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Universidade Estadual de Maringá 08 e 09 de Junho de 2009 1 O TEXTO BÍBLICO E A ARTE RENASCENTISTA DE MICHELANGELO LÓDE NUNES, Meire (UEM) OLIVEIRA, Terezinha (Orientadora/UEM) Sabemos que a sociedade medieval estruturou-se seguindo as regras do Cristianismo. Assim, na perspectiva cristã, Cristo veio a terra para purificar os homens do pecado original herdado de seus ancestrais, Adão e Eva. Para entendermos essa questão faz-se necessário, primeiramente remontarmos à compreensão do pecado, o qual, conforme Tomás de Aquino citando Santo Agostinho, pode ser entendido como um ato ou desejo contra as leis de Deus. A imperfeição humana, que seria a causa do ato que afasta o homem de Deus, é explicada no Livro do Gênesis: a fraqueza da alma faz com que o homem desobedeça a advertência de Deus de não comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Nessa perspectiva, o homem deve lutar contra sua natureza de pecar, conforme o pensamento medieval, a vida terrena é o local onde essa batalha deve ser travada. Dessa forma, o pecado pode ser entendido como um preceito para o comportamento do homem e determinante na organização da sociedade medieval. Entretanto, Lê Goff (2007, p. 117) atenta ao fato de que o a partir do século XII “Novas leituras da Bíblia levam a refletir sobre o livro do Gênesis”. O homem que durante a Alta Idade Média era inferiorizado diante da imagem de Deus, passa a ser entendido, por meio da releitura do texto bíblico, como imagem e semelhança de Deus, o que vai fundamentar o humanismo cristão. Dessa forma, nosso interesse se desperta com relação ao período, convencionalmente, entendido como Renascença: será que o pecado se mantém enquanto um elemento da organização social?

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Universidade Estadual de Maringá 08 e 09 de Junho de 2009

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O TEXTO BÍBLICO E A ARTE RENASCENTISTA DE MICHELANGELO

LÓDE NUNES, Meire (UEM)

OLIVEIRA, Terezinha (Orientadora/UEM)

Sabemos que a sociedade medieval estruturou-se seguindo as regras do Cristianismo.

Assim, na perspectiva cristã, Cristo veio a terra para purificar os homens do pecado

original herdado de seus ancestrais, Adão e Eva. Para entendermos essa questão faz-se

necessário, primeiramente remontarmos à compreensão do pecado, o qual, conforme

Tomás de Aquino citando Santo Agostinho, pode ser entendido como um ato ou desejo

contra as leis de Deus. A imperfeição humana, que seria a causa do ato que afasta o

homem de Deus, é explicada no Livro do Gênesis: a fraqueza da alma faz com que o

homem desobedeça a advertência de Deus de não comer o fruto da árvore do

conhecimento do bem e do mal.

Nessa perspectiva, o homem deve lutar contra sua natureza de pecar, conforme o

pensamento medieval, a vida terrena é o local onde essa batalha deve ser travada. Dessa

forma, o pecado pode ser entendido como um preceito para o comportamento do

homem e determinante na organização da sociedade medieval.

Entretanto, Lê Goff (2007, p. 117) atenta ao fato de que o a partir do século XII “Novas

leituras da Bíblia levam a refletir sobre o livro do Gênesis”. O homem que durante a

Alta Idade Média era inferiorizado diante da imagem de Deus, passa a ser entendido,

por meio da releitura do texto bíblico, como imagem e semelhança de Deus, o que vai

fundamentar o humanismo cristão.

Dessa forma, nosso interesse se desperta com relação ao período, convencionalmente,

entendido como Renascença: será que o pecado se mantém enquanto um elemento da

organização social?

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Buscamos a compreensão dessa inquietação nas fontes iconográfica por acreditarmos

em seu grande valor histórico. Segundo Burke (2004, p. 58) a iconografia é muito

importante, pois foi usada como uma forma de doutrinação religiosa, dessa forma “elas

também são um meio, através do qual, historiadores podem recuperar experiências

religiosas passadas, contando que eles estejam aptos a interpretar a iconografia”. Mais

adiante, o autor reforça a importância dada às imagens transcrevendo as palavras do

Papa Gregório (c. 540-604), o Grande, as quais foram muitas vezes citadas: “Pinturas

são colocadas nas igrejas para que os que não lêem livros possam ‘ler’ olhando as

paredes’[...]”. Porém, Burke pontua que a idéia da pintura como Bíblia para os iletrados

vem sendo questionada, pois, as imagens se efetivavam diante de tamanha

complexidade, o que se tornava difícil para a maioria das pessoas as compreenderem. O

autor, ainda ressalta que

[...] a iconografia quanto as doutrinas que ela ilustrava poderiam ter sido explicadas oralmente pelo clero, a imagem em si agindo como um lembrete e um reforço da mensagem falada, em vez de se construir em uma única fonte de informação. Considerando a questão da evidencia, as discrepâncias entre as histórias contadas através das imagens e as histórias contadas na Bíblia são especialmente interessantes como indícios da forma como o Cristianismo era visto a partir das camadas mais baixas. (BURKE 2004, p. 60)

A questão mencionada por Burke, da existência de uma discrepância entre o texto

bíblico e as pinturas, nos levou a relacionar essa questão à nossa primeira indagação

com relação ao pecado e a nova leitura da Bíblia. Dessa forma construímos nossa

proposta em verificar em que medida a arte do Renascimento expressa as mudanças

desse período que necessitava negar a antiga sociedade para que a próxima pudesse se

constituir. Assim nos perguntamos: como um período de mudança histórica faz a leitura

do texto bíblico na Arte Cristã?

Procurando formar um conhecimento que nos possibilite discutir essa questão

posteriormente, nos propomos, com a construção deste texto, fazer um exercício de

observação das características da arte renascentista relacionando-a com o texto bíblico

em que foi inspirada. Para a realização dessa proposta adotamos o afresco “Fruto

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Proibido1” o qual traz a representação da Tentação e a Queda de Adão e Eva pintada no

teto da Capela Sistina (1509-12) pelo artista Michelangelo, pois de acordo com Carr-

Gomm (2006, p.12) essas cenas “foram temas extremamente populares na arte medieval

e renascentista porque representavam o pecado original e, portanto, a necessidade de

redenção da humanidade através de Cristo”, sendo assim, essa pintura vem ao encontro

de nossa proposta.

O estudo encontra-se dividido em dois momentos: no primeiro procuramos estabelecer

uma relação entre as principais características da arte renascentista e a obra de

Michelangelo; já no segundo, nos dedicamos a observar a obra de acordo com o

capitulo II do Livro do Gênesis.

Michelangelo e as características da Arte Renascentista

Como já exposto anteriormente, nossa intenção é analisar a pintura de Michelangelo

enquanto um exercício de observação, contudo, sabemos que muitos estudiosos vêm se

dedicando à questão de como deve ser a análise de imagens, em conseqüência, muitas

tentativas estão sendo desenvolvidas.

Destacamos nesse cenário o estudo desenvolvido por Baxandall (2006) que analisa a

obra O Batismo de Cristo de Piero della Francesca (1416?-1492 ) considerando a

cultura vivenciada pelo o artista. Seu estudo parte de uma problemática que gira em

torno da intenção, ou seja, formula duas indagações que são: “A primeira é saber até

onde podemos penetrar na estrutura das intenções de pintores que viveram em culturas

ou períodos históricos distantes do nosso. A outra é saber se conseguiremos provar ou

validar em algum nível nossas explicações” (BAXANDALL 2006, p.157). Entendemos

a complexidade desse problema, pois, assim como o autor, entendemos que existem

questões que são especificas daquelas sociedades em que os indivíduos estavam

inseridos, as quais não podemos, em nossa época, retomá-las. Sobre essa questão, se

reportando especificamente à Piero, Baxandall (2006, p. 159) pontua que “A relação de

troc com a cultura oferecia à Piero possibilidades que não existiam na Paris de 1730 ou

1 Encontramos varias títulos designando esse afresco, contudo preferimos adotar no decorrer do texto o titulo de Fruto Proibido, pelo fato desse ser o da imagem que estamos nos pautando.

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de 1910, ou mesmo em Londres ou Berkeley nos dias de hoje”. Diante desse contexto, o

autor, mais adiante, explicita sua verdadeira proposta com a realização desse trabalho.

Estamos interessados na intenção dos quadros e dos pintores como um meio de refinar, para nós mesmos, a percepção que podemos ter dos quadros. [...] Explicar uma intenção não é contar o que se passou na cabeça do pintor, mas elaborar uma análise sobre seus fins e seus meios, conforme os inferimos a partir da observação da relação entre um objeto e algumas circunstâncias identificáveis (BAXANDALL 2006, p.162).

Assim, Baxandall vai estruturando o caminho metodológico a ser desenvolvido. Por

outro lado, estamos em um estágio de tentativas e descobertas que acreditamos fazer

parte do processo de construção do nosso caminho metodológico, portanto não temos a

pretensão, nesse momento, de definir nosso método, mas, acreditamos na necessidade

de considerarmos o destino da obra, que no caso especifico desse texto é a Capela

Sistina situada no Vaticano. Porém, qual a importância de ressaltarmos essa questão?

Sabemos que durante o período do Renascimento uma das formas de trabalho artístico

era por meio das encomendas, assim, o encomendatário já estipulava as características

da obra. Baxandall (2006) ao se reportar a pintura do Batismo de Cristo de Piero della

Francesca expõe o contexto desse período dizendo que Piero

[...] trabalhava por encomenda, nos termos definidos por contratos legais, e pintava para pessoas que conviviam com as complexas necessidades do século XV, as quais tinham incorporado nas definições sutis e implícitas dos vários gêneros da época.[...] Tivemos acesso a um outro contrato estabelecido em Sansepolcro, em 1445, para um quadro de Piero, de forma semelhante, no qual está especificado que a pintura deve ser um retábulo, que o pintor deve ater-se ao assunto determinado e que nenhum outro pintor senão ele próprio deve pôr as mãos no pincel (BAXANDALL 2006, p.158).

Assim, mesmo não tendo acesso ao contrato e os termos impostos à Michelangelo,

sabemos, diante do contexto apresentado por Baxandall, pois tanto Piero como

Michelangelo viveram na mesma sociedade, que o pintor deveria explorar suas

habilidades artísticas seguindo determinadas exigências. O recorte do teto da Capela

Sistina que vamos nos ater, provavelmente, deveria ser fundamentada nas informações

do Velho Testamento que explica a causa que levaram os descendentes de Adão e Eva

serem marcados pelo pecado original, ou seja, a desobediência a Deus. Portanto a

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composição da pintura expressa dois momentos: o ato, comer o fruto proibido; e sua

conseqüência, a expulsão do Paraíso. Esse preceito foi um dos princípios da educação

medieval, pois, os homens viviam almejando uma recompensa em uma vida pós-terrena,

a qual estava vinculada à obediência aos mandamentos de Deus, aquele que assim não

se comportasse, teria o castigo: o purgatório ou o inferno. Contudo, não nos

prenderemos à discussão sobre o destino da obra, apenas ressaltamos a importância

dessa questão em estudos mais elaborados sobre imagens.

Adentrando na abordagem especifica da obra, nos voltamos às características

renascentistas da pintura. De acordo com Santos (1991, p. 78) o Renascimento foi um

movimento muito mais complexo do que, comumente, vem sendo tratado. Contudo,

mediante a complexidade dessa questão, tomaremos como base para nossas discussões

apenas que:

O ideal do humanismo foi sem duvida o móvel desse progresso e tornou-se o próprio espírito do Renascimento. Num sentido amplo, esse ideal pode ser entendido como a valorização do homem e da natureza, em oposição ao divino e ao sobrenatural, conceitos que haviam impregnado a cultura da Idade Média.

Seguindo essa informação, observamos na composição geral da obra a valorização do

humano, pois diferentemente de outras obras dos períodos anteriores não há a presença

de Deus. Existe toda a carga dos ensinamentos religiosos, porém a materialização do

divino na pintura se faz apenas com a presença de um anjo (querubim) que aparece

expulsando Adão e Eva do Paraíso (figura 1).

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Fig. 1 – Fruto Proibido Fonte - http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Forbidden_fruit.jpg

Santos (1991), pontua que a pintura renascentista se estabelece combinando três

recursos: a perspectiva; o claro e o escuro; e o realismo. A autora ressalta que esses

elementos já haviam sido explorados pelos artistas da Antiguidade, contudo os

românicos e os primeiros góticos tinham abandonado a busca pela realidade. Esses

elementos são facilmente observados na obra de Michelangelo, a perspectiva usada na

composição proporciona a visualização de diferentes planos, ou seja, temos em primeiro

plano a cena em que a serpente instiga Eva e, conseqüentemente, Adão a comer o fruto

da árvore do conhecimento do bem e do mal - segundo as indicações bíblicas. Já em

segundo plano observamos o castigo divino que se concretiza pela expulsão do casal e,

ainda, compondo o fundo temos um cenário de um céu claro que se contrasta com o

primeiro e segundo plano. O uso do claro e escuro é evidente na composição do céu,

porém, também é muito explorado na composição dos corpos, como podemos observar

no detalhe abaixo (fig. 2)

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Fig. 2 – Fruto Proibido (detalhe)

Fonte - http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Forbidden_fruit.jpg

Podemos observar o jogo entre o claro e o escuro auxiliando o realce na posição

espacial de Adão e Eva. Eva que se encontra à frente de Adão esta pintada,

praticamente, toda mais clara que Adão, que apresenta um corpo com tom mais escuro.

Esse uso do tom claro, a luminosidade, também é explorada nas próprias

individualidades corporais, observemos Eva (figura 3). Em linhas gerais, o corpo de Eva

esta dividido em duas tonalidades, ou seja, os membros inferiores em tom mais claro e a

parte superior em tom mais escuro, porém observarmos que mesmo nessas partes há o

jogo de claro e escuro para ressaltar, por meio da luminosidade, determinadas partes do

corpo, como é o caso da região do quadril que apresenta uma protuberância que se

destaca do restante.

Fig. 3 – Fruto Proibido (detalhe)

Fonte - http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Forbidden_fruit.jpg

Em conformidade com a indicação de Santos (1991) entendemos que a combinação e a

inter-relação da perspectiva e do jogo claro – escuro fundamenta-se com o objetivo de

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proporcionar um maior realismo à pintura. O realismo é um dos pontos culminantes

desse período, pois caracteriza o retorno a arte da Antiguidade, o entra em

conformidade com a filosofia renascentista. Esse apontamento pode ser observados

quando Martindale (1978, p. 74) se remete ao“[...] estilo monumental das figuras que

caracteriza toda obra de Miguel Ângelo (escultura ou pintura) pode ser em parte

analisado através do emprego que ele fazia dos modelos clássicos e do ‘triunfo da

Antiguidade’ que se processava em Florença nessa época”. A expressão “triunfo da

Antiguidade” é descrita pelo autor como uma alusão ao que aconteceu durante a

segunda metade do século XV com a arte italiana: o olhar dos artistas para a arte antiga

de forma geral, em sua totalidade e não “[...] como uma aglomeração de pormenores

notáveis ou inspiradores. Essa transformação é importante, uma vez que, através de um

esforço mais penoso para imitar a arte clássica, os italianos, tanto os artistas como seus

protetores, se educaram para apreciá-la de maneira mais sensível [...]” (MARTINDALE

1978, p. 40).

As características renascentistas, no que se refere ao retorno à Antiguidade, podem ser

mencionados, especificamente nessa obra de Michelangelo, por meio da observação da

estética corporal da personificação de Adão, Eva e até mesmo da serpente. O corpo forte

de Adão, com musculatura definida nos remete às esculturas clássicas, mas Eva também

apresenta as mesmas características, sua estrutura corporal assemelha-se muito com a

masculina. Ao observarmos as esculturas femininas da Antiguidade2, podemos perceber

que o corpo feminino apresenta uma estrutura forte, comparada aos padrões femininos

da atualidade, contudo sua musculatura não é tão definida como a masculina e a região

da cintura, também, é mais fina que a figura masculina. Porém, Michelangelo traz uma

Eva com uma singela acentuação na cintura que, se comparada com a de Adão, torna-se

quase imperceptível, como podemos observar na figura 4. O mesmo nível de

semelhança pode ser destinado à seus braços, tanto de Eva como de Adão apresentam

uma musculatura com nítida definição, o que não é comum às mulheres. Assim, nossa

leitura, não aproxima a figuração de Eva da representação feminina na antiguidade.

2 Para realizarmos esses apontamentos observamos a escultura de Afrodite, deusa da beleza e do amor.

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Essas observações nos leva a entender que a genialidade dos artistas se estabelece nas

particularidades de como eles conseguem registrar suas especificidades, que são

singulares e pertencem a cada ser humano, mesmo seguindo características das culturas

que estão inseridos e tendo algumas normas dos encomendatários a serem cumpridas.

Com essa reflexão passamos então a segunda fase de nosso estudo.

Fig. 4 – Fruto Proibido (detalhe) Fonte - http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Forbidden_fruit.jpg

Michelangelo e o texto Bíblico

Com relação a descrição do texto bíblico que Michelangelo ilustra no recorte que

estamos tratando, verificamos que em primeiro plano temos a cena em que a serpente

induz Eva a comer o fruto proibido. O texto do Gênesis, não mostra de forma explicita

que Adão não está presente, mas dá indícios de que o diálogo entre a serpente e Eva

aconteceu sem a presença de Adão, esse fato nos levaria a imaginar uma composição

apenas com esses dois personagens. Contudo, Michelangelo não foge a figuração

comum dessa passagem, pois a maioria das ilustrações é composta pelos mesmo

componentes que podemos observar no teto da Capela Sistina, ou seja, Eva, a serpente,

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a árvore e Adão. O que notamos de inquietador é o fato de Adão sem manter nenhum

contato com Eva se lança em direção a árvore, tendo que se apoiar no braço esquerdo e

alongar o direito, aparentemente, ao máximo demonstrando a intenção de alcançar algo,

que nos entendemos que seja o fruto embora sua imagem não apareça nitidamente.

Enquanto Adão tem que fazer esforço para apanhar o fruto Eva, que em posição inferior

à Adão, sem nenhum esforço, somente ergue seu braço esquerdo e recebe o fruto em sua

mão, já a serpente para entregá-lo, desempenha uma movimentação semelhante a de

Adão. A direção em que Adão se estende o leva muito próximo da serpente, podendo

ser entendido seu gesto não de apanhar o fruto, mas sim de alcançar a serpente. Porém

na leitura do texto não há nenhuma alusão de Adão junto a serpente, portanto

preferimos aceitar a hipótese dele apanhar por sua livre vontade o fruto, sendo que esse

fato se opõe a descrição bíblica que diz que Adão recebeu de Eva o fruto: “E, vendo a

mulher que aquela árvore {era} boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore

desejável para dar entendimento, tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu

marido, e {ele} comeu com ela” (GENESIS 3:6).

A nosso ver, essa observação pode ser associada ao fato de que o humanismo cristão

atribuiu ao homem a razão, “Com a natureza também a razão, ainda mais característica

da condição humana, é promovida no século XII [...] O cristianismo esta a caminho da

escolástica”(LE GOFF 2007, p. 118). Entre os escolásticos destacamos Tomás de

Aquino como um de seus maiores representantes, que na solução da questão 83 da

Suma Teológica sobre o livre arbítrio coloca que

O homem tem livre arbítrio; do contrário seriam inúteis os conselhos, as exortações, os preceitos, as proibições, os prêmios e as penas. E isto se evidencia, considerando, que certos seres agem sem discernimento; como a pedra, que cai e, semelhantemente, todos os seres sem conhecimento. [...] O homem, porém, age com discernimento; pois, pela virtude cognoscitiva, discerne que deve evitar ou buscar alguma coisa.

Nessa perspectiva, fazemos uma analogia com a atitude pintada de Adão que nos leva a

entender que ele escolheu seu caminho, pois o homem por meio da razão faz suas

escolhas.

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A serpente que é mencionada no texto bíblico como o animal mais astuto do jardim

pode apresentar na arte significados diferentes, conforme o período em que é

representado. Carr- Gomm (2006, p. 58) elucida que “Desde tempos antigos, acreditava-

se que a cobra tinha grande tenacidade pela vida e possuía poderes medicinais. [...] No

mundo clássico, pensava-se também que a cobra tinha sabedoria, idéia que persiste nos

Evangelios [...]”. Contudo essa sabedoria, no Antigo Testamento, vem associada ao

mal: uma sabedoria diabólica. Podemos verificar a sabedoria da serpente quando

envolve Eva em sua trama para levá-la a provar do fruto, a qual é fundamentada em

plantar na mulher a ambição de possuir todo o conhecimento que a elevaria ao nível de

Deus. Como podemos comprovar no próprio texto do Gênesis (3:1-5)

1Ora, a serpente era mais astuta que todas as alimárias do campo que o SENHOR Deus tinha feito. E esta disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim? 2 E disse a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim comeremos, 3 mas, do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis, para que não morrais.4 Então, a serpente disse à mulher: Certamente não morrereis.5 Porque Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal.

A representação da serpente enrolada na árvore também não é inédita, outros artistas já

haviam pintado essa cena da mesma forma, contudo o que varia nessas representações é

o seu formato, o qual podemos encontrá-la na forma animal e meia humana/meio

animal, a qual também é comum nessas representações como podemos verificar em

Carr-Gomm (2004, p. 58) ao relatar que “Em representações da Tentação, é comum a

serpente ter uma cabeça de mulher, porque Eva, tentada por ela, por sua vez deu o fruto

a Adão, e a mulher é, assim, uma tentadora”. Na representação de Michelangelo, a

serpente não tem apenas a cabeça de mulher, mas sim todo o tronco exibindo o seio

esquerdo.

A cena que se encontra no segundo plano representa “A Queda de Adão e Eva” de

acordo com o Gênesis quando o casal comeu o fruto perceberam que estavam nus e

sentiram vergonha, como podemos verificar no versículo 7 do capitulo 3 “Então, foram

abertos os olhos de ambos, e conheceram que {estavam} nus; e coseram folhas de

figueira, e fizeram para si aventais. {ou cintas}”. Notamos que Michelangelo,

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diferentemente da inscrição bíblica, não cobriu a genitália dos pecadores com as folhas

de figueira e nem com roupas de peles, como verificamos no versículo 21 do mesmo

capitulo: “E fez o SENHOR Deus a Adão e a sua mulher túnicas de peles e os vestiu”.

Para Carr-Gomm (2006) o nu, na arte, pode ter diferentes significados, como a força, o

deleite, a fecundidade ou a vergonha. A autora explica que na Grécia Antiga as roupas

eram desnecessárias, pois a humanidade estava em harmonia com a natureza, contudo

em outros contextos pode significar a pobreza, a verdade e ainda estar vulnerável. No

Antigo Testamento, Carr- Gomm (2006, p. 167), coloca que o nu aparece relacionado

ao constrangimento, esse pensamento se estende ao exemplo da “[...] nudez ou quase-

nudez de Cristo nas cenas da Flagelação e da Crucificação, ou numa Pietà, o que

apresenta como indefeso e, assim, intensifica o sentido do sofrimento”

Nessa mesma cena observamos Adão e Eva sendo expulsos por um anjo, o qual usa uma

espada para ameaçá-los, a qual chega a tocar o pescoço de Adão que se mostra

caminhando em direção contraria com um gesto de proteção. Eva, com o rosto quase

desfigurado, aparentando dor e sofrimento, esta encolhida procurando se proteger atrás

de Adão, o que nos remete ao conceito da fragilidade feminina que deve ser protegida

pela força masculina, sendo esse pensamento proveniente de um dos castigos aplicado

por Deus à mulher, a submissão: “E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a tua dor

e a tua conceição; com dor terás filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te

dominará” (GÊNESIS 3:16).

Com relação a representação do anjo, esse é classificado, em Gênesis (3:24, como um

querubim: “E, havendo lançado fora o homem, pôs querubins ao oriente do jardim do

Éden e uma espada inflamada que andava ao redor, para guardar o caminho da árvore da

vida”. De acordo com Carr-Gomm (2006, p. 21), seguindo a teologia cristã, os anjos são

organizados em três grupos

Na primeira hierarquia, os Serafins circundam o trono de Deus e são geralmente de cor vermelha; os Querubins conhecem Deus e a ele adoram, sendo representados na cor de ouro ou azul; os Tronos, usando vestes de juizes, carregam seu assento e representam a justiça divina, que conferem à segunda hierarquia.

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A palavra querubim, no original hebraico querub, tem o sentido de guardar, cobrir,

sendo esse sentido relacionado diretamente com a passagem do Gênesis e a

representação de Michelangelo. Contudo, o Querubim de Michelangelo se opõe a

descrição de Carr-Gomm com relação a cor de sua representação, devemos considerar a

distorção da tonalidade do original pintado na Capela Sistina, porém a imagem aqui

usada traz uma tonalidade avermelhada, a qual seria a representação do Serafim.

Outra questão que pontuamos é em relação a composição geral do cenário, ou seja, toda

a narrativa se passa no Jardim do Éden, o qual é composto por vegetação e animais, mas

Michelangelo apresenta um cenário que se compõe por apenas uma árvore, árvore da

ciência do bem e do mal, ao seu lado tem apenas um pequeno tronco seco que poderia

ser entendido como a árvore da vida, mas está morta. Dos animais que habitavam o

jardim, a única representação é a serpente e nenhum mais.

De acordo com as observações feitas pudemos verificar que Michelangelo mantém sua

criação em consonância com o texto bíblico, os pequenos distanciamentos que aqui

foram mencionados não são significativos, a nosso ver, para que não se entenda a

mensagem contida no Gênesis.

Considerações Finais

O estudo das imagens como um registro histórico pode ser um material riquíssimo,

contudo demanda muita dedicação para que equívocos não sejam cometidos, pois a

imagem requer uma forma de leitura especifica, assim como qualquer linguagem

especifica. Para nos familiarizarmos como essa nova leitura precisamos estudar e

exercitar. Assim como as palavras têm vários significados, as imagens também,

portanto, precisamos entender todo o contexto em que a imagem, ou o texto, foi criado

para conseguirmos nos aproximar do real sentido da criação.

Acreditamos que a observação da obra de Michelangelo, bem como o contato com

qualquer obra de arte, contribui para o nosso entendimento enquanto ser humano em sua

totalidade. No caso específico da obra abordada, ressaltamos a sua capacidade de reunir

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toda uma bagagem histórica da arte e da religião, por meio de uma criação que ao

mesmo tempo monumental, mas singela e sensível.

Assim, a realização desse estudo contribuiu para exercitarmos nossa capacidade de

observação de imagem e de relacionar com informações provenientes de fontes escritas.

Contudo as questões aqui levantadas ainda não passam de possibilidades de

interpretação que necessitam de um estudo mais profundo.

REFERÊNCIAS

BAXANDALLL, M. Padrões de intenção a explicação histórica dos quadros. São Paulo: Cia das Letras, 2006.

BURKE. P. Testemunha ocular: historia e imagem. São Paulo: Edusc, 2004.

CARR-GOMM, S. Dicionário de símbolos na arte: guia ilustrado da pintura e da escultura ocidentais. São Paulo: Edusc, 2004.

LE GOFF, J. As raízes medievais da Europa. Rio de janeiro: Vozes, 2007

GÊNESIS. Velho Testamento. Disponível em http://www.bibliaonline.com.br/rc/gn/3 . Acessado em 18/01/2009

SANTOS, M. História da arte. 3ªed. São Paulo: Ática, 1991.

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teologia. Trad. De Alexandre Correia. Disponível em http://sumateologica.permanencia.org.br/suma.htm. Acessado em 18/01/2009