o texto na sala de aula (geraldi et al.) - gram e pol.pdf

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  • Srio Possenti

    "Receio bem que jamais venhamos a desembaraar-nos de Deus, pois cremos ainda na gramtica" (Nietzsche).

    Este trabalho no pretende avanar nenhuma novidade sobre a relao entre poltica e gramtica, mas apenas divulgar algumas reflexes correntes sobre o tema em certos crculos. O tom do trabalho ser, evidente, poltico.

    Para tratar, mesmo que sumariamente, do tema, necessrio antes de tudo con- ceituar gramtica. Ver-se- que, qualquer que seja a acepo em que se tome este termo, a questo da poltica lhe est inexoravelmente ligada. Distinguir-se-o trs conceitos correntes, que equivalem a trs maneiras de se entender a expres- so "conjunto de regras lingsticas".

    No sentido mais comum, o termo gra- mtica designa um conjunto de regras que devem ser seguidas por aqueles que querem "falar e escrever corretamente". Neste sentido, pois, gramtica um conjunto de regras a serem seguidas.

    Usualmente, tais regras prescritivas so expostas, nos compndios, misturadas com descries de dados, em relao aos quais, no entanto, em vrios captulos das gramticas, fica mais do que evidente que o que descrito , ao mesmo tempo, prescrito. Citem-se como exemplos mais evidentes os captulos sobre concordn- cia, regncia e colocao dos pronomes tonos.

    Num segundo sentido, gramtica um conjunto de regras que um cientista dedicado ao estudo de fatos da lngua encontra nos dados que analisa a partir de uma certa teoria e de um certo m- todo. Neste caso, por gramtica se en- tende um conjunto de leis que regem a estruturao real de enunciados realmen- te produzidos por falantes, regras que so utilizadas. Neste caso, no importa se o emprego de determinada regra implica numa avaliao positiva ou negativa da expresso lingstica por parte da comu- nidade, ou de qualquer segmento dela, que fala esta mesma lngua.

    64 NOVOS ESTUDOS N. 3

  • Gramticas do primeiro tipo preo- cupam-se mais com como deve ser dito, as do segundo ocupam-se exclusivamente de como se diz. Para que a diferena fique bem clara, imagine-se um antrop- logo que descreva determinado sistema de parentesco de um certo povo, e outro que o censure por desrespeitoso, por no distinguir-se o papel do pai e o do tio. . .

    Num terceiro sentido, a palavra gra- mtica designa o conjunto de regras que o falante de fato aprendeu e das quais lana mo ao falar. preciso que fique claro que sempre que algum fala o faz segundo regras de uma certa gramtica, e o fato mesmo de que fala testemunha isto, porque usualmente no se "inven- tam" regras para construir expresses. Pelo conhecimento no consciente, em geral, de tais regras, o falante sabe sua lngua, pelo menos uma ou algumas de suas variedades. O conjunto de regras lingsticas que um falante conhece cons- titui a sua gramtica, o seu repertrio lingstico.

    Uma gramtica do tipo 2 ser tanto melhor quanto mais coincidir com uma gramtica do tipo 3, isto , quanto maior contedo emprico explicar. por esta razo que Chomsky diz que a tarefa do lingista semelhante da criana que est aprendendo a lngua de sua comu- nidade: ambos devem descobrir as regras da lngua. Os lingistas, sabe-se, so mui- to menos bem-sucedidos que as crianas.

    Talvez haja regras gerais vlidas para todas as lnguas. Talvez no. No dis- cutamos isto aqui. Aceitemos que uma gramtica refere-se a uma lngua. Ocorre que lngua no um conceito bvio. Pelo menos, pode-se dizer que h um conceito de lngua compatvel com cada conceito de gramtica. Isto , vista a lngua de uma certa forma, ver-se- a natureza e a funo da gramtica de uma forma com- patvel. Qualquer outra postura ser incoerente em excesso para merecer ateno. Distingamos, pois, trs conceitos de lngua.

    O primeiro conceito o mais usual entre os membros de uma comunidade lingstica, pelo menos em comunidades como as nossas. Segundo tal forma de ver a questo, o termo lngua recobre apenas uma das variedades lingsticas utilizadas efetivamente pela comunidade (ver item c), a variedade que preten- samente utilizada pelas pessoas cultas. a chamada lngua padro, ou norma

    culta. As outras formas de falar (ou escrever) so consideradas erradas, no pertencentes lngua. Definir lngua desta forma esconder vrios fatos, al- guns escandalosamente bvios. Dentre eles est o fato de que todos ouvimos diariamente pessoas falando diversamen- te, isto , segundo regras parcialmente diversas, conforme quem fala seja de uma ou de outra regio, de uma ou de outra classe social, fale com um inter- locutor de um certo perfil ou de outro, segundo queira vender uma imagem ou outra. Esta definio de lngua peca, pois, pela excluso da variedade, por preconceito cultural. Esta excluso no privilgio de tal concepo, mas o de uma forma especial: a variao vista como desvio, deturpao de um prot- tipo. Quem fala diferente fala errado. E a isso se associa que pensa errado, que no sabe o que quer etc. Da a no saber votar, o passo pequeno. um conceito de lngua elitista.

    O segundo conceito de lngua, ligado a gramticas do tipo 2, tambm exclu- dente, em relao aos fenmenos, no tanto por s incluir partes, mas por in- cluir de certo modo apenas. Aqui lngua equivale a um construto terico, neces- sariamente abstrato. Como tal, consi- derado homogneo, no prev variaes no sistema. O que faz prever sistemas coexistentes, mas no incorpora, embora trabalhe com base em enunciados da fala, as flutuaes da fala. No se quer pr em dvida a necessidade da construo do objeto terico para a tarefa cientfica de descrever lnguas. Trata-se de colocar a dvida: at que ponto, efetivamente, tais construtos representam o maior con- tedo emprico possvel e at que ponto so restritivos em relao aos fenmenos. As teorias pagam seu preo s ideologias a que se ligam. Por exemplo: o estrutu- ralismo exclui o papel do falante no sis- tema lingstico, define a lngua como meio de comunicao, o que implica que no h interlocutores, mas emissores e receptores, codificadores e decodificado- res. A Gramtica Gerativa s considera enunciados ideais produzidos por um fa- lante ideal que pertena a uma comuni- dade lingstica ideal. Alm disso, con- cebe a lngua como espelho do pensa- mento, o que implica fazer uma semn- tica de base lgica privilegiando o valor de verdade dos enunciados. O que uma excluso de todas as outras funes da linguagem.

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  • GRAMTICA E POLTICA

    Estes tipos de concepo de lngua, no entanto, no avalisam nenhum pre- conceito contra qualquer lngua ou con- tra qualquer variedade lingstica. Mas, de fato, trabalham com dados higieniza- dos. E as gramticas que as estudam es- tabelecem prioridades, o que sempre sig- nifica, na prtica, deixar para as calendas as tarefas consideradas posteriores e de- pendentes da principal.

    Considerando-se que os falantes no falam uma lngua uniforme e no falam sempre da mesma maneira, a terceira concepo de gramtica opera a partir de uma noo de lngua mais difcil de explicitar. Digamos, em poucas palavras, que neste sentido lngua o conjunto das variedades utilizadas por uma determi- nada comunidade e reconhecidas como heternimas de uma lngua. Isto , for- mas diversas entre si, mas pertencentes mesma lngua. interessante observar que a propriedade "pertencer a uma ln- gua" atribuda a uma determinada va- riedade bastante independentemente dos seus traos lingsticos internos, isto , de suas regras gramaticais, mas prepon- derantemente pelo sentimento dos pr- prios usurios de que falam a mesma ln- gua, apesar das diferenas. Assim, no importa se uma determinada variedade A de uma lngua mais semelhante a uma variedade X de outra lngua do que a uma variedade B da mesma lngua. A e B sero consideradas variedades de uma mesma lngua, X ser uma variedade de outra lngua. Este tipo de fenmeno comum em fronteiras polticas, que so muito comumente fronteiras tambm lin- gsticas por causa das atitudes dos fa- lantes mais do que por causa dos traos gramaticais das formas lingsticas. Ln- gua , pois, neste sentido, um conjunto de variedades.

    Consideremos agora alguns fatos lin- gsticos. Pouco se sabe sobre as lnguas, a despeito dos sculos de trabalho a elas dedicados, mas algumas coisas so evi- dentes. A mais evidente de todas que as lnguas esto estreitamente ligadas a seus usurios, isto , aos outros fatos sociais. No so sistemas que pairam aci- ma dos que falam, e no esto isentas dos valores atribudos pelos que falam.

    Um outro fato evidente que as ln- guas variam. No se sabe de nenhuma lngua que seja uniformemente falada por velhos e jovens, homens e mulheres, pes- soas mais e menos influentes, em qual- quer circunstncia. Este fato faz das ln-

    guas um objeto extremamente complexo, no s pela dificuldade, j de si enorme, de se descobrir a totalidade das regras gramaticais encontrveis e a sua natureza (se categricas ou variveis), mas tam- bm por causa da extrema dificuldade em se fixar o limite entre o que e o que no lingstico. Tomar uma deci- so sobre este aspecto j assumir con- cepes em geral no inocentes no campo ideolgico. De uma certa maneira, um problema anlogo ao da separao entre a economia e a poltica.

    Um terceiro fato evidente que as lnguas mudam. As gramticas do tipo 1 fazem o possvel para ser insensveis a esta realidade, mas ela to forte que mesmo elas acabam por dobrar-se, em- bora parcial, tardiamente e apenas segun- do uma razo: por se pautarem nos "bons escritores", que sempre incorpo- ram formas novas ou mesmo criam for- mas alternativas. O que tais gramticas no fazem associar o fato da mudana ao fato da variao, inerente s lnguas naturais, por causa dos valores que os usurios atribuem a formas distintas.

    Um outro fato que no pode ser es- quecido que a variedade lingstica es- tudada e aconselhada por gramticas do tipo 1 fruto de um longo e minucioso trabalho explcito voltado no sobre a lngua, no sentido c, mas sobre uma de suas variedades, para "aperfeio-la". Um dos resultados deste trabalho a apre- sentao desta variedade como se ela no tivesse a mesma origem das outras. Em resumo, aquilo que se chama vulgarmente de linguagem correta no passa de uma variedade da lngua que, em determina- do momento da histria, por ser a utili- zada pelos cidados mais influentes da regio mais influente do pas, foi a es- colhida para servir de expresso do po- der, da cultura deste grupo, transformada em nica expresso da nica cultura. Seu domnio passou a ser necessrio para ter acesso ao poder. O que precisa ficar claro que esta variedade, a mais prestigiada de todas, tem a fora que tem em funo de dois fatores, ambos desligados de sua, digamos, estrutura: pelo fato de ser uti- lizada pelas pessoas mais influentes, don- de se deduz que seu valor advm no de si mesma, mas de seus falantes; e por ter merecido, ao longo dos tempos, a ateno dos gramticos, dos dicionaris- tas e dos escribas em geral, que se esme- raram em uniformiz-la ao mximo, em adicionar-lhe palavras e regras que aca- baram por torn-la, efetivamente, a va-

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  • riedade capaz de expressar maior nmero de coisas. No necessariamente de ex- pressar melhor, mas de expressar mais. As outras variedades ou foram confina- das ao uso no dia-a-dia ou para finalida- des muito bem definidas pela sociedade.

    Resumindo, h fatos bsicos em rela- o s lnguas que no podem ser esque- cidos, a no ser por uma certa vontade poltica: a) que as lnguas no existem em si; b) que elas variam, isto , no so uniformes, num tempo dado; c) mudam, isto , no so iguais em dois tempos diferentes, nas suas variedades; d) em certas sociedades, h uma variedade que merece tanta ateno, tanto trabalho de normalizao e de criao e/ou incorpo- rao, e em torno de cujas virtudes se faz tamanha pregao que todos acabam por concordar que esta variedade a lngua, sendo as outras formas imper- feitas e desviantes da lngua (da signifi- cando aqui no pertena, mas ponto de partida).

    Pode parecer que se trate de preciosis- mo verbal, mas preciso acentuar que no interior das lnguas no h variantes, termo que pode dar a idia de que uma forma deriva, bem ou mal, de outra, que superior melhor, mas apenas varieda- des, isto , formas coexistentes. Even- tualmente, uma forma de uma variedade pode ter sido emprestada de outra, como h emprstimos de lngua para lngua e conseqente adaptao. E preciso dizer com todas as letras que todas as varie- dades so boas e corretas, e que funcio- nam segundo regras to rgidas quanto se imagina que so as regras da "lngua clssica dos melhores autores". As varie- dades no so, pois, erros, mas diferen- as. No existe erro lingstico. O que h so inadequaes de linguagem, que consistem no no uso de uma variedade, ao invs de outra, mas no uso de uma variedade ao invs de outra numa situa- o em que as regras sociais no abonam aquela forma de fala. Assim, to inade- quado (no errado) dizer-se "Vossa Se- nhoria quer fazer o obsquio de me pas- sar o sal" numa refeio em famlia quanto dizer-se ", meu chapa, qu faz o favor de demit o Ministro X que nin- gum mais tem saco pra guent ele?" ao Presidente da Repblica numa reunio do Ministrio. Mas no se diga que esta ltima frase est errada. Ela uma frase do portugus, tem regras prprias. Nos exemplos, trata-se apenas de gafes an- logas a ir praia de smoking ou a um jantar formal de bermudas. O "erro",

    portanto, se d sempre em relao ava- liao do valor social das expresses, no em relao s expresses mesmas. No fosse assim, seria como considerar mal acabado um colete por no ter mangas.

    Digamos mais diretamente, ento, o que h de poltico nas gramticas. Em gramticas do tipo 1, o que h de poltico mais do que evidente. Elas so exclu- dentes em alto grau. Em primeiro lugar, excluem a fala, considerando propriamen- te corretas apenas as manifestaes es- critas (ou as faladas que as repetem, que continuam, na verdade, sendo escri- tas. . . ) . Sabe-se que a escrita, como ns a conhecemos, posterior fala e foi construda sobre ela, embora esteja claro que as duas modalidades so diversas em numerosos aspectos que no cabe aqui tratar. Ao eleger a escrita, no elegem qualquer manifestao escrita. Adotam como modelo a escrita literria. Ora, evidente que a literria no a nica escrita, nem a melhor. uma dentre elas, e s melhor para a literatura. Mas isso no tudo. Ao eleger a escrita lite- rria, elegem alguns escritores, ou ainda uma seleo de suas obras (inclusive para evitar imoralidades. . . ) . Selecionam ape- nas os clssicos. Uma das caractersticas dos clssicos, a verdade a mais relevante para as gramticas (e para representar bons usos da lngua!) serem antigos. De degrau em degrau, excluindo a ora- lidade, a escrita no literria, a escrita literria moderna, o que tais gramticas nos apresentam antes de mais nada uma lngua arcaica em muitos de seus aspec- tos. Esquecem estas gramticas que tais clssicos foram, em seu tempo, freqen- temente apedrejados pelo "mau uso da linguagem", porque ento tambm havia os clssicos a ser imitados.

    Em segundo lugar, uma gramtica assim pensada e construda exclui a va- riao, tanto a oral como a escrita. As variedades regionais so, para ela, regio- nalismos, e merecem tratamento to des- prezvel quanto os estrangeirismos, elen- cados entre os vcios de linguagem. As variedades sociais eventualmente trazidas para os textos pelos escritores ou so folclore ou concesso incompreensvel ao mau gosto. pois poltica, absolutamen- te falta de senso histrico, mas no in- gnua, a atitude purista e arcaizante, por considerar sem valor, erradas, frutos da falta de cultura e do desleixo as mani- festaes no avalisadas por um estreito e freqentemente mau "bom gosto". O preconceito contra qualquer manifestao

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  • GRAMTICA E POLTICA

    lingstica popular escandaloso nas gra- mticas deste tipo. Maurizio Gnere, em texto ainda indito, afirma que a lngua o nico lugar em que a discriminao aceita. Em nenhum documento est dito que no se tem o direito de discri- minar algum por causa de seu sotaque ou de qualquer outra peculiaridade lin- gstica, embora se condene claramente a discriminao quando baseada em fato- res como religio, cor, iderio poltico etc. Diria que no s no se trabalha em favor do fim da discriminao lin- gstica, como, pelo contrrio, cada vez mais se valoriza a lngua da escola, que na verdade a lngua do Estado.

    Gramticas do tipo 2 so polticas em trs sentidos, pelo menos: a) em primei- ro lugar porque, embora se baseiem na oralidade, a construo dos modelos e,

    na verdade, o corpus utilizado levam sempre, imperceptivelmente talvez, para a consagrao da variedade padro como representante ideal das regras da lngua. A melhor demonstrao desta atitude que o estudo da variao lingstica cabe a um ramo interdisciplinar, a socio-lin- gstica, no lingstica mesma; b) em segundo lugar, tais gramticas so pol- ticas na construo e delimitao do obje- to: conforme o que excluem ou incluem no objeto da teoria, efetuam um recorte dos fenmenos que imediatamente de- nuncia as ligaes ideolgicas da teoria gramatical com certas concepes de ou- tros fenmenos sociais. Casos evidentes so o estruturalismo americano, ligado diretamente ao behaviorismo, e a gram- tica gerativa, que apela fortemente para o inatismo. Compare-se, tambm, a con- cepo de signo em Saussure e em Vo- loshinov; c) pela excluso que tais gra- mticas promovem do aspecto histrico das lnguas, das razes sociais das mu- danas. A doutrina da precedncia da sincronia vem de par com uma concepo de lngua como sistema independente de fatores extra-lingsticos, excluindo total- mente o papel da histria e das reais relaes entre os falantes.

    As gramticas do tipo 3 so evidente- mente polticas. Neste caso, no entanto, no necessariamente a marca poltica imposta por grupos de poder especiali- zados. a prpria comunidade que fala a lngua que trabalha politicamente, im- pingindo normas de linguagem, e excluin- do os que no se submetem. Neste sen- tido, os prprios falantes promovem o mximo possvel de normalizao ou de

    especializao de variedades, atribuindo valores s formas lingsticas. Em comu- nidades de maior escolaridade, claro que gramticas do tipo 1 interferem em gramticas do tipo 3. Da porque normas e concepes daquelas gramticas podem encontrar-se reproduzidas nestas, e a co- munidade, embora exercite a diversida- de, considera explicitamente uma forma de falar melhor que outra. A forma mais valorizada coincide com a forma padro- nizada pelas gramticas.

    E, no entanto, no existe nenhuma variedade e nenhuma lngua que sejam boas ou ruins em si. O que h so lnguas e variedades que mereceram maior aten- o que outras, segundo necessidades e eleies historicamente explicveis. Ne- cessidades e eleies claramente polti- cas. Fishman, em seu Sociology of lan- guage, menciona quatro atitudes bsicas adotadas em relao a variedades privi- legiadas, que as valorizaram sobrema- neira.

    adronizao: consiste na codificao e aceitao, dentro de uma comunidade lingstica, de um conjunto de hbitos ou normas que definem o uso "correto" (Steward). Este um assunto tpico dos guardies da lngua: escritores, gramti- cos, professores etc, isto , de certos grupos cujo uso da lngua profissional e consciente. Codifica-se a lngua e ela apresentada comunidade como um bem desejvel. Em seguida, promove-se a va- riedade codificada, por meio de agentes e autoridades como o governo, sistemas de educao, meios de comunicao etc. O que importante verificar, nesta ta- refa, que ela efetuada sobre uma variedade que, antes de ser trabalhada, (considerada) cheia de "defeitos e la- cunas". A padronizao no , pois, uma propriedade da lngua, mas um tratamen- to social. Consiste em fazer passar por natural o que criado.

    utonomia: uma atitude que se preo- cupa com a unidade e a independncia do sistema lingstico, erigindo-o fre- qentemente em condio sine qua non da unidade nacional. O principal instru- mento da autonomia a padronizao, atravs de gramticas e dicionrios, meio seguro de representar a autonomia e de aument-la, fixando as regras e aumen- tando o lxico. "Os heris no nascem, so feitos". O mesmo vale para a auto- nomia das lnguas.

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  • istoricidade: Fischman utiliza uma analogia interessante: buscar sua prpria ascendncia uma das caractersticas dos novos ricos. Da mesma forma, as lnguas, para aparecerem como autnomas, exi- gem um esforo de reconstruo de seu passado, para descobrir sua "honrosa es- tirpe". Nada melhor do que derivar do latim, desde que no se diga em voz mui- to alta que foi do latim dos soldados. . .

    italidade: atitude que se preocupa com a manuteno da lngua e sua difu- so de vez que, quanto mais numerosos e importantes os falantes, maior a auto- nomia, a historicidade e a vitalidade. Esta postura fica clara em muitos lugares, mas interessante verificar que funcionou como justificativa para a confeco das primeiras gramticas do espanhol e do portugus. Os autores alegavam coisas como "um grande imprio merece uma grande lngua", "as gramticas so ne- cessrias para que a lngua possa ser le- vada para as colnias, para que l possa permanecer mesmo quando terminar a dominao poltica." Bastariam declara- es como estas, alis, para demonstrar claramente a relao da gramtica com a poltica, principalmente no caso das gramticas pedaggicas, relao que ex- tremamente bem manifesta nas quatro atitudes enumeradas por Fishman.

    A adoo de gramticas do tipo 1 pelas escolas bem um sintoma de que elas pouco se preocupam em analisar efetiva- mente uma lngua mas, antes, em trans- mitir uma ideologia lingstica. Se con- siderarmos que aquelas gramticas ado- tam uma definio de lngua extrema- mente limitada, que expem aos estu- dantes um modelo bastante arcaico e dis- tante da experincia vivida, mais do que ensinar uma lngua, o que elas conse- guem aprofundar a conscincia da pr- pria incompetncia, por parte dos alunos. O resultado o aumento do silncio, pois na escola no se consegue aprender a variedade ensinada, e se consagra o preconceito que impede de falar segundo outras variedades. E isto politicamente grave, porque, segundo Foucault "o dis- curso no simplesmente o que traduz as lutas ou os sistemas de dominao, mas o por que, aquilo pelo que se luta, o poder cuja posse se procura." Srio Possenti pertence ao Instituto de Estudos da Lin- guagem da UNICAMP.

    Novos Estudos Cebrap, So Paulo, v. 2, 3, p. 64-69, nov. 83

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