos insumos. Estas políticas contribuíram para esconder o custo real das culturas e permitiram a exploração em áreas pouco aptas a esta finalidade.

No Oeste Catarinense, por exemplo, 43% da superfície dos estabelecimentos é inapta para lavouras anuais e outros 26% sofrem fortes restrições neste sentido (Testa et al, 1996:107).

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Já no Rio Grande do Sul, na área referente à bacia do Guaíba, ainda no início dos anos 1990, era feito um diagnóstico segundo o qual o Alto Jacuí apresenta quase 100 mil hectares de solo utilizados com culturas anuais e pouco aptos a esta finalidade e outros 63 mil hectares inteiramente inadequados às lavouras temporárias aí desenvolvidas (EMATER/RS, 1995:14). No Baixo Jacuí, os conflitos agudos alcançavam quase 130 mil hectares (EMATER/RS, 1995:66).

3.1.3. Solo exposto

A erosão é seriamente agravada pela ausência de cobertura do solo entre as culturas de verão e de inverno. Na microbacia do Lajeado São José, em Chapecó, foi elaborado um calendário que mostrava a cobertura do solo durante o ano (Bassi 1998:22). Em 1988, a maior parte do solo da microbacia ficava descoberto entre outubro e meados de dezembro e entre meados de abril até meados de julho. À época, relata Bassi (1998:23), os métodos de preparo do solo predominantes na microbacia eram os tradicionais (�“arações e gradagens com incorporação de resíduos vegetais, mantendo o solo descoberto no período de implantação das culturas anuais�”) o que levava a grandes perdas de solo. Esta situação, conforme será visto no item 4 deste trabalho, foi seriamente revertida com a implantação dos programas de microbacia. Mas é interessante lembrar que há apenas dez anos, formas pouco adequadas de preparação da terra para o plantio eram massivamente adotadas em uma das regiões de maior modernização agrícola do País, o Oeste Catarinense.

Da mesma forma, o diagnóstico que precedeu a implantação do programa de microbacias no rio Guaíba constatou a ausência de medidas básicas de relativas ao manejo e à conservação do solo no Alto Jacuí como implantação de terraços em nível e cobertura vegetal no inverno (EMATER/RS, 1995:14).

O declínio da cultura do café também contribuiu, em algumas situações para aumentar a exposição do solo e, conseqüentemente, a erosão. É o caso da microbacia hidrográfica do rio Inhacanga em Altônia no Noroeste do Paraná, onde a superfície exposta aumenta de 11% para 22% do total entre 1993 e 1996, como decorrência direta da eliminação de nada menos que 83,6% da área destinada às lavouras cafeeiras (Governo do Paraná, 1997:21).

3.1.4. Externalidades

Não são apenas os agricultores - e em última análise os consumidores de produtos agrícolas - que pagam os prejuízos da erosão. Fora das porteiras, as perdas de solo trazem igualmente custos elevadíssimos que se traduzem no comprometimento da vida útil das barragens de produção de energia elétrica (seja pelo assoreamento dos rios, seja pelos estragos causados nas turbinas) e na elevação dos custos de tratamento da água.

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No início dos anos 1980, a qualidade da água para consumo doméstico no Paraná estava sob forte comprometimento. Nos reservatórios da SANEPAR, a água passa de 71 unidades de turbidez em 1980 para 108 unidades em 1983. A Companhia de Saneamento estimou em US$ 217 mil os gastos com redução da turbidez da água e reparos dos danos causados aos equipamentos pela sedimentação dos solos, em seus 200 reservatórios ao longo do rio Paraná, em 1984 (Sorrenson e Montoya, 1989:83). Em 1988, na microbacia hidrográfica de Lageado São José, no Oeste de Santa Catarina, o valor atingido pelos sedimentos oriundos da erosão chegava a 130 unidades de turbidez (Bassi, 1998:30).

Embora em 1978 a Companhia Paranaense de Energia Elétrica refutasse o comprometimento de suas usinas pelo assoreamento dos rios (Sorrenson e Montoya, 1989:83), na sub-bacia do Alto Jacuí (no interior da bacia do rio Guaíba, no Rio Grande do Sul) a situação era preocupante no início dos anos 1990. As coletas de água feitas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e as análises do Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo na barragem de Passo Real mostram que o volume de terra em suspensão atinge 1,61 kg/m3 e até três metros de sedimentos depositados em alguns pontos da barragem em apenas nove anos de sua existência (EMATER/RS, 1995:14).

A erosão é portanto o primeiro grande problema ambiental provocado por este conjunto de transformações que aumentou a exposição do solo descoberto às intempéries, organizou o espaço agrícola visando fundamentalmente facilitar o trabalho de máquinas pesadas e reduziu drasticamente as formas de micro vida existentes no solo. Antes de analisar, na parte 4 do trabalho, a reversão atual de boa parte destes problemas, convém voltar-se para outra das mais nefastas conseqüências da forma que assumiu o crescimento agrícola contemporâneo.

3.2. Agrotóxicos

Não é de se espantar que em torno dos agrotóxicos se desenvolvam as mais acesas polêmicas, quando se trata da relação entre agricultura e meio ambiente.

Em primeiro lugar, a magnitude dos interesses em jogo é gigantesca. A tabela 4 mostra que os gastos mundiais neste segmento passam de US$ 20 bilhões a nada menos que US$ 34,1 bilhões, entre 1983 e 1998. Neste período, foi na América Latina que mais cresceram as vendas. Só no Brasil, segundo informação do Sindicato Nacional da Indústria de Defensivos (4) Agrícolas (SINDAG), o setor faturou, em 1997, quase US$ 2,2 bilhões, US$ 200 milhões a mais que no ano anterior. É bom lembrar que em 1990 as vendas de agrotóxicos no Brasil

4 A utilização do termo �“defensivo�” para se falar em agrotóxicos contribui para a imagem de produto inócuo para a saúde que dele conservam, até hoje, muitos agricultores. A pesquisa de Guivant (1994:51) sobre os olericultores da Grande Florianópolis mostra bem que �“para os agricultores faltam evidências que confirmem a existência do risco, que para ser �‘real�’ já deveria ter levado à morte não só eles próprios, mas os outros produtores também�”.

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estavam em torno de US$ 1 bilhão (5): mais que dobraram durante os anos 1990. A hipótese de utilização em larga escala de produtos transgênicos entre nós oferece promissora - e, evidentemente, preocupante, como será visto na parte 5 deste trabalho - perspectiva de ampliação deste mercado.

Tabela 4 Consumo mundial de pesticidas - 1983-1998

US$ milhões Taxa anual de crescimento

Região 1983 1993 1998 83/93 93/98

Amér. Norte

3.991 7.377 8.980 6.3 4.0

Amér. Latina

1.258 2.307 3.000 6.3 5.4

Europa Oeste

5.847 7.173 9.000 2.1 4.6

Europa Leste

2.898 2.571 3.190 -1.2 4.4

Áfr./Or Médio

942 1.258 1.610 2.9 5.1

Ásia Ocean/

5.571 6.814 8.370 3.0 4.4

Total 20.507

27.500

34.150

3.0 4.4

Fonte: Yudelman, 1998:10

O segundo fator que divide as opiniões a respeito, refere-se à avaliação dos riscos que a utilização dos agrotóxicos envolve. Maiores gastos não significam necessariamente aumento dos efeitos ambientalmente indesejáveis dos agrotóxicos. Como bem mostram Yudelman et al. (1998:9), �“nos últimos cincoenta anos a indústria de pesticidas procura desenvolver pesticidas menos tóxicos e mais seletivos em seus alvos, requerendo menores doses por hectares e com menor persistência no ambiente�”. Os produtos correspondentes àquilo que os especialistas chamam de terceira geração de agrotóxicos (6) reduziram muito a dosagem de aplicação por hectare. Nos países desenvolvidos (onde o uso desta 5 �“Indústrias de defensivos desenvolvem produtos com baixo grau de toxicidade�” - Matéria de Álvaro Penachioni, Gazeta Mercantil, 4/06/1991. 6 A primeira corresponde ao período anterior à IIª Guerra Mundial, com o uso de produtos vindos de fontes naturais, como a nicotina ou de produtos inorgânicos como a sulfa, o arsênico ou o cobre. Desde então, ampliou-se o uso de pesticidas organossintéticos (moléculas orgânicas sintéticas), como o DDT, o BHC e o Parathion. Os últimos anos assistiram ao desenvolvimento de uma terceira geração de pesticidas, bem mais segura que a dominante até os anos 1960.

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terceira geração de pesticidas é generalizado) a quantidade de aplicação de herbicidas por hectare cai de 3.000 gramas em 1966 para apenas 100 gramas em 1987. No caso dos inseticidas, a queda é de 2.500 gramas por hectare em 1965 para apenas 20 em 1982. Os fungicidas declinam de 1.900 gramas por hectare em 1961 para 100 gramas em 1991 (Yudelman et al., 1998:9). Só que a toxidade destes pesticidas cresceu ao menos dez vezes desde o final da Segunda Guerra Mundial. Ora, os instrumentos de avaliação dos riscos nos países em desenvolvimento são quase todos insensíveis a estes produtos de terceira geração, o que faz com que não se tenha uma idéia precisa dos impactos ambientais dos pesticidas. Mesmo no Sul do Brasil, certamente a região brasileira onde mais cresceu o conhecimento e o controle dos agrotóxicos, é muito grande a quantidade de produtos para os quais não existem meios técnicos de avaliação sobre sua presença nas águas, no solo e até nos alimentos, como se verá também na parte 5 do texto.

A terceira fonte de polêmicas em torno da utilização dos agrotóxicos pode ser resumida na pergunta: é possível conceber uma agricultura que utilize cada vez menos pesticidas químicos ? A indústria tende a responder negativamente a esta questão insistindo na idéia de que seus produtos serão cada vez mais seguros e que os problemas resultantes de sua aplicação resolvem-se com a elevação do nível técnico e educacional dos próprios agricultores (7). Já os ambientalistas, bem como os governos de diversos países do Hemisfério Norte, procuram valorizar sistemas de utilização do solo que reduzam significativamente a própria necessidade de se aplicarem pesticidas. Suécia, Dinamarca e Holanda desenvolveram durante os últimos anos políticas que visam diminuir em 50% o consumo de pesticidas durante a primeira década do ano 2.000. A província de Ontario no Canadá também quer um consumo de agrotóxicos 50% menor em 2017 com relação ao nível de 2002, mesmo já tendo alcançado uma redução de 35% nos patamares usados entre 1988 e 1998 (Yudelman et al. 1998:21).

A exposição sobre os impactos ambientais dos pesticidas na agricultura da região Sul será dividida em três partes. Primeiramente (item 3.2.1.) serão apresentados os principais dados sobre as culturas predominantes e seu consumo de agrotóxicos. Em segundo lugar (item 3.2.2.), serão mencionados as principais informações sobre os efeitos do uso de agrotóxicos sobre os agricultores, sobre a qualidade da água e sobre os alimentos. Outro aspecto que merece destaque (item 3.2.3.) refere-se à manipulação dos agrotóxicos por parte dos agricultores: formas de aplicação e, sobretudo, o destino das embalagens.

Se com relação aos solos, a ampla difusão do plantio direto e do cultivo mínimo atenuou os efeitos mais graves da erosão - tema da parte 4 deste texto -

7 Já em 1991 o presidente executivo da Associação Nacional de Defensivos Agrícolas (ANDEF) declarava: �“o agrotóxico tornou-se um produto ético�”, em virtude da tendência à redução de sua toxicidade (Gazeta Mercantil, 4/06/1991).

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no que se refere aos agrotóxicos os avanços já são bem menos evidentes e as próprias informações mais precárias.

3.2.1. A esteira rolante dos pesticidas

�“Pesticide treadmill�” ou esteira rolante dos pesticidas: é assim que Yudelman et al. (1998:15) batizam a necessidade crescente de utilização destes produtos na agricultura contemporânea. A idéia evoca o ato de esforçar-se numa certa direção sem, entretanto, sair do lugar, como numa academia de ginástica: em 1938, havia sete insetos conhecidos por sua resistência a pesticidas. Em 1984 este montante eleva-se para 477. Não se conheciam ervas daninhas resistentes a agrotóxicos antes dos anos 1970 e elas já são 48 no final dos anos 1980. Ao fornecerem estas informações, Yudelman et al. (1998:15) alertam que a resistência das pragas aos agrotóxicos cresce mais rapidamente no clima tropical que no temperado. Este efeito manifesta-se tanto mais rapidamente quanto mais intensa é a especialização cultural e o conseqüente uso de agrotóxicos como forma de combater as pragas nas lavouras e nos pastos.

A primeira informação que se deve ter em mente então sobre o uso de agrotóxicos no Sul do Brasil é que mais da metade da área de lavouras de verão no Paraná e no Rio Grande do Sul é ocupada por uma só cultura, a soja (tabela 5). É verdade que, durante os anos 1950 e 1960, o milho também tinha peso imenso na área agrícola da região Sul, como foi visto com relação ao caso do Paraná (tabela 2, item 2.2.). A grande diferença com relação a este período é que o milho era plantado, na maior parte das vezes, em consorciação com outras culturas, em regime de rotação de terras, sobre as palhas e tocos dos remanescentes dos pousios, o que reduzia não só a erosão mas a própria necessidade de utilização de fertilizantes de pesticidas.

Embora a soja tenha se espalhado por outros Estados brasileiros (nas regiões de Cerrado do Centro Oeste, da Bahia e do Maranhão), dos 13,2 milhões de hectares plantados com soja no Brasil na safra 1997/98, 6 milhões de hectares vieram da região Sul.

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Tabela 5 Área ocupada pelas principais culturas de verão e pelo café na região Sul - Vários anos -

Mil ha

Produtos RS (1998/99) SC (1995/96) PR (1998/99)

Soja 3.163,4 167,7 2.739,0

Milho 1.503,0 754.0 1.545,4

Arroz 833,0 * 111.4 68,4 ***

Feijão 181,5 ** 254,8 614,3 **

Café ___________ _____________ 134,0

Total principais culturas de verão

5.680,9 1.287,9 5.101,1

Fontes: RS: IBGE/GCEA (dados preliminares); SC: Instituto CEPA/Censo Agropecuário de 1996; PR: SEAB/DERAL * Dos quais 820 mil ha são irrigados ** 1ª e 2 ª safras *** Dos quais 13.400 são irrigados

É em soja que se concentra a maior parte dos gastos dos agricultores brasileiros com agrotóxicos (tabela 6), nada menos que 35% do total. O segundo produto de maior consumo de agrotóxicos, a cana-de-açúcar não é tipicamente sulista: mas a concentração de seus 330 mil ha cultivados nas usinas do Norte do Paraná (apenas 6,7% do total nacional) estão na raiz de vários problemas de contaminação de águas constatados até hoje. O milho, terceiro produto na lista dos que mais consomem agrotóxicos, tem cerca de um terço de sua área total no Sul do País. Outro produto que aparece com destaque na lista de uso de agrotóxicos, o arroz irrigado, vem basicamente do Rio Grande do Sul. Dos 160 mil hectares cultivados com batata-inglesa no Brasil, produto também com alto uso de agrotóxicos, a região Sul entrou com quase a metade.

A tabela 6 mostra ainda um grande aumento nos gastos com agrotóxicos entre 1995 e 1997. É importante observar também que este aumento ocorre sem que haja, neste período, elevação nem da área nem da produção agrícola: o único produto levantado pela SEAB/DERAL/FIBGE, cuja área e cuja produção elevaram-se substancialmente entre 1995 e 1997 foi a soja, ocupando provavelmente superfícies anteriormente ocupadas com milho (tabela 7)

Da mesma forma que na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, é em herbicidas que os agricultores brasileiros mais gastam, quando se trata de

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agrotóxicos (8): daí vieram 55,7% das vendas em 1997, com um faturamento de US$ 1,2 bilhão, US$ 200 milhões a mais que no ano anterior. Segundo o SINDAG (9), nada menos que 39,7% das vendas de herbicidas no Brasil vieram dos Estados de São Paulo e do Paraná. Metade do consumo de herbicidas no Brasil é com soja, 17,1% com cana-de-açúcar e 11,4% com milho.

Tabela 6 Vendas de agrotóxicos em valor (US$ 1.000), por Destinação e por classe - Brasil - 1995-

1997 - Evolução da área colhida com grãos, hortaliças e outras culturas

Destinação 1995 1996 1997

Algodão 53.824 49.769 90.384

Amendoim 2.653 2.969 5.961

Arroz sequeiro 2.592 2.682 4.972

Arroz irrigado 56.328 63.361 80.506

Batata-inglesa 62.403 61.006 76.094

Café 89.810 106.938 156.161

Cana-de-açúcar 181.405 209.113 241.417

Citros 136.082 145.823 137.324

Feijão 59.741 57.024 65.104

Fumo 22.993 30.589 37.413

Milho 122.269 143.549 166.171

Soja 456.015 573.736 762.602

Tomate 39.626 47.769 51.545

Trigo 27.383 52.461 63.611

Hortaliças 41.906 54.470 58.102

Fruticultura 37.107 41.920 49.318

Trat. Sementes 43.744 55.843 59.279

Outras (1) 99.767 102.703 110.827

Total 1.535.648 1.792.671 2.180.791

(1) Alho, cacau, cebola, áreas não cultivadas, combate às formigas, grãos armazenados, reflorestamento e outras

8 Dos US$ 6,7 que a Europa gastou em 1992 com agrotóxicos, US$ 2,9 voltaram-se aos herbicidas, US$ 2,0 bilhões aos fungicidas, US$ 1,2 bilhão aos inseticidas e US$ 597 milhões a outros itens. Na América do Norte, de um total de US$ 7,3 bilhões, US$ 4,8 foi em herbicidas, US$ 1,6 em inseticidas, US$ 554 milhões em fungicidas e 597 em outros itens. 9 Http://www.iea.sp.gov.br/defens98/htm

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Fonte: Sindicato Nacional da Indústria de Defensivos Agrícolas (SINDAG) - http://www.iea.sp.gov.br/defen98.htm Fonte da área agrícola e da produção de grãos: SEAB/DERAL/FIBGE

Os inseticidas entraram, em 1997, com pouco mais de um quinto das vendas brasileiras de agrotóxicos. Neste segmento também, a soja está em primeiro lugar, com 21% do total, seguida pelo café, pelo algodão e pelo tratamento de sementes.

Para os fungicidas (16,3% do total das vendas de agrotóxicos em 1997) os produtos de maior consumo são o café (21,4%), a batata-inglesa (13,5%), o trigo (10,2%) e a fruticultura (10,2%).

Tabela 7 - Evolução da área agrícola de grãos, hortaliças e outras culturas, com destaque para soja e milho

1995/96 1996/97 1997/98

Área agrícola. (mil ha)

46.416 46.699 43.959

Produção grãos e algodão (mil t.)

72.790 77.204 76.591

Área soja (mil ha)

10.736 11.504 13.273

Produção soja (mil t)

23.562 26.431 31.423

Área milho (mil ha)

13.415 13.566 10.916

Produção milho (mil t)

32.185 34.602 29.900

Fonte: SEAB/DERAL/FIBGE

Para a maior parte dos principais produtos consumidores de agrotóxicos é, portanto, muito grande o peso da região Sul. O que chama a atenção nestas informações é que, embora os especialistas sejam unânimes na constatação da descoberta de alternativas ao uso de pesticidas quanto às técnicas de cultivo dos mais importantes produtos agrícolas, o fato é que o consumo não cessa de aumentar. Na área de grãos, esta elevação explica-se em parte pela própria generalização do plantio direto, importante método de combate à erosão, mas cuja forma dominante torna hoje os agricultores cada vez mais dependentes da aplicação de herbicidas. Mas não deixa de ser intrigante que, diante da disponibilidade de técnicas alternativas ao uso de pesticida e mesmo das notícias sobre sua adoção na área de fruticultura e fumo, por exemplo, o faturamento de agrotóxicos nestes produtos tenha nitidamente se ampliado, passando de US$ 23 a US$ 37 milhões no fumo e de US$ 37,1 a US$ 49,3 milhões na fruticultura. No diagnóstico que precedeu o programa de microbacias no Rio Guaíba constata-se

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que na área do baixo Jacuí, as culturas culturas mais problemáticas, no que respeita ao volume de agrotóxicos aplicados são a videira, a macieira e o fumo, concentradas em Caxias do Sul (videiras e macieiras) e de Santa Cruz (fumo). O Rio Grande do Sul concentra sozinho metade da área nacional de fumo.

3.2.2. Impactos: informação deficiente, mas situação preocupante

O mais completo trabalho sobre os impactos dos agrotóxicos no meio ambiente da região Sul foi feito no Paraná em 1984 e publicado cinco anos depois (Fowler et al., 1989). Uma constatação realizada à época torna-se cada vez mais atual: são precários os meios de que dispõem os especialistas para fazer uma avaliação precisa a respeito. Dos princípios ativos componentes dos agrotóxicos utilizados no Paraná, os órgãos técnicos (públicos e privados) só tinham capacidade de monitoramento de 38% (10). Esta situação segundo os técnicos entrevistados para este trabalho (11) permanece inalterada hoje: a indústria registra princípios ativos que não serão captados pela capacidade laboratorial existente. Os produtos proibidos (o que não significa, é claro, que não sejam usados) são monitorados, mas nunca mais, após 1984, houve a consolidação dos dados estaduais a seu respeito. Mas um dos problemas principais é que embora a legislação paranaense de 1989 não admita o registro de substâncias proibidas no país de origem, os novos componentes dos agrotóxicos permanecem ignorados pelos parâmetros atualmente disponíveis. Ora, segundo informação de Vania Zappia, só entre o início de 1996 e abril de 1998, nada menos que 146 novos produtos foram registrados no Paraná.

Existe uma permanente disputa entre as empresas fabricantes e os técnicos do poder público quanto ao conhecimento do teor dos produtos. Os fabricantes alegam a defesa de segredo industrial para reter dados que são essenciais ao conhecimento dos impactos dos agrotóxicos sobre o meio ambiente e a saúde pública. Uma das conseqüências é a precariedade da informação sobre os efeitos provocados pelos produtos: em 40% das marcas comerciais existentes, o fabricante não informa os efeitos que o produto pode provocar sobre seu utilizador, segundo Reinaldo Skalisz, da Secretaria da Agricultura do Paraná, 60% das marcas comerciais não publicam os antídotos que podem contrapor-se aos efeitos de sua ingestão.

Para estudar os principais impactos da utilização dos agrotóxicos na região Sul, inicia-se aqui com a pesquisa de 1984 no Paraná para então chegar a informações mais atualizadas.

10 No trabalho minucioso de Bassi (1998:35) sobre os resultados do programa de microbacias na região de Chapecó em Santa Catarina pode-se ler: �“...os resíduos de agrotóxicos não foram monitorados por falta de condições laboratoriais�”. 11 Ednei Bueno Nascimento (Coordenador de Recursos Naturais da Região de Curitiba da EMATER/PR), Reinaldo Skalisz (da Secretaria de Agricultura do Paraná) e Vania Zappia do Instituto Ambiental do Paraná e José Prado Jr. da FUNDACENTRO (São Paulo).

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Os resultados da pesquisa de 1984 são estarrecedores e contribuíram decisivamente para que os produtos organoclorados (de segunda geração) fossem proibidos no País, por uma portaria de 1985: com base no monitoramento feito entre 1976 e 1984 a partir de 1.816 amostras em 12 das 16 bacias hidrográficas do Paraná contatou-se que �“91,4% das análises realizadas em amostras de água �‘in natura�’ de mananciais de abastecimento possuíam resíduos de pelo menos um agrotóxicos. Para água tratada de mananciais de abastecimento, este percentual cai para 70% e para águas de mananciais não utilizadas para abastecimento o percentual encontrado é de 87,5%�” (Fowler et al., 1989:11). É importante salientar que os produtos monitorados são, em grande parte, os de �“segunda geração�” (12).

A pesquisa procurou especificamente resíduos de inseticidas organoclorados na água de abastecimento �‘in natura�’ e tratada e nos lodos que se acumulam no fundo da bacia de captação, nos peixes e nas aves em 16 municípios do Estado. Das 267 amostras coletadas, o BHC esteve presente em todos os municípios, seguido pelo Lindane (103), o DDT (41) o Aldrin (15), o TDE (15), o DDE (12), o Heptaclor (05), o Chlordane (02) o Endrin (02) e o Dieldrin (01). Mesmo nas amostras de água tratadas os problemas era extremamente grave (Nieweglowski et al., 1992:33), já que todos estes produtos são organoclorados.

A situação descrita no diagnóstico que deu origem ao programa de microbacias na área do Guaíba (RS) em 1990 mostrava também uma situação preocupante. As sub-bacias do Alto Jacuí e do Baixo Jacuí consumiam em conjunto nada menos que 5 kg de agrotóxicos por hectare e por ano nas culturas de soja, fumo, videira, tomate, macieira, arroz, batata, trigo, milho e feijão. Na sub-bacia do Baixo Jacuí este consumo era, no início da década, de 7,06 quilos por hectare (EMATER/RS, 1995:19). Para que se tenha uma idéia do que isso representa, somente em uma bacia hidrográfica do Paraná estes montantes foram ultrapassado na pesquisa de 1984. A contaminação generalizada das águas foi alcançada com níveis de agrotóxicos por hectare quase sempre abaixo dos 3 quilos por ano (Fowler, et al., 1989:89).

Os principais produtos utilizados nas sub-bacias do Alto Jacuí e do Baixo Jacuí eram: Carbaryl, Mancozeb, Dimethoate, Monocrotophos, Trifluralina, 2,4-D, Maneb, Methil Parathion, Atrazine, Simazine, Propanil e Malathion. Estudos do Departamento Municipal de Águas e Esgotos da Prefeitura de Porto Alegre no início dos anos 1980 em amostras de águas e alimentos constataram a presença de resíduos de agrotóxicos em ovos, aves, peixes, morangos e trigo: �“nos peixes capturados no Guaíba foi constatada a presença de dois tipos de agrotóxicos fosforados: Diazinon e Disyston. O último constatou-se em 22,2% das 18 amostras analisadas...Em relação aos organoclorados, foi constatado, com maior 12 Foram estudados 17 agrotóxicos que contêm 11 produtos organoclorados (BHC, Lindane, DDE, Aldrin, DDT, TDE, Heptaclor, Clordane, Camphechlor, Dieldrin e Endrin); 4 organofosforados (Malathion, Parathion, Metil-Parathion e Ethion) um derivado do éster do ácido sulfuroso de um dial-cíclico (Endosulfan) e um do grupo das dinitgroanilinas (Trifluralin).

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freqüência o BHC, que foi encontrado em dez amostras, seguindo-se o DDE, Dieldrin, Endrin e Lindane�” (EMATER/RS, 1995:19).

Em Santa Catarina, levantamento efetuado no período 1986-1990 entre 7.597 produtores rurais mostrou que 47% já haviam tido algum tipo de intoxicação. �“Análises de sangue feitas em 6.635 deles mostraram que 18% apresentavam um nível de atividade de colinesterase em 75% (limite crítico) e 5,7% abaixo desse nível, já necessitando de cuidados médicos�” (Governo do Estado de Santa Catarina, 1998:9).

A mais recente informação consolidada sobre a existência de resíduos de agrotóxicos na água e no solo vem do Estado do Paraná, na avaliação do programa de microbacias feita em 1997. Os resultados das análises da água não mostram a presença dos princípios ativos presentes na própria água no estudo da SUREHMA de 1984: resta a saber se isso corresponde a um avanço com relação ao que ocorria quinze anos atrás, ou se é o reflexo da falta de sensibilidade dos instrumentos de medida aos novos componentes dos pesticidas hoje mais usados. De qualquer maneira, a pesquisa constatou a presença de organoclorados nos lodos de remanso nos rios de quatro das cinco microbacias. Estes produtos - hoje proibidos - são de decomposição ambiental muito lenta. Sua presença pode indicar o uso intenso que deles foi feito há mais de uma década. Mas é possível também que isso corresponda a seu uso atual, uma vez que, embora proibidos, são ainda utilizados por muitos agricultores que os obtêm até por contrabando do Paraguai.

Tabela 8 - Resultados das análises de água em rios de pequeno porte em cinco microbacias selecionadas no Paraná

Microbacia Método de análise Princípio ativo encontrado

Rio Inhacanga - Altônia Análise de lodo de remanso DDT; DDE; DDD

Rio Cascavel - Campo do Tenente

Análise de lodo de remando Fungicida Maneb

Água Grande - Córrego do Pensamento - Campo Tenente

Análise de lodo de remanso DDT; DDE; DDD

Pato Branco Análise de lodo de remanso DDT, DDE, DDD

Ribeirão do Meio II - Carlópolis

Demanda de DBO DBO = 37 mg/l (dejetos de pocilgas jogados no rio)

Fonte: Elaborado a partir de IAPAR, 1997

Nos três Estados do Sul a presença de borrachudos no meio rural é um grave problema de saúde pública associado à derrubada das florestas (inclusive das matas ciliares, fundamentais na manutenção das nascentes, dos córregos e dos

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rios) e à utilização de agrotóxicos, ambos responsáveis pela eliminação dos inimigos naturais dos insetos.

Nas sub-bacias do Alto e do Baixo Jacuí (na área do rio Guaíba - RS) o Serviço de Vetores da Secretaria da Saúde constatou infestações de borrachudos em 30 municípios (EMATER/RS, 1995:14). Em Santa Catarina, 79,8% dos municípios são atingidos por infestação de borrachudos (Governo do Estado de Santa Catarina, 1998:10).

3.2.3. A utilização dos agrotóxicos

Resumindo os fatores que têm levado ao aumento no consumo de agrotóxicos no mundo todo, Yudelman et al. (1998:12) começam mencionando o �“viés químico�” que presidiu a promoção da mudança técnica junto aos agricultores. �“Durante anos, muitos governos e agências internacionais comprometeram-se com soluções agroquímicas para elevar os rendimentos. Promoveram um pacote estandartizado que incluía fertilizantes e pesticidas...�”.

Esta orientação torna bastante frágil o argumento muito freqüente de que as contaminações com pesticidas decorrem fundamentalmente de mau uso por parte dos agricultores. Na verdade, as peças publicitárias enfatizam o caráter inócuo dos pesticidas, seu caráter indispensável para a obtenção de bons rendimentos e quase nunca convidam à prudência em sua utilização. Embora, em princípio, os agrotóxicos devam ser utilizados mediante uma receita (seguindo os padrões médicos) fornecidas por um engenheiro agrônomo, em qualquer canal de televisão que transmita para áreas rurais, se podem assistir propagandas voltadas aos agricultores (e não aos agrônomos) enaltecendo as virtudes dos agrotóxicos. Não sem razão que uma das Resoluções do Iº Seminário Regional Sobre a Destinação Final do Lixo Tóxico exigia, em 1991, que �“as propagandas comerciais de agrotóxicos deverão limitar-se aos engenheiros agrônomos e florestais responsáveis pela indicação ou venda eliminando totalmente as propagandas em veículo de comunicação, como out-doors, televisão, rádio, folders, folhetos e jornais�” (13).

Não é de se estranhar que, diante da situação atual, prevaleça uma utilização de agrotóxicos bem acima do postulado pelas próprias recomendações técnicas existentes. Na área de horticultura da Grande Florianópolis, Julia Guivant (1994:13) mostra que �“é generalizado entre os agricultores a pulverização regular, 3 vezes por semana, no mínimo, com insumos que só deveriam ser aplicados uma vez presente o problema. Trabalho recente da EMATER/PR refere-se também ao uso incorreto Trabalho recente da EMATER/PR (1997:24) também de agrotóxicos na Grande Curitiba: �“os produtores fazem um excesso de aplicações preventivas de agrotóxicos, utilizando produtos químicos de natureza curativa. Os produtores rurais não têm claro o momento do dia mais indicado

13 Carta de Toledo, 3° item.

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para esta aplicação...e não fazem uma dosagem correta: a prática da superdosagem é rotineira�”. O trabalho da EMATER/RS (1995:40) cita pesquisa nacional que estimou que somente os problemas decorrentes de falhas nos equipamentos de pulverização determinam uma utilização de doses 16% superiores às necessárias.

Também é comum a pulverização de mistura de produtos, como herbicidas e fungicidas, o que leva à produção de novas fórmulas desconhecidos e potencialmente perigosos�” (14). O que mostra a pesquisa de Guivant é uma situação paradoxal em que os agricultores não consideram os agrotóxicos como produtos perigosos, atribuem os eventuais (e na sua visão raríssimos) problemas ao uso inadequado, mas ao mesmo tempo é evidente que não tomam as precauções necessárias ao que seria um uso adequado.

Numa pesquisa realizada com bataticultores da região metropolitana de Curitiba e de Guarapuava, por exemplo, apenas 24% dos de Curitiba e 13% dos de Guarapuava consideravam o uso de agroquímicos como �“prática prejudicial�”. Não usar equipamento de proteção era visto como prejudicial por somente 39% dos produtores de Curitiba - mas por 88% dos de Guarapuava (15). O trabalho mais recente da EMATER/PR (1997:24) observa que é raro o uso do conjunto dos equipamentos de segurança necessários. Em seu levantamento, 81,4% dos produtores usavam bota no momento da aplicação, mas apenas 30,2% trabalhavam com máscaras e 20,9% de luvas.

Outro sério problema envolvido na utilização dos agrotóxicos é o destino das embalagens. Só no Estado do Paraná, são consumidas anualmente 14 milhões de embalagens (SUDERHSA, 1998:1). Até 1983, a recomendação dos próprios fabricantes era de que a embalagem fosse inutilizada e enterrada profundamente. Além da dúvida sobre o que pode significar �“profundamente�”, é claro que, mesmo enterrada, a embalagem pode ter impactos no meio ambiente. A solução que tem sido preconizada atualmente para o problema combina duas práticas simultâneas. Por um lado, a tríplice lavagem, pela qual o agricultor lava a embalagem utilizando a água destinada a esta finalidade para nova aplicação e isso por três vezes (16). Uma vez lavada a embalagem seria entregue a postos de recolhimento nas regiões, instalados pelas prefeituras e governos dos Estados e recolhidos por empresas que fariam a reciclagem do produto.

Trata-se de um tema polêmico por duas razões básicas. Em primeiro lugar, a indústria exime-se da responsabilidade sobre o destino das embalagens. Em vez de se estimular o reaproveitamento das embalagens com o próprio produto que elas traziam, a solução adotada vai exigir sempre a fabricação de novas embalagens. A indústria alega que a reutilização de embalagens encareceria os custos dos produtores. Atualmente existem no Paraná 62 postos de recolhimento 14 O trabalho da EMATER/PR (1997:24) também faz a mesma constatação. 15 Dados de campo do trabalho de Brisolla et al (1994). 16 A tríplice lavagem das embalagens é uma exigência legal desde 1989.

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de onde os produtores são enviados para incineração no município de Belfort Roxo para a fabricação de condutos de eletricidade. No IIº Seminário Regional sobre a Disposição Final de Embalagens de Agrotóxicos, realizado em Toledo em 1994, a posição dos técnicos era bem diferente do que acabou prevalecendo e que atende perfeitamente ao interesse das indústrias: �“a indústria, preconiza a IIª Carta de Toledo, será responsável pelo recolhimento periódico das embalagens vazias nos pontos de comércio devidamente credenciados até o 5º dia útil do mês subseqüente ao comunicado pelo comerciante, exercendo controle sobre as quantidades fornecidas ao comerciante e retorno de embalagens devidamente lavadas, através da tríplice lavagem ou outro processo equivalente�”.

A segunda razão da polêmica é que, de fato, os agricultores continuam dando destinação inadequada às embalagens. Brisolla et al. (1994) constataram que 40% dos produtores não lavaram as embalagens antes do descarte. Em Guarapuava, a maioria dos produtores (63%) queimou ou enterrou as embalagens e 25% guardaram-nas. Na região metropolitana de Curitiba 22% apenas 22% dos produtores entrevistados levaram as embalagens vazias aos abastecedouros comunitários, embora 79% conheçam a existência deste equipamento coletivo. Trabalho mais recente ainda na região de Curitiba mostra que 42% dos agricultores não faziam a tríplice lavagem em 1997 e nada menos que 67% deles queimava suas embalagens.

3.2.4. Rápida síntese

São evidentes as lacunas nas informações acima a respeito da utilização dos agrotóxicos e seus impactos. Mas os principais problemas - diferentemente daqueles referentes aos solos e mesmo aos dejetos suínos como será visto na parte 4 do trabalho - nesta área parecem longe de uma solução aceitável:

a) A informação sobre os resíduos dos agrotóxicos mais utilizados hoje é precária. Pior: não existe, mesmo nos Estados do Sul (que têm maior tradição de denúncia e controle nesta área), um sistema de monitoramento permanente capaz de avisar a existência de situações críticas. Isso é particularmente preocupante uma vez que pesquisas recentes mostram os efeitos destrutivos que os pesticidas podem ter sobre o sistema endocrinológico e hormonal, como mostram as pesquisas citadas por Yudelman et al. (1998:17).

b) Existem fortes indícios de que os agricultores brasileiros estão usando mais agrotóxicos para produzir basicamente a mesma quantidade de grãos de três anos atrás: os gastos com este item aumentam em mais de um terço, o que dificilmente pode ser explicado por questões cambiais ou por aumento dos preços.

c) As indicações existentes mostram que a noção de risco não está incorporada à prática cotidiana dos agricultores, quando se trata da utilização de agrotóxicos; ao contrário, a indústria passa uma imagem de segurança ao

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produto, reforçada pela liberação da publicidade (contra o parecer de técnicos competentes na área) a respeito para o grande público e não só para os agrônomos.

d) Os agricultores não respeitam as normas de utilização e de destinação das embalagens dos produtos, mesmo quando as conhecem.

3.3. Dejetos suínos

Os problemas ambientais provocados pelo despejo nos rios de dejetos suínos não são uma decorrência direta do aumento do rebanho e sim de sua concentração e dos métodos de criação atuais:

�“No Oeste de Santa Catarina, desde a colonização da região no início deste século, os imigrantes tenderam a construir as pocilgas nas partes mais baixas das propriedades, perto dos rios, enquanto o milho era plantado nas áreas altas. Os dejetos que não se utilizavam na lavoura escorriam diretamente para os rios. A concentração de animais era pequena e, considerando que a produção familiar era diversificada, os dejetos não contaminavam significativamente os solos...O problema da poluição passou a ter um caráter mais grave devido à adoção de sistemas de confinamento nos anos 70, sem que mudasse a localização das instalações perto dos cursos d�’água�” (Guivant, 1997:105).

Em 1980 havia no Oeste de Santa Catarina - região que concentra 80% do rebanho do Estado e que responde hoje por 85% das exportações do setor - 67 mil produtores cuja renda vinha fundamentalmente da suinocultura. Este total cai em 1985 para 45 mil e hoje não é superior a 30 mil criadores (Testa et al., 1996:65).

Em Santa Catarina como um todo havia 54 mil produtores produzindo em regime de integração contratual com as indústrias em 1985, detendo 2,3 milhões milhões de cabeças. Eles são hoje menos da metade (24 mil produtores) e sua produção quase triplicou (6,5 milhões de cabeças).

Daí decorre um duplo efeito: por um lado surgem os problemas com o esterco suíno; por outro, são criados programas governamentais e projetos da própria indústria para reduzir estas emissões (que serão examinados no item 4 do trabalho).

Em 1993, os animais existentes na região Oeste de Santa Catarina produziam 8,8 milhões de metros cúbicos de esterco líquido (Testa et al. 1996:139). Isso corresponde ao potencial de poluição por dejetos de uma população de 30 milhões de pessoas, numa região que tem pouco mais de um milhão de habitantes!

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É imenso o potencial de utilização do esterco. Para as lavouras, cada tonelada de esterco suíno corresponde a dez quilos de elementos de NPK. As 30 mil toneladas diárias podem fornecer anualmente 65,7 mil toneladas de nitrogênio ou 146 mil toneladas de uréia. Daí resultariam também 21,9 toneladas de cloreto de potássio e 27,4 toneladas de fósforo. No conjunto são 136,9 mil toneladas de de superfosfato simples, que significam 2,8 milhões de sacos de 50 quilos de fertilizantes. A utilização de todo este adubo resultaria - abstração feita de outros fatores, é claro - uma elevação em 500 mil toneladas anuais a produção de milho, ou US$ 40 milhões (Guivant, 1997:108).

Mas uma parte muito grande deste esterco ainda é vertida nos rios. Segundo um estudo citado por Guivant (1998:102) mais de 80% dos recursos hídricos do Oeste de Santa Catarina apresentam elevados índices de contaminação. Na região de Concórdia, trabalho feito no início dos anos 1990 com 129 amostras de água mostra que 36,8% apresentavam concentração de nitratos superiores a 10 mg/l que é o limite máximo estabelecido pela legislação.

Entre 1985 e 1998 técnicos de Santa Catarina realizaram 18 mil exames bacteriológicos da água de consumo de famílias rurais, abrangendo todo o Estado. Os resultados são impressionantes: �“de cada 10 amostras examinadas, 8 em média apresentaram contaminação bacteriológica. A contaminação se dava principalmente por coliformes fecais�” (Governo de Santa Catarina, 1998:9). O mesmo documento adverte que �“o impacto dos nitratos na saúde humana é grande, principalmente para as crianças que ainda não possuem o sistema enzimático do trato intestinal totalmente desenvolvido. Além disso, a ação bacteriana sobre os nitratos possibilita a formação in situ de nitrosaminas. Segundo a Organização Mundial da Saúde, estas substâncias são potencialmente cancerígenas e, portanto, de grande risco para a saúde da população�”.

Na microbacia hidrográfica piloto de Ribeirão do Meio (Carlópolis/PR) foram registrados níveis de demanda bioquímica de oxigênio (DBO) de 37 mg/l, apesar de ser uma região acidentada, o que contribui para acelerar a depuração biológica. O Índice de Qualidade da Água nos períodos de precipitação passa a ter qualidade ruim �“devido à lavagem do material de origem orgânica presente no solo�” (IAPAR:1997:89) e ao lançamento de efluentes líquidos �‘in natura�” provenientes das pocilgas existentes no local.

A situação do Alto e do Baixo Jacuí no Rio Grande do Sul também é grave, uma vez que apenas 10% dos agricultores que trabalham com criações nas microbacias selecionadas dispunham de esterqueiras no início dos anos 1990 (EMATER/RS, 1995:65).

Os dejetos suínos também respondem pela presença de borrachudos nos municípios do interior, alimentando as larvas dos insetos.

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Da mesma forma que ocorreu com a erosão (e ao que tudo indica diferentemente do que se observa no campo dos agrotóxicos) foram conquistados avanços importantes com relação ao manejo de dejetos suínos nos últimos anos como será visto no próximo item.

4. As instituições e as práticas da transição

A eliminação dos subsídios ao crédito - tal como praticados nos anos 1970 e início dos anos 1980 - foi a condição necessária, mas nem de longe suficiente para que a região Sul iniciasse o processo de transição a uma agricultura menos predadora dos recursos naturais. Durante os anos 1990, a região Sul assistiu à proliferação de comitês de gestão de microbacias hidrográficas em torno dos quais centenas de milhares de agricultores se organizam, alteram suas condutas produtivas e recebem recursos públicos - subsidiados - que se vinculam a valores bem diferentes daqueles que presidiram a transformação da base técnica de suas unidades produtivas há cerca de duas décadas.

Estas mudanças já permitiram atenuar de maneira significativa dois dos mais importantes problemas ambientais da região: a erosão dos solos e a escorrimento nos rios dos dejetos suínos.

Embora positivo, este processo de transição é acompanhado por polêmicas importantes em torno das quais vão ser definidos seus rumos concretos. No caso do plantio direto, se, por um lado, ele tem, de fato, permitido interromper o processo de erosão e mesmo recuperar solos degradados (levando ao aumento da produtividade e à menor vazão de terra em direção aos rios) por outro, ele se baseia na utilização em larga escala de herbicidas. A crescente dependência em que se encontra a conservação dos solos do emprego de pesticidas não é uma fatalidade técnica, mas uma opção: existem, em princípio, alternativas ao combate químico de ervas daninhas (17) , mas elas exigem uma orientação técnica mais precisa ao agricultor, são mais trabalhosas e possuem o atributo básico que caracteriza cada vez mais os processos produtivos contemporâneos (e não só na agricultura): são altamente intensivos em conhecimento e muito menos em insumos químicos. Assim, apesar do progresso que representa com relação ao período das técnicas convencionais de aração do solo, o plantio direto, tal como vem sendo praticado na maior parte do Sul brasileiro, ainda se baseia num traço do período anterior que é o uso - mais ou menos indiscriminado - de herbicidas (18).

No caso do esterco suíno, a posição dominante nas indústrias integradoras (e que está na base de um Programa para a região apoiado pelo BNDES) foi, até 1995, 17 Como mostra o trabalho de Peterson et al. da AS-PTA 18 Bassi constata, na microbacia de Lageado São José (Chapecó - SC) com base no acompanhamento de 180 propriedades durante dez anos que o plantio direto inexistente em 1986 era praticado em 1.465 hectares (mais de um quinto da área total pesquisa) em 1996. Em compensação, no início do período apenas 72 agricultores usavam agrotóxicos e dez anos depois eles eram 150 a empregá-los.

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de criar bioesterqueiras ou, para as concentrações ainda maiores de animais, lagoas de tratamento. Como o esterco era deixado nestas lagoas por períodos de até seis meses, os riscos de contaminação do solo e do lençol freático era muito grande conforme explicação de Juan Carlos Serra, diretor de produção agropecuária de suínos da Sadia (19). Segundo a experiência feita numa criação da própria empresa de 100 mil animais, novas técnicas de tratamento dos dejetos reduziram o problema dos odores desta concentração de esterco e melhoraram a qualidade da água. Resta a saber se, mesmo na hipótese de estas técnicas poderem ser transferidas aos agricultores, eles terão condições de reutilizar a imensa quantidade de esterco que produzem em suas próprias lavouras. A polêmica está, em última análise, nas vantagens sociais do processo crescente de concentração da produção de suínos. O trabalho de Testa et al (1996:92) mostra, de maneira consistente, a viabilidade econômica de unidades produtivas a partir de quinze matrizes. Ora com a concentração produtiva que as empresas estimulam 70% da oferta atual vem de produtores que possuem mais de 50 matrizes em ciclo completo ou 150 matrizes em criações de leitões e são estes os responsáveis pela maior parte dos dejetos (Guivant, 1997:115).

Qual o caminho a ser adotado: investir na sofisticação dos métodos de tratamento do esterco cada vez mais concentrados em lagoas de tratamento, ou, como propõem Testa et al. (1996:92) submeter a escala máxima para a suinocultura �“às condições de tratamento/utilização dos dejetos e do auto-abastecimento de milho�”, isto é, fazer da suinocultura um dos elementos de fertilização do solo em cada propriedade ? É nítido o contraste entre a opinião da indústria e a dos técnicos do próprio Governo de Santa Catarina a respeito.

Vejamos então as principais mudanças recentes alcançadas no quadro dos programas de microbacias na região Sul.

4.1. Microbacias hidrográficas

O Banco Mundial vem apoiando programas de gestão dos recursos naturais com base em microbacias hidrográfica nos três Estados da região Sul desde o final dos anos 1980. O primeiro e mais ambicioso deles foi no Estado do Paraná entre 1989 e 1987. Envolveu um total de US$ 148 milhões (dos quais 42,3% financiados pelo Banco Mundial) e atingiu 210 mil produtores em 2.433 microbacias hidrográficas e numa área total de 7 milhões de hectares (Banco Mundial, 1997)

Em Santa Catarina, o programa difundiu-se a partir de 1991 em 520 microbacias hidrográficas, chegando a 81 mil produtores e 1,8 milhão de hectares (25% da superfície agrícola do Estado).

19 Em matéria da Gazeta Mercantil de 4/01/1999 - Carlos Rodrigues - �“Sadia diminui emissão de dejetos suínos�” (p. A-4).

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No Rio Grande do Sul, examinamos as informações referentes ao programa �“Sistemas de Manejo e controle da contaminação por agrotóxicos�” que faz parte do �“Pró-Guaíba�” e teve início em 1995: num montante total de US$ 28,3 milhões, o programa atinge - só nas regiões do Alto e do Baixo Jacuí, 240 microbacias hidrográficas em 89 municípios.

Tanto no Paraná como em Santa Catarina (20), o programa apoiou-se sobre uma forte tradição de organização local, manifestada em comissões municipais de desenvolvimento rural. É assim que, no Paraná-Rural (nome do projeto no Estado) foram criadas �“Comissões de Solos e Águas com poder de decisão sobre os procedimentos do Programa nas microbacias cadastradas�” (Dorigon, 1997:53). As comissões são formadas por agricultores representantes das microbacias: são unidades relativamente pequenas (área média de 2.900 hectares com 88 produtores por microbacia) o que torna mais verossímil a participação nos processos decisórios.

As microbacias não são apenas uma unidade geográfica de organização do espaço: elas passaram a representar um centro de agregação de interesses cuja principal virtude é deslocar os eixos habituais de exercício do próprio poder: na microbacia, o agricultor individual tem que submeter o poder soberano sobre suas terras aos cuidados com os recursos da microbacia como um todo. As divisas entre as propriedades (formadas historicamente no sentido transversal ao rio e em cujas fronteiras apareciam manifestações severas de erosão em sulcos) são repensadas e parte dos trabalhos agrícolas passam ser executados levando em conta o conjunto do espaço e não só a unidade produtiva individual (21).

Além disso, tanto no Paraná como em Santa Catarina, os programas de microbacias contribuíram para o fortalecimento de uma verdadeira rede de interesses voltados à preservação dos recursos necessários à produção agropecuária. A microbacia hidrográfica não conhece, evidentemente, os limites políticos convencionais entre municípios e daí poderiam ser esperados conflitos severos entre as instâncias já existentes de poder. Tanto no caso do Paraná Rural, como no do Programa de Santa Catarina houve uma �“notável unidade entre as agências�” (Dorigon, 1997:56). Mais que isso: nestes Estados há uma atuante extensão rural cuja participação nos programas foi decisiva para que alcançasse resultados expressivos em diversas áreas. No Paraná, 1.600 técnicos da EMATER, das cooperativas, de ONG�’s e das prefeituras estiveram envolvidos com a difusão do programa.

20 As informações obtidas até aqui sobre o Rio Grande do Sul não permitem saber se a situação é a mesma neste Estado. 21 �“passa-se da propriedade individual do agricultor à microbacia limitada pelo divisor de águas e todo o complexo ambiental que nela existe, onde dezenas de propriedades agrícolas estão inseridas�” (Dorigon, 1997:48).

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É interessante observar que, em Santa Catarina, as indústrias compradoras de fumo já vinham também trabalhando numa ótica de microbacias, o que não ocorre com as indústrias integradoras na área de suínos (Dorigon, 1997:79).

Vejamos agora os principais resultados que se alcançou com a implantação dos programas de microbacias hidrográficas.

4.1.1. O recuo da erosão

Durante os anos 1970 o Estado do Paraná fez as primeiras tentativas de correção da erosão por meio do Programa Integrado de Conservação de Solo (PROICS). A principal característica deste programa é que se baseava em práticas mecânicas, especialmente o terraceamento. Ora, �“embora restrinjam a formação e a velocidade das enxurradas, os terraços não impedem a fase inicial da erosão. O impacto da chuva sobre a superfície do solo provoca a desagregação das suas partículas, formando nela uma crosta, que limita a infiltração e aumenta as enxurradas. Os terraços, quando utilizados como forma única de controle da erosão, não são suficientes para controlar as perdas de solo e de água e para manter a fertilidade, a longo prazo, em níveis adequados�” (Sorrenson e Montoya, 1989:32).

A alternativa a estas formas mecânicas de contenção dos processos erosivos em que vêm se apoiando os programas de microbacias é o plantio direto, em que �“o solo não é preparado e a semeadura se dá em sulcos feitos no solo, de maneira a permitir que as sementes sejam ali colocadas diretamente�”. Sorrenson e Montoya (1989:32 e 33) listam as vantagens do plantio direto:

• menor evaporação e maior disponibilidade de água no solo;

• redução e estabilização da temperatura do solo;

• redução no consumo de combustível, já que são eliminadas as operações de preparo do solo;

• manutenção ou aumento da fertilidade do solo devido ao maior acúmulo de certos nutrientes

• preservação da estrutura do solo

• aumento da atividade biológica do solo

• redução nos custos de terraceamento

• eliminação da necessidade de replantio após chuvas torrenciais.

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Três outras práticas de conservação (22) são sugeridas no trabalho de Sorrenson e Montoya e vêm sendo hoje cada vez mais adotadas:

a) preparo do solo em curva de nível;

b) adubação verde: seu uso vem aumentando com a redução na área cultivada com trigo na região Sul;

c) rotação de culturas.

São bastante expressivos os resultados obtidos até aqui pelo programa.

O primeiro deles refere-se aos próprios rendimentos da terra. Os rendimentos da terra elevaram-se de maneira significativa nas culturas de feijão, milho, soja e trigo (mas não nas de algodão), segundo dados do Governo do Estado do Paraná (1995:21). Também em Santa Catarina os rendimentos na produção de milho, soja e feijão aumentam consideravelmente durante a vigência do programa (Dorigon, 1997:169). O trabalho de Bassi (1998:27), na região de Chapecó também mostra esta elevação na cultura do fumo.

Outro resultado positivo que se atribui ao aumento do plantio direto manifesta-se na qualidade da água. O acompanhamento do índice de turbidez da água em 16 microbacias de abastecimento urbano mostra uma redução de 49,3% durante o período de vigência do programa no Estado do Paraná (Banco Mundial, 1997:23).

Na microbacia hidrográfica do Lageado São José, na região de Chapecó (SC) a turbidez reduziu-se em 61% entre 1988 e 1997. O mesmo se observa quanto aos sedimentos em suspensão que caíram 69,5% no período.

Uma das conseqüências da redução de sólidos em suspensão na água é que diminuem também os custos de seu tratamento para consumo humano: segundo o trabalho de Bassi (1998:33) a �“quantidade de sulfato de alumínio utilizado na floculação dos sólidos em suspensão e posterior decantação baixou de 28g/m3 em 1991/92 para uma média de 15 g/m3 em 1996�”.

4.1.2. Dejetos suínos: maior controle

Os dados de Bassi mostram ainda uma redução importante na poluição por dejetos suínos, apesar da elevação do rebanho que, na área da microbacia do Lageado São José passa de 10,8 mil a 15,1 mil cabeças: �“o número de esterqueiras passa de 13, em 1990 para 61 em 1996. A área com adubação

22 Não é só no Brasil que vem aumentando o plantio direto: nos Estados Unidos um estudo citado por Yudelman et al. (1998:21) mostra e 70% da área de lavouras será cultivada com métodos de plantio direto.

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orgânica que era de 1.350 há em 1990 passa para 2.192 em 1996. E a água na microbacia apresenta níveis decrescentes de coliformes fecais no período.

5. Uma lenta transição

Apesar do progresso representado pela formação das microbacias, pela adoção em larga escala do plantio direto e pelo aumento nos cuidados com os resíduos das criações suínas, é flagrante o contraste entre as imensas possibilidades técnicas de uma agricultura menos predadora dos recursos naturais e a realidade atual na região Sul. Não se trata, evidentemente, de preconizar a volta à situação anterior ao processo de modernização dos anos 1970, mesmo porque ele se baseava na rotação de terras e esgotou-se conforme aumentava a própria demanda agropecuária. É pouco provável também que a agricultura se transforme no sentido de uma policultura generalizada. Um certo grau de especialização cultural é sem dúvida necessário sobretudo na produção de grãos. Mas esta especialização não deveria representar, necessariamente, consumo cada vez maior de agrotóxicos.

As informações expostas até aqui mostram que os maiores avanços alcançados referem-se à conservação dos solos: ao que tudo indica, não há um movimento consistente no sentido da redução no uso de agrotóxicos.

Após o exame dos principais resultados positivos dos programas de microbacias, vejamos agora os problemas ainda hoje existentes e as mais importantes polêmicas em torno dos três principais temas que nortearam este texto: erosão dos solos, agrotóxicos e dejetos suínos.

5.1. Alcance e limites do plantio direto

5.1.1. A adoção do plantio direto

No Estado do Paraná, o plantio direto era adotado em 1993 em 82% da área de soja eram cultivada sob esta técnica. Já no plantio do milho, os resultados eram bem menos expressivos e chegavam apenas a 47% do total. Somente um terço da área de feijão recebia plantio direto (Governo do Estado do Paraná, 1995:14-16).

Em Santa Catarina, embora a prática do plantio direto tenha aumentado de 124 mil hectares em 1994 para 700 mil hectares em 1998, mais de 60% de sua área de lavoura ainda era preparada por métodos tradicionais com o uso de arado e grade (Governo do Estado de Santa Catarina, 1998:8).

Estas informações são bastante coerentes com as que vêm do Censo Agropecuário de 1996. A tabela 9 mostra que no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, menos da metade dos estabelecimentos agrícolas fazem conservação do solo. No Paraná, coerente com as informações do presente trabalho, a proporção de adeptos das práticas de conservação do solo é maior que nos dois

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outos Estados, mas ainda assim, quase metade não as menciona. É interessante observar que o controle de pragas e doenças (que pode ir da simples vacinação do gado à aplicação de agrotóxicos) é praticada por quase todos, embora seja minoritária a quantidade dos que recebem assistência técnica no Paraná e no Rio Grande do Sul.

Tabela 9 Número de estabelecimentos, controle de pragas e doenças, assistência técnica e

conservação do solo - Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná - 1996 - Em 1.000

RS SC PR

Estabelecimentos 430 203 370

Contr. Pragas e doenças

404 194 326

Assist. técnica 205 133 149

Conserv. Solos 192 84 179

Fonte: Censos Agropecuários de 1996

Em outras palavras, apesar da importância dos programas de microbacias, o plantio direto parece concentrar-se basicamente na cultura de soja. Vejamos a questão mais de perto.

5.1.2. Plantio direto e herbicidas

É exatamente na soja que se realizam os maiores gastos com herbicidas no país. Esta ligação entre plantio direto e herbicidas é evidentemente um dos fatores mais preocupantes com relação ao atual processo de mudanças por que passa a agricultura da região Sul. Várias pesquisas (23) mostram a possibilidade real de se praticar o plantio direto com utilização decrescente de herbicidas, desde que seja feita uma adequada rotação de culturas, que contemple também a adubação de cobertura para o período do inverno. Estas práticas, entretanto, que têm o objetivo explícito de caminhar em direção ao uso cada vez menor de herbicidas, são bem pouco difundidas pela extensão e em grande parte desprestigiadas pelo aparato publicitário das empresas de agrotóxicos.

Mas, segundo técnicos de Santa Catarina, a redução no uso de pesticidas no plantio direto exige o desenvolvimento de novas pesquisas: �“o desafio que se apresenta...é a investigação científica de espécies de plantas de cobertura com diferentes ciclos vegetativos que permitam apenas o acamamento mecânico, reduzindo a aplicação de herbicidas dessecantes�” (Governo do Estado de Santa Catarina, 1998:20).

23 Peterson et al. (1998) entre outras da rede Tecnologias Alternativas.

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O plantio da soja transgênica poderá agravar este quadro, na opinião de Reinaldo Skalisz, da Secretaria de Agricultura do Paraná: o Ministério da Saúde aprovou o aumento em dez vezes da quantidade de resíduo de glifosato tolerado na soja transgênica. Na soja convencional o herbicida à base de glifosato só pode ser usado antes do plantio. Na soja transgênica o produto é aplicado na parte aérea do produto e sua tolerância passa para 2 ppm (partes por milhão). Ora, lembra Skalizs só na região de Curitiba, nada menos que 45 mil crianças têm suas merendas preparadas com base em leite de soja...

5.2. Manejo integrado de pragas: duas visões

Manejo integrado de pragas é um termo hoje de uso corrente nas organizações internacionais e brasileiras de pesquisa e extensão. Trata-se basicamente de utilizar ao máximo os componentes vivos dos processos naturais para combater os efeitos indesejados de certas práticas produtivas.

Segundo Yudelman et al. (1998:35) existem basicamente duas visões sobre o manejo integrado de pragas. A primeira, que eles chamam de �“tecnológica�” é orientada para um certo produto e não supõe que se reverta a situação de especialização cultural característica de boa parte da agricultura contemporânea. O importante é definir patamares abaixo dos quais não é necessário intervir com produtos químicos. A ênfase entretanto está na intervenção com produtos químicos para o combate às pragas e doenças.

Mas o manejo integrado de pragas pode ser praticado também com o objetivo explícito de que a agricultura se emancipe da necessidade permanente de recorrer aos pesticidas. É a visão defendida por diversas entidades não governamentais, sobretudo as que formam a Rede Projeto Tecnologias Alternativas.

O manejo integrado de pragas na visão tecnológica vai preconizar o uso em escala crescente de sementes geneticamente melhoradas e resistentes ao ataque de certos inimigos naturais, ainda que seja com o auxílio indispensável (porém de �“mira�” cada vez mais precisa) de produtos químicos. Já a visão ecológica encara com ceticismo a adoção de sementes geneticamente melhoradas: uma das principais realizações da rede PTA foi a ampla troca de sementes entre os produtores com o objetivo explícito de preservação da biodiversidade. A contrapartida é que estas sementes serão cultivadas em sistemas altamente intensivos em informação (mas não necessariamente em capital), uma vez que seu sucesso depende do conhecimento que o agricultor tenha do comportamento natural das áreas em que o produto está sendo cultivado.

Os avanços técnicos capazes de levar a uma redução no consumo de agrotóxicos são muito importantes. Na soja, por exemplo, o uso do baculovírus, desde o final dos anos 1980, foi um passo importantíssimo para modificar os métodos de combate a uma das mais destrutivas pragas da cultura. Na fruticultura também,

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as aplicações foram reduzidas de 25 para 9 por safra em função do uso de outras técnicas de combate a insetos (atração de insetos, armadilhas e, e maneira geral, conhecimento dos hábitos dos hospedeiros). Nas hortaliças, amplia-se a utilização da alelopatia (plantas companheiras) e outros métodos que evitem agrotóxicos (24). Na produção de fumo, em 1986, os integrados da Souza Cruz utilizavam em média 26,8 quilos de ingredientes ativos por hectare. Em 1991 esta quantidade foi reduzida para 6,6 kg/ha e em 1996 chegou a 5,5 kg/ha. A previsão para 1998/99 é reduzir ainda mais estas aplicações para 1,7kg/ha (25).

São avanços técnicos importantes, mas cujos efeitos práticos na agricultura ainda não se manifestam nos dados sobre compras de pesticidas que, como foi visto, não cessam de aumentar em todos os itens e todos os produtos nos últimos três anos.

5.3. Dejetos suínos: os custos da concentração

No documento apresentado para renovação do empréstimo que permitiu uma primeira etapa do programa de microbacias em Santa Catarina é feita uma avaliação positiva do aspecto referente ao tratamento de dejetos suínos (Governo de Santa Catarina, 1998:19). Restam entretanto alguns problema ainda não solucionados:

a) Ainda são precárias as técnicas conhecidas para se reduzir a quantidade de líquido no esterco facilitando seu transporte para as plantações. As dificuldades técnicas neste sentido estão entre os fatores que fazem com que o próprio documento do Governo do Estado preconize que �“em alguns casos pode ser necessário desconcentrar a população de suínos através da reconversão da atividade de parte dos produtores�” (Governo de Santa Catarina, 1998:19). Diferentemente do que ocorre com as empresas produtoras de fumo, que adotam o discurso e atuam no sentido de implantar práticas que estão de acordo com a redução na quantidade de aplicação de agrotóxicos, aqui há um conflito claro entre o interesse das empresas (prosseguir no processo de concentração dos produtores) e as metas governamentais que podem até incluir uma certa desconcentração no setor.

b) O uso do esterco suíno para alimentar peixes é, em geral considerado como uma boa alternativa econômica e vem sendo desenvolvido há vários anos. Hoje entretanto, ele se torna polêmico: �“a adoção deste sistema por um contingente razoável de agricultores tem suscitado uma grande polêmica em termos de contaminação ambiental e proliferação do inseto borrachudo�” (Governo do Estado de Santa Catarina, 1998:19).

24 Agradeço Laércio Nunes y Nunes, pesquisador da EMBRAPA pelas explicações a respeito. 25 Segundo matéria publicada na Gazeta Mercantil de 9/12/1998, p. A-8 de Carlos Rodrigues - �“Souza Cruz reduz uso de agrotóxico no fumo�”.

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6. Conclusões

A paisagem rural do Sul do Brasil transformou-se de maneira impressionante nos últimos trinta anos. Durante a década de 1970, a especialização cultura tomou conta da maior parte da área agrícola com base em práticas predatórias, estimuladas não só por uma visão técnica que associava progresso material ao uso em larga escala de meios químicos e mecânicos de produção, mas também por um crédito rural fartamente subsidiado. Os anos 1980 assistiram às tentativas de organizar a reversão deste quadro e resultaram na implantação, nos três Estados de programas de microbacias hidrográficas que se apoiam e ao mesmo tempo reforçam a organização descentralizada da participação dos próprios agricultores na gestão dos recursos com que contam para produzir. A existência de uma agricultura familiar com expressão social, econômica e política significativa na região é o mais importante fundamento social dos programas de microbacias.

Os maiores avanços práticos alcançados por estes programas - sobretudo no Paraná, mas também em Santa Catarina - referem-se à implantação do plantio direto como forma de combate à erosão do solo. Apesar de sua importância e dos efeitos que ele já mostra, tanto com relação aos rendimentos do solo como a qualidade da água, o plantio direto apresenta dois problemas básicos. Ele é adotado, fundamentalmente, na cultura de soja no Paraná e, em Santa Catarina, 60% da superfície agrícola ainda é arada com métodos convencionais. No Rio Grande do Sul, na área do programa de microbacias do Alto e Baixo Jacuí (Guaíba), apenas 10% das lavouras usavam o plantio direto. Além de sua adoção ainda minoritária (embora muito expressiva, seu dúvida) o plantio direto está intimamente associado ao uso em larga escala de herbicidas. Não existe entre nós nada semelhante ao que vêm fazendo alguns dos mais importantes os países capitalistas centrais: fixar metas de redução - ainda que graduais - do uso de agrotóxicos.

Com relação ao esterco suíno, o programa de microbacias obteve resultados importantes no Oeste de Santa Catarina no tocante à construção de esterqueiras que já respondem pela melhoria na qualidade da água.

Na área de agrotóxicos é que estão até hoje os mais importantes problemas que podem ser assim resumidos:

a) Os métodos dominantes de plantio direto apoiam-se na utilização em larga escala de herbicidas. A adoção da soja transgênica oferece o risco de que sejam ainda mais ampliada a utilização de agrotóxicos, uma vez que foram multiplicados por dez os limites tolerados de resíduos de glifosato no produto, com base em aplicações pós-emergentes.

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b) Apesar da ampla divulgação dos conceitos ligados ao manejo integrado de pragas, prevalece ainda na extensão um viés fortemente voltado à utilização de produtos químicos, inclusive pesticidas.

c) Embora haja relatos de progressos no sentido da diminuição do uso de agrotóxicos em produtos como a fruticultura e o fumo, os gastos neste item vêm aumentaram de maneira sensível, entre 1995 e 1997.

d) É extremamente deficiente a pesquisa sobre os impactos da utilização de agrotóxicos no meio ambiente (água e solos) e na saúde. Mais da metade dos princípios ativos existentes não são passíveis de localização com os instrumentos de que dispõem os centros de investigação a respeito. Na verdade, nesta área, não existe nada que se assemelhe a uma política preventiva.

e) Os agrotóxicos não são tratados, na prática, como produtos de alto risco: sua publicidade nos grandes meios de comunicação é absolutamente livre e nela são exaltadas suas virtudes e nunca os riscos que representam. Embora a legislação exija que o uso de agrotóxicos submeta-se a uma recomendação técnica formal (receituário) a publicidade dirigida aos agricultores em geral mostra que a escolha sobre os agrotóxicos é feita por eles, em geral sem qualquer restrição.

f) São inúmeros e persistem os problemas ligados à aplicação dos agrotóxicos: aparelhos mal regulados, manipulação inadequada dos produtos, utilização além das doses necessárias, emprego preventivo e destino inadequado de embalagens: não há sinais de que os comitês de gestão por microbacias estejam discutindo seriamente estas questões. No que se refere às embalagens, acabou prevalecendo o interesse das indústrias de que o recolhimento dos produtos seja de responsabilidade dos municípios e dos próprios agricultores, sem controle sobre cada embalagem comercializada como preconizavam os técnicos que assinaram a Carta de Toledo em 1994.

Seis recomendações podem ser feitas com base neste trabalho.

1. Uma agricultura menos predadora dos recursos naturais depende, antes de tudo, da formação de um ambiente educacional que valorize o conhecimento. Isso depende é claro de iniciativas governamentais, mas sobretudo do comprometimento das organizações dos próprios agricultores com a questão.

2. É necessário implantar um processo de monitoramento da evolução da qualidade dos recursos naturais sob influência da agricultura, com ênfase para a questão dos agrotóxicos.

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3. Este monitoramento vai permitir que se conheça o uso atual, e que se estabeleçam metas de redução e mecanismos de controle para que sejam alcançadas.

4. Os agrotóxicos devem passar a ser tratados socialmente como produtos de risco e não como artigo comercial de vasta divulgação pública.

5. É necessário multiplicar os cursos que capacitem os técnicos e os agricultores à produção sem uso de agrotóxicos.

6. O Estado e as organizações dos produtores devem associar-se no sentido de estabelecer marcas e mecanismos de controle que valorizem os produtos livres de agrotóxicos e que não levam à degradação de recursos naturais.

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