o social e o ideológico contribuindo com o processo de variação e mudança no português...

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1 O SOCIAL E O IDEOLÓGICO CONTRIBUINDO COM O PROCESSO DE VARIAÇÃO E MUDANÇA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO “(...) mexer com o problema da identidade é mexer com a História.” (Mary Kato) Marilena Inácio de Souza 1 Cássia Regina Tomanin 2 Introduzindo a reflexão Neste estudo procuramos mostrar que a partir do advento da globalização no Brasil, surgiram novos discursos que incidiram sobre a língua, possibilitando a aparição de novos discursos que influenciaram no surgimento de tendências estilísticas, influenciando tanto no dizer quanto nas formas de dizer. Para constatar a presença dessas tendências na língua, selecionamos um conjunto de enunciados constitutivos do gênero notícia presentes nas grandes mídias e os analisamos a partir de uma interface entre a Sociolinguística Variacionista e a Análise Dialógica do Discurso, de cunho bakhtiniano. O trabalho com essas teorias nos permitirá observar a variação linguística presente nos enunciados selecionados, bem como interpretar os efeitos de sentidos possibilitados por ela. O auxílio mútuo entre essas duas disciplinas permitem uma análise, seja do indivíduo, seja da sociedade, em profundidade razoável, já que, considerando que língua é, ao mesmo tempo, forma e conteúdo, a análise deste, leva à conclusões sobre uma ideologia, em determinada época, em determinado cenário; e a análise daquela revela um indivíduo como parte de uma comunidade, de um grupo social ao qual pertence. Pode-se dizer então que as análises se imbricam e ajudam a entender fatores que motivam o processo de variação que, às vezes, culmina com a mudança lingüística. Em nosso estudo, buscamos tornar evidente que as novas tendências estilísticas estão diretamente veiculadas ao gênero discursivo de que fazem parte. Isso implica dizer que as 1 Professora de Linguística no Departamento de Letras/UNEMAT-Campus de Alto Araguaia-MT. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Linguistica/UFSCar- São Carlos-SP. 2 Professora de Língua Portuguesa no Departamento de Letras/UNEMAT- Campus de Alto Araguaia-MT. Dra. em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho.

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    O SOCIAL E O IDEOLGICO CONTRIBUINDO COM O PROCESSO DE VARIAO E MUDANA NO

    PORTUGUS BRASILEIRO

    (...) mexer com o problema da identidade mexer

    com a Histria. (Mary Kato)

    Marilena Incio de Souza1

    Cssia Regina Tomanin2

    Introduzindo a reflexo

    Neste estudo procuramos mostrar que a partir do advento da globalizao no Brasil,

    surgiram novos discursos que incidiram sobre a lngua, possibilitando a apario de novos

    discursos que influenciaram no surgimento de tendncias estilsticas, influenciando tanto no dizer

    quanto nas formas de dizer. Para constatar a presena dessas tendncias na lngua,

    selecionamos um conjunto de enunciados constitutivos do gnero notcia presentes nas grandes

    mdias e os analisamos a partir de uma interface entre a Sociolingustica Variacionista e a Anlise

    Dialgica do Discurso, de cunho bakhtiniano. O trabalho com essas teorias nos permitir observar

    a variao lingustica presente nos enunciados selecionados, bem como interpretar os efeitos de

    sentidos possibilitados por ela.

    O auxlio mtuo entre essas duas disciplinas permitem uma anlise, seja do indivduo, seja

    da sociedade, em profundidade razovel, j que, considerando que lngua , ao mesmo tempo,

    forma e contedo, a anlise deste, leva concluses sobre uma ideologia, em determinada poca,

    em determinado cenrio; e a anlise daquela revela um indivduo como parte de uma comunidade,

    de um grupo social ao qual pertence. Pode-se dizer ento que as anlises se imbricam e ajudam a

    entender fatores que motivam o processo de variao que, s vezes, culmina com a mudana

    lingstica.

    Em nosso estudo, buscamos tornar evidente que as novas tendncias estilsticas esto

    diretamente veiculadas ao gnero discursivo de que fazem parte. Isso implica dizer que as

    1 Professora de Lingustica no Departamento de Letras/UNEMAT-Campus de Alto Araguaia-MT. Doutoranda no

    Programa de Ps-Graduao em Linguistica/UFSCar- So Carlos-SP. 2Professora de Lngua Portuguesa no Departamento de Letras/UNEMAT- Campus de Alto Araguaia-MT. Dra. em

    Lingustica e Lngua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Jlio Mesquita Filho.

  • 2

    mudanas de estilo no se do abruptamente, isto , no esto dissociadas do tempo, tampouco

    da esfera de atividade humana e do gnero discursivo de que fazem parte. Quando se produz um

    texto pode-se pensar previamente a sua estrutura em partes, pode-se decidir em que ordem

    essas partes sero dispostas, pode-se avaliar formulaes alternativas. Mas, no se pode fugir s

    coeres impostas pelo gnero, pelo tempo que reconfigura esse gnero, tampouco pelos

    discursos socialmente constitudos que o afetam

    O carter de complexidade, por ns assinalado, decorre do fato de que a variao

    lingustica apresentada nos enunciados analisados implica uma exterioridade, apreendida no

    social e cuja compreenso coloca em evidncia aspectos ideolgicos e histricos prprios

    existncia dos discursos nos diferentes contextos. Ou seja, partimos do princpio de que as

    diferentes esferas sociais constituem diferentes formas de comunicao verbal, isto , diferentes

    gneros discursivos que, por sua vez, se alteram e se produzem scio-histricamente. Com isso,

    buscamos evidenciar que a variao estilstica, embora ocorra em decorrncia do gnero a que

    pertence, caminha de mos dadas com a variao diacrnica, j que os gneros so se manifestam

    da mesma maneira em diferentes pocas e em diferentes situaes de fala.

    Para constatar a nossa hiptese tambm buscamos suporte terico em Gadet (2005) que ao

    estudar a variao estilstica, ocasionada por fenmenos discursivos materializados na lngua

    francesa, tais como: atenuamentos de hierarquias, o politicamente correto, o uso recorrente de

    eufemismos, a recorrncia de siglas, a nominalizao do sujeito e o sujeito inanimado, observa

    que essas tendncias no parecem separveis das mudanas sociais e culturais. Segundo a autora,

    a maior parte delas (...) constituem fenmenos transnacionais do que se

    pode chamar de globalizao e afetam todas as sociedades desenvolvidas

    (...) levando-as a partilharem traos tanto no uso das lnguas quanto nas

    estruturas sociais, como por exemplo no aumento das desigualdades.

    (GADET, 2005, p. 54)

    As palavras de Gadet, nos permitem pensar a presena da variao estilstica, ou nos

    termos da Sociolingstica, diafsica ou de registro, no portugus brasileiro como sendo oriundas

    de prticas discursivas advindas da globalizao. Com a globalizao, a estratgia das tradies

    scio-econmicas estabelecida foi acompanhada, com efeito, por uma lgica da poltica

    mercantilista. Essa lgica buscou modos de expresso inditos, pretendendo romper com as

    formas cannicas da tomada de posio discursiva. Astcia verbal, perfeitamente organizada

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    dentro de uma estratgia discursiva que, ligada ao modelo scio-econmico neoliberal,

    reencontrou e fez eclodir novas prticas estilsticas no campo dos discursos polticos, culturais,

    cientficos e, sobretudo, econmicos.

    Estamos considerando a presena de fatores discursivos, portanto, ideolgicos como

    determinantes da variao estilstica. Partimos do princpio de que o estilo de linguagem varia

    conforme o gnero e a esfera de atividade humana a que pertencem os textos, sejam eles orais ou

    escritos, justamente porque nesse ponto h que se considerar a identidade social da

    falante/escritor; a identidade social do ouvinte/leitor e o cenrio onde o texto produzido. O

    princpio da preservao da face, o comportamento e as atitudes lingusticas do falante/escritor

    acabam por caracterizar ou tornar marcados alguns traos, em qualquer um dos nveis

    lingsticos. Tal gesto pode impulsionar a variao e contribuir com mudanas lingusticas.

    Repensando a noo de estilo

    Para tratar fenmenos de ordem estilstica no portugus brasileiro contemporneo,

    buscamos pensar o estilo tanto sob o vis da Sociolingustica Variacionista, quanto sob a

    perspectiva textual e discursiva de cunho bakhtiniano. A Sociolingustica, ainda que de maneira

    indireta, nos oferece suporte para confirmar a nossa hiptese segundo a qual a lngua varia em

    funo das prticas discursivas e em funo dos usos que os sujeitos fazem dela.

    Sob o vis da Sociolingustica Variacionista, o estilo visto como uma propriedade inerente

    s lnguas que oferece a seus usurios os recursos para que possam produzir e compreender

    diferentes formas de falar. Por estilo, Labov (2008) compreende

    as alternncias pelas quais um falante adapta sua linguagem ao contexto

    imediato de fala. (...). A variao estilstica pressupe a opo de dizer a

    mesma coisa de vrias maneiras diferentes, isto , as variantes so

    idnticas em valor de verdade ou referencial, mas se opem em sua

    significao social e/ou estilstica. (LABOV, 2008, p.313)

    Visto dessa forma, o estilo sempre se refere questo do uso que o falante faz da lngua.

    Trata-se de um tipo de variao lingstica que envolve aspectos da situao ou contexto, os

    propsitos do emissor, o tipo de assunto e contedo da mensagem, bem como as relaes entre

  • 4

    os participantes do ato comunicativo3. Ateno especial deve ser dada ao contexto ou situao,

    que constitui o mbito fsico-social em que se encontra o falante. Labov (2008) observa que no

    existem falantes de estilo nico. H falantes que apresentam um campo de alternncias estilsticas

    mais amplo do que outros, mas todos demonstram modificao de algumas variveis medida

    que mudam o contexto social e o tema. oportuno esclarecer que os falantes, ao utilizarem

    diferentemente os traos de estilo, produzem modelos distintos de percepo e interpretao

    desses traos. Os diferentes traos de estilo funcionam como ndices de significao relacionados

    ao que se julga serem as caractersticas de status social, idade, personalidade, sexo, etc.,

    tornando freqente a criao de esteretipos individuais ou de grupos.

    Labov (2008) enfatiza que os membros de uma comunidade de fala possuem um

    repertrio, em graus que podem se dar de acordo com vrios fatores extralingsticos, e que tal

    repertrio varia, dependendo de onde se encontram, com quem se encontram e sobre o que

    falam, o que pode contribuir com a escolha da varivel. Se uma pessoa est conversando com um

    colega de trabalho e o tema da conversa versa sobre assuntos profissionais sua linguagem

    provavelmente ser diferente da que utiliza em casa com seus familiares. A situao ocupacional

    vai ento produzir uma variedade lingstica distinta, e facilmente se percebe quando quem est

    falando um mdico, um advogado, um engenheiro, etc.

    Sob o olhar bakhtiniano, o estilo no pode se separar da ideia de que se olha o enunciado,

    um gnero, um texto, um discurso, como participante, ao mesmo tempo, de uma histria, de uma

    cultura e, tambm, da autenticidade de um acontecimento, de um evento. Isso implica dizer que,

    para Bakhtin, ([1953] 2003), o estilo de linguagem est indissoluvelmente ligado ao enunciado e

    s formas tpicas de enunciados que so os gneros do discurso. Estes, por sua vez, transitam por

    todas as atividades humanas e devem ser pensados, culturalmente, a partir de temas, formas de

    composio e estilo verbal. Assim, as mudanas histricas de estilos de linguagem esto

    indissociavelmente ligadas s mudanas de gneros. Nenhum fenmeno novo (fontico,

    gramatical e lxico) pode integrar o sistema da lngua sem ter percorrido um complexo e longo

    caminho de experimentao e elaborao de gneros e estilos.

    Para Bakhtin, a relao valorativa do falante com o objeto do seu discurso tambm

    determina a escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado. Assim, o

    3 Entende-se por ato ou evento comunicativo a unidade bsica de descrio, definida como o conjunto de elementos que

    tornam possvel a interao: propsito, temas, participantes, cdigo lingstico, regras sociolingsticas etc.

    (FERNNDEZ, 1988 p, 18)

  • 5

    enunciado, seu estilo e sua composio so determinados no s pelo elemento semntico-objtal

    e por seu elemento expressivo, mas, e, sobretudo pelos enunciados outro sobre o mesmo tema,

    aos quais respondemos, com os quais polemizamos. Isto porque, o enunciado pleno de

    tonalidades dialgicas, e sem lev-las em conta impossvel entender o estilo de um enunciado.

    A concepo de estilo, no sentido bakhtiniano pode dar margens a muito mais do que a

    simples busca de traos que indiciem a expressividade de um indivduo. Essa concepo implica

    sujeitos que instauram discursos a partir de seus enunciados concretos, de suas formas de

    enunciao, que fazem histria e so a ela submetidos. Assim a singularidade estar

    necessariamente em dilogo com o coletivo em que textos, verbais visuais ou verbo-visuais,

    deixam ver, em seu conjunto, os demais participantes da interao em que se inserem e que, por

    fora da dialogicidade, incide sobre o passado e sobre o futuro. O estilo visto sob esse ngulo

    incide sobre as formas do dizer e, consequentemente, sobre as forma da lngua, funcionando

    como um fator motivador para a variao lingustica.

    Observamos, assim, que a concepo de estilo com qual trabalha Bakhtin ([1953] 2003)

    no est totalmente dissociada da noo de estilo da Sociolingustica laboviana. Ponto de encontro

    entre os conceitos apresentados que, para ambos, o estilo de linguagem varia em decorrncia da

    situao ocupacional do falante, bem como do tema a ser abordado e da circunstncia

    comunicativa. Apesar de Labov ([1972] 2008) pensar a questo da variao estilstica apenas para

    linguagem oral e no falar diretamente sobre a relevncia dos gneros discursivos o autor

    encontra-se com Bakhtin ao considera que a variao estilstica est diretamente relacionada s

    circunstncias de comunicao, isto , envolve a situao, os participantes da troca verbal, o

    contexto extra-verbal, enfim os recursos exigidos pela interao.

    Ao propor a articulao entre os conceitos abordados, buscamos pensar a variao

    estilstica para alm da linguagem oral, e, apesar de a modalidade escrita da lngua no ser o

    objeto da Sociolingstica, cremos que alguns conceitos bsicos dessa cincia podem ser

    aplicados tambm escrita, j que um de seus principais pressupostos, que o fato de a

    expresso do falante revelar sua identidade, pode, em certa medida e com muito cuidado, aplicar-

    se escrita. Ou seja, a esse aspecto material da linguagem opomos o aspecto de concepo

    discursiva, historicamente determinada, prprio dos gneros discursivos. No estamos nos

    referindo aos gneros literrios, mas a todo e qualquer tipos de gneros que podem ser

    encontrados nas mais diversas esferas de atividade humana e que se caracterizam por ter

  • 6

    determinadas funes e por ter como autores e receptores indivduos que compartilham interesses

    mais ou menos previsveis. Basta observar, por exemplo, as diferenas de estilo entre o discurso

    poltico, o estilo discursivo da burocracia, a lngua que se escreve nos jornais e nas grandes

    revistas de informao e de entretenimento, os escritos dos ensaios cientficos, a lngua dos

    usurios de e-mail e dos grupos de chat que surgiram depois do advento do computador, etc.

    Assim, observando os mesmos pontos, mas por duas lentes relativamente distintas, que

    pretendemos entender como, tanto a identidade social quanto as aspiraes, intenes e mesmo a

    ideologia de um indivduo ou uma coletividade podem ser revelados nas entrelinhas do discurso,

    pelo efeito do estilo escolhido.

    Os estilos mencionados pertencem a diferentes gneros discursivos que, como tais, tm

    uma tradio prpria e utilizam a linguagem fortemente marcada pela natureza do veculo

    adotado em sua transmisso. Todas essas manifestaes discursivas, alm de terem marcas

    exteriores prprias, e de obedecerem a convenes interpretativas prprias, fazem tambm um

    uso muito particular da lngua, chegando s vezes a desenvolver uma sublngua exclusiva. Para

    Basso e Ilari (2006), a sublngua de um gnero caracteriza-se normalmente no s pela freqncia

    maior de certas palavras, reflexo de uma inevitvel concentrao em determinados temas, mas

    pode ser marcada tambm pela alta freqncia de construes gramaticais que no seriam

    comuns em outros gneros.

    Nesse sentido, chamamos ateno para o fato de que a globalizao e o neoliberalismo,

    cuja origem se deu em teorias econmicas, acabou por se infiltrar em todos os nveis da vida

    pblica, determinando, inclusive, novas posturas na vida privada dos indivduos, visto que o

    discurso neoliberal se faz presente nas mais diversas esferas de atividade humana, se manifesta

    nos mais diversos gneros discursivos, englobam uma estratgia de poder e que, por isso,

    prope reformas nos planos econmico, poltico, jurdico e educacional. Em outros termos, o

    discurso neoliberal redesenha o cenrio da vida social e poltica a partir dos valores neoliberais,

    bem como dos discursos decorrentes dessas prticas, fazendo emergir assim novas formas de

    dizer. Na seo a seguir veremos de que maneira.

    Da globalizao s prticas discursivas: a disseminao de novas formas de dizer

  • 7

    Iniciamos esta seo trazendo discusso o fato de que a globalizao faz emergir novas

    prticas discursivas, que, por sua vez, se materializam nas mais diferentes lnguas. Gadet (2005),

    ao fazer um estudo minucioso sobre essa questo, observa que alguns dos aspectos discursivos

    da globalizao podem ser representados pelas tendncias democratizao4, tecnologizao5 e

    mercadologizao6, dos discursos. Passaremos a verificar, na prxima seo, como essas

    tendncias possibilitam tambm a variao estilstica no portugus brasileiro em gneros da

    esfera jornalstica, antes, porm, julgamos necessrio discorrer um pouco mais sobre cada uma

    delas.

    Sobre a democratizao dos discursos, Fairclough (1992 apud GADET, 2005) verifica que

    ela envolve cinco fatores. Trs deles, macro-sociolingsticos: o reconhecimento de sotaques no-

    standard e no centrais; o acesso ampliado a tipos de discursos prestigiados, em particular com o

    acesso das mulheres a novas profisses; e o combate contra as formulaes sexistas. Os outros

    dois aspectos da democratizao se originam diretamente de fenmenos ligados ao estilo, como a

    eliminao de marcadores ostentatrios de hierarquia de poder e de status; e a generalizao

    tendencial de estilos informais. Como exemplo desses dois ltimos fatores, Gadet (2005) cita

    vrias estratgias discursivas: o politicamente correto, nessa prtica discursiva os membros de

    certa comunidade tnica, por exemplo, no devem ser chamados de negros, mas de afro-

    americanos ou de afro-brasileiros ou ainda de afro-descendentes; h a o atenuamento das

    hierarquias, presente, em particular, nos modos de tratamento e na polidez. No se atribuem mais

    os ttulos herdados ou adquiridos como doutor, professor etc, eles so tambm assimtricos a um

    tratamento na forma de senhor, senhora. Paralelamente, h uma tendncia a uma extenso dos

    pronomes tu e vs; o aumento recente do uso de siglas como PAC para poltica agrcola comum,

    RTT para reduo do tempo de trabalho, etc.

    As estratgias discursivas expostas evoluem, segundo Gadet (2005), na direo de uma

    valorizao do informal e da simplicidade em diversos gneros discursivos da esfera jornalstica.

    Mudanas nas normas da conversao manifestam-se tambm na modificao das interaes nas

    relaes profissionais, no trabalho e nas organizaes caminhando tambm no sentido de uma

    4 supresso das desigualdades e das assimetrias nos direitos obrigaes e prestgio de grupos de indivduos, de um

    ponto de vista lingstico e discursivo. (FAIRCLOUGH apud GADET, 2005, p.54) 5 uma tendncia a um aumento do controle sobre os aspectos cada vez mais numerosos da vida das pessoas, ou seja,

    uma dominao dos modos de vida pelos sistemas do estado e da economia. (FAIRCLOUGH apud GADET, 2005,

    p.57) 6 o processo por meio do qual os domnios sociais e as instituies cujo objetivo no a produo de mercadorias vm

    sendo organizados e conceitualizados em termos de produo, distribuio e consumo de bens. (FAIRCLOUGH apud GADET, 2005, p.58)

  • 8

    simplificao. Cabe ressaltar, no entanto, que a difuso e a diversificao de estilos informais no

    significam que os enunciados formais esto desaparecendo, mas que h uma extenso dos estilos

    simples e ordinrios da vida privada ao lugar pblico.

    Ao contrrio da democratizao, lugar de possveis conflitos, e, portanto, de possveis

    jogos discursivos, nota-se a tecnologizao dos discursos que reflete as relaes entre poder e

    poder da lngua e do discurso. Para Fairclough (1992 apud GADET, 2005) a tecnologizao

    realizada por meio do domnio de tcnicas discursivas apresentadas como transcontextuais, das

    quais as mais tpicas vm da entrevista, do ensino e da publicidade. Essas tcnicas pem em cena

    a simetria e a informalidade, subordinam a prtica discursiva a metas estratgicas e instrumentais,

    e repousam, de fato, sobre uma concepo normativa da lngua, como conjunto determinado de

    prticas, com uma tendncia colonizao pelos organismos, de indivduos.

    Quanto mercadologizao dos discursos, Gadet (2005) verifica a onipresena, mesmo em

    discursos que no esto ligados propriamente economia, de termos como indstrias, clientes,

    consumidores..., a autora acrescenta que o uso desses termos produz uma vulgata de mundo no

    qual as dinmicas essenciais so econmicas. No discurso mercadolgico a conversao tambm

    simulada dentro da simetria e da informalidade, como aquilo que Fairclough (1992) chama de

    personificao sinttica.

    Cabe destacar que as tendncias citadas no ocorrem independentemente umas das

    outras: a mercadologizao necessita da democratizao, o que vem modificar as relaes

    tradicionais entre detentores da autoridade e aqueles que lhes so subalternos. A convergncia

    entre democratizao e mercadologizao produz caractersticas partilhadas, na direo de uma

    identidade autnoma e auto-determinada, no interior da qual o sujeito constitudo como

    consumidor ou como cliente ser o mestre de suas escolhas. A ttulo de exemplificao, Gadet

    (2005) apresenta algumas recorrncias de tendncias estilsticas da lngua francesa. Ao expor tais

    exemplos a autora observa que,

    as figuras mais complexas passam por certos fenmenos de sintaxe.

    Assim, a passiva permite modificar o equilbrio entre as aes realizadas

    pelo sujeito e pelo objeto, em beneficio de uma marginalizao do agente

    situado no final da seqncia e, eventualmente, deslocado por apagamento

    total, depois por uma nominalizao (nota-se tambm, a diferena, com a

    nominalizao, entre a apresentao por um verbo passivo em (8c), por um

    reflexivo(8d), ou por h em (8e):

    (8) A cada 20 minutos, um homem viola uma mulher

  • 9

    (8a) A cada 20 minutos, uma mulher violada por um homem

    (8b) A cada 20 minutos, uma mulher violada

    (8c) A cada 20 minutos, uma violao perpetrada

    (8c) A cada 20 minutos, perpetra-se uma violao

    (8d) A cada 20 minutos, h uma violao (GADET, 2005, p.62)

    Para Gadet, a nominalizao executa o mesmo servio discursivo que a passiva, com a

    vantagem suplementar de permitir a constituio de um elemento pr-asserido, ou seja, de um

    elemento j dito por algum, em algum lugar e independentemente, como em: 8c em que o

    elemento uma violao construdo como uma evidncia fora de discusso, assim em 8c,

    enquanto possvel discutir sobre as causas da violao ser irrelevante colocar em dvida a

    existncia de uma violao. Um mesmo efeito de apagamento do sujeito da ao pela substituio

    do sujeito gramatical, em um processo, observa a autora, pode ser obtido tambm por verbos

    intransitivos, ou ainda pelo uso do sujeito inanimado, processo sem sujeito humano em posio

    de sujeito discursivo, como quando, nos discursos neoliberais, as posies sujeitos so ocupadas

    frequentemente por nomes como em: o mercado impe..., as novas tecnologias induzem... novas

    oportunidades se abrem.... Tais tendncias produzem a impresso de que os acontecimentos

    ocorrem sem causa. Esse o efeito que alcanado quando a ao (verbo) transformada em

    agente (substantivo) e passa a ser percebido como sujeito, como se a ao fosse auto-

    responsvel.

    Gadet (2005) observa que devido capacidade de se integrarem em frases complexas, as

    nominalizaes abrem diversas possibilidades de construo sinttica em sequncias complexas,

    que encontramos naquilo que os autores que trabalham com a estrutura informacional

    denominaram empacotamento informacional, geralmente concebida como tpica da escrita. As

    nominalizaes desempenham, assim, um papel crucial na construo da coeso discursiva,

    constituindo certa modalidade de apresentao da informao, dita integrao (por oposio

    fragmentao, dada como tpica do oral, mas ligada expresso verbal).

    Fenmenos como os expostos aqui, segundo Gadet, podem ser generalizados para outras

    lnguas indo-europias, num plano relativamente global de organizao discursiva:

    sucessivamente, a construo de categorias discursivas, sua textualizao e o interdiscurso. Isso

    porque esses fenmenos so transnacionais, fruto da globalizao.

    O estudo realizado por Gadet (2005) , dessa forma, a porta de entrada para pensarmos a

    presena de novos fenmenos lingustico-discursivos no portugus do Brasil. Esses fenmenos

  • 10

    apontam para uma reformulao sinttica, ocasionando a variao estilstica. Para ns, a variao

    estilstica, nesse caso em especfico, sensvel s leis mercadolgicas e tecnolgicas da era

    globalizada. Isso implica dizer que o uso da lngua reconfigurado a partir de efeitos culturais e

    ideolgicos que conduzem de certa forma s novas posturas discursivas. Essas novas posturas

    ancoram-se na lngua e produzem sentidos caractersticos s prticas discursivas em que esto

    inseridas. Para aclarar essa questo, expomos, a seguir, algumas consideraes sobre novas

    tendncias discursivas que representam, na prtica, a variao estilstica presente na lngua

    portuguesa

    Nominalizao do sujeito e sujeito inanimado: tendncias estilsticas no portugus brasileiro

    contemporneo

    No precisamos nos debruar em pesquisas para nos depararmos com a presena

    constante de tendncias estilsticas no portugus brasileiro contemporneo. Basta prestar ateno

    nos noticirios jornalsticos, nos discursos dos parlamentares, nos textos de reformas

    constitucionais que elas estaro l: formas curtas, uso lapidrio de frmulas como, por exemplo, o

    uso de eufemismo, a recorrncia a siglas, o fenmeno do sujeito inanimado e da nominalizao do

    sujeito, uma verdadeira potica da fala breve e efmera se insinua na lngua portuguesa brasileira

    produzindo diferentes efeitos de sentidos.

    Antes de iniciarmos as anlises, importante ressaltar que construes gramaticais dos

    tipos tratados aqui, no portugus brasileiro fazem parte da forma padro, de onde se pode inferir

    pelo menos trs pontos: a- seu usurio possui alguma escolaridade; b- provvel que esse

    usurio no pertence classe trabalhadora e c- o meio onde vive o usurio no o meio rural.

    Esses pontos revelam o perfil do sujeito, cuja produo escrita estamos analisando. Tal sujeito,

    que utiliza, ou pelo menos conhece a variedade culta do portugus brasileiro pode encontrar,

    nessa lngua, recursos que o permitam ser correto na informao que transmite, mas ao mesmo

    tempo, no revelar aquilo que no deve, ou no pode, ou no quer.

    No nos detemos aqui a discorrer sobre todas essas manifestaes estilsticas, enfatizamos

    apenas a presena do politicamente correto, da nominalizao do sujeito e do sujeito inanimado,

    no gnero notcia da esfera jornalstica. Entendemos que essas ocorrncias representam a

    influncia de aspectos scio-ideolgicos como preponderantes da variao lingstica, como

  • 11

    assume a Sociolingstica quando afirma que existe nos indivduos uma comportamento

    lingustico consciente, ou com alguma dose de conscincia, motivado pelo desejo de

    pertencimento a determinados grupos.

    Sobre a recorrncia do politicamente correto, cabe ressaltar que essa prtica discursiva

    alm de combater o uso de termos marcados negativamente, se caracteriza tambm por propor a

    substituio de tais termos por outros, que seriam neutros ou objetivos. Em especial, o

    movimento inclui o combate ao racismo, ao machismo, cultura pretensamente racional, mas a

    no se esgota, ele vai alm, tentando tornar no marcado o vocabulrio e o comportamento

    relativo a qualquer grupo discriminado. A ttulo de exemplificao, apresentamos alguns

    acontecimentos que foram noticiados pelas grandes mdias: em 2006, houve uma discusso sobre

    erradicao do trabalho escravo em Mato Grosso, eufemisticamente essa discusso passou a se

    chamar irregularidades no trabalho do campo. A propina exigida pelo ex-presidente da Cmara

    dos deputados, Severino Cavalcante, de um dono de restaurante em Braslia se transformou em

    mensalinho7. A propina recebida e distribuda pelo governador Jos Roberto Arruda, em Braslia,

    no fim de 2009, foi divulgada pelas grandes mdias como a fraude do panetone ou ainda o

    mensalo do DEM. A crise econmica mundial, na voz do presidente Lula, aqui no Brasil,

    configurou-se como uma marolinha. Os concursos vestibulares das universidades privadas

    transformaram-se em processos seletivos por agendamento. Os carros usados nas revendas e

    concessionrias transformaram-se em semi-novos. Os exemplos podem ser multiplicados,

    contudo pensamos que os arrolados sejam suficientes para mostrar que cada vez mais estamos

    nos deslocando de um falar franco para um falar mais suavizado.

    Segundo Possenti (2006), a manifestao dessa forma estilstica nos meios de comunicao

    tem provocado algumas polmicas: a revista poca, em 03 de abril de 2006, na coluna de Max

    Gehringer e o jornal O Estado de So Paulo, editado no dia dois de abril de 2006, publicaram

    textos criticando esse tipo de linguagem. Gehringer explicava a um leitor que, em certas

    empresas, empregam-se muitas expresses que, na verdade, no significam nada, como, por

    exemplo, expresses do tipo: vivenciar parmetros holsticos, fatores inerciais de natureza no

    tcnica, fazer um brainstorming, extrapolar os dados, para produzir efeitos de competncia e de

    modernidade. A matria do Estado atribua ao PT a prtica de no dar nomes aos bois,

    7 O termo mensalinho faz aluso ao Escndalo do Mensalo ou "Esquema de compra de votos de parlamentares" o

    nome dado maior crise poltica sofrida pelo governo do presidente Luiz Incio Lula da Silva (PT) em 2005/2006 no

    Brasil.

  • 12

    inventando derivativos verbais: recursos no contabilizados por caixa dois, desvios por erros

    ou ilegalidades, afastamento voluntrio por demisso. A expresso prima pela vagueza e essa

    uma escolha consciente que no inocente nem neutra, ao contraio, carregada de intenes .

    Para Possenti (2006), prticas como essas representam apenas alguns efeitos discursivos

    presentes na lngua, mas preciso acrescentar outros e tentar encontrar um n que amarre coisas

    aparentemente diversas. O autor observa, por exemplo, que as marcas lingusticas atribudas ao

    PT, de fato, no so caractersticas desse partido, e sim dos tucanos. A melhor prova disso,

    salienta Possenti, so os exemplos de tucans que rolam na Internet, como se fossem humor, sem

    contar que foi com eles que entrou em nosso vocabulrio a palavra empregabilidade. O autor

    pondera que talvez seja esse o fenmeno discursivo mais relevante e cruel do nosso tempo. Para

    Possenti, embora esse fenmeno se manifeste com bastante freqncia na voz dos petistas e,

    principalmente dos tucanos, fruto de um discurso maior, advindo da globalizao e de sua

    associao s polticas neoliberais. A ideologia constitutiva dessas prticas poltico-econmicas

    est baseada nas leis do mercado, por isso, tambm produz a moderna acepo do excludo.

    No se trata apenas da substituio de um termo por outro, sem nenhuma implicao na

    direo de sentidos, a ideologia bsica dessa poltica consiste em mascarar a realidade, ou em

    falar dela de uma forma que parea menos grave, mais intelectualizado, o que, de fato, quer dizer

    disfarada. Na viso de Possenti (2006), esse fenmeno no consiste apenas em evitar alguns

    termos que os falantes julgam inapropriados, mas e, sobretudo, consiste em evitar a realidade.

    Nesse sentido, a utilizao de eufemismos ou de expresses mais limpas torna-se um recurso

    poderoso dos sujeitos enunciadores que inseridos, nessa prtica, tendem a tornar seus discursos

    mais suaves. Por um lado, salienta Possenti, isso parece mais fino, mais civilizado. Por outro,

    trata-se de no encarar o mundo como ele .

    Compartilhamos com Possenti (2006) a ideia de que o politicamente correto e o uso de

    eufemismos , na verdade, um fenmeno de mutao discursiva e estilstica, pelo qual o

    portugus brasileiro tal quais as demais lnguas naturais afetadas pela globalizao, vem

    passando. Ou, dizendo de outra forma, o politicamente correto se constitui na textualizao de

    um processo lingstico e discursivo que tenta suprimir as desigualdades e as assimetrias nos

    direitos e obrigaes e prestgio de determinados grupos sociais.

    Outro fenmeno lingustico decorrente do discurso neoliberal que representa a variao

    estilstica trata-se da presena significativa de enunciados jornalsticos construdos com a

  • 13

    nominalizao do sujeito. Estudo realizado por Souza (2007) evidencia que antes do advento do

    neoliberalismo a construo sinttica da nominalizao do sujeito no se evidenciava nas

    manchetes de jornal. Souza selecionou e analisou 440 manchetes do jornal a Folha de S. Paulo,

    desde 1970 a 2006, e verificou que antes da dcada de 90, poca da entrada do neoliberalismo,

    as construes sintticas, em sua maioria, apresentavam um sujeito agente na posio de sujeito

    da orao, em contrapartida aps o advento do neoliberalismo as construes sintticas passaram

    por certas reconfiguraes estilsticas. Enunciados em que o sujeito enunciador apresentava

    diretamente o sujeito agente da ao na seqncia discursiva, tais como: Os presos rebelam-se

    na Casa de Deteno8, vai ceder, progressivamente, o lugar para um sujeito que se escamoteia,

    esconde-se nas malhas da interdiscursividade, como por exemplo em: Rebelio na Praia Grande

    faz 3 mortos9.

    Em outros termos, antes da globalizao, dcada de 90, deixar suas marcas tambm na

    lngua as manchetes do jornal eram construdas em sua maioria na voz ativa, passando

    progressivamente a construes sem sujeito aparente, atualmente h um nmero muito

    significativo de construes com o sujeito nominalizado. Basta observarmos os textos veiculados

    nas grandes mdias para notar que a cada dia torna-se mais recorrente o uso de sentenas

    como:Ataque com gs intoxica 400 pessoas no Japo10. Rebelio na Praia Grande faz 3

    mortos11; Reao em cadeia faz banho de sangue12;Revolta pra Argentina e leva De la Ra

    renncia13; Correo da tabela do IR vai incluir as dedues14; Reunio mantm indefinies

    sobre o gs15; Endividamento chega ao limite e inibe crescimento16 .

    Cabe notar que no se trata apenas de uma simples mudana de estilo relacionada a

    posio do sujeito, mas que essa mudana implica uma diferena significativa quanto atitude do

    sujeito enunciador face ao que enuncia. Na sentena Os presos rebelam-se na Casa de Deteno

    o sujeito enunciador apresenta explicitamente o sujeito da ao realizada na sentena , por isso,

    sabemos quem se rebelou. Ao passo que em Rebelio na Praia Grande faz 3 mortos, o sujeito

    que, de fato, pratica a ao no aparece, em seu lugar encontramos a forma nominalizada,

    8 Manchete do jornal A folha de S. Paulo, veiculado em 21/03/1985

    9 Manchete do jornal A folha de S. Paulo, veiculado em 13/05/1997

    10 Manchete do jornal A folha de S. Paulo publicada em 20/04/1995;

    11 Manchete do jornal A folha de S. Paulo publicada em 13/05/1997;

    12 Manchete do jornal A folha de S. Paulo publicada em 28/10/1997;

    13 Manchete do jornal A folha de S. Paulo publicada em 27/12/2001;

    14 Manchete do jornal A folha de S. Paulo publicada em 30/12/2004;

    15 Manchete do jornal A folha de S. Paulo publicada em 05/05/2006;

    16 Manchete do jornal A folha de S. Paulo publicada em 20/08/2006.

  • 14

    rebelio, como se a rebelio pudesse existir independentemente da ao de um ser humano.

    O que pode estar em jogo nessa sentena no a saturao, o preenchimento do sentido do

    termo rebelio, mas que ela deixou trs mortos na Praia Grande, podemos at questionar quem

    se so os responsveis pela rebelio, contudo jamais poderamos questionar que ela fez trs

    mortos.

    Nas sentenas arroladas no se encontra um sujeito agente, capaz de praticar as aes

    expressas nos enunciados. Em seu lugar, aparecem formas lexicais nominalizadas, que, em razo

    de seu carter anafrico, retomam um discurso j dito. Esse discurso, embora no faa parte da

    estruturao intratextual, participa, como memria, de sua organizao. Em outros termos, a

    nominalizao veicula um contedo j dito. Assim, em: Ataque com gs intoxica 400 pessoas,

    pressupe que 400 (quatrocentas) pessoas foram intoxicadas; Rebelio na Praia Grande faz 3

    mortos, implica em dizer que 3 (trs) pessoas morreram na rebelio; Reao em cadeia faz banho

    de sangue, pressupe que um banho de sangue foi feito; Revolta pra Argentina e leva De la Ra

    renncia, pressupe que De la Ra renunciou; pressupor, no sentido aqui defendido, apontar

    para um discurso anterior, pr-construdo, que se inscreve na no gnero do discurso do qual ele

    deriva. A iluso de objetividade referencial, advinda dessa estratgia, decorre exatamente do fato

    de que os referentes, resultantes do processo de nominalizao, foram construdos fora, em um

    discurso anterior, de responsabilidade pblica.

    A nominalizao do sujeito, uma construo tpica do portugus brasileiro padro, ,

    assim, uma construo exemplar para mostrar a relao entre o discurso presente na linguagem e

    o discurso situado num fora, mas que trazido discusso nas malhas da interdiscursividade.

    Por meio desse fenmeno podemos mostrar como o significado se constri na e pela linguagem

    nas diversas prticas sociais, j que o significado de um enunciado no se constri nem em um

    pontuar direto com a realidade, nem a linguagem um mecanismo desvairado de criao de

    mundo e realidade, mas existe entre esses dois extremos uma espessura em cujo interior o

    sujeito enunciador trabalha a relao consigo prprio e com o outro, construindo o seu lugar no

    mundo

    Um mesmo efeito de apagamento do sujeito em um processo pode ser obtido tambm com

    a presena de sujeito inanimado ocupando a funo de sujeito da orao. Quanto aos

    enunciados construdos com sujeito inanimado, Souza (2007) atesta que eles tambm

    aumentaram significativamente aps a dcada de 90. Ou seja, tornou-se mais constante a

  • 15

    presena de enunciados como: Supermercados de SP aceleram as remarcaes17. Avies

    bombardeiam Bagd18; Empresas de nibus violam contrato em SP19; Tribunal de contas aponta

    problemas em obras no Tiet20; Bombas em trens matam 179 na ndia21; Indstrias planejam

    cortar empregos22.

    Uma espiada no dicionrio impresso de lngua portuguesa, Houaiss (2004), nos mostra que

    os verbos acelerar, bombardear, violar, explodir, apontar, ameaar, matar, e planejar

    se constroem com um sujeito animado, um agente dotado de vontade, de sentimentos, de

    intenes. Assim como nas sentenas em que h a nominalizao, tambm aqui, esse sujeito no

    se evidencia, em seu lugar aparece formas lexicais inanimadas, apagando, assim, o agente da ao

    representada no enunciado. Esse apagamento induz a um complexo efeito de retorno, misturando

    diversas posies sociais e ideolgicas com a posio do sujeito enunciador.

    Essa falta de comprometimento com a informao frequente nas prticas discursivas do

    regime scio-econmico neoliberal. So formas discursivas saturadas pelo consenso ideolgico

    que estabiliza a sua referncia do discurso. Por um lado, as relaes discursivas que so bvias, e,

    de outro, os nomes frequentemente determinados e amide pouco tematizados, ou seja, o que

    deve ser definido ou explicado: as palavras e as proposies sempre a ser definidas:

    Supermercados aceleram...; Avies bombardeiam....; Empresas de nibus violam ...;

    Tribunal de contas aponta...; Bombas em trens matam...; Indstrias planejam.... E

    igualmente, as noes a serem reinterpretadas, as palavras a serem arrancadas de seu senso

    comum: para supermercados, comerciantes; para avies, presidente George W. Bush; para

    empresas, os empresrios; para tribunal de contas, os superintendentes; para bombas, pessoas

    ligadas ao grupo ETA; e, para indstrias, os donos das indstrias, os empresrios.

    Esses fenmenos lingstico-discursivos produzem, entre outros sentidos, a impresso de

    que as aes praticadas pelos sujeitos acontecem naturalmente, sem que algum as tivesse

    praticado. Poderamos nos perguntar: Que estilo de linguagem esse das formas nominalizadas

    e dos sujeitos inanimados que se constri, assim to forte.

    Para responder a esta pergunta nos reportamos a Bakhtin (1998, p. 100), que argumenta

    contra a transparncia da linguagem. A linguagem no um meio neutro que se torne fcil e

    17

    Manchete do jornal A folha de S.Paulo publicada em 12/02/1990; 18

    Manchete do jornal A folha de S.Paulo publicada em 17/01/1991; 19

    Manchete do jornal A folha de S.Paulo publicada em 12/06/2000; 20

    Manchete do jornal A folha de S.Paulo publicada em 06/06/2005; 21

    Manchete do jornal A folha de S.Paulo publicada em 12/07/2006; 22

    Manchete do jornal A folha de S.Paulo publicada em 13/01/2006.

  • 16

    livremente a propriedade intencional do falante, ela est povoada ou superpovoada de intenes

    de outrem. Em outros termos, a lngua no conserva mais formas e palavras neutras que no

    pertencem a ningum; ela torna-se esparsa, penetrada de intenes, totalmente acentuada. A

    lngua no um sistema abstrato de formas normativas, ao contrrio, uma opinio plurilnge

    concreta sobre o mundo. Nas palavras de Bakhtin,

    Todas as palavras evocam uma profisso, um gnero, uma tendncia, um

    partido, uma obra determinada, uma pessoa definida, uma gerao, uma

    idade, um dia, uma hora. Cada palavra evoca um contexto ou contextos,

    nos quais ela viveu sua vida socialmente tensa; todas as palavras e formas

    so povoadas de intenes. Nela so inevitveis as harmnicas contextuais

    (de gneros, de orientaes, de indivduos) (BAKHTIN, 1998, p.100)

    A citao de Bakhtin corrobora a nossa hiptese segundo a qual o estilo lingstico prprio

    da nominalizao do sujeito ou ainda do sujeito inanimado evoca um discurso anterior, prprio

    das prticas discursivas da globalizao. Podemos dizer assim, que o estilo de linguagem

    apresentado compreende organicamente em si as indicaes externas, a correlao de seus

    elementos prprios com aqueles do contexto de outrem. A poltica interna do estilo determina sua

    poltica exterior. O discurso como que vive na fronteira do seu prprio contexto e daquele de

    outrem. A dialogicidade interna se torna uma fora criativa e fundamental na medida em que as

    divergncias individuais e as contradies so fecundadas pelo plurilinguismo social, as

    ressonncias dialgicas ressoam no s no pice semntico do discurso, mas penetram em suas

    camadas profundas dialogizando a prpria lngua, a concepo lingstica do mundo.

    Os exemplos arrolados representam que as novas tendncias estilsticas so determinadas

    no s pelo elemento semntico-objtal e por seu elemento expressivo, mas, e, sobretudo, pelos

    enunciados outro sobre o mesmo tema, aos quais se responde, aos quais se polemiza. O

    enunciado pleno de tonalidades dialgicas, e sem lev-las em conta impossvel compreender a

    natureza do estilo de um enunciado.

    Em outros termos, o discurso materializado na lngua apreendido no social e cuja

    compreenso coloca em evidncia aspectos ideolgicos e histricos prprios existncia dos

    discursos nas diferentes esferas de atividade humana. Ou, como diz Bakhtin, medida que o

    social se transforma o discurso tende a refletir tais transformaes materializando-as na lngua,

    por meio de mudanas de estilo. Logo, ponderamos que a lngua influenciada por mudanas

  • 17

    sociais e culturais, neste caso em especfico, denominadas de globalizao e, seu discurso de

    base, o discurso neoliberal.

    Um breve efeito de fim

    No decorrer deste estudo, nos preocupamos em evidenciar que a forma de falar sobre os

    acontecimentos vem passando por certas reconfiguraes de ordem estilstica: a prtica do

    politicamente correto, de eufemismos, bem como o acentuamento de recorrncias sintticas como

    a nominalizao do sujeito e do sujeito inanimado demonstram que a lngua encontra-se sensvel

    s leis mercadolgicas e tecnolgicas da era globalizada. Isso implica dizer que o uso da lngua

    reconfigurado a partir de efeitos scio-culturais e ideolgicos que conduzem de certa forma a

    novas posturas discursivas. Essas novas posturas ancoram-se na lngua e produzem sentidos

    caractersticos s prticas discursivas em que esto inseridas.

    Essas afirmaes convergem para um mesmo ponto: as novas tendncias estilsticas

    dialogam com os discursos socialmente constitudos. por manter esse dilogo constante com os

    discursos que surgem novas formas de dizer: a lngua tende a ficar menos agressiva, mais opaca,

    nos casos do politicamente correto e do uso de eufemismos; as manchetes tendem a ficar cada

    vez mais breves, menos diretas (no sentido de no expor explicitamente o sujeito humano que

    praticou a ao verbal) e mais efmeras, j que devido a globalizao das informaes os eventos

    acontecem e se dissipam muito rapidamente. Isso significa que os gneros em que se

    manifestam tais ocorrncias tm uma linguagem prpria, manifestam preferncias lingsticas

    variadas e evoluem num ritmo prprio, ao mesmo tempo que so afetados por novos discursos

    advindos do impacto da era tecnolgica e mercadolgica do sistema globalizado. Dito de outro

    modo, o portugus brasileiro, como qualquer outra lngua, apresenta ndices de mudanas tanto

    discursivas quanto estilsticas. Para ns, esses ndices so o resultado do imbricamento entre a

    globalizao, as inovaes tecnolgicas, o neoliberalismo e a lngua.

    Assim, convm pensar a lngua no como uma forma que foi estabelecida em carter

    definitivo em algum momento do passado, quem sabe por deciso de uma assemblia de sbios,

    mas sim como uma realidade dinmica que se materializa nos gneros, portanto, por natureza,

    est em constante variao e mudana. No s a lngua transcrita nos enunciados jornalsticos o

    resultado de muitas inovaes ocorridas em pocas diferentes e em gneros diferentes; mas a

  • 18

    lngua que falamos cotidianamente convive com palavras e construes que remontam a pocas e

    a gneros diferentes. Isso implica dizer que a lngua que utilizamos varia para adaptar-se ao

    gnero, ao interlocutor, ao contexto e a situao.

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