o sistema de justiÇa e suas instituiÇÕes ensaios à luz dos direitos humanos e democracia

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Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406Catalogação: Fabiana Lorenzon PratesCorreção ortográfica: Fabiano FeltenDiagramação: Daiana Stockey Carpes

Essere nel MondoRua Borges de Medeiros, 76Cep: 96810-034 - Santa Cruz do SulFones: (51) 3711.3958 e 9994. 7269www.esserenelmondo.com.br

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COMITÊ EDITORIAL

Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa – Direito – UFSC e UNIVALI/Brasil

Prof. Dr. Alvaro Sanchez Bravo – Direito – Universidad de Sevilla/Espanha

Prof. Dr. Carlos M. Carcova – Direito – UBA/Argentina

Prof. Dr. Demétrio de Azeredo Soster – Ciências da Comunicação – UNISC/Brasil

Prof. Dr. Doglas César Lucas – Direito – UNIJUI/Brasil

Prof. Dr. Eduardo Devés – Direito e Filosofia – USACH/Chile

Prof. Dr. Eligio Resta – Direito – Roma Tre/Itália

Profª. Drª. Gabriela Maia Rebouças – Direito – UNIT/SE/Brasil

Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin – Direito – UNIJUI/Brasil

Prof. Dr. Giuseppe Ricotta – Sociologia – SAPIENZA Università di Roma/Itália

Prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa – Direito – UNIFOR/UFC/Brasil

Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho – Direito – UERJ/UNESA/Brasil

Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet – Direito – PUCRS/Brasil

Prof.ª Drª. Jane Lúcia Berwanger – Direito – UNISC/Brasil

Prof. Dr. João Pedro Schmidt – Ciência Política – UNISC/Brasil

Prof. Dr. José Luiz Bolzan de Morais – Direito – UNISINOS/Brasil

Profª. Drª. Kathrin Lerrer Rosenfield – Filosofia, Literatura e Artes – UFRGS/Brasil

Profª. Drª. Katia Ballacchino – Antropologia Cultural – Università del Molise/Itália

Profª. Drª. Lilia Maia de Morais Sales – Direito – UNIFOR/Brasil

Prof. Dr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão – Direito – Universidade de Lisboa/Portugal

Prof. Dr. Luiz Rodrigues Wambier – Direito – UNIPAR/Brasil

Profª. Drª. Nuria Belloso Martín – Direito – Universidade de Burgos/Espanha

Prof. Dr. Sidney César Silva Guerra – Direito – UFRJ/Brasil

Profª. Drª. Silvia Virginia Coutinho Areosa – Psicologia Social – UNISC/Brasil

Prof. Dr. Ulises Cano-Castillo – Energia e Materiais Avançados – IIE/México

Profª. Drª. Virgínia Appleyard – Biomedicina – University of Dundee/ Escócia

Profª. Drª. Virgínia Elizabeta Etges – Geografia – UNISC/Brasil

CONSELHO EDITORIAL

Fabiana Marion Spengler – Direito – UNISC e UNIJUI/Brasil

Theobaldo Spengler Neto – Direito – UNISC/Brasil

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2014

Santa Cruz do Sul

1ª edição

O SISTEMA DE JUSTIÇA E SUAS INSTITUIÇÕES

Ensaios à luz dos Direitos Humanos e Democracia

Fabiana Marion Spengler

Giancarlo Montagner Copelli

Marcelo Dias Jaques

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Arranca metade do meu corpo, do meu coração, dos meus sonhos.

Tira um pedaço de mim, qualquer coisa que me desfaça. Me recria, porque eu não suporto mais pertencer a tudo,

mas não caber em lugar algum.

José Saramago

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AGRADECIMENTO

Nosso profundo agradecimento e deferência a todos os res-ponsáveis pelo Programa de Mestrado em Direitos Humanos da Uni-versidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, em especial a seu coordenador, prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin, e à prof. Dra. Fabiana Marion Spengler, responsável pela disciplina do progra-ma que empresta o nome a esta obra.

À Fundação de Integração, Desenvolvimento e Educação do Noroeste do Estado – FIDENE/Unijuí e à Fundação de Amparo à Pes-quisa no Estado do Rio Grande do Sul – FAPERGS pelo incentivo con-cedido na forma de bolsas de estudo.

Aos demais professores, Dr. Alfredo Copetti Neto, Dr. Andre Leonardo Copetti Santos, Dra. Angelita Maria Maders, Dr. Argemiro Luis Brum, Dr. Daniel Rubens Cenci, Dr. Doglas Cesar Lucas, Dra. Elenise Felzke Schonardie, Dr. Enio Waldir da Silva, Dr. Ivo dos Santos Canabarro, Dra. Janaina Machado Sturza, Dr. Leonel Severo da Rocha, Dra. Vera Lucia Spacil Raddatz e à incansável Janete T. Sloczinski Guterres, secretária do programa, nosso muito obrigado! Ao longo do curso, vocês foram – e certamente o serão nas turmas que se seguem – responsáveis por promover as necessárias rupturas, pe-culiares aos bons programas de pós-graduação, a quem se propõe à pesquisa acadêmica.

Gabriel, Giancarlo, Marcelo, Márcia, Pablo e Queli.

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SUMÁRIO

Apresentação............................................................................................8

Prefácio..................................................................................................10 CAPÍTULO 1O SER E O DEVER SER: A lacuna entre a realidade e o direito a partir da mecânica hobbesiana e suas implicações na pós-modernidade........................12Fabiana Marion SpenglerGiancarlo Montagner Copelli

CAPÍTULO 2O EXAURIMENTO DO MODELO JURISDICIONAL: Ponderações sobre um diagnóstico possível.................................................................................30Márcia Silvana Felten

CAPÍTULO 3A CRISE DA JURISDIÇÃO: Novas estratégias ao sistema de justiça...................42Gabriel de Lima Bedin

CAPÍTULO 4DURAÇÃO DO PROCESSO NO BRASIL E NOVAS ALTERNATIVAS NASCIDAS COM A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/2004...........................................58Queli Cristiane Schiefelbein da Silva

CAPÍTULO 5CAMINHOS PARA A CIDADANIA:A mediação comunitária como instrumento efetivo para a resolução de conflitos..............................................................................................72Marcelo Dias Jaques

CAPÍTULO 6O DESAFIO DA JURISDIÇÃO FRENTE À SOCIEDADE DE CONSUMO: A arbitragem como solução para os conflitos nas relações comerciais.............88Pablo Rodolfo Nascimento Homercher

CAPÍTULO 7A ESSENCIALIDADE DA PROCURADORIA GERAL DO ESTADO PARA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: Atuação pautada no interesse coletivo e nos direitos humanos, em um cenário de esgotamento do modelo jurisdicional...........................................................................102Priscila Tahisa Krause

Os Autores...........................................................................................122

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APRESENTAÇÃO

A tentativa de pensar o mundo em que estamos inseridos é sempre um de-safio significativo e que possui grandes riscos. É que não dispomos de um lugar de observação isento a partir do qual possamos olhar o mundo e avaliar as suas tendências e as suas transformações. Essa dificuldade parece ainda maior quando olhamos para o mundo atual, pois estamos diante da conformação de uma realida-de cada vez mais complexa e permeada por grandes incertezas.

Nesse sentido, alguns autores vão descrever a realidade atual como o mo-mento da passagem da modernidade sólida (do mundo das certezas) para o da modernidade líquida (mundo das incertezas); outros, como o momento da pas-sagem da modernidade (e suas metas-teorias compreensivas) para a pós-moder-nidade (e a fragmentação dos seus relatos e da valorização das subjetividades); um terceiro grupo, como o momento de transição entre a primeira modernidade (do Estado e seus limites territoriais) para a segunda modernidade (do Sistema-Mundo). São todos excelentes exemplos e indicam que está em curso uma grande mutação histórica.

Este ponto de partida compartilhado é muito importante para a compreen-são do mundo atual e serve como chave interpretativa para muitas mudanças que podem ser sentidas nas diversas áreas do conhecimento. Entre estas está a Ciência Jurídica e as instituições que compõem o objeto de suas reflexões. Daí, portanto, a busca de elaboração de novas teorias explicativas da realidade jurídica atual e a tentativa de compreensão do esgotamento de certos institutos jurídicos tradicio-nais e da emergência de novos fenômenos jurídicos (como, por exemplo, o surgi-mento de novas fontes produtoras do direito e de novas formas de sua aplicação).

A presente obra, que tenho a honra de apresentar, preocupa-se com esta úl-tima questão: com as novas formas de aplicação do direito. O seu ponto de partida é que a conformação da nova etapa da caminhada da humanidade desencadeou um conjunto de enormes desafios para o direito e, de forma especial, para o Poder Judiciário. Os referidos desafios geraram uma crise estrutural na capacidade do Es-tado, a partir da jurisdição estatal tradicional, em responder de forma adequada os volumosos e complexos conflitos da sociedade atual.

Neste sentido, partilham, em boa medida, a percepção de que o Poder Judi-ciário está, apesar de todas as tentativas de adaptação, desassociado da realidade social, política e econômica existente na sociedade atual. Assim, destacam, é pos-sível afirmar que, no momento atual, enquanto a sociedade, a economia e a política são extremamente dinâmicas, o Estado e seus poderes permanecem alheios à reali-dade, gerando déficits de representatividade, efetividade e eficiência.

No Brasil, o referido distanciamento é ainda maior. Isto ocorre por vários

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motivos. Os principais são dois. O primeiro é o tipo de formação jurídica existente no país. Esta é excessivamente voltada para uma cultura legalista, centrada na so-brevalorização da legalidade em contrapartida da juridicidade. O segundo motivo é o excessivo apego do Poder Judiciário a uma visão processual do direito carac-terizada por uma postura liberal e individualista típica ainda do século 19 e, em consequência, avessa aos padrões mais democráticos e coletivos dos conflitos.

O encontro destes diversos fatores leva à crise do Poder Judiciário (crise não somente de sua autonomia diante dos fluxos econômicos globais, mas uma crise também funcional, decorrente da aceleração do tempo, da complexidade e do vo-lume dos conflitos da sociedade atual) e à urgente busca de novas estratégias de tratamento e de solução dos conflitos.

Estes são alguns dos temas tratados neste excelente livro O Sistema de Justi-ça e Suas Instituições: Ensaios à Luz dos Direitos Humanos e Democracia, organiza-do pela professora Fabiana Marion Spengler e pelos mestrandos do Curso de Mes-trado em Direitos Humanos da UNIJUÍ, Giancarlo Montagner Copelli e Marcelo Dias Jaques. Portanto, aborda temas atuais e relevantes. A análise teórica utilizada nos artigos é atual e a crítica feita ao Poder Judiciário e à sua crise é elaborada a partir de uma clara dissonância democrática. Isso significa que os autores reconhecem as relevantes contribuições que o referido Poder tem na manutenção da democracia e sua importância histórica na conformação do denominado sistema de freios e contrapesos típico do Estado Democrático de Direito. Assim, em poucas palavras, a presente obra é de leitura obrigatória para todos que se preocupam com o tema. Boa leitura a todos os interessados.

Gilmar Antonio BedinDoutor em Direito do Estado

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNIJUÍ

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PREFÁCIO

São muitos e variados os estudos dedicados ao tema da Jurisdição e seus reflexos no Brasil contemporâneo. Muitas também são as conclusões. Para aqueles que retratam a crise da prestação jurisdicional como uma crise estrutural e material do Poder Judiciário, a solução é aumentar o número de magistrados e servidores, melhorar as condições de trabalho e as tecnologias empregadas. Outros acusam o descompasso das teorias processuais de cunho liberal-individualistas em relação aos temas complexos e coletivos da sociedade contemporânea. Há aqueles que, de modo um pouco mais elaborado, destacam a crise da jurisdição como uma dupla crise: do modelo de Estado e da dogmática jurídica. Diante destes diagnósticos, é inevitável que surjam propostas alternativas à jurisdição, que tem na mediação a sua defesa mais intensa.

O certo é que das muitas conclusões e percepções do problema, pouco ecoa de efetivo na qualidade da prestação da justiça em nosso País, de modo que as crí-ticas e estudos a respeito do tema se avolumam e continuam com a tarefa de com-preender melhor este cenário. Os Tribunais permanecem abarrotados de processos; a República Brasileira foi apropriada pela elite e pelos altos funcionários do Estado que criaram um direito para si mesmos, em conteúdos e interpretações, enquan-to os dissabores de salários baixos e políticas públicas apenas assistencialistas mantêm o escárnio da desigualdade social juridicamente amparada; a lentidão da prestação jurisdicional é ainda mais gritante num tempo de liquidez e de angústias; problemas empresarias internacionais, de alto impacto no cotidiano, têm prefe-rido a arbitragem; os Tribunais internacionais cada vez mais povoam de sentido os direitos internos, e exagerada politização da justiça tem colaborado para uma espécie de perigosa judicialização da democracia - parece que nada do que de fato interessa à vida pode ser feito ou desfeito sem a chancela de um magistrado. E não há sinais evidentes de que num futuro próximo este quadro se altere.

E qual o papel da teoria do direito nesse contexto? Obviamente que a crise da jurisdição é, ao mesmo tempo, uma crise do modelo de direito moderno e das for-mas teóricas de sua discursividade. O positivismo normativista, matriz dominante na racionalidade compreensiva e instrumental do direito, auxilia na manutenção de teorias míopes e práticas dissociadas do real. É como se o direito fosse pensado e praticado, dominantemente, como uma tecnologia incapaz de sentir e de intervir no que de fato compõe todas as narrativas da realidade social, sobretudo naque-las que reproduzem os contextos de segregação tão constitutivos de nosso país. Apesar de todas as tentativas das teorias denominadas pós-positivistas o encontro histórico e material entre o direito e a democracia no Brasil ainda não vingou e nem empolga.

Se o saber crítico não nos permite tornarmos pessimistas irresponsáveis,

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igualmente não nos sugere que nos tornemos românticos ingênuos. O Brasil melho-rou em grande medida desde a CF de 1988, mas poderia e deveria ter melhorado mais. E isso vale especialmente para o direito brasileiro, suas instituições e a teoria jurídica. Por isso recebi com alegria o convite para prefaciar o livro O Sistema de Justiça e suas Instituições – Ensaios à luz dos Direitos Humanos e Democracia, orga-nizado pela professora Drª Fabiana Marion Spengler e pelos mestrandos em Direi-tos Humanos na Unijuí Giancarlo Montagner Copelli e Marcelo Dias Jaques, porque textos como esse, pelo conteúdo e especialmente pelo processo de sua elaboração, mantêm vivas algumas esperanças.

Esta obra coletiva tem um conjunto de méritos. Em primeiro lugar porque oportuniza aos alunos iniciantes na pesquisa um espaço para arriscarem-se pela escrita, pela sistematização de ideias e pela ousadia em fazer afirmações. Assim, se aprende que não precisamos estar sempre certos, que teorias são leituras sobre o mundo e não o próprio mundo, e que autores são humanos do mundo e não os autores do próprio mundo inventado pelas suas teorias. Em segundo lugar, porque os textos enfrentam o tema da jurisdição e seus reflexos de forma substancial, fugindo dos encobrimentos das epistemologias positivistas, mesmo que às vezes com excesso de otimismo. Por fim, gostaria de destacar o protagonismo da profes-sora Drª Fabiana Marion Spengler, amiga e colega, pela capacidade de despertar o espírito investigativo de seus alunos e de auxiliá-los de modo substancial na cons-trução de suas próprias trajetórias como futuros pesquisadores. Este livro é mais um exemplo da dedicação e da capacidade intelectual da professora Fabiana que ajudam a consolidar o Mestrado em Direitos Humanos da Unijuí.

Eis um texto de muitas mãos e muitos olhares, mas sobretudo um livro de muitas evidências, inquietações e possibilidades para se pensar a prestação da jus-tiça num Brasil de muitos sabores e dissabores. Boa leitura a todos.

Ijuí, 14 de abril de 2014.

Doglas Cesar LucasPós-doutor em Direito pela Università degli Studi Roma Tre, Itália. Doutor

em Direito pela UNISINOS e Mestre em Direito pela UFSC. Professor nos cursos de Graduação e Mestrado em Direito da UNIJUÍ. Professor no Curso de Graduação em Direito do Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo – IESA. Professor

Visitante do Mestrado em Direito da URI – Santo Ângelo. Avaliador MEC/INEP.

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O ser e O dever ser:A lacuna entre a realidade e o direito a partir da mecânica hobbesiana e suas

implicações na pós-modernidade

Fabiana Marion Spengler1

Giancarlo Montagner Copelli2

1 Fabiana Marion Spengler possui graduação em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, mestrado em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul. É doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e pós-doutora pela Universidade degli Studi di Roma Tre. Atualmente é professora adjunta da Universidade de Santa Cruz do Sul lecionando na graduação as disciplinas de Direito Civil - Família, Processo Civil I, Mediação e Arbitragem, e na pós-graduação junto ao Programa de Mestrado e de Doutorado em Direito as disciplinas de Políticas Públicas no Tratamento de Conflitos e Políticas Públicas para uma nova jurisdição. É professora colaboradora da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, lecionando na graduação as disciplinas de Direito de Família e Direito da Mediação e da Arbitragem e na Pós-graduação junto ao Programa de Mestrado em Direitos Humanos a disciplina de Sistemas de Justiça e suas Instituições. Publicou diversos livros e artigos cientí-ficos. Desenvolveu atividades de consultora junto ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, no âmbito do projeto BRA/05/036 executado pela Secretaria de Reforma do Judiciário ligada ao Ministério da Justiça. É líder do grupo de pesquisa “Polí-ticas Públicas no Tratamento dos conflitos”, certificado pelo CNPQ. É também presidente do núcleo municipal de Santa Cruz do Sul do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Recebeu Menção Honrosa no Prêmio Capes de Teses 2008. Recebeu o primeiro lugar no Prêmio SINEPE/RS 2010 na categoria “Responsabilidade Social” pelo projeto de extensão em Mediação.

2 Bacharel em Filosofia pela Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul e especialista em Ética e Filosofia Política pela AVM Educacional. Mestrando em Direito – Área de Concentração em Direitos Humanos – da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí. Integrante do Núcleo de Educação e Informação em Direitos Humanos - NEIDH/Unijuí, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito da mesma universidade. Membro do Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos, Relações Interna-cionais e Equidade”, vinculado ao CNPq, atuando na linha de pesquisa “Globalização, Interdependência e Direitos Humanos”. Bolsista da Fundação de Integração, Desenvolvimento e Educação do Noroeste do Estado – FIDENE/Unijuí.

CAPíTUlO 1

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1. Notas introdutórias

Quando nos propomos a pensar o sistema de justiça e suas instituições, a filosofia política de Thomas Hobbes mostra-se como um caminho inevitável. Afinal, como bem ensina Bedin (2008), é do Leviatã3 proposto pelo contratua-lista inglês que surge o Estado Moderno4.

Entretanto, é um legado polêmico. Segundo Oliveira (2012), são várias as interpretações da obra hobbesiana e, muitas delas, em tom pejorativo. Isso ocorre porque, diferente de Rousseau5, que também utiliza a metáfora do estado natural6 em sua obra, ou seu conterrâneo, Locke, o autor de Leviatã e De Cive, como mostra Bedin (2008), foi um observador da sociedade desprovido dos romantismos típicos da Idade Antiga, retomados, depois, na Idade das Luzes.

É na perspectiva hobbesiana de estado natural, contrária à retórica otimis-ta do pensamento clássico, portanto, que se formou a base para uma sociedade cujo poder é centralizado de forma racional, ou seja, cujo fundamento do poder não deriva do direito divino ao trono, tampouco da tradição. Em Hobbes, o po-der é o resultado acabado de um acordo, um pacto entre todos e que, por isso mesmo, implica necessariamente a razão e a noção de indivíduo enquanto ser biográfico, e não mais apenas biológico.

Esse salto – do biológico ao biográfico – necessário ao contrato, “separou o indivíduo [o criou, na verdade] da ordem social e o instalou no centro, como sujei-to da modernidade e a origem da lei” (DOUZINAS, 2009, p. 85 – colchetes nossos). Com isso, Hobbes não apenas distancia-se do pensamento clássico, mas se opõe: o ponto de partida não é mais o homem na sociedade, mas o homem isolado da sociedade, em um metafórico estado natural que, rompendo com a tradição, pas-

3 O Leviatã, que dá título à principal obra de Hobbes, se refere ao monstro bíblico presente no livro de Jó, nos capítulos 40 e 41. “Na Bíblia, é o ser mais forte que existe, chamado constantemente para salvar o Homem do caos advindo de seu estado de natureza” (DIEHL, 2009, p. 30-31).

4 Os fundamentos teóricos para o surgimento do Estado Moderno, conforme Bedin (2008), estão principalmente em autores como Maquiavel e Bodin, além de Hobbes. Aqui, este último é privilegiado na análise de seu pensamento porque, sobretudo no que se refere à jurisdição, “sua reinvenção do mundo jurídico continua incomparável. Podemos resumir sua contribuição ao afirmar que Hobbes é o fundador da ideia moderna de direitos individuais, o primeiro filósofo a substituir completamente o conceito de justiça pela ideia de direitos. Quando se compreende esse aspecto da sua obra, o positivismo jurídico torna-se o acompanhamento e o parceiro necessários do discurso dos direitos, e algumas das críticas liberais a Hobbes perdem muito de sua validade [...] A origem ou a base do direito não é mais a observação de relações naturais, a especulação filosófica sobre a melhor república ou a interpretação dos mandamentos divinos, mas a natureza humana” (DOUZINAS, 2009, p. 83-84).

5 Para Hobbes (2009), o homem é o lobo do homem, e a vida em sociedade – dentro do contrato – é o que faz cessar a guerra de todos contra todos. Em oposição, para Rousseau, o homem é um bom selvagem (FORTES, 2007) e a vida em sociedade é o que o corrompe. Entretanto, o ser humano, diante de contextos e reações singulares apreendidas pela realidade não pode ser reduzido nem ao competidor inato pintado por Hobbes, nem ao ser naturalmente bom desenhado por Rousseau. O homem, ao passo que é mais complexo que o que podem descrever ambas as teorias, não pode ter sua vida reduzida à obediência à norma, nem tampouco à ausência completa desta em sua vida. Nesse sentido, convém ressaltar a lição de Morin (apud SILVA, 2012, p. 240 – grifo do autor), ao observar, no homem, a dualidade que integra sua essência: “[...] homo demens e homo sapiens estão sempre juntos, ancoram-se um no outro”.

6 Para o pensador inglês Thomas Hobbes (1588-1679), no estado de natureza, o homem, entre outros fatores, é movido por paixões, busca prazeres e bens. Consequentemente, esta condição faculta uma guerra sem mediações em que tudo é lícito (ROCHA, 2010).

Fabiana Marion Spengler e Giancarlo Montagner Copelli

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sa a ser a resposta mais justa às relações humanas, a despeito do transcendente. Assim, o conceito hobbesiano de lei natural7 é, para Douzinas (2009, p. 84), “uma clara declaração e definição dos modernos direitos do homem”.

Ocorre, entretanto, que o Estado Moderno, surgido à semelhança do Leviatã hobbesiano, ao reivindicar monopólios em nome da paz e da segurança, sobre-tudo no que se refere à jurisdição, reduziu as vontades da outrora necessária individualidade humana8 à posição estatal, imprimindo, assim, a oposição entre conceitos como certo e errado, entre permitido e proibido, entre pureza e imun-dície. Diz Bauman (1998, p. 14), ao analisar o mal-estar da pós-modernidade, em obra de mesmo nome:

O oposto da ‘pureza’ – o sujo, o imundo, os ‘agentes poluidores’ – são ‘coisas fora do lugar’. Não são as características intrínsecas das coisas que as trans-formam em ‘sujas’, mas tão-somente sua localização e, mais precisamente, sua localização na ordem das coisas idealizada pelos que procuram a pureza [...] Há, porém, coisas para as quais o ‘lugar certo’ não foi reservado em qual-quer fragmento da ordem preparada pelo homem9.

O modelo hobbesiano, assim, estatiza o mundo dos direitos a partir “de uma certeza pós-moderna de respostas corretas únicas a conflitos morais e ju-rídicos” (DOUZINAS, 2009, p. 15), propondo uma verdade – a verdade estatal – como ponto de regulamentação de condutas. Entretanto, a verdade, como pro-duto da intersubjetividade humana, é relacionada ao ponto de vista dos sujeitos do conhecimento do grupo. Daí decorre a crise jurisdicional: recorremos ao único ente – o Estado, munido de uma verdade – autorizado a tratar conflitos, esperan-do deste uma resposta pronta, rápida, justa e verdadeira, esquecendo, porém, que o conflito, enquanto fenômeno, não pode, em muitos casos, constituir-se, em essência, de uma verdade, mas, sim, de várias verdades.

Feitas essas considerações iniciais, esse artigo pretende esmiuçar a mecâ-nica hobbesiana enquanto elemento teórico legitimador desse modelo, já que, recorrendo mais uma vez às palavras de Bedin (2012, p. 07), “não há rupturas sem heranças, sem o peso do passado”. Desse modo, buscando analisar a mecânica hobbesiana que fundamenta contratualmente o poder – de sua filosofia moral a

7 Conforme o capítulo XIV do Leviatã, para Hobbes, resumidamente, “lei natural (lex naturalis) é a norma ou regra geral estabelecida pela razão que proíbe o ser humano de agir de forma a destruir sua vida ou privar-se dos meios necessários a sua preservação” (HOBBES, 2009, p. 97-98).

8 A noção de indivíduo é fundamental para o contrato hobbesiano e, em certo sentido, assemelha-se ao indivíduo autônomo kantiano: “[...] o Eu desejante projeta a si mesmo no mundo e se torna um agente soberano, para Hobbes, ou um sujeito autônomo e responsável, para Kant” (DOUZINAS, 2009, p. 87).

9 A ideia de pureza, assim, leva inevitavelmente à lembrança de contextos históricos gravemente marcados por esse intento – caso do nazismo, por exemplo – bem como a regimes políticos igualmente delimitados por um fascínio fanático pela pureza travestida de ordem – caso dos regimes totalitários –, em que o Estado chamava a si a responsabilidade e o monopólio do uso de quaisquer meios nessa empreitada. Nesse sentido, con-vém ressaltar que a propaganda nazista idealizada pelo Ministro da Propaganda de Hitler, Josef Goebbels, vinculava os judeus a ratos e demais pragas que, para a manutenção ou conquista da pureza e ordem alemãs, deveriam ser, evidentemente, exterminados como tal (PONTES, 2007): literalmente, uma limpeza em nome da pureza.

Cap. 1 - O ser e o dever ser

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sua filosofia política, determinada igualmente pelo movimento de sua filosofia natural –, pretendemos, por fim, apontar a fragilidade e os elementos constituti-vos do que, hoje, denominamos crise, sobretudo no que toca à jurisdição. Não se trata, portanto, de apontar alternativas à crise jurisdicional, mas, sim, de delimi-tar os fatores e efeitos que a tornam tão visível nos dias atuais.

Para a realização da presente pesquisa, foi utilizado como método de aborda-gem o dedutivo, no qual se pretendeu partir da análise de categorias consideradas fundamentais para o desenvolvimento do tema – tais como as filosofias natural, moral e política hobbesianas que sustentam o contrato social, a crise do Estado e, por conseguinte, da jurisdição. Como método de procedimento utilizou-se o comparativo, uma vez que se pretendeu investigar os pontos de aproximação e distanciamento entre a jurisdição e as lacunas dela decorrentes. Como técnica de pesquisa aplicou-se a bibliográfica, baseada em documentação indireta, que serviu de base teórica para o desenvolvimento do estudo.

2. O princípio mecânico da filosofia hobbesiana

Antes de compreender o núcleo central da filosofia política hobbesiana, ou seja, o conflito em si, convém analisar a divisão da filosofia do autor de Leviatã em três ramos, conforme Finn (2007), separados da seguinte maneira: natural, moral e político. Enquanto o primeiro ramo filosófico, para Hobbes, trata das propriedades dos corpos na natureza, investigando os movimentos mecanica-mente, como aqueles produzidos pela gravidade, por exemplo, o segundo de-tém-se exclusivamente nos corpos humanos, de modo que uma reação humana é o resultado mecânico de uma ação emocional, mental ou sentimental.

A filosofia moral, para Hobbes, não se ocupa dos seres humanos como se fossem corpos inertes; em vez disso, ela estuda aspectos de nossa natureza tais como nossas ações, emoções e estados da mente. Todavia, de acordo com sua visão de natureza, a descrição de Hobbes dessas pro-priedades ou eventos humanos é mecanicista. Em outras palavras, somos similares a máquinas com estados mentais e emocionais. Para Hobbes, os objetos e eventos físicos no mundo natural indicam uma série de movi-mentos internos que no fim causam não somente nossos pensamentos, mas também nosso comportamento (FINN, 2007, p. 21).

Embora a filosofia natural hobbesiana pareça, com justiça, embasar sua filo-sofia moral pelo traço característico – e em comum – da obediência a uma espécie de lei mecânica, é na relação entre a segunda e sua filosofia política que reside todo o fundamento do estado natural hobbesiano.

Conforme Hobbes, as ações humanas, ao obedecer à mecânica das ações emotivas e sentimentais, ou aos estados mentais a que Finn alude, buscam o bem, mas de forma individualizada, como fica claro em sua obra De Cive

Fabiana Marion Spengler e Giancarlo Montagner Copelli

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(2002), ao destacar que cada homem deseja aquilo que é bom para si. Ou seja, cada homem busca, individualmente, aquilo que os sentidos, as emoções e os tais estados mentais compreendem como bom, de modo que Hobbes vincula esta condição “a uma noção subjetiva de bem” (FINN, 2007, p. 21).

Se, na filosofia natural hobbesiana, os corpos, sejam eles quais forem, estão sujeitos a leis naturais e obedecem a movimentos mecânicos reativos à determi-nada ação, e a filosofia moral do pensador inglês vincula reações emotivas a pro-cessos mentais e individualizados – e, portanto, subjetivos –, sua filosofia políti-ca, ao voltar-se aos corpos políticos, relaciona as reações destes aos movimentos originados pelas emoções e sentimentos humanos. “Através do conhecimento dos movimentos da mente, descobrimos os movimentos pelos quais o Estado é criado. Os princípios da política, diz Hobbes, consistem no conhecimento dos movimentos da mente” (FINN, 2007, p. 23 – grifo do autor).

Assim, podemos concluir que, para Hobbes, a filosofia busca analisar os cor-pos em três planos distintos: o natural, o moral – ou humano – e o político. Em todas estas esferas, há reações – ou movimentações – relativas a ações. No plano natural, os corpos materiais estão sujeitos a leis literalmente naturais. No plano moral, a natureza humana é explicada através de um posicionamento mecânico e de uma relativa e individualizada noção de bem. Já no plano político, os corpos atinentes a esta seara têm seu deslocamento, ou seja, sua reação, relacionada às ações e aos sentimentos humanos.

2.1. O mundo político como reflexo da mecânica moral

Como observado anteriormente, Hobbes distingue três planos de obser-vação: um natural, outro moral e, um terceiro, político, derivado das reações humanas. Entretanto, todos esses planos têm um elo em comum, qual seja, a noção de corpo em movimento. Nesta perspectiva, compreender o mundo po-lítico implica, necessariamente, compreender o mundo moral – ou humano –, esmiuçado por Hobbes em sua teoria mecanicista do agir humano que, segundo Rocha (2010), determina a ação humana de acordo com sensações, imaginação, entendimento, linguagem, paixões internas, conceitos de bem e de mal, e de medo e esperança.

Assim, se o mundo externo é compreendido inicialmente através das sensações, a imaginação é o fruto destas mesmas sensações captadas ante-riormente, ou de projeções desencadeadas pela linguagem. Esta, por sua vez, promove o movimento rumo ao entendimento. Já a razão, dentro da teoria mecanicista do agir humano, é o reflexo do entendimento enquanto processo ordenado ou, em outras palavras, lógico.

Se, inicialmente, as sensações são os fatores desencadeantes da mecânica

Cap. 1 - O ser e o dever ser

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humana e têm, por sua vez, origens externas, como o olfato, por exemplo, as pai-xões são principiadas internamente. Dessa forma, de acordo com Rocha (2010), se nossa imaginação nos move em direção a algo, temos um desejo, ou seja, o reflexo de uma paixão. Por outro lado, se nosso entendimento nos move em direção opos-ta a algo, temos aversão, que não é nada além de outra paixão.

Desejo e aversão são nossos critérios básicos de bem e mal. Se algo nos causa desejo, é bom. Se algo nos causa aversão, é mau [...] Na situação que precede a criação do Estado [ou seja, no estado natural], cada um julga o que é bom e o que é mau para si [...] O desejo e a aversão são as paixões elemen-tares. Dela (sic) derivam todas as demais paixões, como é o caso do medo e da esperança [...] Ambas indicam probabilidade: quando temos medo, acre-ditamos que um dano é possível; quando temos esperança, acreditamos que podemos conseguir algo (ROCHA, 2010, p. 49 – colchetes nossos).

Se a mecânica humana, que começa externamente através das sensações e, internamente, através das paixões, é a sequência lógica que move o homem, tanto a razão quanto o entendimento estão a serviço das paixões. No entendi-mento hobbesiano, então, “pensamos para satisfazer nossos desejos ou para evitar os males. A paixão preencheria o fim e a razão preencheria os meios necessários” (ROCHA, 2010, p. 50).

Assim, nas palavras do autor de Leviatã, se a vida é “um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder que cessa apenas com a morte”, e a própria felicidade é “um contínuo progresso do desejo de um objeto para outro, não sendo a obten-ção do primeiro outra coisa senão o caminho para conseguir o segundo” (HOBBES, apud ROCHA, 2010, p. 50), o desencadeamento final da mecânica natural do agir humano, em Hobbes, é o conflito, já que há a possibilidade de desejo dos mesmos bens, caso da riqueza, ou das mesmas situações, caso dos postos de mando. Por fim, a mecânica humana, observado o ponto de vista hobbesiano, termina em luta, inimizade e guerra.

Com seu entendimento mecânico do agir humano, “Hobbes se vincula à posi-ção filosófica conhecida como relativismo moral [de modo que] não existe padrão natural algum para avaliar o status moral de nossas ações” (FINN, 2007, p. 92 – col-chetes nossos), ou seja: o homem, em estado natural, vê tudo como justo e como lícito, de acordo com o seu autointeresse.

Desse modo, a justiça ou licitude de tudo, no estado natural, pode ser ob-servada nos dizeres de Oliveira (2012, p. 54) como “possibilidade ou poder de ter direito a todas as coisas [...] Onde não há normas a limitar direitos e impor ou desautorizar condutas, não há certo ou errado, justo ou injusto; logo, tudo pode acontecer”.

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2.2. O Leviatã como artifício para abandonar o estado natural

Se no estado natural há, devido à rivalidade e à desconfiança, risco imi-nente, e, na teoria mecanicista do agir humano, o desejo ou a aversão regem o homem, o perigo desta condição, delimitado na típica expressão hobbesia-na – guerra de todos contra todos –, conduzirá o ser humano à aversão ao estado natural. Ou seja, se, por um lado, o homem é impelido pelo desejo à disputa por bens ou prazeres, ele repele, por outro, os perigos advindos do estado natural. Nesse sentido, o próprio desejo de poder a qualquer custo, como uma forma de buscar a autopreservação, também não é capaz de satis-fazer as necessidades decorrentes da aversão ao perigo, já que não há como impedir que os outros também busquem esta mesma condição como forma de preservação. Ao contrário, o poder, como forma de preservação, incitaria o ataque preventivo, perpetuando a mesma condição de perigo, típica do es-tado natural.

Por isso, é através da mesma razão, anteriormente a serviço de desejos e vontades, que um homem concorda, junto com os outros, que é necessário para a paz e para sua própria defesa abrir mão do direito a todas as coisas (HOBBES, 2009). Assim, nesse intuito de abandonar o estado natural ou, mais propriamente, o estado de guerra de todos contra todos, o homem depara-se com a criação de leis, ou seja, “uma norma ou regra geral estabelecida pela razão” (HOBBES, 2009, p. 97-98).

Essa lei, entretanto, implica renunciar ao direito a todas as coisas, ou seja, renunciar a uma liberdade incondicional presente no estado natural, muito embora seja esta uma condição de possibilidade para obter tudo o que se desejar. Além disso, diferente do estado natural – sem leis – a renúncia a tudo deve ser recípro-ca, isto é, não deve obedecer mais à subjetividade presente no relativismo moral a que Hobbes se alinha ao estabelecer a mecânica do agir humano. As leis, portanto, devem ser racionais, assim como são racionais os movimentos em estado natural, voltados à satisfação do homem na condição primitiva que antecede ao Estado. Assim, as leis...

... sendo pressupostos da razão [...] indicam ao homem que ele deve escolher entre permanecer no estado de natureza – estado de guerra de todos contra todos – ou optar (pois esta é a escolha decorrente da racionalidade) em resignar o seu direito a todas as coisas para convencionar, para pactuar as condições que o levem à paz [...] Ne-cessita-se, desta forma, estabelecer uma autoridade que seja respon-sável pela coercibilidade, não só das leis da natureza, mas de toda a normatividade surgida após o estado de natureza, uma vez que, para Hobbes, direito significa ausência de impedimento [...] e a presença de lei, a limitação, a restrição da liberdade surgida com o direito (OLI-VEIRA, 2012, p. 59).

Segundo o mesmo autor,

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[...] quando uma multidão de homens concorda e pactua, cada um com cada um dos outros, que qualquer homem ou assembleia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles, todos, sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembleia de homens, tal como fossem os seus próprios atos e decisões, a fim de vi-verem em paz uns com os outros e serem protegidos dos demais homens. É desta instituição da república que derivam todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem o poder soberano é conferido, mediante con-sentimento do povo reunido (HOBBES apud OLIVEIRA, 2012, p, 60).

Conforme Bedin (2008, p. 125), portanto, Hobbes substitui “a barbárie da horda – do estado natural – pela ordem da civilização do Estado e das prer-rogativas de uma ordem jurídica instituída”, construindo um estado artificial, concretizado sob a forma de um pacto, de uma convenção, de um contrato, determinando o que é legal ou não, o que é justo ou não, o que é bom ou não. O Estado é, para Hobbes, o ente capaz de, enfim, quebrar o ciclo da teoria me-canicista do agir humano, cujo fim é, inevitavelmente, o conflito.

3. A questão da verdade e os paradoxos do Leviatã

Sem perder de vista o contexto histórico, o projeto hobbesiano teve o objetivo de estancar as disputas políticas e religiosas que impediam o desenvolvimento da Inglaterra de seu tempo10, propondo um Estado de poder centralizado e projetado de maneira racional através do pacto entre os indivíduos, de acordo com sua teoria acerca da mecânica do agir humano. Para Hobbes, portanto, somente uma criação artificial – o Estado –, a despeito dos postulados aristotélicos11, modificando as concepções até então tradicionais de sociedade, poderia atingir tal objetivo, qual seja, regular a guerra de todos contra todos através do cálculo em que os ganhos, diante do Leviatã, fossem sempre apresentados como inferiores frente às retaliações prometidas. De acordo com Barreto (2013), é da base do pensamento hobbesiano, cujos fundamentos pudemos observar na primeira parte deste artigo, que surge o Estado Moderno12.

10 O filósofo inglês viveu os períodos conturbados da Guerra Civil Inglesa (1642-1649). Esse conflito se caracterizou pela insurgên-cia dos parlamentares ingleses, sob a liderança de Oliver Cromwell (1599-1658), contra o rei Carlos I (1600-1649). Segundo Rocha (2010), desde que o monarca assumira o reino, em 1621, suas relações com os parlamentares britânicos foram hostis, sobretudo por desentendimentos religiosos, voltados à política externa e à política fiscal. Entre esses problemas, mais especificamente, cabe destaque à destruição do equilíbrio religioso conquistado por Elizabete I, o fracasso em guerras contra Espanha e Escócia, e o descontentamento da população, provocado pela cobrança excessiva de impostos devido aos conflitos.

11 Aristóteles parte da ideia de que o homem é naturalmente sociável, sendo a vida na polis a busca por uma vida boa e virtuosa. Além de ser natural, a polis representava a capacidade de diferenciar o bem do mal, o justo do injusto, conforme Pinheiro (apud OLIVEIRA, 2012). Já Hobbes parte da ideia de que o ser humano não tem as características de que a tradição filosófica grega atribuía-lhe, de modo que este vive em sociedade apenas por sua essência utilitarista e autointeressada (OLIVEIRA, 2012). O convívio social não é, portanto, natural, mas uma forma para atingir seus fins de interesse próprio.

12 Segundo Barreto (2013), a teoria do direito pode ser compreendida em três fases: a primeira, centrada na filosofia hobbesiana; a segunda, alicerçada nesses mesmos fundamentos, sobreposta pelo positivismo de Kelsen; e a terceira que, por fim, desnuda-se como o momento atual, qual seja, o da crise do modelo.

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Conforme Douzinas (2009), Hobbes, ao propor as bases do Estado, inova frente à tradição, associando a liberdade – que não poderia ser restringida em es-tado natural – ao direito. Desse axioma hobbesiano, decorrem duas questões: 1º) se a liberdade é um direito natural, então em estado natural todos estão livres para agir de acordo com seus desejos; 2º) se todos estão livres para agir de acordo com suas próprias vontades, então não há esquemas valorativos. A partir dessas duas premissas, temos o conflito, já que cada um, assim, goza da liberdade/direito para atingir os objetivos oriundos do desejo.

Esse encadeamento de ideias, contudo, não explica apenas a barbárie em esta-do natural. É, também, o pano de fundo para a ordem. Afinal, o desejo pelo gozo tem na aversão à violência um contraponto, de modo que o homem passa, para sua se-gurança, a desejar o abandono da liberdade irrestrita para sua própria autopreserva-ção. Ou seja, o homem pactua, contrata e se sujeita ao Estado em nome de proteção contra seus semelhantes, substituindo o medo da morte na guerra de todos contra todos pelo medo da punição através do Estado.

Sem negar a validade do encadeamento lógico que leva Hobbes à idealização do Estado centralizado, reivindicando monopólios em nome da paz e da segurança difíceis de assegurar frente à liberdade irrestrita no metafórico estágio pré-pacto13, o fato é que o contraponto para a proteção contra os semelhantes foi a ausência de proteção – ou proteção mínima – contra o Estado:

Direitos naturais conflitantes conduzem ao pacto, que dá origem ao Leviatã, que estabelece a lei a fim de proteger e assegurar direitos individuais. A lei civil é criada por meio do avanço incontível dos direitos individuais, e a cria-ção da lei é a criação de direitos. Porém, esses são apenas direitos privados. Os direitos públicos, direitos contra o Estado, estão totalmente excluídos. A criação e o desfrute dos direitos privados são acompanhados por uma falta do que hoje chamamos direitos humanos. O preço pela proteção contra os outros é a mínima proteção contra o Estado (DOUZINAS, 2009, p. 94).

A democracia, de certa forma, abranda o problema apontado por Douzinas, ao im-por mecanismos negativos de controle do poder. Nesse sentido, convém destacar que o...

...que distingue a democracia é ter inaugurado uma história na qual foi abolido o lugar do referente de onde a lei ganhava sua transcendência, o que não toma, por isso, a lei imanente à ordem do mundo, e, ao mesmo tempo, não confunde seu reino com o do poder. [Assim] a democracia convida-nos a substituir a no-ção de um regime regulado por leis, de um poder legítimo, pela noção de um regime fundado na legitimidade de um debate sobre o legítimo e o ilegítimo - debate necessariamente sem fiador e sem termo (LEFORT, 1991, p. 57 – col-chetes nossos).

13 “As antropólogas Karen Ericksen e Heather Horton quantificaram o modo como a presença do governo pode afastar uma sociedade da vingança letal. Em um levantamento de 192 estudos tradicionais, elas constataram que a vingança entre indivíduos era comum em sociedades forrageadoras e que as rixas entre famílias eram comuns em sociedades tribais que não haviam sido pacificadas por um governo colonial ou nacional, particularmente se tivessem uma cultura extremada de honra masculina. O julgamento por tribunais, em contraste, era comum em sociedades que haviam sido postas sob o controle de um governo centralizado ou que tinham bases de recur-sos e padrões de herança que davam às pessoas algo mais a ganhar com a estabilidade social” (PINKER, 2013, p. 99).

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Contudo, se, do ponto de vista político, a democracia abranda a questão14, do ponto de vista jurisdicional o Estado é implacável ao valer-se de uma verdade – a verdade do Estado15 – para tratar o conflito que lhe chega, enquanto herdeiro da tra-dição hobbesiana, como único ente autorizado a fazê-lo. Busca, assim, regular tanto os desejos quanto as aversões descritas por Hobbes no seu encadeamento mecânico do movimento humano. Mas, afinal, considerando o conflito um fenômeno, pode lhe ser atribuída uma verdade em essência? Ou ainda, o que é a verdade?

Conforme Ferreira, (2004, p. 1.765), verdade é o que está em “conformi-dade com o real”. Ocorre, entretanto, que o real é o produto, numa perspectiva fenomenológica16, dado a partir de uma série de estruturas de intersubjetividade, de modo que “o mundo objetivo é, efetivamente, uma construção da intersubje-tividade” (FATTURI, 2010, p. 36). Assim, se o real decorre de construções inter-subjetivas, não é possível falar em uma verdade, mas em várias, de acordo com a intersubjetividade de cada sujeito do conhecimento. E, nesse contexto, a verdade do Estado é apenas uma. Assim, é possível observar, na lição de Spengler (2011, p. 214), que a verdade, ao caracterizar-se pela intersubjetividade, ao ser dita e/ou interpretada pelo Estado/Judiciário,“traduz-se numa forma de manipulação do mundo e dos outros”, dada a impossibilidade de se atingir o real.

Uma verdade, entretanto, mesmo diante da impossibilidade de observação de todos os contextos intersubjetivos que cercam o real – e não podemos perder de vista a necessidade de um mínimo valorativo17 que organize a vida em sociedade – parece fundamental. Há, contudo, um preço, além da exposição frente ao Estado mencionada na lição de Douzinas (2009).

Esse preço, para Bauman (2009, p. 26-32), afeta o mesmo indivíduo ideali-zado para o surgimento do contrato hobbesiano, retirando deste as capacidades de constituir-se enquanto individualidade, já que, na sociedade, os indivíduos “são

14 Insistimos em utilizar o verbo abrandar para tratar a questão. Afinal, mesmo em estados democráticos, como o Brasil, por exemplo, os direitos assegurados, de fato, são os de cunho privado, como bem observou Douzinas (2009). “Os direitos civis”, ou seja, aqueles que “protegem o cidadão contra as arbitrariedades do Estado” (MARSHALL apud COSTA e COLET, 2011, p. 77), são insuficientes frente à demanda dos cidadãos, sobretudo frente aos níveis presentes de desigualdade na sociedade brasileira (COSTA e CARNEIRO apud COSTA e COLET, 2011). Condição que, talvez, seja fruto de uma Constituição romântica, que prevê muitos direitos sem o necessário acompanhamento de políticas públicas associadas a esses mesmos direitos, o fato é que, conforme Douzinas (2009, p. 240), “possuir um direito em termos abstratos não significa muito se os recursos materiais, institucionais e emocionais para a sua concretização não estão disponíveis”.

15 Podemos associar a verdade estatal, no campo jurisdicional, à redução de todas as vontades a uma só, tal qual projeta a filosofia política hobbesiana ao propor o contrato. Ora, esta não é o produto da vontade coletiva deliberada através da representação política?

16 A adoção da fenomenologia, nesse caso, parece a mais acertada porque se, por um lado, a verdade liga-se ao real, por outro ex-pressa necessariamente um valor. Entretanto, segundo Reale (1996, p. 207-208 – grifo nosso), “o valor não se reduz ao real, nem pode coincidir inteiramente, definitivamente com ele [...] Os valores não são uma realidade ideal que o homem contempla como se fosse um modelo definitivo, ou que só possa realizar de maneira indireta, como quem faz uma cópia. Os valores são, ao contrário, algo que o homem realiza em sua própria experiência e que vai assumindo expressões diversas e exemplares, através do tempo”. Desse modo, a verdade só se fundamenta no ponto de vista do sujeito do conhecimento, ou seja, no ponto de vista fenomenológico – sobretudo de Husserl, mais ligado à intersubjetividade.

17 Conforme Lucas (2010), uma sociedade de significativa diversidade não pode, ou melhor, não precisa aceitar os mesmos instrumen-tos e conceitos, mas precisa saber dialogar a partir de uma base comum de valores.

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tudo, menos indivíduos diferentes e únicos”, porque a “forma como as coisas são” virou “a forma como as coisas devem ser feitas”. Bauman, na sua análise, entabula uma discussão acerca dos paradoxos do capitalismo nas sociedades contemporâ-neas, e não trata – ao menos nesse ponto – dos problemas que decorrem da jurisdi-ção. Entretanto, cabe a questão: a norma pode ser algo além da intersubjetividade estatal sobre o dever ser?

Para Reale (1996, p. 462 – grifo do autor), não: “[...] a Ciência Jurídica, pro-priamente dita, desenvolve-se no plano do dever ser lógico”. Assim, o direito cons-titui-se em uma espécie de guardião de espaços idealizados, ou, ainda, de reali-dades que nunca são, mas deveriam ser. Por isso, para Bauman (1998, p. 26), a contemporaneidade é marcada pela tendência a...

...fortalecer-se contra aqueles que [...] ameaçam exibir o potencial suicida da estratégia, ao estender sua implementação ao último grau da lógica. A mais odiosa impureza da versão pós-moderna da pureza não são os revolu-cionários, mas aqueles que ou desrespeitam a lei, ou fazem a lei com suas próprias mãos (BAUMAN, 1998, p. 26).

Esse contorno cientificista do mundo jurídico, rechaçando com veemência qualquer intersubjetividade contrária à do Estado, ao percorrer uma trajetória que vai da tradição hobbesiana ao positivismo de Kelsen (BARRETO, 2013), falhou ao re-tirar o homem do metafórico estado de natureza (SPENGLER, 2012). Afinal, o pacto, expresso pela vontade do legislador como fonte primária do direito...

...não trouxe o fim dos conflitos e nem mesmo significou o extermínio das práticas de autotutela. O que se verifica atualmente é a existência de um espaço social periférico que, na ausência estatal, torna-se campo fértil para o surgimento e desenvolvimentos de forças paralelas que, além de criar, muitas vezes impõem um direito pela força e pela coação. Tal se dá porque à medida que diminuem a presença e a participação do Estado em determinados espaços sociais/comunitários, a tendência é o aumento da organização e da aplicação de regras criadas pelo cidadão, objetivando o tratamento de conflitos [...] O problema, na maioria das vezes, se instala diante da ausência do Estado ou da dificuldade de aplicação do direito ofi-cial que, muitas vezes, depende de um moroso procedimento legislativo a ser instituído e de outro procedimento tão demorado para ser aplicado. Cansados de esperar, os sujeitos criam e aplicam suas próprias regras (SPENGLER, 2012, p. 60).

Tal condição – que demonstra com propriedade, sobretudo, uma crise de ju-risdição, mas também de forma indelével uma crise do Estado como um todo – as-sinala o distanciamento entre direito e realidade, colocando em dúvida a crescente jurisdicionalização dos conflitos e o papel exercido especialmente pelos magistra-dos que, nessas situações, se tornam a boca da lei18, reproduzindo o que determina

18 O berço da concepção do poder judiciário como mero aplicador da lei possui raízes muito profundas, voltadas ainda para a determi-nação de tarefas por parte dos três poderes instituídos por John Locke e depois por Charles-Louis de Secondat Montesquieu, em que cada um deveria exercitar seu papel sem qualquer tipo de interferência nas atribuições dos demais. Assim, as funções do Estado estão divididas de forma clássica em Legislativo, Executivo e Judiciário.

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a norma legal, cumprindo o papel que lhes é delegado pelo Estado soberano – pai19 – e sentenciando sobre a contenda. Nesse contexto, é importante observar o enten-dimento de Resta (2004, p. 97), que salienta:

A minha ideia é que um sistema judiciário chamado a decidir sobre tudo, e com poderes muitas vezes discricionários e, nos fatos, pouco controláveis, é o lugar que oculta quotas fortes de irresponsabilidade: consente álibis e cobre a forte diferença entre aquilo que o sistema da jurisdição diz que é, e o que faz, e aquilo que na realidade é e faz.

Por conseguinte, Resta (2004) escreve sobre a oferta monopolista de justiça que foi incorporada no interior do sistema da jurisdição, delegado a receber e a regular uma conflitualidade crescente; porém, o que levou a altos graus de ineficiência o sis-tema da jurisdição foi um crescimento vertiginoso das expectativas e das perguntas a isso referidas, já que o Estado, herdeiro da tradição hobbesiana, monopoliza a tarefa de tratar conflitos. Em sentido técnico se chama explosão da litigiosidade, possuindo muitas causas, nunca analisadas com profundidade. O fato é que a atenção sempre es-teve mais voltada para os remédios – no sentido de constantes reformas das normas – e quase nunca às causas da litigiosidade que cresce, que é constantemente traduzida na linguagem jurídica e que se dirige à jurisdição sob a forma irrefreável de procedimen-tos judiciários. Além do mais, ao assumir tal função, o Estado não se volta à eliminação das tensões conflitivas buscando a segurança e a paz, retirando o homem da guerra de todos contra todos hobbesiana, mas o faz porque o próprio Estado, enquanto sistema social, não suportaria a perpetuação do conflito (MORAIS e SPENGLER, 2012).

4. À guisa de conclusão

Como pudemos depreender até o momento, o Leviatã hobbesiano não foi ca-paz de, através do pacto, retirar o homem do metafórico estado de guerra de todos contra todos. A crescente litigiosidade20, bem como os casos que, com certa periodi-cidade, chegam aos nossos olhos e ouvidos através da imprensa, dando conta da jus-tiça feita com as próprias mãos21, demonstram que a norma não corresponde a um

19 Para a compreensão do Estado/pai, não se pode perder de vista a obra de Freud (1996, 1.745-1.851), que discute em Totem e Tabu a relação de irmandade, dizendo que os irmãos são aqueles que possuem em comum a mesma impotência e a mesma rivalidade, disputan-do o poder do pai – ao menos uma parcela dele. Desse modo, criam uma solidariedade ao reconhecerem a figura paterna e ao desejarem, reciprocamente, a sua morte. Então, “a partir do momento em que a função paterna é reconhecida, os filhos são oprimidos” (ENRI-QUEZ, 1993, p. 35).

20 “O Relatório Justiça em Números 2013 [...] revela que o número de processos em trâmite no Judiciário brasileiro cresceu 10,6% nos últimos quatro anos [referente aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012; é o índice estatístico mais atualizado até o momento] e chegou a 92,2 milhões de ações em tramitação em 2012” (PORTAL CNJ, 2013 – grifo e colchetes nossos).

21 Em fevereiro de 2013, um jovem negro, nu, foi preso pelo pescoço, com uma trava de bicicleta, a um poste, no Rio de Janeiro. Conforme os mais variados veículos de informação, entre eles O Estado de S. Paulo (2013), o jovem negro, acusado de furto na região, seria vítima de justiceiros.

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instrumento que, isoladamente – ou como recurso absoluto –, possa tratar os confli-tos22, inerentes ao humano, de maneira positiva. Eis o reflexo da crise jurisdicional.

No cerne deste contexto, temos a questão da verdade que, reivindicada pelo Estado, paira à margem da realidade, impondo condutas e determinando rotinas. Evidentemente, isso não significa que a intersubjetividade contida na verdade possa permitir a tendência de supervalorização de juízos e va-lores, como se cada indivíduo pudesse fazer o que quisesse, ou a tendência de aceitar valores simplesmente porque provém de uma cultura específica, de um modo de ser, como se isso fosse suficiente para justificar conjuntos valorativos próprios, ou, ainda, como se o mero fato de estarmos inseridos em uma cultura fosse suficiente para, dentro de um contexto de orientação relativista, determinar o que é bom ou não (LUCAS, 2010). Afinal, se assim fosse, viveríamos em estágio semelhante à anarquia (DAHL, 2012).

Chegamos, assim, em uma espécie de aporia: de um lado, a impossibilidade de congregar as verdades oriundas do ponto de vista dos sujeitos do conhecimento do grupo; de outro, a lei, reivindicando a verdade, regulando a oposição de desejos e aversões, subtraindo a individualidade que caracteriza o ente descoberto para a própria criação do Estado, ou seja, à proposta artificial que, uma vez edificada, ex-pôs o indivíduo à criatura, tal qual Matrix23.

O indivíduo deixa, portanto, de ser indivíduo, e o ser passa a ser o dever ser. A realidade, assim, aparece fragmentada nas lacunas abertas, paradoxalmen-te, em um emaranhado de leis justificadas pela ordem e pela estabilidade. Desse modo, a lei, diferentemente da proposta racional idealizada por Hobbes, asseme-lha-se ao mito. Afinal,

A lei da modernidade irá revestir-se de inviolabilidade e transcendência, qualidades essas que serão resguardadas pela existência normativa, ge-ral e abstrata da lei. Por sua vez, e em consequência de suas caracte-rísticas formalísticas e hierárquicas próprias, a lei moderna criou o seu próprio mundo, fazendo com que a realidade legal resultasse do efeito mágico e invocações de fórmulas processualísticas, que os sacerdotes da lei e os indivíduos aceitam e aderem miticamente [...] Esse caráter sacerdotal do jurista já se encontrava presente no direito romano. No Digesto de Justiniano, explica-se a origem da palavra “ius”, referindo-se à elegante definição de Celso, para quem o direito consistia na técnica do bom e do justo. E continuava o texto do Digesto: essa a razão pela qual podemos “nos chamar de sacerdotes”. A idealização do direito e da

22 “A noção de conflito não é unânime [Entretanto,] na tentativa de uma explicação mais esmiuçada para a palavra conflito, tem-se que consiste em um enfrentamento entre dois seres ou grupos da mesma espécie que manifestem, uns a respeito dos outros, uma intenção hostil, geralmente com relação a um direito” (MORAIS e SPENGLER, 2012, p. 45 – colchetes nossos). Do ponto de vista democrá-tico, o conflito constitui-se em um meio de interação humana, “um meio de manter a vida social, de determinar seu futuro, facilitar a mobilidade e valorizar certas configurações ou formas sociais em detrimento de outras. Essa dinâmica conflitiva permite verificar que o conflito pode ser tão positivo quanto negativo e que a valoração de suas consequências se dará, justamente, pela legitimidade das causas que pretende defender” (MORAIS e SPENGLER, 2012, p. 53).

23 Produção cinematográfica dos irmãos Wachowski, Matrix questiona radicalmente a realidade e as formas de poder típicas das so-ciedades de controle (GALINDO, 2003).

25Fabiana Marion Spengler e Giancarlo Montagner Copelli

lei resultaria, afirma o Digesto, do fato de que o jurista “cultiva a justi-ça e professa o saber do bom e do justo, separando o justo do injusto, discernindo o lícito do ilícito, pretendendo tornar bons os homens, não somente pelo temor dos castigos, mas também pelo estímulo aos prê-mios, dedicados, sem erro, a uma verdadeira filosofia” (BARRETO, 2013, p. 19 – grifo do autor).

O direito, assim, remete à assertiva de Bedin (2008, p. 07) na introdução des-te texto: “não há ruptura sem herança”. Ocorre, entretanto, que a herança não é do moderno ao contemporâneo, mas do antigo e medieval ao pós-moderno: o direito, no século XXI, permanece quase como uma criação divina, um dado pronto e trans-cendente, preso a uma verdade e separado, por consequência, da realidade que o cerca. Novamente, recorremos a Barreto (2013, p. 19):

O pensamento jurídico do último século representou um esforço inau-dito na busca de uma definição comum de lei, que permitisse uma ade-quação objetiva e racionalmente explicada das relações da norma com a realidade fugidia. Esse esforço, ainda que por caminhos teóricos di-vergentes, terminou por criar a mitologia da lei moderna, voltada a es-tabelecer uma ordem normativa autônoma e autossustentável. A lei não pode fazer tudo, mas se permite tudo, encaixando-se na definição de mito de Lévi-Strauss: “o mito serve para proporcionar uma solução apa-rente de problemas que não são passíveis de solução final”.

A solução final, contudo, é o dever ser, e seu êxito não pode significar outra coisa além de autoritarismo. Conforme Lefort (1991, p. 42) ao rever Toc-queville:

Recordemo-nos principalmente do quadro que esboça na última parte de De la Démocratie en Amérique, quando propõe que se imagine “ sob quais traços novos o despotismo poderia ocorrer no mundo”. Após evocar o iso-lamento dos cidadãos (“cada um retirado a um canto, e como que estranho a todos os outros”), ele encadeia: “Acima deles eleva-se um poder imenso e tutelar, que se encarrega unicamente de assegurar o gozo dos indivíduos e cuidar de seus destinos. É absoluto, meticuloso, regular, previdente e man-so. Seria semelhante à força paterna se, como esta, tivesse por objetivo o de preparar os homens para a idade viril; mas, ao contrário, procura tão-somente e irrevogavelmente fixá-los na infância; gosta que os cidadãos re-jubilem-se com a condição de só desejarem a rejubilação. Trabalha de bom grado para a felicidade dos cidadãos; mas quer ser-lhes o único agente e o único árbitro; provê sua segurança, prevê e assegura suas necessidades, fa-cilita seus prazeres, conduz seus negócios principais, dirige suas indústrias, acerta suas sucessões, divide suas heranças; só da inquietude de pensar e da pena de viver não pode inteiramente aliviar-lhes”. Depois, prossegue na descrição de um poder empenhado em cobrir a superfície inteira da socieda-de com uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes, deixando claro que esse poder “absolutamente não tiraniza, mas intimida, constrange, extingue, entorpece”.

Por isso, ainda na esteira de Lefort (1991), o Estado não pode tornar-se o grande órgão que comanda todos os movimentos do corpo social em uma democracia. A lei não pode ser desvinculada da sociedade, ou ligada a

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ela apenas como fonte de dominação, mas, sim, caracterizada, dada a plu-ralidade que forma em essência a verdade em um contexto fenomenológico, por um ethos mínimo, embasado na própria sociedade. Eis, aí, ainda que de maneira pálida, uma possibilidade de aproximação entre a lei, a verdade e a realidade.

Entretanto, como obstáculo a esse caminho, recai o peso da tradição – não da clássica, a dos antigos, mas da moderna, inaugurada por Hobbes. Afinal, é das bases do Leviatã que surgiu o Estado Moderno, propondo monopólios em nome da paz e da segurança ao ponderar, como ponto de partida, os homens como “similares a máquinas” (FINN, 2007, p. 21). Essa gênese mecânica – pro-duzida a partir da filosofia natural hobbesiana e refletida na política – tornou a natureza humana uma hipótese científica voltada a padrões e movimentos (DOUZINAS, 2009). O homem hobbesiano corresponde, assim, a um ser rígido e, por isso, previsível. O direito, como contraponto, corresponde a um dever ser igualmente rígido, atuando como uma resposta pronta, capaz de tornar o ser previsível em um dever ser previsto. A lei, assim, desvincula-se do real, e, por isso, o direito, preso a essa tradição, não é capaz de lidar, de forma eficaz, com os conflitos da contemporaneidade, sejam eles sociais, políticos, culturais ou econômicos.

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Cap. 1 - O ser e o dever ser

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Fabiana Marion Spengler e Giancarlo Montagner Copelli

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O eXAUrIMeNTO dO MOdeLO JUrIsdICIONAL:

Ponderações sobre um diagnóstico possívelMárcia Silvana Felten24

24 Bacharela em Direito, Especialista em Direito Processual Civil e Mestranda – Área de concentração Direitos Humanos – em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí. Bolsista da Fundação de Integração, Desenvolvimento e Educação do Noroeste do Estado – FIDENE/Unijuí. Advogada.

O exaurimento do modelo jurisdicional

CAPíTUlO 2

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1. Notas introdutórias

Da mesma forma como uma doença é diagnosticada a partir dos sintomas, o exaurimento jurisdicional é a inafastável conclusão de uma série de fatores inter-re-lacionados, crescentes e não estáveis. Desde a estruturação do serviço judiciário, fincados em polos geográficos com número pré-definido de servidores e comarcas, passando pela litigiosidade difundida alcançando a multiplicação geométrica de-sordenada da sociedade, todas as circunstâncias agregam alguma medida de peso ao cálculo do exaurimento e da inacessibilidade à justiça.

No entanto, a análise do contexto permite apreender que a inflexibilidade do sistema jurisdicional refletida no processo, a ferramenta utilizada para o tratamen-to dos conflitos, contribui para agravar o esgotamento. Instrumento essencial para a pacificação social e a distribuição da justiça (escopos idealizados) em um campo isonômico de paridade de armas para as partes, sua formatação objetiva estabilizada tende a não comportar a totalidade das insatisfações que circundam a controvérsia, destinando a resolver a lide proposta - e não a contingência real. Por conseguinte, o descompasso entre o ideal do acesso à justiça, do modelo jurisdicional e o processo traça os sintomas da insuficiência do serviço estatal judiciário, ao que se denomina comumente de crise.

2. O acesso à justiça

As medidas reformatórias aplicadas na legislação processual brasileira se-dimentam preocupação elevada com o resultado da jurisdição em detrimento da formalidade25. Inobstante o constante aperfeiçoamento do percurso no sistema ju-risdicional, cuja existência já representa uma premissa à ordem e regulação da so-ciedade democrática de direito, alcançar a estrutura estatal (a entrada) e dela obter uma prestação (a saída) tornaram-se os identificadores hodiernamente utilizados para avaliar a administração de justiça. Em verdade, há uma propensão de men-surar a atividade judicial através de compleição de dados, como o número de pes-soas atendidas, de processos iniciados e encerrados, de audiências, de conciliações produzidas e, finalmente, a quantia de decisões judiciais emitidas em determinado período temporal.

Há, portanto, um perceptível dissenso instalado. Em um extremo, fomenta-se o incremento do produto da atividade judiciária; de outra banda, depreende-se o aferimento do serviço prestado através da performance numérica fria do aumento

25 “A segunda metade do século XX caracterizou-se, na doutrina internacional do processo civil, como um tempo de mudanças. O monumental esforço dos idealistas portadores da bandeira da efetividade do processo abriu espaço para a consciência da necessidade de pensar no processo como algo dotado de bem definidas destinações institucionais e que deve cumprir os seus objetivos sob pena de ser menos útil e tornar-se socialmente ilegítimo.” (DINAMARCO, 2001, p. 21).

Márcia Silvana Felten

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de produtividade. Esse quadro de crescente paradoxo jurisdicional permite múlti-plas abordagens para a sua melhor compreensão, conquanto é o processo, a sua representação enquanto instrumento para realização do acesso à justiça e percurso obrigatório aos conflitantes, um denominador comum ao contexto sintomático da enfermidade.

Embora seja pacífica a hodierna compreensão do acesso à justiça como di-reito humano26, é variável a definição, evolução ou o seu perfeito enquadramento histórico. O Código de Hamurabi já trazia em seu cerne a garantia de busca de au-xílio pelo mais fraco27, conquanto o primeiro documento de alcance internacional a reconhecê-lo foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, definido em seu artigo 21 como “toda a pessoa tem o direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país” 28.

Portanto, inegavelmente longo foi o caminho percorrido pelo acesso à jus-tiça até a sua consolidação como direito humano29. Não é possível defini-lo como oriundo ou pertencente a um momento biográfico específico, pois o conceito está presente em múltiplos tratados internacionais e legislações domésticas, revelando permanente construção e aprimoramento30. De todo o modo, é possível afirmá-lo como o principal dos direitos humanos31, por permitir ao homem obter o reconhe-cimento de todos os demais, alcançar a estrutura judiciária estatal e dela obter uma tutela, com a expectativa de significativa adequação.

Por consequência, assomou-se ao conceito de acesso à justiça a questão da temporalidade (NUNES, 2013) da prestação jurisdicional. É importante à jurisdição proporcionar a reconstrução da regularidade social de modo que, ao final, o caminho compense ao indivíduo, tanto pela sua celeridade, ordem e resultado, sendo-lhe

26 Sem olvidar a discrepância existente nas definições terminológicas de direito humano, direito fundamental, direito essencial, inseri-das, inclusive, no texto constitucional brasileiro.

27 Período A.C. “...em minha sabedoria eu os refreio para que o forte não oprima o fraco e para que seja feita justiça à viúva e ao órfão. Que cada homem oprimido compareça diante de mim, como rei que sou da justiça. Deixai ler a inscrição do meu monumento. Deixai-o atentar nas minhas ponderadas palavras. E possa o meu monumento iluminá-lo quanto à causa que traz e possa ele compreender o seu caso” (CAR-NEIRO, 2000, p. 04).

28 “Com a Declaração de 1948, tem início uma terceira e última fase, na qual a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva: universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado.” (BOBBIO, 2004, p. 29-30).

29 “Assim como não se pode fundamentar o direito positivo em si mesmo, mas sim em interesses e valores de várias ordens, os direi-tos humanos pretendem estabelecer o que é universalmente indispensável ao homem, independentemente de sua identidade cultural.” (SPENGLER; LUCAS, 2008, p. 353).

30 “Nessa perspectiva, a expressão ‘acesso à justiça’ engloba um conteúdo de largo espectro: parte da simples compreensão do ingresso do indivíduo em juízo, perpassa por aquela que enforça o processo como instrumento para a realização dos direitos individuais, e, por fim, aquela mais ampla, relacionada a uma das funções do próprio Estado a quem compete, não apenas garantir a eficiência do ordena-mento jurídico; mas, outrossim, proporcionar a realização da justiça aos cidadãos” (CICHOCKI NETO, 2009, p. 61).

31 Nas palavras de Spengler e Bolzan (2012, p. 30) ‘o mais básico dos direitos humanos’.

Cap. 2 - O exaurimento do modelo jurisdicional

33Márcia Silvana Felten

mais vantajoso do que o tratamento do conflito por vias próprias. A prestação ofertada, assim, deve resgatar o direito sob um tempo mais ágil do que o cotidiano ordinário, não sendo extremamente célere a ponto de tolher o momento do diálogo no tratamento do conflito, nem tardia evitando perder sua utilidade (CRUZ E TUCCI, 1997). Nesse sentido, o aporte, no ordenamento doméstico, da Emenda Constitu-cional nº 45/200432 com a inserção da garantia da razoável duração do processo, conferiu, através do tempo, um denominador palpável de aferimento da atividade jurisdicional.

Portanto, a sensibilidade do alcance do direito humano do acesso à justiça coloca na arena o refletir sobre a real dimensão e o ritmo da prestação jurisdicio-nal, debate situado em uma esfera superior ao simples entendimento do ‘entrar, percorrer e deixar’ o serviço judiciário estatal. Para Kazuo Watanabe (1998, p. 143) trata-se do

“[...] direito à informação, direito à adequação entre a ordem jurídica e a rea-lidade socioeconômica do país, direito a uma justiça adequadamente orga-nizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa, direito a pré-ordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a efetiva tutela de direi-tos, direito à remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso e efetivo acesso à justiça com tais características”.

Em nome do acesso à justiça há, portanto, uma hodierna ideia de supera-ção de formalidades da simplificada percepção de estar no judiciário, voltando a prestação ao seu mérito resolutivo, o tratamento do conflito, servindo o sistema estatal como instrumento desse desiderato no decorrer de certo período temporal. Logo, caberia ao processo a ferramenta eleita como esteio da estrutura judiciária, fornecer a administração da convergência tão justa quanto possível. Contudo, o rito procedimental e a estruturação judiciária, ambos previamente estabelecidos legalmente, suportam um momento de questionamento devido ao aumento da per-cepção dos embaraços existentes ante a real concretização desse escopo.

3. O modelo jurisdicional e o processo

O Estado, ao avocar para si a atividade da pacificação, recebeu o dever de prever, regular e solucionar todas as hipóteses possíveis de casos fáticos, pena de na omissão fugir ao seu objetivo, perder credibilidade e permitir o resgate das formas primitivas de ajustamento social. Assim, o modelo jurisdicional, objetivo e extraprocessual (sua estrutura legal e judiciária de prestação de serviço judicial),

32 Inserindo no artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB): a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

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foi gestado para atingir todos os indivíduos33, todo o território e todas as relações conflituosas, sem diferenciação ou privilégios.

Nesse esteio, o sistema jurisdicional elegeu o processo enquanto ferramenta unívoca e imparcial para abordagem global das desavenças, como um medicamen-to de amplo espectro. A definição dos moldes do processo implica no cultuamento do racionalismo lógico, com predomínio absoluto da segurança34, pois a flexibilida-de procedimental geraria vulnerabilidade à defesa e credibilidade duvidosa acerca da correição na concessão do tratamento justo35.

Contudo, o prévio regramento dos atos e do seu desenvolvimento oferecem limitada escolha: a situação apresentada à análise processual será legal ou ilegal; a demanda procederá ou não. São os dois destinos exatos, legalmente definidos para tratar todos os conflitos, restringidos ao mundo reproduzido nos autos, indiferente aos fatores que influenciam e circundam o debate, ignorados quando não relaciona-dos dentro da demanda.

Os juízes colocam-se no dilema de negar e deferir. Negativa, porque o siste-ma não permite, ou uma decisão positiva porque o deferimento do pedido ao arrepio do que as formas processuais autorizam, afina-se às exigências de coerência e integridade do Direito que desaguam na imposição de respei-to à Constituição. (SALDANHA, 2011, p. 363).

Em decorrência, o complementar efeito colateral e subsidiário do processo hí-gido é a abordagem fria do conflito, em um ambiente formal intimidante aos simples, com uma exposição de circunstâncias controladas pelos atores do processo, além de um distanciamento decorrente da relação processual instaurada com a solicitação de terceiros interventores – os advogados e o juiz36. Logo, o diagrama vigente estabele-ce uma relação triangular, com um polo formado pelo autor da ação, oposto ao réu e, intermediando ambos, o sistema personificado na figura do magistrado. A posição do decisor, portanto, está em um ângulo equidistante dos demais.

33 “O ‘todos’ dos quais tais direitos consentem de predicar a igualdade é, de fato, logicamente relativo às classes dos sujeitos cuja titularidade é normativamente reconhecida”. (FERRAJOLI, 2011, p. 11).

34 “Não foram, porém, só as ideias contratualistas que forjaram o modelo de jurisdição que prestigia mais a segurança em detrimento do valor justiça. As ideias dos humanistas do século XVI e os princípios matemáticos da mesma época, instaurados com o racionalis-mo, tiveram um lugar estratégico. Daí a necessidade de tal, como um pêndulo, ir e vir. Não seria essa a compreensão do tempo, não como algo que separa ou distancia, mas onde as coisas acontecem? Afinal, como afirmou Gadamer, a experiência não seria sempre um confronto, já que ela opõe o novo ao antigo e, em princípio, nunca se saberá se o novo prevalecerá como uma verdadeira experiência ou o antigo retornará com toda a sua consistência?” (SALDANHA, 2011, p. 140).

35 “Costuma denominar-se estabilização do processo o fenômeno pelo qual se tornam imutáveis os elementos de um processo. A per-petuatio jurisdictionis, representada pela prevenção do juiz ao qual a causa se distribuiu, é manifestação da estabilidade do processo (CPC, art. 87). Também se integra nesta a regra de manutenção das partes, cuja substituição no processo é excepcional (art.264 etc.). A estabilização objetiva do processo representa-se pela fixidez dos elementos objetivos a demanda, a saber, causa petendi e petitum. Instaurado o processo, define-se logo na primeira fase o seu objeto e a partir de então será excepcionalíssima e muito restrita e possibi-lidade de alterá-lo.” (DINAMARCO, 2001, p. 75).

36 “Unidos pelo conflito, os litigantes esperam por um terceiro que o ‘solucione’. Espera-se pelo Judiciário para que diga quem tem mais direitos, mais razão ou quem é o vencedor da contenda. Trata-se de uma transferência de prerrogativas que, ao criar ‘muros nor-mativos’, engessa a solução da lide em prol da segurança, ignorando que a reinvenção cotidiana e a abertura de novos caminhos são inerentes a um tratamento democrático”. (SPENGLER; BOLZAN, 2012, p. 69-70).

Cap. 2 - O exaurimento do modelo jurisdicional

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Outrossim, os interlocutores não se manifestam livremente, conquanto através do filtro de um profissional da advocacia, adequadores dos fatos à técnica procedimental e ao complexo discurso jurídico-normativo. É perceptí-vel, igualmente, que os indivíduos não têm um elo direto aproximador, apto a incentivar a negociação do conflito, além do espaço proporcionado legalmente e conduzido pelos interventores (o próprio juiz e os advogados). Os deman-dantes ocupam uma posição a parte do sistema e ‘assistem’ o tratamento do seu conflito pelo sistema judiciário, sendo a prova produzida a figura central do processo.

Dita imparcialidade e neutralidade dos profissionais e servidores do judiciá-rio, em especial do decisor, no tratamento conflitual, perpassa todas as instâncias, garantindo um aporte isonômico aos conflitos. São condições inerentes à atuação profissional (PORTANOVA, 1995), consagrando a ausência de interesses daqueles que operam no sistema, bem como a independência do julgador para a formação do convencimento no momento da apreciação da convergência, do modo mais neu-tro, lógico e racional possível.

Com esse quadro controlado, o processo constitui o espelho no qual é proje-tado, se desenvolve e se realiza, através de seus atos articulados, o tratamento ju-risdicional de conflito, prezando a manifestação isolada e alternada de cada uma das partes, respeitando a defesa e o contraditório. Toda demanda, sem embargo, implica em um ativo e um passivo para os envolvidos. O bônus é a realização da pretensão almejada; o ônus é o litígio, o desgaste moral das partes, além do tempo despendido e do custo financeiro e material da atividade estatal.

[...] durante o longo e fatigante percurso do procedimento ordinário, o sta-tus quo ante é mantido, em benefício do demandado, de tal sorte que o custo do processo - correspondente ao tempo necessário a que o Estado se convença de que o autor tem razão - é descarregado inteiramente sobre os ombros do demandante. (SILVA, 1997, p. 188).

O mérito em guardar aos conflitantes um ambiente identicamente prepara-do para receber o litígio, bem como da submissão do pensamento jurídico à for-mulação de métodos objetivos instrumentalizados, não é em vão, pois ao garantir um campo neutro para a apresentação filtrada dos argumentos dos interlocuto-res, pretende oferecer-lhes paridade de armas e um local sacralizado de garantia e respeito para todos (MACEDO, 2005). Logo, o modelo jurisdicional vigente pri-ma pelo esteio da legalidade, o agir controlado, a sucessão de atos processuais metódicos e o distanciamento dos fatos, gestado com o intuito de permitir uma análise racionalizada dos direitos e deveres envolvidos, produzindo o ideal de pacificação do conflito.

Márcia Silvana Felten

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4. Ponderações sobre o esgotamento do modelo jurisdicional

O brilho da construção estável e mecanizada do sistema judiciário, conquan-to, oferece um suporte constantemente desafiado pelas mudanças naturais das exigências humanas, hodiernamente calcadas no ritmo acelerado da modernidade e, por conseguinte, na frustração de lidar com uma estrutura rígida e lenta em dis-sintonia com a aceleração predominante37. O processo foi proposto com uma ideia restaurativa do tempo de conflito; entretanto, por agora o contexto tem apreensão invertida, donde é o (reduzido) tempo o ditador das exigências processuais (SALDA-NHA, 2011). Muito se fala, por ilação, em esgotamento, exaurimento ou ineficiência do modelo jurisdicional, fenômeno melhor apreendido quando repousa um olhar acurado sobre as razões endógenas ou exógenas da descoordenação38.

No contexto processual, além do (re)posicionamento do tempo, inegável que a sedimentação dos passos procedimentais torna rígida a comunicação, o (re)pensar da controvérsia e a consideração de elementos não caracterizados como essenciais pelas normas para a ação, ainda que valiosos para as partes39. O filtro aplicado pelos operadores do direito, agindo dessa maneira porque submetidos à ordem legal e à intervenção através de defensores parciais dos interesses, direitos e deveres do representado, impede o aporte ao processo da carga emocional subje-tiva que o conflito desenvolve. Por consequência, julgar uma ação não representa, necessariamente, tratar a controvérsia como um todo40, existindo uma potencial carga de litigiosidade remanescente apta a (re)gerar desavenças, ainda que sob nova roupagem.

De outro lado, a perspectiva do esgotamento é premente na percepção do Estado com contornos titânicos do Brasil, país continental. A amplitude geográfica e populacional torna oneroso que se estabeleça, em cada vilarejo, cidadela ou po-tencial agrupamento, um espaço jurisdicional, inobstante seja esse o objetivo do estado para conceder a pacificação.

Diante do obstáculo espacial, houve o estabelecimento dos tribunais e co-marcas em centros administrativos, e uma rede periférica limitada para centros relativamente maiores, abrangendo regiões pré-determinadas41. A apreciação do

37 “No entanto, a elaboração simbólica do processo é hoje alvo de ataques e críticas. Na maioria das vezes, acusa-se a justiça de ser demasiado lenta e para muitos o antídoto para essa morosidade é o tratamento dos processos ‘em tempo real’. Desse modo, a justiça, que se flexibiliza e desformaliza, é solicitada com mais frequência.” (SPENGLER; BOLZAN, 2012, p. 96).

38 Definição trabalhada por José Cichoki Neto em sua obra Limitações ao Acesso à Justiça, como endoprocessual e exoprocessual.

39 A teoria da espiral do conflito de Morton Deutsch.

40 “O fato de que o Judiciário tem como ‘função fundamental’ a decisão de conflitos não quer dizer que a sua função seja a elimina-ção de conflitos.” (SPENGLER; BOLZAN, 2012, p. 71).

41 “Não é difícil serem encontrados portentosos edifícios de fóruns recém construídos, em minúsculas comarcas do interior, instaladas em cidades de reduzido progresso, cuja capacidade total somente será utilizada no decorrer de muitas décadas. Isso sem contar com a suntuosidade de outros que, à vista da miséria da população é, não raras vezes, motivo de censura pela má aplicação do dinheiro públi-co”. (CICHOKI NETO, 2009, p. 113-114).

Cap. 2 - O exaurimento do modelo jurisdicional

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conflito, por conseguinte, é submetida ao prévio estabelecimento dos limites cir-cunscritos, conferindo à localização uma importância organizacional que, por ve-zes, pode representar uma barreira ao indivíduo42 desinformado. A limitação es-trutural cerra a análise de conflitos ao espaço físico, desvinculando a capacidade judiciária da real necessidade litigiosa.

Outrossim, o aumento exponencial do número de ações é outro perceptível reflexo dicotômico, pois decorre da positiva difusão de noções de direitos e deve-res aos indivíduos, além da atuação efetiva dos órgãos de assistência judiciária (mi-nistério e defensorias públicos); bem como da negativa percepção da proporcional violação desses mesmos preceitos e da busca do serviço judiciário para restaurá-los. O acréscimo de ações cria outro entrave anacrônico, pois o próprio volume da demanda perpetua a redução da velocidade para a apreciação dos casos, contra-pondo a manutenção da estrutura humana e estatal.

Em verdade, o sistema processual tornou-se tão amplo e complexo que o Estado enredou-se em sua própria teia, embora a passagem de tempo implica no advento de novas formas de relações e exigências da sociedade, evolução que faz surgir novos casos concretos com peculiaridades próprias43. Por outro lado, há hi-póteses em que, embora possuam em lei um meio equivalente para persecução, o mesmo revela-se insuficiente. Destarte, a tarefa reguladora não é estanque e nunca estará completa. Em suma, a aparente completude do sistema processual brasileiro cede sob uma análise mais apurada e concretivista.

De outra banda, a estrutura estatal, infelizmente, não é gratuita44. A opera-cionalidade concreta tem um custo financeiro e humano. Inobstante a justiça seja um serviço público essencial, a pobreza inibe os cidadãos. Mesmo com o advento da legislação referente à assistência judiciária, o acesso não compreende atividades voltadas à prevenção dos litígios, à consultoria ou ao aconselhamento, limitando-se à atuação técnica (MADERS, 2005).

Ainda, a linguagem jurídica contribui para o distanciamento dos vulneráveis à compreensão dos seus direitos e deveres. Enquanto a prestação jurisdicional pen-de pelo rigor técnico e pelo formalismo estabelecido nas normas que o regem, a locução social tente ao coloquialismo estreitado por expressões objetivas, simplifi-

42 “As pessoas não estão totalmente presas a um local. Seja por necessidade (guerra, fome, trabalho, etc.) ou por opção, é possível que as pessoas constituam sua vida a partir de vários lugares (basta notas que a internet, o telefone, o avião, etc., representam meios cotidianos de superação do tempo e do espaço e a possibilidade de transnacionalizar a vida individual).” (SPENGLER; LUCAS, 2008, p. 315-316).

43 “O processo civil tenta se desenvolver com a mesma rapidez das exigências sociais, que se multiplicam em progressão geométrica, exigindo do Poder Judiciário, que evolui em progressão aritmética, soluções rápidas céleres e eficientes. [...]. O volume de processos submetido ao crivo do Judiciário aumentou exponencialmente e inviabilizou as funções do Poder cuja função é distribuir a Justiça, em um fenômeno nominado por Kazuo Watanabe de litigiosidade contida.” (PELEJA JUNIOR, 2010, p. 27-29).

44 “A teoria dos custos da transação, a teoria dos direitos de propriedade, do public choice e da análise econômica do direito são dife-rentes tendências na ampla corrente de um movimento que tem a intenção de substituir o enfraquecido conceito da justiça pelo ideal da eficiência econômica do direito.” (TEUBNER, 2002, p. 93).

Márcia Silvana Felten

38 Cap. 2 - O exaurimento do modelo jurisdicional

cadas45. Há, portanto, uma bruma no discurso judicial que entrava a fluidez do diá-logo e torna vulnerável os de reduzida instrução, por tornar quase incompreensível o direito, sendo comum a alegação de desconhecimento das leis.

Infere-se, destarte, que a relação triangular com o filtro proporcionado interven-ção de operadores do direito, a linguagem jurídica formal (óbices endógenos), a limi-tação geográfica, o sistema processual e o esteio econômico-financeiro (viés exógeno) são apenas alguns dos fatores preponderantes para o fenômeno do esgotamento do modelo jurisdicional. Todos esses entraves estão interligados, formando um modelo enfermo holístico, pois um elemento preexistente retroalimenta o próximo.

Logo, o esgotamento pode ser percebido tanto no sentido de não correspon-dência da estrutura do serviço judiciário estatal à hodierna necessidade humana para tratamento de conflitos quanto na existência de óbices à realização do acesso à jus-tiça. De todo o modo, embora representem dificuldades individualmente considera-das, é no somatório das suas forças a maior (des)contribuição para o arrefecimento da engrenagem jurisdicional.

Para sanear os sintomáticos obstáculos, houve a proposição de um conjunto de reformas expostas por Mauro Cappelletti e Bryan Garth, a serem realizadas em três momentos distintos. O primeiro objetiva conquistar os hipossuficientes ao sis-tema; o segundo busca regular os novos interesses originados da evolução natural da sociedade (direitos difusos e coletivos); o terceiro envolve a criação de novos mecanismos de gestão de conflitos (SPENGLER; BOLZAN, 2012).

Em prol desse desiderato, o direito está se modificando46. Desde a criação dos juizados especiais, a incorporação das ações coletivas para ingresso multíplice ao judiciário, até a admissão da perda da exclusividade do processo como ferramenta de tratamento de conflitos, recebendo a criação de meios complementares para uma abordagem mais holística da origem das desavenças e das partes envolvidas. Todas são proposições em prol da realização do acesso à justiça, mediante atuação positiva com oferta de um aparato eficaz, mesmo que não necessariamente jurisdicional.

Essa concepção positivista desperta a percepção além da tradicional obriga-ção estatal de disponibilizar um órgão judiciário, o serviço de assistência jurídica aos necessitados, ou a tutela recursal por intermédio de tribunais. Há um des-

45 Doutrina Cárcova (1998, p. 41): “Existe, pois, uma opacidade do jurídico. O direito, que atua como uma lógica da vida social, como um livreto, como uma partitura, paradoxalmente não é conhecido, ou não é compreendido, pelo atores em cena. Estes realizam certos rituais, imitam condutas, reproduzem certos gestos, com pouca ou nenhuma percepção de seus significados e alcances”. Aqui também se insertam os apelidos transcritos por Humberto Theodoro Jr. (2007, p. 118) de ‘inflação normativa’, ‘doença do excesso do direito’ e ‘hipertrofia das leis’, que ‘ao invés de organizarem o comportamento social o tornam exageradamente complexo’, não contribuindo para os indivíduos terem uma noção clara de seus direitos e deveres: “Em nenhum segmento do ordenamento jurídico o excesso de normas desempenha bom papel no esfor-ço de pacificação social, aspiração justificadora da existência do direito e meta maior do direito processual. Os conflitos jurídicos, em sua qua-se totalidade, nascem justamente das múltiplas e divergentes interpretações das normas vigentes. Por isso, quanto mais regras cria o legislador, mais fomenta dissídios e litígios. O ideal é que as leis sejam simples, diretas, claras e não excedam na disciplina desnecessariamente minuciosa de situações que, não fosse a presença da regra, jamais se tornariam questionáveis ou discutíveis. (THEODORO JUNIOR, 2007, p. 118)”.

46 “O desenvolvimento, no século XX, do Welfare State aconteceu, em grande parte, por meio do simples alargamento dos espaços de discricionariedade dos aparatos burocráticos, e não já por meio de instituições e técnicas de garantias apropriadas aos novos direitos”. (FERRAJOLI, 2011, p. 41).

39Márcia Silvana Felten

velamento do caminho no sentido da desburocratização, da democratização, da humanização e da aproximação da acessibilidade aos indivíduos. Nesse intuito, termos como flexibilização, informalização, celeridade, eficiência e virtualização contribuem para o controle do esgotamento47, embora ainda mantenham o apego à lógica centralizadora estatal (NUNES, 2013, p. 111).

O Poder Judiciário do Terceiro Milênio deverá ser caracterizado, pois, pela qualidade técnica de suas decisões (Justiça Social efetiva), baixo custo de sua estrutura (Acessível na prática a todos), celeridade na prestação jurisdicional (Justiça certa mas tardia equivale a Injustiça) e concentração de demandas (Coletivização do processo). Para tanto, mister se faz que sua estrutura seja modernizada de modo a fazer, efetivamente, do Poder Judiciário pilar da ci-dadania, pelo respeito à Lei. (MARTINS FILHO, 1999).

Além da desmistificação do processo e da justiça estatal como insígnia dis-tante da sociedade, gestar outras opções de acionamento agrega substância à rede de segurança do indivíduo contemporâneo. Logo, a dessintonia entre a estrutura e realidade, embora enferma, revela um campo fértil para a origem de alternativas; a moléstia do esgotamento é superável, pois traz em si mesma a resposta, quando sa-lienta naturalmente os pontos de estrangulamento do sistema de serviço judiciário.

5. À guisa de conclusão

A atividade judiciária implica na reconstrução da regularidade humana de modo que, ao final, o caminho jurisdicional compense ao indivíduo pela tutela for-necida. O almejo da pacificação social, inobstante preceito fundamental, torna-se consequência da plena realização do acesso à justiça. Em suma, o debate sobre o atual momento do sistema se apresenta porque os prejuízos têm superado as suas vantagens. Como visto, diversas circunstâncias podem ser sopesadas dentro desse quadro, conquanto é a própria existência do desequilíbrio que o gera.

Denominar o destempo entre a atividade da estrutura posta e a expectativa da realidade leva ao adjetivo da crise. No entanto, há de se corrigir a terminologia, porque o quadro indica, na verdade, uma relação de esgotamento dos serviços ju-diciários, ou ainda, de exaurimento jurisdicional. O processo, como fluído principal do corpo judicial, encontra óbices ao seu avanço, sendo a lentidão no tratamento dos conflitos que ali desaguam um sintoma decorrente dessa enfermidade.

Além da virtualização processual, da informatização de sistemas ou da simpli-ficação do discurso jurídico, o acesso à justiça também se revela através de meios complementares na esfera exoprocessual, ao observar a viabilidade de disponibilizar uma estrutura mais flexível, apta a aproximar os órgãos voltados aqueles de menor

47 Em contraponto: “É preciso perceber, entretanto, que a tentativa de melhorar o sistema processual por reformas pontuais tem-se mostrado vã. Os ‘reformadores’ não têm se dado conta de que o problema crucial é o modelo de Jurisdição que prevalece. Enquanto for assim, tais tentativas podem ser equiparadas ao placebo que se dá ao doente em estágio terminal”. (SALDANHA, 2011, p. 268).

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ingresso ao aparato estatal tradicional. Inobstante o esforço na difusão dos direi-tos à população, o distanciamento físico do aparelho jurisdicional impede aos mais vulneráveis de usufruir do aparato quando o conflito detém caráter mais simplista, sem grandes rupturas relacionais. Assim, um sistema integrado, descentralizado e desburocratizado, de abordagem de desavenças, seja por meio de serviços ofertados exclusivamente pelo Estado ou com métodos complementares, contribui tanto para a melhoria do acesso à justiça quanto para o incremento do método jurisdicional.

No intuito de auxiliar na recuperação da agilidade do sistema judiciário, a percepção dos seus gargalos contribui para a busca de soluções individualmente consideradas, pois infelizmente não existe uma cura única para todos os sintomas. Posteriormente, a visualização holística das intervenções dirá da qualidade das pro-postas ou do advento de novos agouros.

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Cap. 2 - O exaurimento do modelo jurisdicional

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Márcia Silvana Felten

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A CrIse dA JUrIsdIÇÃO: Novas estratégias ao sistema de justiça

Gabriel de Lima Bedin48

48 Bacharel e Mestre em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - Unijuí. Advogado.

CAPíTUlO 3

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1. Notas introdutórias

As transformações sociais e econômicas iniciadas e consolidadas ao longo do sé-culo XX e perpetuadas no início deste século alteraram de forma significativa os conflitos interpessoais, empregando cada vez mais complexidade e sofisticação aos litígios. A jurisdição estatal, por inúmeros fatores, não está conseguindo acompanhar as transfor-mações da sociedade e, consequentemente, realizar a sua função de pacificação social.

Desse modo, este artigo analisa o surgimento do monopólio estatal da justi-ça, bem como as complexidades e sofisticações das relações sociais e econômicas ocorridas no decorrer dos séculos XX e XXI, o que não fora acompanhado pela ju-risdição estatal. Ao final, discorre sobre as novas estratégias ao Sistema de Justiça, destacando a mediação, a conciliação e a arbitragem.

Para realizar a pesquisa fora realizado estudo teórico sobre o tema abordado, visando construir os elementos necessários para compreender a importância das novas estratégias ao Sistema de Justiça e a sua capacidade de tratamento dos con-flitos contemporâneos.

Nesse contexto, a pesquisa objetiva analisar e entender as transformações da sociedade atual, notadamente no que se refere aos seus conflitos, a crise da jurisdição, decorrente da complexidade e da sofisticação das relações sociais e econômicas, e as novas estratégias ao Sistema de Justiça.

2. O sistema de justiça: do monopólio estatal às novas estratégias de tra-tamento de conflito

O período histórico denominado Idade Média abrange um lapso bastante longo (envolve aproximadamente mil anos, entre os séculos V e XV), com modo sociabilida-de predominantemente rural ou agrário e marcado pelo domínio do poder da Igreja Católica (BEDIN, 2008). Além disso, em decorrência da debilidade do poder imperial de Roma, a Idade Média se caracterizou por ser um período de descentralização ou de fragmentação do poder, representado pelo particularismo regional e pelo poder dos detentores da terra, os senhores feudais (BEDIN, 2008). O poder político da Idade Média, portanto, era altamente descentralizado, sendo que os deveres de obediência eram muitos, amplamente pessoais, sem uma hierarquia política clara (MORRIS, 2005).

Havia, por conseguinte,

[...] uma incontável multiplicidade de ordens jurídicas, compreendendo a or-dem imperial, a ordem eclesiástica, o direito das monarquias inferiores, um direito comunal que se desenvolveu extraordinariamente, as organizações dos feudos e as regras estabelecidas no fim da Idade Média pelas corpora-ções de ofícios. (DALARI, 2012, p. 77).

Esse contexto, então, era causa e consequência de uma permanente instabi-

Gabriel de lima Bedin

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lidade política, econômica e social (DALARI, 2012), o que acarretou o esgotamento dos pressupostos e fundamentos da Idade Média e da sociedade feudal, “[...] ge-rando uma intensa necessidade de ordem e de autoridade, que seria o germe da criação do Estado Moderno.” (DALARI, 2012, p. 77). Não obstante isso, as carac-terísticas da sociedade e das relações de poder na Idade Média gerava um estado de guerra constante que só causavam prejuízo à vida econômica e social, o que, também, despertou a consciência para a busca da unidade, a qual “[...] se caracteri-zaria com a afirmação de um poder soberano, no sentido de supremo, reconhecido como o mais alto de todos dentro de uma precisa delimitação territorial.” (DALARI, 2012, p. 78).

Esse período é denominado Baixa Idade Média, lapso que se caracterizou por ser “[...] uma profunda mutação histórica que, ao ir além dos limites da própria so-ciedade feudal, preparou o mundo para um novo momento, que, posteriormente, seria denominado de mundo moderno.” (BEDIN, 2008, p. 49). Como desdobramento desse contexto, ocorreu a centralização do poder que era disperso e local - centra-do basicamente nos senhores feudais -, para o monarca, que o exercia como forma de unificação política do reino. Com efeito, destaque-se que para a formação do Estado moderno foram necessárias, pelo menos, três fatores:

A luta contra os poderes locais e universais da religião como fonte de legiti-midade e de identidade do Estado; a constituição dos chamados monopólios estatais (distribuição da justiça, emprego da violência legítima, arrecadação de impostos, etc.); e a delimitação territorial e pessoal do Estado moderno (BEDIN, 2008, p. 80).

Nesses termos, para a consolidação do Estado moderno foram fundamentais dois movimentos realizados a partir da crise da Baixa Idade Média: retirar dos senho-res feudais o poder de que cada uma exercia sobre suas sedes territoriais e centrali-zar este poder nas mãos do monarca. Essa centralização deve ser entendida tanto na função dos poderes, quanto na autoridade do monarca, dominando por completo o que tinha sido ou poderia ser atribuições judiciais ou legislativas (BEDIN, 2008).

Dessa forma, com a centralização do poder ocorreu a monopolização do uso da violência legítima, da distribuição da justiça, da arrecadação dos tributos en-tre outros. Esses monopólios “[...] são pressupostos do próprio processo de cen-tralização e de concentração política das monarquias modernas e são princípios definidores do Estado moderno como se tornou conhecido [...]” (BEDIN, 2008, p. 84). Nesses termos, o Estado moderno passou a administrar a justiça, detendo o poder de aplicar a lei e o uso institucional e legítimo da violência física, o que fora determinante para a constituição efetiva da autoridade central, refletindo “[...] uma entidade soberana e dotada de uma estrutura política, administrativa, judiciária, tributária e militar própria.” (BEDIN, 2008, p. 84).

O surgimento do Estado moderno, portanto, contribuiu de forma determinante para a monopolização da distribuição da justiça, garantindo unicamente ao Estado a

Cap. 3 - A crise da jurisdição

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função de julgar os litígios provenientes da sociedade. Ocorre, todavia, que a litigio-sidade sofreu inúmeras transformações ao longo do século XX e início do século XXI, possuindo atualmente inúmeras facetas que lhe atribuem características totalmente diversas às existentes no surgimento do Estado moderno. Com efeito, tem-se que a jurisdição estatal não acompanhou as transformações sociais, permanecendo inerte frente às alterações dos litígios apresentados pela sociedade atual.

Dessa forma, mostra-se imperativo afirmar que a complexidade da socieda-de contemporânea permite que o conflito seja “[...] social, político, psicanalítico, familiar, interno, externo, entre pessoas ou entre nações, pode ser conflito étnico, religioso ou ainda de valores.” (SPENGLER, 2010, p. 241-242). Essa multiplicidade de conflitos acarreta um obstáculo na atuação exclusivamente estatal para o seu tratamento, uma vez que esta se mostra incapaz de acompanhar a celeridade das transformações sociais e econômicas características da sociedade atual.

Com efeito, a partir da globalização cultural, política e econômica a jurisdição estatal tem se mostrado ineficiente para garantir e efetivar os direitos, principal-mente se considerar que o Poder Judiciário “decide” os conflitos e não necessaria-mente os “elimina”49. Isso se deve ao fato de não competir

[...] ao Poder Judiciário eliminar vínculos existentes entre os elementos – ou unidades – da relação social, a ele caberá, mediante suas decisões, interpre-tar diversificadamente este vínculo; podendo, inclusive, dar-lhe uma nova dimensão jurídica (no sentido jurisprudencial), mas não lhe “compete” dis-solvê-lo (no sentido de eliminá-lo), isto porque estaria suprimindo a sua pró-pria fonte ou impedindo o seu meio ambiente de fornecer-lhe determinados inputs (demandas). (BOLZAN DE MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 71).

Nesses termos, tem-se que se faz necessário um tratamento adequado às diferen-tes espécies de conflitos, devendo entendê-los para fixar métodos de gestão apropriados, pois é possível que alguns litígios sejam tratados em contexto cooperativo ou competiti-vo. Fabiana Marion Spengler (2010) diferencia os processos em adversais (competitivos) e não adversais (cooperativos). Naqueles está o processo judicial de tratamento em que um terceiro determina um ganhador e um perdedor; nestes, com ou sem intervenção de terceiros, a responsabilidade pelo tratamento é transferida aos próprios ligantes litigantes.

Dessa forma, entender o conflito é muito importante para determinar o seu tratamento, principalmente pela complexidade dos litígios e pela sofisticação das atuais relações sociais. Com efeito, exige-se um tratamento capaz de eliminar os conflitos e não somente decidi-los, inclusive para evitar que novos litígios surjam como desdobramentos do originário.

Destarte, os conflitos da sociedade contemporânea se mostram cada vez mais complexos e sofisticados em decorrências das transformações sociais ocorridas ao lon-

49 Esclarece-se que não é desconhecida do autor desta pesquisa a mudança na redação dos arts. 267 e 269, do Código de Processo Civil, pela Lei Federal n.º 11.232/2005, a qual alterou, entre outros aspectos, os termos “julgamento do mérito” por “resolução do mérito”. Ocorre, porém, que se entende que a mera alteração na redação de dispositivos legais não será suficiente para modificar as característi-cas do Poder Judiciário e tampouco a sua (in)capacidade de “eliminar” os conflitos ao invés de somente “decidi-los”.

Gabriel de lima Bedin

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go do século XX e consolidadas no início deste século, alterações que não foram acom-panhados pela jurisdição estatal. Assim, mostra-se importante compreender as crises da jurisdição e, ao mesmo tempo as transformações das relações sociais e econômicas.

3. As crises da jurisdição e a sofisticação das relações sociais e econômicas

As crises da jurisdição são consequências da crise estatal. Visualiza-se a crise do Estado na gradativa perda de soberania50, na sua incapacidade de dar respostas adequadas aos litígios atuais e na fragilidade das esferas Legislativa, Executiva e Judiciária. (BOLZAN DE MORAIS; SPENGLER, 2012). Assim, as novas variáveis econômicas, políticas e sociais verdadeiramente implodiram os pilares fundamentais sobre os quais se alicerçou o pensamento jurídico, transformando o Estado e relativizando conceitos-chaves, como o do próprio Estado e da sobe-rania. (SARMENTO, 1999).

Dessa forma, a crise do Estado iniciou a partir da globalização (cultural, políti-ca e econômica) e é transferida para todas as suas instituições, como, por exemplo, ao Judiciário. A alteração da ordem internacional é uma das causas mais visíveis do fim da ideia de que o Estado é o titular do monopólio de normas jurídicas (SAR-MENTO, 1999) e do tratamento de conflitos. O aumento de poder das instâncias su-pranacionais, portanto, é inversamente proporcional à perda de força pelo Estado.

Diante dessa situação, conforme as barreiras geográficas são relativizadas pela globalização, a força da jurisdição é diminuída, porquanto não se mostra ca-paz de acompanhar a celeridade e a complexidade com que os litígios – muitas vezes transnacionais – se apresentam. Tais conflitos destaque-se, não podem de-pender da burocratizada e lenta estrutura do poder Judiciário, o qual foi construído sob o rito de códigos estanques, incompatíveis com multiplicidade de procedimen-tos decisórios exigidos pela sociedade atual, sobretudo pela economia globalizada (BOLZAN DE MORAIS; SPENGLER, 2012).

Tem-se, por conseguinte, que os conglomerados transnacionais são os pro-tagonistas mundiais não estatais, concentrando um grande poder. Desse modo, va-lem-se de regras próprias de conduta que não estão vinculadas a qualquer Estado. Assim, essas regras próprias são denominadas Lex Mercatoria51, a qual tem sua ori-

50 Principalmente no pós-guerra com a Carta das Nações Unidas, assinada em São Francisco, EUA, em 26 de junho de 1945, por oca-sião da Conferência de Organização Internacional das Nações Unidas, e ratificada pelo Brasil através do Decreto n.º 19.841/1945, bem como a criação de Tribunais Internacionais ao longo do século XX e ao Projeto de Bretton Woods.

51 A Lex Mercatoria é conceituada por Spengler (2010, p. 65-66), como sendo “[...] um conjunto de regras e princípios costumeiros reconhecidos pela comunidade empresarial e aplicado nas transações comerciais internacionais independentemente de interferências governamentais”. A referida autora continua, afirmando que a Lex Mercatoria “[...] é o corpo autônomo de seus usos, costumes, princí-pios, regras e contratos constituídos espontânea e pragmaticamente pelas sucessivas gerações da comunidade empresarial com o objetivo de autodisciplinar suas atividades sem interferências dos Estados-nação. Consequentemente, é um direito criado diretamente pelas forças privadas supraestatais, consistindo justamente em um direito extrajurisdicional de negociação contínua e permanente [...]”. (p. 67).

Cap. 3 - A crise da jurisdição

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gem nos séculos XI e XII e fora instituída por comerciantes europeus e navegadores. A Lex Mercatoria contemporânea, por sua vez, “[...] surge como um novo direito comum, que tende a ser universalizado entre os atores econômicos internacionais, produzido não pelo Estado [...], mas pelo próprio mercado, com base na lógica que lhe é inerente.” (SARMENTO, 1999, p. 63).

A Lex Mercatoria contemporânea, nesse contexto, se trata de um complexo de regras e de práticas contratuais relativas ao Direito e, principalmente, à econo-mia, os quais muitas vezes estão desassociados da legislação nacional e interna-cional. (SPENGLER, 2010). Nesses termos, visualiza-se a complexidade das relações atuais no pluralismo jurídico e na multiplicação das relações de poder existentes, as quais muitas vezes estão desassociadas da legislação nacional e, mesmo assim, exercem forte influência, gerando conflitos dos mais variados gêneros. Em decor-rência disso, a jurisdição estatal se mostra incapaz de acompanhar e de compreen-der a diversificação das relações jurídicas e sociais.

Sendo assim, a incapacidade da jurisdição de proporcionar um tratamento adequado aos litígios se deve, entre outras coisas, à complexidade do Estado em razão da multiplicação das relações jurídicas (ZAFFARONI, 1995), bem como ao avanço tecnológico que permitiu o aumento da exploração econômica e produziu, consequentemente, diversos conflitos de interesses (SPENGLER; LUCAS, 2008). As-sim, o Poder Judiciário convive com a litigiosidade tradicional, a qual acredita que o processo é o único meio de tratamento de litígios, e com novas demandas rela-cionadas às sofisticadas relações sociais e econômicas que atualmente vemos na sociedade atual, o que o torna extremamente assoberbado e ineficiente.

Temos, então, uma diversificação da litigiosidade, uma vez que existem no-vas pautas de reclamações que versam sobre reconhecimento – cultural, econômi-co, de gênero, ético, linguístico, etc. (SPENGLER; LUCAS, 2008) -, bem como sobre sofisticadas relações sociais e negócios nacionais e internacionais extremamente complexos, sendo que a jurisdição estatal tem se mostrado ineficiente quanto ao seu tratamento. Dessa forma, não foram criadas as transformações qualitativas necessárias para adaptar a jurisdição estatal às novas formas de conflito que deve enfrentar, restringindo-se a sua estrutura e qualificação aos litígios que podemos denominar de clássicos.

Nesses termos, o Poder Judiciário passa por uma

[…] crise de eficiência e a crise de identidade e todos os reflexos a elas corre-latos, principalmente o fato de que sua ocorrência está vinculada a um posi-tivismo jurídico inflexível, o qual traz como consequência o ‘esmagamento’ da Justiça e descrença do cidadão comum. (SPENGLER, 2010, p. 105).

A ineficiência do Poder Judiciário se deve também a inadequada estrutura, seja com relação às instalações, equipamentos ou de pessoas, bem como da crise técnica relacionada à linguagem utilizada nos procedimentos forenses e sua bu-rocratização. O Poder Judiciário, por conseguinte, permaneceu inerte a todas as

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transformações sociais, “[…] como se o tempo tivesse escoado muito lentamente e as condições de vida de hoje fossem quase as mesmas do início do século.” (DALLA-RI, 1996, p. 06).

Bolzan de Morais (2008) classifica as crises visualizadas pela jurisdição estatal em quatro grupos distintos, quais sejam, a crise estrutural, a objetiva ou pragmática, a crise subjetiva ou tecnológica e, por fim, a paradigmática. A primeira se refere à infraestrutura de instalações, equipamentos e custos; a segunda é relacionada à linguagem técnico-formal utilizada pelo Poder Ju-diciário, a burocratização e a lentidão de demandas; a terceira é relativa à incapacidade dos atores judiciais em lidarem com as novas realidades fáticas que exigem a reformulação da mentalidade para buscar soluções aos conflitos contemporâneos; e, a última, é relacionada aos métodos e conteúdos utiliza-dos pelo Direito para buscar a pacificação dos conflitos.

Nalini (2008), por sua vez, descreve os desafios materiais enfrentados pelo juiz, dentre os quais se destacam a falta de treinamento, o acúmulo de processos e a estrutura arcaica, o que também deve ser entendido como fenô-menos da crise da jurisdição. O primeiro desafio se refere à falta de treinamen-to precedente à posse do juiz, pois seu aprendizado é realizado totalmente após a posse. Isso é agravado, muitas vezes, pela total inexperiência do jovem juiz que se limitava, antes da posse, a exercer a profissão de “profissional de concursos”, o candidato profissional que deseja ingressar em qualquer das car-reiras jurídicas públicas. Assim, não há maiores preocupações antes de lançar o novo juiz ao exercício pleno da jurisdição, pois se acredita que o concurso público de provas e títulos é suficiente para demonstrar a sua plena capacida-de de decidir conflitos.

O segundo desafio material se refere ao acúmulo de processos, uma vez que hodiernamente padecemos de “demandismo” (NALINI, 2008), o que pode ser explicado, para os otimistas, como decorrência do aumento da consciência da população acerca dos seus direitos, ou, para os pessimistas, como reflexo de uma sociedade egoísta e inflexível. O judiciário, assim, é acionado por todos, seja quando há direito a ser postulado ou quando não haja qualquer pretensão justa a ser deduzida em juízo.

O terceiro desafio destacado da doutrina de Nalini é a estrutura inapropriada ao exercício da jurisdição relacionada, entre outras coisas, à primazia da quanti-dade em detrimento da qualidade dos julgamentos (o que também se trata de um reflexo do acúmulo de processos). Além disso, o nepotismo era prática aceita em muitos tribunais do país, sendo que tal prática somente fora vedada por meio da Resolução n.º 7, do Conselho Nacional de Justiça, de 18 de outubro de 2005, bem como da Súmula Vinculante n.º 13, do Supremo Tribunal de Justiça, em 07 de no-vembro de 2008.

Denota-se, por conseguinte, que a jurisdição encontra-se em evidente crise,

Cap. 3 - A crise da jurisdição

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pois seu modelo atual e clássico de decidir os conflitos não contempla os anseios e a necessidades que os litígios surgidos ao longo do século XX e início do século XXI carecem para um tratamento apropriado, apto a eliminá-lo. Com efeito, visualiza-se que a jurisdição não acompanhou a sofisticação das relações sociais e econômicas advindas com as transformações sociais, o que é agravado pela verdadeira estag-nação da estrutura, da linguagem e do método de decidir os conflitos em que é chamado a julgar.

Assim, a maneira tradicional de decisão de litígios por meio do Poder Judiciá-rio está em crise, pois o

[…] modelo conflitual de jurisdição – caracterizado pela oposição de inte-resses entre as partes, geralmente identificadas com indivíduos isolados, e a atribuição de um ganhador e um perdedor, onde um terceiro neutro e im-parcial, representado o Estado, é chamado a dizer a quem pertence o Direito – que é posto em xeque […] (BOLZAN DE MORAIS, 2008, p. 65).

É possível afirmar, portanto, que o modelo tradicional de jurisdição está em crise e todas as demais atividades vinculadas a ele sofrem o efeito dessa crise. Nesses termos, diante da atual situação da jurisdição estatal são cada vez mais aceitos e difundidos métodos alternativos de tratamento de conflitos, como a arbitragem, a mediação e a conciliação, instrumentos que podem ser denominados “jurisconstrução”52 ou autocomposição.

Desse modo, em decorrência da crise do Estado e, consequentemente, da ju-risdição, as novas estratégias ao Sistema de Justiça adquirem relevância crescente na forma de não somente decidir os conflitos, mas de verdadeiramente eliminá-los. Tem-se, assim, que as novas estratégias são importantes formas de pacificar confli-tos apresentados pela sociedade atual, inclusive pelas suas características, hábeis a enfrentar os sofisticados litígios sociais e econômicos.

4. Novas estratégias ao sistema de justiça: o tratamento de conflitos por meio de “Adr”

A sociedade atual se apresenta extremamente complexa e com relações econômicas e sociais mais sofisticadas. A jurisdição, como já visto, não acom-panhou a transformação da sociedade, estando desassociada dos anseios e ne-cessidades que as novas relações exigem. Dessa forma, as novas estratégias ao Sistema de Justiça se mostram cada vez mais aceitas e relevantes para o

52 A expressão é utilizada por Bolzan de Morais (in: SPENGLER, Fabiana Marion; LUCAS, Doglas Cesar (Org.). Conflito, jurisdição e direitos humanos: (des)apontamentos sobre um novo cenário social. Ijuí: Unijuí. 2008) e afirma que a utiliza por permitir distinguir os métodos de “[…] dizer o direito próprio do Estado, que caracteriza a jurisdição como poder/função estatal e, de outro, o elaborar/concertar/pactuar/construir a resposta para o conflito que reúne as partes.”

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tratamento de controvérsias, pois suas características permitem tratar de forma adequada os mais diferentes conflitos advindos da sofisticada sociedade.

As novas estratégias do Sistema de Justiça têm origem nos EUA e surgiram sob o nome de Alternative Dispute Resolution (ADR). Essa nomenclatura é utilizada para designar todos os procedimentos de tratamento de disputas sem a interven-ção de uma autoridade judicial (SPENGLER, 2010). A utilização das “ADR” se mostra importantíssima, pois apresenta inúmeros pontos positivos, como aliviar o conges-tionamento do Judiciário, diminuir os custos e a demora no trâmite dos casos, faci-litar o acesso à Justiça, incentivar o desenvolvimento da comunidade no tratamento de conflitos e disputas e, por fim, possibilitar um tratamento qualitativamente me-lhor dos conflitos (SPENGLER, 2010).

Não obstante isso, se faz necessário destacar que as novas estratégias de tratamento de conflitos – mesmo considerando a sua capacidade para eliminá-los e as vantagens acima descritas - convivem com alguns fatores que impedem o seu protagonismo para dirimir controvérsias, o que inclina os indivíduos a procurarem a jurisdição estatal para resolver seus litígios.

Dentre esses fatores se ressalta uma ausência de cultura de transação, isto é, há o hábito de que os litígios sejam dirimidos por via heterocompositiva e não autocompositiva, surgindo o já mencionado fenômeno do “demandismo”. O processo judicial, assim, muitas vezes é utilizado como forma de “vingança” do autor contra o réu por motivos escusos e alheios ao processo. É possível destacar, ademais, o excessivo protagonismo do Estado e a tendência de que todos os problemas dos indivíduos sejam transferidos para este, ao qual é atri-buída a função de “pai” ou de ente encarregado de solucionar todos os litígios, por mais corriqueiros que se apresentem, demonstrando a total incapacidade dos indivíduos de solucionar seus próprios conflitos. Por fim, como já grifado, temos um aumento da complexidade e sofisticação das relações sociais e eco-nômicas, bem como um maior conhecimento dos indivíduos quanto aos seus direitos e interesses legítimos.

Sem embargo, é crescente a importância das novas estratégias ao Sistema de Justiça, as quais se caracterizam pela “[…] desjudiciarização do conflito, retirando-o do âmbito da função jurisdicional do Estado e afastando-o, até mesmo, das técnicas judiciárias de conciliação, colocadas à disposição do julgador tradicional, ou seja, a mediação judiciária.” (BOLZAN DE MORAIS, 2008, p. 67). Assim, é possível afirmar que

A justiça consensual em suas várias formulações – na esteira dos ADR ame-ricanos, shadow justice ou da justice de proximité francesa – aparece como resposta ao disfuncionamento deste modelo judiciário, referindo a emer-gência/recuperação de um modo de regulação social que, muito embora possa, ainda, ser percebida como um instrumento de integração, apresenta-se como um procedimento geralmente formal, através do qual um terceiro busca promover as trocas entre as partes, permitindo que as mesmas se confrontem buscando um tratamento pactuado para o conflito que enfren-tam. (BOLZAN DE MORAIS, 2008, p. 66).

Cap. 3 - A crise da jurisdição

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As novas estratégias ao Sistema de Justiça, então, se caracterizam por possibilitar aos litigantes meios de discutir todo o conflito, não estando vinculado somente ao princípio processual da demanda, sendo propenso a efetivamente resolver o conflito e não somente decidi-lo. As vantagens das novas estratégias ao Sistema de Justiça, ademais, também podem ser visua-lizadas por meio da diminuição de custos, celeridade e proximidade entre as partes, sendo muitas vezes ritos informais e predispostos à aproximação dos litigantes.

Denota-se, por conseguinte, que essas estratégias de tratamento de conflito objetivam afastar do paradigma atual de justiça, no qual há um “ganhador” e outro “perdedor”, haja vista que as novas práticas visam a construir o tratamento para a controvérsia de modo consensual e cooperativo, o que justamente repele a ideia de “perder” ou “ganhar” o processo. Objetiva-se, nesse sentido, com os modos consensuais de tratamento de conflitos não somente o julgamento do litígio, mas o seu fim.

Ao final do processo na jurisdição estatal, saliente-se, a sentença decla-rará o direito, o que não necessariamente acabará com o litígio havido entre as partes e tampouco impedirá novos processos. Há, nesses casos, uma gran-de possibilidade de surgimento de novas demandas como desdobramento do primeiro litígio, pois o conflito não fora resolvido, mas tão somente decidido pelo juízo. A construção conjunta do tratamento da disputa, com efeito, se mostra efetiva para o término definitivo da controvérsia, uma vez que cabe aos litigantes entabularem os contornos do tratamento para o conflito havi-do entre as partes, o que predispõe ao fim a litigiosidade entre estas. Nesse cenário, os conflitantes serão convidados ao diálogo e, consequentemente, será aberto um canal hábil e propenso ao fim do litígio pelos próprios inte-ressados.

É sobre esse mesmo princípio que surge a mediação como forma de estratégia de tratamento de controvérsias, pois atua como auxiliar das partes para chegar ao consenso sobre o litígio, possibilitando o fim da contenda pelas próprias partes. Isso é possível em razão do mediador permanecer “entre” as parte, participando ativamente do tratamento do conflito e buscando o entendimento mútuo e o consenso. Assim, um conflito tratado por meio da mediação tem uma propensão muito grande de efetivamente eliminá-lo, pois a construção para o fim do litígio é realizada pelos próprios litigantes, os quais conhecem a sua realidade e, por exemplo, a possibilidade de cumprimento do acordo a ser entabulado.

Frise-se, por oportuno, que a mediação tem como característica a informa-lidade e visa o tratamento consensual dos litígios apresentados. A simplificação de seus atos auxilia na aproximação das partes e se mostra propensa à compo-sição do litígio, pois a aplicação de regras e formalismos exacerbados – típicas

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da jurisdição - afastaria os litigantes de um tratamento consensual por meio de acordo mútuo.

Tem-se, por conseguinte, que a mediação se mostra dessemelhante à jurisdi-ção estatal, na qual um terceiro desinteressado declara o direito e se posiciona de forma “equidistante” das partes. A distinção fica clara no magistério de Spengler (2010, p. 312):

A mediação difere das práticas tradicionais de jurisdição justamente por-que o seu local de trabalho é a sociedade, sendo a sua base de opera-ções o pluralismo de valores, a presença de sistemas de vida diversos e alternativos, sua finalidade consiste em reabrir os canais de comunicação interrompidos, reconstruir laços sociais destruídos. O seu desafio mais importante é aceitar a diferença e a diversidade, o dissenso e a desordem por eles gerados. Sua principal ambição não consiste em propor novos valores, mas em restabelecer a comunicação entre aqueles que cada um traz consigo.

A mediação, como visto, é capaz de fornecer aos litigantes os meios ne-cessários para a construção do tratamento do seu conflito, não dependendo que um terceiro “diga” o direito e solucione a contenda. Não se pode deixar de observar que a mediação é praticamente um trabalho artesanal, devendo observar as especificidades de cada caso para imbuir os sentimentos dos li-tigantes e auxiliá-los no tratamento do conflito, o que, porém, não é tarefa fácil e exige que os litigantes estejam inclinados a buscar o tratamento de seu conflito.

Não obstante, trata-se de via hábil a dirimir os conflitos apresentados e efe-tivamente solucioná-los, evitando, inclusive, a perpetuação da contenda ou, até mesmo, o surgimento de outras reflexas e decorrentes da primeira. Por meio da mediação, ademais, é possível reconstruir caminhos antes interrompidos, reapro-ximar os desencontrados e recriar laços desfeitos pelo conflito, o que não seria realizado pela jurisdição estatal.

Outra estratégia ao Sistema de Justiça é a conciliação, a qual objetiva “[...] chegar voluntariamente a um acordo neutro e conta com a participação de um terceiro-conciliador que intervém, podendo inclusive sugerir propostas para fins de dirigir a discussão [...]” (BOLZAN DE MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 173). Spengler (2010) afirma que o objetivo da conciliação é o acordo, in-dependentemente da reaproximação das partes, pois estas podem continuar como adversárias. Assim, postula-se tão somente o acordo para evitar que o processo judicial se perpetue ou que se inicie, sem analisar o conflito em pro-fundidade. Muitas vezes, saliente-se, o conciliador sugere, orienta, interfere e aconselha com a clara pretensão de forçar o acordo.

Mostra-se necessário esclarecer, dessa forma, a diferença da mediação e da conciliação, haja vista que não obstante a Resolução 125, do Conselho Nacional de Justiça, instituir a mediação e a conciliação como política pública de tratamento adequado de conflitos, não se tem de forma clara na sobredita

Cap. 3 - A crise da jurisdição

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resolução a distinção existente. Dessa forma, na análise realizada por Bolzan de Morais e Spengler (2012), podemos distinguir a mediação e a conciliação quanto ao entendendo sobre o conflito, ao papel do mediador/orientador, aos objetivos perseguidos e quanto às técnicas empregadas e à dinâmica das sessões.

No que se refere à primeira distinção a conciliação trabalha com conflitos esporádicos sem relacionamento prévio ou posterior entre os litigantes; a mediação, por sua vez, é apta a tratar os conflitos em que os envolvidos possuem relações próximas, inclusive familiares. Na segunda distinção, o conciliador pode sugerir, propor e direcionar o debate e seus resultados; na mediação, ao contrário, o terceiro ajuda aos conflitantes a restabelecer a comunicação, não sugerindo ou intervindo na solução. A conciliação, na terceira distinção, objetiva o acordo, isto é, se postula o tratamento do litígio mediante o acordo; a mediação busca o consenso e reabrir a comunicação entre os litigantes, sendo o acordo eventual con-sequência da estratégia. Na conciliação as seções são curtas e utiliza-se técnica de negociação voltada ao acordo propriamente dito; a mediação prevê seções mais longas e sua técnica é destinada à escuta e empenha-se para o tratamento do conflito.

Vê-se, dessa forma, que a mediação e a conciliação são institutos que, embora próximos, são diferentes, pois possuem finalidades e técnicas de atua-ção diversas. Assim, a distinção entre os institutos é importante, inclusive para compreender a sua participação e o seu emprego nos distintos confli-tos advindos da sofisticada sociedade atual, visando à máxima efetivação dos seus objetivos.

A arbitragem, por sua vez, é regulamentada pela Lei Federal n.º 9.307/96, sendo imprescindível para a sua utilização a existência de cláu-sula compromissória ou mediante compromisso arbitral53. O procedimento da arbitragem é bastante semelhante à jurisdição estatal, inclusive quanto aos seus princípios norteadores54, bem como acerca da presidência do pro-cesso por um terceiro que irá decidir o litígio, o qual poderá ser um técnico ou um especialista no assunto em discussão. A decisão, frise-se, não está sujeita a homologação judicial e seu cumprimento é obrigatório. (SPENGLER, 2010).

Essa nova estratégia ao Sistema de Justiça, assim como todas as demais,

53 A cláusula compromissória e compromisso arbitral não são sinônimos, pois não obstante ambas se tratarem de renúncia à jurisdição estatal, se diferenciam, em síntese, em razão de a primeira versar sobre eventuais discussões futuras que podem acontecer na execução de um contrato e de a segunda se referir quanto a uma questão já existente em que os conflitantes optam pelo juízo arbitral para solu-cionar a controvérsia (BOLZAN DE MORAIS; SPENGLER, 2012).

54 Dentre os princípios se destacam o princípio do contraditório, da ampla defesa, da igualdade de tratamento, da imparcialidade e da independência, da disponibilidade e do livre convencimento do julgador.

Gabriel de lima Bedin

54

possui vantagens e desvantagens. Bolzan de Morais e Spengler (2012) des-tacam entre aquelas a rapidez do procedimento arbitral; o custo mais barato do procedimento55; facilidade da execução do laudo arbitral; manutenção do contrato enquanto se soluciona a controvérsia; o desejo de manter relações entre as partes; a confiabilidade ou privacidade; evitar a submissão da disputa a tribunais estrangeiros, no campo internacional; e facilidade na transação. Nas desvantagens, ressalta-se, entre outros, a possibilidade de intervenção ju-diciária56; carência de procedimentos rígidos; e possibilidade de o árbitro não possuir a neutralidade necessária.

Nesses termos, as novas estratégias ao Sistema de Justiça são maneiras capazes de dirimir as contendas apresentadas de modo eficiente, qualificado e célere, possibilitando aos litigantes o efetivo tratamento de seu conflito e não somente a declaração do direito por um terceiro, restringindo a decidir o conflito. Tem-se, então, que em razão da crise instalada sobre a jurisdição estatal as novas estratégias ao Sistema de Justiça se mostram meios hábeis e plenamente capazes de dirimir quaisquer litígios, por mais complexos e sofis-ticados que se apresentem.

Os litígios advindos das relações sociais atuais, em razão de sua comple-xidade e sofisticação, necessitam de estratégias que possibilitem o seu pleno tratamento, o que não está sendo obtido por meio da jurisdição estatal em razão da crise instalada no Estado e, consequentemente, na jurisdição. Des-sa forma, as novas estratégias ao Sistema de Justiça se mostram habilitadas e capazes de solucionar as complexas e sofisticadas demandas provenientes da sociedade atual, pois suas características são propícias ao tratamento de litígios de forma definitivo, possibilitado, inclusive, a autocomposição do con-flito.

Destarte, não se tem dúvida, portanto, da possibilidade de solucionar os conflitos referentes às sofisticadas e complexas relações sociais por meio das novas estratégias ao Sistema de Justiça. Essa afirmação é possível em razão do comparativo entre a jurisdição estatal – que está em crise, como já fora afirmado – e justamente as novas estratégias ao Sistema de Justiça, sendo que estas apresentam meios mais capacitados e habilitados para solucionar as demandas apresentadas, inclusive de forma pormenorizada, viabilizando o tratamento definitivo do conflito.

55 Aqui entendido, inclusive, o custo diferido em decorrência da celeridade do procedimento arbitral se comparado à jurisdição estatal.

56 Esse assunto tem sido objeto de inúmeros processos judiciais, inclusive sobre os efeitos da Lei Federal n.º 9.307/96 antes da sua edição, conforme se observa na Súmula 485, do Superior Tribunal de Justiça. A discussão em juízo ordinário sobre esse assunto, geralmente, versa so-bre a desconstituição/ineficácia da cláusula compromissória ou do compromisso arbitral, bem como a intervenção judicial no juízo arbitral. O Superior Tribunal de Justiça, todavia, está consolidando seu entendimento acerca da plena validade da cláusula compromissória e do compro-misso arbitral e da incompetência do Poder Judiciário para julgar litígio quando da existência da cláusula compromissória e do compromisso arbitral. A título de exemplificação se destaca o REsp. 1.297.974 / RJ, da Relatoria da Min. Nancy Andrighi, julgado em 19 de junho de 2012.

Cap. 3 - A crise da jurisdição

55Gabriel de lima Bedin

5. À guisa de conclusão

Compreendeu-se, então, que a jurisdição estatal está em crise. Esta crise é decorrente da crise estatal que fora gerada pelas transformações dos séculos XX e XXI, notadamente em razão das novas variáveis econômicas, políticas e sociais advindas da globalização que alteraram, de forma definitiva e, prova-velmente, irreversível, os fundamentos do pensamento jurídico. As modifica-ções na ordem internacional e nacional, portanto, demonstraram que o Estado não possui o monopólio das normas jurídicas e, tampouco, do tratamento dos conflitos.

Desse modo, o monopólio da jurisdição pelo Estado deve ser relativizado, sem, contudo, descarta-lo, frise-se, para possibilitar um tratamento adequado aos diversos conflitos da sociedade contemporânea. Isso se deve justamente à impossibilidade da jurisdição estatal de acompanhar as transformações da so-ciedade, pois se mantém a mesma estrutura desusada e burocratizada, sendo muitas vezes refratárias às inovações. Registre-se, ainda, que a compreensão da complexidade dos conflitos contemporâneos se faz necessária para pos-sibilitar o seu tratamento apropriado, inclusive para que novos conflitos não surjam do originário.

Nesse cenário, tem-se que se faz necessária a implantação de novas es-tratégias ao Sistema de Justiça, como a mediação, a conciliação e a arbitragem. Essas novas estratégias, como se viu neste artigo, se apresentam extremamen-te capacitadas para dirimir os conflitos da complexa e sofisticada sociedade atual, inclusive visando à eliminação dos litígios.

Assim sendo, em decorrência das crises da jurisdição estatal, provenien-tes da crise do Estado, e das transformações da sociedade contemporânea, derivadas da complexidade e da sofisticação da própria sociedade atual, urge a necessidade de ampliar e possibilitar o tratamento dos conflitos por meio de novas estratégias que se mostrem capacitadas e plenamente aptas a tratá-los de forma adequada.

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57Gabriel de lima Bedin

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58Cap. 4 - Duração do processo no Brasil e novas alternatias nascidas com a emenda Constitucional nº 45/2004

CAPíTUlO 4

dUrAÇÃO dO PrOCessO NO BrAsIL e NOvAs ALTerNATIvAs NAsCIdAs COM A eMeNdA CONsTITUCIONAL Nº 45/2004

Queli Cristiane Schiefelbein da Silva57

57 Bacharela e Mestra em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí, Especialista em Ciências Penais pela Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul e Técnica Judiciária da Justiça Federal onde exerce a função de Supervisora da Unidade Avançada de Atendimento da Justiça Federal em Ijuí/RS.

59Queli Cristiane Schiefelbein da Silva

1. Notas introdutórias

Diversas são as causas da lentidão da justiça brasileira, tais como: problemas de estrutura do Judiciário, questões burocráticas, nível de ensino não adequado, remuneração dos servidores muitas vezes não satisfatória, falta de juízes e servi-dores, legislações e leis desatualizadas ou não adequadas, excessividade recursal, demora do Poder Legislativo em adequar as leis, questão do Poder Executivo ser um dos maiores litigantes, burocracia judicial existente, tempo desnecessário gasto nos cartórios judiciais, assim como o próprio comportamento das partes e procura-dores envolvidos no processo, vontade política e crise de demanda, dentre outros fatores.

Nesse sentido, verifica-se que nos últimos anos ocorreu uma explosão de litigiosidade, o que é explicado, em parte, pela elaboração da Constituição Federal Brasileira de 1988, a qual oportunizou muitos novos direitos aos cidadãos, razão pela qual ficou conhecida como Constituição Cidadã. E com todos os problemas que são causados pela morosidade do Judiciário, a fim de agilizar os processos, através de uma razoável duração dos mesmos, mas levando-se sempre em conta o adequado acesso à justiça, necessário se faz o alargamento dos limites de jurisdi-ção, modernizando-se o Judiciário, e, para isso, a utilização do processo eletrônico torna-se cada vez mais importante.

Dessa forma, o presente artigo busca demonstrar que a morosidade proces-sual é decorrente de diversas causas, sendo que com o objetivo de reformar o Judi-ciário, a Emenda Constitucional nº 45/2004, além de trazer inciso específico acerca da celeridade e razoável duração do processo, apresenta diversos dispositivos para proporcionar um acesso à justiça em um tempo razoável, com destaque para a uti-lização dos avanços tecnológicos nos processos.

2.1. Causas da morosidade processual no Brasil

As causas da morosidade da justiça decorrem de inúmeras situações, de difícil superação, entre elas: problemas estruturais do Poder Judiciário, como fal-ta de recursos financeiros; burocratização dos serviços; ausência de estrutura e infraestrutura adequada; baixo nível do ensino jurídico; baixa remuneração dos servidores; número reduzido de juízes e servidores; falta de aperfeiçoamento, tanto para os juízes como para os servidores, assim como legislação e leis proces-suais inadequadas, excesso de recursos protelatórios, de processos e de serviços. Segundo Palharini Júnior, há também problemas intrínsecos ao próprio processo, através de um conjunto de regras que “permitem que o iter processual se arraste de forma indefinida, retardando a entrega jurisdicional em tempo inaceitável” (PA-

60

LHARINI JÚNIOR, 2005, p. 767). Todavia, observa-se que nenhuma delas, isolada-mente, explica a lentidão processual.

Segundo Tucci (1997), podem ser destacados três fatores como principais causas da morosidade: a) institucionais, que segundo o autor é compreendido por uma ideologia “conservadora e mesquinha”, segundo a qual o Poder Judiciário deve ser o poder mais fraco da República; b) fatores técnicos e subjetivos, como vencimentos dos magistrados, ampla recorribilidade das decisões proferidas em primeira instância, a necessidade de processo executivo para a efetivação da coi-sa julgada, o grande número de processos por magistrado, as displicências destes (de alguns, evidentemente) com prazos que lhes são assinados e com o expe-diente forense, bem como a tendência procrastinatória do próprio dirigente do processo, em despachos absolutamente inócuos: “ao réu”, “ao autor”, “ao perito”, “ao contador”...; c) por fim, a carência material da Justiça, com número reduzido de juízes e de servidores, parcas condições materiais e organizacionais.

Para Fernando Gajardoni (2003), haveria ainda o fator cultural, pois os opera-dores do direito teriam excelente aptidão para as lides forenses, todavia, estariam despreparados para exercer uma advocacia preventiva, fazendo uso de práticas conciliatórias, o que ajudaria a desafogar o Poder Judiciário, consequentemente dando mais celeridade aos feitos em andamento. Também, boa parte dos advoga-dos muitas vezes usam todos os meios que estão ao seu alcance para retardarem o trâmite processual, a fim de obterem maiores rendimentos e status perante seus pares, ou para simplesmente dissimularem no transcurso do tempo decorrido e no esquecimento eventuais erros que foram cometidos.

Marco Jobim (2012, p. 122-123) ressalta como interessante o rol de motivos para a morosidade apresentados por Fabiana Rodrigues Silveira, que entende exis-tir três razões que auxiliam na intempestividade processual, sendo:

a primeira as causas extraprocessuais, nas quais inclui aquelas “[...] relacio-nadas à burocracia da máquina administrativa como um todo, à deficiência na informação/comunicação [...]”, dando a entender causas mais relaciona-das à administração pública; uma segunda causa que, mesmo extrajudicial, vincula o Poder Judiciário, onde exemplificamos aquelas onde “[...] há des-necessária instigação ao litígio, geralmente por parte dos profissionais, com formação voltada à advocacia combativa [...]”; e uma terceira causa, que é oriunda dos próprios problemas judiciais, como “[...] a formalização exa-cerbada do processo, o sistema recursal, o sistema de produção de provas [...]”. Na terceira das causas apontadas pela autora, em especial a da forma exacerbada do processo, é de se ressaltar que o processo necessita de certa formalidade, sendo que somente aquele que extrapola os preceitos de um bom serviço ao processo é de ser considerada lesiva ao interesse das partes.

Há que se registrar, ainda, que os demais poderes (Legislativo e Execu-tivo) também possuem certa responsabilidade no problema da morosidade do Judiciário. Nesse sentido, o Poder Legislativo é responsável pela demora na ade-quação da lei ao estágio que vive a sociedade, bem como pela quantidade de instrumentos legislativos que assoberba o país. Ademais, ocupa-se mais em

Cap. 4 - Duração do processo no Brasil e novas alternativas nascidas com a Emenda Constitucional nº 45/2004

61

atormentar o Judiciário com escândalos, malas de dinheiros, mensalões, CPIs e improbidades do que cumprindo sua função de fiscalizar e criar leis.

Já o Poder Executivo é um dos grandes responsáveis pela demora na entre-ga da tutela jurisdicional, por ser um dos maiores litigantes, seja como autor, seja como réu. Tal fato é confirmado por pesquisa58 realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no período de 01 de janeiro de 2011 a 31 de dezembro de 2011 e divulgada em 2012, de forma que na análise dos 100 maiores litigantes observa-se que a União e a Fazenda Nacional estão entre os primeiros da lista, no ranking nacional. Ademais, observa-se que figuram também na lista diversos Municípios, Estados, Fazendas Públicas Estaduais, Autarquias Públicas (neste caso, destacando-se como principal o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS) e Fundações Públicas (com destaque para a Caixa Econômica Federal - CEF).

Salienta-se, ainda, que algumas das causas da morosidade da justiça brasilei-ra estão ligadas à burocracia judicial e, mais diretamente, aos cartórios judiciais: o problema cartorário no país é extremamente preocupante, influindo diretamente no tempo do processo. Nesse sentido, foi realizado um estudo59 pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em parceria com o Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (Cebepej), a pedido da Secretaria de Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça. No referido estudo, o qual consumiu dois anos e foi coorde-nado pelo professor Paulo Eduardo Alves da Silva, da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), foi traçado o perfil de organização e funcionamento de quatro cartórios judiciais no Estado de São Paulo (dois na capital e dois no interior), envol-vendo 92 servidores. Tal pesquisa é representativa de boa parte da realidade que vigora nos cartórios e comarcas do país, não tendo a pretensão de generalizar em âmbito nacional as conclusões alcançadas (FUJITA; SANTOS, 2008).

No item 2 da pesquisa, denominado “O impacto dos cartórios sobre a mo-rosidade da Justiça”, foi verificado que 80% (oitenta por cento) do tempo total do processo é consumido dentro do cartório judicial. Observa-se que, enquanto o processo está em cartório, há períodos que podem ser considerados “tempos mortos”, ou seja, tempos em que não se praticam atos necessários à solução do conflito e que, portanto, poderiam ser eliminados60. Salienta-se que, no referido

58 Pesquisa CNJ: 100 maiores litigantes. Brasília, 2012. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publica-coes/100_maiores_litigantes.pdf>. Acesso em: 24 set. 2013.

59 Esse estudo foi chamado de “Análise da Gestão e Funcionamento dos Cartórios Judiciais”, publicado em junho de 2007, e pode ser encontrado no site do Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no endereço: <http://portal.mj.gov.br/reforma/>. Acesso em 01 ago. 2013.

60 Em relação à eliminação de atrasos inúteis e desnecessários, segundo Boaventura de Sousa Santos (2011, p. 42-43) “é preciso ter cons-ciência dos tipos de morosidade que contaminam cada caso e o ideal de celeridade que se persegue”. Nesse sentido, o autor identifica dois tipos de morosidade: a morosidade sistêmica e a morosidade ativa. Para Boaventura, a morosidade sistêmica seria aquela decorrente da sobrecarga de trabalho, do excesso de burocracia, do positivismo e do legalismo. Pode-se concluir, então, que este tipo de morosidade que geraria o “tempo morto” do processo. Já a morosidade ativa é aquela gerada pela “interposição, por parte não só de operadores concretos do sistema judicial (magistrados, funcionários, membros do ministério público, advogados) mas também de algumas das partes e terceiros envolvidos no processo, de obstáculos para impedir que a sequência normal dos procedimentos desfeche o caso” (SANTOS, 2011, p. 47).

Queli Cristiane Schiefelbein da Silva

62

estudo, consideram-se “tempos mortos” aqueles em que o processo aguarda algu-ma rotina a ser praticada pelo funcionário (nas pilhas sobre as mesas e nos esca-ninhos), bem como os tempos gastos em rotinas que poderiam ser eliminadas se o fluxo de tarefas do cartório fosse racionalizado.

Sobre o assunto, Humberto Theodoro Júnior (2013) assinala que a demo-ra do processo é causada pela inércia e não pela exigência legal de diligências longas, pois “o que retarda intoleravelmente a solução dos processos são as etapas mortas, isto é, o tempo consumido pelos agentes do Judiciário para resolver praticar os atos que lhes competem”. Assim, o “tempo morto” seria a inatividade processual durante a qual os autos permanecem paralisados no cartório. Discorrendo sobre o assunto, Gisele Salgado (2007) afirma que:

Em linhas gerais pode-se dizer que o tempo morto no processo judiciário é o tempo em que o processo judiciário está em andamento, sem estar correndo o prazo dos atos processuais. O tempo morto é aquele em que não há efetivamente atos processuais que levem ao fim do processo, ga-rantindo a paz social com a resolução dos conflitos. No período que de-nominamos tempo morto o processo judiciário está na mão da burocracia estatal judiciária, para que esse volte novamente a ser movimentado pe-las partes ou terceiros.

O estudo frisa, ainda, que o “tempo em cartório” não pode ser entendido como “perda de tempo” ou confundido com “tempo morto” do processo em car-tório, pois nele estão incluídos tempos absolutamente necessários. Segundo Fuji-ta e Santos (2008), o relatório não aponta precisamente os vários elementos que compõem esse “tempo em cartório”, mas elenca os atos que ocorrem com pouca frequência, sendo possível, por exclusão, extrair as tarefas mais demoradas. Nesse sentido, observa-se que as rotinas praticadas são complexas, aumentando o tem-po, bem como o fluxo dos processos acaba sendo represado na pilha formada na mesa de cada funcionário.

Em relação ao “tempo morto”, ao qual a ministra Ellen Gracie Northfleet de-nomina de “tempo neutro do processo”, mas que poderia ser chamado também de tempo perdido, verifica-se, segundo a ministra, que o tempo despendido nos proces-sos com tarefas burocráticas (expedição de certidões, protocolos, autuações, regis-tros, ou até mesmo a costura de autos e carimbos obrigatórios) corresponde a 70% (setenta por cento) do tempo de tramitação do processo, restando apenas 30% do tempo efetivamente voltado à resolução das lides (COSTA; HAIDAR, 2007). Tal dado foi confirmado por levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apresenta-do pelo conselheiro Walter Nunes durante o 4º Encontro Nacional do Judiciário, que aconteceu no Rio de Janeiro, em 06 de dezembro de 2010. O conselheiro afirmou que “cerca de 70% (setenta por cento) do tempo da tramitação dos processos na Justiça brasileira é gasto com atos cartorários, como autuação e juntadas, comunicações processuais, numeração, certificações, entre outros” (BUROCRACIA, 2010).

Ainda no mesmo sentido, em artigo intitulado “A verdadeira reforma do Ju-

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diciário”, publicado no Correio Braziliense, em 16 de julho de 2007, escreveu o Juiz Federal Sérgio Tejada Garcia (2007), à época secretário-geral do CNJ, que em torno de 70% do tempo do processo é perdido com atos meramente ordinatórios (certidões, protocolos, juntadas, registros, costuras, carimbos e uma infinidade de procedimentos burocráticos) e que o processo eletrônico constitui uma das ferra-mentas mais eficazes de combate à burocracia do processo e à morosidade pro-cessual, ou seja, para reduzir esse “tempo morto” do processo e transformá-lo em tempo nobre.

Outros pontos que atrasam consideravelmente o trâmite processual, segun-do a pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, e estão ligados à burocracia judicial, são os procedimentos de publicação e juntada, os quais computam, respectivamente, entre 51,4% (cinquenta e um vírgula quatro por cento) a 69,3% (sessenta e nove vírgula três por cento) e entre 7% (sete por cento) a 38,8% (trinta e oito vírgula oito por cento) do tempo total em cartório, bem como o tempo em que o processo per-manece no cartório após proferida a sentença, quando praticamente já terminou, o qual representa em torno de 35% do tempo total do processo. Observa-se, assim, o cenário preocupante demonstrado através da pesquisa, pela qual é possível verifi-car, segundo Fujita e Santos (2008), que:

[...] os funcionários pesquisados demonstraram-se alheios ao debate sobre a crise da Justiça, o que talvez explique a incipiente representação ins-titucional dessa categoria em torno da Reforma do Judiciário. Apesar da importância de seu papel no trâmite de decisão dos processos, a pesquisa concluiu que o cartório ainda não é visto como um “ator” do sistema de jus-tiça. Ele costuma ser ignorado pelo próprio Tribunal de Justiça, responsável pela organização dos cartórios judiciais. Visto pelos funcionários pesquisa-dos como uma entidade abstrata e distante, o Tribunal é acusado de só se dirigir aos cartórios para exigir o cumprimento de medidas consideradas descabidas, típicas de quem desconhece suas atribuições. Assim, a expec-tativa é de que a pesquisa – inédita dessa natureza – possa servir como um alerta do atual estado de coisas, de modo a contribuir para que a imagem da justiça seja desassociada não só da ideia de morosidade – mas também da de anacronismo.

Contudo e infelizmente, conforme observa Marco Jobim (2012), as cau-sas da intempestividade do Poder Judiciário não derivam apenas da lentidão cartorária, da burocracia e da crise do ensino jurídico. Outras formas de en-traves à tempestividade do processo são realizadas pelo comportamento dos próprios procuradores e partes envolvidos no processo, os quais deveriam zelar pelo seu bom andamento. Nesse sentido, muitas vezes as partes e seus procuradores acabam por dificultar o desenvolvimento do processo, litigando de má-fé e invocando incidentes processuais meramente procrastinatórios.

Outra causa para a intempestividade é apontada por Luiz Guilherme Ma-rinoni (2006, p. 189), atribuindo parcela de culpa à vontade política, pois “não há dúvida de que pode existir falta de vontade política para a redução da demora processual. A lentidão da justiça, nesse sentido, seria fruto de vários

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interesses”. Exemplificando a vontade política, Marco Jobim (2012) cita a reda-ção do artigo 557, caput, e §1º do Código de Processo Civil, por meio do qual, respectivamente, em um primeiro momento, se confirma uma norma tempesti-va com a possibilidade de o relator negar seguimento ao recurso, consideran-do a afirmação de que “O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior” (BRASIL, 2013). Após, é possível conceder o direito do recorrente a interpor outro recurso a fim de modificar a decisão anterior, tendo em vista a previsão de que “Da decisão caberá agravo, no prazo de cin-co dias, ao órgão competente para o julgamento do recurso, e, se não houver retratação, o relator apresentará o processo em mesa, proferindo voto; provido o agravo, o recurso terá seguimento” (BRASIL, 2013).

Também é apontada como entrave do Judiciário a crise de demanda, confor-me exposto por Araken de Assis (2006, p. 50), ao afirmar que:

Se há multiplicidade de litígios, tanto que se criaram e difundiram meios al-ternativos para resolvê-los, então a demora se prende a uma crise de deman-da. A pessoa na sociedade pós-moderna, devidamente etiquetada (consumi-dor, contribuinte, cidadão, e assim por diante, conforme a situação), assume a condição de litigante inveterado e intransigente. Reivindica direitos reais ou hipotéticos com ardor e pertinácia. Quer Justiça a todo custo, exibindo indiferença com a posição e o direito do seu eventual adversário. Não é aqui o lugar, nem temos habilitação para avaliar as causas dessa tendência uni-versal. Presumivelmente, a preponderância do individualismo, o abandono das práticas comunitárias, a insuficiência dos mecanismos de representação política, a complexidade e a diversidade sociais contribuem, em grau variá-vel, para o quadro. E note-se que a esta conjuntura soma-se a já identificada litigiosidade contida. A crise da demanda é tão grave e profunda que, sem embargo da vocação litigante, há litígios que ficam à margem da Justiça Pública e – o alvitre não soa desarrazoado – até mesmo dos mecanismos alternativos disponíveis.

De fato, verifica-se nos últimos anos um crescimento significativo do núme-ro de processos, o qual é causado, em parte, pela Constituição Cidadã de 1988, a qual abriu muitas portas para o cidadão ter acesso ao Poder Judiciário e também pelas legislações infraconstitucionais que complementam a Constituição. Nos di-zeres de Fabiana Marion Spengler (2010, p. 104), a explosão de litigiosidade é provocada pela consagração dos novos direitos:

[...] surgem novas categorias de direitos e de sujeitos jurídicos legitimados a pleiteá-los. São os direitos coletivos, individuais homogêneos e os difusos. Esses novos direitos produziram novos atores, que determinaram a transfe-rência do conflito da zona política para a jurisdicional. Então, as demandas sociais se tornam jurídicas e a consagração de novos direitos provoca uma explosão de litigiosidade significativa (em termos qualitativos e quantita-tivos), realçando ainda mais a incapacidade e as deficiências da estrutura judiciária, que passou a ser requisitada de forma ampla.

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A fim de enfrentar essa sobrecarga de processos e a crise por que passa, com o objetivo de sobreviver como um poder autônomo e independente, é necessário que o Judiciário alargue os limites de sua jurisdição, modernize suas estruturas organizacionais e reveja seus padrões funcionais (SPENGLER, 2010, p. 103). Nesse sentido, e considerando que o presente trabalho não tem o condão de esgotar o estudo dos novos contornos da função jurisdicional e nem de tratar todas as possí-veis soluções para a crise do Judiciário, destaca-se a necessidade de modernização do Judiciário, para uma prestação jurisdicional tempestiva e efetiva, tendo em vista o mundo globalizado em que se vive.

Nessa linha, Marinoni (2002, p. 44) afirma que “o grande problema, na verdade, está em construir tecnologias que permitam aos jurisdicionados obter uma resposta jurisdicional tempestiva e efetiva”. Dessa forma, e consi-derando que uma das causas da demora do processo decorre da alta comple-xidade da burocracia judiciária brasileira, que “institui prazos e regras que tornam o processo mais complexo e demorado” (SALGADO, 2007), a utiliza-ção da tecnologia do processo eletrônico ganha relevo, pois pode diminuir o tempo em que o processo de desenrola, especialmente reduzindo o “tempo morto” do processo.

2.2 Mecanismos de aceleração do processo

Através do presente estudo, verifica-se que a morosidade processual é decorrente de diversas causas. Porém, com o objetivo de reformar o Judiciário, além do inciso específico prevendo a celeridade e razoável duração do processo, diversos outros dispositivos presentes na Emenda Constitucional nº 45/2004 podem ser apontados para garantir o direito à prestação jurisdicional em um prazo razoável. Várias alternativas foram apresentadas a fim de proporcionar o acesso à justiça com a tão almejada duração razoável do processo.

Nesse sentido, a Emenda Constitucional nº 45/2004, dentre outras altera-ções constitucionais, introduziu: a) a proporcionalidade entre o número de juízes na unidade jurisdicional e a efetiva demanda judicial e a respectiva população (art. 93, XIII, CF); b) funcionamento ininterrupto da atividade jurisdicional (art. 93, XII, CF); c) distribuição imediata dos processos em todos os graus de jurisdição (art. 93, XV, CF); e d) instituição do Conselho Nacional de Justiça (art. 92, I-A e art. 103 –B, CF). Importante mencionar ainda a “previsão de real cumprimento do princípio do acesso à ordem jurídica justa, estabelecendo-se a Justiça itinerante e a sua descentralização”, conforme previsão dos artigos 107, §§2º e 3º; 115, §§1º e 2º e 125, §§ 6º e 7º da CF (LENZA, 2011, p. 633).

Segundo Hote (2007, p. 471), as mudanças trazidas pela Reforma do Poder Judiciário consistem, resumidamente, na:

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a) Atividade jurisdicional ininterrupta com a proibição de férias coletivas em todas as áreas da Justiça; b) Criação de novas normas acerca dos deveres e direitos dos magistrados; c) Estabelece algumas regras sobre a estrutura do Poder Judiciário; d) Cria órgão administrativo com poder disciplinar e censório, o Conselho Nacional de Justiça; e) Estabelece ouvi-dorias de justiça no âmbito das Justiças da União e dos Estados, visando captar sensações e reclamações dos cidadãos em relação aos órgãos do Judiciário; f) Possibilita a criação de súmulas vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal; g) Na alteração na competência originária e recursal do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, em relação à admissibilidade de recurso extraordinário e especial; h) Necessidade do requisito da repercussão geral para a admissibilidade do recurso extraor-dinário; i) Distribuição imediata de todo feito ou recurso, perante todo juízo ou tribunal; j) Recomenda o automatismo judicial, para que juízes deleguem a serventuários da justiça a prática de atividades administrati-vas e atos de impulso processual sem cunho decisório; k) Apresenta uma série de disposições sobre o Ministério Público; l) Cria um Conselho Na-cional do Ministério Público e ouvidorias do Ministério Público.

Na mesma linha, cabe mencionar nos dizeres de Carvalho (2005, p. 222) algumas das inovações que igualmente incorporam o texto da Emenda Constitu-cional nº 45/2004 e que também colaboram para a duração razoável do processo, sendo manifestações diretas ou indiretas do princípio da celeridade, a saber: a) aferição do merecimento conforme o desempenho e pelos critérios objetivos de produtividade e presteza no exercício da jurisdição, bem como pela frequência e aproveitamento em cursos de aperfeiçoamento, oficiais ou reconhecidos; b) não promoção do juiz que, injustificadamente, retiver autos em seu poder além do prazo legal, não sendo possível devolvê-los ao cartório sem o devido despacho ou decisão; c) atividade jurisdicional ininterrupta, com vedação de férias coletivas nos juízos e tribunais de segundo grau, bem como manutenção de juízes de plantão permanente, nos dias em que não houver expediente forense normal; d) o número de juízes na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população; e) delegação aos servidores para a prática de atos de admi-nistração e atos de mero expediente, sem caráter decisório; f) distribuição imediata de processos, em todos os graus de jurisdição; g) as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo STF, nas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) e nas ações declaratórias de constitucionalidade (ADC) produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal; h) o recorrente, no recurso extraordinário, deverá demonstrar repercussão geral das questões cons-titucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros; i) os Tribunais Regionais Federais (TRF), os Tribunais Regionais do Trabalho (TRT) e os Tribunais de Justiça (TJ) instalarão a justiça itinerante, com a realização de audiências e demais funções da atividade jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de equipamentos públicos e comu-

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nitários; j) os Tribunais Regionais Federais (TRF), os Tribunais Regionais do Trabalho (TRT) e os Tribunais de Justiça (TJ) poderão funcionar de forma descentralizada, constituindo Câmaras regionais, a fim de assegurar o pleno acesso do jurisdicio-nado à justiça em todas as fases do processo; k) o Tribunal de Justiça, para dirimir conflitos fundiários, proporá a criação de varas especializadas, com competência exclusiva para questões agrárias; l) a distribuição de processos no Ministério Pú-blico (MP) será imediata; m) criação de súmula com efeito vinculante; n) criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Salienta-se que, apesar de cada inovação proposta pela Reforma do Judiciário amparar e merecer grandes estudos e discussões aprofundadas, o presente trabalho busca tecer apenas um breve relato das modificações, especialmente daquelas que de alguma forma estão interligadas à busca pela celeridade e razoável duração da presta-ção jurisdicional. Da mesma forma, também objetiva apresentar algumas técnicas para a aceleração do processo e modificações legislativas ocorridas para atingir tal objetivo.

Observa-se que algumas técnicas são propostas por Gajardoni (2003, p. 76-77), como formas de aceleração do processo, e estão transcritas a seguir:

a) técnica extraprocessual: reorganização judiciária, investimentos tecnoló-gicos e materiais no Judiciário, mudança do perfil do operador jurídico e alteração no regime de custas processuais;b) técnica extrajudicial: autocomposição extrajudicial, heterocomposição extrajudicial e autotutela;c) técnica judicial: autocomposição judicial, desformalização do processo, dife-renciação da tutela jurisdicional, sumarização procedimental, tutela jurisdicional coletiva, julgamento antecipado do mérito, abreviação do procedimento recursal, limitação de acesso aos tribunais, execução por título executivo extrajudicial, exe-cução provisória da sentença, manipulação do fator despesas processuais e hono-rários advocatícios e sanções processuais ao protelador.

Visando alcançar maior celeridade procedimental, podem ser citados como alguns exemplos das diversas alterações legislativas ocorridas a Lei nº 11.280/2006 que, inse-rindo o §5º no art. 219 do CPC/73, prevê a possibilidade de declaração, de ofício, pelo juiz, da prescrição. A mesma lei introduziu o parágrafo único no art. 154 do CPC/73, prevendo a possibilidade dos Tribunais disciplinarem a prática e a comunicação oficial dos atos processuais por meios eletrônicos, dentre outras disposições da referida lei. Ou a Lei nº 11.277/2006, da sentença liminar ou julgamento prima facie, que inseriu o art. 285-A no CPC/73, prevendo a possibilidade do juiz julgar liminarmente o pedido do autor, antes mesmo da citação do réu, se, verificar que a pretensão se trata de maté-ria unicamente de direito e, no mesmo juízo, houver sentença de total improcedência. Também a Lei nº 11.276/2006, a qual inseriu o §1º do art. 518 do CPC/73, que prevê a possibilidade do juiz não receber o recurso de apelação caso a sentença estiver em con-formidade com súmula dos Tribunais Especiais (STF ou STJ). Ademais, atualmente conta-se ainda com a Súmula Vinculante (art. 103-A da Constituição Federal), a Repercussão Geral (Lei nº 11.418/2006) e a Lei dos Recursos Repetitivos (Lei nº 11.672/2008) para tentar impedir recursos protelatórios às Cortes Superiores (FERNANDES, 2012).

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Apesar da autoaplicabilidade do art. 5º, LXXVIII, da CF, outras normas jurídicas foram elaboradas para a implementação do referido dispositivo, e que também podem ser citadas como exemplo de normas que objetivam otimizar o tempo da duração pro-cessual. Nesse sentido é a Lei nº 11.287/2005, conhecida como a Nova Lei do Agravo, que tem como objetivo reduzir o número de recursos de agravo existente, convertendo o agravo de instrumento em agravo retido. Também a Lei nº 11.232/2005, do Proces-so de Execução, que prevê o sincretismo processual, no qual a execução irá acontecer como uma fase após a sentença, nos próprios autos. Como último e principal exemplo para o presente trabalho, cita-se a Lei nº 11.419/2006, que é a Lei da Informatização do Processo Judicial, a qual dispõe sobre o processo eletrônico e dá outras providências.

Nesse sentido, o principal meio para tornar efetivo o princípio da celeridade processual e garantir que o processo tramite em um tempo razoável, consiste na utilização de avanços tecnológicos nos processos. A tecnologia está presente na vida das pessoas, fazendo parte do seu cotidiano e deve fazer parte também do cotidiano do Judiciário. Dessa forma, o Judiciário precisa se adequar aos avanços tecnológicos, garantindo assim um processo muito mais célere, desafogando o número de processo e também beneficiando as partes.

Observa-se que o avanço tecnológico já permitiu algumas medidas ao meio pro-cessual que deram maior celeridade à tramitação judicial, como o protocolo integrado, a possibilidade de interposição de petições por fax e correio eletrônico, o acompanhamento processual via internet, a oitiva de réu preso através de videoconferência, etc. Todavia, o avanço fundamental é a transformação dos autos no formato digital, tornando-os mais práticos, econômicos e de maior acessibilidade para as partes e interessados. E isso é pos-sibilitado com a adoção do processo eletrônico, que é uma das formas de efetivar a razoá-vel duração do processo, propiciando uma prestação jurisdicional mais rápida e eficiente.

Salienta-se, por oportuno, que em 13 de abril de 2009 foi assinado, nova-mente pelos representantes maiores dos três poderes, um novo61 pacto republica-no, intitulado de II Pacto Republicano de Estado, por um sistema de justiça mais acessível, ágil e efetivo. Os objetivos de tal pacto, segundo Fortes (2009), foram reafirmar, fortalecer e ampliar as medidas de proteção dos direitos humanos, da efetividade da prestação jurisdicional e do acesso universal à Justiça. Destaca-se que mais uma vez, dentre os diversos compromissos firmados para se atingir os objetivos, há a previsão da informatização, como uma forma de melhorar a quali-dade dos serviços prestados à sociedade, possibilitando maior acesso e agilidade.

Assim, a informatização passa a ser um dos maiores trunfos na tentativa de se trazer maior acesso à justiça, com um tempo adequado de duração do processo.

61 O I Pacto Republicano, um Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais rápido e republicano, foi assinado no dia 15 de dezem-bro de 2004 pelos representantes maiores dos três poderes (Presidentes da República, do Senado, da Câmara dos Deputados e do Supre-mo Tribunal Federal), com o compromisso de realizarem medidas conjuntas para minimizar os problemas do judiciário que retardam o desenvolvimento nacional (FORTES, 2009).

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3. À guisa de conclusão

Com o presente trabalho foi possível verificar que na análise dos 100 maiores li-tigantes nacionais, a União e a Fazenda Nacional lideram o ranking, seja como autor ou como réu, sendo que dessa forma o Poder Executivo é um dos grandes responsáveis pela demora na entrega da tutela jurisdicional, por ser um dos maiores litigantes. Ademais, não passou despercebido o aumento significativo do número de processos que ocorreu nos últimos anos, especialmente em razão da consagração de novos direitos, o que gerou uma explosão de litigiosidade, principalmente após a Constituição Cidadã de 1988.

Também foi possível observar a Emenda Constitucional nº 45/2004, buscando realizar uma Reforma do Judiciário, que trouxe em seu texto variados incisos que servem como alternativas para a busca da celeridade e razoável duração do processo, a fim de se enfrentar um dos maiores problemas dos processos judiciais brasileiros, que é a mo-rosidade processual. Em relação a tal problema, observa-se que embora sejam diversas as causas da morosidade processual, nenhuma delas explica, isoladamente, a lentidão processual. Todavia, buscou-se destacar a questão da demora cartorária, considerando que cerca de 80% (oitenta por cento) do tempo total do processo acaba sendo consumi-do dentro dos cartórios judiciais, sendo que dentro deste tempo, há períodos de “tempos mortos”, despendidos com tarefas burocráticas, como expedição de certidões, protoco-los, autuações, registros, ou até mesmo a costura de autos e carimbos obrigatórios, que correspondem a aproximadamente 70% (setenta por cento) do tempo de tramitação do processo. Nesse sentido, a modernização do Judiciário, destacando-se o uso do processo eletrônico, pode ajudar na eliminação desse tempo perdido com as tarefas burocráticas.

E tendo em vista a modernidade que se faz presente e que já propicia diversos avanços tecnológicos na vida cotidiana das pessoas, o Judiciário não pode ficar de fora dessa modernização, necessitando adequar-se aos avanços tecnológicos, a fim de garan-tir um processo mais ágil, justo e adequado a todos os que procuram o Poder Judiciário.

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instrumento efetivo para a resolução de conflitos

Marcelo Dias Jaques62

62 Bacharel em Direito pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA. Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Cons-titucional pela Escola de Ensino Superior Verbo Jurídico. Mestrando em Direito – Área de concentração Direitos Humanos e Democra-cia – pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul – FAPERGS. Membro do grupo de pesquisa (CNPq): Direitos Humanos, Relações Internacionais e Equidade. Integrante do Núcleo de Educação e Informação em Direitos Humanos - NEIDH/Unijuí, atividade de extensão do Programa de Mestrado em Direitos Humanos da Unijuí. Associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Direito – CONPEDI. Advogado.

Cap. 5 - Caminhos para a cidadania

CAPíTUlO 5

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1. Notas introdutórias

A convivência em sociedade pressupõe a existência de inúmeros conflitos, eis que cada indivíduo possui a sua própria identidade, seus vícios, suas cren-ças, e sua existência é constantemente influenciada por uma série de fatores socioculturais aos quais ele é exposto, e que vão construindo sua personalidade ao longo de sua vida.

O conflito é um fenômeno bastante complexo, extrapolando as raias de um mero desencontro de opiniões, valores ou posicionamentos. O cho-que entre dois desejos resulta no surgimento de uma situação conflitiva, que geralmente leva à submissão de um destes desejos ao outro, estabe-lecendo assim um ganhador e um perdedor, cujos desejos são sublimados pelo outro (SPENGLER, 2012, p. 109).

Para Heredia, Villanueva e Ortiz:

hay quien dice que la causa en que radica la guerra es el conflicto, pero el conflito es algo inherente a la vida humana, el resultado de que cada perso-na es algo único. En la ausencia del conflicto no habría enmienda alguna a la injusticia, convicción, ni creatividad (2013).

Um conflito pode se desenvolver adotando caminhos diversos, culminando em sua solução ou continuidade, sendo que os meios de resolução de conflito po-dem atingir dois extremos como a simples evitação ou até mesmo o uso da violên-cia como forma de subjugar o desejo alheio em favor do seu.

Frustradas as tentativas de se resolver o conflito, faz-se necessário procurar alguma forma de solução viável e harmoniosa, pautada sempre pela justiça, pois tanto a evitação como a violência não possuem o condão resolutivo, servindo ape-nas para majorar o desgaste entre as partes e dificultar ainda mais a possibilidade de uma composição amigável para o problema.

Morais e Spengler buscam uma definição mais esmiuçada para a expressão conflito. Na acepção proposta por estes juristas o conflito poderia ser caracterizada como:

um enfrentamento entre dois seres ou grupos da mesma espécie que ma-nifestam, uns a respeito dos outros, uma intenção hostil, geralmente com relação a um direito. Para manter este direito, afirma-lo ou restabelecê-lo, muitas vezes lançam mão da violência, o que pode trazer como resultado o aniquilamento de um dos conflitantes (2012, p. 45).

Sob a ótica da doutrina do jurista italiano Norberto Bobbio:

Todo conflito termina ou com a vitória de um dos rivais, ou então com a intervenção de um Terceiro, ou acima, ou no meio, ou contra os dois rivais. Em outras palavras, se um conflito deve ser solucionado por meio da força, um dos dois deve ser eliminado. Se deve ser solucionado pacificamente, é preciso que surja um Terceiro no qual as partes confiem ou ao qual se sub-metam. (2009, p. 280).

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O Estado, enquanto responsável por prover o bem-estar social, estabelece o direito de acesso à justiça enquanto direito fundamental, proclamando-o no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal de 1988, que determina que “a lei não ex-cluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito” (BRASIL, 1988). Tal princípio garante a possibilidade de que todos, sem qualquer distinção, possam pleitear suas demandas junto aos órgãos do Poder Judiciário, desde que respeita-das as regras formais estabelecidas pela legislação processual vigente para o devi-do exercício deste direito.

Entretanto, em que pese esta determinação legal, hodiernamente o Estado parece não cumprir de forma minimamente efetiva o seu dever de garantir o acesso à justiça enquanto direito fundamental dos cidadãos. Em razão de diversos aspec-tos como, por exemplo, a precariedade financeira ou a falta de conhecimento técni-co para tanto, parte da população se vê alijada deste direito essencial.

As comunidades carentes constituem-se em um destes exemplos, pois são formadas – quase que em sua totalidade – por famílias com baixa renda, portanto excluídas de muitos dos direitos sociais, dentre eles o de acesso à justiça.

Neste sentido, é preciso buscar meios alternativos de resolução de conflitos mais efetivos e adequados a esta realidade social. Um destes meios, ora adotado como objeto do presente estudo, é a mediação comunitária.

Diante deste contexto de ineficiência estatal, a doutrina de Spengler afirma que “a mediação comunitária aparece como meio de tratamento de conflitos e como possível resposta à incapacidade estatal de oferecer uma jurisdição quantitativa e qualitativa adequada” (2012, p. 198).

Destarte, a mediação comunitária viabiliza uma maior autonomia das comu-nidades na solução de seus conflitos internos, ocasionando um modelo de justiça comunitária independente do modelo de justiça estatal.

A presente discussão procederá de forma ampla, buscando destacar a impor-tância dos meios alternativos de resolução de conflitos, em especial a mediação comunitária, abordando sua relevância enquanto instrumento para a resolução de conflitos, bem como para o fomento da cultura da cidadania.

No Brasil, a mediação comunitária – nos moldes em que está formatada na atualidade – ainda pode ser considerada razoavelmente recente, não sendo adota-da de forma generalizada e muitas vezes, quando adotada, não são observados os fundamentos básicos para que possa ter sua máxima aplicabilidade e efetividade.

Entretanto, resta evidente que as iniciativas por parte de tribunais, entida-des, pesquisadores e demais agentes sociais atuantes nesta causa são de extrema importância por diversos fatores, não apenas pelos já mencionados, como a reso-lução de conflitos, o acesso mais amplo à justiça e o desenvolvimento de uma par-ticipação cidadã, mas também pelo incentivo ao desenvolvimento de uma cultura social baseada no convívio pacífico e harmonioso e no respeito à dignidade do ser humano. Há que se destacar, igualmente, a desoneração do poder Judiciário, à me-

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dida que diversos conflitos passam a ser sanados sem a necessidade de se trans-formarem em onerosos e infindáveis processos judiciais.

Pode-se inclusive afirmar que, quanto maior a cultura lastreada em valores comunitários presente em determinado grupo social, maior é a probabilidade de que esta comunidade desenvolva, de forma natural e espontânea, suas próprias alternativas em busca de solucionar seus conflitos internos.

Traçada esta breve contextualização introdutória, os itens a seguir conte-rão uma análise mais objetiva e detalhada dos pontos principais que se pretende discutir neste ensaio. Para tanto, inicialmente serão traçados breves conceitos de mediação e mediação comunitária, buscando enumerar algumas de suas principais diferenças. Em um segundo momento será avaliada a relação existente entre a mediação comunitária e a cidadania, à medida que a primeira acaba por fomentar a participação e o interesse social dos seus membros. Após estes dois tópicos, abordar-se-á a importância do papel do mediador comunitário, discutindo as carac-terísticas e pré-requisitos ideais para que o mesmo possa cumprir com sua função. Por fim, o item derradeiro contará com uma avaliação da eficácia e benefícios desta forma de mediação, concluindo que é urgente buscar meios alternativos para a so-lução de conflitos, dentre eles a mediação comunitária, que também se apresenta, indubitavelmente, como um exemplar caminho para a cidadania.

2. A mediação e a mediação comunitária

A partir de um contexto histórico, é possível afirmar que a mediação pode ser encontrada nas mais variadas culturas, tendo sido utilizada por quase todas as sociedades no planeta. Em comunidades religiosas, fossem elas cristãs, judaicas, islâmicas, budistas, ou de qualquer outra doutrina, era praxe que os indivíduos que desempenhavam as funções inerentes a líderes religiosos cumprissem também as tarefas afeitas à mediação de conflitos, buscando sanar as mais variadas divergên-cias havidas em seus grupos sociais.

A mediação consiste em uma forma alternativa através da qual é possível buscar a resolução de disputas. Para tanto, torna-se necessária a participação de um terceiro neutro, imparcial e sem poder de decisão, chamado mediador. Este ter-ceiro apenas intervém com o objetivo de auxiliar as partes no sentido de compor uma solução satisfatória para ambos os lados.

Para a concepção de Martín “a mediação eficaz se apoia nos princípios da ne-gociação. Por isso a mediação, apesar de ser um processo à parte e distintivo, não deixa de ser uma negociação assistida” (2011, p. 326).

Neste sentido, pode-se concluir que a mediação nada mais é do que um proces-so informal e não adversarial que objetiva a resolução de controvérsias, pautado em um ideal de composição de interesses, e não de alegação ou julgamento de direitos.

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Característica fundamental no processo de mediação é a voluntariedade das partes, eis que o consenso entre os interesses individuais só ocorre mediante a vontade legítima das partes. O mediador não possui o condão de decidir nem mes-mo possui qualquer poder sobre as partes, atuando tão somente com a intenção de viabilizar e facilitar a comunicação entre elas, contribuindo para formar um am-biente propício para a criação de opções para um acordo efetivamente consensual e mutuamente satisfatório.

A mediação de conflitos significa atender a pessoas e não a casos. Em outras palavras, seu foco de ação visa privilegiar as pessoas com base em suas próprias perspectivas pessoais. Ela parte do pressuposto da existência de dificuldades e limitações momentâneas das pessoas em administrar seus conflitos e, em razão disso, um terceiro poderá lhes auxiliar na sua gestão. (BRAGA NETO, 2012, p. 107).

Já a mediação comunitária, como o próprio nome já indica, realiza-se no ambiente das comunidades, nos bairros de periferia, e tem como ob-jetivo a resolução e até mesmo a prevenção de conflitos em busca da paz social, bem como a conscientização acerca dos direitos e deveres de cada um de seus integrantes. É gratuita e, como consequência disso, não há inci-dência de qualquer ônus para as partes.

Ponto fundamental da mediação comunitária é a criação e o fortalecimento dos laços entre os envolvidos, proporcionando uma maior aceitação da solução encontrada para o conflito, incentivando a participação ativa dos sujeitos da co-munidade na vida social, bem como cultivando um pensar coletivo, pautado nos interesses gerais da comunidade e não mais nos interesses individuais.

Outro fator que também merece destaque na mediação comunitária é a sua oralidade, viabilizada pela informalidade com a qual a situação conflituosa é con-duzida. Além de permitir que as partes possam debater sobre o dilema que lhes aflige, em busca da solução para o problema havido entre elas, “a oralidade serve também para reaproximar os conflitantes, visto que o instituto da mediação, ao contrário da jurisdição tradicional, busca o tratamento das pendências através do debate e do consenso, tendo como objetivo final a restauração das relações entre os envolvidos” (SPENGLER, 2014, p. 55).

Entretanto, para que a mediação comunitária funcione com efetividade, é imperioso que os mediadores escolhidos para tal sejam integrantes daquela de-terminada comunidade e que estejam engajados de forma voluntária na busca do bem-estar social de toda a coletividade. Igualmente precisam estar devidamente capacitados e aptos para atuar em favor da mediação de conflitos.

A importância da mediação comunitária reside principalmente no fato de fo-mentar valores, costumes e atitudes inerentes à cidadania e que, por isso, condu-zem ao fortalecimento do sentimento de pertença social e de uma cultura político-democrática de convivência pacífica.

Igualmente, cabe destacar outro aspecto preponderante que consiste no

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fato da mediação comunitária muitas vezes poder ser realizada logo nos momen-tos iniciais do surgimento da situação conflituosa. Desta forma, ao ser aplicada imediatamente no estágio inicial do conflito, pode haver condições menos belige-rantes, eis que o litígio ainda não se protelou – o que acentuaria o desgaste entre as partes –, portanto, estarão presentes condições mais favoráveis de comunica-ção eficiente entre elas e, consequentemente, maior efetividade de solução.

3. A mediação comunitária e a cidadania

A participação do indivíduo em sua comunidade, o sentimento de per-tença social e a cidadania são conceitos diretamente relacionados entre si e se inserem em um contexto de apropriação pelo indivíduo do direito à cons-trução democrática do seu próprio destino. Para que a cidadania possa se consolidar, é necessária a participação social no seu aspecto coletivo e o seu exercício voluntário e consciente.

O indivíduo, segundo Silva (2012, p. 405), “é um dos seres vivos mais in-completos e ansiosos por assegurar uma vida para si e incapaz de fazer isso de modo individual”. A participação social é aspecto inerente ao cotidiano de todo cidadão que, buscando alcançar objetivos que dificilmente seriam atingidos, caso fossem perseguidos individualmente, sente a necessidade de incluir-se em um grupo social ao qual irá se associar, bem como manter diferentes níveis de integração com os demais membros daquela comunidade.

Acerca desta temática, segundo as palavras de Sales e Moreira (2008, p.363), “a efetividade da cidadania e a participação democrática do poder hão de ocorrer, não só mediante a eleição livre dos representantes do povo, mas também através da disponibilização dos meios e oportunidade para a participação popular”.

Ao analisar a mediação comunitária, percebe-se que a mesma viabiliza uma maior responsabilidade e participação da comunidade na solução dos seus conflitos, o que favorece a convivência pacífica e amigável, bem como a preser-vação das relações sociais. Este ambiente de melhor convívio comunitário esta-belece melhores níveis de satisfação social, eis que geralmente os interesses de ambas as partes restam atendidos.

Tal processo igualmente acarreta uma conscientização da comunidade quan-to à sua capacidade de resolver internamente seus próprios conflitos através do diálogo produtivo, construindo relações sólidas e cooperativas entre seus integran-tes, possibilitando uma transformação sociocultural fundamentada na participação e, consequentemente, na cidadania.

Ao abordar o tema, Spengler ensina que a mediação comunitária:

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Procura enfatizar a relação entre os valores e as práticas democráticas e a convivência pacífica e contribuir para um melhor entendimento de respeito, tolerância e para um tratamento adequado daqueles problemas que, no âm-bito da comunidade, perturbam a paz (2012a, p. 54).

A mediação nas comunidades simboliza o exercício de cidadania e da democracia, à medida que viabiliza aos atores sociais deixarem uma situação de inércia, de total dependência do Estado, para buscarem o acesso à justiça, resolvendo por si mesmos seus conflitos através de um mediador da própria comunidade. E é neste momento que cidadania resta fortalecida, pois a me-diação comunitária se instrumentaliza através da participação ativa dos atores sociais na construção das alternativas para a melhor solução do conflito.

Diante desta autonomia – que também pode ser chamada de independência –, bem como da certeza de que cada ator social é capaz de contribuir para a realização de uma comunicação eficaz, pautada no diálogo e no reconhecimento das potencia-lidades e no real interesse das partes envolvidas em sanar seus conflitos da forma mais justa possível, fomenta-se a consciência do papel de cada um enquanto cidadão.

Ao resolver internamente seus conflitos sem a intervenção do Poder Judiciá-rio, a comunidade acaba por se tornar, até certo ponto, independente do assisten-cialismo estatal. Assim, ganha em coesão de seus membros, promovendo o empo-deramento dos mesmos, eis que passam a ter a consciência de que podem sanar seus próprios conflitos de maneira plenamente satisfatória e não traumática.

Nas palavras de Zegri, Navarro e Aramburu “la mediación y el consecuente processo de empoderamiento de los actores sociales implicados, genera dinámicas con un alto potencial participativo y transformador” (2009).

Evidentemente que, mesmo em uma comunidade que se utiliza da mediação como ferramenta para a solução de conflitos e prática cidadã, continuarão havendo – ainda que em menor nível – situações conflitivas, o que é plenamente comum em um contexto de convivência social. É comum à natureza humana que em qualquer grupo social sempre existam diferenças entre os indivíduos que a ela se integram, sejam estas divergências de cunho econômico, cultural, político ou religioso.

A relevante diferença estará na maneira de tratar estes conflitos. A mediação comunitária se apresenta como alternativa viável e efetiva – como um novo caminho –, mais célere e harmonioso quando comparado a um litígio judicial, privilegiando assim a construção de um processo democrático pautado por uma consciência cida-dã das partes envolvidas. Além disso, o sucesso desta harmonia em muito se deve ao fato da disseminação de uma consciência na qual cada membro da comunidade reconhece sua responsabilidade individual para a manutenção dessa harmonia.

Destarte, quanto maior a intensidade e o estreitamento dos laços de afini-dade e relacionamento que unem os integrantes de uma comunidade, também será maior a importância conferida a formas de resolução não judicial de conflitos e maiores serão as condições para que se consiga perfectibilizar a autonomia e o

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empoderamento desta comunidade, fomentando assim o desenvolvimento de uma cultura social favorável à participação cidadã.

4. O papel do mediador comunitário

Para atuar em um procedimento de mediação o mediador não precisa neces-sariamente ser advogado, juiz, ou mesmo possuir vasto conhecimento jurídico. Por outro lado, deve ter exata noção de sua função enquanto mediador e compreender os objetivos da mediação.

Nos casos de mediação comunitária há uma particularidade essencial: é pré-requisito básico que o mediador seja um integrante da comunidade, uma pessoa que possua a confiança de todos, ainda que não detenha qualquer conhecimento técnico. Ele será procurado voluntariamente pelas partes, o que resultará em uma situação favorável de conforto extremamente positiva para a solução do conflito.

Para Spengler “a mediação comunitária trabalha com a lógica de um media-dor independente, membro desta mesma comunidade que pretende levar aos de-mais moradores o sentimento de inclusão social” (2012a, p. 53).

O mediador atuará, sempre, objetivando auxiliar as partes, estimulando e facilitando a resolução do conflito. Imperioso destacar – mais uma vez – que não caberá a ele a indicação da solução a ser adotada, eis que, para o sucesso da me-diação, é fundamental que os envolvidos encontrem um consenso que resguarde os interesses mútuos. “Isso se dá porque a mediação é uma arte na qual o mediador não pode se preocupar em intervir no conflito, oferecendo às partes liberdade para tratá-lo” (SPENGLER, 2014, p. 52).

O mediador deve possuir a consciência exata do papel que precisa desempe-nhar, buscando exercer sua função da melhor forma possível, pautando-se sempre pela imparcialidade e neutralidade. Na opinião de Braga Neto “o mediador deve pautar sua conduta pela imparcialidade, independência, competência, discrição e diligência” (2012, p. 114). Seu objetivo principal deverá ser o de reconstruir o laço que se rompeu na relação entre as partes litigantes, favorecendo o reestabeleci-mento da relação anteriormente existente entre elas.

É evidente que, tendo sido o mediador escolhido pelos integrantes da própria comunidade, haverá risco de haver situações nas quais repousará mínima dúvida quanto a sua total imparcialidade, entretanto, em razão da confiança da comunida-de em sua conduta, sua atuação será considerada por todos como justa e adequada.

Esta situação de dúvida decorre do fato do mediador estar completamente inserido no ambiente daquela comunidade, já tendo contato prévio com as partes em virtude de sua rede de relações sociais, conhecendo a história de vida das partes, seja por razões de parentesco, vizinhança ou de mero convívio social.

Essa influência que o meio social exerce sobre o mediador certamente possui

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o condão de afetá-lo – em maior ou menor grau –, impactando diretamente na im-parcialidade, entretanto pode ser considerada irrelevante no âmbito comunitário, pois são os próprios pares sociais que reconhecem aquela determinada pessoa en-quanto figura neutra habilitada para auxiliar na solução do conflito.

Em síntese, para destacar importância do papel do mediador comunitário, po-de-se utilizar uma definição proposta por Humberto Dalla Bernardina de Pinho. Ele afirma que “a mediação é um trabalho artesanal, cada caso é único. Demanda tempo, estudo, análise aprofundada das questões sob os mais diversos ângulos. O mediador deve se inserir no contexto emocional psicológico do conflito” (2011. p. 277).

Visto isso, e agora especificamente tratando da realidade encontrada pelo mediador comunitário, certamente que ele deverá ter este mesmo zelo e respon-sabilidade com a necessidade de realizar um trabalho artesanal de estudo e aná-lise do caso, porém possui a grande vantagem de já se encontrar completamente inserido no contexto emocional, psicológico e social do conflito, o que lhe confere excelentes possibilidades de efetividade em sua atuação.

5. A eficácia e benefícios da mediação comunitária

Benefício relevante que inicialmente deve ser destacado consiste no fato de que a mediação comunitária surge também como instrumento emancipador de acesso à justiça, principalmente quando se dá em comunidades carentes nas quais a grande maioria das pessoas não possui conhecimento nem condições financeiras que lhes permitam demandar junto ao Poder Judiciário. Pesa também o fato de pro-piciar um maior esclarecimento dos cidadãos quanto aos seus direitos e deveres assegurados legalmente.

Ao abordarem a temática do acesso a justiça enquanto o mais básico dos Di-reitos Humanos, Morais e Spengler relatam as causas que muitas vezes impedem o exercício deste direito de forma universal:

A noção de acesso à Justiça compreende os problemas relativos aos custos e a demora dos processos, enfim, aos obstáculos (econômicos, culturais, sociais) que frequentemente se interpõe entre o cidadão que litiga em juízo e os procedimentos predispostos (2012, p. 35)

Neste mesmo sentido, aos discorrer sobre a importância dos direitos do ho-mem na atualidade, Bobbio afirma que:

A princípio, a enorme importância dos direitos do homem depende do fato de ele estar diretamente ligado aos dois problemas fundamentais do nosso tempo, a democracia e a paz. O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem são a base das constituições democráticas, e, ao mesmo tempo, a paz é o pressuposto necessário para a proteção efetiva dos direitos do ho-mem em cada Estado no sistema internacional (2004, p. 203).

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Fato comum, ao estudar aspectos inerentes a esta temática, é encontrar a mediação comunitária inúmeras vezes relacionadas à democracia e à paz, o que corrobora o entendimento de que caminham juntas em prol da humanidade.

Outro fator que merece destaque é que, ao se caracterizar como um meio auto compositivo de solução de conflito, a mediação comunitária não resulta em um vencedor e um derrotado, o que é fundamental tanto para o respeito e cum-primento do que foi acordado, como para que não reste prejudicada a integração entre os membros comunitários.

Ademais, é correto afirmar que a mediação comunitária se transformou em uma excelente ferramenta que contribui para desafogar o Poder Judiciário, já as-soberbado diante das inúmeras demandas diariamente ajuizadas. À medida que exerce o importante papel de solucionador de litígios, impede que os mesmos se-jam formalizados enquanto processo judicial. De outra banda, soluciona conflitos que talvez jamais alcançariam as portas dos Tribunais em razão de sua extrema simplicidade, ou mesmo pela falta de informação dos conflitantes. Ainda assim, tais conflitos – não sendo solucionados – tem o poder de causar sérios prejuízos à convivência comunitária, causando animosidade e belicosidade entre integrantes daquele grupo social.

Neste sentido, a mediação comunitária passa a ser também efetiva na pre-venção da violência, eis que a solução dos conflitos é obtida de forma consensual entre as partes, muitas vezes de forma ágil e eficiente, isenta da imposição por um terceiro. Tais características acabam por propiciar um sentimento de satisfa-ção entre os conflitantes, o que contribui, inclusive, para a efetividade e o respei-to pelo que foi pactuado.

Ao discutirem sobre a importância do capital social no desenvolvimento econômico dos países, Sen e Kliksberg afirmam que o capital social possui ao menos quatro dimensões. A primeira delas fundamenta-se no clima de confiança existente nas relações interpessoais, pois, quanto maior a confiança, mais se de-senvolverão as relações econômicas e demais transações. A segunda consiste na capacidade de associatividade, no sentido do potencial social para a construção de formas de cooperação entre seus membros. Já a terceira é a consciência cívica, estreitamente relacionada à ideia de cidadania, onde os indivíduos agem perante o que é de interesse coletivo. Por fim a quarta dimensão seriam os valores éticos, de fundamental importância, pois tais valores exercem grande influência sobre a sociedade (2010, p. 305-306).

Nota-se aí que todas estas dimensões – seja a confiança, a associatividade, a cidadania e os valores éticos – igualmente compõem, e estão inter-relacionadas, aos aspectos abordados no estudo da mediação comunitária, o que nos permite concluir que a mesma também contribui e possui benefícios econômicos, à medi-da que favorece a unificação social da comunidade em um pensar comum em prol da coletividade.

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Destarte, a comunidade – enquanto conjunto social – só tem a ganhar, pois aos seus integrantes é viabilizada a gestão de seus próprios conflitos, o que aca-ba por fomentar o desenvolvimento de um senso crítico coletivo, uma cultura pautada no diálogo e na participação, bem como o sentimento de pertença social e o zelo pela convivência harmoniosa.

Segundo Martín, o processo de mediação permite que as partes busquem a forma mais adequada para ambas no sentido de solucionar o conflito existente, de forma livre e desvinculada à legislação vigente, pois “nas formas tradicionais de resolução de conflitos e na arbitragem se decide conforme a lei. Na mediação se resolve ou se transforma o conflito recorrendo a sua reconstrução simbólica” (2011, p. 329).

Pelo fato de incentivar essa cultura baseada na participação ativa das pes-soas no saneamento dos conflitos, surge também uma cultura de não apenas dis-cutir questões individuais, mas principalmente as questões de natureza coletiva necessárias para o desenvolvimento e convivência social em todos os seus níveis.

6. À guisa de conclusão

Diante dos aspectos observados, a mediação comunitária se apresenta como uma alternativa democrática e eficaz na resolução de conflitos. Ao passo que serve de instrumento de auxílio ao Poder Judiciário, desonerando-o de boa parte das inúmeras demandas diariamente ajuizadas, e, ainda estimula práticas que fortalecem a cidadania e a participação cidadã na construção do processo democrático.

Além de possuir o condão de facilitar o acesso à justiça aos membros de uma determinada comunidade, a mediação comunitária ainda promove a preser-vação de um conjunto de valores sociais pautados na boa convivência social e na harmonia pacífica.

Percebe-se, na atualidade, a dificuldade encontrada pelo Poder Judiciário em dar eficácia e celeridade aos feitos que tramitam pela via judicial. Os processos perduram por longo período sem qualquer solução, fomentando a insatisfação social e o desgaste entre as partes. Este fenômeno vem sendo chamado de crise, ou esgotamento do modelo de jurisdição.

Dentre as causas que podem ser apontadas para essa crise da jurisdição no Estado é possível destacar “a gradativa perda de soberania, sua incapacidade de dar respostas céleres aos litígios atuais, de tomar as rédeas de seu destino, sua fragilidade nas esferas legislativa, executiva e judiciária, enfim, sua quase total perda de exclusividade de dizer e aplicar o Direito” (SPENGLER; BEDIN; LUCAS, 2013, p. 90).

Entretanto, por mais que os problemas enfrentados pelo Judiciário sejam

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um verdadeiro obstáculo que precisa ser superado, não se pode atribuir toda a culpa exclusivamente ao Estado. É preciso refletir, acima de tudo, quanto à atua-ção dos advogados, que talvez possa se tornar mais consciente da necessidade de contribuir no sentido de amenizar essa situação de crise, inclusive incentivan-do a mediação – em todas as suas formas – sem temer que haja prejuízo de seus honorários.

Parte da responsabilidade pela excessiva judicialização e morosidade co-mum a todos os Tribunais brasileiros deve ser atribuída, ao menos em parte, a uma considerável fatia da atividade advocatícia no país – e com essa afirmação não se quer generalizar – que acabou transformando o ato de peticionar em um mero procedimento de copia e cola. Infelizmente, essa prática parece ter atingido também o Judiciário, ainda que pontualmente. Contudo, parece coe-rente admitir que, diante da realidade atual, aquele que utiliza, inadvertida e displicentemente, da ferramenta copia e cola em suas peças processuais, des-respeita a parte adversa e o juízo que irá apreciar a lide. Faz, assim, por me-recer sentença contendo o mesmo artifício, afinal, nada justifica intermináveis petições contendo dezenas de laudas que mais parecem formadas de retalhos de outros litígios.

Pelo bem do Judiciário e, consequentemente, da coletividade social, há que se extinguir essa triste cultura e favor da utilização de petições desne-cessariamente extensas, bem como demais recursos e outras medidas prote-latórias, que, além de demonstrar inaceitável despreocupação com a questão ambiental – através do consumo injustificado de papel –, dificultam o deslinde dos feitos e a compreensão da situação fática pelo órgão julgador, retirando qualquer possibilidade de conferir celeridade aos processos e agravando cada vez mais a crise.

Hoje, em algumas comarcas, sequer os pedidos de antecipação de tu-tela tem a efetividade e celeridade que a eles deveria ser conferida, eis que se criou uma prática leviana de tentar obter vantagem do individual sobre o coletivo de forma indevida. A grande maioria dos feitos são distribuídos contendo pedidos liminares, pelos mais descabidos motivos, visando unica-mente antecipar sua apreciação às demais lides. Ocorre que quando quase todos – novamente aqui sem generalizar – tentam aproveitar deste malicioso subterfúgio, quando tudo passa a ser urgente, nada mais é urgente, todos retornam à vala comum.

Há que se rever e repensar principalmente a atividade advocatícia no país. É evidente a necessidade de mudança, entretanto não parece haver interesse por parte dos envolvidos – aqueles que efetivamente podem mudar a situação –, en-tão, há que se buscar ferramentas alternativas para a solução dos conflitos, den-tre elas a mediação comunitária, extremamente vantajosa, em especial para as comunidades carentes, tanto por razões econômicas, como pela limitação do co-

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nhecimento técnico acerca dos direitos materiais garantidos e do procedimento para ajuizar uma ação.

Neste sentido, indispensável destacar as sábias palavras do prof. Warat quando afirma:

Insisto em ampliar ainda mais o objeto e falar de convivência e não só de conflito. É importante que as pessoas aprendam a conviver com a melhor qualidade e mergulhar na alteridade para encontrar, nos espaços de con-vivência, o próprio sentido da vida, individualmente falando. Como convi-ver melhor, como transformar advogados em facilitadores da convivência (2011, p. 309).

A partir desta independência do Estado na solução de boa parte dos confli-tos internos, surge também um ambiente favorável ao desenvolvimento do sen-timento de cidadania, pois os diversos atores sociais se tornam cientes de seus direitos e deveres, e podem exercer o direito de compor seus conflitos de forma imediata, ao passo que contribuem para o cumprimento do dever de manutenção da paz social.

Neste sentido, os programas de mediação comunitária podem ser utilizados como instrumento para o resgate de valores sociais pautados na proteção da dig-nidade da pessoa humana e no bem comum, valores estes cada vez mais escassos e esquecidos em todo o mundo. Uma verdadeira ferramenta na reeducação social, em humanizar as relações primando pelo sentimento e interesses coletivos em detrimento da competitividade individual.

A cultura da mediação comunitária deve ser divulgada e incentivada no país, pois, procurar a justiça não pode ser considerado sinônimo de ajuizar uma ação. A solução justa também pode ser encontrada através de outras ferramentas sociais. Não se quer, com isso, afirmar que a prestação jurisdicional realizada pelo Poder Judiciário não possui qualquer serventia no atendimento das demandas sociais, muito menos que não reflita o conceito de justiça, entretanto a mesma parece cada vez mais distante da realidade vivida nas comunidades.

Na realidade, a jurisdição não é pior nem melhor que as formas alternativas de solução de conflitos. De acordo com o conflito, em seu caso concreto, deve ser feita a escolha do mecanismo mais adequado à sua resolução. Corroborando com essa tese, Zaparolli afirma que “não há o melhor mecanismo, mas aquele mais funcional para dada situação concreta” (2012, p. 28).

Entre pares que continuarão se relacionando diariamente após a situação conflitiva, é ideal que se busque uma solução mais célere do que a via judicial. É preciso que se tente encontrar uma alternativa onde não haja um vencedor e um derrotado, que a solução não seja uma imposição e sim um consenso e que, principalmente, se procure viver em harmonia com o próximo, prezando por uma conduta de respeito à dignidade de todos os seres humanos.

“A mediação, como espaço de reencontro, utiliza a arte do compartir para tratar conflitos e oferecer uma proposta inovadora de pensar o lugar do Direito

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na cultura complexa, multifacetada e emergente do terceiro milênio” (SPENGLER; BEDIN; LUCAS, 2013, p. 114). Assim, diante dos diversos aspectos abordados no presente estudo, é plenamente possível concluir que a mediação comunitária apresenta-se, de forma indubitável, como um exemplar caminho a ser seguido, não apenas como forma alternativa de solução de conflitos, mas também para o resgate e fortalecimento da cidadania.

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Cap. 5 - Caminhos para a cidadania

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Marcelo Dias Jaques

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O desAFIO dA JUrIsdIÇÃO FreNTe À sOCIedAde de CONsUMO:

A arbitragem como solução para os conflitos nas relações comerciais

Pablo Rodolfo Nascimento Homercher63

63 Bacharel em Direito e Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade de Cruz Alta – UNICRUZ, Mestre em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí. Advogado.

Cap. 6 - O desafio da juridição frente à sociedade de consumo

CAPíTUlO 6

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1. Notas introdutórias

Já em sua formação o Estado cooptou para si a responsabilidade pela segu-rança da sociedade, e, a partir de então, tenha sido essa a finalidade encarregada pelos indivíduos por conta do pacto social. Para funcionalizar dita competência lançou mão de regulamentos de conduta e estruturas de controle. Inocentemente, pensou-se que a conjugação de lei mais Poder Judiciário seria suficiente para alcan-çar a propalada pacificação social. A fórmula não surtiu o resultado esperado eis que os conflitos sociais permaneceram a ponto de tornar imprescindível a interfe-rência direta de um terceiro representante estatal no litígio particular, com a fina-lidade de resolvê-lo. O êxito obtido, inicialmente, revestiu o sistema de confiança e credibilidade. A crise pela qual passa o Estado em ciclos temporais e históricos ao acumular demandas e levá-lo a falência redundou no esgotamento do judiciário tido até então como símbolo de esperança para distribuir a declarada igualdade. Matematicamente, o número de demandas cresceu em ritmo geométrico enquanto o sistema jurídico-estatal progrediu de maneira aritmética.

Restou à ciência do direito o desafio de encontrar mecanismos alternativos capazes de substituir o Estado na prestação jurisdicional. Os juristas desenvolveram meios como a negociação, a mediação e a arbitragem. Cabe à academia em seus bancos formar nos futuros profissionais uma nova cultura de atuação que vise à oti-mização desses instrumentos para além dos alfarrábios. O primeiro passo é fornecer o ensino desses métodos. O segundo é despertar a curiosidade dos pesquisadores pelo objeto, a fim de promover uma verdadeira ciência das ADRs64. O terceiro é opor-tunizar espaços destinados a prática desse modelo no plano institucional.

A primeira parte do presente artigo situa o leitor, de modo superficial, no contexto histórico da jurisdição, especialmente, a despeito da origem do conflito e a forma estatal de composição concebida pelo Estado em substituição à conduta violenta dos indivíduos na solução de conflitos até a crise atual da prestação juris-dicional como causa-efeito do sistema sócio-econômico vigente.

A segunda parte destaca a mediação e a arbitragem como meios alternativos à jurisdição, apresentando a principal diferença entre ambas, além da recepção dos institutos no ordenamento jurídico pátrio, a fim de introduzir o objeto principal do trabalho, qual seja o conceito programático da cláusula compromissória nos contratos mercantis tratada pela doutrina como fonte legítima de produção norma-tiva. Por fim, toma-se como parâmetro a UNCITRAL, órgão das Nações Unidas que fomenta a adoção do procedimento arbitral pelo direito mercantil, com a finalidade de demonstrar o acolhimento do instituto na ordem internacional.

64 Sigla para Alternative Dispute Resolution criada nos EUA onde tais sistemas são intensamente utilizados. Para se ter uma dimensão a American Arbitration Association – AAA possuía em 2004 57.000 árbitros espalhados por 35 sedes no território americano (CAL-MON, 2004).

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2. A sociedade como princípio, meio e fim dos conflitos

Apenas em uma ocasião pode ter sido possível afirmar que não houve confli-to entre os homens. Enquanto apenas um ser habitou o que chamamos de mundo, representado pela figura bíblica de Adão. Pois, certamente, quando Eva foi criada outra afirmativa pode ser suscitada sem medo de errar, isto é, a partir desse ins-tante os conflitos vêm acompanhando a história da sociedade, existem, continua-rão a existir, e, mais, sua existência faz parte da engrenagem da sociedade, peça inseparável do convívio e responsável pela evolução e ao mesmo tempo destruição da humanidade. O brocardo “ubi societas ibi jus” e o exemplo da ilha solitária de Robinson Crusoé até a chegada do índio Sexta-Feira esclarecem a relação entre con-flito, direito e sociedade (CINTRA et al, 2006).

A definição de conflito pelo aspecto etimológico, é “a idéia de choque, ou a ação de chocar, de contrapor ideias, palavras, ideologias, valores ou armas” (MO-RAIS e SPENGLER, 2012). Já o conceito sócio-jurídico “consiste em um enfrentamen-to entre dois seres ou grupos da mesma espécie que manifestam, uns a respeito dos outros, uma intenção hostil, geralmente com relação a um direito” (MORAIS; SPENGLER, 2012).

Com efeito, do mesmo modo que os homens deram origem ao conflito coube a eles também encontrar formas para resolvê-los sob pena de que a (sobre)vivência se tornasse isolada e levasse ao desaparecimento da espécie.

Nos primórdios, os homens trataram a disputa de interesses através do enfren-tamento físico. Valia a lei do mais forte, ou seja, aquele que conseguisse fazer com que o adversário reconhecesse estar com o outro a razão, ou mais, em último caso, tirasse a vida do desafeto. A característica agressiva é evidenciada pelos professores José Luiz Bolzan e Fabiana Marion, in verbis: “para manter esse direito, afirma-lo ou restabelecê-lo, muitas vezes lançam mão da violência, o que pode trazer como resul-tado o aniquilamento de um dos conflitantes” (MORAIS; SPENGLER, 2012).

Foi o que, tempos depois, a ciência jurídica instituiu como autotutela, a qual significa, academicamente, fazer justiça pelas próprias mãos, autorizadas pela Lei de Talião, da célebre máxima “olho por olho, dente por dente”. A história do surgimento da autocomposição, termo similar, foi descrita no clássico tratado Teoria Geral do Processo da seguinte maneira:

Nas fases primitivas da civilização dos povos, inexistia um Estado suficien-temente forte para superar os ímpetos individualistas dos homens e impor o direito acima da vontade dos particulares: por isso, não só inexistia um órgão estatal que, com soberania e autoridade, garantisse o cumprimento do direito, como ainda não havia sequer as leis (normas gerais e abstratas impostas pelo Estado aos particulares). Assim, quem pretendesse alguma coisa que outrem o impedisse de obter haveria de, com sua própria força e na medida dela, tratar de conseguir, por si mesmo, a satisfação de sua pre-tensão. (CINTRA et al, 2006)

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A forma adotada desencadeou o caos tornando o convívio violento a ponto de os próprios indivíduos pensarem em alternativas para substituir o que estava sendo praticado e tido como justiça por receio de sua própria segurança e, conse-guinte, conservação material. Em suma, descreve-se o cenário do estado natural.

A astúcia de alguns ensejou o surgimento da sociedade civil ou política, con-sequência do Contrato Social, o qual nasceu da iniciativa dos homens de estabele-cer uma entidade superior abstrata capaz de garantir proteção à coletividade, uma vez que a consciência individual, nem mesmo a supremacia divina conseguiam dar conta. Surge, então, o Leviatã, produto do consenso social que delega a uma coisa inanimada, porém, dotada de legitimidade, porquanto concebida pela intelectuali-dade humana, para regular as relações sociais, o poder de decidir o certo/errado, justo/injusto, bem/mal.

No entanto, o artificialismo invocado pelos indivíduos, por si só, não tinha capacidade para impor aos litigantes a solução para a controvérsia, haja vista que estavam ausentes instrumentos de coercibilidade para tanto. Por óbvio, somente outro ser racional teria condições de executar dita tarefa. É por necessidade que um terceiro se insere na relação com o objetivo de decidir o litígio. No primeiro momento os próprios interessados escolhiam referido terceiro. Posteriormente, a atribuição de nomear o interlocutor ficou a cargo do Estado, recebendo o nome de magistrado, cargo até hoje presente no organograma estatal. Logo, a resolução dos conflitos deixa a esfera privada, ou seja, de ser problema apenas das partes, e passa a ser de domínio público, isto é, problema de todos.

No esquema da tripartição de poderes proposta por Montesquieu a atribuição de dirimir eventuais lides entre os administrados tornou-se competência do Poder Judiciário e assumiu as vestes de jurisdição. A principal característica do ato juris-dicional é a neutralidade e autoridade do juiz, porquanto atua como um “terceiro no sentido de ser alheio ao litígio, de ser imparcial; e o comando da sentença é um imperativo ao qual as partes ficam sujeitas, é um comando superpartes” (MORAIS; SPENGLER, 2012).

Por mais de dois séculos o monopólio estatal sobre a Justiça, seja na pro-dução legislativa, ou, principalmente, na aplicação e execução do direito positivo, desempenhou com certa eficiência a função a ele reservada. Foi após a segunda guerra mundial e as atrocidades cometidas pelo nazismo contra os judeus que o sistema começou seu declínio. O conflito bélico entre Estados Soberanos colocou em cheque a segurança jurídica da ordem internacional e da humanidade.

Destarte, o lado vencedor capitaneado, especialmente, por Estados Unidos, União Soviética e Inglaterra, propôs a organização de uma entidade supranacional responsável pela condução das relações diplomáticas entre os Estados-partes. Ato contínuo, os representantes dos Aliados editaram o documento que se constituiu como marco da pós-modernidade, a Carta das Nações Unidas. A relevância política e jurídica da Declaração Universal de Direitos Humanos foi justamente a universalida-

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de pretendida e o acolhimento de uma terceira dimensão - além da primeira (civis) e segunda (sociais), conquistadas por obra das revoluções iluminista e comunista, res-pectivamente –, direitos de solidariedade. Incluem-se no rol dos novos direitos a au-todeterminação dos povos e a proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibra-do. Por consequência, desloca-se o centro de gravidade das garantias fundamentais antes dirigidas ao indivíduo e depois à coletividade, para agora abranger também o sujeito indeterminado e indeterminável. Ao estender a legitimidade de invocar o Judi-ciário a um conjunto difuso e transindividual o Estado começou a encontrar dificulda-des estruturais para responder ágil e eficientemente as demandas postas ensejando o que se habituou chamar de morosidade do judiciário.

A crise agravou-se com o advento da globalização que reduziu, significativa-mente, a funcionalidade da jurisdição. De um lado a tecnologia, principalmente, na área de comunicação, com a velocidade e universalidade das informações, impôs, ainda que indiretamente um desafio ao tempo do processo, ainda determinado pelo ordenamento jurídico em oposição ao tempo real que requer simultaneidade. Por outro, o estabelecimento do capitalismo e sua lógica de mercado sem fronteiras alterou os limites da jurisdição, conquanto observa-se uma nítida redução de “al-cance na mesma proporção que as barreiras geográficas vão sendo superadas pela expansão da informática, das comunicações, dos transportes, e os atores econô-micos vão estabelecendo múltiplas redes de interação” (MORAIS; SPENGLER, 2012).

3. Mediação e arbitragem como meios alternativos de composição de confli-tos: a aplicabilidade da cláusula compromissória nos contratos comerciais

Assim sendo, tanto a sociedade, quanto o mercado procuram alternativas para superar os conflitos sem a intervenção do Poder Judiciário. Dois institutos foram re-cepcionados pelo Direito para esse fim, a mediação e a arbitragem. Ambas aparecem na sociedade antes mesmo da jurisdição e, inobstante, tenha essa delas derivado.

Sobre a mediação pode-se cravar que seja praticada desde as primei-ras manifestações de vida em sociedade, sendo fundamento básico a figura do terceiro imparcial, que não obrigatoriamente tenha formação jurídica, mas tenha atuado no curso do processo judicial. No Brasil, até o advento do Projeto de Lei 166/2010 e a Resolução 125/2010 do CNJ tal medida configurava a conciliação proposta pelo magistrado em determinado es-tágio da ação. Para Cézar Fiuza, a conciliação caracteriza uma espécie de mediação. A mediação na verdade é a ferramenta para a autocomposição (FIUZA, 1995).

Porém, o propósito da mediação é, na origem, evitar o ingresso dos litigantes na esfera jurídica. O principal objetivo do instituto é promover entre os conflitantes um acerto consensual e voluntário. Nesse sentido, o mediador não se reveste de

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poderes para impor aos envolvidos a solução da controvérsia. Ele age apenas na in-terlocução entre os interessados apresentando elementos linguísticos que facilitem a comunicação entre os mesmos. Segundo Luiz Olavo Baptista “tem portanto uma tendência de mitigar e eliminar as tensões, criando compreensão e confiança entre os litigantes” (apud FIUZA, 1995).

Logo, o resultado final, ou seja, o acordo depende muito da sensatez, susce-tibilidade e vontade das partes, já que não se trata de procedimento compulsório. Inclusive, nesse aspecto reside o receio dos operadores de aplicar a mediação pre-viamente aos conflitos por causa da ausência de arbitrariedade que pode acarretar na demora para concluir a composição. Todavia, importante frisar que a mediação é o mecanismo mais eficaz para harmonizar a relação que foi rompida, porquanto o espaço oportunizado pelo mediador permite que as partes excedam o objeto dispu-tado avançando para o sofrimento do espírito não raras vezes o fator determinante da desavença, mormente, quando versa sobre direito de família, onde encontra maior e melhor aplicabilidade.

Quanto à arbitragem, oportuno, de pronto destacar as diferenças com o pro-cedimento anterior. Enquanto a mediação até esse ano se configurava pela infor-malidade a arbitragem já de muito tem caráter oficial, contando com a presença do terceiro nesse instituto, está dotado de competência e autonomia. No tocante aos destinatários permanece o ato voluntário de aderir à arbitragem, porém, uma vez realizada é irretratável e a decisão proferida vincula os aderentes. Singelamente, conclui-se que a arbitragem está no meio termo entre a mediação e a jurisdição. Não é a primeira porque carrega consigo o elemento imperativo, tampouco a segunda porque prescinde do aceite bilateral. Todavia, paulatinamente, está sendo preferida em virtude da presteza na resposta. Seu mercado volta-se, preferentemente, para demandas de natureza comercial, especialmente, em causas que envolvem vulto-sas cifras e polos binacionais.

No prefácio da obra Arbitragem comercial nos países do Mercosul o profes-sor Luiz Olavo Baptista expressa a posição histórica do instituto no Brasil, nestes termos:

Desaparecida com o advento da República, volta agora a adquirir uma nova importância, social e jurídica. Foi escolhida como fórmula de conciliação entre os interesses dos bancos e a necessidade de resguardar a soberania, não aceitando foro estrangeiro, quando da renegociação da dívida externa. Depois, lembraram-se dela, de novo para o mecanismo de solução de dispu-tas no Mercosul. Entretanto, nesse longo intervalo de tempo, no interior do Brasil só era utilizada sistematicamente na Bolsa de Mercadorias de S. Paulo, e esporadicamente por exportadores, principalmente de produtos primários, e muito raramente em outros negócios internacionais. Basta ver o número de homologações de sentenças arbitrais estrangeiras pelo STF, para ver o minguado número de arbitragens internacionais. Das internas, então, nem se fala. (apud PUCCI, 1997)

A parte inicial da citação retro leva a conclusão de que a arbitragem fez parte

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do direito durante o Império. A primeira constituição do Brasil, de 1824, recepcio-nou a arbitragem no art. 16065. Nessa época o instituto estava restrito a determina-das matérias, tais como seguro66 e locação de serviços67. O primeiro código a fazer referência ao procedimento arbitral foi o Comercial inspirado pelo Napoleônico. Em certa época a utilização da arbitragem foi inclusive obrigatória para causas comer-ciais, sendo facultativa para outras naturezas, porém dita compulsoriedade perdu-rou por pouco tempo. O código Civil – 1917 e 2002 – e de Processo Civil – 1939 e 1973 – que sobrevieram também regularam a matéria (VELLOSO, 2003).

Atualmente, a arbitragem pátria é regulada pela Lei n. 9.307, de 23 de setem-bro de 1996. Até a edição desse texto legal, a doutrina lecionava o instituto frente a dois aspectos técnicos distintos, a cláusula compromissória e o compromisso. Dizia-se sobre o antagonismo e ao mesmo tempo dependência entre eles. A fim de desvelar pormenores, inverte-se a ordem, pois o primeiro precede e origina o segundo, por questão didática.

O compromisso ganha atenção em dois momentos do conflito e aqui a pri-meira diferença, pois prescinde e advém do litígio. Na esfera extrajudicial as partes interessadas podem optar pela arbitragem ao invés de ingressar no plano jurisdi-cional, todavia, sem que haja impedimento de escolher por uma ou outra forma de compor a lide. Além do mais, durante o curso da demanda processual os pólos podem convergir no sentido de delegar ao árbitro a solução da controvérsia.

Já a cláusula compromissória se instaura independentemente da disputa de interesses. A sua convenção se projeta para o futuro, ou seja, os interessados ao realizarem um negócio jurídico estabelecem que eventuais discussões sejam dirimi-das pela arbitragem. Observa-se que nem sequer há indício de conflito, entretanto, caso surja será resolvido pelo método arbitral. A escolha das partes é vinculante, isto é, assim procedendo abrem mão de levarem o problema ao Judiciário. Paira a pergunta: ainda que esteja assim convencionado poderiam as partes voltar atrás?

Sabe-se que depois de iniciado o processo arbitral os litigantes ficam sujeitos ao julgamento que dele sobrevier não havendo nenhuma hipótese de desconsi-derá-lo e iniciar a contenda forense. Todavia, a questão posta é mais profunda. A complexidade gravita em torno do seguinte fato: considerando que as partes em comum acordo elegeram a arbitragem para compor o conflito, antes de ele existir, contudo, em esse surgindo podem elas convencionar de modo contrário, ou seja, transferir a lide aos cuidados da justiça estatal? Sim e não, explico.

Para uma parte dos juristas nesse estágio do conflito, qual seja o momento de pô-lo a julgamento, ainda que presente a cláusula compromissória é mister que

65 Art. 160: Nas causas cíveis e nas penais civilmente intentadas, poderão as partes nomear juízes árbitros. Suas sentenças serão exe-cutadas sem recurso, se assim o convencionarem as mesmas Partes. (CASTRO, 2008, p. 13)

66 Resolução de 26 de julho de 1831. (Idem, p. 14)

67 Lei n. 108, de 11 de outubro de 1837. (Ibidem, p. 14)

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ambas as partes ratifiquem o desejo da via alternativa de composição. Nesse senti-do a posição de Carmem Tibúrcio

A tradição brasileira firmou-se na rígida distinção conceitual entre compro-misso e cláusula compromissória, com as conseqüências práticas daí decor-rentes. Assim, a cláusula compromissória, contida no contrato original entre as partes, prevendo a submissão de qualquer litígio à arbitragem, não con-figurava garantia de instauração do juízo arbitral. Somente obrigava à sua realização efetiva após a celebração do compromisso, que pressupunha uma nova manifestação de vontade das partes pela realização da arbitragem, após o surgimento do litigo (TIBÚRCIO, 2001).

A teoria de Cézar Fiuza usa o conceito de convenção arbitral e as difere em compromisso concreto e compromisso abstrato. O primeiro seria o compromisso propriamente dito e o segundo a cláusula compromissória. A última define-a como o “pacto acessório pelo qual as partes convêm em submeter à jurisdição arbitral as disputas que surjam no transcorrer de determinada relação jurídica, em termos ge-néricos, sem menção à espécie de litígio nem ao nome dos árbitros” (FIUZA, 1995). Diferentemente da corrente oposta que trata o compromisso como ratificação da opção pela arbitragem essa outra identifica como fase concreta da convenção no instante em que serve para a escolha do árbitro ou tribunal.

Para melhor esclarecimento, é também relevante relacionar a arbitragem como espécie de contrato. Nesse caso a cláusula compromissória aparece como promessa de contrato prevista no negócio jurídico original, por isso tida como acessória. Por outro lado, o compromisso é por suas características o próprio contrato de arbitra-gem, pois nele constam todos os elementos metodológicos para aplicação do juízo arbitral, tais como “prazo para a emissão do laudo, qual lei regerá o procedimento, qual será o lugar de realização da arbitragem, enfim [...]” (PUCCI, 1997).

A importância desse recorte temático para o caso concreto cinge-se ao ponto em que sendo o contrato principal que contenha cláusula compromissória objeto de conflito quanto à sua validade, o mesmo será julgado pelo judiciário ou pela arbitra-gem? Aqueles que interpretam pelo princípio dos contratos advogam que sendo o contrato perfeito uma coisa só e suas cláusulas parte integrante do todo haverá nu-lidade provisória da cláusula compromissória, conquanto, por extensão a matéria da validade reserve-se ao âmbito da competência estatal. No entanto, os contraditórios defendem que prevalece a autonomia de vontade das partes no tocante a escolha pela via alternativa de compor o conflito e que por efeito a controvérsia acerca da validade do contrato já estaria automaticamente vinculada ao procedimento arbitral.

Na pesquisa de dissertação o professor Eduardo Silva da Silva atribui à cláu-sula compromissória força de negócio jurídico, considerando a teoria da indepen-dência acolhida pela lei de arbitragem em seu art. 8º68. Na concepção moderna da

68 Art. 8º A cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato em que estiver inserta, de tal sorte que a nulidade deste não implica, necessariamente, a nulidade da cláusula compromissória.

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arbitragem mesmo que o instituto se insira nas formas alternativas de composição de conflitos e que a jurisdição – leia-se na acepção lata e etimológica de dizer o direito e não no sentido stricto de prestação jurisdicional por parte do Estado – seja seu mote fundamental, a natureza da formalização é eminentemente privada, as-sim sendo, os requisitos legais objetivos subordinam-se aos pressupostos factuais subjetivos. Acompanha Kelsen, Bobbio, Ferri e Reale69 no que concerne ao entendi-mento sobre produção normativa e empresta à cláusula compromissória autentici-dade de fonte do direito (SILVA, 2003).

A hipótese apresentada por Silva desafia a concepção primária difundida pe-las escolas clássicas sobre a exclusividade do Estado em instituir o Direito. A ên-fase do trabalho está, segundo o prefácio de lavra da Dra. Judith Martins-Costa, na “recolocação do tema da arbitragem, isto é, definição de seu locus, o legítimo exercício do poder negocial” (apud SILVA, 2003). A profundidade do objeto adentra ao espectro de produção privada de normas de conduta pós-contratual diante da assertiva de que “nem só a lei produz normas, os sujeitos privados não são simples destinatários, mas autores ou coautores do processo normativo” (SILVA, 2003).

A base filosófica para o desenvolvimento da doutrina está na conexão entre a cláusula compromissória e a gênese ética que a pare e conserva. Não decorre, pois, de imperatividade pública, mas sim, advém da vontade de sujeitos jurídicos envolvidos diretamente na divergência. Ademais, não se revela distante como as legislações acabadas em determinado contexto histórico e social. É produto do pre-sente e afetado pelos axiomas culturais instantâneos.

Hoje e na época em que Silva confiou o texto à banca, a essência das rela-ções privadas tinha conotação nitidamente comercial, haja vista que até mesmo o casamento de origem sentimental se perfectibiliza na forma de negócio jurídico. Na era da globalização essas relações mercantis se intensificaram ainda mais. Por certo que o sistema capitalista opera na confiança dos atores econômicos. Daí que oportuniza a abertura do Direito para a construção privada, notadamente, se, para e quem for dirigida a finalidade da justiça. Como se fala de negócios e mercado o enfoque obviamente são as empresas por mais fechadas que sejam. Ora, todas estão à mercê do reflexo transnacional mesmo as que não exportam ou importam. Para essas e a essas que a arbitragem tem razão de existir e se constituir como mecanismo institucional de resolução de contratos, porquanto, na cátedra de Luigi Ferri “o negócio jurídico é expressão da vontade do particular e não da comunidade ou do Estado, quando se perderia a distinção entre público e privado e entre socie-dade civil e Estado” (apud SILVA, 2003).

Enfim, o papel da cláusula compromissória, qual seja empregar boa-fé a au-tonomia negocial. Conclui, afinal, que

69 Considerando a relação entre poder e fonte Reale sustenta “existirem tantas fontes quantas forem as formas de poder de decidir na experiência social” (REALE, 1992).

Cap. 6 - O desafio da jurisdição frente à sociedade de consumo

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configura-se em negócio jurídico autônomo e independente em relação ao contrato, e é dotada de objeto, conteúdo e perfil dogmático próprios. Trata-se de convenção privada que objetiva gerar uma nova esfera de regulação dos interesses particulares quando do advento de controvérsias acerca da interpretação e execução do contrato que a transporta. (SILVA, 2003)

Por essa razão a aceitação do instituto pelas pessoas jurídicas de capitais cresce dia após dia e o exemplo do direito comparado tem servido para testemu-nhar e fiar a aplicação exitosa da arbitragem como instrumento oficial de conser-vação das estruturas contratuais. À medida que dois Estados-soberanos ou duas empresas de nacionalidades ambíguas efetivam um acordo comercial é possível de antemão prever uma situação especial e inarredável. Caso no desenrolar da execu-ção do contrato ocorra qualquer incompatibilização anterior, sobrevirá conflito de competência acerca da instância válida para julgar o litígio. Decorrência pela qual o professor Enzo Pulitano dá o título de “uma exigência das empresas” ao estado proeminente do direito arbitral (apud SILVA, 2003).

Observa-se a gradativa instituição de Tribunais Arbitrais pelo mundo de acordo com dados da UNCITRAL70. Em 1985 eram 65 instituições arbitrais em 43 países, en-quanto no ano de 2000 os números ascenderam a 140, divididos em 72 países (FARIA, 2003). Atualmente, a composição da comissão atinge 60 países71. Destaca-se que no começo da organização era visível a predominância de países desenvolvidos, entretan-to, recentemente houve a adesão de nações consideradas emergentes, como exemplo todos os representantes do BRICS72, bem como subdesenvolvidas como Botswana, Ga-bão, Uganda e Namíbia. Nota-se que dos países que compõe o Mercosul, inclusive a precoce Venezuela, somente o Uruguai não integra referido organismo internacional.

Especificamente sobre o Mercosul o primeiro documento a dispor sobre a arbi-tragem foi o Protocolo de Brasília, datado de 1991, o qual “estipulava a combinação de mecanismos administrativos e de arbitragem para a solução de controvérsias entre Estados” (CASELLA, 2003). No painel apresentado durante o 1º Seminário Internacional sobre Direito Arbitral o professor da USP, Paulo Borba Casella respondeu a indagação sobre o futuro da arbitragem estatal no Mercosul com certo otimismo se comparado ao ceticismo de colegas que não apostavam em vida longa do bloco regional.

Mesmo considerando relativo atraso frente ao hemisfério Norte, quanto à implementação do procedimento para decidir casos envolvendo investidores da área de livre comércio, frisou a rápida adaptação e, principalmente, recorrência ao rito arbitral como argumento favorável. A uniformização de regime comum para aplicação alcançou-se através dos Regulamentos de 1998 (estatuto) e 2000 (padro-

70 Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional composta por 36 países-membros, órgão subsidiário da Assem-bléia das Nações Unidas, criado em 1966, com mandato de fomentar a harmonização progressiva do direito comercial Internacional, que se aplica às transações mercantis internacionais, ou seja, o direito privado das relações mercantis internacionais. (FARIA, 2003).

71 Informação disponível em <www.uncitral.org>. Acesso em 22 ago. 2012.

72 Grupo político de cooperação formado pelos mercados emergentes: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

98 Cap. 6 - O desafio da jurisdição frente à sociedade de consumo

nização das instituições arbitrais) oficializados em Buenos Aires. Porém, foi com o Protocolo de Olivos (PO), assinado em 2002, que Brasil, Argen-

tina, Paraguai e Uruguai renderam-se ao pacto da integração, via resolução de impasses comerciais, a fim de equalizar as práticas de política comercial regional e potencializar o poder de barganha diante da Comunidade Europeia e os Tigres Asiáticos.

O momento sublime do PO deu-se com a instituição do Tribunal Permanente de Revisão (TPR), clara inovação em paralelo ao Protocolo de Brasília. A partir dele será possível harmonizar as decisões emanadas dos tribunais ad hoc muitas vezes eivadas de incoerências e formar precedentes no intuito de balizar os julgados posteriores. Outra constatação inédita diz respeito à compreensão da cláusula com-promissória geral “eliminando a necessidade de compromisso futuro para que se reconheça a jurisdição dos tribunais ad hoc e do TPR” (CASELLA, 2003).

Surpreendente estatística foi apresentada por Vicente Oliva Buratto ao mencio-nar que “90% dos contratos comerciais internacionais contém uma cláusula arbitral, o que demonstra a preferência majoritária de que as lides correntes de tais contratos sejam decididas pelas cortes arbitrais e não pela justiça estatal” (BURATTO, s/d).

Por fim, não há melhor argumento para referendar o modelo arbitral tal qual o exposto pela eminente ministra do Superior Tribunal de Justiça remontando a gênese do Estado Liberal iluminista ante “o prestígio que se dá a tendência cres-cente das modernas democracias, no sentido de fortalecer o princípio da liberdade de contratar livremente, garantida constitucionalmente aos cidadãos” (CALMON, 2004). Atinge-se a perfeição conceitual ao associar-se a lição de Irineu Strenger no tocante a realidade irreversível aonde “ignorar o fato significa colocar-se em plano jurídico cultural de inferioridade e de desatualização” (STRENGER, 2000).

4. À guisa de conclusão

A criação do Direito e sua efetividade estiveram desde a origem baseada no princípio do monopólio estatal sobre a justiça. Ocorre que as transformações da civilização mundial operadas após a segunda guerra relativizaram a autonomia soberana dos Estados, primeiro com a emergência da Organização das Nações Uni-das, que se constituiu como um organismo de mediação de conflitos entre países, o que antes encontrava solução por meio da guerra. Em pleno século XX mostrava-se paradoxal que a ciência do Direito tivesse oferecido a solução pacífica dos conflitos entre os indivíduos, em substituição a autotutela, porém no tocante aos litígios entre Estados (sobre o qual uma das principais atribuições era a proteção de seus cidadãos) ainda fosse válido o direito do mais forte, modernizado, agora não mais reduzido à força física, e sim recorrendo ao uso de armas de destruição em massa. A razão de ser do Contrato Social não tinha correspondência no ambiente interna-cional. A proeminência do direito internacional foi reforçada com a consolidação

99Pablo Rodolfo Nascimento Homercher

do neoliberalismo, a partir do Consenso de Washington, que reterritorializou as fronteiras nacionais pela influência do desenvolvimento tecnológico que concebeu a comunicação por fibra ótica em escala universal, permitindo a imediatidade das relações mesmo à distância.

No cenário econômico sobrevieram novos arranjos institucionais, a fim de reordenar as forças políticas, especialmente, depois da queda do bloco soviético, que determinou o fim da história, isto é, o encerramento de um ciclo de dispu-tas ideológicas pela hegemonia mundial. Os países europeus interessados em unir forças para competir em pé de igualdade no mercado econômico com os norte-a-mericanos constituíram seu bloco. Essa atitude resultou num efeito cascata desen-cadeando uma série de associativismos entre Estados, o que culminou em nossa região com a formação do Mercosul, incialmente composto por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai.

A grande dúvida que surgiu em torna dessa nova prática de negociação resi-dia justamente na segurança jurídica, porquanto cada Estado-parte dispõe de orde-namento jurídico próprio, sendo que muitas vezes as regras não coincidem ou mes-mo são incompatíveis. Tomamos o exemplo de países onde o sistema jurídico tem orientação pela common law, enquanto outros operam pelo princípio do direito ro-mano-germânico. Nessa linha esboçou-se a funcionalidade dos Tribunais Arbitrais.

No caso do Mercosul denomina-se Sistema de Solución de Controversias. No âmbito deste órgão, depois da regulamentação proposta pelo Protocolo de Olivos, dois casos já foram processados, ambos envolvendo a República Oriental do Uru-guai e a República Argentina, de autoria do primeiro.

Um deles envolve a proibição por parte da Argentina para importação de pneus recapeados do país vizinho (Laudo 01/2007). Este teve a presidência de um árbitro brasileiro. Autuado no ano de 2005 foi remetido para o Tribunal Permanen-te de Revisión, depois que o Tribunal Arbitral considerou justa a restrição imposta pelo governo argentino. Em grau de revisão, porém, o TPR revogou a decisão an-terior e determinou que a Argentina derrogasse a norma de circulação proibitiva dentro de 120 dias. Em face do descumprimento por parte da Argentina, o Tribunal concedeu ao país Reclamante a possibilidade de medidas compensatórias, ou seja, o direito do Uruguai em fixar alíquotas superiores no custo final de pneus originais. Apesar da insurgência da Argentina o resultado foi mantido. Entre a instauração do Tribunal e a deliberação da última controvérsia foram necessários exatamente dois anos. Qual seria o tempo médio para a instrução de causa análoga na jurisdição ordinária, considerando que os atos seriam comunicados mediante carta rogatória?

O segundo trata-se do impedimento para a livre circulação de mercadorias procedentes do Uruguai em território argentino (Laudo 02/2006), em razão de ma-nifestações de movimentos ambientalistas nas pontes binacionais, pela instalação de fábricas de celulose no leito do Rio Uruguai. O Tribunal compreendeu que não houve intenção do governo argentino de prejudicar o transporte de produtos uru-

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guaios dentro do território argentino, uma vez que a permissão para a realização de manifestações da sociedade civil é um direito fundamental, garantido além da Constituição interna, pelos Tratados Internacionais. Vejamos aqui o compromisso do Tribunal Arbitral com as garantias individuais, mesmo em se tratando de confli-tos comerciais entre nações, onde o objeto da disputa sequer invocou essa prerro-gativa.

Por fim, o TPR foi instado para se pronunciar a respeito da suspensão da Re-pública do Paraguai e a recepção da República Bolivariana de Venezuela como novo integrante do bloco (Laudo 01/2012). Lembremo-nos que a sanção imposta ao Pa-raguai decorreu da maneira como as instituições públicas se portaram diante do impeachment do presidente Fernando Lugo Mendéz, sem ofertar o procedimento contestatório legalmente previsto. Em sede de conclusão o Tribunal reconheceu a incompetência para deliberar sobre a matéria, sob o fundamento de que a admis-são/exclusão de membros é de responsabilidade exclusiva da Assembleia, o que reitera a paridade de forças nesse instituto.

5. referências bibliográficas

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Cap. 6 - O desafio da jurisdição frente à sociedade de consumo

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Pablo Rodolfo Nascimento Homercher

102

A esseNCIALIdAde dA PrOCUrAdOrIA GerAL dO esTAdO PArA O esTAdO

deMOCrÁTICO de dIreITO: Atuação pautada no interesse coletivo e nos direitos humanos, em um cenário de

esgotamento do modelo jurisdicional Priscila Tahisa Krause73

73 Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul.

Cap. 7 -A essencialidade da Procuradoria Geral do Estado para o Estado Democrático de Direito

CAPíTUlO 7

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1. Notas introdutórias

Ao adotar como princípio fundamental a constituição em Estado Democrático de Direito, a República Federativa do Brasil centra seu objetivo basilar na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e no pluralismo político. A Carta Magna ainda destaca que todo o poder emanará do povo, que o exercerá por meio de representantes eleitos ou diretamente. Tais fundamentos evidenciam que a intenção dos legisladores consti-tucionais – representantes do povo brasileiro –, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte, foi de nortear a condução do país no bem do povo e no interesse coletivo (BRASIL, 1988)74.

A partir das garantias contidas na Constituição Federal de 1988, que confe-rem inúmeros direitos aos cidadãos, passa a existir a possibilidade de responsabili-zação do Estado e de seus entes federativos, caso a estrutura e as políticas públicas implantadas com vistas ao bem comum dos cidadãos, não façam respeitar a Carta Constitucional, privando a sociedade daqueles direitos legalmente elencados.

Neste sentido, faz-se necessária uma reflexão acerca da essencialidade da Procuradoria Geral do Estado para a manutenção do Estado Democrático de Direito, devendo-se afastar a equivocada, embora popular, ideia de que sua função se res-tringe à mera representação passiva do Estado no contencioso judicial, ou ainda, que a tutela dos interesses do Estado equivalha a algo que se oponha aos interes-ses dos cidadãos, ou que se destine a ceifar o acesso da população a determinados direitos sociais.

As Procuradorias Estaduais foram criadas por força de instrumentos le-gais – leis estaduais – não apenas com a finalidade de realizar a representação judicial dos estados-membros da União, mas também com o mister primordial de exercer o controle da legalidade dos atos da Administração Pública e prestar consultoria e assessoria jurídica ao Executivo, sempre almejando o bem-estar coletivo e a legalidade.

Destarte, busca-se traçar uma análise dessa essencialidade das Procuradorias Gerais dos Estados enquanto instituições responsáveis por fazer cumprir com efe-tividade seu papel para a manutenção do Estado Democrático de Direito.

74 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988.TÍTULO IDos Princípios FundamentaisArt. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:I - a soberania;II - a cidadaniaIII - a dignidade da pessoa humana;IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;V - o pluralismo político.Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Cons-tituição.

Priscila Tahisa Krause

104

Para tanto, inicialmente é preciso compreender certos pontos acerca da evo-lução das formas de Estado, que culminaram com o surgimento do Estado Demo-crático de Direito; avaliar as funções exercidas pelas Procuradorias Estaduais no modelo político ora vigente no país, seu papel e o que se espera da atuação dos Procuradores de Estado, em especial, no momento atual, com evidentes sinais de esgotamento no modelo de jurisdição vigente.

Por fim, adentrando a temática dos direitos humanos – assunto extremamen-te em voga, além de polêmico e instigante –, resta avaliar de que forma as Procu-radorias Gerais dos Estados podem se transformar em agentes ativos para a busca da satisfação desses direitos enquanto Instituições engajadas no objetivo de trilhar um caminho rumo ao Estado de Bem-Estar Social.

2. O advento do estado democrático de direito

A definição de um conceito exato e absoluto para o Estado parece tarefa quase impossível, dada a subjetividade e a multiplicidade de interpretações propostas por diversos estudiosos ao longo dos séculos. Para Bonavides isso ocorre devido ao fato de que “há pensadores que intentam caracterizar o Estado segundo posição predomi-nantemente filosófica; outros realçam o lado jurídico e, por último, não faltam aque-les que levam mais em conta a formulação sociológica de seu conceito” (2013, p. 66).

Para uma melhor compreensão do alicerce que lastreia a ideia principal do presente estudo, será adotado o conceito de Estado proposta por Thomas Hobbes, que de forma sucinta pode ser resumida na seguinte assertiva: “a multidão assim unida numa só pessoa passa a chamar-se Estado” (HOBBES, 2009, p. 126). Ainda segundo este importante filósofo inglês, tal união teria origem no interesse de abandonar a mísera condição de guerra, ocasionada pelas paixões naturais dos ho-mens, o que somente ocorreria com a existência desse poder invisível, responsável por manter o respeito entre os homens, forçando-os a cumprir seus pactos e as leis naturais, sempre sob o temor da punição (2009, p. 123).

Como ilustração desse conceito basta lembrar a figura geralmente utilizada como frontispício original do Leviatã75: um homem gigantesco – o Estado – cujo corpo é composto de vários homens pequenos – os cidadãos.

O modelo de Estado passou por inúmeras transformações ao longo da histó-ria da humanidade até chegar ao atual, que pode ser caracterizado por três elemen-tos principais: povo, território e governo (ou poder político).

No entanto, percorrida essa breve análise conceitual de Estado, o que se preten-

75 Criatura mitológica mencionada pelo texto bíblico, retratada pela primeira vez nos capítulos 40 e 41 do Livro de Jó, que a descreve como um monstro terrível, irresistível e muito poderoso a ponto de ninguém poder desafiá-lo e restar ileso. A figura do Leviatã foi utilizada por Thomas Hobbes, na obra homônima, como representação do governo de um soberano absoluto que utiliza de sua força, bem como da punição para fazer cumprir o contrato social, garantindo a paz e, dessa forma, inibindo a guerra de todos contra todos.

Cap. 7 - A essencialidade da Procuradoria Geral do Estado para o Estado Democrático de Direito

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de abordar no presente tópico é o Estado Democrático de Direito, que surgiu após uma evolução histórica nas formas de Estado, ou seja, possui uma história constitucional que será aqui brevemente delineada. O nascedouro desta evolução pode ser vinculado ao advento do Estado Liberal e o fim, com o estabelecimento e fortalecimento do pró-prio Estado Democrático de Direito como tal. Nesse diapasão, é possível afirmar que o Estado Democrático de Direito é resultado de um processo evolutivo iniciado pelo Estado Liberal que, tendo perpassado pelo Estado Social de Direito, transmuta-se final-mente para a forma de Estado Democrático de Direito a qual se conhece na atualidade.

A forma inicial, ou seja, o Estado de Direito, consiste em um Estado tipi-camente liberal e constitucional surgido em um contexto histórico de passagem da Monarquia absolutista para a Monarquia Constitucional, cujas características, segundo a doutrina de José Afonso da Silva, são a submissão ao império da lei, a divisão de poderes e o enunciado e garantia dos direitos individuais (1999, p. 112). Afora estas características pode-se acrescentar igualmente a rigidez e supremacia constitucional, bem como o controle de constitucionalidade das leis.

Diante disto, assevera-se que o Estado de Direito se baseia estritamente no princípio da legalidade, reduzindo-se o Direito à mera lei, de modo a superar a di-cotomia entre direito natural e direito positivo, isto porque não se concebia a exis-tência de outro direito, senão o positivo.

Marcado pela expressão laissez faire76, o Estado Liberal foi um Estado de po-líticas abstencionistas, cujo cerne foi o princípio da liberdade. Entretanto, apenas a liberdade não foi capaz de promover uma vida digna aos homens. Em sentido contrário, seu uso abusivo ocasionou inclusive inúmeras injustiças sociais, intensi-ficando-se depois da Revolução Industrial.

Insatisfeito, o povo passou a buscar melhores condições de saúde, trabalho, edu-cação, lazer e econômicas. Diante do movimento social, o Estado de Direito quase foi rompido. Não podendo mais se justificar como liberal, precisou abrir mão de sua neutra-lidade e agregar-se à sociedade, sem, contudo renunciar ao primado do Direito. Noutras palavras, apesar de ter cedido às pressões sociais foi mantido o primado da lei.

Neste sentido, é correto afirmar que o Estado Social de Direito continuou se caracterizando como um Estado submisso à lei, mas não a qualquer lei, e sim à lei que objetivasse o bem-estar social.

A passagem do Estado de Direito para o Estado de Bem-Estar Social – Welfare State77 – marca a transformação de um Estado abstencionista, norteado pelo princí-pio da liberdade, em um Estado intervencionista, pautado no princípio da igualdade

76 A expressão francesa laissez faire,laissez passer,le monde va de lui-même, cuja tradução livre equivaleria à deixai fazer, deixar passar, o mundo caminha por ele mesmo ganhou notoriedade ao ser utilizada como representação do liberalismo econômico. Para a teoria do laissez faire o capitalismo seria harmonioso e livre de crises, o que viabilizaria a ausência de intervenções, permitindo o livre funcionamento dos mercados.

77 O Welfare State – Estado de Bem-Estar Social, também chamado de Estado Providência pode ser definido como uma forma de organização política e econômica que atribui ao Estado a função de ente responsável pela promoção social e organização econômica, garantindo a totalidade de serviços públicos necessários para o bem comum e a proteção de seus cidadãos.

Priscila Tahisa Krause

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material, ou ainda, seria possível afirmar que deixa de ser um Estado mais livre e menos justo para ser menos livre, porém mais justo.

Quanto a esta transformação do Estado Liberal em Estado Social de Direito, importante destacar as palavras do jurista Jorge Miranda:

Século marcado por convulsões bélicas, crises econômicas, mudanças so-ciais e culturais e progresso técnico sem precedentes (mas não sem con-tradições), o século XX é, muito mais do que o século anterior, a era das ideologias e das revoluções. Desembocam nele todas as grandes correntes filosóficas e acelera-se o ritmo dos eventos políticos. É, portanto, o século em que o Direito Público sofre poderosíssimos embates e em que a fase liberal do Estado constitucional vai seguir-se uma fase social (2000, p. 88).

Inobstante o fato do Estado Social de Direito se caracterizar pela busca da realização do bem-estar social, não é possível caracterizá-lo como um Estado De-mocrático de Direito, tendo em vista que este último necessita de determinado fa-tor que alguns Estados Sociais não apresentaram. Tal fator consiste na legitimidade do exercício do poder político.

Classicamente, entende-se a democracia como um governo do povo, para o povo e pelo povo, que o exerce diretamente ou através de representantes. A origem etimológica da palavra democracia advém da expressão grega demos que significa povo e kratos que significa poder, o que levaria a uma tradução – ainda que simplista – equivalente a poder do povo. Imperioso destacar aqui, outra vez, a total vinculação da Carta Magna de 1988 com o regime democrático adotado pelo país, ao determinar, logo em seu primeiro artigo – no parágrafo único – que todo o poder emanará do povo, exercendo-o por meio de representantes eleitos ou diretamente (BRASIL, 1988).

Diante das considerações expostas no presente tópico, pode-se concluir que o conceito de Estado Democrático de Direito é correlato a outro conceito, o da legi-timidade, à medida que esta – como sendo o respaldo daquele que exerce o poder político na vontade popular – é pressuposto daquele, ou seja, sem legitimidade não há democracia.

Neste sentido, o Estado Democrático de Direito consiste em um Estado no qual a preponderância da vontade popular na sua organização política, social, eco-nômica e ideológica é característica basilar, eis que possui como pilar de sustenta-ção a democracia, ou melhor, o poder do povo.

Quanto à configuração do Estado Democrático de Direito, imperioso salientar o que ensina a doutrina de José Afonso da Silva, que assevera que “não significa unir formalmente os conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito” (1999, p. 119). Na opinião desse importante jurista, consiste na criação de um novo conceito, levan-do em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo.

Ao tratar da importância da Constituição Federal de 1988, Bedin e Santos destacam que “de fato, a nova Constituição deu ao Brasil um arcabouço jurídi-co-político fundamental. Nesta nova configuração, ganhou destaque o forte reco-

Cap. 7 - A essencialidade da Procuradoria Geral do Estado para o Estado Democrático de Direito

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nhecimento dos direitos humanos (artigos 5º ao 17 da CF)” (BEDIN, 2012, p.388). Como já foi visto, a Carta Constitucional brasileira consagra a escolha pelo Estado Democrático de Direito, arrolando como um dos cinco fundamentos contidos no rol do artigo 1º, a dignidade da pessoa humana. Na opinião de Nader, tal princípio fundamental é de suma importância, eis que “a dignidade constitui uma síntese de valores éticos, capaz de dar sustentação à pessoa humana, permitindo-lhe a reali-zação de suas potências ativas” (2012, p. 75).

Destarte, fundamentados em preceitos constitucionais, pode-se dizer que o Estado Democrático de Direito está baseado no princípio da legalidade (artigo 5º, II), porém, não na legalidade formal e sim material, eis que possui como objetivo a realização de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, I), garantindo o desenvolvimento nacional (artigo 3º, II), erradicando a pobreza, a marginalização e reduzindo as desigualdades sociais e regionais (artigo 3º, III), além de promover o bem de todos, sem preconceitos de raça, cor, sexo, idade e quaisquer outras for-mas de discriminação (artigo 3º, IV) (BRASIL, 1988).

Diante destes aspectos, pode-se definir o Estado Democrático de Direito como todo e qualquer Estado pautado em garantir o respeito das liberdades civis, ou seja, o respeito pelos direitos humanos e pelas garantias fundamentais, através do esta-belecimento de uma proteção jurídica, ou, em outras palavras, aquele Estado que busca a realização do bem-estar social sob a égide de uma lei justa e que assegure a participação mais ampla possível do povo, no processo político decisório.

3. A importância das Procuradorias estaduais enquanto Instituições de direito e o papel dos Procuradores de estado

Criadas por leis estaduais com a finalidade principal de prestar os serviços de assessoramento e consultoria jurídica ao Estado, bem como de representá-lo, seja judicial ou extrajudicialmente, as Procuradorias Gerais dos Estados podem ser definidas como órgãos consultivos – em matéria jurídico-legislativa – subordinados diretamente ao Poder Executivo Estadual, na pessoa do Governador do Estado.

Igualmente, possuem a função de efetuar o controle da legalidade dos atos da administração pública, não se limitando apenas a isso, mas realizando também a verificação da eficiência de determinado serviço ou a utilidade de cada ato admi-nistrativo – ainda que legítimo –, exigindo a devida modificação ou supressão do ato e/ou serviço, nos casos em que vislumbre ineficiência, inutilidade, ou inconve-niência ao bem estar coletivo.

Somam-se a estas funções, outras – não menos importantes, porém menos usuais – como a realização de acordos extrajudiciais e o gerenciamento de precatórios.

Retomando o conceito de Estado abordado no tópico anterior, é coerente concluir que, à medida que as Procuradorias Gerais dos Estados atuam na defesa

Priscila Tahisa Krause

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do Estado, estão agindo em defesa daquela coletividade de indivíduos que compõe cada estado federativo no qual atuam.

Neste sentido, as Procuradorias Estaduais atuam norteadas pela tutela do in-teresse público, buscando, por exemplo, majorar receitas através da recuperação de créditos fiscais e minorar despesas, atuando em defesa do Estado nos mais diversos litígios judiciais. Em outras palavras, não resta dúvidas quanto à assertiva de que, sob o aspecto orçamentário, a atuação das Procuradorias Estaduais resulta em um binômio formado por dois conceitos básicos de finanças: arrecadação e economia.

Os recursos obtidos através da atuação das Procuradorias podem alcançar, somados, a cifra de bilhões de reais anuais, sendo que tal receita pode ser desti-nada para a complementação orçamentária estadual dos investimentos nos mais variados fins sociais, como saúde, educação e saneamento básico.

Assim, mostra-se evidente a importância de uma Instituição cuja atuação possua o condão de viabilizar recursos que poderão ser aplicados pelos Estados na execução das políticas públicas elaboradas em benefício da sociedade, fomentan-do condições para uma aproximação do modelo almejado pelo Welfare State, pois, remetendo esta análise novamente à filosofia de Hobbes “a nutrição de um Estado consiste na abundância e na distribuição dos materiais imprescindíveis à vida, em seu armazenamento e preparação e, depois de embalados, em sua entrega, por meio de canais adequados, para o uso público” (2009, p. 176).

Tomando o estado do Rio Grande do Sul como exemplo, a Procuradoria Esta-dual gaúcha integra a Sala de Gestão da Administração Pública, órgão responsável por realizar o monitoramento de projetos estratégicos que visam o desenvolvimen-to econômico e social do estado.

No entanto, uma Instituição de tamanha importância não se efetiva sem a atuação de agentes profissionalmente capacitados para tanto. Neste sentido, o arti-go 12 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 197378 – Código de Processo Civil – deter-mina que a representação judicial dos Estados seja realizada por seus Procuradores (BRASIL, 1973).

Os Procuradores do Estado – organizados em carreira, na qual o ingresso de-penderá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, conforme determina o artigo 132 da Constituição Federal de 198879 (BRASIL, 1988) – são os agentes que pessoalmente desempenham o rol de atividades de responsabilidade das Procuradorias Estaduais,

78 Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Art. 12. Serão representados em juízo, ativa e passivamente:I - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Territórios, por seus procuradores;(...)

79 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988.Art. 132. Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas.

Cap. 7 - A essencialidade da Procuradoria Geral do Estado para o Estado Democrático de Direito

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atuando na promoção da defesa técnico-judicial do Estado-membro.Na condição de Advogados Públicos os Procuradores do Estado são expressa-

mente agraciados pelo artigo 133 da Constituição Federal de 1988 com a condição de atores sociais essenciais à Justiça80, assim como também o são os advogados privados (BRASIL, 1988).

O Procurador do Estado, ao passo que presta consultoria e assessoria jurídica à Administração Pública, efetua também o controle da legalidade e moralidade dos atos do Executivo, com vistas a zelar para que os atos do ente público estejam em consonância com os interesses sociais e o bem estar coletivo.

As funções de consultoria e assessoria são desenvolvidas, via de regra, a par-tir da análise de situações concretas das quais tome parte a Administração Pública Estadual. Para tanto, os Procuradores, lotados em setores específicos, de acordo com a estrutura organizacional de cada Procuradoria Estadual, elaboram pareceres opinando quanto à legalidade e juridicidade do ato que demandou consulta.

Como ilustração da importância do administrador público observar o dever de se guiar por fundamentos embasados no interesse coletivo Meirelles assevera:

toda atividade do administrador público deve ser orientada para o bem co-mum da coletividade. Se dele o administrador se afasta ou desvia, trai o mandato de que está investido, porque a comunidade não institui a Admi-nistração senão como meio de atingir o bem-estar social. Ilícito e imoral será todo ato administrativo que não for praticado no interesse da coletividade (2008, p. 81).

Veja-se aí a notória importância do Advogado Público na sociedade moderna, isso porque, ao analisar suas atribuições, é possível perceber que não consistem exclusivamente em proteger judicialmente o patrimônio público diante de investi-das ilegítimas de iniciativa particular, mas também sua fundamental intervenção ao averiguar, fiscalizar e prevenir a prática de atos ilícitos de parte do Executivo Esta-dual, sejam os mesmos praticados ativa ou passivamente – por ação ou omissão.

Cabe destacar que o Procurador do Estado não pode limitar sua atuação na perseguição dos violadores da lei, eis que sua função primordial deve ser a de ob-servação, de vigilância prévia à infração, buscando atuar de forma profilática. Em outras palavras, o Procurador não pode ser visto como um agente da lei que apenas se manifesta quando algum dispositivo legal é violado, mas sim como um olhar perpetuamente aberto sobre a população (FOUCAULT, 2003, p. 107).

Vale salientar, ainda, que a atuação a nível de consultoria e assessoria realiza-da pelos Procuradores do Estado, não se presta, nem deve ser entendida como um elemento substitutivo ao exercício da autotutela administrativa, todavia, servirá, pre-ventivamente, assim como uma bússola, consistindo em um verdadeiro norteamento

80 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988.Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da pro-fissão, nos limites da lei.

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– juridicamente embasado – para que o Estado evite danos lesivos ao erário público. Assim, sob um prisma mais amplo, é possível asseverar com relativa segu-

rança que os Procuradores de Estado não são apenas os advogados do Estado, mas sim os patronos de todos os cidadãos na busca por condições sociais melhores, pelo Estado Democrático de Direito, eis que possuem como vetor de seu labor a tutela do bem comum e, principalmente, do patrimônio público.

A essencialidade do serviço dos Procuradores do Estado se torna palpável quando se considera, por exemplo, que, “no momento em que a Fazenda pública é condenada, sofre um revés, contesta uma ação ou recorre de uma decisão, o que se estará protegendo, em última análise, é o erário” (MORAES, 2000, p. 94). E o erário público é justamente a fonte dos recursos que custeiam as políticas públicas e demais iniciativas e obras em prol da sociedade. O advogado público quando de-fende o Estado, com isso, ainda que indiretamente, está defendendo cada cidadão que dele faz parte, eis que a autoridade pública é mera administradora do recurso destinado para a coletividade dos atores sociais que compõe aquele determinado Ente federativo.

Diante dessas características, pode-se concluir que o Estado Democrático de Direito – enquanto utopia idealizada pelo ordenamento jurídico vigente – im-prescinde da existência e da independência profissional dos Procuradores do Es-tado, o que resta comprovado na análise da Constituição Federal de 1988 e da Lei 8.906, de 04 de julho de 1994 – conhecida como Estatuto da OAB – que reafirma, em seu artigo 2º, a indispensabilidade do advogado à administração da justiça81 (BRASIL, 1994).

A partir desta constatação de que os Procuradores do Estado atuam com vistas à proteção do patrimônio da coletividade, por razões óbvias, faz-se ne-cessário que haja um número suficiente de procuradores que possam acompa-nhar as inúmeras demandas que lhes competem com a qualidade técnica que evidentemente possuem e uma estrutura – seja de pessoal de suporte, seja fí-sica – adequada, que lhes permita desempenhar seu labor de forma organizada e eficiente. No entanto, isto parece cada vez mais difícil, não pela falta de pro-curadores ou estrutura disponibilizada pela Administração Pública, mas diante do crescimento exponencial do número de processos distribuídos nas comarcas diariamente e da morosidade na tramitação dos feitos, o que invariavelmen-te acaba – ou acabará – por ocasionar acúmulo de serviço, consequentemente agravando o esgotamento do Judiciário – do qual hodiernamente já se percebe nítidos sinais.

81 Lei nº 8.906, de 04 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Art. 2º O advogado é indispensável à administração da justiça.§ 1º No seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social.§ 2º No processo judicial, o advogado contribui, na postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador, e seus atos constituem múnus público.§ 3º No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites desta lei.

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4. Os sinais de esgotamento do modelo judicial brasileiro e a possibilida-de de atuação consciente do Procurador do estado para contribuir com a mudança nesse cenário

Hodiernamente, muito se fala em crise ou mesmo no esgotamento do modelo jurisdicional até então utilizado no país. Na realidade, a cada dia se torna mais evidente que o Poder Judiciário necessita enfrentar o desafio de “alargar os limites de sua ju-risdição, modernizar suas estruturas organizacionais e rever seus padrões funcionais, para sobreviver como um poder autônomo e independente” (SPENGLER, 2014, p. 17).

Este esgotamento em muito se deve aos crescentes números associados à litigiosidade. Segundo o último relatório anual divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça, o Justiça em Números 201382, apenas na Justiça Estadual – consideran-do o primeiro grau de jurisdição –, foram distribuídos ao longo do ano de 2012 8.496.445 novos processos, tendo em São Paulo o estado-membro recordista, res-ponsável, sozinho, por 2.647.558 novos feitos, seguido por Minas Gerais, com 783.992, Paraná, com 760.293, Rio Grande do Sul, com 690.698 e Rio de Janeiro, com 609.143.

Além destes quase 8,5 milhões de casos novos de conhecimento em sede de 1º grau de jurisdição, o mesmo relatório do CNJ ainda apontou mais 3.698.001 no-vos casos de execuções de título extrajudicial, atingindo assim, o espantoso índice de mais de 12 milhões de novos litígios83 ajuizados no lapso de apenas 12 meses no 1º grau da Justiça Estadual. Cabe salientar que, de igual forma, não estão sendo considerados nos números acima os 3.803.518 novos processos distribuídos nos Juizados Especiais do país no mesmo período.

Tamanha litigiosidade – destaca-se novamente, apenas considerando dados de 1º grau da Justiça Estadual – somente no ano de 2012 representou uma média de 1.338 novos casos por magistrado, com ápice no estado do Rio de Janeiro no qual o Justiça em Números 2013 apurou a quantia de 2.645 novos casos para cada juiz de 1º grau.

Se, diante dos números acima, é evidente a sobrecarga do atual modelo, há outro índice que talvez seja ainda mais alarmante considerada sua extrema impor-tância: o momento da jurisdição propriamente dita – hora em que as partes espe-ram seja dito o direito – quando o Estado, enquanto terceiro invocado para sanar o litígio, pronuncia-se, sentenciando o feito.

Os índices do CNJ apontam para uma média de 1.090 sentenças por Magis-trado – somadas as fases de conhecimento e execução – no 1º grau de jurisdição da Justiça Estadual. Isso representa uma média aproximada de três sentenças por dia,

82 O Relatório Justiça em Números 2013 – ano base 2012 é disponibilizado pelo Conselho Nacional de Justiça em: <http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/eficiencia-modernizacao-e-transparencia/pj-justica-em-numeros/relatorios>

83 Não estão incluídos neste total os 967.259 casos novos de execução judicial no 1º grau em 2012, eis que se entende que, por se originarem de processos já existentes, já se poderia presumir e mensurar a propositura da execução pertinente a eles.

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ignorando-se finais de semana, feriados, licenças, férias e outros afastamentos, o que seria equivalente a afirmar que cada magistrado necessitaria trabalhar durante os 365 do ano ininterruptamente, proferindo três sentenças por dia, independente-mente do grau de complexidade dos feitos.

Se isso já parece consideravelmente árduo (e por que não impossível?), tendo por base a importância de sentenças bem fundamentadas, que necessitam se ater aos detalhes inerentes à cada lide para alcançar a maior proximidade do que se en-tende por justiça, bem como a nítida compreensão de cada uma das partes quanto às motivações que levaram àquela decisão, imagine-se as dificuldades encontradas pelos operadores do direito nos estados do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul onde, em 2012, cada Magistrado sentenciou, respectivamente, 2.100 e 1.608 processos em 1º grau, ou seja, uma média bastante superior a 100 processos por mês.

Com o avanço dos números demonstrados no comparativo dos anos ante-riores e o crescente avanço na quantidade de demandas que continuam a bater às portas do judiciário diariamente, há que se refletir acerca da validade dos mutirões realizados com vistas a sentenciar litígios. Ainda que a intenção seja louvável, é urgente que se preze principalmente por qualidade e não apenas por quantidade.

Não se quer dizer com isso que os mutirões promovidos pelos Tribunais bra-sileiros estejam sendo realizados de forma errônea, ou mesmo fazer uma crítica injusta a estas iniciativas criadas com o objetivo de conferir celeridade à tramitação judicial. O que se pretende é provocar a discussão e a conscientização quanto à imperiosa necessidade de preocupação com a qualidade das decisões, que refletirá diretamente na satisfação dos cidadãos e no sentimento de confiança de que a jus-tiça se fará prevalecer ao final de cada processo.

Já no ano de 1920, em um discurso na Faculdade de Direito de São Paulo, posteriormente publicado em formato de livro, Rui Barbosa (1999, p. 40) já aler-tava: “Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade.”. Noutras palavras, também é preciso que o processo tramite e transite em julgado em tempo razoável84 de modo que o feito não se procrastine indefinidamente, assumindo assim características de impunidade ao ofensor e não satisfação do direito ao ofendido, levando à descren-ça no sistema como um todo.

Quanto a essa necessidade de um Judiciário mais célere, Spengler (2014, p. 27) afirma que a “descrença na justiça se dá não só pela distância entre o cidadão, os ritos e a linguagem que envolve os processos judiciais, mas também pelo tempo percorrido por cada procedimento (tradicionalmente longo)”.

Mas o que seria um tempo razoável? À medida que não fixa tempo certo, o direito fundamental à razoável duração do processo permite as mais diversas

84 O direito à duração razoável do processo foi consagrado pela Constituição Federal de 1988 como direito fundamental, e insculpido no inciso LXXVIII, do artigo 5º (BRASIL, 1988).

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interpretações, podendo também variar de acordo com o objeto de cada litígio. Por exemplo, uma ação de alimentos ou de fornecimento de fármacos, quando embasada em fatos e fundamentos lícitos, demanda uma apreciação mais célere que uma revisional de contrato. Ainda assim, os sinais de esgotamento do modelo jurisdicional hoje presentes no cenário jurídico nacional levam a sociedade a um só consenso: o de que, apesar de se constituir de uma expressão com interpretação subjetiva, algo há de muito errado com a razoável duração do processo, pois so-mente o que se evidencia é o moroso trâmite processual no país.

No tocante ao tempo do processo, importantíssimo destacar o que assevera o jurista italiano Eligio Resta (2014, p. 19):

não saberemos jamais o que perdemos quando perdemos o tempo; por ou-tro lado, o tempo é um recurso não igualmente distribuído e isto significa que em um conflito o tempo que alguém perde é ganho pelo outro; e enfim, do ponto de vista não da ética pública, mas simplesmente da racionalidade social, é um empobrecimento coletivo o fato de que se desperdicem recur-sos, mesmo temporalidades, com bases rituais, simbolicamente significati-vas, grandiosas, mas inúteis e que não se pode efetuar.

Como síntese clara e objetiva do que até então foi analisado no presente tó-pico, é imperioso dar o merecido destaque ao que assevera Santos (2011, p. 26): “o método de decisão baseado num sistema adversarial depende de se preservar a memória dos fatos. Quanto maior o intervalo de tempo entre o fato e a aplicação do direito pelos tribunais, menor é a confiança na justiça da decisão”.

Constata-se então, o tempo como característica essencial à jurisdição, no en-tanto, diante dos indicadores apontados acima, bem como dos demais índices do relatório Justiça em Números 2013, resta cristalinamente demonstrada a incapaci-dade da Jurisdição de monopolizar a resolução dos conflitos. Neste sentido, ganha força a tendência de se desenvolver procedimentos jurisdicionais complementares como, por exemplo, a arbitragem, a mediação, a conciliação e a negociação. Tudo em busca da celeridade, informalização e pragmaticidade (SPENGLER, 2014, p. 26).

Seria possível aprofundar em detalhes o esgotamento do atual modelo, abor-dando aspectos relevantes como as definições de crise de identidade e crise de eficiência85, conforme propõe Spengler (2014), todavia o que se pretende propor é a reflexão sobre como o Advogado Público, em especial o Procurador do Estado possa dar sua contribuição para que o sistema venha a se tornar mais efetivo, so-cialmente sólido e confiável.

Em se tratando de justiça, seria por demasiado injusto imputar unicamente aos Procuradores do Estado a responsabilidade por salvar um modelo jurisdicional que demonstra sinais de colapso, no entanto, seja mediante a manutenção do atual

85 Para um aprofundamento maior acerca das dificuldades da jurisdição brasileira em responder aos conflitos sociais sugere-se o pri-meiro capítulo da obra: SPENGLER, Fabiana Marion. Retalhos de mediação. Mediação e conciliação. Técnicas e etapas. A resolução 125 do CNJ. Novo CPC brasileiro. Projetos de Lei do Senado. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2014. Disponível para download gratuito no portal: http://www.esserenelmondo.com/

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sistema, seja com a implementação de meios alternativos, há que se refletir sobre a importância de cada ator social, de cada operador do direito tomar consciência da necessidade de dar sua cota de contribuição para a construção de um sistema mais efetivo, ou mesmo para amenizar a obstrução do modelo hoje vigente.

Muito embora atualmente se busque formas alternativas de jurisdição – co-nhecidas também como ADR86 –, todas elas muito válidas, ou mesmo a implementa-ção de inovações tecnológicas ao modelo existente, como, por exemplo, o processo eletrônico, a opção por adotá-las não é de ingerência das Procuradorias Estaduais, mas sim da Administração Pública, ou seja, a iniciativa deve partir do Executivo, que já disponibiliza interessantes alternativas extrajudiciais como, por exemplo, a faculdade de efetuar o adimplemento da dívida ativa de forma parcelada.

Cabe aos Procuradores a tarefa de incentivar e/ou propor a adoção de cam-panhas para a solução extrajudicial de conflitos nos quais o Estado possa vir a ser parte, bem como tomar todas as medidas possíveis para dar celeridade aos feitos nos quais atuam, evitando a procrastinação imotivada dos mesmos.

Na realidade, é coerente afirmar que ao menos dois dos nascedouros da mo-rosidade que hodiernamente assola a jurisdição são representados pela excessiva judicialização e pela massificação da atividade advocatícia, resultado da informati-zação, que permitiu um crescimento quantitativo exponencial no número de pro-cessos, porém com um ônus desastroso: o considerável déficit qualitativo. Para Mo-rais, o acúmulo de demandas, a burocratização e lentidão dos procedimentos, além de questões relativas à linguagem técnico-formal utilizadas representam o que ele denomina de “crise objetiva ou pragmática” da jurisdição (2008, p. 62).

Em especial quanto ao fenômeno da judicialização, recentemente se manifes-tou o então Governador do Estado do Rio Grande do Sul Tarso Genro em entrevista ao Jornal da PGE-RS87, quando afirmou:

Na verdade, há um processo de judicialização da política no Brasil e de judi-cialização excessiva das demandas por direitos que poderiam ser resolvidas num plano mais dialógico do que através do contencioso judicial. Isso, na verdade, é uma etapa de maturação do Estado Democrático de Direito e que transita para uma situação de Estado Social de Direito. Ou seja, significa que as procuradorias, em geral, e a nossa, em particular, estão no centro de uma transição que precisa ser mediada de maneira eficiente e tecnicamente ela-borada para que nós possamos afirmar os princípios do Estado de direito e defender os direitos da cidadania.

Inegavelmente, a análise de ambos os nascedouros referidos acima – exces-siva judicialização e massificação da atividade advocatícia – parecem levar a uma

86 ADR é a sigla em língua inglesa utilizada para a expressão Alternative Dispute Resolution, movimento que tomou corpo nos Esta-dos Unidos na década de 1960, quando se iniciou a criação de processos alternativos às tradicionais formas até então existentes para a solução de litígios. Dentre as formas de ADR incluem-se, por exemplo, a mediação, a conciliação, a negociação e a arbitragem.

87 Jornal da PGE-RS, edição julho/dezembro de 2013. Versão digital disponível em: <http://www.pge.rs.gov.br/upload/jornal%20pge_03_01_14%202.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2014.

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única vertente: a mercantilização da atividade advocatícia no país.Neste diapasão, não incorrer nessa prática reprovável deve ser o objetivo de

toda atividade do operador do direito, não apenas dos Procuradores do Estado, ou dos demais Advogados Públicos. A advocacia privada também deve se conscienti-zar de que, se há número excessivo de demandas, e que todas as partes envolvidas têm o dever de se preocupar em favorecer o fluxo da atividade jurisdicional, há que se buscar uma atuação mais prática e sucinta, pois não parece haver mais espaço para se admitir discorrer em quarenta laudas acerca do que poderia ser exaurido em dez páginas de forma clara e objetiva.

Cabe também ao Procurador do Estado, buscar um estreitamento dos laços entre as Procuradorias e o Judiciário. Compete-lhe ainda atuar de forma conjunta com os Juízes responsáveis por cada comarca e demais servidores, imbuídos do in-tuito de identificar entraves à celeridade dos feitos e demais obstáculos à prestação jurisdicional, traçando planos de ação, lastreados na cooperação mútua, que visem sempre o interesse social e o bem comum.

Em que pese a atuação consciente, pautada na ética, transparência, no zelo profissional e no interesse coletivo vistos como características que a sociedade espera de um Advogado Público, ainda há mais que pode ser feito por ele. Apesar de já analisada boa parte dos vetores que apontam no sentido da importância das Procuradorias Gerais dos Estados para a manutenção do Estado Democrático de Direito, ainda é possível que existam, concomitantemente, outros fatores como a preocupação com a mais importante carta internacional de tutela da humanidade: a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

5. A Procuradoria Geral do estado enquanto Instituição engajada na defe-sa dos direitos humanos

Assumindo a vanguarda das Procuradorias Gerais dos Estados no país a PGE-RS foi a primeira – e até o momento a única – a criar uma Comissão Permanente de Defesa dos Direitos Humanos (CDH/PGE). Conforme o artigo 13 da Lei Complemen-tar nº 11.742, de 17 de janeiro de 200288, a comissão, integra o Gabinete da Pro-curadoria, sendo composta pelo Coordenador, dezenove Procuradores do Estado e três assessores jurídicos. Possui por objetivo orientar a atuação institucional nesta área. É composta por Procuradores do Estado representantes dos órgãos de execu-ção com funções especializadas em razão da matéria, de coordenação e integração e de pesquisa e documentação.

88 Lei Complementar nº 11.742, de 17 de janeiro de 2002. Dispõe sobre a Lei Orgânica da Advocacia de Estado, organiza a Procurado-ria-Geral do Estado, disciplina o regime jurídico dos cargos da carreira de Procurador do Estado e dá outras providências. Disponível em: <http://www.al.rs.gov.br/legis/M010/M0100099.ASP?Hid_Tipo=TEXTO&Hid_TodasNormas=1464&hTexto=&Hid_IDNorma=1464>. Acesso em: 20 mar. 2014.

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Além de tomar iniciativas em favor das minorias, interagir junto à Adminis-tração Pública e demais órgãos e instituições engajadas na defesa dos direitos hu-manos, a Comissão Permanente ainda promove palestras, debates e outros eventos que versam acerca da temática.

Quando indagado, em entrevista ao Jornal da PGE-RS89, acerca da importância da Comissão Permanente de Defesa dos Direitos Humanos, o Governador Tarso Genro asseverou:

Nossa Procuradoria está na vanguarda na adoção de medidas de promoção da Igualdade e Liberdade. Através da Comissão, encaminhamos medidas que garantem direitos às relações homo afetivas, por exemplo. Outro moti-vo de orgulho é o estabelecimento da cota racial no serviço público. É uma honra isso ter acontecido no nosso governo.

Como já abordado em tópico anterior, uma das responsabilidades das Procura-dorias Gerais dos Estados é a de prestar consultoria e assessoria jurídica ao Executivo a partir da análise de situações concretas, ao final apresentando parecer técnico-jurí-dico acerca dos fatos avaliados. Ocorre que tais consultorias inclusive podem versar sobre questões extremamente atuais, polêmicas, e diretamente ligadas à temática dos direitos humanos. Neste sentido, tome-se como exemplo, o Parecer nº 15.70390, que fixa orientações para a Administração Pública Estadual no tocante à implementa-ção de política afirmativa de cotas raciais no serviço público estadual.

O Parecer, de autoria do Procurador do Estado do Rio Grande do Sul, Dr. Carlos César D’Elia, foi elaborado no âmbito da Comissão de Direitos Humanos da PGE-RS, constituindo-se em exemplo ímpar de orientação jurídica ao Poder Público, tendo merecido a seguinte manifestação do Procurador-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, Dr. Carlos Henrique Kaipper (PGE-RS, 2012, p. 07):

A PGE, por sua Comissão de Direitos Humanos, faz um exaustivo exame da matéria, levando em conta os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, as Constituições Federal e Estadual, legislação infraconstitucional, doutrinas e jurisprudência. O Parecer faz referência, ainda, aos 350 anos de escraviza-ção e à forma como foi erradicada, à continuação da desigualdade material entre negros e não-negros e ao mapa da desigualdade racial em vários cam-pos: educação, trabalho e renda, saúde, analfabetismo, pobreza, riqueza, cargos de chefia ou de status social.

Outro parecer que merece destaque no tocante à seara dos direitos humanos é o Parecer nº 15.49491, igualmente elaborado pela Comissão Permanente de Direi-tos Humanos da PGE-RS, ao qual foi atribuído caráter jurídico-normativo pelo Go-

89 Jornal da PGE-RS, edição julho/dezembro de 2013. Versão digital disponível em: <http://www.pge.rs.gov.br/upload/jornal%20pge_03_01_14%202.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2014.

90 Parecer nº 15.703 da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul, publicado na revista Estudos de Direito PGE-RS, dispo-nível na íntegra em: <http://www.pge.rs.gov.br/upload/estudos%20de%20direito2%2015%20x%2021.pdf>. Acesso em 20 mar. 2014.

91 Parecer nº 15.494 da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/parecer-pge-gaucha-reconhece-direitos.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2014.

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vernador do Estado em agosto de 2011, tendo passado a valer como norma 90 dias após sua publicação oficial. Tal parecer técnico aborda a necessidade de fixação de nova orientação à Administração Pública opinando pela extensão de benefícios previdenciários à companheira ou ao companheiro em união estável homossexual, equiparando-a à união heterossexual.

Exemplifica-se, assim, não apenas a preocupação desta importante Ins-tituição, mas sua participação ativa e efetiva na tutela dos direitos humanos e, consequentemente, no interesse coletivo dos cidadãos do estado do Rio Grande do Sul.

Criou-se, ainda, o Site Direitos Humanos92 em uma iniciativa conjunta das Procuradorias Estaduais do Rio Grande do Sul e São Paulo – PGE-RS e PGE-SP. O sí-tio eletrônico contempla conteúdos como legislação, jurisprudência, bibliografia e doutrina, com vistas a facilitar o acesso à informação e o aperfeiçoamento da prática e defesa dos direitos humanos. Cabe aqui, igualmente, destacar o traba-lho da Procuradoria de Informação, Documentação e Aperfeiçoamento Profissional (PGE-RS/PIDAP) da PGE-RS, responsável pelo trabalho de instrumentalizar iniciativas como esta, além de outras tantas atividades em favor do interesse coletivo, como a capacitação dos Procuradores do Estado, a realização de pesquisas avançadas na área jurídica, com o fim de subsidiar os trabalhos jurídicos e a atuação profissional dos Procuradores, bem como a administração da Biblioteca Laura Oliveira Corrêa, cujo acervo conta com mais de 15.000 obras disponíveis, inclusive para consulta ao público em geral.

Recentemente o Governo do Estado do Rio Grande do Sul anunciou a criação, pelo Decreto nº 49.651 de 02 de outubro de 201293, de um Grupo de Trabalho (GT), coordenado pela PGE-RS, sob a condução da Comissão Permanente de Defesa dos Direitos Humanos, composto também por Secretarias de Estado e pelo Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI), com a finalidade de estudar soluções amplas e efetivas para os processos que versam sobre a demarcação de terras indígenas no Rio Grande do Sul.

São iniciativas como esta que comprovam que ainda há uma luz no fim do túnel, um caminho a ser seguido em favor da humanidade. Caminho esse que, em um futuro próximo, poderá levar a condições que remontem ao almejado Estado de Bem-Estar Social, onde sejam desenvolvidas iniciativas – públicas ou privadas –, ações, programas, e políticas públicas que evidenciem a todos que os três Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – estão andando juntos com a sociedade rumo ao bem comum.

92 O Site Direitos Humanos está disponível em: < http://www.dh.rs.gov.br/welcome.html>. Acesso em: 20 mar. 2014.

93 Decreto nº 49.651 de 02 de outubro de 2012. Institui Grupo de Trabalho com a finalidade de elaborar estudos e levantamentos para solução ampla relativamente a demarcações de Terras Indígenas no Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: http://www.al.rs.gov.br/legis/M010/M0100099.ASP?Hid_Tipo=TEXTO&Hid_TodasNormas=58410&hTexto=&Hid_IDNorma=58410. Acesso em: 20 mar. 2014.

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6. À guisa de conclusão

Haja vista que o Brasil, país de dimensões continentais e extrema desigualda-de social, adota a forma de Estado Federativo e o modelo de Estado Democrático de Direito, é correto concluir que os pilares formados pelos Poderes Legislativo, Execu-tivo e Judiciário são fundamentais para o funcionamento deste complexo sistema.

De igual maneira, as instituições e demais órgãos que compõem cada uma destas pilastras devem estar muito bem estruturadas e em sintonia umas com as outras com vistas ao funcionamento ideal do Estado.

Dentre essas importantes Instituições, cumpre destacar o essencial papel das Procuradorias Gerais dos Estados, eis que a atuação correta e equilibrada das mesmas é elemento chave para a integração das políticas de Estado com o direito vigente, contribuindo, assim, com a sustentação de todo o sistema. Ao zelar para que a execução dos atos da Administração Pública esteja sendo realizada em con-sonância com a lei, as Procuradorias Estaduais minimizam – ou mesmo evitam – a necessidade de intervenção judicial, fechando um ciclo utópico entre Executivo, Legislativo e Judiciário, e estreitando, assim, os laços entre eles.

Além de prestar os serviços de assessoramento e consultoria jurídica ao es-tado-membro ao qual pertencem, representando-o judicial ou extrajudicialmente, as Procuradorias Gerais dos Estados possuem essa importante função de efetuar o controle da legalidade e eficiência dos atos da administração pública.

Diante desse contexto não há como não concluir pela essencialidade das PGEs para a manutenção de um Estado Democrático de Direito, eis que atuam pau-tadas pela tutela do interesse público, cumprindo a fundamental tarefa de majorar receitas e minorar despesas. Por intervir diretamente na arrecadação dos estados-membros, são responsáveis por relevantes reflexos orçamentários, que possibilita-rão maiores investimentos destinados às políticas públicas.

Destaca-se, igualmente, o relevante papel dos Procuradores do Estado, ope-radores do direito norteados pela defesa dos interesses coletivos, comprometidos com a legalidade enquanto caminho de realização constitucional. Figuras reconhe-cidas como essenciais à realização da Justiça, sempre preocupadas com a efetiva-ção do bem comum, possuem em seu labor a essência da democracia.

Atores sociais que desempenham suas funções e precisam se adaptar a um con-texto no qual o esgotamento do modelo jurisdicional evidencia uma “necessidade de desburocratização/desformalização, de aproximar a justiça do cidadão comum, de tor-ná-la acessível e democrática e de dar a esse cidadão mais autonomia para tratar seu conflito” (SPENGLER, 2014, p. 30), os Procuradores do Estado podem ser considerados como importantes peças para a construção de uma nova realidade, seja através de uma atuação consciente, pautada na adoção de todas as medidas possíveis para contribuir com a celeridade dos feitos nos quais atuam – evitando a procrastinação imotivada –,

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seja na busca do estreitamento dos laços entre as Procuradorias e o Judiciário, e porque não dizer entre o Executivo estadual e o Judiciário, visando tutelar o interesse social.

Por fim, demonstra-se que, além das diversas atribuições essenciais que já pos-suem, as Procuradorias Gerais dos Estados ainda se apresentam como Instituições preo-cupadas e conscientes da urgência de serem criadas iniciativas em favor da efetivação dos direitos humanos nos termos em que foram consagrados na Declaração de 1948.

Nos últimos anos foi disseminada uma importante cultura que preza pela humanidade, desenvolveram-se iniciativas que hodiernamente se manifestam, por exemplo, através da atuação exemplar da Comissão Permanente de Direitos Hu-manos (CDH/PGE) da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul, e de suas inúmeras frentes de batalha em favor das minorias.

Diante do exposto, parece saltar aos olhos a confirmação dessa essencialidade das Procuradorias Gerais dos Estados – através da atuação de seus Procuradores – para a efeti-vação, não apenas do Estado Democrático de Direito, mas também dos direitos humanos.

Incontroverso o fato de que a realidade atual ainda está consideravelmente distante do ideal que a sociedade almeja, entretanto, é comum que qualquer trans-formação careça de tempo para se concretizar. Para tanto, é urgente que cada cida-dão, órgão, instituição ou ente da Administração Pública faça a sua parte.

Para que essa mutação ocorra, mediante a implementação dos direitos hu-manos em todas as searas da vida cotidiana, faz-se necessária a compreensão da necessidade de uma ação jurídica fundamentada em uma prática comprometida e engajada, na qual a Constituição não seja apenas uma folha de papel, mas um ins-trumento político-jurídico efetivo para a construção de uma sociedade justa e soli-dária, norteada pela tutela da dignidade humana (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 27).

Assim, é possível asseverar que o caminho trilhado pelas Procuradorias Estaduais deve ser tomado como exemplo para que se nutra em toda a nação o desejo pela efetivação da democracia e do direito no país. Analisando a lição de Bobbio, pode-se dizer que, não apenas a Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas todas as formas de luta em favor desses direitos basilares são “apenas o início de um longo processo, cuja realização final ainda não somos capazes de ver” (2004, p. 26), muito embora seja indispensável acreditar.

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Cap. 7 - A essencialidade da Procuradoria Geral do Estado para o Estado Democrático de Direito

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Priscila Tahisa Krause

122

OS AUTORES

Fabiana Marion spengler possui graduação em Direito

pela Universidade de Santa Cruz do Sul, mestrado em Desen-

volvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul. É

doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos

e pós-doutora pela Universidade degli Studi di Roma Tre. Atual-

mente é professora adjunta da Universidade de Santa Cruz do

Sul lecionando na graduação as disciplinas de Direito Civil - Fa-

mília, Processo Civil I, Mediação e Arbitragem, e na pós-gradua-

ção junto ao Programa de Mestrado e de Doutorado em Direito

as disciplinas de Políticas Públicas no Tratamento de Conflitos

e Políticas Públicas para uma nova jurisdição. É professora co-

laboradora da Universidade Regional do Noroeste do Estado do

Rio Grande do Sul, lecionando na graduação as disciplinas de

Direito de Família e Direito da Mediação e da Arbitragem e na

Pós-graduação junto ao Programa de Mestrado em Direitos Hu-

manos a disciplina de Sistemas de Justiça e suas Instituições.

Publicou diversos livros e artigos científicos. Desenvolveu ativi-

dades de consultora junto ao Programa das Nações Unidas para

o Desenvolvimento, no âmbito do projeto BRA/05/036 execu-

tado pela Secretaria de Reforma do Judiciário ligada ao Minis-

tério da Justiça. É líder do grupo de pesquisa “Políticas Públicas

no Tratamento dos conflitos”, certificado pelo CNPQ. É também

presidente do núcleo municipal de Santa Cruz do Sul do Insti-

tuto Brasileiro de Direito de Família. Recebeu Menção Honrosa

no Prêmio Capes de Teses 2008. Recebeu o primeiro lugar no

Prêmio SINEPE/RS 2010 na categoria “Responsabilidade Social”

pelo projeto de extensão em Mediação.

Giancarlo Montagner Copelli é Bacharel em Filosofia

pela Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul e especialis-

ta em Ética e Filosofia Política pela AVM Educacional. Mestrando

em Direito – Área de Concentração em Direitos Humanos – da

Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do

Sul – Unijuí. Integrante do Núcleo de Educação e Informação

em Direitos Humanos - NEIDH/Unijuí, vinculado ao Programa de

Pós-Graduação em Direito da mesma universidade. Membro do

Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos, Relações Internacionais

e Equidade”, vinculado ao CNPq, atuando na linha de pesquisa

“Globalização, Interdependência e Direitos Humanos”. Bolsista

da Fundação de Integração, Desenvolvimento e Educação do

Noroeste do Estado – FIDENE/Unijuí.

123

Márcia silvana Felten é Bacharela em Direito, Especia-

lista em Direito Processual Civil e Mestranda – Área de concen-

tração Direitos Humanos – em Direito pela Universidade Regio-

nal do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí. Bolsista

da Fundação de Integração, Desenvolvimento e Educação do

Noroeste do Estado – FIDENE/Unijuí. Advogada.

Gabriel de Lima Bedin é Bacharel e Mestre em Direito

pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Gran-

de do Sul - Unijuí. Advogado.

Queli Cristiane schiefelbein da silva é Bacharela e

Mestra em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do

Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí, Especialista em Ciências

Penais pela Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul e

Técnica Judiciária da Justiça Federal onde exerce a função de

Supervisora da Unidade Avançada de Atendimento da Justiça Fe-

deral em Ijuí/RS.

Marcelo dias Jaques é Bacharel em Direito pela Uni-

versidade Luterana do Brasil – ULBRA. Especialista em Direito

Público com ênfase em Direito Constitucional pela Escola de En-

sino Superior Verbo Jurídico. Mestrando em Direito – Área de

concentração Direitos Humanos – pela Universidade Regional

do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí. Bolsista

da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande

do Sul – FAPERGS. Membro do grupo de pesquisa (CNPq): Direi-

tos Humanos, Relações Internacionais e Equidade. Integrante do

Núcleo de Educação e Informação em Direitos Humanos - NEI-

DH/Unijuí, atividade de extensão do Programa de Mestrado em

Direitos Humanos da Unijuí. Associado ao Conselho Nacional

de Pesquisa e Pós Graduação em Direito – CONPEDI. Advogado.

Pablo rodolfo Nascimento Homercher é Bacharel

em Direito e Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela

Universidade de Cruz Alta – UNICRUZ, Mestre em Direito pela

Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do

Sul – Unijuí. Advogado.

Priscila Tahisa Krause é Bacharela em Direito pela

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS,

Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul.

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