o significado dos mitos na civilizaÇÃo grega

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11111,1 \ o SIGNIFICADO DOS MITOS NA CIVILIZAÇÃO GREGA MARIA CHRISTINA DE CALDAS FREIRE ROCHA' Mythos e lógos são palavras que significaram linguagem, relato ou narrativa, indiscriminadamente, até o século VII. a.C., século que representou um marco na civilização grega, pois nele realizaram-se transformações, em movimentos liberados desde o século XII a.C., segundo uns, ou desde o século VIII a.C., segundo outros', que resultaram na criação da pólis. A pólis não se instituiu apenas pelo nascimento de uma vida política, ou pelo aparecimento de um espaço público, distinto do privado, mas também pela emergência de um novo universo espiritual, expressado pela palavra e constituído pela laicização da vida, da lei, da terra e do conhecimento." . No século VIII a.C. processara-se a segunda colonização grega, que alargou o espaço do universo do homem e o levou a tentar explicar o mundo que passou a conhecer. O pensamento pré-socrático buscou a explicação do Cosmos e usou para isso a razão, instrumento agora usado na compreensão de um mundo criado pelos deuses, o que provocou a ascensão do homem ante esses deuses, pois, se o Cosmos fora criado pelos deuses, o homem pudera compreendê-Io pela razão. O racionalismo grego "discutiu" os mitos, criou as bases do pensamento científico e atingiu todos os níveis do universo humano, no Estado-pólis, desde a relação Saber-Verdade, à Lei, tornada dessacralizada, a Dike. O conhecimento, dissociado do direito e da religião, Professora da UFRJ/UERJ. 1Quanto aos movimentos que levaram à formação da pólis, Claude Mossé os identifica no séc. VIII a.C. in: As Instituições Gregas, Lisboa, Ed. 70, 1985, p.1. Mas Henri Van Effanterre identifica-os no séc. XII a.C., in: La Cité grecque, des origines à Ia défaite de Marathon, Paris; Hachelte, 1985, p. 47. 2VERNANT, J. P. Origens do pensamento grego. São Paulo: Difel, 1972. capo 4, p. 34-37. BIBLOS, Rio Grande, 6:59.67, 1994. 59

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Page 1: o SIGNIFICADO DOS MITOS NA CIVILIZAÇÃO GREGA

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o SIGNIFICADO DOS MITOS NA CIVILIZAÇÃO GREGA

MARIA CHRISTINA DE CALDAS FREIRE ROCHA'

Mythos e lógos são palavras que significaram linguagem, relatoou narrativa, indiscriminadamente, até o século VII. a.C., século querepresentou um marco na civilização grega, pois nele realizaram-setransformações, em movimentos liberados desde o século XII a.C.,segundo uns, ou desde o século VIII a.C., segundo outros', queresultaram na criação da pólis.

A pólis não se instituiu apenas pelo nascimento de uma vidapolítica, ou pelo aparecimento de um espaço público, distinto do privado,mas também pela emergência de um novo universo espiritual,expressado pela palavra e constituído pela laicização da vida, da lei, daterra e do conhecimento." .

No século VIII a.C. processara-se a segunda colonizaçãogrega, que alargou o espaço do universo do homem e o levou a tentarexplicar o mundo que passou a conhecer. O pensamento pré-socráticobuscou a explicação do Cosmos e usou para isso a razão, instrumentoagora usado na compreensão de um mundo criado pelos deuses, o queprovocou a ascensão do homem ante esses deuses, pois, se o Cosmosfora criado pelos deuses, o homem pudera compreendê-Io pela razão.

O racionalismo grego "discutiu" os mitos, criou as bases dopensamento científico e atingiu todos os níveis do universo humano, noEstado-pólis, desde a relação Saber-Verdade, à Lei, tornadadessacralizada, a Dike.

O conhecimento, dissociado do direito e da religião,

Professora da UFRJ/UERJ.

1Quanto aos movimentos que levaram à formação da pólis, Claude Mossé osidentifica no séc. VIII a.C. in: As Instituições Gregas, Lisboa, Ed. 70, 1985, p.1. Mas HenriVan Effanterre identifica-os no séc. XII a.C., in: La Cité grecque, des origines à Ia défaitede Marathon, Paris; Hachelte, 1985, p. 47.

2VERNANT, J. P. Origens do pensamento grego. São Paulo: Difel, 1972. capo4, p. 34-37.

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transformou-se em Sophia, passando a ser o que fosse compreensívelpela razão, inteligível e comprovável pelo real concreto. L6gos passoua ser razão, e seu discurso, aquele que "revelava" a verdade. Mythos,despojado de todo valor metafísico, tornou-se contraposto ao L6gos eà história, e se transformou no discurso "do que não pode existir, aresposta que é dada de forma não-racional, de uma maneira simbólica.Continuou a significar narrativa, mas aquela cujo conteúdo não possuiracionalidade. Seu discurso adquiriu um sentido latente e disseminado:o da narrativa simples e linear, através da qual solucionam-se e semediam antinomias irreconciliáveis. Seu objetivo não seria o de revelar,mas o de tornar as verdades que encerrasse veladas, devendo, paraque fossem compreendidas, ser desveladas. Dessa forma, o mitotransformou-se no meio através do qual a sociedade passou a expressaro que não devia ser revelado, em forma representativa, simbólica.

O homem, vivendo em sociedade, procura a Ordem, a que osgregos denominavam Eunomia, a boa ordem. Um Estado-Pólis em suaconstituição espacial, como Atenas, era constituído pela integração decentros rurais e urbanos, reunidos pelo Sinoecismo. A Ordem erafundamentada em regras-normas, isto é, em mecanismos de interdiçãoe de prescrição. As regras de interdição determinavam o que não podiaser dito-praticado-sentido-pensado; as regras de prescrição, o que podiaser dito-praticado-sentido-pensado, em benefício do equilfbrio doindivíduo e do equilíbrio social. Esse conjunto de regras-normascorrespondia ao produto do esforço de adaptação do homem à Cultura,sendo estas, portanto, construídas, não-naturais. Essa adaptação-educação criava, nos indivíduos e na própria sociedade, reaçõesinconscientes a essas regras-normas de interdição, que eramcoercitivas. O Lógos, a serviço da Cultura, revelava o que podia e deviaser dito-praticado-sentido-pensado, mas o mito funcionava como umaválvula de escape, descrevendo velada mente o que não podia ser dito-feito-sentido-pensado claramente, mas estava vivo no inconscientesocial. Dessa forma, o Mythos ligava o homem ao que é natural, àPhysis e ao Cosmos, enquanto o Lógos o enquadrava na Cultura. Masé preciso que se ressalte e se enfatize que o Mythos só se tornasignificativo, hoje, para quem o aborda, na medida em que for colocadono contexto social em que fora criado. "Os mitos não podem sercompreendidos se forem isolados da vida dos homens que os relatam.Mesmo tendo, cedo ou tarde, uma carreira literária, não são invenções

3ELlAOE, M. Mito e Realidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1972. p. 8.Também traduzido pela Ed. 70, sob o título Aspectos do Mito, Lisboa, 1986.

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Ifricasou dramáticas gratuitas, sem relação com a organização social,política ou ritual, como as leis ou o costume: sua função é, ao contrário,justificá-Ios e exprimir, em imagens, as grandes idéias que os sustentame organizam", diz Georges Durnézil". Trata-se da "verdadeira história dassociedades arcaicas", precisa, "por seu caráter sagrado, exemplar esignificativo".5

O mito, para os gregos, enquanto ligado à experiênciareligiosa, não era concebido como fora da realidade, mas era a própriarealidade, consagrada pelo rito. O rito constituía-se na repetição de umfragmento do "tempo primordial", quando os deuses agiram e quandotudo era possível. Esse "tempo primordial" servia de modelo aopensamento mítico e devia ser repetido sem cessar, através do rito.Através do rito é que se inseria, na vida social, a confirmação dacosmogonia, ou da hierofania, ou da teofania, enfim, de toda a ação dosdeuses. O mito explicava o rito e o rito realizava o mito, que retinha areminiscência de uma ordem universal primeira, em que se engendraraa textura da vida presente, constituindo-a e justificando-a. Os ritos eramgestos que reiteravam "o ato original". Quando reunidos de formaintegrada, constitulram-se no ritual. Dessa forma, os mitosapresentavam-se atemporais e desprovidos de racionalidade.

Maria Delcourt" propõe uma explicação para a criação dosmitos, partindo dos ritos, que tinham função precisa e determinada, naestrutura religiosa arcaica grega. As práticas rituais proporcionaramenriquecimento e maior complexidade a esses mitos. Alguns foramconservados, outros modificados e ainda outros dissociados de seucaráter origihal. Finalmente os ritos passaram a ser explicados comosendo um comando divino. Progressivamente passaram a deixar deestar ligados ao desejo dos homens e foram acoplados à história de umdeus, ou de um herói divinizado, os quais eram invocados por episódiosa eles ligados, na prática ritual. O mérito maior dessa explicação resideno fato de ser excluída qualquer noção de gratuidade na produção tantodos ritos quanto dos mitos, sendo que tanto uns como outros teriam sidocriados em função de necessidades e comandados por uma economia."

Os mitos gregos têm características especiais porque foram

p. 1-1:l.

40UMÉZIL, G. Mythe et Epopée I. Paris: 1968. p. 10.5ldem, ibidem, p. 7.

60ELCOURT, M. Légendes et cultes des héros en Grêce. Paris: P.U.F., 1942.

7GREEN, A. Un oei! em trop. Le complexe d'OEdipe, dans Ia tragédie. Paris:Ed. du Minuit, 1969. p. 224.

BIBLOS, Rio Grande, 6:59-67,1994. 61BIBLIOTECABiblioteca de Cl6nol••

Humanas o Educa~O

da UFPr.

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inseridos num sistema de crenças a que nenhum dogmatismo fixourigidamente. Jacqueline de Romilly chama a atenção para asingularidade dos mitos gregos, que transformaram as histórias, oumelhor, os primórdios das histórias relatadas, através dos mitos,especialmente dos que trata a tragédia que os humanizou: se os deusesaí ainda estavam inseridos, estavam como poderiam estar em qualqueraventura humana.

Aristóteles afirma que o mito é construído por uma narrativaordenada que tem começo, meio e fim, especialmente os que denomina"mitos complexos", que seriam os da temática das tragédias - portanto,os mitos heróicos". A religiosidade dos chamados "povos primitivos" nãose confina no mito, mas acha-se disseminada por toda parte, no vivido,na existência, na experiência, e se baseia na categoria afetiva dosobrenatural. O mito grego não tinha essa conotação animista, mística.É claro que o mito é objeto de ínvenção''. Porém, os que tratamos, oschamados mitos heróicos, estabeleceram-se sobre um fundo de históriasligadas pela tradição, em relatos que chegaram a se tornar verdadeiros"mitos", a fim de persuadir a todos e servir às leis e interesses comuns,como diz, mais uma vez, Anstóteles."

Um mito grego podia ser um relato sobre um deus ou umherói. Tratando-se de um deus, havia a possibilidade de quepermanecesse intacto. Mas, tratando-se de um herói, o relato inicialpassava a ser subordinado à biografia desse herói, passando de mitoa lenda. Uma lenda grega que tenha permanecido até nossos dias echegado a nosso conhecimento é sempre apresentada em formapoética, assinada por muitos autores, aparecendo, em sua forma última,como uma "obra literária", de um determinado autor, em determinadaépoca. Isso não concorre para sua invalidação como mito, pois nãoperdeu seu núcleo original; e ainda transforma a "obra literária" emimportante documento para o contexto do autor, ou de cada um deseus autores. É, portanto, uma abstração falar-se do mito de Édipo oudo mito de Helena. Pode-se falar, sim, do mito de Helena segundoHomero (séc. VIII a.C., tornado escrito no século VI a.C.)11, ou segundoEurípides (séc. V a.C.)12; ou Édipo segundo Pausânias (séc. \I d.C.), ousegundo Ésquilo (467 a.C.) ou segundo Sófocles (420 a.C. e 409 a.C.),

8ARISTÓTELES. Poética VII, 1450b, p. 26-33.

9ARISTÓTELES. Poética VII, 1453b, p. 25.

10ARISTÓTELES. Poética VII, 1453b, p. 17-22.

11MOSSÉ, Claude. op. cit, p. 10.

12Em 412 a.C.

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ou segundo Apollodoro (séc. 11 a.C.).Um poeta não se sentia obrigado a retomar a versão do mito

aceita antes dele, especialmente se desejasse discutir a figura do heróisob determinado ângulo, para tirar dos fatos uma outra moral, como foio caso de Sófocles. Quando termina a tragédia Édipo-Rei, Édipo éapresentado como um homem moço. Quando o autor retomou o temado herói, em Édipo em Cofona, do ponto em que terminara a obraanterior, Édipo é apresentado como um homem velho, próximo à morte.Isso nos leva a meditar que, durante os anos que separam uma obra daoutra, quem envelheceu e estava próximo à morte, ao escrever Édipoem Cofona, era Sófocles que, nascido em 495 a.C., escreveu Édipo-Reicom 75 anos (420 a.C.) e Édipo em Cofona, aos 86 anos (409 a.C.), emorreu em 405 a.C ..

Em matéria de invenção religiosa, os gregos não passaram dafase criadora 13, uma vez que não procuraram apagar a autoria humanade seus mitos, como outras sociedades, que fizeram seus deusesprovirem de contextos çliferentes dos do homem, ou fazendo-os vir "defora" ou "do alto", transformando seus mitos e ritos em mensagensdivinas. Os gregos tiraram de seus relatos e de seus mitos todo ocaráter dogmático, o que não quer dizer que se tornassem desprovidosde substância religiosa."

Os mitos foram construídos sobre a matéria-prima das liturgiasarcaicas, dos costumes e das práticas rituais. Mas, como já foi dito,passaram por outras versões, modificadas, porque mais satisfatórias queas anteriores, para o espírito cultivado.

Na Grécia, o culto dos heróis tinha caráter religioso e cívico,o que explica, muitas vezes, a rivalidade entre esses heróis. Bastavaque houvesse um rompimento de aliança entre cidades, por exemplo,para que um herói fosse banido' de uma delas. É o caso de Adrasto ,sogro de Polínices, que Clístenes, tirano de Sícione (595-560 a.C.),baniu, quando entrou em guerra contra Argos. Em honra de Adrasto éque se celebravam, em Sícione, os "coros trágicos", que Heródotoidentifica como originários da tragédia. Clístenes, como represália contraArgos, baniu Adrasto dos cultos e o substituiu por Melanippo, quecombateu ao lado de Etéocles, irmão-inimigo de Polínices e defensor deTebas contra Argos. As festas passaram a ser realizadas em honra deMelanippo e os "coros trágicos" em honra de Dionisos. Tanto Etéocles,filho de Édipo, .corno Dionisos eram de origem tebana, uma vez que

130ELCOURT, Marie, op. cit., p. 3.

14ldem, ibidem, p. 6 e 7.

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Dionisos era neto de Cadmo, por Sêmele - Zeus, o fundador de Tebas.pode-se, portanto, notar a importância e a influência que

tinham esses cultos tutelares para as cidades. Guardar o túmulo de umgrande morto representava guardar sua força e adquirir um aliado. Noséculo 11 a.C. o culto dos heróis serviu de bandeira a manifestaçõespolíticas, uma vez que o grego honrava um herói por sua força epotência. Dessa forma um morto era temido pela força que guardava naterra, sob o seu túrnuto". Para que essa força revertesse em beneficioda cidade ou da família, necessário fazia-se que homenagens fossemprestadas adequadamente a ele, através de oferendas junto a seutúmulo.

Essa era uma doutrina eminentemente aristocrática. Desde 476a.C., na 118 Olímpica de Plndarc" apareceu uma nova doutrina,inspirada em idéias outras, opostas aos sentimentos do povo. A almaimortal seria divina e julgada após a morte. Se pecadora, sofreriatormentos; se piedosa, continuaria sua existência entre os bem-aventurados, mas deveria voltar a reanimar outro corpo e em seguidaum terceiro. Se se conseguisse manter pura, após esta últimareencarnação, seria associada a um sábio, a um rei ou a umconquistador, depois do que seria liberada do ciclo dos nascimentos ereencarnações e honrada pelos homens como potência heróica. Essadoutrina conciliava-se com a antiga crença aristocrática dos heróis. Sóos grandes é que seriam honrados, e essa grandeza fora adquirida porméritos anteriores, no período aristocrático. Nessa doutrina podemos veruma influência do pensamento dos pitagóricos.

Herdeiros das crenças órticas na metempsicose, ospitagóricos 17 sustentavam que a verdadeira substância é a alma imortal,distinta do corpo, ao qual preexiste e no qual se encarna, como numaprisão ou num túmulo, como um castigo pelas culpas de existênciasanteriores. A alma deve percorrer várias existências; mas, conhecendoa Lei e praticando a Justiça, pode-se libertar do "ciclo dos nascimentos"e recuperar a liberdade e a felicidade a que tem direito de aspirar,graças à sua Natureza Divina. Concentram, portanto, a convicção na

15ldem, OEdipe et les Mythes de conquête. Paris: Belies-Lettres, 1981.

16131 e 133.

17Há grande dificuldade para o conhecimento da personalidade dePitágoras. Já a partir de Empédocles (frag. 129) é apresentado como sobre-humano.Heródoto associa seus ensinamentos aos milagres do trácio Zalmoxis, e a hesitação deAristóteles em não pronunciar seu nome, mas apenas falar em "pitagóricos", parece-nosque, para ele, Pitágoras parecia uma figura nebulosa. Ct. Leon Robin, in: La PenséeGrecque, Paris, Renaissance du Livre, 1923. p. 59.

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imortalidade da alma e a aspiração de felicidade, para o que serianecessária a prática de determinados modos de vida e a purificação,pela contemplação intelectual, elementos eminentemente aristocráticos.

A inspiração religiosa dos pitagóricos, no século VI a.C.,afastava-se tanto do otimismo prosaico dos rnilésios quanto da piedadearistocrática dos poemas homéricos, pois tanto uns quanto outrosconsagravam um sólido amor à vida perecível, sem qualquer inclinaçãoà consagração de uma imortalidade bem-aventurada, de caráterespiritual. No século VI a.C. essas idéias foram absorvidas pelaaristocracia, que as refinou. A vida terrestre passou a ser um tempo deprovação: ao homem restava esforçar-se para se "assemelhar ao divino",a fim de escapar ao ciclo das nascimentos, Convinha, pois, cultivar amoderação, a ordem e o equilíbrio. Essa noção de harmonia para ospitagóricos estendeu-se a partir do Cosmos, numa religião aritmológica,que retomou velhas tradições da magia dos números, A justa proporção,a harmonia, concilia componentes que, se abandonados a si próprios,opor-se-iam violentamente. O ponto principal, portanto, é o da existênciade duas espécies de polaridades bem distintas: como o mais e o menos,ou o agudo e o grave. Há pares de opostos harmonizáveis e em conflito,e sua desordem apenas se manifesta se a medida não Ihes é imposta;formam, pois, juntos, numa oposição desta vez fundamental, um sótermo, o indeterminado, o AP~RION, submetido à ação benéfica epacificadora de um termo superior, o limite, A partir da fixação doindeterminado pelo limite é constituído o Cosmos e tudo o que eleabraça. O limite ou unidade suprema instaura a universal afinidade entreas coisas."

Sobre esses princípios meditaram Empédocles 19 e Platão. Seos pitagóricos ensinavam que os seres existem por imitação dosnúmeros, para Platão existiam enquanto participantes das Idéias, dasquais não passam de cópias em reprodução imperfeita. Todavia, se oser das coisas não está dentro, mas fora delas, como apreendê-Io? Asolução acha-se na Teoria da Rerniruscência'". Em existência anterior,antes de se unir ao corpo, a alma contemplou as idéias no tóposourenos. Encerrada no corpo, delas se esqueceu, uma vez que o corponão é instrumento, mas obstáculo ao conhecimento. A experiência

18Cf. BERNHARDT, J. A filosofia pagã: do séc, IV a.C. ao séc. lil d.C. Riode Janeiro: Zahar Ed., 1973. p. 32.-33.

19 •ROHDE, E. Phyché. Fibrourg: 1843. p.431-446. Trad. francesa.

2OCf. ROBIN, Léon. La Pensée Grecque. Paris: Renaissance du Livre, 1923,p. 221 e sego (Col. L'Evolution de I'Humanité).

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sensível proporciona apenas a oportunidade e o estímulo para que aalma recorde-se das idéias contempladas nas vidas pretéritas. Para ohomem, portanto, conhecer não é ver o que está fora dele, mas lembrar-se do que se encontra dentro dele, adormecido na alma.

É interessante observar o culto dos heróis no séc. V a.C.,quando adquiriu condições especiais. A melhor fonte para este estudosão as tragédias. Seus autores, como uma reação ao pensamento dospitagóricos, como cidadãos que eram da Democracia, não heroificaramseus personagens, mas os humanizaram. Ésquilo não atribuiu honraheróica a qualquer de seus personagens. Sófocles apenas dignificouÉdipo, em Colona, mas em benefício de Atenas. Já Eurípides heroificoualguns personâgens. Mas se o fez não foi em função de méritosadquiridos devido à sua potência ou em função de suas reencarnaçõesanteriores. Se o fez, foi para valorizar as qualidades morais dessespersonagens, cujas virtudes não eram explicadas por seu passado. Nastragédias gregas, de 430 a 405 a.C., as honras são dadas: aos filhos deMedéia, aos chefes da expedição contra Tebas, a lfigênia, a Amphictião,a Helena, a Neptólemo, a Orestes e a Édipo. Essas honras são-Ihesdadas não por seus méritos ou virtudes, mas por suas provações. Sãomártires. São vítimas.

Outra questão importante é a de que os autores das tragédiasdemonstram e revelam xenofobismo em suas manifestações deAticismo. A guerra do Peloponeso, seus desastres e suas ruínasprovocaram esse Aticismo, o que, por sua vez, estimulou a vida religiosaateniense, na medida em que representou um sentimento cívico.Eurípides e Sófocles agiram do mesmo modo que Clístenes de Sícione,quando expulsou Adrasto e seu culto de Argos.

Para um grego do povo, ou mesmo no pensar de Eurípides, aúnica maneira de recompensar dignamente a virtude era a felicidadeterrestre, conseguida por essa virtude. Senão, o morto seria um mortoinsatisfeito, a quem se necessita aplacar através de um culto, a fim deque se tornasse o protetor dos que estavam à sua volta, e não operseguidor.

Édipo, em Colona, recusou aos filhos amaldiçoados seucadáver, dando-o de presente a Teseu, o que fez de seu túmulo umafonte de benefícios para Atenas. Os tebanos tudo fizeram para recuperaresse túmulo, colocado em terra estrangeira, para eles uma eternaameaça, uma vez que, em Atenas, Édipo seria sempre seu protetor,contra o ataque de quem quer que fosse, inclusive dos próprios tebanos.

O destino do mito Édipo é singular. Seus relatos mais antigosmostram-no como um herói. Homero, apesar de reconhecer seus erros,dignificou-o e lhe atribuiu um fim honrado. Não há infâmia pesando

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sobre Édipo, nem na tltede, nem na Odisséia. Ésquilo representou-o.jámaculado, mas vítima de filhos ambiciosos e de um cunhado implacável.Sófocles o cobriu de infâmia, no ~dipo-Rei. Fez dele o último doshomens, autor de crimes hediondos, mas concedeu-lhe a purgação deseus .erros por grandes sofrimentos. Porém, no final, em Édlpo emCofona, restaurou-lhe o prestígio de herói, transformando-o no protetorde sua própria cidade, Atenas, enterrado em sua própria localidade deorigem, Colona.

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