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1- Anais - Congresso de Fenomenologia da Região Centro-Oeste O SENTIDO DA EDUCAÇÃO EM MARTIN BUBER E A FORMAÇÃO DO GRANDE CARÁTER 1 Gizele Geralda Parreira 2 Vai longe o tempo em que a educação foi sinalizada como o acontecimento necessário na formação do homem em todas as suas dimensões tornando-a um fenômeno pertencente à existência humana. Conforme assegura Fernandes (2008): “Onde o ser humano acontece, [...] ali acontece a educação”. Diante disso, relevamos que a educação ocorre sob dois distintos aspectos e situações, a saber: na família e fora dela. Nesse trabalho, o foco incide sobre a educação advinda fora do contexto familiar e dentro da instituição escolar. Mais especificamente, sobre a educação sucedida dentre as paredes de uma sala de aula e que emerge do contato estabelecido entre o professor e o aluno. Partindo dessa premissa, consideramos a escola atual como uma instituição educacional que sofre as influências de uma sociedade imersa num modelo econômico, político e cultural inundado por constantes avanços tecnológicos isentos de sentido humano, o que, consequentemente, propicia à relação educativa uma condição distante de práticas que reconheçam e considerem seus membros como pessoas, legitimando a praticidade, a despersonificação e a objetividade comuns à era moderna. Essas questões impelem o professor e o aluno a relações cada vez mais coisificadas e desnaturadas, dando espaço à indiferença, ao individualismo e a racionalidade excessiva. Relações em que o interpessoal é perdido por intermédio do esgotante exagero de conteúdos, da falta de tempo, da intolerância, do desencontro, da insatisfação, da decepção, do descaso, da indisciplina, do desânimo, da ausência de reconhecimento e da falta de diálogo; descaracterizando, em primeiro lugar a escola enquanto ambiente de interações vívidas e, em segundo lugar, os seus membros como seres humanos. Num cenário como esse a finalidade da escola que deveria ser a de participar na formação de cidadãos competentes, autônomos e emancipados acaba dissipada em meio ao que nela impera. Na verdade, vai ocorrendo um esvaziamento de sentido, pois não há a efetivação adequada do conhecimento, nem a efetivação da humanização. 1 Texto elaborado para defesa de Tese de Doutorado em 10 de setembro de 2010 no Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-Goiás. 2 Psicóloga e Doutora em Educação pela PUC- Goiás. Professora com DE no Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás IFG; Coordenadora da Especialização em Políticas e Gestão da Educação Profissional e Tecnológica IFG.

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O SENTIDO DA EDUCAÇÃO EM MARTIN BUBER E A FORMAÇÃO DO GRANDE

CARÁTER1

Gizele Geralda Parreira2

Vai longe o tempo em que a educação foi sinalizada como o acontecimento

necessário na formação do homem em todas as suas dimensões tornando-a um fenômeno

pertencente à existência humana. Conforme assegura Fernandes (2008): “Onde o ser humano

acontece, [...] ali acontece a educação”. Diante disso, relevamos que a educação ocorre sob dois

distintos aspectos e situações, a saber: na família e fora dela. Nesse trabalho, o foco incide sobre a

educação advinda fora do contexto familiar e dentro da instituição escolar. Mais especificamente,

sobre a educação sucedida dentre as paredes de uma sala de aula e que emerge do contato

estabelecido entre o professor e o aluno.

Partindo dessa premissa, consideramos a escola atual como uma instituição

educacional que sofre as influências de uma sociedade imersa num modelo econômico, político e

cultural inundado por constantes avanços tecnológicos isentos de sentido humano, o que,

consequentemente, propicia à relação educativa uma condição distante de práticas que reconheçam e

considerem seus membros como pessoas, legitimando a praticidade, a despersonificação e a

objetividade comuns à era moderna.

Essas questões impelem o professor e o aluno a relações cada vez mais

coisificadas e desnaturadas, dando espaço à indiferença, ao individualismo e a racionalidade

excessiva. Relações em que o interpessoal é perdido por intermédio do esgotante exagero de

conteúdos, da falta de tempo, da intolerância, do desencontro, da insatisfação, da decepção, do

descaso, da indisciplina, do desânimo, da ausência de reconhecimento e da falta de diálogo;

descaracterizando, em primeiro lugar a escola enquanto ambiente de interações vívidas e, em

segundo lugar, os seus membros como seres humanos.

Num cenário como esse a finalidade da escola que deveria ser a de participar na

formação de cidadãos competentes, autônomos e emancipados acaba dissipada em meio ao que nela

impera. Na verdade, vai ocorrendo um esvaziamento de sentido, pois não há a efetivação adequada

do conhecimento, nem a efetivação da humanização.

1 Texto elaborado para defesa de Tese de Doutorado em 10 de setembro de 2010 no Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-Goiás. 2 Psicóloga e Doutora em Educação pela PUC- Goiás. Professora com DE no Instituto de Educação,

Ciência e Tecnologia de Goiás – IFG; Coordenadora da Especialização em Políticas e Gestão da Educação

Profissional e Tecnológica – IFG.

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Ante todos esses aspectos nosso estudo teve a intenção de pensar em algo que

pudesse “expressar a esperança que deve animar as pessoas, assumindo um posicionamento corajoso

diante da concepção do humano3”, ponderando acerca de uma articulação significativa e equilibrada

em meio à realidade moderna e a dimensão humana que possa engendrar, dentro da escola, uma

atitude que abandone a tradicional relação professor-aluno ancorada no ‘eu-te-ensino-e-você-

aprende’ e caminhe em direção a uma relação instituída no ‘você-fala-e-eu-te-escuto’. Ou seja, uma

atitude cuja interação entre educador e educando ultrapasse o campo do objeto e do conteúdo

suscitando a pura esfera do humano.

Quando acreditamos na premissa de que as interações ocorridas entre pessoas

suscitam trocas dialógicas, acreditamos que entre aluno e professor não é diferente. Diante disso

encontra-se o esteio de nossa reflexão: o foco deve ser o que se passa na inter-relação vivida por

dois parceiros: neste caso, o professor e o aluno. Ou seja, o foco deve ser o entre-dois: a esfera da

qual ambos participam no momento em que há o ‘envolvimento’ do professor, no momento em que

impera nesse o anseio de ‘abraçar com amor’ o outro que é seu aluno, o que em hebraico significa

conhecer.

Com efeito, notamos que a proposta deste estudo foi apreender as possibilidades

de uma escola ser alicerçada sobre autênticas relações entre o professor e o aluno por meio da

perspectiva dialógica de Martin Buber em prol da verdadeira vida humana. Martin Buber nasceu em

1878 e morreu em 1965. Foi um filósofo e um educador que teve sua história marcada,

fundamentalmente, por suas vivências e por uma grande confiança no humano. Foi com essa

convicção que ele dedicou sua vida e sua obra à “busca de uma solução para o problema existencial

do homem4”, ansiando que as pessoas vivessem entre si, o mais profundamente possível, a sua

humanidade, por meio de autênticas trocas dialógicas que trazem consigo os principais elementos do

inter-humano: a autenticidade, a presença, a abertura e a conversação genuína.

A autenticidade relaciona-se ao legítimo ser em contraposição ao parecer. Isto é, a

pessoa deve abster-se da preocupação com a imagem que passa e expressar o que é verdadeiramente.

O estar presente é colocar-se disponível, inteiramente disponível àquele que me vem à frente,

considerando a sua real existência. Na abertura não cabe o desejo de influenciar o outro a partir de

interesses individualistas. Na abertura o homem deve aceitar o outro naquilo que ele é em sua

3 Martins, 2006, p. 47. 4 Zuben, 1974, p. XVII.

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singularidade e particularidade. Aqui Buber diferencia dois tipos de pessoas: o propagandista,

aquele que se entrega ao descrédito no potencial humano do outro, querendo sempre se impor; e o

educador, aquele que acredita no potencial do outro e participa de modo a abrir caminhos para que o

outro se manifeste em sua plenitude. A conversação genuína ou o diálogo genuíno tem um

significado que abrange o sentido mais autêntico da linguagem e da comunicação entre as pessoas: é

a atitude revelada por meio da palavra. O diálogo não toma o indivíduo ou o sujeito, ele toma a

pessoa, o ser humano em legítima relação.

Segundo Zuben, “a concepção buberiana do diálogo é atípica porque se recusa a

tratá-lo como simples processo psicológico ou mero meio de comunicação5”, “nem pode ser

utilizada para explicar a interação dos indivíduos em sociedade, ou seu processo de comunicação6”.

A vida dialógica anseia por uma existência fundamentada sobre genuínas relações inter-humanas. O

que provoca no homem uma atitude diferenciada de olhar e de se prestar ao mundo em que ele está,

bem como ao outro que vem ao seu encontro. É um modo de apreender o ser na totalidade em que

ele se constitui.

Diante disso, percebemos que o diálogo em Buber transcende a articulação de

vocábulos que constituem a língua, pois ele é o que marca profundamente a maneira pela qual uma

pessoa se coloca diante de outra. Ou seja, o legítimo diálogo é diferente do diálogo técnico que

apenas informa e do monólogo disfarçado de diálogo no qual sobressai o interesse individualista de

um sobre o outro. O diálogo autêntico indica o verdadeiro voltar-se-para-o-outro, o que confere a

esse evento uma categoria de atitude do homem frente ao mundo manifestando-se na palavra

proferida que “é pronunciada na linguagem da ação7”. Porque, de acordo com Buber, o ser humano

é inerentemente relacional.

Desse modo, a atualização da existência humana é efetivada por meio da palavra

que traduz a forma de o homem se colocar frente ao mundo e frente ao seu semelhante. Em Buber

não há eu em si, apenas o Eu da palavra denominada palavra-princípio que pode ser o Eu-Tu ou o

Eu-Isso. “Quando o homem diz Eu ele quer dizer um dos dois8”. Na palavra-princípio Eu-Tu o

homem entra em relação; na palavra-princípio Eu-Isso ele experiencia o outro ou o mundo em que

5 Zuben, 2003, p. 167. 6 Zuben, 2003, p. 166. 7 Zuben, 2003, p. 153. 8 Buber, 1974, p. 4.

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está. Segundo Buber, não há o predomínio de uma das palavras, ambas são necessárias para a

consumação da existência humana.

No Eu-Tu o mundo é concretizado em três esferas: a vida com a natureza, a vida

com os homens e a vida com os seres espirituais. O mundo do Tu é o que desperta no Eu algo

transformador, é o que impacta, é o que encanta, é o que se manifesta modificando a vida da pessoa

de alguma maneira, “o mundo do Tu fundamenta o mundo da relação9”. Quando nos distanciamos

do Tu, entramos no campo da experiência, entramos no campo do Isso que se manifesta como a

estruturação, a vivência e a ordenação.

A cada Tu vivido há, consequentemente, o Isso, pois segundo Buber, existe uma

constante alternância entre as duas atitudes. Contudo, é a relação Eu-Tu e a sua nostalgia que

garantem ao homem a efetivação do humano. E apesar de ser no Isso que objetivamos nossas ações,

todavia, é nele que corremos o risco da acomodação e do desgaste da relação, pois acomodado o ser

humano se aliena da fonte do Tu, ele perde o ‘encontro’, ele perde o Tu. Sendo assim, é importante

salientar que “o homem não pode viver sem o Isso, [mas] não se pode esquecer que aquele que vive

só com o Isso não é homem.”

Transpondo para a relação professor-aluno observamos nela expectativas de ambas

as partes. Expectativas consideradas como o processo Eu-Tu da relação. No que diz respeito ao

professor o Tu é o crédito, a paixão, a fé no ser ‘mestre’, o desejo e a disponibilidade para além do

simples ensinar, é reconhecer a existência do aluno naquilo que ele é. É o fazer com autenticidade,

orientando o ato educacional para o cuidado entendido como atitude que sustenta a ação e que não

abandona o aluno a si mesmo e à sua facticidade, mas que o cerca em uma postura de manter o ser

que habita o aluno, sendo10

.

No decorrer das aulas e do processo de mediação do conhecimento se o professor

não se sensibiliza e atualiza constantemente sua opção e fé no verdadeiro papel de mestre, ele acaba

dando espaço apenas à estruturação da sua função, deixando que o Isso representado por sua atuação

assuma todo o processo de interação com seu aluno perdendo o espírito real desta, subordinando-se

apenas às regras, aos conteúdos, aos cartões de ponto, as pautas e as convenções curriculares enfim,

os quais cristalizam-no como um mero ‘ensinador’, fazendo-o reduzir o aluno a um simples objeto

dos seus ensinamentos.

9 Buber, 1974, p. 6. 10 Martins, 2006.

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Daí a importância de uma constante atualização do Tu, como diz Buber, para que o

professor não se perca do sentido de sua profissão, que é agir não somente como mediador do

conhecimento, mas, fundamentalmente, como o formador de caracteres. Ver em seu aluno um ser

único, constituído em sua totalidade, e participar, com disponibilidade, não só da sua formação

cognitiva e intelectual, mas da sua formação humana, para que ele possa, a partir da interação

estabelecida na relação dialógica com o mestre, ampliar suas possibilidades de crescimento, sob

todos os aspectos que o tornam um ser humano repleto de potencialidades que o permitam edificar a

sua existência de modo significativo.

“Para auxiliar a realização das melhores possibilidades existenciais do aluno, o

professor deve apreendê-lo como esta pessoa bem determinada em sua potencialidade e atualidade;

mais explicitamente, ele não deve ver nele uma simples soma de qualidades, tendências e

obstáculos, ele deve compreendê-lo como uma totalidade e afirmá-lo nesta sua totalidade11

”. Ou

seja, o professor deve disponibilizar-se ao aluno tomando-o por seu Tu.

Assim colocado, notamos que Martin Buber foi um homem atípico dentro de uma

sociedade ancorada no capitalismo industrial e marcada por ‘grandes guerras’ e não se deixou

sucumbir pelo contexto da modernidade, pautando sua vida e sua obra sobre valores que evidenciam

a necessidade do verdadeiro encontro entre as pessoas e o consequente resgate do humano.

Por várias vezes ele declarou o seu interesse e sua ‘inclinação’ para ‘conhecer

pessoas’, poder mudar algo nelas e ao mesmo tempo permitir ser alterado por elas. Acrescentado

que mesmo tendo deixado um significativo legado teórico, o filósofo afirmava que os livros nunca

foram a parte mais importante de sua vida. Em seus fragmentos autobiográficos ele enuncia: “É

verdade que fecho, por vezes, a porta do meu quarto e entrego-me à leitura de um livro, porém

apenas porque posso abrir a porta novamente, e um homem levanta os olhos em minha direção. Eu

não sabia nada de livros quando me evadia do colo da minha mãe, e eu quero morrer sem livros,

com uma mão humana na minha”. Essa declaração evidencia que a parte mais importante da vida

buberiana foram os seus relacionamentos com as pessoas.

Contudo, conforme antecipamos, ele também se dedicou a elaboração de várias

obras, nas quais podemos perceber as influências sofridas por este filósofo, porém a cultura e a

tradição judaicas, segundo Zuben, “representaram o clima e o molde do seu pensamento12

”. Judeu

11 Buber, 1974, p. 150. 12 Zuben, 1974, p. XXXII.

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fiel à doutrina hassídica, Martin Buber retira de suas experiências vividas a inspiração para suas

reflexões. O hassidismo é o último e o mais elevado movimento do misticismo judaico, cuja

principal característica é a nobreza da alma e a sabedoria mística que diz de uma experiência

espiritual que possibilita o encontro direto do homem com Deus.

O movimento hassídico tinha no tsadik (o justo) a figura do mestre conhecedor

que transmitia o ensinamento da Torá. O que acontecia por meio de uma tradição conhecida por

Cabala: o ensinamento transmitido de boca a boca, cuja finalidade era influenciar o homem por

meio da “palavra que não poderia ser parafraseada”, isto é, por meio de ações e atitudes legítimas.

Assim, o tsadik era aquele que contribuía para que os homens se apropriassem de um modo de vida

piedoso visando o que poderia ser feito aqui na terra para elevar o espírito e se aproximar do

Absoluto, em detrimento das coisas materiais.

Isto posto, Buber considerou a relação Eu-Tu como a abertura necessária à relação

com o Tu eterno. Ideia que concebe a existência humana em conexão com o Absoluto. Quanto mais

o homem se afasta do seu semelhante, mais ele se afasta do Tu eterno, necessitando do reencontro

com o outro e, em consequência com o divino, para resgatar sua humanidade. Buber não entende por

Deus um princípio nem O identifica com uma idéia, mas também como ‘Pessoa’ que entra numa

relação imediata com os homens “através de atos criadores, reveladores e libertadores13

”.

Assim exposto, na reflexão buberiana a modernidade se caracteriza

essencialmente, pelo eclipse de Deus. Contudo, para o filósofo judeu, o Tu eterno não desapareceu

definitivamente, apenas está oculto em função da objetivação excessiva a que o homem tem sido

sucumbido. Na realidade em que se encontra o homem somente poderá ser resgatado por intermédio

da conversão, ou por intermédio da formação do caráter.

Para Buber, o caráter é o objeto da educação, a função educadora é a formação

desse caráter e o sentido da educação é contribuir para a edificação da vida em uma nova

comunidade. Nessa visão, na relação educativa o professor assume um lugar significativamente

importante: o de influenciar com sua palavra e com suas ações genuinamente dialógicas, a formação

dos caracteres que irão constituir a nova comunidade, cuja finalidade é a verdadeira Vida, a qual

representa a maneira pela qual os homens poderão constituir a legítima relação inter-humana isenta

de quaisquer interesses que não sejam uma vida vivida comunitariamente. O que é bem diferente do

que é experimentado pelos homens na sociedade moderna.

13 Buber, 1974, p. 154.

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De acordo com Von Zuben, “o protesto lançado por Buber contra a des-

personificação ou contra a coisificação, a que foi submetido o homem moderno através da

supremacia do Eu-Isso em detrimento da autêntica relação, serve de certo modo, como pano de

fundo para a tentativa de transformação para a verdadeira comunidade14

”.

Desse modo, a educação para a comunidade – sentido maior da educação em

Buber – assume um papel fundamental na formação do caráter do homem. Pois, a partir dela ele terá

a oportunidade de redescobrir o comum que o levará ao comunitário, isto é: uma comunidade supra-

social, a qual não insere em si a nostalgia das antigas comunidades e, tampouco concorda com as

imposições da sociedade moderna, mas, em sua essência, considera o homem como um ser único,

singular, com uma existência relacional e capaz de ser um ‘grande caráter’, ou seja, ser capaz de

reconhecer no seu semelhante um ser único e essencialmente humano. Na educação para a

comunidade não é preciso que o professor seja um ‘gênio moral’ e sim uma pessoa inteiramente

viva e capaz de comunicar-se diretamente com o seu semelhante: o aluno.

A formação do caráter trás em seu interior a idéia de que a função educadora deve

orientar o aluno acerca do que ele deve fazer ante as intempéries de sua realidade, isto é, como ele

pode conciliar “as exigências imperativas e a possibilidade, limitada e relativa, de poder atendê-

las15

”. Para isso, fazem-se necessário a “educação da capacidade de juízo e de deliberação,

indispensáveis nas horas de decisões”. Diante disso, Buber (2002) entende que os preceitos éticos

são indicadores do caminho a ser seguido, porém eles não são definidos de forma definitiva. É

preciso que o homem considere ante cada escolha a circunstância e a contingência de cada situação,

resguardado pela vida dialógica, a qual contribui para que tanto a sua capacidade de juízo, como a

capacidade de escolha e deliberação sejam isentas de aspectos comprometedores da realização de

uma vida mais humana.

Desse modo, notamos a importância de o aluno vivenciar relações educativas que

o possibilitem ajuizar, escolher e deliberar adequadamente para que ele possa consolidar, de modo

autêntico, não somente a aprendizagem dos conteúdos escolares, mas também a sua liberdade moral

e intelectual (a autonomia), a sua liberdade de ação (a emancipação) e a sua existência como ser

humano (a humanização). O que pode ser possível ante a disponibilidade do professor ao diálogo

genuíno com o aluno.

14 Zuben, 2003, p. 129. 15 Zuben, 2003, p. 128.

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Assim colocado, observamos que o professor dialógico é aquele que se abre à

fecundação da atitude Eu-Tu e ao despertar do desejo, do crédito, da paixão, da fé no ser educador e

da disponibilidade de ensinar para além do conteúdo reconhecendo a existência humana do aluno. O

professor dialógico se coloca na relação educadora, igualmente como pessoa que age com

autenticidade orientando sua função pelo cuidado que sustenta sua ação e sua atitude frente ao

semelhante que lhe vem a frente, ‘abraçando-o’ e não o abandonando na medida em que não o

reconhece como um ser humano.

Com efeito, a perspectiva dialógica de Buber para a educação possibilita que a

relação entre professor e aluno extrapole o campo pedagógico para o campo dialógico, por

intermédio da ‘palavra proferida’, permitindo a ambos o real encontro entre pessoas humanas e, não

somente o cumprimento do que é estabelecido nos currículos escolares que contemplam as normas

educacionais modernas.

O que notamos aqui não se trata apenas de algo a ser analisado ou estudado, e sim

de algo que conclama o professor a ‘proferir a palavra’, pois, segundo Buber à natureza humana é

dada a o mistério da kavaná16

, cujo sentido e destinação “não se deve apenas esperar, não se deve

apenas ficar à espreita: o homem pode atuar para resgatar o mundo. [...] Cada pessoa só pode atuar

em seu domínio17

”. “Tudo depende unicamente de começar consigo mesmo, e nesse momento não

precisamos nos preocupar com nada no mundo a não ser com nosso começo. Qualquer outro

posicionamento nos desvia do nosso começo, enfraquece a nossa iniciativa em prol dele, boicota por

inteiro o ousado e grandioso empreendimento18

”.

De acordo com estas reflexões, a instituição educacional – na figura do professor –

deve inicialmente, ‘começar exatamente de onde está’ e atuar para que as salas de aulas sejam

transformadas em pequenas comunidades, as quais em conjunto constituirão uma comunidade

maior: a escola. Cada escola fará parte, dentro da estrutura social, de outra comunidade e assim, num

movimento ascendente, até que a sociedade atual não seja simplesmente o que está posto e seja

transformada numa comunidade supra-social, isto é uma nova comunidade na qual impera o real

existir humano das pessoas entre si. Cada escola ‘renascida’, experimentará em si e poderá trazer

para a nossa sociedade: ‘Vida’.

16 Buber, 2003, p. 37 e 39. 17 Rohr, 2001, p. 9. 18 Rohr, 2001, p. 9.

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Ressaltamos que em absoluto compreendemos a filosofia buberiana como uma

panaceia para nossa realidade social, para a educação escolar, bem como para a relação educativa.

Mas, em acordo com nossa formação e com nossa convicção acreditamos – visceralmente – no

potencial vigente e sustentador das ideias de Buber acerca do homem, da sociedade, da escola, da

vida em comunidade e, especialmente, da função educadora.

Entretanto, há de se considerar as críticas que recaem sobre o pensamento de

Buber na atual realidade, apontando-o, principalmente, como uma utopia que não cabe na

modernidade balizada (dentre outros aspectos) pelo avanço tecnológico, pela competitividade e pela

exclusão dos que não se adequam ao sistema vigente. Ao que o filósofo judeu responde: “Este é um

dos inúmeros mecanismos de fuga que ocupam a vida do homem contemporâneo. Tais mecanismos

lhe proporcionam uma consciência tranqüila, levando-o a contentar-se, na melhor das hipóteses,

com realizar algo ou com defender algo politicamente”19

.

E, a quem possa ver em Buber uma visão romântica e sentimentalista, ele afirma

ainda que “sem qualquer romantismo e, vivendo no presente, temos que edificar uma autêntica

comunidade com os materiais renitentes do nosso momento histórico20

”. Visto que, “constitui um

erro grotesco a noção do homem moderno de que o voltar-se-para-o-outro seja um sentimentalismo,

o qual não está de acordo com a densidade compacta da vida atual. Sua afirmação que o voltar-se-

para-o-outro seja impraticável no tumulto desta vida é apenas a confissão mascarada da fraqueza de

sua própria iniciativa diante da situação da época; [infelizmente] ele consegue que esta situação lhe

ordene o que é possível ou permissível, em vez de, como parceiro sereno, estipular com ela – como é

possível estipular com qualquer época – qual o espaço e qual a forma que ela deve conceber à

existência de criatura”21

.

Mais do que criticar ou mesmo negar a vida dialógica, é necessário verificar,

ponderar e considerar verdadeiramente a sistematização, a profundidade e a atualidade contida nas

obras de Martin Buber. Realmente não se trata de uma teoria a ser aplicada. Esta é uma perspectiva

reducionista da legítima intenção – da kavaná do filósofo judeu – que acende uma luz sobre nossas

cabeças aclarando a possibilidade real de relações necessariamente humanas num mundo açoitado

pelo individualismo e pela distância entre as pessoas.

19 Buber, 2008, p. 89. 20 Buber, 2007, p. 26. 21 Buber, 2008, p. 57.

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Inda que seja utopia, compreendemos a perspectiva dialógica na educação como

uma utopia necessária e preferível ao vazio existencial da atualidade, cuja vida muitas vezes não tem

significado. Entrementes, Buber afirma que “o sofrimento que nos causa um sistema absurdo [é o

mesmo] que prepara [nossa] alma para a visão e o que essa vê, reforça e aprofunda a compreensão

da inexatidão do erro. O desejo de que a visão se realize [é o que] dá forma à imagem22

”.

Tomar a proposta dialógica de Buber como referencial da ação educadora é, antes

de tudo, um caminho indicado para que a escola em sua função possa resgatar a humanidade

seqüestrada do homem moderno; se, não for transformando, ao menos aproximando a sociedade

atual de uma nova e autêntica comunidade: uma comunidade supra-social. Este é o fim, e o meio é o

diálogo autêntico. Tomara que a semente que lançamos possa, um dia, contemplar nossa

expectativa.

Assim como Buber, também nós somos tomados por esta esperança!

Bibliografia

Obras de Martin Buber:

1. BUBER, Martin. The Knowledge of man. Selected Essays. Introduction by Maurice

Friedman. New York: Harper Torchbooks, 1963.

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