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ano: 2012 . nr 18 . mês: janeiro . director: António Serzedelo . preço: 0,01 € www.jornalosul.co.nr 01 . 12 NR 18 No Centro do Furacão - Editorial Submergidos pela azáfama e o imediatis- mo dos nossos dias, a fúria das soluções fáceis para ontem, prometidas todos os dias pelas pessoas ligadas ao poder, parece que estamos dispostos a aceitar o empobrecimento generalizado das classes médias, num nivelamento típico do pão que o diabo amassou. Esse empobreci- mento radical, fruto da pobreza material deste país, não provém da falta de matérias-primas, tão pouco da falta de produção de bens transaccionáveis. Aliás, há alguém que realmente acred- ite nesse problema? No entanto, o país está miserável. Todos nós sentimos isso profundamente. A nossa pobreza é a nossa amnésia. É o que nos torna indigentes e incapazes de compreender o devir dos tempos. Sem coordenadas, escravos do imediato, servos do já, manipuláveis por todo e qualquer um que jure suprir a nossa angús- tia originada na perda. Estamos à mercê de boys de Massamá ou do Canadá, com os quais os próprios militantes do partido governante conflituam. A mediocridade substitui fatalmente o mérito, premiando com o despedimento casos incontáveis de assaz frequentes, per- mitindo-nos destacar, por particularmente simbólicos, os do director do Museu Nacional de Arqueologia e do director do CCB. Portugal vive hoje a experiência da dureza da sua perifização. Portugal é mátria, terra de génios e poetas, terra de gentes boas, que preferem amar a guerrear, terra de aventureiros e de humildes, é seiva que nos corre no sangue espesso de novecentos anos de memória colectiva. Guimarães capital europeia da cultura, que mais não seja, relembra-nos isso. Porém, somos também um povo de iconoclastas. Talvez o sejamos ainda por longos tempos. O nosso misticismo precisa de uma boa dose de materialidade para acreditar. Dentro das nossas preciosas referências de adoradores de imagens, juntámos, à nossa genuína devoção a Nossa Senhora de Fátima e a Santo António, líderes políticos Armani. As nos- sas gentes fascinam-se pelo que brilha, daí só darem depois pela falta de conteúdo. Gerações virão que não terão esta aceitação pelos nos- sos erros colectivos, mas como se dará uma nova energia e alegria a um país velho e acossado, que só quer hibernar, ficar quieto?! No centro do furacão em que Portugal se tornou, continuamos a fazer as coisas simples. Com paciência dedicamo-nos a reconstituir ao modo antigo, sem relegar por inútil o muito que se tem vindo a desco- brir, integrando o melhor que se conquistou nessa longa tecitura. Por isso, realmente fundamental, é saber perceber o essencial, sendo que tudo o mais é acessório. Três são as chagas culturais e sociais: pobreza, discriminação e autoritarismo. É a partir daqui que se podem e devem construir as soluções. Nós, com o nosso modesto contributo, continuaremos a fazer a nossa parte. Leonardo da Silva e José Luís Neto Direcção da Prima Folia - Cooperativa Cultural, CRL Ilustração Dinis Carrilho

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Jornal cultural e de debates

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ano: 2012 . nr 18 . mês: janeiro . director: António Serzedelo . preço: 0,01 €

www.jornalosul.co.nr

01.12 NR

18

No Centro do Furacão - Editorial

Submergidos pela azáfama e o imediatis-mo dos nossos dias, a fúria das soluções fáceis para ontem, prometidas todos os dias pelas pessoas ligadas ao poder, parece que estamos dispostos a aceitar o empobrecimento generalizado das classes médias, num nivelamento típico do pão que o diabo amassou. Esse empobreci-mento radical, fruto da pobreza material deste país, não provém da falta de matérias-primas, tão pouco da falta de produção de bens transaccionáveis. Aliás, há alguém que realmente acred-ite nesse problema? No entanto, o país está miserável. Todos nós sentimos isso profundamente. A nossa pobreza é a nossa amnésia. É o que nos torna indigentes e incapazes de compreender o devir dos tempos. Sem coordenadas, escravos do imediato, servos do já, manipuláveis por todo e qualquer um que jure suprir a nossa angús-tia originada na perda. Estamos à mercê de boys de Massamá ou do Canadá, com os quais os próprios militantes do partido governante conflituam. A mediocridade substitui fatalmente o mérito, premiando com o despedimento casos incontáveis de assaz frequentes, per-mitindo-nos destacar, por particularmente simbólicos, os do director do Museu Nacional de Arqueologia e do director do CCB. Portugal vive hoje a experiência da dureza da sua perifização.Portugal é mátria, terra de génios e poetas, terra de gentes boas, que preferem amar a guerrear, terra de aventureiros e de humildes,

é seiva que nos corre no sangue espesso de novecentos anos de memória colectiva. Guimarães capital europeia da cultura, que mais não seja, relembra-nos isso. Porém,

somos também um povo de iconoclastas. Talvez o sejamos ainda por longos tempos. O

nosso misticismo precisa de uma boa dose de materialidade para acreditar. Dentro das nossas

preciosas referências de adoradores de imagens, juntámos, à nossa genuína devoção a Nossa Senhora

de Fátima e a Santo António, líderes políticos Armani. As nos-sas gentes fascinam-se pelo que brilha, daí só darem depois pela falta de conteúdo. Gerações virão que não terão esta aceitação pelos nos-sos erros colectivos, mas como se dará uma nova energia e alegria a um país velho e acossado, que só quer hibernar, ficar quieto?!No centro do furacão em que Portugal se tornou, continuamos a fazer as coisas simples. Com paciência dedicamo-nos a reconstituir ao modo antigo, sem relegar por inútil o muito que se tem vindo a desco-brir, integrando o melhor que se conquistou nessa longa tecitura. Por isso, realmente fundamental, é saber perceber o essencial, sendo que tudo o mais é acessório. Três são as chagas culturais e sociais: pobreza, discriminação e autoritarismo. É a partir daqui que se podem e devem construir as soluções. Nós, com o nosso modesto contributo, continuaremos a fazer a nossa parte.

Leonardo da Silva e José Luís NetoDirecção da Prima Folia - Cooperativa Cultural, CRL

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Auditoria à Dívida Pública

Nos cafés, nas rodas de amigos, nos cabeleireiros, todos falamos da dívida pública do Estado Português e das desgraças que nos trouxe ul-timamente.

Muitos, se não quase todos, andam à procura de bodes expiatórios. Para uns, foi o último governo socialista. Para outros, são os socialistas em geral, enquanto para outros ainda, tudo começa com Cavaco Silva. Temos para todos os gostos, de acordo com as cores políticas de cada um.

Em geral, diz-se que o tsunami financeiro começou em 2007, com a falência do banco Lehman Brothers.

Essa bomba atómica financeira desencadeou inúmeros estragos na economia americana e, por arrasto, dado que estamos num mundo glo-balizado, na Europa, na Ásia e por aí fora. Os políticos em geral (ou, pelo menos, os europeus) meteram a cabeça na areia e teimaram em produzir discursos muito apazigua-dores Aquilo, diziam, não era nada connosco.

Enganaram-se redondamente e todos eles estão agora, de uma for-ma ou de outra, a serem corridos do poder para serem substituídos pelas virginais oposições, que também nada previram e só tiveram gestos populistas para “caça” ao votos.

Na verdade, o caso Lehman Bro-thers é, em si mesmo, já o resultado de uma política iniciada muito antes de empréstimos a preços baixos, para iludir as classes trabalhadoras, que poderiam ter acesso desta forma a bens de consumo desejados, mas que os seus ordenados, sempre em

degradação, nunca permitiriam al-cançar de outra forma. Foram as cé-lebres bolhas imobiliárias e o crédito em operações tipo D. Branca, que foi considerado lixo, mas entretanto nos lixou a todos.

Foi também o momento em que os Estados acorreram em favor da banca, injectando-lhe dinheiro a jorros, socializando os prejuízos

que provocava, mas não tocando nos lucros que auferia.

A consequência foi uma enorme degrada-ção das contas públicas (pois resgatar bancos é muito caro). Caíram as receitas e criou-se uma espiral de despe-sas públicas a subir em flecha, devido à reces-são, e de desemprego.

Cada país sofreu isto à sua maneira, mas os mais frágeis foram

os primeiros a ressentir-se devido ao endividamento público e privado.

Foi o momento em que aquilo a que se chama hoje os mercados financeiros, ou a alta finança (ou, para melhor tipificar, os mais ri-cos dos ricos) entraram em cena, especulando sem vergonha com as dívidas públicas dos países, pois perceberam que este era um mo-mento em que podiam apertá-los, modificar as regras do jogo e do contrato democrático e, ainda por cima, ganhar enormes fortunas à custa do empobrecimento de povos inteiros.

E é neste momento que entram em cena outros actores, pretenden-do benevolamente “salvar os países”: o BCE, o FEEF e sobretudo o FMI, com “provas” dadas noutros países na década de 80-90.

A receita é simples: austeridade! Aprovada a austeridade, começam as intervenções no mercado de tra-balho, o desemprego, a destruição do Estado Social porque é caro e, depois, em consequência, a reces-são, o que leva a uma depressão dos

mercados. As pessoas não compram, como se vê na Europa e em Portugal.

Na U.E., a regra para a dívida pública determinava que ela não devia ultrapassar os 60 % do PIB. Na verdade, a regra não era cumprida, e a Alemanha e a França ultrapas-saram algumas vezes estes limites, sem que nada lhes sucedesse.

Em Portugal, quando a “troika” cá chegou a nossa dívida pública era superior a 97% do PIB. Em 2013, quando a “troika” se for, a nossa divida pública com o remédio mi-nistrado deve situar-se acima dos 106% do PIB. Ai se vai constatar que a dívida publica é insustentável e que tudo quanto se fez serviu apenas para agravar a nossa situação.

É aqui que entra em cena a ne-cessidade das auditorias às contas públicas. Em princípio, deviam ser os Estados a fazê-las, porque pos-suem mais meios para isso, para saber quanto se gastou, como se gastou e onde se gastou.

Mas na verdade não o fazem, pois isso ia pôr a nu os enormes erros que cometeram, muitas vezes para sustentar políticas que só beneficiaram uma minoria, em pre-juízo da res publica e de todos. Veja-se o caso do BPN. Houve contu-do países em que isso se fez por iniciativa do poder, como aconte-ceu no Brasil com Lula da Silva e no Equador com Rafael Correa, ainda que com forte oposição das forças conservadoras, nada interes-sadas em que lhes desmascarem as negociatas.

Na Europa temos ainda o exem-plo da Islândia, propositadamente pouco falada, pois não só fez uma auditoria à sua dívida como se re-cusou a pagar a chamada “dívida odiosa” de certos bancos, que fi-caram apeados, com graves pre-juízos para a Inglaterra e Holanda. Partiram do principio de que se, no tempo das vacas gordas os lucros

dos bancos não tinham beneficiado os cidadãos, não havia razão para que, no tempo das vacas magras, os cidadãos pagassem os prejuízos dos mesmos bancos.

No caso português, a audito-ria da iniciativa dos cidadãos vai avaliar a complexidade do sistema da dívida, calcular a sua dimensão, ver que parte da dívida é ilegal, ile-gítima ou insustentável (a dívida odiosa) e o que deve ser pago com outros prazos: aquilo a que cha-

mamos reestruturação. A dívida é para pagar, mas noutros termos, sabendo-se que a dí-vida pública é apenas um, entre muitos dos compromissos do nosso país. O Estado tem dívidas para com os credores, mas tam-bém tem deveres para com os cidadãos, quer

os actuais, quer os das gerações futuras, que não podem ver o seu futuro comprometido. Seria imoral.

A iniciativa para uma Auditoria Cidadã da Dívida Pública adopta os seguintes princípios:Democraticidade Pois todos podem fiscalizar o an-damento da auditoria.Natureza participativaPorque a cidadania está no centro do processo.TransparênciaPois serão prestadas contas públicas

de todas as operações e decisões.Controlo pelos CidadãosPois estes têm parte activa na gestão do processo.IndependênciaPorque é levada a cabo por uma comissão de pessoas independentes dos poderes nacionais e interna-cionais.

Tudo isto exige enorme esfor-ço, demora tempo e requer a cola-boração de pessoas tecnicamente qualificadas, capazes de apresentar ao público propostas plausíveis e exequíveis.

À partida temos de vencer um obstáculo: a fraca mobilização da sociedade portuguesa, que é muito pouco interventiva. É preciso mo-bilizar as pessoas. Sem isso, esta iniciativa não faz sentido.

Por outro lado, é preciso contar com a colaboração internacional de instâncias que já têm sobre esta questão larga experiência, como é o caso dos subscritores da Declaração de Atenas, e da Aliança Europeia de Iniciativas para Auditoria Cidadã.

O primeiro passo a dar, porém, tem de ser nosso.

António SerzedeloEditor do programa de radio

Vidas Alternativas [email protected])

AuditoriA à dívidA públicA, pArA que o nosso futuro não fique compremetido

Activismos

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O Estado tem dívidas para com os credores, mas também tem deveres para com os cidadãos, quer os actuais, quer os das gerações futuras

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A Comuna de Paris, um marco da emancipação social. 2 de Setembro 1870: o Imperador Napoleão III, imprudentemen-te envolve-se em guerra con-tra a Prússia e capitula em Se-dan. A Republica é proclamada no Hôtel de Ville (Câmara). Os prussianos cercam a capital por longos meses, até ao armistício a 28 de Janeiro de 1871. Na As-sembleia Nacional, eleita a 8 de Fevereiro, a maioria rural, con-servadora, procura negociar a paz, mas Paris que se defendeu valentemente, não se quer ren-der. A situação é explosiva. Para evitar pressões populares na

capital, a Assembleia Nacional foge para Versailles.

Princípio de Março, Paris liberta-se a si própria. Um in-cidente precipita os aconteci-mentos. Adolf Thiers chefe do poder executivo da República, ordena a retirada dos canhões que se encontram em Mont-martre. A população opõe-se, uma parte da guarnição con-fraterniza com ela e dois ge-nerais são executados. Thiers decide então que o governo deixará Paris, instalando-se em Versailles. Nessa noite o comi-té central da Guarda Nacional instala-se no Hôtel de Ville. A eleição da Comuna efectua-se a 26 de Março e os seus mem-bros instalam-se no Hotel de Ville perante uma multidão de dezenas de milhares de pesso-

as. Em 2 meses numerosos de-cretos são promulgados. Uns de efeito imediato. Liquidação dos contratos de aluguer, abo-lição do trabalho nocturno, in-terdição da retenção sobre o salário. Outros de efeito futuro: separação da Igreja e do Estado; instrução laica, gratuita e obri-gatória; organização do traba-lho. Outras, emblemática, são adoptadas, como a destruição do símbolo imperialista da Co-luna Vendôme. Nenhum mem-bro da Comuna aufere salário superior ao de um operário es-pecializado e pode ser destituí-do a qualquer momento. Entre os 83 membros eleitos havia 5 pequenos patrões, 14 empre-gados, 33 operários, 12 jorna-listas, artistas e membros de profissões liberais também. Pa-

ris tinha 1.200.000 habitantes e 300.000 eram o verdadeiro sustentáculo do movimento, os “commmunards”.

Desde o início, conforme a tradição revolucionária, a po-pulação ergue inúmeras barri-cadas.

Face á não criação de mais comunas nas grandes restan-tes cidades, os versalheses, apoiados pelos prussianos, que cercam Paris, atacam com 60.000 homens, sob o coman-do de Mac-Mahon e ordens de Thiers. A barbárie e a vingança foram terríveis. A “semana san-grenta” de 21 a 28 de Maio foi a mais cruel, com o massacre de 20.000 pessoas. A luta na de-fesa das barricadas dos bairros foi tremenda, mas vencida. Aos inúmeros mortos e feridos, te-

rão de juntar-se multidões de prisioneiros seviciados, muitas vítimas de execução sumá-ria e 4.500 desterrados para o campo de concentração da Caledónia. Como Louise Mi-chel, jornalista anarquista, re-gressada com muitos outros na amnistia de 1880, mantendo o espírito rebelde até ao fim em 1905. O seu funeral contou com 200.000 pessoas e ainda hoje a Comuna persiste na memória do povo. Actualmente decorre uma exposição sobre essa ges-ta, no histórico Hôtel de Ville, onde diariamente afluem mul-tidões.

José Luís FelixEconomista

1871, PARIS CAPITAL INSURGIDA

A Comuna

fichA tÉcnicA:propriedade e editor: prima folia - cooperativa cultural, cRl . morada: Rua fran paxeco nr 178, 2900 setúbal . telefone: 963683791/969791335 . nif: 508254418 . director: António serzedelo . subdirector: José luís neto consultores especiais: fernando dacosta e Raul tavares . conselho editorial: catarina marcelino, daniela silva, hugo silva, leonardo da silva, maria madalena fialho, paulo cardoso . director de Arte: dinis carrilho . consultor Artístico: João Raminhos . morada da redacção: Rua fran pacheco n.º 176 1.º andar 2900-374 setúbal . e-mail: [email protected] . Registo eRc: 125830 . depósito legal: 305788/10 . periodicidade: mensal . tiragem: 45.000 exemplares . impressão: empresa gráfica funchalense, sA – Rua capela nossa senhora conceição, 50 – moralena 2715-029 – pêro pinheiro

Em 6 meses e pouco de Governo PSD/CDS temos de lhes dar valor por dois motivos: primeiro, têm feito um esforço enorme para deteriorar a vida dos idosos, que já tinham uma vida bastante complicada, por outro lado tentam ver-se livres dos jovens incentivando à emigração.

Começando pelos jovens, onde me incluo, o Governo tem realiza-do um ataque a duas velocidades, por um lado aplicam medidas que impedem a conti-nuação de milhares de jovens nos seus cursos, por outro lado cortam cada vez mais nos di-reitos laborais preca-riezando as condições laborais, tornando os jovens que procuram o seu primeiro emprego num precário crónico.

Analisando as políticas referen-tes à educação, assistimos à des-truição do futuro e de sonhos de milhares de jovens. Neste preciso momento, assistimos ao contínuo aumento das propinas que já ultra-passam os mil euros, em contra-partida a análise dos processos de acção social arrastam-se no tem-po, levando vários alunos a ter que abandonar o curso por falta de con-dições monetárias e por fim, como cereja no topo do bolo, o governo teve a brilhante ideia de eliminar a comparticipação do Estado nos passes sub18 e sub23, afirmando demagogicamente que só quem tem

dificuldades económicas deve ter direito a este apoio (não esquecendo claro que para este governo uma pessoa que receba acima de 600€ pode ser considerado um pequeno milionário). Ora, analisando mais concretamente e tendo em conta a situação de milhares de jovens que partem do distrito de Setúbal para estudarem em Lisboa esta situação

torna-se algo comple-tamente insustentável a curto prazo. Só em transportes podem vir a pagar cerca de 170 euros acrescentando propinas e gastos ne-cessários deparamo-nos com uma situação catastrófica.

Em relação aos jovens que trabalham ou que procuram o seu primeiro empre-

go, o ataque não tem sido menor. Assistimos ao aumento e manu-tenção da precariedade como regra no universo laboral, os direitos têm sido retirados ou diminuídos de uma forma nunca antes vista em demo-cracia. No distrito, assim como no país, assistimos a uma necessidade de sair da sua zona de habitação em busca de melhores condições de vida, sendo que esta situação se torna ainda mais surreal quando ligamos a TV ou lemos o jornal e percebemos que o próprio governo incentiva a que jovens trabalhado-res saiam da sua “zona de conforto” em busca de melhores condições.

Ora esta situação não passa de um atestado de incompetência por parte do governo, que não sendo capaz de dar condições aos seus cidadãos os empurra para uma constante in-certeza nas suas vidas.

No outro extremo, deparamo-nos com os idosos, outro grupo etário que tem sofrido um ataque selvagem destas medidas de auste-ridade. Assim como os jovens vão sofrer um corte nos transportes, algo inconcebível visto que retiram a mobilidade aos idosos aumen-

tando o isolamento que já assola tantos sem “ajudas” destas. Como isso não chegasse as politicas neoli-berais deste governo ataca o sistema nacional de saúde, aumentando as taxas moderadoras algo que para a população geral já é difícil de pa-gar no caso de idosos com pensões miseráveis e com necessidade de cuidados médicos ainda mais in-sustentável se torna. A acrescentar a isto, vêem as suas pensões serem diminuídas empurrando muitos para baixo do limiar da pobreza.

Isto tudo em prole do cresci-mento do país claro está. A questão que se coloca, e que deve ser de-batida amplamente é: como é que um país, que não consegue dar um nível de vida de qualidade aos seus reformados nem manter os seus jovens a trabalhar com condições laborais dignas pode crescer?

João Pedro SantosEstudante Universitário

Este País não é para velhos... muito menos para novos

“ milhares de jovens que partem do distrito de Setúbal para estudarem em Lisboa (...) Só em transportes podem vir a pagar cerca de 170 euros (...)

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"O Século XX Português"o século XX português: do ul-

timato às incertezas do presente

“O Século XX Português” (por José Manuel Sardica, Textos Edi-tores, 2011) é uma apresentação para públicos estrangeiros do pa-norama da mais recente evolução histórica de Portugal. Não tem por objectivo uma interpretação radicalmente nova, é uma síntese descritiva e analítica, como es-creve o autor, dos caminhos po-líticos, sociais, económicos e até culturais seguidos por Portugal desde 1900 até ao presente. Obra portanto indicada para qualquer não iniciado.

Nesse período de tempo, Por-tugal conheceu a monarquia, a república, um sistema ditatorial e um regime democrático igual àqueles que existem na União Europeia; viveu o tempo do im-pério africano e orientou-se para um destino europeu. Um tempo, como se compreenderá, de intensa vibração, como anota o próprio autor, já que comportou: 4 regi-mes políticos diferentes, 4 consti-tuições, 4 ditaduras, o assassinato de 2 chefes de Estado (um rei em 1908 e um presidente em 1918), de um primeiro-ministro (em 1921) e de um antigo candidato presi-dencial (em 1965) – o século XX também pode ser encarado como um período crucial da história na-cional pelas transformações que se têm vindo a operar na existên-cia colectiva e individual. O que nos remete, antes de mais para a crise e falência da monarquia constitucional.

Nos alvores do século XX, a população portuguesa ascendia a 5,5 milhões de habitantes, mais de 84 % viviam em zonas rurais. A esperança de vida era de apro-ximadamente 40 anos, a agricul-tura ocupava 62 % da população activa, a indústria 19 %, o mesmo número que o sector dos serviços. O analfabetismo rondava os 75 %. O país tinha um desempenho melhor e mais rico em 1900 do que em 1850. Vivam-se tempos confusos, no entanto, se bem que Portugal estivesse a experimentar o forte impacto da segunda revo-lução industrial, mantinham-se problemas estruturais desde a falta de solidez política, a que a crise do Ultimato não é alheia, agravara-se a crise financeira, ambas conjugadas tornaram complexos os problemas sociais, morais e culturais. O rotativismo político atingira a exaustão, as dissoluções parlamentares se-guiam-se umas às outras; o aperto financeiro saldou-se em menor investimento público este desen-cadeou desemprego e aumento do custo de vida; os ideais republica-

nos pareciam ser o substituto do sentimento generalizado de pes-simismo, frustração e decadên-cia. D. Carlos procura uma saída entregando o Gover-no a João Franco, tal era o descrédito que tinha atingido os dois líderes partidários do rotativismo, Hintze Ribeiro e José Lucia-no de Castro. Franco governou cercado de inimigos e depois de uma curta ditadura administrativa o assassinato do rei trouxe-lhe o exílio. D. Manuel II não tinha preparação para os desafios que enfrentava a monarquia em der-risão. O regime caiu praticamente desamparado entre 3 e 5 de Ou-tubro, dia em que foi proclamada na Câmara Municipal de Lisboa a República.

Ao contrário do que durante muito tempo se fez supor, a base de apoio da República era muito estreita, apesar do Partido Re-publicano ter dado provas de ser dinâmico e trazer um sentido para

a política de modernidade, não escondendo uma forte atracção pelo cientismo e pelo positivismo. Prometia direitos sociais, mais

instrução pública, emancipação femini-na, promoção do Im-pério africano. A sua condução, sobretudo com as populações do interior, revelaram-se um desastre, graças a um anticlericalismo primário, ergueram a

questão religiosa a uma priorida-de insensata, criando muito mais inimigos do que amigos. A forma como se deu o envolvimento na I Guerra Mundial trouxe novas ondas de descontentamento, isto enquanto os problemas sociais e económicos conheciam agrava-mento. Em 28 de Maio de 1926 deu-se uma nova queda de regi-me, mais uma vez se resistência visível.

A ditadura militar marou o fim do liberalismo português e a ascensão de Salazar veio per-mitir um regime nacionalista,

ditatorial, com uma ampla base tradicionalista e conservadora. O autor ilustra com rigor o que foi o projecto ideológico do salaza-rismo, como ele se consolidou à margem do fascismo da época. Em 1945, no termo da II Guerra, o prestígio de Salazar estava no auge. Nesse exacto momento, começaram os problemas que levaram ao progressivo desgaste do regime: o fenómeno universal da descolonização, a necessida-de de neutralizar as instituições nacionalistas de pendor mais agressivo, a emergência de no-vas formas de oposição, foi um processo que desembocou nas eleições presidenciais em que o general Humberto Delgado apavorou o regime. Enquanto o país entrava na senda do desen-volvimento, uma guerra colonial devastadora foi gangrenando as energias sociais do regime, a sua base de apoio erodiu-se, prolife-raram crises com antigos aliados, desde a Igreja Católica às Forças Armadas. Em 25 de Abril, o regime baqueou, incapaz de encontrar

solução para uma guerra que so-bretudo na Guiné e no norte de Moçambique atingira proporções devastadoras.

José Manuel Sardica explica com particular acerto na concisão como evoluiu a revolução de Abril, quais os dados mais significativos da turbulência revolucionária e como se desenrolou o período de normalização democrática, aprovada a Constituição de 1976, ultrapassadas que foram as vicis-situdes até ao processo de adesão à União Europeia. O país mudara profundamente. No final da pri-meira década do século XXI a po-pulação duplicara, agora 85 % dos portugueses vivem em cidades, cerca de 45 % da população vive concentrada em 4 % do território, mudou profundamente a estrutu-ra demográfica, do emprego, do ensino e da cultura. As grandes sombras negras são a recessão e uma crise que faz despertar o desânimo e a perda de convicção no modelo do progresso, Portu-gal está a empobrecer, a despeito dos indicadores de saúde, protec-ção social e cultura. O autor cita Maria Filomena Mónica: “O mais importante não foi tanto o senti-do da evolução, partilhada com outros países, mas o ritmo a que tudo aconteceu. Com a provável excepção da Espanha, nenhum outro país europeu conseguiu liquidar o campesinato, alterar a taxa de fecundidade, mudar os padrões de consumo, diminuir a mortalidade infantil, instaurar o sufrágio universal, transformar as relações Estado-Igreja, criar uma classe média, abrir as fronteiras a pessoas e bens, escolarizar a população, liquidar um império à velocidade a que o fez Portu-gal”. Portugal cresceu muito no século XX, os portugueses dão-se bem com a democracia mas uma onda de fatalismo e de ne-gativismo atravessa a sociedade portuguesa. Afinal, voltamos a perder o comboio, a estima co-lectiva evapora-se. Há, porém, um capital que poderá ser o grande trunfo dos próximos tempos: as gerações mais jovens aprende-ram que o século XX foi feito de acidentes, contrariedades, espe-ranças, saltos em frente e recuos. E estas novas gerações possuem muito mais cultura e dão-se bem com o europeísmo.

Esta viagem de 100 anos da história portuguesa merece ser lida e discutida.

Beja SantosDocente Universitário

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O Portugal que as gerações nascidas até à década de 1960 co-nheceram, encontra-se em vias de desaparecimento, transfigurado em mais um das inúmeras regiões da Europa, governado por técnicos medíocres que, lentamente, em nome da segurança internacional, da carência de recursos naturais, de limitações orçamentais ou outra justificação, preparam uma futura ditadura tecnocrática comandada a partir de Bruxelas, capital da Europa do dinheiro e do poder.

No futuro, porventura no virar deste para o próximo século, Portu-gal transformar-se-á em mais uma das inúmeras regiões singulares da Europa, culturalmente tão impor-tante e exótico como a Alsácia ou a Andaluzia, guardando dentro de si, nos seus museus regionais ou nacio-nais, o retrato de uma velha cultura de 800 anos morta às mãos de um grupo de engenheiros e economistas sem espírito histórico, de uma tec-nocracia sem rosto nem alma, para quem conta só, primeiro, a contabi-lidade das estatísticas, e, segundo, o sentido europeu das estatísticas. A História, a Cultura, a Identida-de, o Espírito, o sentido individual e colectivo da Transcendência, a educação para a partilha e a espi-ritualidade, são encarados, por esta mentalidade técnica, como meras cócegas da alma, jarrões da China sempre agradáveis de ostentar no hall de entrada da vivenda subur-bana. No dia em que o português for igual a qualquer europeu na educação, no trabalho, nas férias, nas conver-sas, nos divertimentos, o arcaico Portugal que ainda conhecemos, mais supersticioso (Fá-tima) e menos devoto, mais generoso e menos interesseiro, mais al-truísta e menos egoísta, mais emotivo e menos racionalista, mais co-munitário e menos calculista, mais saudoso e menos modernista, mais lírico e menos cientificista, este Portugal – dizíamos - terá findado, dando origem a um novo Portugal

onde os Bancos e as Companhias de Seguros substituirão as Miseri-córdias - e o Estado, mais do que

garantia da existência livre do cidadão, ter-se-á tornado no su-perior controlador da existência individual, um verdadeiro inimigo a abater.

Momento máximo da cultura portuguesa de Quinhentos e Seis-centos, Os Lusíadas marca igualmente a passagem para o mo-mento da decadência – em 1578, 1580 e 1581,

Portugal, país máximo, torna-se na-ção mísera, desabando das nuvens que o Império o fizera sonhar. Ca-mões, de facto, merece ser o símbolo do povo português – homem azara-

do, poeta pobre, brigão, mulherengo, condenado pelo Estado, perseguido pela Igreja, nunca terá frequentado a Universidade (“saber de experiên-cia feito”), migrante do Império, ora aqui, ora acolá, a sua vida, como a de Fernão Mendes Pinto, reproduz a vida dos portugueses que nunca beijaram a sombra do Estado, adversa às elites rei-toras do Poder. É este Portugal que ora está agonizando, o Portugal das cruzadas contra os mouros, das canções da Terra de Santa Maria, da busca sem quê nem porquê da Ilha Bem-Aventurada de São Brandão, catorze monges abandonados no mar com os olhos fitos no Paraíso, o Portugal moral-

mente puro do Leal Conselheiro, de D. Duarte, o Portugal das Missões e dos missionários, o Portugal lí-rico das Imagens da Vida Cristã,

de Frei Heitor Pinto, o Portugal saudoso de Menina e Moça, de Bernardim, o Portugal heróico dos conjura-dos de 1640, o Por-tugal Quinto Império do Mundo, de Vieira, o Portugal devoto de frei Agostinho da Cruz, o Portugal honesto de Reflexões sobre a Vai-dade dos Homens, de

Matias Aires, o Portugal sofredor e romântico de valores permanentes de D. Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna, o Portugal-Liberdade de Almeida Garrett, o Portugal íntegro de Alexandre Herculano, o Portu-

gal santo de Antero de Quental, o Portugal simples de Guerra de Junqueiro, o Portugal visionário de Fernando Pessoa, o Portugal louco do Gabiru de Raul Brandão, o Portugal de névoas encantadas de Teixeira de Pascoaes, o Portugal do fado doloroso de José Régio, o Portugal-corvo “Vicente” altivo e resistente de Miguel Torga

Venceram os juízes-desembar-gadores de Gil Vicente, os cortesãos endinheirados de Sá de Miranda, os “hipócritas” de frei Bernardo de Brito, os velhos do Restelo de Camões, os cónegos da Patriarcal, de colar ao peito de sete voltas de ouro, os inquisidores dos Estaus, olhar implacável, cego de verdade resplandecente, queimando homens como hoje os ministros fecham ma-ternidades, despedem trabalhado-res, cortam dois subsídios à função pública e benefícios a mulheres e velhos pobres; venceu a corja de Bocage, os serventuários do poder de Herculano, os bacharéis do Eça, os Garcia comerciantes a retalho de Vitorino Nemésio, os “videirnhos” do Namora, os funcionários do O’Neill, os latifundiários das finanças da Agustina, os mestres-escola do Nuno Bragança, os banqueiros do Lobo Antunes, os cegos do Sara-mago, em suma, numa palavra, a matulatada-gentalha-canalha opor-tunista e espertote virada “técnica” de camisa azul e gravata verde ou amarela de Mário Cláudio.

Resta aos homens de bem vi-rarem as costas a esta nova eli-te tecnocrática que assaltou e se apoderou do Estado português – elite de coração impiedoso e alma desprovida da graça de Deus - e, se puderem, emigrarem, clamando que aos homens-técnicos leva-os o Tejo e o Douro nas enxurradas de Inverno, os homens-cultos, es-ses, permanecem, recriando a nova imagem literária, estética e cultural por que Portugal posteriormente se reverá no espelho da História.

Miguel RealEscritor

A morte de Portugal

“ A História, a Cultura, a Identidade, (...) educação para a partilha e a espiritualidade, são encarados, por esta mentalidade técnica, como meras cócegas da alma

“ Resta aos homens de bem virarem as costas a esta nova elite tecnocrática que assaltou e se apoderou do Estado português

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LIVROS. Roger Scruton não é ape-nas o mais interessante filósofo conservador da actualidade; ele é, arrisco-me a dizer, o mais in-teressante filósofo da actualidade. (Esqueçam Lipovetsky e, por Deus, esqueçam o vazio intelectual de Slavoj Žižek.) Razão mais que su-ficiente para celebrar a tradução para língua pátria do seu último livro: “As Vantagens do Pessimis-mo”. (Acautelem-se, oh! optimistas degenerados.) Como o nome indi-ca, nesta obra Scruton propõem-se a um objectivo singelo: o de des-mascarar o maior perigo em que toda a espécie humana tende na-

turalmente a cair – o do optimismo infundado. Afinal, fora este quem, aqui e ali, de uma forma ou de ou-tra, sempre se demonstrara como o grande facilitador de alguns dos períodos mais negros da história da humanidade. Ao aniquilar toda a razão, toda a responsabilidade, ao esquecer que existe um “nós” e não apenas um “eu”, a falsa espe-rança propõem um trilho de puro experimentalismo cego, onde toda a advertência e cuidado são elimi-nados. Na realidade, não existem soluções milagrosas. O que existe é apenas um caminho que juntos todos temos que percorrer. E o

que Scruton propõem é apenas que este se faça com a lucidez que só uma certa dose de pessimismo (ou, se se preferir, realismo) pode oferecer. Uma lição, convenhamos, que ainda hoje se demonstra difícil de ser completamente aprendida. [Roger Scruton, “As Vantagens do Pessimismo”. Quetzal, 2011.]FILMES. O que acontece quando uma perigosa toxina contamina as reservas de água de uma pequena cidade, e leva os infectados à insa-nidade homicida? A resposta é “The Crazies”. Vamos por partes. Numa típica tarde de uma pacata cidade americana, um outrora pacífico ci-

dadão surge no meio de um jogo de basebol munido de uma caçadeira e de instintos homicidas. A situ-ação, no entanto, rapidamente é resolvida pelo xerife David Dutton (Timothy Olyphant). Caso fecha-do. Ou talvez não. À noite, outra tragédia, à qual muitas outras se seguirão. Nisto entram os militares que estabelecem um perímetro de quarentena lançando o perfeito caos. David é separado da sua mu-lher grávida Judy (Radha Mitchell), a quem este se tentará por todos os meios possíveis reunir e, em última instância, salvar. Quem está infectado? Estarão os militares ali

para ajudar ou simplesmente para prevenir o contágio por todos os meios possíveis? Entre vizinhos, em quem se poderá agora ver-dadeiramente confiar? E será a nossa humanidade, num último lampejo de lucidez, mais forte do que a nossa própria animalidade? Estas são as questões que se le-vantam ao longo deste inteligente “remake” do filme homónimo de 1973 de George A. Romero. [“The Crazies”. Director: Breck Eisner. 2010.]

Tiago Apolinário BaltazarEstudante Universitário

Com a sua traição, no campo da ética e não no da moral, evidente-mente, ao abjurar Galileu contribuiu para que a ciência ficasse encerra-da no domínio da Igreja e de um reduzido número de especialistas, afastando-a do cidadão comum. No teatro, o mesmo pode ocorrer se a mercantilização, globalizada ou doméstica, passar a dominar a lógica da criação, produção e cir-culação dos espetáculos. Aqui, já não pela necessidade de se manter a ordem teológica do mundo, mas sim pela imposição da ordenação capitalista em que procuram gerir as nossas vidas. Quando o valor de troca se sobrepõe ao valor de uso, a arte torna-se mera mercadoria transacionável e por conseguinte quem detém maior poder econó-mico é que lhe acede.

É sobejamente conhecido que na sua origem grega o teatro se in-tegrava plenamente no âmbito das atividades cívicas dos cidadãos. O domínio político e económico da burguesia, já no século XVIII, confi-na as práticas teatrais de um modo quase exclusivo a uma sala fechada, onde aquele que quer assistir ao espetáculo deve pagar um ingres-so. A partir desse ato, o espetador adquire um lugar específico na sala, cuja propriedade ainda que de forma temporária lhe fica reservada. Já no século XX, sobretudo a partir dos anos após-II Guerra, alguns países europeus criaram os seus sistemas de teatro. Criaram-se teatros na-cionais, regionais ou locais, com financiamentos públicos, onde se instalaram criadores de diversas áreas artísticas. Democratizou-se desse modo o acesso à cultura e à criação artística, em geral. França, Grã-Bretanha, Itália e Alemanha, são apenas alguns exemplos. Em Portugal, a estrutura repressiva do Estado Novo nunca permitiu o

desenvolvimento de projetos des-te teor, ainda que tenham existido algumas iniciativas instruídas pelo regime. Só no início dos anos 70 do século passado aparecem as primeiras estruturas teatrais pro-fissionais independentes, e nem o 25 de Abril proporcionou a criação de um verdadeiro sistema público de teatros. Salvo raras exceções, os criadores teatrais continuaram a desenvolver os seus trabalhos em antigos armazéns adaptados.

Porque devemos defender o

valor público do teatro, contra a arte privada?

Depois de, na transição do sécu-lo XX para aquele em que vivemos, se ter concretizado um vasto pro-grama de recuperação e construção de teatros municipais. Aquilo a que assistimos, em Portugal, foi o engor-dar de um sistema privado ainda que, aparentemente em contradição com isto, nas mãos dos municípios. O sistema de direção dos teatros municipais foi entregue confrange-doramente a programadores, muitos

dos quais promovidos à pressa por falta de tradição e formação naquela área específica. O natural seria en-contrar criadores artísticos nesses lugares e funções. E companhias residentes, ativas, promovendo uma verdadeira dinamiza-ção cultural nesses es-paços públicos. Cum-pre aos criadores e às estruturas de produção e criação desenvolver planos e programas artísticos. Outra esco-lha é um erro, em que infelizmente muitos autarcas insistem.

E todavia, ela mo-ve-se – podemos afir-mar também em rela-ção ao teatro. O teatro e as artes em geral detêm um elevado valor social, que lhes é atribuído pelo público. Diversos estudos, nomeadamente na esfera das ciências económicas, apontam para que este valor seja muito superior aos valores efetivos do consumo de bens cul-turais. Quer isto dizer que, embora só uma pequena percentagem de cidadãos sejam con-sumidores de bens cul-turais, é ainda elevado o número daqueles que reconhecem a sua im-portância social. Este reconhecimento tem diversos sentidos, en-tre os quais podemos identificar a imagem de desenvolvimento que as boas práticas artísticas podem difundir de uma comunidade, junto de outras.

Que alternativas se constroem?Aos projetos de teatro que que-

rem assumir o seu lugar na comuni-dade em que se inserem cabe:

Incentivar a relação entre as

práticas teatrais e a educação, pois o teatro ensina. O teatro ensina, não que possa revelar ou fornecer, de algum modo, quaisquer respostas para as pequenas ou grandes per-guntas que fazemos. Mas ensina a

fazer as perguntas;Incentivar a rela-

ção com projetos de inclusão social, pois o teatro contribui ati-vamente para a coe-são social. Ao pôr em palco a relação entre diferentes modos de estar, pensar e agir, o teatro confronta-nos com a história, em par-ticular, com a história do presente.

Os exemplos das práticas tea-trais e de programação que, aqui, se podem enquadrar são diversos. Desde o teatro do oprimido ao te-atro comunitário. Do teatro escolar às mais diversas práticas de teatro

com grupos seniores. Em todo o mundo, são muitos os profis-sionais que se dedi-cam a projetos nes-tes novos campos de atuação. Representa-se Shaskespeare quando os seus temas apelam à participação de um grupo de cidadãos, ge-ram o debate e o diver-timento inteligente. São desenvolvidas e postas

à prova novas dramaturgias, de gé-nese local ou de mais vasta ampli-tude geográfica, validando novas realidades artísticas e espaços de cultura.

Fernando CasacaTeatro do Elefante

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O erro de Galileu

"Na mesa-de-cabeceira"

“ Quando o valor de troca se sobrepõe ao valor de uso, a arte torna-se mera mercadoria transacionável e por conseguinte quem detém maior poder económico é que lhe acede.

“ Ao pôr em palco a relação entre diferentes modos de estar, pensar e agir, o teatro confronta-nos com a história, em particular, com a história do presente.

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Se existe algo a que devemos estar atentos é aos acasos com que nos vamos confrontando, não se dê o caso de se tratar de coincidências com sentido. Foi este o estado de espírito que me assaltou no final da peça da SerVivo – espaço para o desenvolvimento do potencial humano (www.servivo.pt.am), que estará em cena até dia 29 de Janeiro, intitulada “A Viagem”, que estará em cena no auditório municipal Charlot, em Setúbal. A peça, que tem como público-alvo as crianças, com quem principalmente interage, é de proveito maior para adultos, no-meadamente urbanos, adormecidos que estão no seu contacto com a natureza.

“A Viagem” tem início no espaço si-deral, no sistema de Sírius, donde viajam até ao nosso planeta dois cientistas de um planeta ficcionado, que tomam o público pelo seu grupo de estudo. É através destes dois afá-veis personagens, magnificamente representados por Margarida Bap-tista e Carlos Fairfield, que nos vão questionando acerca da existên-cia da essência de ser um humano, que o público é seduzido e levado a confrontar-se consigo mesmo. Se tal é intuitivo e genuíno nas crianças, tal experiência pode assumir con-tornos mais complexos nos adultos. O humor sem preconceitos adensa a introspecção, confronta de forma simples e directa as certezas artifi-ciais, fruto da geografia socio-eco-nómica dos tempos presentes, em golpes de florete que honram a pena

sarcástica de um Miguel Mihura.Em meados deste mês, inaugu-

rou, no Passo do Olival, também em Setúbal, a exposição “Entre Nós” de João Lino. Lino é um ainda jovem artista plástico que já colecciona prémios e prestígio, tanto nos meios escultóricos nacionais, como nos meios intelectuais locais. O artista desenvolve os seus pesados traba-lhos de ferro, como se tratasse da mais sensível filigrana, criando pon-tos em conexão ao infinito. O repto é sensivelmente o mesmo, pois apela a despirmo-nos do aparente para nos centramos no fundamental. E

o fundamental aqui, tal como em “A Viagem”, é apercebermo-nos de que, tal como o sol está no centro do nosso universo, a terra se de-senvolve em torno do núcleo fervente, tam-bém os seres humanos se concentram em tor-no do seu âmago, o co-ração. Reestrutura-se a ideia mística tardo-medieval, no qual o ser

humano é microcosmos que reflecte o macrocosmos, sendo que, deste modo percebemos que o todo é um, o qual reflectimos. Torna-se pois inevitável compreender à noção de que aquilo que nos junta é infini-tamente maior do que o acessório que nos separa.

Dois grupos artísticos que se desconhecem, mas que se congre-gam em torno de uma mesma ideia, num mesmo tempo, num mesmo lugar. Acasos com sentido nas trin-cheiras da cultura periférica?

José Luís Neto

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Entre Nós... A Viagem

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A&DArte e DecoraçãoJosé Paulo B. Nobre

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“ (...) vão questionando acerca da existência da essência de ser um humano, que o público é seduzido e levado a confrontar-se consigo mesmo.

Domingo 29 de janeiro às 11 h noAuditório Charlot estará em cena

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