a “justiÇa terapÊutica” e o conteÚdo ideolÓgico da

21
7/14/2019 A “JUSTIÇA TERAPÊUTICA” E O CONTEÚDO IDEOLÓGICO DA http://slidepdf.com/reader/full/a-justica-terapeutica-e-o-conteudo-ideologico-da 1/21 1 A “JUSTIÇA TERAPÊUTICA” E O CONTEÚDO IDEOLÓGICO DA CRIMINALIZAÇÃO DO USO DE DROGAS NO BRASIL Pedro Luciano Evangelista Ferreira Advogado, mestre em Criminologia e Direito Penal pela UCAM-RJ e professor da Escola da Magistratura do Paraná – Núcleo Ponta Grossa, das Faculdades Integradas Curitiba-PR e do Centro Universitário Positivo-PR. e-mail: [email protected]  RESUMO: O processo de criminalização do uso de drogas ilícitas no Brasil começou  já no período colonial. Desde então, várias medidas têm sido aplicadas na tentativa de conter o consumo, restando infrutíferas sob o aspecto da contenção do consumo, mas eficazes sob o aspecto da criminalização de classes sociais economicamente desfavorecidas e/ou estigmatizadas. Inicialmente seguiu-se a orientação patológico- clínica para depois se adotar a postura bélica. A proposta da “  justiça  terapêutica hoje é adotada em alguns estados brasileiros como uma “nova” solução, mas como o histórico da política criminal brasileira revela, tal proposta não passa da reformulação cíclica de uma antiga postura que reforça o binômio “doença-crime” e atende aos interesses das classes hegemônicas como eficaz instrumento de controle social. PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal. Criminalização do uso drogas. Justiça terapêutica. Controle social.

Upload: bruna-vasconcellos

Post on 19-Oct-2015

11 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 1

    A JUSTIA TERAPUTICA E O CONTEDO IDEOLGICO DA CRIMINALIZAO DO USO DE DROGAS NO BRASIL

    Pedro Luciano Evangelista Ferreira Advogado, mestre em Criminologia e Direito Penal pela UCAM-RJ e professor da Escola da Magistratura do Paran Ncleo Ponta Grossa, das Faculdades Integradas Curitiba-PR e do Centro Universitrio Positivo-PR. e-mail: [email protected]

    RESUMO: O processo de criminalizao do uso de drogas ilcitas no Brasil comeou j no perodo colonial. Desde ento, vrias medidas tm sido aplicadas na tentativa de conter o consumo, restando infrutferas sob o aspecto da conteno do consumo, mas eficazes sob o aspecto da criminalizao de classes sociais economicamente desfavorecidas e/ou estigmatizadas. Inicialmente seguiu-se a orientao patolgico-clnica para depois se adotar a postura blica. A proposta da justia teraputica hoje adotada em alguns estados brasileiros como uma nova soluo, mas como o histrico da poltica criminal brasileira revela, tal proposta no passa da reformulao cclica de uma antiga postura que refora o binmio doena-crime e atende aos interesses das classes hegemnicas como eficaz instrumento de controle social.

    PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal. Criminalizao do uso drogas. Justia teraputica. Controle social.

  • 2

    1 CONSIDERAES INICIAIS

    O presente estudo tem por objetivo pontear alguns aspectos da justia teraputica, as relaes existentes entre o Direito, o uso de drogas (lcitas e ilcitas) e a sociedade, com especial destaque para a sociedade e a realidade brasileiras.

    Em observncia limitao do espao gentilmente concedido, desde j insta esclarecer que no h a pretenso de trabalhar com todas as inmeras questes que as drogas suscitam sob os prismas mdico, tico, jurdico e social, de modo que necessria a realizao de um corte metodolgico para restringir o objeto de anlise, a atuao dos rgos oficiais (legislador, judicirio, policial e sanitrio), tanto no processo de criao das leis quanto no mtodo de aplicao e cumprimento das mesmas, analisando mais especificamente a proposta da denominada justia teraputica e algumas caractersticas da poltica criminal de drogas em nosso pas, como resultado da interao existente entre a sociedade brasileira e os usurios de drogas tanto lcitas como ilcitas.

    Destaca-se ainda, o surgimento de certas inverdades e mitos contidos no discurso oficial que possuem o papel de legitimar e reproduzir uma estrutura poltico-social altamente seletiva e discriminatria que, no raras vezes, adota parmetros fundados em valores econmicos em detrimento de valiosos preceitos ticos e morais, manipulando e ludibriando significativa parcela da sociedade, seja pelos meios de comunicao (mass media) ou pela atuao das instncias de controle em relao a certos comportamentos e indivduos de classes sociais bem definidas.

    Neste sentido, vale destacar os padres de pensamento e as formas como so tratadas as questes envolvendo criminalidade e sistema penal quais sejam: a) PARADIGMA DA REAO SOCIAL, DA ROTULAO OU PARADIGMA INTERACIONISTA, que estuda a interao entre o sistema penal e certos indivduos (surgido na dcada de 60, com o labeling approach), bem como seu antecessor; b) PARADIGMA ETIOLGICO-EXPLICATIVO OU CAUSAL-EXPLICATIVO, que busca explicaes para a criminalidade e suas causas (cunhado inicialmente pela Criminologia Positiva em 1875 e adotado por vrias outras correntes doutrinrias at os dias atuais).

    Sobreleva notar-se, a partir desses paradigmas epistemolgicos, que em uma sociedade estratificada de classes existiro duas posturas principais para o

  • 3

    trato das questes envolvendo o Sistema Penal. Posturas que poderiam ser previamente definidas como:

    a) Discurso repressivo e mistificador: aplaudido pelos movimentos de lei e ordem, pugna pelo reforo do direito segurana de certas classes sociais sendo responsvel pelo reforo e manuteno das relaes de discriminao, dominao, neutralizao e excluso social em prejuzo das classes economicamente mais dbeis e/ou vulnerveis;

    b) Discurso libertrio e conscientizador: perfilhado pelos vrios movimentos sociais que buscam o emancipatrio reconhecimento da Cidadania e a segurana dos Direitos Humanos, livre de quaisquer preconceitos que os possam limitar, dando azo ao surgimento e ao fortalecimento de laos de solidariedade entre as classes sociais e a cooperao e participao de todos os segmentos da sociedade em um projeto de incluso de grupos sociais mais vulnerveis e/ou que possam ser alvo de qualquer tipo de discriminao, com reconhecimento e respeito ao outro como expresso da prpria individualidade e diversidade da vida humana, em benefcio de toda a sociedade.

    Para contrapor e visualizar estes discursos com maior clareza, urge realizar breve referncia ao processo histrico evolutivo da legislao brasileira pertinente as drogas ilcitas. Pois preciso estudar o passado para melhor entender o presente e vislumbrar o futuro. Passo seguinte tratar-se- da justia teraputica que est sendo implementada em vrios estados brasileiros como uma resposta da sociedade em relao ao consumo de drogas (lcitas e ilcitas) e suas conseqncias.

  • 4

    2 A POLTICA CRIMINAL DE DROGAS NO BRASIL (COLNIA, IMPRIO E REPBLICA).1

    Espera-se que o conciso estudo da poltica criminal de drogas no Brasil - manifestada em dois principais modos de tratamento: o modelo sanitrio e o modelo blico - seja capaz de provocar maiores reflexes ao leitor consciente, no que tange a justia teraputica como uma nova proposta problemtica das drogas lcitas e ilcitas.

    No perodo em que o Brasil ainda era uma colnia portuguesa, no existia uma legislao genuinamente brasileira, uma vez que todos os textos legais produzidos pela Metrpole eram aplicados nas colnias de modo que a primeira expresso relacionada ao uso de drogas est contida nas Ordenaes Filipinas, mais especificamente no Livro V, LXXXIX, que utiliza o vago e impreciso termo substncias venenosas, expresso que perdurou por muito tempo sendo, inclusive, utilizada no art. 159 do Cdigo Penal Brasileiro de 1890.

    Aps presses internacionais - que at hoje perduram -, tem incio no Brasil um processo de crescente criminalizao e, por fora do protocolo suplementar de assinaturas da Conferncia Internacional do pio realizada em Haia em 1912, recepcionado em nosso ordenamento jurdico pelo Decreto n. 2.861 de 8 de julho de 1914 e regulamentado pelo Decreto n. 11.481 de 10 de fevereiro de 1915, tem-se implementado o MODELO SANITRIO que vai perdurar em nosso pas por meio sculo. Anos depois, o Decreto Legislativo n. 4.294 de 6 de julho de 1921 revoga o art. 159 do CP de 1890 e cria a expresso substncia venenosa que tiver qualidade entorpecente, como o pio e seus derivados, a cocana e seus derivados (art. 1, pargrafo nico). nesse momento que a expresso entorpecente comea sua longa carreira no direito brasileiro.

    Segue-se uma sucesso de decretos influenciados por vrias convenes internacionais - especialmente as de Genebra 1925, 1931, 1936 - realizadas com o intuito de fomentar a internacionalizao do controle (de drogas). Surgem tambm vrias listas de substncias proibidas e nesse perodo o trfico se alimenta pelo desvio das drogas de seu fluxo autorizado. Mas o que contribui para que este

    1 Nota do Autor: Para um estudo histrico mais completo, recomenda-se a leitura do apurado artigo:

    BATISTA, Nilo. Poltica criminal com derramamento de sangue. In: Revista Brasileira de Cincias Criminais, n. 20, So Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997.

  • 5

    perodo receba a denominao de modelo sanitrio no apenas a forte influncia positivista expressa na legislao que visualiza o usurio de drogas como um doente, mas tambm h que se destacar um esforo de colaborao entre autoridades judicirias, policiais e sanitrias para o compartilhamento de saberes higienistas.

    Enunciava o Decreto n. 20.930 de 11 de janeiro de 1932 que as substncias entorpecentes em geral deveriam estar elencadas em uma lista que deveria ser periodicamente revista segundo a evoluo qumica-teraputica (art. 1, par. n.). J a comercializao e o fabrico destas substncias dependia de licena especial (art. 2), o consumo dependia de receita mdica que deveria ser anotada em livro prprio (art. 3, 3) e ficaria permanentemente a disposio das autoridades sanitria, policial e judiciria (art. 3). Todas as pessoas desprovidas de receitas mdicas para a obteno de substncias controladas passaram a ser consideradas contrabandistas (art. 19). Quanto ao usurio, determina o art. 44 que a drogadio doena de notificao compulsria e esclarece o art. 45 de referido decreto que o toxicmano ou intoxicado habitual precisava de tratamento, estando sujeitos a internao facultativa ou obrigatria, por tempo determinado ou no.

    Na seqncia, o Decreto-lei n. 891 de 17 de agosto de 1938 probe o tratamento de toxicmanos em domiclio (art. 28) e o Decreto n. 20.930/32 vai ainda mais longe, criando uma verdadeira aberrao consubstanciada em uma delao com repercusso patrimonial para parentes at o 4 grau colateral como um instrumento de controle intrafamiliar. Fundado em laudo mdico, o juiz poderia determinar um 3 (desinteressado, obviamente) a acautelar-se dos bens e interesses do internado, que deveria ser enviado a uma Colnia de Alienados. Pode-se imaginar quantas artimanhas foram engendradas neste perodo? O delator ganancioso e sem escrpulos recebia como prmio os bens do internado e a tranqilidade em saber que o regresso e a recuperao deste era realmente muito improvvel.

    Note-se que neste perodo o usurio de drogas no criminalizado, tanto aquele que dependente como o usurio eventual eram considerados doentes e deveriam ser tratados e curados, mas no punidos. Porm, como visto acima, a forma como o tratamento era realizado constitua um castigo pior que a

  • 6

    condenao penal, isso se lembrarmos que no pode existir pena por tempo indeterminado.

    Com o citado Decreto n 20.930/32 oportuno frisar que a interveno penal passou a ser mais rigorosa e abrangente, pois, ao contrrio do Decreto n 4.294/21 que se restringia a punir as aes de vender, expor a venda ou ministrar as substncias venenosas de qualidade entorpecente sem criminalizar a posse ilcita, com o Decreto n 20.930/32 h uma multiplicao de verbos no tipo bsico, que agora passa a punir aquele que vender, ministrar, dar, trocar, ceder ou, de qualquer modo, proporcionar (art. 25), isso sem falar na suspenso temporria do exerccio profissional quando os envolvidos fossem mdicos, cirurgies-dentistas, farmacuticos ou qualquer outro profissional relacionado com o crime. Agora tambm ocorre a criminalizao da posse ilcita (art. 26), da prestao do local (art. 28) que antecipam o art. 281 do CP de 1940. O controle mdico-farmacutico era rigoroso e toda a violao aos regulamentos sanitrios era punvel. O trfico e a importao irregular eram inafianveis (art. 33).

    Na Consolidao das Leis Penais que antecedeu o CP de 1940, o usurio estava sujeito a prvia e imediata internao pela autoridade policial em, destaque-se, hospital especial para psicopatas para a aplicao de um tratamento de toxi-privao progressiva que deveria ser acompanhado por autoridades policiais e judicirias. Ocorre que, se a internao em um estabelecimento mdico era simples e rpida, j a sua liberao era precedida de um complexo processo de laudos mdicos e decises judiciais que muito lembravam os alvars de soltura, isso sem falar nas medidas policiais de vigilncia do pretenso curado configurando o Sistema da assistncia coactiva.2

    igualmente vlido salientar que o rigor penal ultrapassa a tipificao de vrias condutas relacionadas direta e indiretamente com as drogas ilcitas, existindo tambm efeitos extremamente severos (penais e extrapenais, genricos e especficos) sobre a vida do condenado como:

    Perda do cargo se funcionrio pblico; Excluso e trancamento da matrcula se aluno de qualquer grau,

    tanto em estabelecimento pblico ou particular;

  • 7

    Proibio da concesso do sursis e do livramento condicional; Equiparao do crime tentado ao crime consumado; Expulso do estrangeiro do territrio nacional; Reincidncia era causa de duplicao da pena aplicada;

    No se pode deixar de mencionar a circunstncia agravante prevista no art. 36, que no mnimo curiosa e revela seu contedo moralista uma vez que a procura da satisfao de prazeres sexuais nos crimes deste decreto, constituir circunstncia agravante. Seguiram-se outros decretos (Decreto n. 24.505/34 e Decreto n. 891/38), ecos das intervenes internacionais para controle e represso ao trfico de drogas, mas que no produziram muitos efeitos porque tiveram uma vida curta, tendo em vista a proximidade com o Cdigo Penal de 1940, atualmente em vigor. Contudo, urge salientar que com estes instrumentos legislativos houve a criminalizao do consumo, a eliminao da expulso automtica para os estudantes e a formalizao do compromisso mdico-legal que bem caracteriza este modelo: as autoridades sanitrias e policiais prestaro auxlio recproco nas diligncias que se tornarem necessrias ao bom cumprimento desta lei (art. 63 do Decreto n. 891/38).

    Com o advento do CP 1940, a resposta legal s drogas mais ponderada, sendo que as principais modificaes na matria dizem respeito: a descriminalizao do consumo, a leve diminuio dos verbos acumulados nos tipos penais e a fuso do trfico e da posse ilcita no mesmo artigo (art. 281). No perodo que se segue, a ateno sobre a questo das drogas passa a ser secundria, assim permanecendo at os anos sessenta, tendo em vista um perodo de redemocratizao por que passava o nosso pas ao encerrar a Era Vargas.

    Dignos de nota, porm, so alguns decretos como o Decreto-lei n. 4.720 de 21 de setembro de 1942, que taxava as normas gerais para o cultivo de plantas entorpecentes e para a extrao, transformao e purificao de seus princpios ativo-teraputicos; o Decreto-lei n. 8.646 de 11 de janeiro de 1946 que alterou o Decreto-lei n. 891 de 25 de novembro de 1938 e centralizava em determinada repartio pblica o poder de autorizar a importao e exportao de entorpecentes

    2 BATISTA, Nilo. op. cit. p. 83.

  • 8

    para drogarias, laboratrios, farmcias e estabelecimentos fabris; e o Decreto-lei n. 20.397 de 14 de janeiro de 1946 que regulamentava a indstria farmacutica no pas, mais especificamente nos arts. 19 usque 26 que tratavam dos laboratrios que fabricassem especialidade com qualidades entorpecentes.

    Destaca Nilo Batista - com a argcia que lhe peculiar - que neste perodo as indstrias brasileiras comeam a crescer e sua ateno aumenta sobre o lucrativo mercado de drogas (agora lcitas porque regulamentadas em lei) uma vez que ...a converso da droga em mercadoria de um lado sinalizava os bons negcios futuros no mbito silencioso das frmaco-dependncias.3 o uso de drogas lcitas para o tratamento do uso de drogas ilcitas. Enfim, so drogas e drogas.

    Com o golpe militar, a postura dos rgos oficiais com relao s drogas paulatinamente toma outro rumo e agora - mais uma vez por fora de presses externas - uma nova forma de tratamento surge vigorosa: o Modelo Blico. Isso no significa que os esteretipos criados pelo modelo sanitrio tenham sido completamente abandonados, porm, o que caracteriza este novo modelo a utilizao de verdadeiros mtodos de guerra.

    O contexto histrico bem representativo e favorece a mudana do modelo sanitrio para o modelo blico. Vale lembrar que esta a poca da guerra fria, da bipartio do mundo entre o capitalismo (EUA e Otan) e o socialismo (URSS e Pacto de Varsvia), da corrida armamentista e da militarizao das relaes internacionais, isso sem falar nos movimentos de contracultura, a exemplo dos hippies.

    No Brasil, regido pela ditadura militar, impera a doutrina da Segurana Nacional com o AI-5, a censura, DOI-CODI, DOPS e os seus pores. Com o Decreto-lei n. 385 de 26 de dezembro de 1968 h a equiparao do usurio que traz consigo substncia entorpecente ao traficante, provocando a reao de poucos juristas tendo em vista o autoritarismo reinante. No entanto, os tribunais tentaram amenizar esta situao com uma aplicao mais equilibrada do dispositivo legal, estando cientes de que uma sentena inqua, embasada nesta absurda equiparao, poderia estar legalmente certa, porm, representava um verdadeiro desastre sob o aspecto social. A conseqncia que ao invs de muitas condenaes equilibradas, houve sim muitas absolvies para proteger o ru

    3 BATISTA, Nilo. op. cit. p. 84.

  • 9

    primrio e os portadores de pequena quantidade de substncia entorpecente, como bem anota Menna Barreto.4

    Na seqncia, a Lei n. 5.726 de 29 de outubro de 1971 estabelece em seu art. 1 ser dever de toda a pessoa fsica ou jurdica colaborar no combate ao trfico e uso de substncias entorpecentes (negritou-se) e agora qualquer opinio que contrariasse a repressiva poltica de drogas configuraria um crime omissivo.

    Sob pena da perda do cargo, os diretores de escolas tinham a obrigao de informar s autoridades qualquer suspeita de alunos envolvidos com o trfico ou uso de drogas (art. 7, par. n.) o que poderia ocasionar o trancamento da matrcula como previa o art. 8. No caso de estrangeiros, os crimes de uso e trfico de drogas eram equiparados aos crimes contra a segurana nacional, sendo alteradas algumas regras para a expulso, bem com a previso de uma investigao rpida de apenas 05 (cinco) dias (art. 22). As penas foram aumentadas de 6 meses a 2 anos para 1 a 5 anos e foi acrescentado mais um verbo (oferecer), isso sem falar em mais uma aberrao jurdica: a quadrilha de dois (!!!).

    Agora as autoridades militares e policiais vislumbravam o usurio e o traficante de drogas como o novo inimigo interno, j a disseminao do uso de drogas junto aos jovens era tratada como ttica comunista para a conquista do mundo ocidental pela desestruturao de valores cristos e instituies como a famlia e a igreja e, portanto, somente estratgias e autoridades militares seriam capazes de arrostar adequadamente a questo. Pensamentos mais extremados chegaram a pugnar pela incluso do crime de trfico dentre os crimes de lesa-ptria e seu enquadramento na temvel Lei de Segurana Nacional.

    a poca da caada as bruxas, da cruzada blica, moral e religiosa que permitia uma guerra sem restries e legitimava as mais abusivas aes das autoridades policiais, isso sem falar nas investigaes movidas a tortura e sangue realizadas no submundo dos pores e calabouos, nos desaparecimentos e execues sumrias e no grande aumento da populao carcerria.

    Passo seguinte temos a Lei n. 6.368 de 21 de outubro de 1976 (que recebe a alcunha de Lei antitxicos) sendo regulamentada pelo Decreto n. 78.992 de 21 de dezembro de 1976 e vindo a substituir a Lei n. 5.726/71. Como principais

    4 MENNA BARRETO, Joo de Deus Lacerda. Estudo geral da nova lei de txicos. 3 ed. rev. e

    aumentada. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1982. p. 30.

  • 10

    inovaes, temos a substituio da locuo combate pela locuo preveno e represso para fundamentar aquele dever jurdico entabulado no art. 1. Houve tambm a substituio do termo viciado por um mais adequado, que o de dependente. Alunos surpreendidos com drogas no tm a sua matrcula necessariamente trancada e os diretores no so mais obrigados a serem delatores, embora sua inrcia ante o conhecimento de certo envolvimento de alunos com drogas possa responsabiliza-los penal e administrativamente. Os dependentes, cujo quadro clnico ou a natureza de suas manifestaes psicopatolgicas o exigirem, sero submetidos a tratamento sob regime de internao hospitalar (art. 10), o direito de tratar que compete a Unio5, porm, como exposto, a internao compulsria de toxicmanos no novidade em nosso ordenamento jurdico.

    A multiplicao e acumulao de verbos ocorrida em todo o processo de criminalizao de certas substncias entorpecentes chegou a seu pice (isso se as leis futuras no elencarem mais alguns verbinhos) tanto que o art. 12 atualmente agrega o significativo nmero de 18 (!!!) verbos: Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depsito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substncia entorpecente ou que determine dependncia fsica ou psquica, sem autorizao ou em desacordo com determinao legal ou regulamentar.

    Isso sem falar em mais alguns verbos relacionados nos incisos 1 e 2 do mesmo artigo, que prevem mais algumas modalidades delituosas, porm, temos agora mais um aumento na durao das penas que, para o art. 12 (trfico), de 3 a 15 anos de recluso e multa. Tambm houve disciplinamento do processo legal e, conforme estabelece o art. 35, o ru condenado por trfico deve recolher-se priso para poder apelar.

    Com o advento da Constituio Federal de 1988 foram revogados alguns dispositivos como a censura prevista no art. 9 do Decreto n. 78.992 de 21 de dezembro de 1976, contudo, agora o trfico de drogas crime inafianvel e insuscetvel de anistia e graa, conforme estabelece o art. 5, inciso XLIII.

    5 SANTOS, Jos Wilson Seixas. Lei antitxicos comentada. 2 ed. rev. atual. Leme: Livraria de Direito,

    1994. P. 56. (destacou-se)

  • 11

    Na seqncia temos a famigerada Lei n. 8.072 de 25 de julho de 1990, mais conhecida como Lei dos Crimes Hediondos - por muitos considerada uma lei hedionda por certas impropriedades jurdicas cuja apreciao escapa os contornos do presente trabalho - que tambm probe o indulto e a liberdade provisria para o trfico de drogas, alm de duplicar os prazos judiciais, garantindo assim uma priso provisria mais longa para os acusados pelos crimes dos arts. 12, 13 e 14 da Lei n. 6.863/76.

    Por fim, impende notar que o contexto histrico destas ltimas leis totalmente diverso, devido ao fim da guerra fria e abertura poltica brasileira, porm o rigor penal ainda presente, no mais contra os comunistas ou subversivos, mas contra os marginais e traficantes, para o novo esteretipo do inimigo que compromete a segurana nacional (das classes hegemnicas e mais abastadas) surge a figura do jovem latino-americano, do imigrante pobre, do jovem negro das favelas, do traficante de drogas ilcitas, daqueles que no se encaixam no sistema capitalista monoplico de base industrial, como mencionado nos tpicos anteriores, revelando enfim a ...funcionalidade mtica da droga para o exerccio daquele controle social penal mximo sobre as classes marginalizadas, cujos filhos so recrutados para trabalhar nos arriscados estgios de produo e comercializao....6

    O estgio mais recente do processo histrico-evolutivo da legislao brasileira est consubstanciado na Lei n 10.409/02, que entrou em vigor no dia 27 de fevereiro de 2002 e dispe sobre a preveno, o tratamento, a fiscalizao, o controle e a represso produo, ao uso e ao trfico ilcitos de produtos, substncias ou drogas ilcitas que causem dependncia fsica ou psquica, assim elencados pelo Ministrio da Sade, e d outras providncias.

    Ocorre que, quando da sano presidencial, inmeros foram os dispositivos vetados (cerca de 30% de todos os dispositivos aprovados pelo Congresso), inclusive o art. 59 que revogava a Lei n 6.368/76. O projeto que seguiu para a presidncia, e que j apresentava problemas de sistematizao, devido aos inmeros substitutivos aprovados durante a sua longa tramitao, ficou ainda mais confuso aps os vetos.

    6 BATISTA, Nilo. op. cit. p. 89.

  • 12

    As principais inovaes so de carter procedimental - como a defesa preliminar - vez que o captulo que institua novos delitos (captulo III) foi vetado, em sua totalidade, causando srio embarao para a eficcia dos dispositivos mencionados, sem contar os inmeros problemas de interpretao. Dificuldades tambm existem em relao aos dispositivos que se referem ao tratamento do dependente e do usurio de drogas, em razo do veto ao artigo que previa o tratamento como uma das medidas aplicveis a determinados crimes.

    A referida lei deu um tratamento mais abrangente questo das drogas,se preocupando com a fiscalizao e o controle e dando nfase a preveno com a previso de seis medidas: 1) Celebrao de convnios nacionais e internacionais (art. 4); 2) Orientao escolar (art. 4, nico); 3) Elaborao e anlise de dados e informaes (art. 5); 4) Inspees locais (art.6); 5) Elaborao de programas voltados preveno (art. 10); e 6) Programas de reinsero no mercado de trabalho de dependente ou usurio (art. 12, 3).

    A nova Lei, em seu art. 11, prev que tanto o dependente quanto o usurio de produtos, substncias ou drogas ilcitas que causem dependncia fsica ou psquica, relacionados pelo Ministrio da Sade, devam ser encaminhados para tratamento. Como observam vrios membros da comunidade jurdica e mdica, a eficcia de um tratamento compulsrio, pelo simples envolvimento do agente com substncia entorpecente, sem a prvia distino entre o usurio e o dependente, muito questionvel. Assim como nem todos que tomam um copo de usque so alcolatras, tambm h quem use drogas sem ser dependente. Em termos mdicos, risvel conden-lo a tratamento compulsrio7

    O tratamento compulsrio previsto como uma das medidas possveis no projeto aprovado (art. 21, II), para o caso de condenao por crime de consumo pessoal, foi vetado pelo Presidente, juntamente com todos os demais dispositivos contidos no captulo que o abrigava (Captulo III). Por esta razo, o verdadeiro alcance do tratamento e da internao previstos na Seo II do Captulo II da Lei 10.249/02 e a questo da justia teraputica devem ser observados com cautela. Quatro so as hipteses:

    1) Tratamento espontneo

  • 13

    O 5 do art. 12 traz uma obrigatoriedade que deve ser atendida nos casos de internao ou de tratamento por ordem judicial. Contudo, nada impede que a internao ou o tratamento serem espontneos.

    2) Obrigatoriedade de tratamento para os casos de inimputabilidade (art. 29 da Lei 6.368/76)

    A Lei 6.368/76 permanece em vigor, no que no foi contrariada pela nova Lei. Desta forma, nada obsta que permanea sendo aplicado o artigo 29 da Lei 6.368/76, por meio do qual quando o juiz absolver o agente, reconhecendo, por fora da percia oficial, que ele, em razo de dependncia, era, ao tempo da ao ou da omisso, inteiramente incapaz de entender o carter ilcito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, ordenar seja o mesmo submetido a tratamento mdico. A lei anterior previa o tratamento obrigatrio sob o regime de internao hospitalar nas situaes em que o quadro clnico do dependente ou a natureza de suas manifestaes psicopatolgicas assim o exigirem (art. 10), tratando-se "de medida meramente profiltica, sem carter penal, que tem por objetivo nico promover o tratamento e a cura do vcio, no caso do dependente e a eliminao dos fatores fsico-psquicos que levam o usurio ao consumo da droga.

    3) Tratamento como pena substitutiva

    Com o advento da Lei 9.714/98, para as hipteses previstas no art. 16 da Lei 6.368/76, possibilitou-se a aplicao de sanes substitutivas, visto que a pena no ultrapassa o limite de quatro anos (art. 44 do CP). Ao que tudo indica, no existe qualquer obstculo possibilidade do magistrado instituir o tratamento ou internao como pena substitutiva, na hiptese do uso de substncia entorpecente. O problema a ineficcia da medida, j que na rea da sade no se tem dvida de que somente se consegue algum resultado positivo quando o tratamento realizado com a anuncia do paciente.

    7 Lei descuidada. Folha de So Paulo, 6 jan. 02, p. A-2.

  • 14

    4) Tratamento como conseqncia da transao penal

    possvel fixar o tratamento do dependente como medida alternativa nos juizados especiais (Leis 9.099/95 e 10.259/01). Porm, em se tratando de transao penal, o consenso do acusado deve estar presente, tanto no que diz respeito ao tratamento, como no que se refere a aceitao da proposta ministerial pelo agente (art. 76 da Lei 9.099/95).

    3 A PROPOSTA DA JUSTIA TERAPUTICA

    Atualmente observa-se o crescimento de manifestaes e estudos a respeito da chamada justia teraputica que um programa judicial dirigido aos infratores envolvidos com drogas lcitas e/ou ilcitas, que envolve medidas de sade em substituio aplicao das penas previstas em nosso ordenamento jurdico.

    Segundo a sistemtica adotada, o membro do Ministrio Pblico prope ao infrator que ele seja avaliado por equipe de sade, interdisciplinar e, se indicado, receba a ateno teraputica necessria ao seu caso. A proposta ministerial feita para o acusado em juzo, com o crivo do juiz e do seu defensor. Se aceita a proposta, a mesma homologada pelo juzo e o processo suspenso.

    Para os defensores da justia teraputica, a mesma pode ser utilizada com amparo em outros textos legislativos que no somente a atual lei de txicos, seno vejamos: a. No Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei n 8.069/90), as medida protetivas do Art. 101, aplicadas como medidas scio-educativas do Art. 112; b. Na suspenso condicional do processo, segundo os princpios do Juizado Especial Criminal; c. Na transao penal, segundo os princpios do Juizado Especial Criminal; d. Na suspenso condicional da pena - sursis do Art. 77 do Cdigo Penal; e. No livramento condicional do Art. 85 do Cdigo Penal; f. Na limitao de fim de semana, como pena restritiva de direitos, do Art. 43 do Cdigo Penal.

    So destacadas algumas vantagens da justia teraputica, como no fato de evitar a priso e seus efeitos nefastos, o que representa um menor custo social e financeiro para o Estado. O arquivamento do processo tambm extremamente benfico por no gerar antecedentes criminais. Argumenta-se tambm sobre a maior integrao entre os operadores do direito e os profissionais da sade, mas como

  • 15

    visto essa integrao no nenhuma novidade, marcando um possvel retorno ao modelo sanitrio, j adotado anteriormente pela poltica criminal de drogas no Brasil.

    Como desvantagens, observe-se a equiparao que muitas vezes feita entre o usurio no dependente com o usurio dependente, j que a proposta atinge a todo e qualquer agente que tenha praticado um crime envolvido com as drogas. O modelo fora o usurio de drogas no dependente a fazer um tratamento de que no precisam. J o dependente somente poder optar pelo tratamento se, durante o processo de drogadio, o sistema penal no criminalizar sua conduta, caso contrrio o tratamento ser obrigatrio, bem como o processo de rotulao.

    Para muitos, o consumo deve ser tratado como questo de sade pblica e no com o sistema penal, que deve tratar do trfico organizado. Neste sentido, a justia teraputica refora o binmio droga-crime (medicalizao da delinqncia), como um possvel e sutil retorno ao sistema do duplo-binrio que previa a aplicao de medidas de segurana ps-delitivas indeterminadas, uma vez que o tratamento e seu resultado no podem estar vinculados ao processo penal. No que diz respeito ao usurio, a resposta penal imprpria, porque o indivduo que necessita de tratamento e educao somente os ter realmente se no for selecionado pelas agncias oficiais de controle.

    Na viso de muitos, a justia teraputica seria a verso tupiniquim das drug courts norte-americanas, que cooperam com a criminalizao ao exigir testagens de abstinncia obrigatrias, comparecimento regular s terapias, etc.

    A esse propsito, nota-se mais uma vez que a correlao crime-doena-pecado tem sido bem utilizada para a questo das drogas ilcitas, de modo que uma sentena condenatria teria o efeito de punir-curar-exorcizar o criminoso-doente-pecador, com bem demonstra a histria. No pode ser desconsiderada tambm uma certa geo-poltica das drogas8 que se expressa na forte influncia dos organismos internacionais (encabeados por certos pases), sobre o processo global de criminalizao das drogas. Influncia esta motivada por interesses econmicos aliados a uma polarizao falaciosa dos pases-consumidores como vtimas e dos pases-produtores como agressores, justificando intervenes militares e medidas

    8 Nota do Autor: Para maior aprofundamento sobre a geopoltica das drogas vide o profcuo trabalho

    de ROSA DEL OLMO: A face oculta da Droga. Traduo de T. Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

  • 16

    de controle externo para evitar o trfico de drogas ilcitas, mesmo que isto comprometa a soberania nacional de muitos pases e os direitos de muitas pessoas, especialmente as classes suburbanas como se fossem sub-cidados ou cidados de segunda classe despojados de uma significativa esfera de direitos. Verdadeiras vtimas de violaes livres e legtimas praticadas pelas instncias oficiais de controle em nome da verdadeira guerra santa contra as drogas, sob aplausos da grande massa. triste observar que o reprovvel princpio cunhado por MAQUIAVEL tem sido habilmente aplicado: Os fins justificam os meios. Ad exemplum, vale esclarecer que nas imediaes dos locais da Amrica do Sul, onde os fuzileiros navais norte-americanos despejaram suas poderosas drogas para destruir plantaes de coca, comeam a nascer agora crianas deformadas.9 Onde est a preocupao com a sade pblica?

    bom salientar que a intensidade das medidas repressivas diretamente responsvel pelo aumento do preo final das drogas ilcitas, proporcionando um incremento substancial do lucro obtido pelos altos escales - no raras vezes polticos, empresrios ou outros cidados detentores de grande respeitabilidade e status social. Tambm pesaroso reconhecer que quando as redes do Sistema Penal so lanadas, s os peixes pequenos que so capturados.

    A partir da posio escolhida pelo Estado, surge um parmetro geral para o bem de toda a sociedade, ainda que estejam fortemente resguardados os interesses das classes dominantes (verbi gratia, propriedade privada dos meios de produo, mais- valia, venda da fora de trabalho, lei da oferta e da procura) dos quais decorre um fator de influncia na atuao do sistema penal como instrumento de reproduo ideolgica destes interesses e manuteno das conseqentes relaes sociais existentes entre as classes dominantes e as classes dominadas. H muito tem sido passada a imagem de que o ordenamento jurdico, mecanismo natural de organizao social, construdo a partir do consenso para o bem de toda a sociedade, o que no passa de um grande sofisma como destaca Capeller:

    Interessa aos detentores do poder reproduzir ideologicamente uma falsa imagem de que o Estado imparcial na aplicao do sistema legal (que compreende a criminologia), sempre tentando equilibrar e conciliar os interesses dos diversos grupos sociais. Mas, apesar de que a classe dominante no est controlando diretamente o sistema legal, o sistema penal

    9 BATISTA, Nilo. op. cit. p. 62

  • 17

    defende os interesses desta classe. Assim, o controle do crime se torna o maior esquema do Estado na sua promoo da sociedade capitalista.10

    As caractersticas do discurso penal e suas funes desempenhadas dentro da estrutura social passam ento a ser distinguidas segundo a definio legal de certos comportamentos socialmente negativos, imposta a partir da viso e dos interesses das classes dominantes, revelando a natureza poltica do ato de criminalizao e afastando com vigor as idias da pretensa neutralidade cientfica para ressaltar ainda mais que: A ideologia dominante em uma formao social , via de regra, a ideologia das classes dominantes11.

    Reforando as caractersticas e o papel do sistema penal em uma sociedade estratificada de classes, temos evidenciado o crime e o criminoso como entes polticos. Para ser criminoso no basta a prtica de determinado ato criminalizado em lei, mas alm do desrespeito a um preceito contido em norma penal preciso pertencer as classes economicamente inferiores. a presena cumulativa destes dois fatores (mais especificamente do segundo) que ativa a interveno do sistema penal por representar grave ofensa ao princpio poltico de que deve existir uma passiva submisso tirania dos grupos dominantes, pois no matar ou roubar o que se penaliza, mas a atitude de rebeldia contra as estruturas que tais atos estejam a revelar12.

    4. CONSIDERAES FINAIS

    Na busca pelo efetivo prestgio dos Direitos Humanos preciso derrubar certos mitos antigos, erigidos em torno da questo das drogas ilcitas dentre outras questes penais como a reduo da maioridade penal, a adoo da pena de morte e a aplicao massiva de penas privativas de liberdade cada vez maiores - e que apenas serviram (e servem) para justificar uma logstica penalista bem como o controle social penal das classes perigosas, dos inteis, dos incmodos, dos desajustados e inadaptveis - como se exps linhas acima - daqueles que no

    10 CAPELLER, Wanda Maria de Lemos. Criminalidade estrutural: aspectos ideolgicos do controle

    social. In: Revista de Direito Penal e Criminologia n. 34. Rio de Janeiro: Forense, jul-dez/1982. p 69. 11

    CAPELLER, Wanda Maria de Lemos. op. cit. p. 67. 12

    THOMPSON, Augusto. Quem so os criminosos? Rio de Janeiro: Achiam, 1983. p. 134.

  • 18

    desempenham nenhum papel dentro do atual esquema capitalista de produo (propriedade privada dos meios de produo e venda de fora de trabalho, pelo preo de salrio13) e, atualmente, de consumo. Afinal, repita-se, como impor a disciplina do trabalho a um contingente cada vez maior de pessoas desempregadas? A um exrcito crescente que revela a prpria incoerncia do sistema?

    Os mitos do senso comum so fecundados a partir de imagens/valores/ esteretipos transmitidos pelos agentes oficiais, com incisiva determinao dos interesses polticos que os forjaram e que, mesmo se revestindo de uma certa tcnica, no so absolutamente neutros, mas revelam a ranosa persistncia daquele velho e mrbido olhar lombrosiano e darwinista concebido nos fins do sc. XIX.14

    Entretanto, deve prevalecer a solidariedade humana sobre a disciplina, pensar o contrrio aplicar o Direito Penal em descompasso com nossa realidade social, principalmente se estamos tratando do Sistema Penal cuja principal justificativa centra-se na pretensa defesa social. Sempre que houver meno a palavra sociedade, h de ser considerados indiscriminadamente todos os indivduos que a integram, j que de outro modo restaria evidenciada apenas uma ntida tendncia genocida, manifestando-se como um sintoma de uma estrutura social excludente e discriminatria.

    Lic Wacquant, em recente estudo, destaca o fato de que nas sociedades ocidentais ps-guerra est acontecendo uma substituio progressiva de um (semi) Estado-providncia por um Estado penal e policial em que a criminalizao da marginalidade e a conteno punitiva das categorias deserdadas faz as vezes de poltica social. Alm disso, a progressiva retratao do Estado Social conjugada ao crescimento constante do Estado Penal tem revelado o surgimento de um Estado centauro gerado por uma cabea liberal montada sobre um corpo autoritarista.15

    13 SANTOS, Juarez Cirino dos. Violncia Institucional. In: Revista de direito penal, n. 28, jul./dez 1979,

    Rio de Janeiro: Instituto de Cincias Penais do Rio de Janeiro: Forense. p. 14

    BATISTA, Vera Malaguti. Difceis ganhos fceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia: Freitas Bastos, 1998. p. 106.

    15 WACQUANT, Lic. Punir os pobres: a nova gesto da misria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro:

    Instituto Carioca de Criminologia: Freitas Bastos, 2001. pp. 20-1.

  • 19

    Consoante estudo apresentado no 7 Simpsio Internacional de Vitimologia (RJ/agosto 1991), todos precisam ser urgentemente esclarecidos dos males decorrentes do uso de drogas. Mas estas informaes devem ser levadas com respeito dignidade e a individualidade humana, o respeito ao outro. A comunidade deve intensificar os seus esforos para conhecer e delimitar o uso de drogas (tanto lcitas como ilcitas) e tambm para prestar solidariedade queles que esto expostos e sofrem diretamente como integrantes de um grupo de risco, para que eles saibam que no esto sozinhos.16

    O Estado pode e deve sim otimizar o processo de recuperao e tratamento, mas no fazendo uso do sistema penal que comprovadamente no tem a capacidade de resolver a situao de maneira adequada.

    No pode ser convalidada a racionalizao da seletividade decisria sob a idia de igualdade e segurana jurdica, uma vez que o dficit de tutela real dos direitos humanos compensado pela iluso criada no senso comum de uma segurana jurdica e de uma cega confiana no Direito Penal e nas instituies de controle.17

    Consoante perspicaz formulao de Eugenio Ral Zaffaroni, para a construo de um Direito Penal Igualitrio existem certos princpios para a limitao da violncia por excluso de pressupostos de disfuncionalidade grosseira para os Direitos Humanos que devem ser atendidos, como exemplo o Princpio da Limitao Mxima da Resposta Contingente, que um indicador retor para que todas as agncias judiciais assegurem a aplicao de um iderio repressivo oriundo de um amplo debate pblico e participativo, para velar pela supremacia constitucional que exige das agncias legislativas uma tica republicana.18

    Todavia, repita-se, no h que se olvidar o equacionamento destas e de outras situaes existentes dentro da atual Poltica Criminal brasileira no que tange ao problema das drogas ilcitas.

    16 CAMPOS, Benedito Roque da Silveira. Preveno ao uso indevido de drogas aspectos

    vitimolgicos. In KOSOVSKI, Ester. Vitimologia: enfoque interdisciplinar. Rio de Janeiro: Reproarte, 1993. p.45. 17

    ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A iluso da segurana jurdica: do controle da violncia violncia do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 313.

    18 ZAFFARONI, Eugenio Ral. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal.

    traduo Vania Romano Pedrosa, Amir Lopes da Conceio. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 240.

  • 20

    Se estas questes ainda no foram debatidas de maneira satisfatria, no h com que se preocupar, porquanto a constituio do direito , mesmo, uma faceta do processo histrico-social e scio-poltico19, ou seja, deve estar em constante mutao para acompanhar a evoluo da sociedade, e s assim estar apto a atender as necessidades desta. Neste sentido, deve existir o compromisso da comunidade jurdica em revelar e buscar uma soluo para as possveis incongruncias existentes entre os diversos textos normativos, sempre em benefcio da norma de hierarquia superior, caso contrrio compromete-se estrutura do prprio sistema jurdico e, em ultima anlise, a defesa da sociedade e a necessria efetivao dos Direitos Humanos.

    5 BIBLIOGRAFIA

    ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A iluso da segurana jurdica: do controle da violncia violncia do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

    BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal: introduo sociologia do direito penal. Traduo de Juarez Cirino dos Santos. 2 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: Instituto Carioca de Criminologia, 1999.

    BATISTA, Nilo. Poltica criminal com derramamento de sangue. In: Revista Brasileira de Cincias Criminais, n. 20, So Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997.

    ________. Punidos e mal pagos: violncia, justia, segurana pblica e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

    BATISTA, Vera Malaguti. Difceis ganhos fceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia: Freitas Bastos, 1998.

    ________. A construo do transgressor. Texto distribudo aos Alunos do Mestrado em Criminologia e Direito Penal da Universidade Cndido Mendes (UCAM-RJ). Rio de Janeiro, 2000. CAMPOS, Benedito Roque da Silveira. Preveno ao uso indevido de drogas aspectos vitimolgicos. In KOSOVSKI, Ester. Vitimologia: enfoque interdisciplinar. Rio de Janeiro: Reproarte, 1993.

    CAPELLER, Wanda Maria de Lemos. Criminalidade estrutural: aspectos ideolgicos do controle social. In: Revista de Direito Penal e Criminologia n. 34. Rio de Janeiro: Forense, jul-dez/1982.

    19 LYRA, Roberto. Carta aberta a um jovem criminlogo: teoria, prxis e tticas atuais. In: Revista de

    direito penal, n. 28, jul./dez 1979, Rio de Janeiro: Instituto de Cincias Penais do Rio de Janeiro: Forense. p. 14.

  • 21

    CONSTITUIO DA REPBLICA FEDERATIVA DO BRASIL: promulgada em 5 de outubro de 1988/ obra coletiva de autoria da editora Saraiva com a colaborao de Antonio Luiz Toledo Pinto, Mrcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Luiz Eduardo Alves Siqueira. 27 ed. So Paulo: Saraiva, 2001.

    DIAS, Jorge de Figueiredo, ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinqente e a sociedade crimingena. Coimbra: Coimbra Editora Limitada, 1992.

    LYRA, Roberto. Carta aberta a um jovem criminlogo: teoria, prxis e tticas atuais. In: Revista de direito penal, n. 28, jul./dez. 1979, Rio de Janeiro: Instituto de Cincias Penais do Rio de Janeiro: Forense.

    MENNA BARRETO, Joo de Deus Lacerda. Estudo geral da nova lei de txicos. 3 ed. rev. e aumentada. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1982.

    DEL OLMO, Rosa. A face oculta da Droga. Traduo de T. Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

    SANTOS, Jos Wilson Seixas. Lei antitxicos comentada. 2 ed. rev. atual. Leme: Livraria de Direito, 1994. P. 56.

    SANTOS, Juarez Cirino dos. Violncia Institucional. In: Revista de direito penal, n. 28, jul./dez 1979, Rio de Janeiro: Instituto de Cincias Penais do Rio de Janeiro: Forense.

    THOMPSON, Augusto. Quem so os criminosos? Rio de Janeiro: Achiam, 1983.

    WACQUANT, Lic. Punir os pobres: a nova gesto da misria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia: Freitas Bastos, 2001.

    ZAFFARONI, Eugenio Ral. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Traduo Vania Romano Pedrosa, Amir Lopes da Conceio. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

    Button1:

    Button2: