o segredo dos girassÓis - o diÁrio de anna goldin

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O segredo dos girassóis é vencedor de três prêmios, em literatura: -, o prêmio de excelência em literatura, o selo de boa escolha e a palma de bronze de léxico literário "o que quer dizer, que o livro é quase um glossário ") o segredo dos girassóis traz de volta o romantismo do século XVIII, e nos envolve em uma trama cheia de mistérios e aventuras onde a personagem principal Anna Goldin nos mostra que é possível manter a dignidade e a virtude embora o preconceito da inquisição espanhola violasse os direitos das mulheres da é época. A personagem embora seja apenas uma jovem, nos comove com sua determinação e coragem. Vale apena conferir. Boa leitura

TRANSCRIPT

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

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O SEGREDO DOS GIRASSÓIS

O Diário de Anna Goldin

Adriana Matheus

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Adriana Matheus

São Paulo 2014

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS

O Diário de Anna Goldin

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

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A Editora

Ixtlan

Apresenta...

Adriana Matheus

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS

O diário de Anna Goldin

Adriana Matheus

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O Segredo dos Girassóis

O diário de Anna Goldin

Adriana Matheus

“O amor é infinito e solene e quando é verdadeiro

atravessa as barreiras do impossível, para que sempre

possamos estar juntos.”

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

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Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por

qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem

permissão expressa da autora. (Lei nº 5.988 14/12/73).

Adriana Matheus

[email protected]

2ª Edição

2014

CIP. Brasil. Catalogação na Publicação.

M427s - Matheus, Adriana, 1970.

O Segredo dos Girassóis/Adriana Matheus - Juiz de Fora - MG. 410 p. : il.

ISBN: 978-85-78-78-028-9

Ficção brasileira. 2. Romance espírita I.Título.

Copyright © Adriana Matheus Projeto gráfico: Editora Ixtlan Diagramação: Márcia Todeschini Edição de Capa: Adriana Matheus Revisão ortográfica: Texto Legal - http://textolegal.weebly.com

Adriana Matheus

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Agradecimentos Especiais

Ao senhor Wanderley Luiz de Oliveira, presidente da

Associação de Cultura Luso-Brasileira/ JF - MG, por todo o

incentivo dado a esta obra.

Ao Senhor Roberto Dilly, diretor do Museu do Crédito

Real/JF - MG, que tão generosamente cedeu o salão para o

lançamento desta obra.

À Drª. Maria Auxiliadora Assis, que é uma das maiores

colaboradoras desta obra e, também, patrocinadora.

Às amigas Átria Maria Alves e Dulcinéia de Assis

Teixeira, cujo apoio e participação foram indispensáveis para

que esta obra fosse publicada.

A Stéphanie Lyanie e à equipe da Texto Legal. Sem essa

equipe fantástica e incrível, esta obra não estaria tão lindamente

corrigida.

Ofereço esta obra à Academia de Letras da Manchester

Mineira/Juiz de Fora - MG, por tanto homenagear os pequenos

e grandes autores de nossa cidade – valorizando, assim, a nossa

cultura literária.

Adriana Matheus

À autora

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

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NOTA DA AUTORA

Nesta incrível história de ficção, a autora convida o

leitor a viajar através do tempo astral em uma fantástica

aventura, cheia de suspense, bom humor e sedução. Sua

principal personagem, Anna Goldin, vai mostrar ao leitor que,

mesmo no meio dos horrores da Inquisição, ela ainda conseguiu

sonhar e ser determinada em seus ideais de liberdade e

igualdade, conseguindo manter, também, a dignidade, e

honrando o valor de uma verdadeira amizade.

Mas o que poderiam ter em comum três pessoas tão

diferentes?

Uma bruxa, um monge e um jovem conde, unidos pelo

destino nessa fantástica trama de ódio, amor e intrigas. É isso

que o leitor terá que desvendar. E, por isso, Anna Goldin está

convidando-os a participar desta incrível história! Sejam bem-

vindos!

Como percebi que teria que escrever esta obra?

Na verdade, depois de um acidente, sonhei com toda

essa incrível história durante uma semana, consecutivamente.

Cheguei a comentar com algumas pessoas, que me disseram

não passar de meros sonhos. Confesso que procurei respostas

em muitos lugares. Mas esqueci de um lugar muito simples e

particular: dentro de mim. Pois é lá que está a resposta para

todas as perguntas frequentes em nossas vidas. Muitas vezes,

somos teimosos e medrosos demais para ouvir aquela voz que

está sempre nos mostrando o caminho. Temos medo do que

parece ser imaginário ou sobrenatural, mas não temos medo de

correr o risco de conhecer um desconhecido real da internet. Os

espíritos não podem nos fazer mal algum. Influenciam-nos

somente se abrirmos caminho para isso. O poder está todo em

Adriana Matheus

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nossa mente, na nossa caixinha de segredos, no nosso

computador portátil e inigualável - o cérebro.

Como descobri que era médium?

Na verdade, como todas as pessoas, sempre fui. Só não

aceitava aquela voz dentro de mim.

Como tomei conhecimento da existência do Padre

Ângelo Wallejo Moralles?

Oito meses depois do acidente e já bem melhor, um belo

dia eu estava sentada na frente da creche onde costumava

deixar meus filhos. O mais novo deles estava em adaptação. Por

esse motivo, tinha que ficar até mais tarde presente neste local.

Sentei-me em um banquinho, do lado de fora. Como não havia

nada para fazer, peguei um bloco de notas e um lápis que

sempre trazia comigo. Comecei a rabiscar para ver se

conseguia desenhar o rosto que frequentemente aparecia-me em

sonhos. Mas, para minha surpresa, comecei a perder os

sentidos, como uma tonteira irregular. De repente, minha mão

começou a escrever sozinha. A princípio, tremi - confesso. Mas,

depois, fui dando asas àquele fenômeno. Quando parei para ler,

eram quase duas páginas de mensagens. Detalhe importante:

aquela letra não era minha. Fiquei tão fascinada com aquilo

que comentei erroneamente com várias pessoas, que saíram

achando-me uma doidivanas. Hoje, muitas destas pessoas já

receberam mensagens de seus entes falecidos, psicografadas

por mim. Graças a Deus, aprendi a lidar com meu dom com a

sabedoria do silêncio. Ganhei credibilidade e respeito.

Descobri minha missão. Sempre que tenho tempo, dedico à

caridade espiritual. Mas ainda sou aprendiz.

Quem foi e quem é Anna Shaara para mim?

Anna foi uma grande mulher que não se rendeu às

normas e às vontades dos homens. Na verdade, Anna Shaara

sou eu, é você que está lendo esta obra por mera curiosidade. A

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

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Anna são todas as mulheres que lutaram, que lutam e sempre

lutarão por um sonho de igualdade; mas - acima de tudo - que

têm um dom e o usam para o bem. Ela é aquela mulher que faz

de tudo para ver seu homem, seu amor feliz. É a mulher sábia

que, ao invés de brigar, cala-se e espera o momento certo de

falar e agir.

A Anna é a voz dentro de cada uma de nós. Ela é o

momento, a oportunidade que temos de nos redimir dos erros e

das falhas do passado.

Quando Anna Shaara voltou em minha vida?

Foi através de uma viagem astral (também chamada de

auto-hipnose), onde mostrou toda a sua sabedoria. Tive certeza

de que estava na hora de contar ao mundo minhas experiências

com os espíritos. Espero que esta obra seja de grande valia

para todos vocês que, mesmo por curiosidade, começaram a lê-

la. Mais uma vez, deixo minha eterna gratidão.

“Se o homem trabalha em prol da caridade, ele deve

tentar entender a verdade, mesmo que a mesma não seja

mostrada pelos olhos do aparelho. Se ele trabalha em prol de si

mesmo, continuará confuso e no escuro constante de seus

pensamentos atordoados. Felizes aqueles cuja compreensão de

reconhecer os seus próprios erros torna-os sábios. E essa

virtude faz com que eles ajudem o seu próximo em caridade e

abstinência, sem interrogações ou especulações. Pois o maior

dom divino está em ouvir e servir com humildade e

perseverança”.

Adriana Matheus

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SUMÁRIO

Capitulo I - O diário de Anna.....................................16

Capitulo II - A iniciação..............................................77

Capitulo III - O Livro das sombras...........................166

Capitulo IV - O Segredo de Elizabeth.......................219

Capitulo V - A Despedida..........................................334

CapituloVI - O Mosteiro............................................454

Capitulo VII - O Segredo dos Girassóis.....................519

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

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Prólogo

Estou com vinte e seis anos e vejo que minha vida

acabou-se. Vivi nesta curta jornada terrena tudo o que uma

pessoa com seus sessenta anos viveria ao longo de sua

existência. Mas é claro que, em questão de sofrimentos, fui uma

expert. Envelheci muito em três anos aqui, enclausurada neste

calabouço frio e escuro, onde fico relembrando os fatos e as

situações vividas desde a minha mais tenra infância. Outro dia,

pude ver meu reflexo em uma poça d’água que se acumulou no

chão, causada pelas diversas goteiras que caem do teto. Quase

não me reconheci. A maioria dos meus dentes caiu. Estou tão

maltrapilha e suja! Eles quase conseguiram sujar, também,

minha alma. Mas consegui separá-la do meu corpo, para que não

fosse maculada pela perversidade humana.

Sinto tanto frio; estou tão cansada e enfraquecida! As

dores, antes insuportáveis, agora já parecem mais brandas. Já

quase não sinto mais a minha perna. A corrente presa à minha

coxa esquerda já tinha parado a circulação, e a sensibilidade já

não era mais a mesma. Estou presa a este objeto há um ano ou

mais. Não me lembro exatamente de quanto tempo estou aqui. A

princípio, para evitar a loucura e a perda de memória, fiz

tracinhos nas paredes. Mas, com o tempo, fui me esquecendo até

de me levantar para comer o pão e a água que me trazem.

Temo não conseguir colocar neste diário tudo o que me

ocorreu durante toda a minha existência. Tenho a esperança de

um dia alguém me achar ou se lembrar de mim. Caso isso não

venha a ocorrer, sei que minha amiga Juanita encontrará um

meio deste diário chegar até às mãos de Maria. Quero que meus

irmãos de alma saibam o que passei por amar e por não negar

minhas origens. Os horrores e as injustiças que aconteceram em

minha vida, envolvendo seres considerados acima do bem e do

Adriana Matheus

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mal, deixo aqui registrados. Não aumentei e nem inventei

absolutamente nada.

Algumas pessoas que se diziam com o poder de

direcionar o destino de outras, só pelo simples fato de terem nas

mãos um documento chamado Bula Papal, tornaram a minha

vida e a de outras mulheres a mais miserável possível. Pessoas

que se julgavam Deus ou mensageiros Dele. Seres humanos

como eu, mas que pareciam viver em um mundo mental paralelo

ao nosso. Parecia que, ao olharem uma mulher, viam nela outra

forma de vida aparente. Suas formas de manipular a população

eram tão convictas que causavam cegueira e histeria em massa –

e, logo, uma espécie de aliança cega entre a população e os

inquisidores. Na verdade, a voz do povo não era a voz de Deus,

mas sim a voz do inquisidor.

Minha história é muito complexa. Se algum dia esse

diário for encontrado e lido por outras pessoas, elas poderão

ficar atordoadas e confusas com os relatos registrados aqui. Mas

que fique bem claro que este é o meu diário. O diário da minha

vida terrena, onde conto a minha trajetória como mortal, mulher,

bruxa e como um ser humano esquecido pelo mundo

contraditório. Nesta história de vida passada, faço aqui duas

regressões e mostro o lado obscuro real da Inquisição. Conto

como o preconceito contra as mulheres era superior ao

sentimento maior: o amor verdadeiro. A religiosidade era usada

para encobrir o lado negro dos sacerdotes. O dinheiro comprava

e vendia tudo, até a alma humana. Os sacerdotes e seus

monarcas seguidores fanáticos tinham uma única vontade:

manter as mulheres submissas e a população humilde e sem

cultura sob os seus pés. Mas, na verdade, os monarcas também

eram marionetes destes discípulos do diabo. Pessoas que se

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

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mascaravam com uma bondade hipócrita, para não mostrarem a

verdadeira face escondida debaixo de peles de cordeiros.

Espero, em nome de Deus, que a humanidade um dia

possa evoluir para o seu próprio bem. E que estas almas, ao

encarnarem, também possam redimir-se destes pecados que

cometeram contra a humanidade. Vivi em um tempo muito

desequilibrado e hostil, em que mesmo os que tinham certo

estudo viviam na ignorância e no flagelo espiritual. As pessoas

não tinham o direito de ir e vir. As palavras, nem em

pensamentos poderiam permanecer. Se eu pudesse, aconselharia

todos a refletirem sobre seus atos e as consequências que podem

advir deles. Amem como se hoje fosse a primeira vez.

Esqueçam o passado, deixem as mágoas e quem os magoou para

trás. Porque a única coisa que realmente importa é o amor e o

perdão.

Espero, minha querida Maria, que encontre este diário e

que esta história da qual fez parte seja contada para todos os

nossos irmãos e irmãs, de geração em geração. Tenho certeza de

que não passei por todas estas coisas em vão. Aprendi muito

com a senhora. Sua sabedoria, bondade e benevolência foram

minha fonte de inspiração para eu estar aqui, hoje, lutando em

registrar estas palavras.

Lembra-se, Maria, de quando mais atrás me ensinou a

agradecer a Deus por todos os segundos de nossas vidas, mesmo

que eles fossem os últimos? Agradeço, sim, a Ele, mas nunca

me esqueço da senhora. Minhas orações são para você, bem

como meu amor e gratidão, minha amiga, minha mãe. Sim, pois

a senhora foi a única mãe que conheci.

Embora minha vida tenha sido tão curta, pude refletir e

compreender que nunca devemos parar de lutar pelo que

sonhamos e acreditamos. Sempre lutei e nunca temi ou me

Adriana Matheus

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arrependo de ter chegado às últimas consequências. Nunca

desisti do meu único e verdadeiro amor, embora ele tenha me

traído e me abandonado. Nunca desejei mal a ele, mesmo

sabendo que pode estar nos braços de outra mulher. Não odeio

nem mesmo meus algozes, pois fazem parte da construção da

minha história. Aceitei o dom da mediunidade graças à senhora,

Maria, pois aprendi a ser responsável e mais humana. Sei que

são curtos os meus dias aqui, minha cara amiga. Mas morro com

dignidade e orgulho em saber que me assumo como sou: uma

bruxa.

A senhora ensinou-me que a responsabilidade de um

médium dobra quando ele ensina alguma coisa a outra pessoa.

Espero estar sendo coerente com as palavras aqui. Pois, assim

como fui sua discípula, terei discípulos que ouvirão minha

história e far-me-ão de exemplo. Sei desta responsabilidade e

não quero ser uma lenda e nem um exemplo, pois também

falhei. Apenas quero contar como tudo aconteceu comigo. Achei

que, por amor, poderia superar os sofrimentos que me seriam

impostos. Mas, agora, tenho certeza de que não sabia o quanto

o ser humano pode ser cruel em arquitetar uma forma de

torturar o outro. A maldade do ser humano é infinita e sem

igual.

Seguindo com a minha história...

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

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I – O DIÁRIO DE ANNA

madrugada estava cinza, como o meu coração...

Senti o vento frio entrar pela janela, beijando

meu rosto suavemente, como se fosse um

cumprimento casual e afetuoso. Estávamos perto do término do

outono. As folhas das árvores caíam como plumas ao chão! E

meus sonhos também.

Sentia-me muito só. Algo em meu coração estava

tentando falar, num silêncio descompassado. Naquela época, eu

via beleza em tudo ao meu redor. Mesmo nas horas de tristeza,

conseguia ver coisas boas. Mas alguma coisa parecia estar

errada.

Minhas noites sem dormir eram agonizantes. Eu tinha

um choro preso na garganta e, às vezes, sentia raiva de nada

aparente. Não sabia explicar o que era e, depois de andar quase a

noite toda pelo quarto, fui à janela observar a rua e senti o vento

úmido, que bateu em meu rosto, ainda molhado pelas lágrimas.

Os poucos transeuntes que se atreviam a andar pelas ruas

pareciam estar congelados e enroscavam-se em seus casacos de

lã, como caracóis em uma conchinha. Um redemoinho juntava

as folhas caídas ao chão, fazendo-as bailar sobre a calçada,

como em uma brincadeira de ciranda.

À medida que a neblina subia, mostrava ao longe o

espetáculo e a beleza escondida por trás daquela cortina

A

Adriana Matheus

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acinzentada, criada pelo crepúsculo misterioso da floresta negra.

Sentia-me uma privilegiada por morar no fim daquela ruazinha

de pedras calcárias, muito polida pelo tempo. Eu tinha não só a

magia das montanhas ao longe, mas o cenário mais perfeito de

todo o mundo!

O lugar onde morávamos, para mim, não tinha preço.

Podia ser o mais simples e o mais isolado, mas, com certeza, era

o melhor lugar deste mundo, simplesmente por ser o nosso

habitat.

O cenário era mesmo incrível! Eu jamais me cansaria de

admirá-lo. Da janela do meu quarto, podia ver, desde a esquina,

a outra extremidade da rua sem saída. Havia uma pequena trilha

de terra, que dava para um misterioso bosque Mal Assombrado,

como diziam os viajantes que por ali passavam - também citado

nas cantigas das escravas como Floresta negra, ou ainda

chamado de Bosque dos Mortos pelos supersticiosos do vilarejo.

Muitas lendas foram criadas em torno desse

bosque. Na verdade, não sei se poderiam chamar essas histórias

de lendas, pois em certo ponto do bosque não havia nenhum tipo

de vegetação ou vida aparente. Sua terra era seca, e isso se

ocasionou depois que os moradores mais antigos queimaram

uma jovem amarrada a uma árvore, petrificada, acusando-a de

bruxaria. Eu nunca havia tido a coragem de ir até lá por medo do

que ouvia, mas ficava observando seu estranho silêncio da

minha janela nas noites de solidão. Nunca vi ou ouvi uma ave

gorjear por lá.

Ouvira dizer que nenhum ser vivente ou em seu juízo

perfeito atrever-se-ia a colocar seus pés naquele local obscuro e

sinistro. Eu, nas muitas vezes em que perdia o sono durante a

noite, jurava ter ouvido gemidos e clamores vindos daquele

bosque. Sombras pareciam sair do bosque, ou era apenas a

minha mente que as imaginava? Sempre preferi acreditar que

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

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fosse a minha imaginação, e nunca mencionei isso nem mesmo

para minha amada Maria.

À frente de minha casa, logo na esquina, antes de subir a

pequena trilha, ficava a mansão dos Sorancos Del Castilho,

gente sisuda, aparentemente orgulhosa e pouco amistosa. Eles

eram judeus convertidos ao cristianismo. Só os víamos nas

missas aos domingos e, mesmo assim, sentavam-se longe de

todos. Eram pessoas que pouco se viam transitar pelas ruas. A

senhora Del Castilho e suas filhas vestiam-se mais discretas do

que o normal, sempre com roupas austeras e escuras.

Não eram nada sociáveis. Não iam a festas, não

convidavam e sempre era possível vê-los observando as pessoas

de soslaio. Eram reservados e isolados. Eu mesma tive a

impressão de ter visto um ou outro me observando pelas costas.

Mas, quando me virava, tentando achar o que estava me

incomodando, não via nada. Eles pareciam fantasmas:

apareciam onde menos esperávamos, e sumiam da mesma

forma. Gentinha realmente estranha...

Diziam que eles eram muito ricos, e que seus dízimos

superavam as expectativas paroquiais. O Senhor Del Castilho

parecia um Lorde, com suas botinas e suas abotoaduras de

brilhante. Em questão de status, essa família, por certo, era a

mais rica do condado. O restante da vizinhança morava a muitos

metros à frente. Por isso, sentia-me muito tranquila em relação à

paz e ao sossego.

Por parte de meus pais, meus avós foram os pioneiros

daquele vilarejo. Eles fizeram muitas benfeitorias, como o belo

caminho feito de cerejeiras, que foram exclusivamente trazidas

da Inglaterra para enfeitar as laterais daquela larga ruazinha - o

que dava, além de graça e beleza, certo mistério ao trajeto. Era

incrível o enorme tapete de flores que se estendia para

passarmos no outono. O vilarejo ainda era pequeno e mais

Adriana Matheus

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parecia um labirinto, porque todas as ruas se cruzavam. Todos

se conheciam, mas poucos eram amigos, e os mais jovens de

certos recursos financeiros eram enviados à Europa para

estudarem e, na maioria das vezes, não retornavam à casa

paterna. A vida no campo não lhes convinha mais. Mas, por

certo, Salamanca cresceria muito com os tempos que viriam.

Se chegasse qualquer estranho ao vilarejo, em questão de

pouco tempo todos os moradores ficavam sabendo da novidade.

Era engraçada a maneira como os habitantes daquele pequeno

vilarejo comportavam-se. Tão primitivos!

Naquele tempo, eu já não era vista com muito bons

olhos. Mas era por motivos corriqueiros e questionáveis, pois as

pessoas achavam-me esnobe. Mas eu não o era. Pelo contrário,

era uma jovem medrosa e muito tímida, esquivava-me das

pessoas por não saber como me comportar no meio delas. E

também tinha o fato de que a minha madrasta nunca me deixara

participar das reuniões do nosso conselho. Muitas das jovens de

minha idade não podiam opinar, mas sempre estavam presentes

a tal evento, pois era uma maneira de se socializar e, claro, de

arrumar um pretendente. Quando raramente eu podia sair, era

sempre na companhia da minha ama Alicia ou de minha amada

Maria, governanta da casa. Assim seguiram-se meus dias, sem

nenhuma emoção ou aventura - o que era um tédio, pois meu

espírito gritava por aventuras e coisas diversas, que nunca pude

realizar na minha curta existência.

Lembro-me, ainda, de minha casa: era bem

grande. Mas não era uma casa acolhedora, porque faltava paz e

harmonia. Fiz uma rápida e breve descrição dos detalhes. Na

verdade, o que eu mais gostava não estava lá dentro. Nunca fui

muito detalhista. Algumas coisas deixei passar em vão, não por

falta de percepção, mas porque esta realmente não era a casa dos

meus sonhos. Quando somos crianças, tudo é bom, tudo são

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

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flores. Encontramos divertimento até no meio das lágrimas, e

luz no meio das trevas. Fazemos refúgio no silêncio, e nossos

corações não guardam rancor.

Vivi até metade de meus dezenove anos a triste e

turbulenta história que me trouxe a este terrível lugar. E no meio

do ódio, da inveja e da ambição, consegui criar para mim um

mundo imaginário. No meio de coisas velhas e usadas, vivia

minha vida de fantasias.

Cresci amargurada, medrosa, tímida e isolada do

mundo. Sem dúvida, minhas roupas eram caras. Não porque

zelavam por mim, mas porque eu não podia aparecer maltrapilha

perante as pessoas da sociedade. E também isso mostraria a real

situação financeira da minha família: apesar da ostentação, a

falta de recursos financeiros era escondida a todo custo.

A maioria dos vestidos nunca usei, mas minha madrasta

fazia questão de gastar mesmo assim. Por não ter nenhum amigo

com quem pudesse falar, eu ficava a maior parte do tempo no

sótão, na cozinha ou com os criados. Aprendi a fazer muitas

coisas domésticas apenas observando, pois os escravos e criados

não me deixavam tocar em nada: tinham medo de uma

represália. Eu era a sinhazinha, um enfeite de porcelana e sem

nenhuma utilidade. Eu não gostaria que tivesse sido assim, mas

as circunstâncias e a própria época em que vivi ajudaram muito

para isso.

Enfrentei o mundo por amor. Enfrentei os homens e a

Igreja para mostrar que também nós, mulheres, temos o direito à

igualdade, a ir e vir. E que somos livres em expressão de

religião, vontade e igualdade. Enfrentei o ódio nos olhos, no

coração e nas atitudes de muitas mulheres por quem lutei. Mas

eu as entendia. Na verdade, bem no íntimo, todas aquelas

mulheres gostariam de estar no meu lugar - não na dor, é claro,

mas em coragem e determinação! Coragem de nunca se negar e

Adriana Matheus

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de falar o que pensava. E determinação de lutar pelos ideais e

também por um lugar ao sol, entre homens preconceituosos e

ditadores.

Não me arrependo do que fiz, mas do que nunca pude

fazer. Minhas irmãs de almas sofreram muito mais do que eu, no

cativeiro de uma masmorra fria e sombria. Pois viveram a vida

toda sob o jugo dos homens, que muitas vezes eram seus

amados. Embora a maioria delas tivesse escravos, elas eram

escravas do silêncio e da submissão. Ser uma bruxa não foi e

jamais será fácil. Eu vivia em um mundo de falsidades, onde o

luxo e o dinheiro encobriam qualquer falha humana.

Minha casa era muito grande, com muitas passagens

secretas. Algumas descobri a duras penas, para me esconder de

minha madrasta. Os corredores eram enormes e, ao sairmos do

meu quarto, passávamos pelos aposentos do casal e por mais

oito outros, ainda vazios, que às vezes eram usados pelos

hóspedes. Seguindo pelo corredor largo, com uma passadeira

cor de carne e desenhos geométricos, chegávamos ao antigo

quarto de minha mãe, cuja porta nunca era aberta. Os motivos

eram desconhecidos e alheios para mim, até então.

Eu sempre sentia certo arrepio naquele corredor, pois era

de pouca iluminação e dava-me a impressão de ter uma pessoa

atrás de mim. Aliás, toda a casa me dava certo arrepio. Por fim,

chegava a uma escadaria, que era meio em caracol, toda de

mármore branco, com corrimão de madeira muito encerada. Eu

adorava escorregar no corrimão quando não tinha ninguém por

perto. À direita, ao final do corredor, era o sótão onde

guardavam quinquilharias - meus tesouros. Na verdade, toda a

memória da minha família estava lá em cima.

As escadinhas eram estreitas e de madeira; o sótão mais

parecia uma velha torre onde me refugiava da bruxa má. Meu

esconderijo antissurras, pois, quando minha madrasta se

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

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desentendia com meu pai, era em mim que descontava seu ódio.

Como se eu tivesse alguma coisa a ver com desentendimentos

entre eles... Os dois pareciam cão e gato, não conseguiam ficar

perto um do outro por meros segundos sem se engalfinhar.

Minha madrasta era muito exigente e só queria saber de gastar.

Eu tinha mania de ficar no topo da escadaria, encostada

no beiral, olhando o andar de baixo e escutando as conversas e

discussões de meu pai. Chegava a ficar tonta, pois os ladrilhos

do hall de entrada davam a impressão de vermos um enorme

tabuleiro de xadrez, já que o piso era quadrangular em tons de

preto e branco. À esquerda, seguia-se para o escritório de meu

pai, que era quase como uma passagem secreta, por ficar

embaixo da escada. No fim da escada, à direita, existia um

grande salão de bailes, onde tínhamos a mais bela varanda, toda

em mármore branco.

No salão, existiam enormes pilares, dando certo ar de

templo romano. Por ser tudo muito branco, quando criança eu

pensava ser o céu. Sentia-me uma fada e rodopiava, abrindo os

braços. À esquerda, ainda no final da escadaria, seguia-se para a

cozinha, por um enorme corredor de tábua corrida. Minúsculos

quadros familiares foram pendurados em suas laterais. Eu o

chamava de corredor dos espíritos.

Ao chegarmos à enorme cozinha, tínhamos um

gigantesco fogão de lenha, onde Tereza criava as mais deliciosas

receitas junto à escrava Joana, sua auxiliar. Havia uma grande e

pesada mesa de carvalho, no centro. Panelas de bronze, muito

areadas, foram penduradas por toda parte. Eu ficava ali, em pé,

ao lado das cozinheiras, observando aquela fantástica e

misteriosa forma de alquimia. Era o meu segundo local

preferido.

O simples mexer de Joana com a colher de pau nos

grandes caldeirões fascinava-me. A magia simples da mistura

Adriana Matheus

- 23 -

dos temperos me fascinava! Nascia em mim o desejo de ter o

meu próprio caldeirão. Por várias vezes, brincando de cozinhar,

juntei algumas ervas e coloquei-as dentro de uma caneca de

água quente, dando à pequena escrava Inaynmin, filha de Joana,

aquele chá com a minha mistura de ervas. Dizia a ela que os

anjos lhe dariam bons sonhos. O estranho é que a menina dizia

dormir muito bem toda vez que tomava meus chás.

A cozinha também era, para mim, um refúgio onde me

escondia da minha madrasta. Pois ela me perseguia por toda a

casa, não importando onde eu estivesse. Mas na cozinha ela não

entrava, porque achava indigno do seu status de senhora.

O sótão já estava ficando vulnerável, e a história que

Maria contava sobre lá ser mal assombrado já não estava

surtindo muito efeito - o que passou as ser perigoso para mim,

pois minha madrasta já não cria mais nos tais fantasmas. Então,

tive de me refugiar nos corredores, dentro das paredes entre um

quadro e outro, como um animalzinho assustado. Algumas

dessas passagens davam nos fundos da cozinha, onde eu

aparecia inesperadamente no meio das cozinheiras que, na

maioria das vezes, levavam um grande susto. Tereza colocou-

me a alcunha de pequena sombra, pois às vezes, quando ela

olhava para trás, lá estava eu como num passe de mágica.

Tínhamos, ao lado de fora, um enorme pátio com uma

fonte d’água e um poço. Da escada dos fundos da cozinha, que

dava para esse pátio, podíamos ver várias montanhas ao fundo.

Sem sombras de dúvida, não existia nada mais lindo do que a

visão daquelas montanhas! O cenário era tão incrível e mágico!

A impressão que eu tinha, ao ver o sol despontando no

horizonte, era que ele as fazia mudar de cor, para um verde

quase azulado. Sentia-me especial por estar fazendo parte da

obra de um Grande Mestre. Nenhum pincel pintaria nada tão

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 24 -

perfeito! Eu não gostava da minha casa, mas amava o lugar onde

vivia.

Essas lembranças de infância vieram à tona

saudosamente. E especialmente naquele dia - vinte e um de

julho de 1819 - acordei muito cedo: exatamente às duas da

madrugada. O galo mal tinha cantado e lá estava eu de pé. Tudo

o que eu tinha aprendido até aquele momento foi com os livros.

Em minha solidão, eu lia muito - o que me foi de grande valia

em meu aprendizado. Muitos desses livros foram encontrados

no sótão, junto aos pertences de minha falecida mãe. Andei de

um lado para o outro do quarto, como uma galinha que havia

perdido seus pintinhos. Algo me estava incomodando em

demasia. Minhas mãos suavam e meus sentidos estavam

aguçados. Por causa dos sonhos confusos e pesadelos - que eram

constantes - eu via sombras nas paredes e vultos ao meu lado,

constantemente. Parecia haver pessoas perto de mim, vozes

falavam ao meu ouvido diariamente. Por não ter nenhum

conhecimento, sentia medo. Não sabia o que eram e o que

queriam comigo. Eu tampava os ouvidos com as mãos, na

tentativa de não as escutar. Outras vezes, eu respondia e

conversava com elas. Às vezes eu as remedava, e tais gestos

faziam minha madrasta pensar que eu era insubordinada.

Apanhei muito por causa das vozes. E elas pareciam

ficar cada vez mais irritadas com a proximidade da minha

madrasta. Erroneamente, eu achava que eram fantasmas. Mas o

pior de tudo isso é que eu não podia contar a ninguém, porque as

pessoas considerar-me-iam insana. Ou me entregariam nas mãos

de um exorcista - o que anteciparia o meu destino.

Especialmente naquela madrugada, elas estavam muito

mais agitadas do que de costume. Antes, elas eram assustadoras

e davam a impressão de estarem muito aflitas. Ora cantavam em

línguas estranhas, ora falavam todas juntas. Isso me confundia.

Adriana Matheus

- 25 -

Deixei aquelas aflitas lembranças para trás um pouco e

voltei à janela. Fiquei horas observando a montanha e sua

neblina misteriosa Queria esquecer aquelas almas que

desesperadamente me chamavam. Senti-me um pouco egoísta,

mas precisava me distanciar antes que elas voltassem a querer

falar comigo. Pois cada vez que eu pensava nelas, parecia estar

atraindo-as para junto de mim. Além de toda aquela confusão

com as vozes, havia também os maus presságios, que estavam

acarretando o meu espírito e, como nuvens, confundiam também

os meus sentidos. Eu achava que era devido à ausência de meu

pai, e também pela falta de noticias dele. Mas era uma mistura

de saudade, solidão e devaneios, em uma mente jovem e

atordoada por uma mediunidade ainda não trabalhada.

Algo estava para acontecer. Algo que mudaria a minha

vida para sempre. Lembrei-me de Maria, que dizia que eu havia

nascido com dons especiais. E que, ao completar meus vinte e

um anos, as coisas ficariam melhores. Bom, eu faria vinte no

ano seguinte e tinha a esperança de que as coisas pudessem

melhorar a partir dali. E que meus dons, ao aflorarem,

trouxessem-me um pouco mais de paz. Na verdade, não sabia se

eu poderia chamar aquelas tormentas de dons. Só sabia que elas

eram espirituais. O meu medo de vê-los era tão grande que, de

alguma forma, trazia-os para bem perto de mim. Às vezes

pensava serem coisas da minha mente. Mas, com o decorrer do

tempo, meus sentidos foram aguçando ainda mais; passei a ter

estranhas visões de fatos que ainda não tinham acontecido. Na

maioria, eram sonhos que mais pareciam pesadelos. Tudo era

uma incógnita para mim. Maria chamava essas coisas de

premonições. Eu via a vida das pessoas e, se alguém mentisse,

sabia que estava mentindo. Não sabia o porquê de estar

acontecendo comigo. Eu era totalmente leiga nos assuntos da

magia. E isso era algo agonizante, pois me deixava irrequieta e

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 26 -

depressiva. Mas o certo é que minha vidinha monótona, sem

graça e atordoada estava para mudar da água para o vinho. E

isso aconteceu muito rápido.

Quando meu corpo se arrepiava e me dava calafrios, era

a forma de os meus sentidos de bruxa me avisarem que algo

ruim estava para acontecer. Mas, por não ter noção, a depressão

passou a tomar conta de mim. Chorava por qualquer coisa e sem

motivos aparentes. Algo estava errado comigo. E ninguém sabia

como agir: eu precisava de ajuda, mas o socorro não vinha!

Muitas vezes ansiava por ver o mensageiro, que nunca chegava

dando notícias de meu pai. Era mais uma fuga para escapar da

depressão. Estava ficando louca. Meus pensamentos mudavam

de direção, como o vento de lugar.

Onde estaria o mensageiro? Precisava vê-lo. Na verdade,

ele só passaria às sete e trinta, seu horário normal. De quinze em

quinze dias, sempre nos trazia uma carta de meu pai, mas eu já

não estava aguentando de tanta ansiedade. Fazia um mês sem

notícias; meu coração estava apertado.

Não havia conhecido minha mãe. Meu pai, no entanto,

era tudo o que eu tinha naquele momento. Minha madrasta era

perversa e fingia ter um falso afeto por mim. Nunca me pegara

ao colo ou fizera um afago em meus cabelos quando eu ainda

era criança. Pelo contrário, humilhava-me com palavras hostis e

sempre me batia por qualquer motivo. Suas ameaças de me

colocar em um convento eram constantes. Era impressionante a

falsidade e o fingimento daquela mulher. Na frente de meu pai,

sempre me tratava com sorrisinhos forçados e uma delicadeza

inexistente. Aliás, tudo nela era demasiadamente falso.

Lembro-me de certa vez, depois de ter apanhado muito e

ter ficado com o corpo coberto por hematomas, ter sido trancada

dentro do guardarroupa um dia inteiro. Gritei, quase desfaleci,

mas ela não deixou ninguém me tirar de lá. Fiquei em estado

Adriana Matheus

- 27 -

catatônico. Maria, naquele dia, ficou do lado de fora da porta,

cantando para mim, tentando mostrar que eu não estava sozinha.

Jamais me atrevi a contar para meu pai, pois Maria dizia que ele

não podia ter aborrecimentos, devido à saúde instável. Ele

estava com sérios problemas de coração e bebia muito.

A crueldade de minha madrasta não estava só na forma

como ela me tratava. Também era cruel com os criados e

escravos. Ela deixou um escravo, de nome Sandoval, sem comer

por dias. E o mesmo já havia feito comigo. Só que, por ser

criança, adoeci e fiquei de cama. Maria convenceu meu pai a

chamar o doutor, e ambos quiseram saber por que eu estava tão

debilitada. Minha madrasta entrou no meio da conversa,

dizendo-lhes que eu estava muito angustiada devido às

constantes ausências de meu pai, e que eu havia perdido o

apetite de tanta tristeza. Ela sempre encontrava um meio de se

livrar de sua culpa. Ela tinha certo requinte de crueldade e fazia

meu pai sentir-se péssimo. Ele, naquele dia, bebeu até cair em

um canto da casa. Eu e Maria o achamos e o colocamos para

dormir em um sofá. Maria não tinha medo dela, mas sabia que,

se contasse, ela se vingaria em mim.

Eu estava completamente indefesa e nas mãos daquela

famigerada. Sua beleza e falsidade seduziram meu pobre pai,

que estava carente e solitário, com uma pequena menina recém-

nascida nos braços. Não que Maria não estivesse dando conta do

recado. Mas as cobranças entre os amigos e o preconceito da

sociedade, por ele ser um viúvo ainda jovem, pesaram-lhe

muito. É claro que sua posição socioeconômica e o título de

nobreza dela também colaboraram para aquela união de

conveniências.

Não sei o que fizeram de errado, mas ele se viu obrigado

a se casar às pressas com a jovem condessa Marli Del Prat, filha

do duque e também viúvo George Von Del Prat. Meu pai foi um

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 28 -

rico comerciante, mas estava passando por muitas dificuldades

financeiras, causadas pelos gastos de sua jovem esposa. Isso

tudo pesava em seu bolso e em seu coração. Ele era uma pessoa

de pouco se abrir, o que poderia estar causando os seus supostos

problemas de saúde. Alguns de nossos criados estavam conosco

há anos - como Maria, que havia sido praticamente criada em

nossa residência. Seria muito injusto colocá-la na rua de uma

hora para outra. Maria, que abdicou de toda a sua vida para

cuidar de mim, por amor e fidelidade a uma promessa feita à

minha mãe em seu leito de morte... Passávamos por uma enorme

crise financeira, enquanto a condessa gastava horrores em

bailes, roupas e joias, desperdiçando o pouco que ainda

tínhamos.

Por ser muito jovem quando se casou com meu pai,

passou a disputar comigo sua atenção. Era de uma beleza muito

rara em meu país. Era filha de alemães e holandeses. E sua

união com meu pai, que também era um fidalgo, embora falido,

fora de grande valia política. Com essa união, seus parentes

teriam livre acesso de trânsito dentro da Espanha, entre outros

benefícios políticos.

Minha madrasta era uma mulher esbelta, com formas

muito bem definidas e fartas. Cabelos muito negros e olhos

azuis; sua voz tinha um tom suave e aveludado. Deixava os

fidalgos, por assim dizer, abobalhados. Sua pele era rosada

como o pêssego, seus lábios eram finos e havia uma pequena

pinta sobre eles. Vestia-se sempre com as melhores roupas,

embora exagerasse no brilho.

E as joias, então? Eram sempre as mais caras! Não

poupara o seu dote, esbanjando até as economias que meu pai

fez no decorrer dos anos. Por isso, chegamos quase à beira da

miséria.

Adriana Matheus

- 29 -

Com os gastos irregulares da condessa, meu pai passou,

então, a fazer longas viagens, na tentativa de fazer novos

investimentos para salvar as finanças. A Europa era promissora

e, por isso, ele ficava por meses fora de casa.

Porém, minha madrasta não dava trégua com os gastos e

continuava a esbanjar as poucas economias que nos restavam.

Às vezes, ela parecia fazer aquelas coisas na tentativa

desesperada de obter a atenção do meu pai – pois, devido à sua

rara permanência em casa, estava deixando de lado as

obrigações como esposo.

Mas, na minha cabeça, era por maldade mesmo que a

senhora esposa de meu pai fazia todas aquelas coisas terríveis!

Cheguei a flagrar meu pai soluçando pelos cantos da casa. Mas,

a qualquer proximidade e tentativa de ajudá-lo, ele se esquivava

e saía à francesa.

Por dias trancava-se em seu escritório. Ele

aparentemente não tinha muita alternativa, pois, se colocasse os

pés para fora de seu refúgio, sua esposa o seguia tagarelando,

exigindo e reclamando coisas corriqueiras e sem muita

importância. Eram visíveis, vergonhosas e humilhantes as

discussões dos dois perante a criadagem, que ficava debochando

às escondidas. E quando ele não aguentava mais, a agressão

passava da verbal para a física. Minha madrasta tinha seus

defeitos, por certo, mas eu não suportava ver meu pai

espancando-a. Vi aquela mulher muitas vezes ter que ficar sem

poder colocar o rosto para fora de seus aposentos por causa dos

visíveis hematomas. A desculpa usada era que ela estava

indisposta ou com uma constipação muito forte.

Os amigos de meu pai, por assim dizer, só o procuravam

para farras e bebedeiras. Ele era um fraco e não sabia dar um

rumo à sua vida. Estávamos vivendo em uma guerra fria e

silenciosa. Um jogo de interesses e mágoas, em que a mais

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

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prejudicada era eu. Com tanta repressão, também aprendi a

abaixar a cabeça para tudo o que eles dissessem. Cheguei a

pensar em suicídio, mas era covarde demais para isso. E por não

conseguir me imaginar longe de meu pai e de Maria, sempre me

calei, escondendo comigo suas tramoias. Os anos foram

passando e a condessa não tomava jeito mesmo; passou a viver

de armações para arrancar dinheiro de meu pai e outros fidalgos,

que frequentavam minha casa na ausência de meu pai. Nunca

tive voz ativa, meu pai só fazia presença e a pobre Maria não

passava de um capacho, como o resto da criadagem. A

autoridade-mor da casa era mesmo de sua majestade Marli Del

Prat. Entre outras coisas, ela queria tudo só para si. Inclusive, o

meu lugar como herdeira única.

Seu comportamento era detestável e nauseante, pois às

vezes, para chamar atenção, ela se comportava como uma

menininha, fazendo trejeitos e mesuras irritantes. Mas era só

meu pai virar as costas que sua personalidade aflorava, dando

lugar à verdadeira pessoa escondida atrás daquela aparência

frágil e ingênua que a condessa criara como personagem, para

engambelar a todos do sexo masculino.

Mediante tudo isso, eu sabia que era improvável meu pai

acreditar em mim. Eles não se suportavam, mas tinham que

manter as aparências e cumprir seus deveres perante a

sociedade. Se eu não morasse naquela casa e se todos os dias

não estivesse presenciando tanta falsidade e falta de caráter,

certamente também não acreditaria! Pois aquela doce e jovem

senhora e aquele tão elegante cavalheiro eram, na verdade, duas

pessoas repletas de artimanhas.

Quando meu pai viajava - além das festas constantes,

que iam até altas horas -, a condessa também se embriagava

pelos cantos, enquanto eu era obrigada a ficar trancada em meu

quarto, para não ver o que realmente acontecia. Suas risadas

Adriana Matheus

- 31 -

altas e histéricas no corredor incomodavam-me e, por várias

vezes, tive que tampar meus ouvidos, colocando chumaços de

algodão para não ouvir as atrocidades que saíam ecoando pelo

corredor. Como desejava ter tido outra vida...! Não podia ver,

mas sabia que ela estava com outros homens. Não seria difícil

flagrá-la nas proximidades do nosso jardim com os Lorde e os

fidalgos, frequentadores de suas constantes festas noturnas. E se

alguém a visse, ela se justificava, dizendo que fazia aquilo para

o bem de todos e das finanças.

Se não tivesse vindo de uma família de nobres, eu a

consideraria uma cortesã, devido à sua conduta leviana e vulgar.

Minha vida naquela casa foi triste, sem sentido. Estava a me

transformar em uma pessoa revoltada. Minha luta era comigo

mesma, eu não poderia me transformar naquela pessoa vazia e

sem vida que eles queriam que eu fosse. Maria ensinou-me que,

quando alguém deixa morrer os sonhos, a vida acaba. Ela dizia

que só não sonhava quem não tinha a capacidade para realizar.

Eu tinha sonhos... e eram muitos. Só não sabia onde eles

estavam naquele momento.

Nunca frequentei escola, mas estudei em casa.

Tive aulas de língua estrangeira, piano e literatura. Minha

professora, a Senhorita Ludmila Lavenier, era minha única

companhia, depois de Maria. Tinha mais ou menos trinta anos,

embora aparentasse ser mais jovem. Era de origem holandesa e

herdou o sobrenome de seu avô paterno, que era francês. E por

ter sido criada e educada na França, seu sotaque era encantador.

Por muitas vezes desejei que ela tivesse conhecido meu pai

antes de minha madrasta. Ela era culta, simpática e divertida.

Sua cultura era consequência de suas muitas viagens pela

Europa. Sempre muito elegante, discreta e muito ponderada ao

se dirigir às pessoas. Tinha um tom de voz paciente e educado.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 32 -

Era admirável ver uma mulher muito além do século XVIII,

conhecedora de várias culturas e mestre em disciplina familiar.

Comentavam as más línguas que ela tinha vários

amantes, e que era uma mulher com ideias muito opostas.

Alguns chegavam a dizer que ela não era nada feminina em seu

jeito de pensar. Mas eram apenas boatos maliciosos. Ela mesma

me contou que amou apenas uma pessoa em toda a sua vida e

que, por proibição dos pais dele, não puderam se casar, por

causa de sua inferioridade financeira. Por isso, ela resolveu

seguir em frente como educadora particular de finas senhoritas.

Suas histórias eram incríveis! Contou-me que certa vez

almoçou com o próprio rei, sentou-se à mesa real como sua

convidada de honra. Não era o tipo de pessoa que desse ouvido

a comentários e mexericos dos outros. Era livre e independente,

como eu gostaria de ter sido. Também me cotou sobre as damas

da corte para quem já tinha ensinado suas aulas de piano, e

sobre os romances secretos no palácio real. Ríamos muito.

Senhorita D`Lú - era como gostava de ser chamada - foi

altamente recomendada pela Senhora Carllota Gonzalez, uma

governanta amiga de Maria, que trabalhava na mansão do

Marquez de Miqueias. Foi uma pena quando meu pai teve de

dispensar seus serviços por causa dos ciúmes da condessa e, é

claro, por causa da nossa situação financeira, que não ia nada

bem. O resto, aprendi por conta própria.

Assustei-me quando Maria entrou em meu quarto sem

bater, com a bandeja de café. Maria era uma mulher gentil,

educadíssima e extremamente respeitável. Podia-se dizer

qualquer coisa sobre Maria, menos duvidar de sua conduta,

inabalável. Era uma mulher de estatura baixa, rechonchuda

como um empanado de frango. Fazia questão de manter seus

cabelos negros presos em um coque perfeito. Tinha os olhos

grandes e negros, lábios largos e era muito severa com os seus

Adriana Matheus

- 33 -

subalternos. Usava luto constantemente em sinal de respeito à

memória de minha mãe. E ficou muito aborrecida quando papai

casou-se novamente, embora nunca se atrevesse a dizer.

Nunca se exaltava e constantemente usava de ironia em

suas conversas. Acho que herdei sua maneira de ser. Ela nunca

conseguiu dizer-me não. Mas, às vezes, colocava-me de castigo,

o que era pior do que levar chineladas. E ali, naquele momento,

observando-a de costas, percebi que seu peso, embora não

condizente com sua estatura, dava-lhe certo charme, porque

mantinha uma postura elegante e ereta. Deveria ter sido muito

bela quando ainda jovem. Por certo, foi desejada entre os

homens. A pobre mulher não se casou, não tinha filhos, passou a

vida toda se dedicando a mim e a meu pai.

Era filha de espanhóis ciganos. Tinha o estranho costume

de prever o futuro através das cartas do tarô. Por várias vezes, às

escondidas, abriu o baralho para mim, sempre usando um ritual.

Certa vez, quando abriu o tarô para mim, depois de muito fitá-

lo, começou a chorar. Fiquei sem saber o porquê daquele pranto

incessante. Minhas tentativas de interrogação foram em vão, e

de nada adiantava tentar consolá-la, pois seu pranto era

incessante. Maria abraçou-me e disse:

– Tem um triste futuro, minha filha! Precisa comer

alguma coisa.

Abriu as janelas e afastou as cortinas de organza e seda

cor-de-rosa. Ajeitou a bandeja com o desjejum na mesinha de

lanches, que era de cristal e cobre decorado, trazida da Inglaterra

por minha mãe. Em seguida, saiu enxugando as lágrimas e

dizendo, entre dentes, que os afazeres a esperavam, deixando-

me com as respostas ao vento mais uma vez. Sempre tão

atenciosa e dedicada, mas muito meticulosa e misteriosa quando

se tratava das cartas. Detalhei a mesinha novamente naquele

momento nostálgico de minha vida e lembrei-me de meu pai,

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 34 -

que certa vez contou-me que minha mãe ficava horas

escrevendo suas receitas e seus poemas ali. Ele dizia que ela era

cheia de mistérios. Interrompi novamente meus pensamentos,

pois a copeira entrou, trazendo uma ânfora com água morna e

colocando-a na bacia de porcelana chinesa.

– Não vai comer menina? - perguntou a copeira.

– Daqui a pouco, estou meio sem fome agora.

Ela saiu, fazendo-me ameaças de que, se eu não comesse

tudo, chamaria o doutor. Só de pensar, senti arrepios! Ele era um

velhote horrível, com cara de louco. Fumava um charuto

fedorento, o seu cheiro pessoal dava-me náuseas. Sua barriga

salientava-se por cima daquela roupa encardida, que já não via

água há séculos. Sem contar que metade de seu rosto ocultava-

se em algum lugar entre a barba e o tenebroso bigode. Se

olhássemos muito, víamos uma saliva escorrendo no canto

externo dos lábios. Eu ficava doente só em pensar que o teria

perto de mim, colocando-me aquelas mãos amareladas pelo

tabaco. Nunca o vi lavar as mãos para me examinar. Toda vez

que ele ia me visitar quando criança - para exames rotineiros ou

qualquer outra coisa -, se eu estivesse doente, ficava pior. E se

eu não estivesse, aí ficava mesmo. Arregalei os olhos de pavor!

Sentei-me na cama, coloquei a bandeja no colo e comi tudo o

que havia no desjejum, pois, com certeza, ela cumpriria sua

promessa. Ela, sorrindo, parecia ter lido meus pensamentos.

Aliás, sempre fazia isso. Dei uma espreguiçadela gostosa no ar e

empurrei a bandeja vazia. Voltei para a janela, fiquei por horas

observando o jardineiro Joseph, enquanto ele cuidava das rosas

com dedicação e minúcia. Vi Maria levando para ele café e

sequilhos. Ele sempre estava próximo dela e pareciam tão

felizes! Maria sorriu e saiu em seguida, toda faceira.

Adriana Matheus

- 35 -

Não demorou muito e logo estava de volta para buscar a

bandeja. Tinha nos lábios um sorriso que não era habitual.

Definitivamente, Joseph a fazia muito bem. Deu um suspiro

profundo antes de me fazer um convite para passar sua folga

com ela:

– Senhorita Anna, gostaria de passar o fim de semana

comigo na casa da minha irmã que mora no interior?

Perguntei se tinha avisado à senhora minha madrasta, o

que confirmou entusiasmadíssima com a cabeça. Pediu que me

apresasse e saiu toda satisfeita porta afora.

Fazia muito tempo que eu não a via daquele jeito. Maria

sempre tivera permissão para ir visitar seus parentes no interior

e, por certo, não era essa a causa de sua súbita alegria. Daria

tudo para saber o que Joseph tinha-lhe falado. Tomei um banho

caprichado, com os sais que ela fizera para mim. Escolhi um dos

meus mais lindos vestidos. Mas este era adorável, em tom areia,

todo rendado e com muitos babados. Seu decote deixava meus

ombros à mostra. Olhei-me no espelho e senti-me bem ousada,

mas mantive a discrição quanto aos exageros. Gostava de ficar

admirando-me ao espelho e ali, olhando o retrato de minha mãe,

comecei a fazer comparações entre nós duas. Naquele momento,

percebi o quanto me parecia com ela.

Meus olhos eram cor de mel, puxando para verde. Meus

cabelos tinham cachos largos e eram de um tom castanho quase

dourado. Minha pele, morena clara, era perfeita e sem nenhuma

mácula. Meus lábios eram grossos. Definitivamente, eu a

mistura perfeita das raças. Minha mãe era inglesa, de pele muito

clara e olhos muito azuis. Seus cabelos eram de um tom

castanho-claro, quase louro. Fitando-a naquela fotografia, achei-

a parecida com um anjo. Eu havia herdado dela não só a beleza,

mas também a elegância e o tom polido na fala. Minha cintura

era extremamente fina e eu só usava o espartilho por mero

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 36 -

capricho. Esse tipo de arrogância e vaidade foi uma coisa das

quais me arrependi de ter tido.

Embora ela tivesse morrido quando nasci, esses eram os

comentários a seu respeito. Na aparência, achava-me igual à

minha mãe, e sentia muito orgulho disso! Meu pai não ficou

atrás. Ele era um espanhol muito alto, olhos cor de mel, pele

bronzeada e cabelos claros e lisos, ombros largos e fortes.

Lembro-me de vê-lo, quando eu era criança, depois de chegar de

suas caçadas, montado em seu cavalo baio. Ele se parecia com

um personagem de contos de fadas. Ficava louca, esperando que

ele me colocasse em sua garupa e me levasse para cavalgar em

seu colo. A sensação de proteção e liberdade era um misto

formidável. Que pena não podermos voltar atrás no passado, no

exato momento em que fomos mais felizes... Neste momento,

mediante tanto sofrimento, é que percebo como eu tinha uma

vida fútil e, por certo, poderia ter feito mais pelo meu

semelhante.

Às vezes ele tentava ser durão com os empregados, mas

seu coração era bom e acabava voltando atrás. E quando sorria...

era perfeito! Seu olhar era penetrante e sedutor. Aposto que

mamãe, ao vê-lo, apaixonou-se imediatamente. Esse era o tipo

de amor que eu queria para mim: eterno e verdadeiro. Eu tinha

certeza de que ele ainda a amava, pois sempre trazia consigo,

dentro do relógio de bolso, um retrato dela. Mesmo casado com

minha madrasta, ele ainda, às escondidas, ficava fitando com

ternura aquele retrato.

Ao se casar com a condessa, meu pai tornou-se

carrancudo e grosseiro, afastando-se de mim dia após dia. Passei

a me sentir culpada por minha mãe ter falecido durante o parto.

E minha madrasta, ao perceber meus temores infundáveis,

passou a agredir-me, chamando-me de pequena maldição. Dizia

ser eu a culpada pela morte da minha mãe e pelo fato de ela

Adriana Matheus

- 37 -

nunca ter engravidado. Mas, um dia, meu pai a ouviu e interveio

por mim. Disse-lhe que nunca mais queria vê-la fazer-me tais

acusações levianas. A condessa engoliu seu ódio por mim

naquele dia, e subiu para seus aposentos, fingindo estar se

sentindo mal. Não me lembro de ter visto meu pai procurar por

ela e pedir-lhe desculpas, como sempre estava acostumado a

fazer. Essa foi a única vez, desde que me entendia por gente,

que vi meu pai manifestar-se a meu favor.

Usei uma fita negra de veludo ao redor do meu pescoço,

com um camafeu de marfim de minha mãe. Agora só faltava a

sombrinha cor de palha, com delicadas rosinhas azuis e outras

com cor de damasco. Seu cabo era todo talhado à mão, e havia

sido meu avô quem o fizera para mim. Agora sim estava pronta

para meu passeio naquele final de semana, que seria

praticamente um dos últimos com Maria.

Havia meses que eu não saía de casa. Por isso,

não poupei esforços e caprichei naquela manhã. Levei uma

maleta com tudo que julguei ser necessário. Não me esqueci de

colocar alguns mimos para presentear os donos da casa onde

passaríamos o final de semana. Levei comigo minhas

economias. Achei que seria o momento exato de gastá-las.

Maria entrou no quarto, de repente, e fitou-me de

cima abaixo. Ironizou, ao perguntar onde seria o baile. Senti-me

encabulada e corei de imediato. Ela ainda continuou a brincar,

dizendo que, daquela forma, eu iria arrumar pretendentes com

muita facilidade. Sorri meio sem graça e falei que, se fosse

somente para desfilar ao lado de um homem triste e carrancudo

como meu pai, só para mostrar à sociedade que eu era capaz de

arrumar marido, preferiria acabar solteirona e comendo bolachas

com chá.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 38 -

– Minha nossa! Pensei que eu iria poder descansar um

dia! Mas, pelo que vejo, vou ter que cuidar de uma solteirona

carrancuda - disse Maria, dando uma sonora gargalhada.

– Ah, Maria! Jamais me apaixonarei! Somente se o amor

for verdadeiro e duradouro. Mas sei que isso será impossível de

acontecer, pois a nossa sociedade só visa o materialismo. E,

levando em conta a situação financeira atual de minha família,

isso será praticamente impossível, pois meu dote não é

considerado tão valioso como o de algumas jovens do condado!

Também temos que levar em conta outro fato não menos

importante.

– E qual seria? - perguntou Maria, curiosíssima.

– O fato de que a senhora minha madrasta pode ter

furtado meu mísero dote antes mesmo de eu ter tido a chance de

usá-lo.

Dessa vez, nos duas caímos em risos. Mas ela ainda

prosseguiu, tentando corrigir o meu pensamento de depreciação

para comigo mesma:

– Não quero que diga sandices, criança tola. Por certo,

um jovem mancebo irá se apaixonar por ti do jeito que é. Não

podemos julgar todas as pessoas somente por conhecermos uma.

Afinal, os dedos das mãos não têm o mesmo tamanho.

– Hummm... E quem seria essa pessoa tão escrupulosa e

tão pouco materialista, que vê uma moça pelo que ela é, e não

pelo dote que ela possui? E quanto aos dedos das mãos, Maria,

eu já os observei. Não são iguais, por certo, mas têm o mesmo

tamanho, só estão posicionados de forma diferente. Basta

observá-los e verá que estou correta. Ah, Maria, nós fazemos

parte de uma grande peça teatral, na qual só mudam os

personagens! E o cenário? Às vezes! Mas a história é sempre a

mesma. Principalmente para nós, mulheres, que somos nada

mais nada menos do que meras marionetes nas mãos dos nossos

Adriana Matheus

- 39 -

senhores. Não existe casamento sem conveniência, Maria.

Valemos o dote que possuímos, ou seja, o dote que levamos

como bagagem. Ouso dizer que a própria condessa foi uma

dessas vítimas.

– Agora sei que a senhorita já não está mais em seu juízo

perfeito! A senhora Del Prat? Uma vítima? Nunca!

– Maria, acha que ela também não foi obrigada por seu

pai a casar com um homem viúvo, que ainda trazia de bagagem

uma filha nos braços? Pense bem, não deve ter sido fácil para

ela, ter que se casar só porque já estava com vinte e oito anos.

Temos nossas diferenças, isso é certo. Mas não posso culpá-la

por ser como é. Ela é mais uma vítima de nossa sociedade. Já

pensou o que é ter que ver seus sonhos sufocados? E se ver

aprisionada a uma vida infrutífera e sem volta? Não é a senhora

mesma quem disse que, quando os sonhos morrem, morremos

com eles? Por isso ela desconta toda a sua ira em mim. E ainda

deve, por certo, sentir-se completamente frustrada por não poder

ter tido filhos. Até agora, com quarenta e oito anos, isso deve ser

horrível! Imagine só como a sociedade em que ela vive cobra

dela o tempo inteiro. Todos nós temos problemas. Os delas são

ainda piores que os meus. Acredite!

– A senhorita está completamente certa. Mas isso não

quer dizer que ela deva sair por aí, pisando nas pessoas menos

favorecidas.

– Concordo com a senhora! Mas não somos ninguém

para julgá-la. Ela foi criada com tudo do bom e do melhor,

nunca soube o que é sequer trocar a própria roupa. Ela foi

mimada em demasia. Tornou-se prepotente, ou quer que a

vejamos assim. Já a flagrei muitas vezes, depois de suas festas,

fitando o horizonte, visando sabe-se lá Deus o quê! Ela, de fato,

não ama meu pai, mas ainda prefere ficar com ele a voltar para

sua casa na Alemanha. Imagine o que diriam de uma mulher,

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 40 -

com o título de nobreza que ela possui, se alguém soubesse que

ela saiu da casa de seu marido? Não a veriam com respeito. E o

que ainda é pior, não se casaria novamente, principalmente por

não poder dar futuros herdeiros. Tenho certeza de que a

severidade do conde, seu pai, e ainda as cobranças da sociedade

repressora são piores do que os apertos e a solidão que tem

passado aqui. Ou a senhora acha que uma pessoa como ela não é

solitária?

– Por certo tem razão, minha querida e doce Anna, mas

não consigo entender como consegue achar qualidades em

pessoas como essa senhora.

– Não é questão apenas de ver qualidades nela; é questão

de entendê-la, como mulher e como ser humano. E ela só é

maldosa porque é revoltada. Prefiro ver as pessoas por outro

ângulo. Caso assim não fizesse, odiaria mais gente do que a

quantidade de cabelos que tenho em minha cabeça. Não me

importo com o que ela faz comigo. Vai ver ela está certa, nunca

encontrarei um bom homem para mim.

– Pois lhe digo que isso acontecerá em breve, e rezo para

que Deus lhe perdoe pelo passo que terá que dar. Sinto não

poder interferir em seu destino, minha filha. Pois, caso pudesse,

garanto-lhe que ele seria muito mais ameno do que o previsto. E

agora pare com suas ideias mirabolantes e inocentes a respeito

do ser humano. Para mim, pessoas más escolhem ser como são.

E saiu, olhando os dedos das mãos.

– Por que, Maria? - gritei. Viu isso em suas cartas de

tarô?

Estiquei meu pescoço, tentando achar sua face. Quando

ela se virou abruptamente para mim, notei profunda tristeza em

seu olhar.

– Por que nunca me responde a essa pergunta tão

simples? - indaguei insistente.

Adriana Matheus

- 41 -

– Talvez porque esta resposta seja simples demais, e só

possa ser respondida pela senhorita! Lembre-se: todas as

respostas estão dentro da gente. Agora chega de conversa e siga-

me, pois vamos acabar nos atrasando.

Segui-a, em silêncio e cheia de controvérsias

mentais. Se todas as respostas estavam dentro de nós, por que

sempre errávamos em nossos julgamentos?

Ao descermos a escadaria, Maria foi até a cozinha para

dar as ordenanças finais à criadagem. Fiquei entre os dois

últimos degraus, observando tudo à minha volta. A mobília,

embora fosse muito cara e exuberante, era de extremo exagero e

de um mau gosto imperdoável. Observei tudo a meu redor e

fechei os olhos para me lembrar até dos mínimos detalhes.

Estranhas a sensação de perda e a saudade antecipada que

tomaram conta de mim naquele momento. Era como se eu não

fosse mais ver aquilo tudo de novo. Senti medo e tristeza.

Minha madrasta observava-me do alto da escada. Ela era

como uma sombra constante em minha vida. Às vezes, tinha a

impressão de tê-la em frente a mim enquanto dormia. Não

resistindo, ela disse algo para me ofender.

– Desse jeito voltará casada, com um plebeu. Aliás, é

bem o seu tipo. Nunca se parecerá comigo, não conseguirá um

bom partido e jamais terá um homem a seus pés. Acha mesmo

que pode copiar-me? Criança tola! Não tente, não sou sua mãe,

nunca quis ser. Não vê que sou a mulher do seu pai, e que ele já

a esqueceu há muito tempo? O seu reinado acabou, minha

querida - se é que um dia existiu!

A condessa disse essas coisas enquanto descia a escada,

cambaleando. Dessa vez, excedeu-se em sua soberba, arrogância

e presunção. E a maneira com a qual falava a respeito de meu

pai ferveu meu sangue. Mas Deus me deu forças para não perder

a paciência. Levei em consideração que ela não estava sóbria

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 42 -

naquele momento. Na verdade, senti pena dela. O cheiro da

bebida era tão forte que me tonteou, devido à pouca distância

que ela fez questão de manter para me assustar - o que

conseguiu. Em seus olhos, percebi um ódio aterrorizante.

Fiquei tão nervosa e indignada – e, ao mesmo

tempo, assustada -, pois não sabia o porquê de ela realmente me

odiar tanto. Eu sabia que eu poderia ter respondido à altura. Mas

não o fiz. Desvencilhei-me dela o mais rápido possível, e saí

porta afora, às pressas. Pude, ainda, ouvir seus gritos histéricos e

rompantes pelo lado de fora.

– Vê se arruma um plebeu, velho, gordo e fedido por lá e

suma com ele para bem longe das minhas vistas. Assim, vai

poupar-me o trabalho de ter que eu mesma despachá-la para o

inferno!

Ergui minha a cabeça e fui até o jardim, onde estava

nosso jardineiro Joseph. Aproximei-me dele e abaixei-me para

cumprimentá-lo melhor. Eu estava tremendo tanto que ele,

parecendo ter percebido, mas também não querendo deixar

transparecer para que eu não ficasse ainda mais constrangida,

cortou um botão de rosas com um gesto de delicadeza, dando-

me em seguida. Por fim, disse, ainda de cabeça baixa:

– Uma rosa para uma linda flor! Sabe, senhorita,

a patroa ladra mas não morde. No fundo, ela sente tanto medo

da senhorita quanto a senhorita dela.

Sorri em agradecimento e aproximei-me, inclinando-me

e segurando sua cabeça com as mãos para lhe dar um beijo na

testa. Na verdade, eu compreendia o que ele estava tentando me

dizer. Imagine só: minha madrasta com medo de mim! Embora

parecesse hilário, era a mais pura verdade. Só que, naquele

momento, eu só conseguia ver o medo que eu sentia dela.

Joseph era um velhinho simpático e muito agradável.

Quando eu era criança, sempre me contava histórias e contos

Adriana Matheus

- 43 -

folclóricos sobre o povo cigano, e era fantástico ouvi-lo.

Levantei-me para olhar ao redor e admirar o esplendor do

magnífico jardim. Eram tantas flores! Rosas de todas as cores e

tamanhos, margaridas, gerânios, florzinhas do campo, violetas,

dálias, cravos, jasmins, orquídeas, papoulas, plantas

ornamentais... Tudo aquilo tinha cheiro de amor e fazia-me

muito bem. Toda aquela beleza misturava-se ao perfume da

hortelã, da alfazema e do alecrim.

A condessa tentou fazer com que meu pai acabasse com

o jardim por várias vezes. Mas ele sempre ficou em cima do

muro e nunca deu uma resposta positiva a ela. Aliás, seria

novidade se ele fosse negativo a alguma coisa relacionada a ela.

Para essa questão, ele apenas disse que iria pensar. Minha

madrasta continuou insistindo com esse assunto por muito

tempo. Mas, depois de nunca ouvir um sim conclusivo, acabou

desistindo por certo tempo.

Quando se casou, trouxe consigo toda uma decoração

pavorosa, inclusive as estatuetas monstruosas e sem nexo que

passaram a decorar o belo jardim da minha família. O pior é que

ela as fixou no centro, próximo à janela do meu quarto. Lembro-

me de quando eu era pequena: ao escurecer, sempre que olhava

pela janela, tapava os olhos com as mãozinhas, pois me davam

muito medo. Elas eram como pessoas decepadas e, na minha

mente frutífera e infantil, mexiam-se e pareciam estar

caminhado em minha direção. Eu corria para debaixo das

cobertas, deixando de fora somente o pequenino nariz para

respirar. Eu suava e tremia tanto que, quando Maria vinha dar-

me boa noite, tinha que trocar minhas roupinhas molhadas. Ela

sempre me acalentava com suas cantigas de ninar, na tentativa

de me acalentar até que eu dormisse.

O cavalariço Sr. Lorenzo aproximou-se de mim

por trás, assustando-me.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 44 -

– Calma, senhorita Anna! Só vim saber se está tudo bem,

pois ouvi quando a Senhora Del Prat estava a gritar com a

senhorita exasperadamente. Ela fez algum mal à senhorita?

– Não, Sr. Lorenzo, ela apenas ladrou um pouco além da

conta. Foi só, juro!

Ele pareceu não crer; então reforcei, olhando em

seus olhos.

– Sim. Está tudo bem. Deve ser a astenia causada pela

ausência de meu pai, ou o excesso de licor de jenipapo.

– Ah, por certo a Senhora deve estar precisando de uns

calmantes em dosagem maior.

– Oh, não diga isso! Não se pode misturar calmantes a

licores.

Começamos a dar gargalhadas. Lorenzo conseguiu

descontrair-me, afinal. Maria veio em seguida e disse:

– Imagine só, esses criados jovens não fazem nada

direito!

– Maria, Maria! Não estaria sendo a senhora exigente

demais com os pobres coitados? Não está tentando tirar o lugar

da senhora Del Prat, está?

Maria fez-me um ar de desaprovação pelo meu

comentário esdrúxulo. Lorenzo já havia colocado nossas

bagagens na carruagem. Abriu-nos a porta para entrarmos.

Seguimos, então, nosso caminho em direção ao enorme portão

verde musgo, com pontas em formato de lança e pintadas em

dourado. O enorme brasão da família Del Prat estava logo à

frente. A passarela toda, de pedras grandes e polidas pelo passar

dos anos, dava à entrada um ar de realeza. Pude ver a estufa

onde Joseph cultivava as mudas; era logo na lateral do jardim.

Quatro bancos foram colocados no decorrer do caminho, dois de

cada lado.

Adriana Matheus

- 45 -

Um escravo veio abrir o portão. E, pela primeira vez,

senti-me em liberdade, longe daqueles muros de medo e tristeza.

Suspirei aliviada. Mas era estranho, pois a sensação de que

nunca mais veria tudo aquilo novamente não me largava.

Minha sombra olhava-nos às escondidas, por trás das

cortinas da grande janela de vidro da sala de estar. Parecia uma

ave de rapina. O que será que se passava naquela cabeça louca e

cheia de luxúria? Sacudi minha cabeça, rindo comigo mesma.

Maria pareceu ler os meus pensamentos - aliás, ela era a minha

sombra mental e era constrangedor, às vezes, ter os pensamentos

invadidos. Como que em um impulso, Maria disse:

– Pare de criar caraminholas nessa cabecinha, menina!

Dei de ombros, virando o rosto para o outro lado, mas

percebi que ela também sorria. Maria era uma mulher muito

perspicaz e, por isso, achei melhor centralizar meus

pensamentos na paisagem ao meu redor.

As ruazinhas eram estreitas e encantadoras, com suas

belas e elegantes casas, todas decoradas com jardins repletos de

flores, pois era a moda trazida da Europa. As árvores frondosas,

que cercavam de um lado a outro as calçadas, pareciam ter sido

colocadas ali naquele momento, só para passarmos numa

passarela harmoniosa.

Muitas pessoas afoitas já transitavam para lá e para cá.

Senhoritas pareciam ocupadíssimas em desfilar seus modelitos

muito comportados e elegantes, num flerte compulsivo para

atrair a atenção dos cavaleiros, que desfilavam na outra calçada.

Afinal, ficar solteira poderia se tornar uma coisa escandalosa e

dispendiosa para os pais. Estes juntavam dinheiro durante toda a

vida para que suas filhas não se casassem sem um dote

adequado.

Moçoilas em época de se casar só frequentam bailes em

companhia de suas aias ou de seus pais. Jamais sozinhas, por

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 46 -

medo dos mexericos. Sendo que a irmã mais velha é quem

deveria se casar primeiro, e a irmã mais nova, caso houvesse

uma, tinha que ficar cuidando da mãe. Se o namoro firmasse,

deveria durar um ano na sala da moça, que tinha que estar

acompanhada de seus pais e outras pessoas. Então, o próximo

passo seria o noivado, que deveria durar apenas o tempo de o

enxoval ficar pronto - isso queria dizer na semana seguinte, pois

a maioria das mães fazia o enxoval das filhas assim que as

meninas nasciam. Claro que as jovens enamoradas também

tinham que bordar grande parte do enxoval, logo que estivessem

em fase casadoura. As meninas já estavam prontas para o

casamento a partir dos doze anos, caso fossem nobres, e a partir

dos quatorze a dezoito anos, caso não tivessem título de

nobreza. Isso significava que eu estava passando do tempo de

arrumar um marido.

Todos procuravam um bom partido para suas filhas. Não

se importavam com os sentimentos delas. Na esperança de um

futuro seguro, o amor era o de menor valor. Isso não era o que

eu queria para mim. Sempre me esquivei de senhores mais

velhos.

Certa vez, em um jantar de que fui obrigada a participar

em minha casa, meu pai apresentou-me a um fidalgo com o

triplo de minha idade, sendo que eu tinha dezesseis anos nessa

época. O velhote rodeou-me a noite toda e não consegui

desvencilhar-me dele. O cheiro da bebida misturou-se ao cheiro

da roupa velha, que devia ter estado guardada desde o século

XV. Isso era nauseante! Suas mãos eram oferecidas demais. O

único jeito foi dizer que estava me sentindo muito mal. Com

certeza, era mais uma que a condessa havia aprontado para se

livrar de mim, pois pude vê-la com seu olhar de deboche às

escondidas. Mas, graças a Deus, a falsa dor de cabeça que forjei

salvou-me mais uma vez. E, nesse dia, apertei os olhos ao passar

Adriana Matheus

- 47 -

na direção da condessa, constatando a minha vitória - o que

causou uma torcida em seu leque de estimação.

Voltei a observar a paisagem de Salamanca,

enquanto Lorenzo contornava a praça central. Então, pude ver a

linda fonte de águas no meio da praça. Depois de algumas horas,

chegamos ao nosso primeiro destino. Paramos à frente de uma

enorme mansão cor-de-rosa. Era a mansão e o ateliê de madame

Hortência Vigald.

Ela era uma senhora rechonchuda, de olhos grandes e

amendoados. Seus seios eram fartos e salientavam-se por cima

de suas vestes, repletas de rendas e outras mesuras. Para

completar o visual exótico, ela ainda usava uma peruca loura

cheia de cachinhos. Isso a fazia parecer uma boneca de trapo

mal feita e assustadora de se ver à noite, sentada em uma cadeira

no escuro.

Ao ver-me, sempre me abraçava fortemente e melava-me

com seus beijos babentos. Como era difícil ser uma jovem

educada e de boa índole, meu Deus! Tinha vontade de sair

correndo. Às vezes, tinha a impressão de que ela poderia me

morder com aqueles dentes enormes e escurecidos pelo tempo.

Mas também poderia correr o risco de ser engolida por aqueles

lábios extremamente grandes e lambuzados de açúcar, pela

quantidade diária de doces degustados. Ao chegarmos, ela

estava de pé à soleira da porta, comendo uma brevidade. Ao ver-

nos, correu em nossa direção, dizendo:

– Oh, querida, como está linda! E cada vez mais parecida

com Elizabeth! Veio ver alguns modelitos para si, meu bem?

– Não - salvou-me Maria. Viemos buscar a encomenda

da Senhora Del Prat. Estávamos partindo de viagem e, como não

teremos tempo de buscá-la na volta, levaremos desde já a

encomenda conosco.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 48 -

– Oh, entrem! Pedirei a Gülia que lhes busque a

encomenda. Sentemos, por favor! Aceitam uma xícara de chá

com biscoitos? Façam-me companhia, queridas, nunca recebo

visitas para o chá!

Até parece, pensei comigo. Todas as clientes que

por ali aparecessem por certo seriam motivo para madame

Hortência tomar chá com biscoito - o que explicava sua forma

rechonchuda.

– Não, senhora! Estamos com muita pressa e, além do

mais, já fizemos nosso desjejum matinal.

– Oh, ficarei um tanto ofendida! Sabe como gosto da

menina, embora quase não a tenha visto ultimamente.

Por fim, aceitamos uma xícara chá para que ela

não tivesse uma síncope.

– Então, querida, como está seu pai? Já retornou de

viagem?

– Não, ainda não. E já fez um mês hoje. Confesso que

estou bastante preocupada com a ausência de notícias por parte

dele. Isso anda me tirando o sono.

– Não diga! Mas com certeza não aconteceu nada de

grave com Sir Juan. Nisso eu aposto! Sabes como são os

homens... Fique despreocupada, querida! Noticia ruim corre

rápido. Ele é mesmo um homem lindo! - suspirou ela. Um

verdadeiro colírio para os meus olhinhos cansados! Se não fosse

casado... e se eu tivesse um pouquinho menos de idade,

candidatar-me-ia como sua madrasta! Uma madrasta boazinha, é

claro! - fez esse comentário sorvendo, em seguida, um gole de

chá.

Por certo, ela teria que ter muito menos idade mesmo.

Ela usava termos antigos, como se ainda estivesse no século

XV, e forçava um falso francês. Na verdade, seus vestidos eram

cópias exatas de luxo da moda francesa. Suas costureiras, sim,

Adriana Matheus

- 49 -

eram as verdadeiras artistas, pois madame Hortência nunca

sequer colocou suas mãos em uma agulha para coser.

Eu e Maria nos entreolhamos, contendo uma sonora

gargalhada.

– Ah, mas aposto que existe algum jovem mancebo para

consolar essa ausência!

Olhei novamente para Maria, em busca de socorro. E

suspirei quando pude ver que Gülia entrava, trazendo um

enorme pacote nas mãos, que foi direto para as mãos do lacaio.

Este o entregou para Lorenzo, que nos aguardava pacientemente

do lado de fora. Todo aquele movimento foi um alívio, pois me

salvou de ter que responder às tolas interrogações de madame

Hortência. Embora eu não tivesse uma vida social ativa,

Madame Hortência fazia-me parecer que eu levava uma vida

agitada e pública, pois eu sempre tinha a obrigação de ter algo

para contar a ela.

Maria, percebendo meu constrangimento, apressou-a,

dizendo que realmente precisávamos ir. Ufa, graças a Deus!,

pensei comigo.

– Porque não escolhe um dos modelitos? – insistiu,

ainda, na saída.

– Tenho tantos que acabaria tendo que dividir meu pouco

espaço com eles!

– Entendo... Mas realmente sei que não precisa do brilho

das lantejoulas e paetês para ser feliz. Tem o seu próprio brilho,

e isso é nato.

Disse isso num tom engraçado e baixo. Rimos todas ao

mesmo tempo, pois nos lembramos de que, certa vez, a senhora

Del Prat encomendou um vestido tão espalhafatoso e reluzente

que mal dava para ver suas caríssimas joias penduradas ao

pescoço. Foi uma noite difícil aquela, pois minha madrasta

chamou mais atenção do que a noiva ou a própria rainha.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 50 -

A noiva era uma pupila de muita estima de Sua

Majestade. Por isso, esta fez questão de estar presente entre os

convivas. A condessa só foi convidada por causa de seu titulo de

nobreza, mas tinha que aparecer a todo custo. A rainha, ao vê-la,

disfarçava e educadamente esquivava-se a cada proximidade da

Deusa do sol. Naquele dia, minha madrasta superou-se em seus

exageros. Doía a vista de todos ao olhar para aquela figura

brilhante. Meu pai e eu ficamos em um canto distante dela, é

claro. Percebi seu constrangimento mediante tantos sussurros

zombeteiros.

Já dentro da carruagem, não sabíamos se ríamos das

lembranças reluzentes da condessa ou se nos deliciávamos dos

fuxicos de Madame Hortência.

O dia estava lindo e o sol resolveu dar o ar de sua graça

naquela fria manhã de outono. Ao pegarmos a estrada,

contemplávamos a paisagem magnífica. Eu estava encantada

com tantas novidades que vinham surgindo à beira do caminho.

Conversamos muito sobre coisas banais do dia-a-dia. Não

tocamos em assuntos que não nos eram convenientes ao espírito.

Durante todo o trajeto, cantarolamos canções ciganas e

ríamos por qualquer coisa. Maria fez de tudo para que eu me

desligasse dos problemas corriqueiros e domésticos. Depois de

uma rápida parada para nos refrescar à beira de uma velha mina

d’água, comemos o delicioso lanche que Maria havia trazido em

uma cesta. E seguimos a nossa longa jornada pela empoeirada

estrada do norte da Espanha. Afinal, pela altura do sol, já devia

ser meio dia. Dentro da carruagem, adormeci profundamente,

encostada aos ombros de Maria. Só despertei quando a

carruagem passou por uma pedra saliente. Maria bateu no teto e

gritou para que o cocheiro tomasse mais cuidado. Depois

daquele susto, perguntei se já havíamos chegado.

Adriana Matheus

- 51 -

– Quase! - respondeu-me Maria - Continue a dormir! –

prosseguiu, com um tom na voz que mais parecia um bocejo.

Não conseguia dormir mais e comecei a olhar as folhas

das árvores caídas ao chão, formando uma espécie de tapete

celestial. Casinhas de colonos ao longe, muitos gados a pastar.

O cheiro do mato e o silêncio ensurdecedor fizeram-me

adormecer novamente. Uma voz ao longe parecia chamar-me

Anna, Anna! Sinto sua falta... Encontre-me, por favor!

Meus olhos foram ficando cada vez mais pesados e, por

fim, caí no abismo dos sonhos. Sonhei que estava em um

mosteiro, todo feito em pedras calcárias de cor escura. O lugar

mais parecia uma ruína. Havia um enorme jardim, totalmente

abandonado, onde só os girassóis sobreviviam. Muitos monges

trabalhavam nas plantações, tentando salvar o pouco que lhes

restava da seca, que era eminente. Outros cuidavam dos animais

magros e doentes. Alguns, ainda, varriam incessantemente o

patíbulo, cuja terra havia invadido todo o mosteiro. Aquilo me

pareceu mais um ato de loucura coletiva. Ao longe, ouvi um

coro com música gregoriana - misturada às orações, pareciam

lamentos e suplícios.

No patíbulo do mosteiro, logo na entrada, havia um

monge, que me olhava de um jeito hostil, quase humilhante.

Parecia ser uma espécie de abade. Ele era sério, atarracado,

baixo e corcunda. Sua pele era avermelhada, manchada e

descamada por causa do mau tempo. O que o diferenciava dos

demais monges era apenas uma enorme cruz na frente de suas

vestes, encardidas e rasgadas. Algumas freiras circulavam de um

lado para o outro, como que hipnotizadas. Vi-me descer de uma

carruagem, e seguraram meus finos braços, empurrando-me aos

safanões para dentro do mosteiro. Tentei fugir, mas as mãos que

me seguravam eram fortes e severas. Eu olhava para trás,

tentando pedir socorro à Maria. Ela nada parecia poder fazer. As

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 52 -

lágrimas desciam incessantes dos olhos de minha amada amiga,

que ficava cada vez mais para trás.

Tentei fugir inutilmente. Gritei por socorro e deixei o

pranto rolar. Chamei por Maria, até que a vi cair por terra, como

que sem forças. Meu corpo tremia. O desespero tomou conta de

mim, por saber que estava ficando longe de meus familiares.

Tentei agarrar-me onde dava. Todos ao redor olhavam-me e

viravam seus rostos, numa repulsa sem explicação.

Uma jovem freira ainda tentou desgrudar-me daqueles

braços e mãos, mas outras a puxaram e só ouvi dizerem-me para

ter fé. Outra freira, bem mais velha, veio receber-nos à porta do

convento. Era uma senhora carrancuda e com ares de

perversidade. Provavelmente, a madre superiora.

Sua expressão de algoz conseguiu gelar minha alma.

Mandou-me calar a boca aos berros, advertindo-me que ali não

era lugar para toda aquela histeria. Por fim, levaram-me para

dentro, forçosamente. Virei para trás, dando uma última olhada

para meu pai, que ficou na entrada, conversando com a suposta

madre.

Deixaram-me só, em um corredor onde havia um enorme

banco, uma mesa, uma cadeira e um armário antigo, onde

pareciam guardar arquivos e documentos. A sala era escura e

não tinha sequer um vaso de plantas.

De repente, ouvi um barulho e a porta se abriu.

Estremeci como vara de bambu ao vento. Mas, ao contrário de

quem pensei que fosse, entrou um monge de hábito marrom e

cabeça baixa e encapuzada. Aproximou-se de mim lentamente,

ajoelhou-se e fitou-me os olhos. Seus olhos eram cor de mel, sua

pele, muito branca, e seu rosto angelical escondia-se por trás de

uma fina e rala barba ruiva.

Aqueles olhos meigos passaram-me segurança e calor.

Abaixou o capuz, esticando para mim suas brancas mãos. Seus

Adriana Matheus

- 53 -

dedos eram logos e finos; sua pele tinha uma maciez que

arrepiou todo o meu corpo. Sua proximidade era tamanha que

pude ver as pequenas sardas por baixo dos pelos ruivos de seus

braços. Embora a barba estivesse por fazer, ela lhe dava um ar

de intelecto. Seus traços eram finos e ele mais parecia um

Lorde.

E, por certo, era de origem inglesa ou holandesa. Fiquei

gelada e catatônica, e cheguei a pensar ser um dos loucos que

havia visto ao chegar. Mas ele me passou tanta paz e

tranquilidade ao pegar novamente em minhas mãos, trêmulas e

geladas, que novamente acalmei. Então, disse simplesmente:

– Estou à sua espera há tanto tempo, Anna. Perdoe-me

por tê-la deixado! Nunca mais nos separaremos, prometo!

De repente, num piscar de olhos, estávamos sem mais

nem menos em um despenhadeiro, onde se via todo o mar da

Espanha, lindo e de um azul inigualável! A areia, muito branca,

completava aquela paisagem. O vento soprava forte, como se

estivesse me dizendo algo que eu não consegui decifrar naquele

momento. Podia sentir o cheiro da maresia nas minhas narinas.

Fiquei muito agoniada com aquela sensação. Meus cabelos

estavam soltos e voavam com as minhas vestes, toda em

algodão fino e transparente. Ele segurou minhas mãos, e

comecei a me sentir segura e feliz novamente, como nunca

havia sentido antes em toda a minha vida.

O vento era forte demais e frio. A estranha sensação

voltou. Comecei a tentar desesperadamente soltar minhas mãos

das dele. O cheiro da maresia foi se transformando em cheiro de

medo. Por fim, o monge soltou minhas mãos e senti seus dedos

desprendendo-se dos meus. Caminhou em direção ao

despenhadeiro.

Meu coração disparava ao ver a agonia em seus olhos. O

brilho daquele olhar feliz transformou-se em súplicas. O musgo

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 54 -

viçoso daquele olhar agora era nada mais do que escuridão. De

repente, a escuridão tomou conta de tudo ao meu redor e vozes

tenebrosas cercaram-me. Ele me deu um sorriso triste, com os

lábios fechados. Virou-se de costas, caindo no despenhadeiro,

gritando o meu nome num apelo desesperado.

Seu corpo caiu nos rochedos e o mar revolto ficou

batendo nele, já sem vida. Gritei como louca e percebi que eu

não estava mais ali, que era só mais um sonho.

Vozes chamavam-me, misturando-se ao barulho das

ondas. Tudo começou a virar fumaça e acordei suada e chorando

muito, com Maria ao meu lado, chamando-me:

– O que houve, filha? - perguntou Maria, passando as

mãos no meu rosto, tentando enxugar as lágrimas que ainda

desciam como fonte de tristeza. Entre soluços, disse-lhe:

– Sonhei com o monge novamente, Maria, aquele dos

meus sonhos de criança! Já fazia tanto tempo que não sonhava

mais com ele! O engraçado é que sempre sei que estou

sonhando, sei que a qualquer momento irei acordar. Às vezes

chego a ouvir meus suspiros dormindo, e até vejo meu corpo em

seu estado de repouso. Por que isso está acontecendo comigo de

novo, Maria? Ele se matou? Pois o vi caindo no mar! Não

consigo entender o que realmente houve com ele. Tentei salvá-

lo, mas já era tarde demais, juro! Ele se foi muito rápido. Quem

é ele, Maria? Por que esses sonhos incessantes?

Maria aproximou minha cabeça do peito, na tentativa de

me acalentar, pois eu já não conseguia falar. Apenas soluçava.

– Calma, querida, vamos resolver tudo isso hoje. Minha

irmã Helena saberá ajudá-la. Não existe pessoa melhor neste

mundo que entenda mais sobre este assunto do que ela.

Olhei-a, espantada.

– Pensei que fosse a senhora a entender desses assuntos?

Adriana Matheus

- 55 -

– Não. Abandonei o meu povo e agora não faço nada

mais além de por cartas e fazer meus chás. Agora enxugue essas

lágrimas. Chegamos ao nosso destino. Devemos nos preparar

para descer com discrição. Afinal, não queremos que ninguém

veja seus olhos inchados. Ou vai querer que pensem coisas de

uma mocinha tão fina?

Embora soubesse que Maria só estava ironizando,

não me incomodava nem um pouco com o que os outros

pensariam de mim. Só queria uma explicação plausível para

tudo o que estava acontecendo comigo. Queria que aqueles

sonhos parassem logo e que eu pudesse dormir tranquilamente

alguma vez na vida.

Eram seis horas da tarde quando paramos em frente a

uma casa grande, toda feita de pedras escuras, com portinholas

duplas e largas de madeira, pintadas com tinta azul envelhecida

e desgastadas pelo tempo. Abriam-se de cima para baixo. Suas

janelas eram estreitas e muito altas, dando a impressão de ser

uma igreja. Alguns cipós teimavam em subir por toda a parede

do lado de fora, dando a ela um ar de casa medieval. Observei

várias mulheres colocando suas roupas - muito alvas - nos

grandes varais que estavam na lateral. Outras trabalhavam em

fiares e, ainda, teciam tapeçarias. Crianças corriam e gritavam

como loucas, brincando umas com as outras, sujando-se de terra

e de barro, sem ninguém para lhes privar a liberdade.

Todos estavam tão ocupados em seus afazeres que não

deram a menor importância para a nossa chegada. Avistei um

celeiro a uns cem metros, onde deveriam guardar seus cavalos e

outros animais de grande porte.

Um pouco mais ao longe, via-se um moinho d’água -

com sua enorme pá girando sem parar – e, do outro lado, havia

uma mata fechada, que parecia guardar todos os segredos

daquele povo misterioso.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 56 -

Animais domésticos circulavam por toda parte. Árvores

frondosas e gigantescas cercavam toda a casa. A mata,

constituída por cedros, pinheiros, oliveiras e árvores frutíferas,

formava uma cerca viva. Por isso, não dava para vê-la ao longe

ou mesmo da parte mais próxima da estrada. A própria floresta

era o muro que guardava toda aquela beleza e simplicidade.

Senti no ar uma grande manifestação de bondade e

respeito em todos à minha volta, embora não tivessem

manifestado seu interesse por nós. A energia era tão viva que

quase podíamos tocá-la.

As flores do campo cercavam toda a casa. Um beiral de

pedras, feito pelos moradores da floresta, cercava um canteiro

com ervas para chá, muito bem cuidado. O lugar era mesmo

mágico, pois uma enorme paz tomou conta de mim assim que

pisei lá. A terra era fértil e viam-se seus frutos. E muitos gatos

circulavam por todo o lugar. Fomos recebidas por uma senhora

grisalha e uma jovem muito bonita, aparentando ter a mesma

idade que eu. A senhora era a irmã de Maria, e a moçoila era sua

sobrinha. Vieram correndo, pois fazia muito tempo que não se

viam. Abraçaram-se com um calor fraternal.

– Seja muito bem vinda à nossa humilde floresta!- disse

Dona Helena, olhando em minha direção.

A mocinha apresentou-se, esticando a mão e dizendo:

– Meu nome é Bernadete e aquela, como já sabe, é

Helena, minha tia. Sou filha de Dolores e Guiñllo, mas tia

Helena me criou, pois ambos faleceram em um trágico acidente.

Não falemos sobre coisas ruins! Venha, entre! Não fique aí em

pé, parada. Entre, conheça a casa e minhas outras irmãs. - disse

Bernadete, percebendo que eu havia ficado para trás.

Ao entrar, apresentou-me à outra senhora com olhar

gentil, que estava sovando a massa para os pães na cozinha. Em

Adriana Matheus

- 57 -

seguida, apresentou-me às suas outras duas irmãs: Loylla, a

mais jovem, e Emanuelle, a mais velha.

– Fique calma! Estou achando-a um tanto tensa. Deixe

que meu noivo Magald cuide de suas malas. Aqui ninguém

mexe em nada.

– Imagine, não pensei nisso! É que estou tendo

problemas para dormir. E estou com um pouco de dor de

cabeça.

– Então venha se refrescar e tomar um chá de camomila

com hortelã.

Bernadete levou-me para seu quarto, onde me refresquei

e também troquei de roupas. Coloquei um vestido simples, de

algodão azul, que ela me emprestou, pois meus vestidos não

eram adequados para o campo. Trocamos presentes. Dei-lhe

uma caixinha de música de cristal e bronze, onde um casal de

bailarinos dançava ao som de uma valsa vienense.

– Era de minha mãe - disse a ela, estendendo as mãos.

– É lindíssima! Mas não sei se posso aceitá-la.

– Ficarei muito ofendida se não aceitar. Tenho certeza de

que ficará perfeita na mesinha de cabeceira do seu novo quarto!

E ela tem um segredo, veja. - mostrei-lhe uma abertura falsa no

fundo. Poderá guardar suas economias aqui dentro sem que seu

marido perceba.

Ela corou e disse:

– Se é assim... Abraçou-me e depois seguiu em direção

ao criado mudo, de onde tirou um livro, cujas páginas eram de

papiro e a capa era de couro, todo trabalhado à mão, com

desenhos em relevo. Disse que tinha sido seu avô que lhe havia

dado. Foi uma troca que ele fizera com um cigano amigo dele.

Ela ainda disse que suas páginas eram mágicas, e como não

levava o menor jeito para escrever, gostaria que eu ficasse com

ele.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 58 -

– Na verdade, meu avô contava essas histórias para eu

adormecer. O que eu quero é me casar com Magald o quanto

antes, ter muitos filhos, e ser feliz enquanto vivermos.

Sabia que Bernadete e seu noivo estavam

passando por muitas dificuldades, pois Maria comentou comigo

enquanto vínhamos pela estrada. Então, tentei ajudá-los, dando-

lhes minhas economias. O obséquio não era muito, mas sei que

daria para ajudar na festa de casamento. Bernadete agradeceu-

me tanto que me deixou encabulada. Sua vida não era nada fácil,

mas, mesmo assim, não poupara esforços para me agradar.

Emanuelle, a irmã mais velha de Bernadete, veio nos chamar

para o jantar. Apressamo-nos em ir ao encontro de Maria e

Helena. A mesa era toda de madeira bruta, e dois enormes

bancos a cercavam. Muitas guloseimas nos esperavam. Durante

o jantar, Dona Helena olhava demais para mim. Por fim, falou:

– Fiquei sabendo do problema que a senhorita tem

passado.

Olhei para Maria com desaprovação, mas ela continuou.

– Não culpe Maria, ela fez o que era certo. Tem um dom

lindo, menina!

– Tenho o quê? - olhei para Maria, tentando receber uma

resposta plausível.

– Maria me contou de seus sonhos sequenciais e sobre

tudo o que tem passado com sua madrasta. Mas também me

falou de sua benevolência e humanidade para com seu próximo.

Iremos ajudá-la, sei bem o que deve estar passando.

Bernadete deu-me um cutucão com o pé por

debaixo da mesa e sorriu, abaixando a cabeça em sinal à nossa

cumplicidade no seu quarto.

– E o que devo fazer? Quem é esse homem com quem

tenho sonhado tão frequentemente?

Adriana Matheus

- 59 -

– Calma, menina! Uma pergunta por vez. Primeiro, tem

que aflorar e doutrinar seu dom, Depois, precisa fazer a viagem.

– Fazer o quê? Teremos que viajar novamente, Maria?

As duas entreolharam-se e riram de mim. Senti-me uma

tola e resolvi apenas esperar os resultados e as respostas. Por

fim, Helena falou:

– Não, criança. A viagem não é como pensa! Nem

mesmo sabemos se irá conseguir. Primeiro, farei uma pergunta

muito simples. Tem certeza de que quer conhecer esse homem?

É isso o que realmente quer? Pois não terá volta. E pode não

voltar bem da viagem... O que é ainda pior: pode não querer

retornar ao seu corpo físico; ficará desacordada e correrá risco

de vida.

– Sim. É o que mais quero na vida. Não tenho dúvida se

isso for me dar as respostas de que preciso.

As duas entreolharam-se por instantes, concordando

entre si.

– Ótimo, então não temos muito tempo a perder, por

causa da curta estadia da senhorita aqui. Amanhã bem cedo

começaremos com os preparativos - disse Dona Helena.

– Como assim? A senhora o conhece? Ele mora

por aqui? Quem é ele? Por favor, eu suplico, digam-me quem

ele é! - foi inevitável, embora eu tivesse prometido a mim

mesma calar a boca!

– Acalme-se, senhorita Anna! Uma pergunta por vez.

Precisa saber que, embora não tenha a mínima ideia do que está

acontecendo, essas repostas só poderão ser dadas pelo seu

coração. Com certeza estão todas aí dentro. Todas as dúvidas,

todas as ansiedades, só a senhorita tem a resposta. E, com

paciência, na hora certa saberá responder, podendo até nos

esclarecer também. Por certo, ele deve ter sido alguém muito

importante para a senhorita. Tem alguma coisa que ainda está

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 60 -

pendente; esse espírito ainda continua interligado à senhorita.

Pode ser que ele esteja encarnado ou não.

– Então isso significa que ele está morto?

– Não, de forma alguma. Estou tentando lhe dizer que

essa pessoa fez parte do seu passado, de outra vida. Mas

também pode estar encarnado nesta vida. Resta saber se a

senhorita terá estrutura para encontrá-lo. Ele pode ter vindo de

diversas formas, pode muito bem ser um parente muito próximo.

Quando falamos em espíritos, necessariamente ele não precisa

estar desencarnado. A senhorita também é um espírito. Porém,

está encarnada. Sei que é muito difícil, no início, tentar aprender

sobre as coisas que lhe foram ocultadas a vida toda.

Principalmente tendo a senhorita vindo de uma família tão

tradicional e rígida quanto a esses assuntos. Mas acredite:

mesmo para nós, que nascemos e seguimos a tradição a fio,

ficamos confusas no início. É muita informação e, no seu caso,

muito pouco tempo também. Tenha calma, é só o que

pediremos. Confie em nós e nas forças da natureza. Tentaremos

fazer o que for melhor para ajudá-la. Largue a ansiedade de

lado, pois ela é sua inimiga. Apague essas interrogações da sua

cabeça. Aprenda a rezar - não as rezas tradicionais, mas as que o

seu coração lhe ensina. Confie em si e em Deus que tudo lhe

será respondido ao seu devido tempo.

Fiquei calada o restante do jantar, observando-as

conversar por entre lábios. Não estava com medo, mas muito

curiosa.

Eu e Bernadete sentamos perto da lareira, na sala, pois a

noite estava fria. Maria e Helena passaram o resto da noite

cochichando. Não consegui ouvir uma só palavra do que

Bernadete estava me falando, pois fiquei o tempo todo de

orelhas em pé, tentando ouvir o que as duas irmãs estavam

falando, e se era sobre mim.

Adriana Matheus

- 61 -

Às oito e meia, eu e Bernadete fomos nos deitar, pois,

por algum motivo, tínhamos que acordar cedo. No quarto,

conversamos muito. Contou-me como conheceu Magald. Era

adorável ouvi-la, pois fazia o amor parecer uma coisa muito

simples.

– Quando eu encontrar alguém, desejo que esse amor

seja para sempre, por toda a eternidade.

Ela disse, exasperada:

– Não diga isso nunca! - foi como se eu tivesse dito algo

muito abominável.

– Por quê? – perguntei, curiosa.

– Porque o amor é livre. Não podemos prender um

espírito encarnado ou desencarnado. Esse tipo de jura ou

atitude inconsequente e egoísta pode perseguir o espírito por

toda a sua vida, e até por várias outras encarnações. Anna, o

espírito jurado pode passar a vida procurando um amor e

nunca encontrá-lo. E o que fez a jura pode nunca mais

conseguir ter sossego. Até que, por si, comece a aceitar a ajuda

dos irmãos desencarnados espíritos de luz. Mas isso pode levar

muito tempo, Anna, até séculos! Quando meu espírito

desencarnar, quero que Magald seja muito feliz, que encontre

uma boa mulher que o ajude em sua jornada terrena. O amor é

liberdade, Anna... o amor é liberdade! Se conseguir fazer a

viagem, voltará com novos pensamentos. Agora durma, pois

teremos um dia bem agitado amanhã.

– Então, pretende esquecer Magald?

Virou-se brava para mim.

– Nunca nos esqueceremos, pois nos encontraremos em

outras encarnações, e nossas lembranças sempre nos

acompanharão, pois temos a obrigação de nos lembrar de

nosso passado. Só que, na maioria das vezes, somos tão

egoístas e estamos tão preocupados com nossas vidas terrenas

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 62 -

que não ouvimos os irmãos desencarnados nos falarem e nos

darem bons conselhos. Caímos, então, nas garras dos afins e,

antes que me pergunte quem são os afins, eles são espíritos sem

luz. Podemos ser orientados por espírito bons ou maus -

depende muito da nossa sintonia espiritual. É a lei do universo.

Viemos a esta vida para aprender e praticar o bem comum. Não

é fácil, mas cada um deve aprender ou, pelo menos, tentar fazê-

lo.

– Como podemos ajudar?

– Dando bons conselhos, livrando uma pessoa de se

prejudicar. Não é importante a quantidade de vezes que

praticamos o bem, mas a qualidade com que praticamos. Ou

seja, devemos sempre saber a forma como nos dirigir à pessoa

em questão, para não ofendermos ou invadirmos o espaço físico

e mental dessa pessoa. É muito importante deixar as pessoas à

vontade e, principalmente, não devemos convencê-las de tomar

o caminho que muitas vezes só é melhor para nós – mas, sim,

elas devem seguir o caminho que lhes for indicado por Deus.

Essa é a diferença entra uma bruxa e uma feiticeira. Nós

estudamos o universo e aprendemos a usar sua força em prol da

humanidade, enquanto as feiticeiras usam essas mesmas forças

de maneira mercenária e leviana para prejudicar inocentes.

Vivemos em um mundo muito atrasado e cruel, mas estamos

aqui como aprendizes temporários. Devemos aproveitar nossa

estadia para crescermos espiritualmente. Lógico que tudo isso

deve ser feito com ponderação e muito cuidado para não

interferir no destino de outra pessoa. Pois, caso contrário,

podemos virar de cabeça para baixo a vida de um consulente

inocente. Tudo isso é muito bonito, mas muito perigoso. Pense

nisso! O poder está em nossas mãos, e cabe a nós sabermos

como usá-lo. E existe outra coisa muito importante que a

senhorita precisa saber antes de fazer a viagem.

Adriana Matheus

- 63 -

– Então me diga, estou muito interessada sobre os

assuntos relacionados à magia. Sempre ouvi histórias sobre as

bruxas. Ficava tão fascinada!

Ela deu um sorriso por perceber que eu era leiga e

inocente no assunto da magia.

– Anna... A magia não tem nada a ver com as historinhas

que você ouviu quando era criança, e muito menos encontrará

coisas sérias sobre as bruxas em livros como esses. Existem

livros que não valem sua capa. Cada bruxa tem sua história

pessoal; a magia é uma história pessoal. Preste bem atenção: a

bruxaria não é um culto, porque culto é um grupo de pessoas

que segue um líder. Uma bruxa não tem um líder. E deve saber

que as bruxas estão sempre sozinhas e solitárias, principalmente

por causa do preconceito. Uma bruxa só se relaciona com

pessoas pertencentes à ordem, pelo mesmo motivo que citei

antes. Deve saber que muitos homens se fazem de

compreensivos e, quando conseguem o que realmente querem,

entregam-nos à inquisição. Então, cuidado com as paixões

levianas. Bruxas não cultuam o diabo. Buscamos reviver as

crenças de um período que remonta aos primórdios da

humanidade, um período muito anterior ao Cristianismo. O

diabo é, na verdade, uma criação do Cristianismo e não tem

absolutamente nada a ver com nossas crenças. Obviamente,

atribuíram as práticas das bruxas ao diabo porque é conveniente,

visto que as religiões cristãs recriminam qualquer ato não-

cristão como um ato do diabo. Há cultos ao diabo por todas as

partes do mundo, mas eles nada têm a ver com a bruxaria,

tratando-se apenas de pessoas que praticam uma inversão do

cristianismo. Cada um tem as suas crenças, mas, felizmente, esta

não é a nossa. Celebramos os deuses antigos na natureza. E

lutamos para que isso seja um direito nosso.

– Os deuses antigos não são demônios?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 64 -

Respirando fundo, ela prosseguiu:

– Deixe-me continuar, por favor? Alguns cristãos

fundamentalistas afirmam que qualquer pessoa que não pratique

a forma de cristianismo deles é um satanista por definição, e

incluem sob essa denominação os judeus e os sodomitas. As

bruxas e os bruxos apenas celebram a natureza, só isso. Nós,

bruxas, não assassinamos pessoas ou animais, embora haja

diversos atos maléficos de pessoas que pratiquem esses rituais.

Na verdade, são doentes mentais e deveriam ser punidos pelos

mesmos rigores das leis que nos acusam. Acredito que algumas

feiticeiras, por dinheiro, realmente pratiquem esse tipo de

abominação para provarem o quanto são poderosas. Anna,

ninguém tem o direito de tirar uma vida. O tão chamado diabo

não tem esse poder. Por certo, quando um ato de feitiçaria como

esse é praticado, alguém usou as próprias mãos para fazê-lo. Ou

por envenenamento ou por prática corporal. Logicamente, quem

pratica essa arte, por assim dizer, são pessoas muito inteligentes

e maldosas, pois sempre deixam vestígios no local de seus

crimes para nos acusarem. Nunca faça de sua religião uma arma

contra alguém. Somos responsáveis pelos poderes que nos são

incumbidos. E devemos saber que eles também se voltam contra

nós quando não praticamos corretamente.

Afofando o travesseiro, Bernadete continuou:

– Ame nossos Deuses e celebre os ciclos da Lua e a

Roda do Ano como você puder. Ninguém é dono de seus

pensamentos, nem de sua alma. Você é livre! Somos livres! Mas

tome cuidado em quem confiar: o ser humano é inconstante e

infinitamente cruel.

A viagem que fará é, na verdade, um culto aos antepassados - no

caso, aos seus. Reuniremos muitos irmãos, entre homens e

mulheres, em uma grande celebração. Seu espírito será levado

ao seu local de origem. Invocaremos as forças da natureza e

Adriana Matheus

- 65 -

enviaremos seu espírito ao seu passado, com a ajuda do

elemento fogo, que caminhará nas asas do vento.

Puxou as cobertas e, num bocejo, prosseguiu a

explicação:

– Antepassado, em genealogia, é o nome que

normalmente se atribui a um ascendente já morto, ou que se

localiza a várias gerações anteriores na representação gráfica da

árvore genealógica. Na Bruxaria, os antepassados representam

gente do nosso sangue, que resultaram no que somos hoje. Por

isso, as bruxas e bruxos realizam muitos rituais em honra aos

seus antepassados, pois eles trabalharam para o mundo chegar

onde está. Todo o conhecimento que é passado para nós está

conosco graças a eles. Sempre respeitamos o que não podemos

tocar. O mundo invisível está sempre presente no nosso dia-a-

dia. Além desse espaço físico, que estamos vendo, tem muitas

coisas vivas à nossa volta. Por isso, não excomungamos quando

ouvimos ou vemos alguma coisa que não está sob o nosso

conhecimento. Pelo contrário, oramos e pedimos sabedoria e

auxílio aos nossos irmãos desencarnados, que já estão na luz.

Apagou as velas do castiçal, deixando apenas

uma para iluminar o ambiente, e terminarmos a nossa conversa.

O mais importante de tudo isso é que as bruxas não são

anticristãs, nem querem acabar com o cristianismo. Bruxas,

acima de tudo, respeitam as demais religiões, assim como

exigem o mesmo respeito pela religiosidade deles. É claro que

há muitas mágoas, guardadas por tudo o que foi feito e ainda é

feito na história da humanidade. Mas não nos prendemos a isso,

e sim a atos do presente. Queremos simplesmente viver e

praticar a nossa religião em paz. As bruxas têm crenças que

remontam aos primórdios da humanidade, muito anteriores ao

cristianismo. O cristianismo tentou suprimir crenças, mas nós

não queremos fazer o mesmo. Anna, na verdade, nada sei ainda,

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 66 -

mas espero ter esclarecido suas dúvidas com o pouco que me

ensinaram.

– Sim, querida Bernadete! Nem mesmo Maria teria tido

tanta sabedoria para me falar dessa tradição, que é tão linda!

Prometo honrar meus compromissos como bruxa. Estou muito

grata pela sua paciência comigo.

– Agora podemos dormir?

– Sim, é claro!

Aquelas palavras, de alguma maneira, faziam todo

sentido para mim. Era como se eu já as tivesse ouvido em algum

lugar. Elas pareciam estar no meu inconsciente. Muitas vezes,

senti uma presença misericordiosa perto de mim quando era

criança. Outra me fazia sentir mal, quando a condessa estava se

aproximando. Ouvia, de vez em quando, passos em minha

escada, à noite, seguindo em direção ao quarto de mamãe. E

quantas vezes eu tive a certeza de ter dormido sem me cobrir e,

ao acordar, estava coberta! Isso sempre acontecia quando meu

pai estava viajando e, por certo, não era Maria, pois ela negava

sempre que a interrogava.

Nunca consegui explicar a sombra por trás de mim no

espelho, aos dez anos. Gritei tanto! Mas Maria disse que, por

certo, era um anjo que esteve por ali para me proteger. Talvez

fosse minha mãe, pois parei de sonhar com ela de vez.

Conformei-me com as respostas, virei para o canto e adormeci

profundamente.

Naquela noite, voltei a sonhar que estava com o monge,

só que dessa vez estávamos em outra época. Ele me beijou e

suas mãos eram muitos impacientes e percorriam meu corpo.

Seus olhos estavam fixos em meu rosto. Depois, apareceram

várias mulheres, desconhecidas ainda para mim. Pegaram-me

apressadamente pelas mãos e me levaram a outro lugar. Era uma

vila - não consegui definir, pois tudo era como o relâmpago. De

Adriana Matheus

- 67 -

repente, encontrei-me numa floresta, onde muitas mulheres

corriam e gritavam como loucas, de um lado para o outro. Em

uma fração de segundos, meu corpo já estava queimando e, no

meio da fumaça, vi o monge tentando tirar-me

desesperadamente, sem êxito. Os demais presentes seguravam-

no pelos braços. Senti meu o corpo sendo desfalecido pelas

chamas. Meus sonhos, minhas esperanças, meu amor...

Aquelas chamas estavam devorando tudo o que eu ainda

não tinha vivido. Eu nada podia fazer, e ninguém movia um

músculo para evitar aquela dor insuportável. Senti meu espírito

deixar a matéria. Acordei agitada e chorando muito. Cheguei a

urinar na cama, de tão real que havia sido o pesadelo. Dona

Helena estava sentada ao meu lado e me acalentou. Então,

contei-lhe tudo o que havia sonhado, nos mínimos detalhes. Ela

ouviu cada palavra, sem pestanejar.

– Por que o amor dói, Dona Helena? Como posso amar

alguém que nem conheço, e que me pareceu ser tão covarde a

ponto de me deixar morrer cruelmente?

Abaixei a cabeça e me senti envergonhada pelo meu

estado lastimável. Dona Helena pareceu perceber e me disse:

– Não se sinta mal. Às vezes, vivemos nos sonhos uma

realidade que não podemos explicar - e foi isso o que aconteceu

com a senhorita.

– Mas estou suja!

– Dizem que isso acontece quando a dor ou o medo são

muito intensos. Seu sonho foi tão real que a senhorita viveu uma

experiência intrassensorial, o que acabou em uma reação

espontânea. É a lei das causas e efeitos. Na verdade, teremos

que correr com a sua viagem. A senhorita está viajando sem

sequer entrar no círculo - é por isso que está tão confusa.

E depois de muito analisar-me, perguntou-me:

– A senhorita o ama mesmo, não é?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 68 -

– Se o que estou sentindo é considerado amor, sim, eu o

amo. Antes eu tinha receio de dizer isso a alguém, por receio de

que me achassem louca. Mas aqui, com vocês neste lugar

mágico, posso ser eu mesma. Nessa floresta, nesta casa! Vocês

fazem as coisas ficarem tão simples e fáceis que não sinto mais

vergonha! A cada sonho, tenho a certeza de que irei encontrá-lo.

Mas, ao mesmo tempo, tenho medo.

Ela continuou fitando-me os olhos, como se estivesse

lendo minha alma.

Passei a mão pelo rosto para enxugar uma lágrima, que

estava prestes a cair. Dei um pequeno sorriso, ainda meio sem

graça, para tentar disfarçar a tristeza no meu peito, pois Dona

Helena parecia estar esperando outra resposta de minha parte, ou

qualquer coisa que descrevesse detalhadamente meus

sentimentos. Sempre tive certeza, mas expressar sobre o que

sentia, abertamente, ainda me era sufocante e constrangedor.

Depois de muito me fitar, ela disse:

– Levante-se, está na hora das preparações. Tem tanto a

fazer e tão pouco tempo.

–Jura? Que horas são?

– Duas da manhã, e o galo já fez sua primeira chamada.

Teremos que entrar no bosque, e está bastante frio. Prepare-se

para se lavar e continuar molhada, pois o orvalho por aqui é

muito intenso. Enquanto a senhorita dormia, eu e as outras

trabalhávamos para deixar tudo prontinho para vossa majestade.

Riu largamente.

– Sinto estar causando tanto transtorno...

– Não é transtorno algum! Tudo isso é em prol de uma

alma atordoada. Tentaremos fazer o que estiver ao nosso

alcance. Anna, só quero que seja feliz, encontrando seu caminho

onde for e com quem quer que seja. Está com medo?

Adriana Matheus

- 69 -

– Não, só assustada e curiosa. É tudo novo para mim.

Imagine, nunca fui a lugar nenhum e agora estou aqui,

preparando-me para fazer uma viagem mágica. Acho que sou

uma mulher de sorte por ter Maria como amiga. Senão, como

poderiam saber de minha existência?

– É, Maria sempre foi assim mesmo. Praticar o bem

comum é também a sua missão, senhorita Anna. Assim como

Maria ajuda-a agora, um dia deverá retribuir-lhe o favor. Sabia

que quando Maria ainda era muito pequena, um dia, do nada, ela

se virou para todos e disse que sua missão seria cuidar de uma

irmã, cujo destino era só de penitências e sofrimentos? Aquelas

premunições deixaram todos atordoados, por causa da pouca

idade de Maria que, na época, só estava com seis anos.

– É mesmo?

– Sim. Ela sempre teve dom de prever o futuro através

das cartas. Nossa mãe, se estivesse viva, teria muito orgulho

dela. Já eu nasci com o dom de conhecer as ervas. Faço chás,

cataplasmas e curo as enfermidades. Mas não consigo ler as

cartas ou ver o futuro em qualquer outro lugar. O seu dom, por

certo, é muito especial. Deve ter sido uma bruxa muito poderosa

no passado. Quando voltar de sua viagem, não deve contar a

ninguém seu nome ancestral. É um segredo solene, praticamente

uma regra. Se cair em mãos erradas, a senhorita poderá

prejudicar-se.

– Como assim?

– Fica mais fácil fazer um sortilégio para prejudicá-la. É

como se entregasse sua alma às mãos dos inimigos. O segredo

do seu universo passará para suas mãos. Então, não revele para

ninguém seu nome de batismo espiritual. Lembre-se de uma

regrinha básica: dê a todos os seus ouvidos, e a poucos suas

palavras. Se Deus quisesse que falássemos mais do que

ouvíssemos, não nos teria dado uma só boca e dois ouvidos!

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 70 -

Tudo o que falamos vira energia, desde a hora em que

levantamos até a hora em que dormimos. Conseguir calar a

mente para que ela não vire pensamento desnecessário não é um

dom ou uma virtude: é um privilégio, levando em consideração

que a mente nunca se cala.

Olhou para o meu estado lastimável e continuou:

– Não se preocupe, não contarei para ninguém sobre o

seu incidente. Prometo! Levante-se, já é hora. E você faz muitas

perguntas!

Levantei, meio preguiçosa e encabulada. Nunca havia

acontecido nada assim comigo, nem mesmo quando eu era

criança. Dona Helena saiu e voltou com um caldeirão com água

para eu me banhar. Depois de tudo pronto, disse-me:

– Faça uma oração, para que seu espírito entre em

sintonia com todo o universo. Lembre-se de sempre agradecer

por tudo o que o Pai Maior fez por você, desde o nascimento até

agora. Estar viva é a maior dádiva que Deus nos deu. Lembre-se

também que não vivemos sozinhos, mesmo quando achamos

que sim. Compartilhamos este mundo não só com os irmãos

encarnados, mas também com os desencarnados. Por isso,

devemos estar sempre com bons pensamentos, para que os

espíritos de luz venham nos orientar. Nem sempre isso é fácil.

Por isso, aconselho que feche seus olhos e imagine um pequeno

triângulo mental. Faça desse triângulo um ponto de fixação, e

não deixe nenhum pensamento infrutífero penetrar-lhe a mente.

Você terá que aprender a esvaziar o pensamento depois das

palavras mal ditas, ele é o nosso pior inimigo. Logo verás que os

pensamentos mudam, pois inconstante é o pensamento. Eles

mudam de direção tão rápido quanto o vento. Por isso,

chamamos o vento de alma do mundo ou anima mund - pois ele

compartilha nossas ideias e nossos segredos mais íntimos,

entrando e saindo de dentro do nosso corpo. Ele é um dos

Adriana Matheus

- 71 -

elementos mais respeitados da natureza. Deus sabe os nossos

segredos por causa do vento, que leva e traz de volta nossas

vidas em detalhes. Ele é como um mensageiro. Respiramos o

mesmo ar que nossas antepassadas respiravam. O mesmo ar que

entra em nossas narinas já entrou em várias outras. E a cada

sequência ele se renova, levando e trazendo sabedoria e

experiência. Mas, assim como Deus ouve nossos pensamentos, o

diabo também o faz. Pois ele escuta o pensamento que sai de

nossas bocas. Ele faz parte dos detalhes que sempre ignoramos.

Ele é o detalhe. Por isso, devemos calar o pensamento, para que

não se transforme em palavras que poderão nos prejudicar.

Basta um pensamento nosso para estragar três coisas boas em

nossas vidas, porque nem tudo o que dizemos é ouvido por

pessoas de boa índole. A inveja é uma má energia, criada pela

súbita alegria do próximo. Por isso a necessidade de nos

calarmos. Nem tudo o que é bom para nós pode ser divulgado,

por causa desse sentimento tão baixo que existe nas pessoas, que

não conseguem ser felizes. O ser humano, de tanto pensar e

fazer o mal, criou o diabo. Deus lhe deu o nome de Lúcifer. Não

devemos temê-lo, mais evitá-lo. Então, esvazie seu pensamento,

para revigorar todas as suas forças ainda mais. Ficamos assim

por horas, meditando com os olhos físicos fechados, mas com os

olhos do espírito bem abertos.

Naquela espécie de transe consciente, vi formas,

símbolos e coisas extremamente pessoais. Depois de alguns

minutos, duas outras moças entraram, despertando-nos, e Dona

Helena me disse:

– Agora que já fez suas orações e limpou seu corpo

físico e mental, precisará de banho de purificação espiritual.

Preparei-lhe algo muito especial: deverá permanecer inerte por

algumas horas, até que a água esfrie por completo. Não quero

perguntas, por favor, sei exatamente o que pensa. Embora já

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 72 -

tenha tomado banho, hoje será o dia dos banhos, acredite! Agora

retire suas roupas novamente, levante-se dessa cadeira.

Fiquei meio zonza com tanta coisa acontecendo. Era

muita informação de uma só vez. Dona Helena, vendo a minha

inércia, disse:

– Levante-se, menina, e pare de fazer corpo mole.

Estamos preparando-lhe para um ritual sagrado, não deve

demonstrar tanto desinteresse.

Ela estendeu as mãos e ajudou-me a levantar. Retirei

minhas roupas e entrei na banheira, cuja água estava deliciosa.

Dona Helena e as duas moças jogavam em cima de mim pétalas

de girassóis e óleos perfumados. Algumas ervas especiais

também foram salpicadas por cima de mim. Depois de todo esse

ritual, ela falou:

– Hoje não será um dia comum: terá uma dieta adequada

e outros banhos de purificação como esse. Purificará seu espírito

com orações, e deverá esvaziar a mente consciente. Não poderá

pensar muito em coisas mundanas ou futilidades. E, como sei

que isso é impossível em sua idade, preparei-lhe um chá

especial, que também terá que tomar - e sem caretas! Após cada

refeição, tome um copo deste chá. Irá dormir a maior parte do

tempo. Não se preocupe com isso - no seu caso, isso não é mal,

pois sei o quanto tem andado esgotada, devido aos sonhos

atordoados. Não deverá falar com mais ninguém além de mim.

Não tente puxar conversa com as moças que entrarão no quarto,

elas estão em estado de purificação e não falarão com você.

Converse com seu coração, isso lhe fará bem. Faça-lhe

perguntas. Aposto que ele estará cheio de repostas.

Que bom!, pensei comigo. Voltei à minha vidinha

cotidiana e tediosa de antes. E ainda tinha que falar com o meu

coração - logo com ele, que vivia tão atormentado, coitado...!

Adriana Matheus

- 73 -

Precisava mais de repostas do que eu, mas, mesmo a

contragosto, fiz tudo o que me foi determinado.

Depois de ter ficado de molho por quase uma hora, saí

da banheira. Dona Helena saiu em seguida, e eu fui para a

janela. Pude ver todas aquelas mulheres, correndo de um lugar

para outro. Pareciam muito determinadas em terminar seus

afazeres. Confesso que estava muito curiosa para fazer aquela

viagem.

Horas depois, Dona Helena retornou ao meu quarto e

trouxe-me o desjejum. Então, rompendo o silêncio - que já

estava me deixando louca -, disse:

– Não iremos levá-la à floresta agora pela manhã, como

havíamos planejado. A pessoa responsável por abrir o ritual está

um pouco distante daqui, fazendo um parto. Então, sairemos

daqui ao entardecer. Para mim, foi um presente dos deuses, pois

assim nos dará mais tempo de preparar o ritual do fogo. Por

favor, senhorita Anna, não se esqueça de tomar seu chá.

Falou essas palavras e saiu, deixando-me novamente.

Depois que fiz meu desjejum e tomei meu chá, cujo gosto era de

água suja, fui para cama, na tentativa de ler um pequeno livro

que achei perdido em cima de um caixote de madeira. Mas foi

em vão, pois, ao sentar-me à beira da cama, comecei a cochilar e

acabei por cair em sono profundo, como já era de se esperar.

Dormi tanto que nem sonhei! Aquela mistura amarga de ervas,

cultivadas secretamente pelas colonas, deixava-me tonta cada

vez que eu tentava colocar os pés no chão. Dona Helena deve ter

me falado, em algum momento que não conseguia lembrar,

sobre os efeitos do chá. Estes eram entorpecentes e nauseantes.

Diziam que seu poder era curativo, depurativo e que abria todos

os chácras espirituais do nosso corpo, de maneira que tirava

tudo de ruim que existia dentro de nós. Novamente, fui deitar-

me, pois minhas pernas bambeavam.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 74 -

Acordei às onze e refresquei-me para o almoço. O sol

estava quente e o quarto ficava monótono, não tinha nada o que

fazer. Uma moça, com o rosto coberto por um fino véu, trouxe-

me o almoço. Mais tarde fiquei sabendo que seu rosto estava

coberto para evitar que eu a interrogasse.

Voltei à janela e vi uma multidão indo na direção da

clareira, que dava para o outro lado do pequeno ribeirão. Acabei

por contar pétalas de flores e adormeci, sentada em uma cadeira

e debruçada no beiral da janela. Quando acordei, às duas da

tarde, outro banho de purificação esperava-me; repeti o ritual

como pela manhã. Após o banho, retornei à janela. E,

novamente, perdi-me em pensamentos, que teimavam em me

passar perguntas e dúvidas. Lutei contra mim mesma, como me

foi determinado, e voltei meus olhos para as colonas, mudando,

assim, o rumo que estavam tomando. Notei que a pequena

clareira reunia uma grande multidão. As mulheres não estavam

sozinhas: havia homens também, e muitos idosos, e todos

estavam entrando mata adentro, deixando-me sozinha. Por

instantes, essa foi a impressão que tive.

Comecei a ficar com medo, pois a solidão sempre me

apavorava. Foi quando escutei uma voz a sussurrar ao meu

ouvido. Cheguei a pensar que poderia ser o vento e arrepiei-me.

Poderia estar ficando louca. De repente, senti atrás de mim uma

presença muito forte. Era como se fosse um anjo, pois me

transmitiu muita paz e calma, e sua voz, macia e nítida, voltou a

sussurrar em meu ouvido, dizendo baixinho:

– Acalme-se, Anna...

Era a voz de uma mulher. Olhei rapidamente para trás

para ver quem era, mas não tinha ninguém, somente eu e o resto

da mobília. Não tive medo, mas fiquei sem conseguir dar

explicações ao fato acontecido. Mudei meus pensamentos

rapidamente, para não ficar paranoica. Os pensamentos são

Adriana Matheus

- 75 -

realmente como o vento, voam rapidamente. E, como em um

passe de mágica, distraí-me. Parei, então, para olhar o horizonte,

observando a natureza. E, novamente, a calmaria instalou-se

dentro de mim.

Vi aves que nunca sonhara ver na cidade. Senti o cheiro

da terra fresca, do mato molhado e das flores. Poderia identificá-

las só pelo cheiro. O vento soprava em meus cabelos, parecendo

beijá-los. Senti a força da natureza, de maneira mágica. Era

como se o Criador tentasse me mostrar como era perfeita sua

obra. O amor estava em toda parte, o lugar era mesmo incrível!

As coisas falavam de maneira silenciosa. Uma paz indescritível

e sublime tomou conta de todo o meu ser. E quis voar como um

pássaro, pois minha alma estava totalmente livre!

Três toques à porta despertaram-me de meu sonho

acordada. Era Dona Helena novamente; entrou com mais duas

moças, trazendo outro banho e roupas, muito brancas e

transparentes, para que eu vestisse. Colocaram velas por todo o

quarto. Despiram-me e, dessa vez, Dona Helena fez questão de

me banhar. Embora não dirigissem a palavra a mim,

cantarolavam baixinho em uma língua estranha. Defumaram

todo o ambiente e todo o meu corpo, num ritual estranhíssimo.

Dona Helena dizia palavras na mesma língua em que cantavam

as moças. Depois de apenas banharem-me de pé, puseram em

mim as vestes brancas e transparentes, sem enxugar meu o

corpo, que se arrepiou com o vento frio que entrou pelo quarto.

Em minha cabeça, colocaram uma pequena tiara de flores do

campo, e Dona Helena agradeceu aos deuses e fez-me ajoelhar

em sinal de humildade, para consagrar minha cabeça com um

óleo sagrado. Pôs-me de pé novamente e deu-me mais um pouco

daquele chá horrível, que já estava me deixando cada vez mais

tonta. Por fim, depois de terem terminado o ritual de

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 76 -

consagração e agradecimento, abriram a porta do quarto. De

onde...

“O saber só depende da quantidade de experiências

vivenciadas e adquiridas pelo espírito encarnado ou

desencarnado. E, vivendo um dia de cada vez, conseguiremos

alcançar todos os nossos objetivos. A calma e a paciência nos

fazem cada dia mais capazes de chegarmos a um estado de paz

interior. Devemos trabalhar muito para isso - muita paz e muita

luz.”

Adriana Matheus

- 77 -

II - A INICIAÇÃO

ete mulheres vestidas de azul entraram

silenciosamente pelo recinto. Uma delas pegou

minhas mãos, levando-me para o centro do quarto.

Todas me respingaram óleos aromáticos. Fui despida novamente

de minhas vestes e colocaram-me um fino véu sobre o corpo.

Não entendi nada daquele estranho ritual e preferi não comentar.

Depois de rezarem muito, conduziram-me até a saída.

Quando, por fim, chegamos do lado de fora da casa, doze

donzelas vestidas de céu esperavam por nós. De início, fiquei

envergonhada por elas estarem despidas e tentei esconder

também minhas vergonhas, porque meu traje era muito

transparente e deixava à mostra todo o meu corpo. Quase

cambaleei, ainda entorpecida pelo chá mágico que Dona Helena

havia me dado durante as sessões de purificação espiritual e

mental. Vagarosamente, meu raciocínio foi começando a fluir, e

tudo aquilo começou a parecer tão normal! Mudei

imediatamente meus pensamentos e concentrei-me no pequeno

triângulo imaginário que Dona Helena havia me ensinado para

o caso de pensamentos tolos invadirem minha mente.

Saímos numa espécie de procissão silenciosa, só de

mulheres. Tirando as doze donzelas que estavam vestidas de

céu, todas as outras vestiam camisolas de algodão branco.

S

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 78 -

Somente eu usava o fino véu sobre o corpo nu. Mas, por uma

estranha lógica insana, eu não me importava com aquela

situação que, tempos atrás, poderia parecer despudorada.

Fui levada ao extremo da floresta, onde havia uma

aglomeração de pessoas no meio do enorme campanado. Logo

se juntaram a nós. Caminhamos por mais meia hora a pé e

descalças. Depois de muito caminhar, conseguiu-se avistar uma

graciosa casinha de pedras polidas. Ela estava parcialmente

tomada por trepadeiras, tornando sua existência quase invisível

a olhos nus. Seu telhado era avermelhado. A porta principal era

estreita, em tom marrom. Suas janelinhas pareciam com as de

uma capelinha. Vasinhos com ervas cercavam suas laterais.

Parecia ter sido criada pelos contos de fadas que liam para mim

quando eu era criança.

Quase não se podia ver o sol, pois as gigantescas árvores

que cresciam ao seu redor tampavam a incrível visão. As

árvores que cercavam o bosque e a casinha pareciam falar

conosco, como se nos saudassem. Meu corpo e meus sentidos

respondiam àquilo tudo de maneira inexplicável. O misticismo

tomou conta de todo aquele lugar. Os pássaros cantavam alto,

dando ecos que confundiam meus ouvidos. Ora imitavam gritos

humanos, ora pareciam clamores. Talvez estivesse entorpecida e

sonolenta, devido ao efeito causado pelo chá - ou ainda estava

meio confusa, absorta com tanta magia. Juntamo-nos aos que ali

também esperavam por nós. Em instantes, aquele pequeno grupo

tornou-se uma centena de pessoas, mas já não eram pessoas

comuns: seus rostos, à luz da clareira que se formava em torno

do campanado, davam a impressão de eles serem anjos ou seres

místicos. Eu não sabia identificá-los, porque minha cabeça

começou a rodar novamente.

As mulheres do campanado que se juntaram ao nosso

grupo trajavam-se com cores muito exuberantes, como as

Adriana Matheus

- 79 -

ciganas. Fitas trançadas e coloridas, enlaçadas em volta da

cintura. Dançavam e rodopiavam, deixando-me cada vez mais

tonta. Flores diversas enfeitavam seus cabelos soltos. Usavam

enormes argolas douradas nas orelhas e muitas pulseiras.

Tocavam pandeiros e castanholas, rodopiando como borboletas.

Aquele frenesi deu-me a sensação de haver luzes saindo de seus

corpos. As crianças estavam presentes - porém, só participavam

as mais velhas. Ao nos aproximarmos mais da pequena casinha,

veio-nos receber uma senhora de idade muito avançada,

aparentando uns oitenta anos ou mais. Ao aproximar-se de mim,

senti-me fraca e cairia, se não fosse por Loylla e as outras

jovens a me ampararem. A anciã mais parecia uma bruxa, de tão

enrugada. Seus olhinhos já estavam sem brilho, devido à idade

muito avançada, mas eram piedosos e cheios de carinho. Seu

nome era Andélia. Todos diziam que ela tinha poderes

extraordinários e era, realmente, a bruxa mais poderosa e antiga

do condado. Ao passar, todos baixaram a cabeça, em respeito e

reverência à anciã.

Ao se aproximar de mim, observou-me minuciosamente

de cima abaixo, como se eu fosse uma escrava que está prestes a

ser adquirida em leilão. Senti-me muito constrangida por ser

observada daquela forma, pois a anciã até em minhas pupilas

olhou. Por fim, falou:

– Pelo que vejo, trouxeram a menina! Levem-na para

dentro e coloquem-na em meus aposentos, pois parece não estar

bem.

Disse isso com um sorrisinho matreiro nos lábios. Duas

moças carregaram-me, cada uma apoiando meus braços em seus

ombros. Já nos aposentos da anciã, colocaram-me sobre uma

caminha feita de carvalho e colchão de palha. Os lençóis eram

extremamente brancos! A mobília não era muito farta: havia

apenas uma mesinha com uma bacia e uma ânfora para o asseio,

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 80 -

uma cadeira e um armário com oratório, onde tinha muitas

imagens de santos da Igreja Católica. Surpreendi-me, pois fiquei

imaginando o que uma bruxa fazia com tantas imagens de

santos. Cheguei à conclusão de que meu conceito sobre as

bruxas não passava de ilusão. Eu as tinha como personagens de

contos de fadas. Imaginava-as de uma maneira totalmente

contrária do que elas eram na realidade. Seus deuses pagãos não

eram tão diferentes dos que conheci no meu dia-a-dia. Alguns

até pareciam com os santos da Santa Madre Igreja.

Ao me deixarem sozinha naquele aposento, tremia tanto

que meus órgãos internos pareciam balançar. Estava

completamente gelada, embora não estivesse fazendo o menor

frio. Tentei voltar os meus pensamentos para o ritual do qual eu

faria parte. Mas isso, naquele momento de aflição, foi quase

impossível, pois minha cabeça começou a doer

insuportavelmente. Foi aí que, como em um passe de mágicas,

deparei-me com a anciã bem à minha frente. Foi como se ela

tivesse sentido meu momento de agonia. Dona Andélia

aproximou-se mais de mim e tocou-me suavemente na face, com

seus dedos longos e unhas muito pontiagudas, que mais

pareciam garras. Por fim, exclamou:

– Acalme-se, minha criança! Não há motivos para tanto

nervosismo. Diga-me: o que está sentindo?

Era inexplicável saber como ela poderia ter adivinhado

meus pensamentos.

– Sinto minha visão turva e, às vezes, dá vontade de

vomitar. Sem contar que minha cabeça dói demais.

Ela riu, e prosseguiu a falar:

– É normal, sua mediunidade está muito aflorada. Sem

contar que suas perguntas e os seus pensamentos são muitos -

típico de jovenzinhas de sua idade. Ah, querida... Em sua idade

eu era tão ansiosa que minha mãe, às vezes, tinha que me dar

Adriana Matheus

- 81 -

um chá para dormir! Caso contrário, eu especulava mais do que

o normal. A ansiedade é a inimiga do tempo. Tenha calma: para

tudo nesta Terra tem o tempo exato. Correr só atrapalha os

sentidos, sem contar que faz muito mal ao corpo físico.

Dizendo isso, Dona Andélia tocou em minha testa e,

pedindo para eu fechar os olhos, fez em seguida uma oração

naquela estranha língua em que Dona Helena também já havia

feito. Imediatamente, não senti mais ansiedade e nem mais

nenhum tipo de dor física ou tremores pelo corpo.

Dona Andélia, ao terminar com as orações, pediu-me

para abrir os olhos e prosseguiu, dizendo:

– Pude perceber sua energia brilhando de longe,

enquanto vinha caminhado pela clareira. A senhorita tem um

brilho tão forte que quase cegou minha visão. Tenho certeza de

que essa viagem lhe fará muito bem. Trará em seu retorno uma

grande experiência de vidas passadas.

– Dona Andélia, tenho tantas perguntas! Por exemplo, o

que é realmente essa viagem? Como poderei fazer uma viagem

se não vou a lugar algum além deste campanado? E por que

minha cabeça doía tanto e, quando a senhora a tocou, a dor

desapareceu?

Novamente ela sorriu, mas me respondeu seriamente,

como que não queria mais saber de especulações daquele tipo de

novo.

– É o efeito do chá. Ele desperta a natureza humana,

colocando para fora tudo o que existe dentro de nós, de bom ou

de mau. Se tivermos boas energias, ele as faz fluírem com mais

força. Se tivermos energias negativas, ele faz uma limpeza nos

chácras. Não se preocupe, que tudo isso passará. E, no seu

caso, como a senhorita está com a mediunidade muito aflorada,

o chá causou-lhe essas visões e tonteiras.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 82 -

Depois daquelas explicações, Dona Andélia pediu-me

que repousasse em sua cama. Quando eu já estava deitada, ela

ajeitou minha cabeça em um travesseiro feito com paina e deu-

me um beijo no rosto, fazendo-me sentir segura. Pensei que

Dona Andélia ficaria ali comigo um pouco. Porém, assim que

ela passou o dedo polegar sobre a minha testa, tecendo uma

espécie de sinal mágico, não consegui ver mais nada.

Já era noite quando despertei. Fui à janela e perdi-me em

pensamentos novamente. Fiquei por horas olhando os homens

da vila trabalhando; pareciam estar montando uma fogueira.

Não entendia muito bem, talvez fosse parte do ritual. Eles

usavam, além de vestes brancas, um capuz que cobria todo o

rosto, deixando à mostra somente os olhos. Todos estavam

rezando, e aquela oração foi ficando mais forte. Havia umas cem

pessoas ou mais em volta da fogueira, já armada. Não vi Maria

ou Bernadete, devido à pouca luz e à escuridão da noite.

Sentei-me, então, na beirada da cama para olhar a Lua,

que estava alta no céu e clareava todo o quarto escuro. Acabei

adormecendo novamente. Era alta noite quando me acordaram

de supetão. Levaram-me para fora, ainda meio adormecida.

Observei que, no meio do enorme pátio de terra, estava a

imagem de Nossa Senhora de Guadalupe, pois haviam

construído uma capela para a santa. Todas aquelas mulheres

dançavam, rodopiavam em volta de mim sem parar, girando no

ar uma espécie de varinha, fazendo movimentos circulares e

irregulares. Loylla, a irmã mais velha de Bernadete, dançou

sozinha. Depois, todas as outras, muito perfumadas, a seguiram,

balançando suas saias muito rodadas. Algumas me molhavam

com galhos cheios de um líquido com alfazema, jasmim e

canela. Outras me traziam flores. Outras, ainda, me davam o chá

mágico. Por fim, tiraram minhas vestes. Fiquei, então, no meio

de toda aquela gente vestida de céu.

Adriana Matheus

- 83 -

No princípio, senti-me envergonhada por causa dos

homens à minha volta. Tentei cobrir meu corpo nu com as mãos.

Mas eles não pareciam estar olhando para mim, porque também

estavam em completo transe.

Ao me aproximar, percebi que a fogueira era, na

verdade, um enorme pentagrama feito por toras de madeiras - o

que explicava o motivo pelo qual os homens passaram a tarde

toda cerrando árvores.

Fui guiada ao centro do pentagrama, onde fiquei imóvel,

sem saber o que fazer. Havia muitos símbolos antigos

desenhados em suas pontas. No meio, tinha também um círculo

feito no chão, como se alguém o tivesse milimetricamente

desenhado. Foi nesse círculo que algumas daquelas pessoas se

posicionaram, enquanto as outras ficavam de fora, de olhos

fechados e em estado de transe. De repente, uma estranha luz

brilhante circulou em volta daquele círculo mágico, que se

formou pelas pessoas que estavam de mãos dadas. Um homem

encapuzado com uma grande tocha nas mãos ateou fogo nas

toras, que formavam as pontas do pentagrama. As chamas, num

instante, assumiram o seu lugar. Assustei-me por um segundo,

dando um pulo, mas percebi que as chamas não conseguiriam

me tocar. A fumaça era intensa e, por pouco, não sufoquei.

Uma jovem vestida de céu veio até mim e passou um bálsamo

em minhas narinas, para evitar que eu me sufocasse.

Vi, ainda, quando algumas jovens atearam ervas dentro

da fogueira - o que aumentou mais ainda aquela intensa fumaça.

Todos gritavam palavras em línguas estranhas, ao mesmo

tempo. Uma mão apareceu no meio da fumaça e deu-me algo

para beber: parecia uma espécie de vinho misturado ao chá

mágico. A voz que acompanhava a mão dizia que era para não

deixar a minha garganta ressecar. Mas, logo que tomei aquele

líquido, fiquei completamente entorpecida e senti meu corpo

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 84 -

caindo em uma imensa escuridão. Não conseguia mais abrir

meus olhos, mas meus ouvidos estavam atentos a tudo. A voz da

anciã tornou-se nítida e perceptível. Ouvia sua oração, que dizia:

– Estamos aqui, presentes neste local sagrado, para

prestarmos auxílio espiritual a esta irmã atormentada pelo

espírito da sua antepassada. Devemos todas dar as mãos e, como

em uma ciranda, girar em torno da fogueira. Depois soltem

calmamente as suas mãos e acompanhem-me, dizendo as

seguintes palavras:

– Que a mãe terra, que nos dá permissão para fincarmos

nossas tendas sobre seu ventre, nos dê sua força em espírito

hoje. Que a mesma mãe, que nos fornece seu alimento para

matar nossa fome, nos dê alimento para nosso o espírito. Que o

fogo, que por anos foi nosso inimigo temeroso, hoje possa ser

nossa espada, para combatermos os inimigos de nossa alma.

Que o vento, que nos traz o cheiro e a mensagem de nossos

companheiros quando os perdemos na dor da batalha, venha

hoje ser o portador de boas novas, levando nossa irmã a seu

lugar de origem. Que a água, que mata nossa sede, seja hoje a

purificadora de nossos pecados. Que a Virgem Maria

Imaculada, que nos deu a maior benção do mundo - que foi seu

filho humanizado -, venha hoje nos ajudar em nossas

dificuldades, amparando-nos e protegendo-nos de todo o mal

que fizeram contra nossas antepassadas. Que a Virgem hoje

nos auxilie em nossas buscas ao interior de nossas almas. Que

nosso Pai celestial venha em nosso socorro. Muito obrigada,

meu Deus, por esse dia maravilhoso e produtivo. Muito

obrigada pelas nossas dificuldades, pois aprendemos com elas.

Muito obrigada por todos os obstáculos que aparecem em

nossos caminhos, pois aprendemos a crescer com eles. Muito

obrigada por nossos inimigos, visíveis e invisíveis, pois

aprendemos com eles a termos mansidão e paciência. Mas os

Adriana Matheus

- 85 -

ajude, Senhor, a enxergarem Sua luz, para que possamos viver

todos em paz. Muito obrigada pelos anjos e arcanjos que nos

fazem companhia, dando-nos orientação para o caminho que

devemos seguir com segurança. Muito obrigada aos espíritos de

luz, encarnados e desencarnados, que nos orientam, nos

amparam e nos guiam em nossa jornada terrena.

Em seguida, foi rezado o Pai Nosso:

– Pai Nosso, que estais no Céu, santificado seja o vosso

Nome. Venha a nós o vosso Reino. Seja feita a vossa vontade,

assim na terra como no Céu. O pão nosso de cada dia nos dai

hoje. Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a

quem nos tem ofendido. E não nos deixeis cair em tentação, mas

livrai-nos do mal.

Dona Andélia prosseguiu com o ritual, só que, dessa vez,

usou outro tipo de oração:

– Pelo poder da terra (palmas viradas para baixo). Pela

força do fogo (palmas viradas para frente). Pela alma dos ventos

(palmas em movimentos circulatórios em direção a si). Pela

pureza das águas (palmas juntas e para cima, como se estivesse

tomando banho de cachoeiras). Que o portal se abra e nossa

irmã possa seguir seu caminho em paz. Que nossas ancestrais a

guiem com segurança e tragam-na, calma e serena, de volta

para nós.

Naquele momento, eu já não sentia mais o calor da

fogueira, nem a fumaça que me sufocava. Não ouvia mais as

vozes cantando ao meu redor, nem sentia vergonha por meu

corpo estar nu. Fiquei completamente catatônica e não mais

consegui me mexer. Senti o meu corpo levitar.

De repente, eu estava em outro lugar, no meio de uma

floresta fechada, onde ouvi nitidamente um enorme alvoroço de

mulheres gritando. Meus olhos foram abrindo lentamente e as

pude ver correndo de um lado a outro. Coloquei-me de pé, ainda

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 86 -

meio tonta, tentando entender onde eu estava. A floresta

pareceu-me a mesma, mas onde estavam todos que estavam em

volta de mim no ritual? Onde estava Maria e Bernadete? Eu

queria fugir, mas não tinha como e nem para onde. As pessoas

que estavam ali eram completamente diferentes das que estavam

comigo no campanado. Seus trajes eram bem medievais. Fiquei

inerte mediante tamanha calamidade que observei.

O pânico era tamanho que pude sentir o choro invisível

da mãe terra. Mulheres eram chutadas, criancinhas eram

pisoteadas. Crianças inocentes eram decapitadas brutalmente

pelos soldados. Pelos cabelos e pelos pés, as mulheres eram

lançadas em carroças com cela, espremidas e trancadas como

animais. Algumas foram amarradas pelas pernas e arrastadas por

toda a floresta. Jovens eram defloradas na frente de seus pais.

Bebês que nem andavam eram lançados pelas perninhas aos

cães ferozes e famintos, já treinados e acostumados com a

carnificina humana.

Um verdadeiro holocausto foi criado em meio à paz e à

harmonia.

Indaguei uma jovem que passou por mim, desesperada,

querendo saber dela o que estava havendo. Ela simplesmente

respondeu-me entre soluços, parecendo não querer parar:

– Tudo por causa da ignorância e do preconceito das

pessoas que não nos entendem, senhorita. Somos tratadas como

animais por não termos o direito de escolher o que fazer do

nosso destino.

Uma senhora, que parecia ser a mãe da jovem, veio aflita

em nossa direção, e puxou-a pelo braço, dizendo-me:

– Fuja para se salvar, ou esses cães imundos vão trucidá-

la.

Não as vi mais daquele momento adiante. Elas sumiram

em meio à multidão, aterrorizada. Eu não podia acreditar no que

Adriana Matheus

- 87 -

estava acontecendo mediante meus olhos. Aquelas pessoas

estavam sendo massacradas somente por pertencerem a outra

religião, por pensarem diferente e quererem ser livres. Meus

olhos encheram-se de lágrimas. Caí por terra de joelhos, sem

forças para rezar ou pronunciar qualquer palavra. Chorei

desesperadamente. Se Deus existia, naquele momento tinha

certamente se esquecido de que nós, mulheres, também éramos

Sua criação.

Olhei para frente e vi, saindo de uma casa branca

medieval, uma mulher alta, com cabelos longos e cacheados e

vestes de camponesa. Ela era uma mulher com um porte de

nobreza, e seu olhar era firme. Levantou o rosto e encheu o

peito de ar. Parecia estar tentando criar coragem para enfrentar

aquela situação. Pude perceber que ela era uma líder, e que

todos os soldados estavam procurando por ela. Outras mulheres

tentaram protegê-la, mas ela não queria proteção: simplesmente

saiu andando em direção ao chefe da guarda. Seu ar de

imponência fazia com que alguns dos soldados se afastassem

enquanto ela passava. Foi quando ouvi um soldado dizer, em

tom de desprezo:

– Eis que se rende a bruxa-mor, capitão!

Quando a mulher líder aproximou-se do capitão da

guarda, pude notar sua semelhança comigo. Então entendi que

estava fazendo a viagem. Aquela mulher era a minha ancestral, e

aquele não era o meu mundo: era o mundo astral, onde eu iria

descobrir quem eu havia sido e o que me fazia sofrer tanto.

Resolvi ficar quieta e observar tudo o que estava

acontecendo à minha volta. Eu sabia que, por mais duro que

fosse, não poderia interferir no meu passado.

A mulher olhou tudo e todos a seu redor. Fixou os olhos

no capitão e, mesmo mediante todo aquele sofrimento, em

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 88 -

momento algum ela parecia se intimidar. Por fim, ela disse, em

tom supremo:

– Sim, sou eu. Agora não maltrate mais o meu povo com

os seus soldados ignorantes e carniceiros. Leve-me e deixe essa

pobre gente em paz, pois eles nada lhes fizeram de mal. O seu

problema é comigo, capitão.

Um jovem guarda, querendo mostrar serviço, retrucou:

– A bruxa-chefe está pedindo um castigo, capitão

Edward. Devemos acorrentá-la junto às outras? Com

um olhar de ironia, o chefe da guarda respondeu:

– Não, quero interrogá-la primeiro.

Os olhos do capitão pareciam estar grudados naquela

mulher. Por fim, ele falou, em tom de impaciência:

– Então nos encontramos de novo, senhorita Shaara, ou

devo dizer feiticeira Shaara!?

– Sim, senhor. - respondeu-lhe, sem tirar os olhos dos

dele.

– Ora, ora... Estou vendo que nem o medo fez-lhe perder

a arrogância.

– E quem disse ao senhor capitão que estou com medo?

Pode fazer medo em seus subalternos, mas nunca em mim. Nem

eu e nenhuma de minhas irmãs fizemos nada demais para que o

senhor nos ponha medo. O senhor não é Deus! Portanto, não

vejo porque temê-lo, capitão! Além do mais, sua aparência

cansada é digna de pena, pois vejo no senhor um homem

confuso, em um estado débil de cólera. E quem é o senhor para

falar de arrogância ou de qualquer outro defeito que exista nas

pessoas? Tem um coração tão arrogante que não admite que

esteja apaixonado e errado. Arrogante, vingativo, sanguinário e

infeliz. É assim que vejo o senhor: uma pessoa sem chão,

perdida, entre uma falsa razão e o próprio coração. Olhe pra

dentro de si, senhor Edward! Veja-se! Vai chorar, em breve.

Adriana Matheus

- 89 -

Estou a pagar pelos ciúmes de sua mãe, pela ignorância e pela

mentira de tantos que se escondem por trás das máscaras de uma

sociedade hipócrita e com ideias distorcidas sobre o caráter e a

moralidade das pessoas. Os senhores falam o nome sagrado de

Deus, mas são pessoas que nada sabem sobre Ele. Os senhores

fazem justiça à maneira que lhes convém, e pregam verdades

ditadas por uma ordem já em decadência. Traduzem a palavra

do Cristo para educarem seus adeptos, seus filhos e seus

parentes. São como ovelhas no pasto, sendo tocadas de um lado

para outro, por um pastor tão sem rumo quanto. E, assim,

envoltos na própria ignorância, seguem todos de mãos dadas.

Que triste, capitão... Encobrem seus próprios pecados e crimes,

tentando achar defeito nos menos favorecidos, como eu e

minhas irmãs. Ou acham mesmo que as mulheres de sua

sociedade são todas santas?

Shaara baixou a cabeça e sorriu, parecendo

decepcionada, continuando aquele diálogo, que mais parecia

uma afronta.

– Se suas senhoras fossem santas, não estariam vivas, e

sim em um plano muito superior a este. Bando de hipócritas,

desumanos, falsos profetas, monstros! Todos estes homens aqui,

incluindo o senhor, são piores do que animais. Acusam-nos de

possessão, mas o demônio está dentro da sua alma. Tenho pena

do senhor, capitão Edward, com toda a força do meu ser. Pois

sei que as irmãs que o senhor e seus homens mataram estão em

paz agora. Mas e o senhor? Não terá um dia de sua vida em que

não se lembrará desse massacre. Sabe por que, capitão?

Lembranças ruins perseguem-nos durante os nossos sonhos à

noite. Elas são chamadas de consciência inconsciente, e mesmo

o mais ignorante dos seres viventes tem consciência. E é isso

que me deixa feliz: sei que o senhor nunca terá paz enquanto

viver.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 90 -

O capitão, com um olhar furioso, ergueu a mão para

esbofetear Shaara no rosto. Mas Shaara não se fez de rogada e

disse:

– Vá em frente, senhor Edward. Não pode me ferir mais

do que já me feriu. Não seria a primeira vez a usar violência

contra mim. Ah, capitão... O senhor tem razão. Eu quase ia me

esquecendo: quem bate esquece, mas quem apanha tem que

conviver com as cicatrizes. E as minhas estão tão profundas que

o senhor não as consegue ver, não é, capitão?

O capitão segurou o rosto de Shaara e, olhando-a

fixamente nos olhos, disse:

– Se eu fosse a senhorita, ficaria bem boazinha. Afinal,

sou o homem que tem nas mãos o seu destino. Posso queimar

todas essas bruxas aqui mesmo, nesta floresta, sem a menor

piedade, e alegar que estavam praticando rituais de magia negra

e que, ao nos verem chegar, os demônios ferozes que as

possuíam tentaram nos atacar, sem nenhuma explicação. Isso,

logicamente, foi o que me fez tomar tamanha atitude contra as

pobres mulheres, que estavam, embora inconscientes, possuídas

por espíritos malignos. Portanto, se não quer que eu mate o

restante dessas desgraçadas queimadas vivas, cale-se e fique

com essa maldita boca fechada o restante do tempo que lhe

resta. E sabe o que mais? Faço isso deixando-lhe como única

testemunha. Mas, logicamente, não terá língua para contar tais

fatos a ninguém quando for interrogada em tribunal - o que me

será bastante útil em minha própria defesa, quando eu for

interrogado sobre os fatos acontecidos nesta floresta, sem

nenhuma testemunha que lhe possa ser útil, é claro. Pense bem,

então, antes de tomar alguma atitude insensata. Não que sua

língua possa lhe valer muito, mas as pessoas, durante seu

julgamento, ao perceber que a senhorita não pode falar, dirão

Adriana Matheus

- 91 -

que o demônio lhe impede a fala. Isso, para os leigos - como a

senhorita mesmo diz - é incontestável.

O capitão deu uma gargalhada sarcástica e seu olhar

gelou até a minha espinha, mas Shaara manteve-se em posição

de defesa. Ela sabia que o capitão cumpriria o que estava

prometendo, mas prosseguiu mesmo assim:

– Faça o que o senhor tem que fazer, capitão. Que se

cumpra o meu destino. Seja a mão de Deus, mas seja breve, não

me deixe sentir dor!

Shaara não estava falando apenas da dor física, mas

também da dor da alma. O mundo dela estava todo nas mãos

daquele carrasco, do algoz, do homem que um dia foi o mais

importante da sua vida. O capitão Edward era a única pessoa

que jamais poderia tê-la traído. Shaara estava só, sem

perspectivas, e sabia o quanto aquele homem poder-lhe-ia fazer

mal. Um homem com um sentimento de mágoa, fúria ou ciúmes

pode se tornar perigoso, principalmente se estiver se sentindo

rejeitado ou traído.

Minha ancestral somente abaixou a cabeça e deixou que

seu destino se cumprisse. Embora ela não demonstrasse medo,

pude ver nos seus olhos que, até certo momento, tinha esperança

de que o capitão, seu amor, voltasse atrás. Mas, na verdade,

Shaara já sabia qual seria seu destino e sabia que isso seria

impossível de acontecer. É impressionante o quanto a Inquisição

era cruel e mentirosa, principalmente quando se tratava de nós,

mulheres. Os inquisidores praticavam as mais cruéis formas de

torturas. E se uma mulher fosse alvo da Inquisição, logo era

enclausurada. Pior seria se caísse nas mãos de algum padre ou

sacerdote, pois esses santos homens certamente a violariam e

dariam um jeito para que a pobre mulher não contasse nada a

ninguém, cortando-lhe a língua e praticando os mais cruéis tipos

de torturas.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 92 -

Muitas das vítimas eram deixadas nuas, em praças

públicas ou em algum lugar deserto, a mercê do destino. Isso

ocorria depois de terem sido torturadas publicamente, ou

violadas privadamente. Todas nós, mulheres, sentíamos um

medo especial da Inquisição. Se alguma de nós fosse acusada de

bruxaria, ficaria logo eminente que sofreríamos uma tortura

muito especial por parte do clero, sedento por sexo e sangue.

Qualquer mulher era culpada de algum crime, mesmo que nunca

tivesse cometido crime algum. Nós, mulheres, éramos a porta

aberta para espíritos impuros. Qualquer mulher com um

comportamento que desagradasse a sociedade masculina sofria

perseguição como prováveis bruxas.

Havia vários tipos de torturas antes de a vítima morrer. A

morte por afogamento era uma das formas mais cruéis.

Amarravam-se as mãos e colocavam uma pedra presa aos pés

das vítimas. Em seguida, lançavam-na dentro d’ água. Se a

vítima não afundasse, era inocente. Se afundasse, era uma bruxa

- o que significava que ninguém era inocentado...

Se uma mulher fosse meramente lançada de um

precipício, podia chamar a si mesma de afortunada por ter uma

morte relativamente rápida e com pouca dor. Na maioria das

vezes, éramos obrigadas a dizer que estávamos possuídas por

espíritos demoníacos, com a falsa promessa de termos uma pena

mais branda ou uma absolvição. O espírito demoníaco de

obsessão era, nada mais nada menos, que um desvio sexual da

luxúria encoberta pelos sacerdotes. Houve certo tempo que

ecoou por toda a Europa a epidemia chamada O Malleus

Maleficarium. Isso ocorreu em cinco de dezembro de 1484,

quando o papa Inocêncio III emitiu a bula papal. Estabeleceu-se

esse documento como padrão segundo o qual a Inquisição

deveria ser conduzida, como ditadora das leis da Igreja Católica.

O celibato clerical já estava em vigor havia 361 anos. Foi tempo

Adriana Matheus

- 93 -

suficiente para tornar os sacerdotes verdadeiros desviados

sexuais. Essa obsessão sexual tomou tamanha proporção que as

mulheres viviam com medo de que um dia, a partir do nada,

alguém as acusasse de serem bruxas, visto que qualquer

acusação seria equivalente à culpa.

As mulheres podiam esperar qualquer coisa vinda de um

homem que as desejasse. Por isso, a maioria vestia-se de forma

austera e sem nenhuma vaidade aparente, pois qualquer indício

de vaidade poderia levá-la a ser acusada de sedução demoníaca

ou algo assim. Geralmente, não conhecíamos nossos acusadores,

que poderiam ser homens, mulheres e até mesmo crianças. Isso

dependeria de quem as acusasse de algum crime, pois os

manipuladores usavam pessoas inocentes e desprovidas de

recursos financeiros.

Do processo de acusação ao julgamento, seguindo até a

execução, podia ser rápido ou não. Isso dependeria muito da

pessoa que estivesse sendo acusada. Mas uma coisa era certa:

não existiam formalidades ou direito a defesa. A única

alternativa do réu era confessar e retratar-se, renunciando a sua

fé, seus bens, seus familiares, e aceitando o domínio e a

autoridade da Igreja em ascensão. Os direitos de liberdade e de

livre escolha nunca foram associados a tais leis. Os acusados

eram feitos prisioneiros e mantidos constantemente sob torturas.

Muitos eram inibidos de dormir, e isso acontecia segundo

revezava-se o horário de seus carrascos. Todos eram obrigados a

confessar uma condição herética. As mulheres, que eram a

maioria, comumente eram vítimas de violação. A execução era

realizada geralmente em praças públicas, sob os olhos de todos

os moradores, que faziam de tal barbárie uma festividade

bizarra. Punir publicamente era uma forma de coagir e intimidar

a população. A vítima podia ser enforcada, decapitada ou, na

maioria das vezes, queimada viva. Entre as torturas, as mais

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 94 -

usadas eram: o tronco, a roda de despedaçamento, o berço de

Judas, a dama de ferro, o garfo, as garras de gato, a pêra, a

máscara da vergonha, a cadeira das bruxas, o pêndulo e o

esmaga joelho - entre tantos outros instrumentos que, além de

monstruosos, eram criativos, dependendo do carrasco a executar

a sentença. Os métodos de execução também eram bastantes

variáveis, sendo os mais usados a guilhotina, o serrote, a

espada, a forquilha do herege, o garrote, a gaiola suspensa, a

submersão, a empalação, a cremação e o fura-bruxas, que nada

mais era que uma faca falsa para enganar a população leiga.

O fura-bruxas era a forma mais repulsiva e fraudulenta,

pois tal faca de exame nunca perfurava coisa alguma. O que

acontecia, na realidade, era que os carrascos cortavam a língua

das vítimas e usavam o fura-bruxas ou athame falso para espetá-

las perante a população leiga. Como a vítima não podia falar,

pois estava sem a língua, eles diziam a todos, em alto tom:

Viram-na? Está possuída pelo demônio! E, mediante tal espanto

por parte da população, os acusadores aproveitavam-se para

condenar a pobre vítima, mutilada.

O nascimento de uma criança também era motivo para

que a Igreja interviesse, enviando um de seus sacerdotes para

examinar o rebento. Se na pobre e inocente criança houvesse

algum tipo de sinal ou anomalia, imediatamente ela seria

retirada de dentro da casa de seus pais e levada para dentro de

um convento ou mosteiro, onde passaria o resto de sua infeliz

vida sendo observada e até torturada por seus superiores.

Procuravam, também, marcas do Diabo no corpo das

mulheres consideradas hereges, pois, segundo a Igreja, o diabo

deixava sua marca em algum lugar no corpo de uma bruxa. A

mais óbvia era o mamilo supranumerário. Certamente, os

sacerdotes celibatários e castos estariam muito interessados em

examinar tais mulheres e, com isso, uma depravada compulsão

Adriana Matheus

- 95 -

por torturas e sexo violento surgiu com a chegada das normas

morais da Santa Madre Igreja. Por parte dos sacerdotes

celibatários e castos, essa praga emocional atingiu sexualmente

indivíduos não funcionais, incapazes de sentir prazer na prática

natural do sexo e, com isso, começaram a aliviar sua

sexualidade reprimida, cortando, dilacerando e queimando as

causadoras de toda aquela volúpia reprimida - ou seja, nós, as

mulheres.

Uma esposa não podia sentir prazer com o seu esposo,

nem beijá-lo. Ela somente lhe serviria para a reprodução. Caso

ela descumprisse tais preceitos - como, por exemplo, beijar o

esposo -, ele poderia arrancar seus lábios, para que não se

tornasse uma depravada do demônio. Essa regra só se aplicava

às mulheres, pois seus maridos podiam procurar outras em

prostíbulos, para satisfazer seus desejos carnais incompletos. O

homem era o senhor - a mulher, um enfeite de estimação que

nada mais servia para ele, além de ser a sua procriadora e zelosa

dona de casa.

Com a Santa Inquisição, foi fácil para satanás invadir a

Igreja Católica, pois ela já tinha se movido para a prática da

feitiçaria desde o ano trezentos e vinte e um, quando o

imperador Constantino afirmou seu comando sobre a Santa

Madre Igreja. Foi quando, finalmente, esse período da

Inquisição começou a se separar da verdadeira videira de Jesus

Cristo. Isso aconteceu há mais de oitocentos anos. Portanto, a

madeira estava muito seca e suscetível ao fogo do Inferno. Foi

assim que Satanás se aproveitou e soprou, usando a Inquisição

como seu maior instrumento.

Enquanto milhares de pensamentos invadiam minha

mente, dei-me conta que Shaara estava sendo levada para um

vilarejo, onde seria posta sob cárcere privado até seu

julgamento. Olhei para aquelas mulheres em desespero e meu

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 96 -

coração apertou-se dentro do peito. Eu sabia que nada podia

fazer por elas, mas me senti uma covarde e impotente por

apenas ser uma sombra.

Procurei por Shaara, que estava de mãos atadas,

cabisbaixa e encostada em um canto, perto de um carvalho. Ela

não dizia mais nada, estava imóvel. Parecia estar querendo

apagar da mente todo aquele holocausto. Seu semblante era de

dor e agonia. As pálpebras de Shaara estavam baixas, inertes.

Ela praticamente já estava morta, somente seu corpo ainda

estava de pé - talvez por uma questão de ela mesma não poder

se desligar da vida material.

Os soldados levaram-na para perto do capitão,

amarrando-lhe as mãos à sela do cavalo do chefe da guarda. O

senhor Edward ocupava três postos de muita responsabilidade e

conveniência: o de chefe da guarda, o de capitão, e o posto mais

alto, o de inquisidor. Logicamente, tais funções não lhe foram

impostas por ele ser simplesmente tão merecedor ou

competente. Ele era também outra vítima da Inquisição, que se

aproveitou do seu ódio por Shaara para fazer dele um caçador de

bruxas. Dessa forma, sabiam que poderiam confiar nele

cegamente, pois varreria também, da face da Terra, os inimigos

de Sua Majestade e da Santa Madre Igreja.

Acompanhei aquele cortejo fúnebre de longe, para que

Shaara não percebesse minha presença espiritual - ou poderia

ser ainda mais catastrófico para ela. No mundo transitório onde

me encontrava, nada poderia me acontecer, ou seja, nenhum mal

físico. Mas de nem uma forma eu poderia interferir no mundo de

Shaara. Era como se eu estivesse em um espelho às avessas: eu

podia falar com eles e interrogá-los, mas não podia tocá-los ou

ser tocada. Apenas o meu perispírito estava lá - o meu corpo,

não, pois ele estava no século XVIII, em que se encontrava

minha querida Maria e as outras irmãs, que pacientemente

Adriana Matheus

- 97 -

aguardavam meu retorno daquele transe astral. Era como se

fosse uma janela imaginária, mas, ao mesmo tempo, real.

Não soube descrever com palavras exatamente o que era

aquilo tudo que estava acontecendo. Mas o certo é que eu estava

lá. Presenciei aquelas coisas todas sem sair do lugar onde me

encontrava. Fiz a viagem e sabia, naquele momento, que era

algo muito especial e individual, pois cada pessoa que fizesse a

viagem teria a sua forma pessoal de descrevê-la.

Vi quando o capitão Edward olhou com ódio para

Shaara, que estava presa à sua sela. Mas também vi o olhar de

tristeza de Shaara, por parecer não reconhecer aquele homem. A

engolida seca de minha ancestral demonstrou que estava sem

força e fôlego para prosseguir todo aquele trajeto a pé e

descalça.

Depois de mais de três horas caminhando em trilhas

áridas e pedregosas, Shaara, por fim, falou em um tom de voz,

quase um sussurro:

– Dê-me água, pelo amor de Deus! Eu suplico: tenha

misericórdia, apenas me dê água!

O capitão olhou-a com desprezo e respondeu:

– Agora está se lembrando de Deus, bruxa maldita? Por

que eu deveria ter misericórdia de uma discípula de satã? A

senhorita e suas comparsas deveriam ter pensado na

misericórdia Dele antes de terem se juntado a satã. Agora é tarde

demais. Seus destinos estão em minhas mãos, e logo verei o fim

de toda a sua raça amaldiçoada. Eu mesmo selarei seus destinos

em nome de Deus e de todos os Santos dos céus. Faço isso sem

nenhuma piedade, pois sei que todas são um caso perdido para a

Santa Madre Igreja, levando em conta que o diabo já tomou

conta de seus corpos e almas.

Ao dizer tais palavras amargas, o capitão Edward olhou

para Shaara de tal forma que a desnudou apenas com o olhar. Eu

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 98 -

poderia estar enganada, mas, a meu ver, ainda existia paixão por

parte do capitão Edward em relação à Shaara. Talvez fosse uma

paixão doentia e corrompida pelo ódio e pela vingança - mas,

mesmo assim, ainda existia um sentimento dentro daquele

homem. E isso poderia ser muito mais prejudicial à minha

ancestral.

Shaara, percebendo o olhar de lobo selvagem do capitão,

tentou modificar o rumo que poderia tomar aquela conversa.

Tirando forças de dentro de si, respondeu, ainda num sussurro:

– Ninguém é dono do destino de ninguém, capitão, nem

mesmo do próprio - embora essa fosse a sua vontade, não é

mesmo, senhor Edward? Sempre quis controlar-me a qualquer

preço, nunca pensou que eu poderia fazer o que o senhor

quisesse?

Shaara deu um sorriso triste, abaixando e sacudindo a

cabeça negativamente. Depois olhou para ele, como que

suplicando por socorro, e prosseguiu:

– Bastava que me pedisse! O senhor nunca soube o que é

o amor de verdade e, pelo que vejo, nunca vai saber. Julgou-me

pelos pecados dos nossos pais. Eu era inocente, senhor Edward.

Mas, infelizmente, não quis perceber isso: o seu ódio era tanto

que o senhor não me deu sequer o direito a defesa. Eu não sabia

de nada. Para mim, foi uma surpresa descobrir o envolvimento

de nossos pais no passado. Mas de que adianta? O senhor está

senil pela sede de vingança que ainda lhe persegue. Por Deus,

Edward! Como eu poderia saber de tais coisas? Meus pais

esconderam de mim toda aquela história, eu juro por...

Shaara parecia querer dizer mais alguma coisa, mas deu

outro rumo àquelas palavras, que preferiram não sair de sua

boca. Isso, para mim, foi uma incógnita. Mas fiquei quieta,

observando minha ancestral desviar o assunto:

Adriana Matheus

- 99 -

– O mais importante para o senhor sempre foi ver a sua

vingança concretizada. Já se vingou de meu pai, tirando-lhe a

vida. Já me fez pagar pelo pecado que ele cometeu no passado,

conseguindo banir-me para o exílio, a viver longe da civilização.

O que mais quer agora, senhor Edward? O que mais ainda falta?

Por favor, senhor Edward, suplico em nome de Deus, a quem

diz tanto amar! Pare agora, enquanto ainda lhe resta um pouco

de civilidade. O senhor não sabe o que está fazendo, e vai se

arrepender amargamente. Acredite: sempre lhe fui fiel, mesmo

no exílio.

O capitão olhava para Shaara com ódio mortal e não

parecia ouvir o que dizia. Mas Shaara parecia decidida a fazê-lo

voltar atrás por algum motivo, ainda oculto para mim. Então, ela

continuou, enfraquecida e quase sem fôlego:

– Vejo dentro de sua alma. Vejo uma grande

infelicidade bem lá no fundo. Mas sei que ainda há alguma coisa

de bom aí dentro do senhor, capitão. Basta deixá-la vir à tona.

O capitão, em um inesperado ímpeto de insanidade e

ódio, esbofeteou Shaara, finalmente. Em suas faces alvas

escorreu a dor. O capitão rangia todo o seu ódio por entre

dentes, em um êxtase de vitória. Com a força da mão do capitão,

Shaara escorregou e ficou pendurada à sela do cavalo daquele

homem cruel, que ainda a arrastou por alguns metros. Até que

parou, finalmente, e disse:

– Isso é para que não fale mais o nome do meu Deus em

vão, sua bruxa! E que também lhe sirva de lição, para que

aprenda a nunca mais mentir para mim com suas infâmias. Acha

mesmo que eu acreditaria em uma só palavra do que estava

dizendo? Fui treinado para lidar com bruxas e demônios; sei

muito bem quando uma bruxa está tentando me seduzir, usando

de encantamentos para me desvencilhar do meu objetivo. Sou

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 100 -

um servo do Divino Deus Criador de todas as coisas. Não tem

poder sobre mim, Satanás!

Entre lágrimas, Shaara levantou-se do chão, secando

com as mãos atadas o sangue que escorria das têmporas. Disse,

entre soluços:

– Em seus olhos, vi um sentimento perfeito e puro. Mas

era a máscara do seu ódio. Vocês, cristãos, acham que as

bruxas sabem de tudo, não é? Mas também nos enganamos,

como pode ver. O amor confunde-nos, assim como me

confundiu. Sou mesmo uma tola: ainda teimo em acreditar na

essência humana. Tento olhar no fundo da alma do ser humano,

mas me esqueço que não adianta tentar. Pois quando alguém se

perde na ignorância, na incompreensão e no ódio, está morto de

alma. Para falar a verdade, nem mesmo sei se é humano. O ódio

cegou-o, Edward. Ainda não percebeu isso?

O semblante do capitão Edward transfigurou-se. Era

como se outra pessoa estivesse ali, junto a ele. Senti medo

daquele rosto. Percebi que Shaara também viu o mesmo que eu

estava vendo. Meu coração parecia dizer que ele queria

estrangulá-la. Ele estava completamente tomado por um espírito

de revolta e vingança e, ainda aos gritos, ordenou:

– Cala essa sua boca imunda, bruxa maldita! Guardas,

levem essa mulher infeliz da minha frente, antes que eu perca a

minha cabeça!

O jovem soldado correu ao encontro do capitão Edward,

indagando-lhe:

– Devo trancá-la com as outras, senhor capitão?

– Não, quero que a algeme do lado de fora da carroça.

Ela vai a pé até o vilarejo. Isso lhe servirá de penitência,

fazendo-a se lembrar de quem é que está no poder aqui.

O guarda empurrou Shaara abruptamente, como um

animal. Amarrou-a pelos pulsos na parte traseira da carroça,

Adriana Matheus

- 101 -

onde estavam as outras mulheres. Shaara estava com as vestes

rasgadas, e os pés e joelhos esfolados. O sangue descia na sua

face, misturando-se com as lágrimas e os soluços. Isso pareceu

incomodar o capitão Edward, pois ordenou que o soldado a

amordaçasse. O soldado não só obedeceu à ordem do seu

superior, como também bateu na cabeça de Shaara com um

pedaço de madeira.

A situação da minha ancestral não era nada agradável. A

cada metro percorrido, seus pés sagravam mais, pois se

cortavam com as pedras e os galhos espinhentos que existiam à

beira do caminho. Shaara sufocava seus gemidos através da

mordaça, que cortava seus lábios.

O capitão Edward olhava para trás, uma vez ou outra,

para se certificar de que Shaara estava sofrendo o suficiente com

o tratamento imposto por ele. Naquele momento, as irmãs de

Shaara não olhavam sequer para sua mestra. Pareciam repudiá-

la e acusavam-na por tudo o que lhes ocorreu na floresta. Shaara

estava só, à mercê daquele destino infeliz.

Vi naquela mulher uma grande guerreira e, com o passar

dos meus anos, aquela foi uma lição que segui a fio. Pois,

mesmo naquele momento de flagelo, percebi que Shaara se

preocupava com suas irmãs. A dor daquelas mulheres parecia

ser mais importante do que a sua própria dor. Aquelas famílias

estavam sofrendo com a morte de seus entes queridos. As cordas

e os gravetos que cortavam o corpo de Shaara não eram nem a

metade do que a dor na alma daquelas mulheres.

Causava-me angústia não poder fazer absolutamente

nada. Por várias vezes, contive as lágrimas que estavam prestes

a cair. Não podia fraquejar; senão, minhas visões seriam

interrompidas. Tentei manter meu coração em oração, buscando

auxílio Divino e emanando energia positiva a todas elas.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 102 -

Depois da morte do pai de Shaara, ela se integrou ao

grupo de auxílio de Mercedes, sua tia por parte de mãe.

Mercedes era uma mulher de muitos princípios, e decidiu nunca

se casar ou ter filhos para se dedicar somente aos pobres e

necessitados. Mercedes foi considerada a maior bruxa daquele

condado e, com o seu falecimento, Shaara passou a ser sua

sucessora. Mas, naquele momento de dor e revolta, aquelas

mulheres na carroça não conseguiam discernir o certo do errado

e passaram, então, a vê-la como uma inimiga. O que elas não

sabiam é que Shaara jamais as abandonaria ou as trairia por

qualquer motivo que fosse. Shaara nunca recusou ou abandonou

alguém que a procurasse pedindo abrigo ou caridade - mesmo

sabendo que, a qualquer momento, poderia um daqueles

necessitados ser um espião e vir a traí-la. E foi exatamente isso

o que ocorreu: um senhor a quem Shaara havia dado abrigo e

comida, curando-lhe também uma enfermidade, era um espião

da Inquisição. O homem era um velho soldado, enviado

disfarçadamente para descobrir o esconderijo de Shaara.

Shaara nunca praticou bruxarias. Apenas curava os

doentes com a ajuda das ervas, como lhe havia ensinando sua tia

Mercedes. Durante anos, as duas exerceram esse trabalho árduo,

mas gratificante. Em três anos, aquele pequeno grupo havia se

tornado quase uma pequena vila. E a fama de Mercedes e

Shaara espalhou-se à revelia por todo o condado. Isso

incomodou os aldeões, o rei e, principalmente, a Igreja, que

julgava estar perdendo muitos fiéis.

Elas nunca precisavam ir à cidade e quase nada as

faltava, pois de tudo a mãe terra produzia. Também contaram

com a ajuda de alguns comerciantes, que lhes vendiam sal e

açúcar às escondidas. Os feitos das duas bruxas cresciam a cada

dia. Com isso, os boatos e mexericos maldosos foram surgindo

Adriana Matheus

- 103 -

em torno de ambas, que passaram a ser perseguidas pela

Inquisição, confundidas com as feiticeiras de Salém.

Elas criam no mesmo Deus que eles, sangravam com

feridas e morreriam como qualquer um. Mas não eram vistas

como parte da sociedade: eram vistas como a escória. A única

coisa diferente entre aquelas mulheres e os demais era a forma

simples e bela como levavam a vida. Não tinham culpa por

terem nascido com um dom especial de ver e sentir coisas que

não eram perceptíveis a olhos nus. Mas a ignorância, o

autoritarismo e o preconceito faziam com que se parecessem

monstros, diante de uma população que, além de cega, era

também fácil de ser corrompida.

A política dominava, mas a corte foi totalmente

dominada e induzida pela Igreja em ascensão, que fazia os

monarcas assinarem por todos os crimes e barbáries ditados por

essa emissora de satã.

Todos estavam completamente cegos ou em completo

transe hipnótico, criado pelas falsas histórias dos inquisidores,

das velhas beatas e adeptos das grandes leis ditadas pela Santa

Madre Igreja. Na verdade, ninguém sabia quem emitia tais leis,

mas elas chegavam à população em uma fração de segundos.

Parecia que a maldade tinha asas, pernas, olhos e ouvidos.

Qualquer mexerico era motivo para sermos perseguidas pelo

povo fanático. Bastaria algum aldeão dizer ter visto fumaça na

floresta para que a população, em massa, acreditasse ser alguém

sendo vítima de algum sacrifício de magia negra. Se um lobo

matasse uma criança, com certeza foi devorada por nós, as

megeras.

Quando alguém quiser identificar uma bruxa, basta

associá-la à natureza e tudo o que dela vier.

Se for necessário, fazemos os nossos rituais, mas

optamos, na maioria das vezes, por nunca fazê-los - a não ser em

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 104 -

caso de extrema necessidade. Nunca tomamos bebidas

alcoólicas. De forma alguma usamos sacrifícios animal ou

humano, como contam as lendas. Nunca fomos adoradoras do

diabo: criaram esse mito em torno de nós como pretexto para

poder acusar-nos de crimes que nunca sequer pensamos em

cometer. Deus nos deu um dom e cada uma de nós o exercíamos

em prol da humanidade. O dom da visão, o dom de falarmos

com os espíritos, o dom da cura pelo toque das mãos ou pelas

ervas, o dom de ver as coisas através das cartas e das xícaras de

chás, entre tantos outros dons. Sempre usamos esses objetos

como instrumentos da magia - mas isso não é uma regra, pois

cada um de nós tinha o seu método pessoal de prever o futuro de

um consulente.

Deus era o nosso único mentor espiritual, mas também

críamos em deuses e deusas, considerados deuses pagãos. Eram

deuses cornudos e deusas aladas. Talvez por terem formas meio

pitorescas - e até mesmo bizarras -, causavam repulsa e

abominação aos leigos, que nada entendiam de nossa escolha

religiosa. Nossos deuses tinham chifres porque eram metade

homem e metade animal. Eram protetores das matas e da

natureza. Mas isso nada tinha a ver com a magia negra,

praticada às escondidas nos calabouços dos grandes palácios.

Quem praticava tais abominações eram as feiticeiras, que, para

se manterem vivas, aliavam-se aos monarcas, secretamente. Era

como uma troca de favores bizarros: alguns monarcas

conseguiam seus benefícios e, em troca, mantinham-nas vivas -

enquanto lhes fosse conveniente, é claro.

Interrompi meus pensamentos, pois os soldados pararam

depois de quase seis horas de trajeto. Uma carroça havia

quebrado o eixo e demorou quase uma hora para que fosse

consertada. Depois, seguiram viagem. A noite já havia chegado

e a Lua era a única forma de luz. Os soldados e o capitão não

Adriana Matheus

- 105 -

pareciam querer parar para descansar ou dormir, pois queriam

chegar o mais rápido possível à cidade. Shaara caiu por várias

vezes no meio do caminho, mas o soldado que escoltava a

traseira da carroça dava-lhe chicotadas, para que ela se

levantasse imediatamente. Ela estava parecendo um farrapo

humano.

O dia estava amanhecendo quando, por fim, chegaram ao

vilarejo. O capitão Edward, ao descer do cavalo, fitou Shaara

demoradamente. Eu poderia jurar que havia piedade naquele

olhar, mas seria desejar demais de um soldado com cargo de

inquisidor.

De repente, senti que Shaara iria desmaiar. Deu-me certo

pânico e desespero por nada poder fazer. Vi um homem gordo

com uma peruca amarelada. Parecia ser um Lorde. Ele veio ao

encontro do capitão Edward e perguntou:

–Senhor, esses são os prisioneiros?

–Sim, senhor, estas são as bruxas capturadas. E elas

estão sob minha escolta, até segunda ordem.

– E por que esta mulher está caída ao chão, capitão? -

quis saber o homem, percebendo que Shaara não estava

consciente.

– Deve ter desmaiado, senhor. Ao passarmos pela Igreja,

ela começou a passar mal. Bem sabe Vossa Excelência que o

demônio não aguenta o poder do Senhor Nosso Deus.

– Sim, senhor capitão. Sei bem como essas bruxas

valem-se dos poderes de satã. Mas quero saber em detalhes o

que houve com esta mulher, pois amanhã o bispo virá aqui

pessoalmente para interrogá-la. Creio que o senhor já deva ter o

relatório pronto em mãos, capitão - ou melhor dizer senhor

inquisidor?

Capitão Edward deu um sorrisinho matreiro, como quem

entendeu o que quis dizer o Lorde Del Soares. Em seguida, fez-

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 106 -

lhe um cumprimento com a cabeça e seguiu em direção à prisão,

onde ficariam Shaara e as outras trinta e cinco prisioneiras.

Muitas horas depois, Shaara acordou, jogada ao chão de

uma masmorra, assustada e meio sem noção ainda de onde se

encontrava. Suspirou aliviada por perceber que ainda estava

viva. O lugar era muito escuro e sujo, e cheirava a morte.

Ela apertou os olhos, contou até dez e, lentamente, abriu-

os de novo. Com aquele estranho ritual, Shaara pôde enxergar

melhor no escuro. Então, percebeu que estava em uma

masmorra cheia de ratos e com uma espécie de mina d’água, que

escorria e molhava todo o ambiente. Shaara entendeu que estava

abandonada à mercê do destino que lhe impuseram. Sabia que,

se não a julgassem logo, morreria de qualquer forma e ainda

seria devorada pelos ratos.

Não conseguindo conter o choro, caiu em pratos

desconsolados. Shaara urrou de ódio naquele momento,

tentando demonstrar toda a sua decepção e o seu desespero por

se sentir impotente. Um guarda, ao ouvir seus gritos, foi até a

cela dela e jogou um pedaço de pão duro e água por debaixo da

porta, dizendo:

– Coma e beba, sua cadela imunda, pois, se está urrando,

deve ser de fome!

Ao se retirar, empurrou uma vela acesa, também por

debaixo da porta da cela. Shaara arrastou-se, tentando alcançar a

vela. Então, viu-se acorrentada à parede. Com a vela, iluminou o

recinto e pôde pegar o pedaço de pão e a água, pois precisava

manter-se forte. Depois de comer, deitou-se encolhida a um

canto menos molhado e tentou adormecer. Mas foi em vão, pois

os ratos passeavam de um lado a outro, tentando se aproximar

dela.

Então Shaara começou a orar, pedindo forças e paciência

aos seus mentores espirituais. Em suas orações, disse:

Adriana Matheus

- 107 -

–Senhor, eu nunca fiz mal a ninguém. Nunca matei, mas

perdi minha liberdade. Deus! - pôs-se de joelhos e prosseguiu:

– Peço: não me abandone, oh mestre, nesta hora de

sofrimento. Não me deixe pecar, rogando pragas em meus

algozes. Dê-me mansidão e sabedoria, para que eu possa

aprender a aceitar o meu destino com dignidade.

Shaara fechou os olhos e colocou-se em transe. Começou

a fazer a viagem naquele momento. Aproveitei o seu momento

de silêncio e fui naquela viagem, junto à minha ancestral.

Sentei-me ao lado dela e fechei meus olhos. Pedi aos mentores

espirituais presentes que me permitissem ver o que Shaara veria.

Então, mais uma vez, como em um passe de mágica, eu estava

em outro lugar.

Estava dentro das lembranças da minha ancestral. Isso

era fantástico e quase impossível de acontecer. Ninguém nunca

havia indo tão longe. Poderia considerar-me uma pessoa de

muita sorte.

Shaara estava em um tempo de dez anos antes de aquela

tragédia acontecer. Seu coração estava, com suas lembranças, no

capitão Edward. Ela estava feliz e parecia ser uma jovem muito

bem humorada. Era tão cheia de planos, o coração tão puro! E o

olhar dos dois parecia ter cristais quando estavam juntos.

Eu não conseguia, até aquele momento, entender por

que duas pessoas, que pareciam ter se amando tanto, de uma

hora para outra, passaram a se desprezar daquela forma. Eu

estava translúcida naquela viagem: nem mesmo como um

fantasma Shaara poderia ver-me. Então, pude estar bem junto a

ela. Eu me sentia meio morta, mas estava adorando entender

mais sobre minha ancestral. Sabia que aquilo seria muito útil

para mim no futuro. Shaara seguiu mais à frente em sua viagem.

Ela era muito poderosa e de muita experiência, pois, em fração

de segundos, levou-nos mais à frente, ainda em seu passado.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 108 -

Fiquei admirada por perceber que poderíamos estar em tantos

lugares ao mesmo tempo, dentro do mundo astral. É incrível o

que a mente consciente pode fazer quando temos domínio sobre

ela. E Shaara tinha esse domínio totalmente.

Quando ela abriu os olhos, estava deitada em uma cama

rodeada de mulheres que não eram suas irmãs da floresta.

Pareceu um pouco assustada, tentando entender o que estava

acontecendo. Eu estava ao seu lado o tempo todo, de pé à

cabeceira de sua cama, mas ela sequer desconfiava da minha

presença. E o motivo pelo qual Shaara ficou atordoada foi a

maneira muito rápida com que havia se transportado de uma

época a outra. Isso poderia ter resultados catastróficos, e era

uma coisa que eu não arriscaria, mesmo porque eu era só uma

aprendiz.

Acompanhei os olhos de Shaara, que parecia estar

matando a saudade de seu lar. Ela olhou minuciosamente cada

cantinho daquele quarto, que parecia ter sido decorado para uma

princesa. Era um quarto grande, com uma decoração

contemporânea lindíssima, muitas cortinas, uma cama muito

grande e mobílias muito polidas. Isso sem contar o cheiro bom

de comida, que estava vindo de algum lugar daquela casa. Foi

quando uma jovem magra e simpática entrou no quarto de

Shaara, com uma bandeja contendo chá, biscoitos de nata,

torradas, suco, bolinhos e frutas. Tanta fartura que me senti

satisfeita somente de olhar para tantas guloseimas! Shaara já

estava reconhecendo o ambiente. Deu uma larga espreguiçada

sobre a cama e, em seguida, perguntou:

– Onde estou? - parecendo apenas querer se certificar

que estava a alguns passos atrás, em seu passado feliz.

– A senhorita está bem? - perguntou uma das senhoras,

que parecia ser de confiança da família. Está em seus aposentos,

em sua casa. – respondeu, parecendo preocupada, mas mantendo

Adriana Matheus

- 109 -

um tom de simpatia. Onde mais poderia estar a menina?

Trouxemo-la para seu quarto, depois daquele súbito desmaio

que a senhorita teve logo após o jantar de ontem. Agora, por

favor, arrume-se! Seu pai está à sua espera.

Shaara levantou-se às pressas. Parecia querer recuperar o

tempo perdido ao lado do pai. Arrumou-se tão rapidamente que

mal se preocupou com a vaidade. O que ela mais queria, naquele

momento, era estar com o seu velho pai e poder dizer-lhe o

quanto o amava. Pois, quando Shaara se exilou na floresta com

sua tia Mercedes, para se esconder da Inquisição e do capitão

Edward, não pôde se despedir de seu pai, que havia sido

condenado à forca por traição contra a corte.

Shaara sentiu-se uma traidora por nada ter podido fazer a

respeito. Tentou fugir várias vezes para poder ajudar o pai, mas,

devido à frágil condição em que ela se encontrava, Mercedes e

as outras irmãs não a deixaram sair. Shaara, desde então,

mantinha em sua cabeça que seu pai não a perdoou por isso.

Portanto, aquela viagem para Shaara era de extrema

importância. Para ela, era como fosse um resgate: mesmo que

ela não pudesse mudar em nada o seu destino, era uma forma de

rever e ficar um tempo a mais com o pai.

Shaara atravessou vários corredores daquele enorme

casarão. Não consegui ver muita coisa e nem detalhar nada, pois

ela estava com pressa e tudo parecia espelhos às avessas. Era

como se fossem flashes em minha mente. Quando Shaara estava

parada ou calma, eu via claramente as coisas ao meu redor. Mas

se Shaara corresse, era como se o tempo acelerasse. Então,

embaçava tudo ao redor, deixando-me impotente em relação aos

detalhes. Ao chegar a um grande saguão, de mobília refinada e

muito rica, pude ver um senhor de costas olhando pela janela,

enquanto fumava cachimbo. Ele estava de costas e usava um

roupão. Parecia ter acordado havia poucas horas.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 110 -

Shaara estava com tantas saudades que nem se

preocupou com a etiqueta: correu e abraçou o pai pelas costas.

– Que saudades, pai! – disse-lhe entre lágrimas.

O homem virou-se lentamente, segurou Shaara pelos

braços e perguntou:

–Querida, está se sentido bem?

O homem, meio confuso por toda aquela estranha

situação, passou as mãos no rosto de Shaara, tentando acalmá-la

e, enxugando suas lágrimas, prosseguiu:

– Sou seu velho pai e sempre estive aqui!

Ela pareceu perceber aquele erro e tentou acalmar-se,

dando-lhe um sorriso confuso.

Senti minhas pernas tremerem quando fitei o rosto

daquele homem. O pai de Shaara era também o meu pai. Eu não

conseguia entender como isso seria possível. Uma parte de mim

quis sair correndo e encontrar Dona Helena, para esclarecer tudo

aquilo. Outra parte queria ficar, para ver onde meu pai se

encaixava naquela louca história. Eu queria abraçá-lo também,

pois estava morrendo de saudades. Mas sabia que, embora a

semelhança fosse gritante, seria impossível, pois meu pai não

fumava tabaco de espécie alguma. Senti-me completamente

confusa: queria respostas, queria tocá-lo a qualquer custo.

Confesso que foi uma das partes mais difíceis da viagem.

Respirei fundo, tentando acalmar a minha ansiedade. Foi

quando percebi que algo estava errado com a minha ancestral:

ela estava ficando pálida e, de repente, desmaiou. Só não caiu ao

chão porque seu pai a amparou pelos braços. Que confusão... Eu

não sabia, afinal, pai de quem ele era naquele momento.

Imediatamente, as empregadas foram chamadas e uma ordem

foi dada para que o médico da família fosse localizado.

Algumas horas depois, Shaara voltou a si. Parecia meio

atordoada, e logo perguntou, por se ver deitada em um divã:

Adriana Matheus

- 111 -

– O que houve comigo?

– A senhorita teve outro desmaio. Tem se alimentado

bem, querida? - perguntou o médico.

– Foi só um desmaio, doutor! Por certo deve ser o calor.

- disse o pai de Shaara, interrompendo aquela conversa.

– Deixe que ela me responda, senhor Gonzáles. Preciso

certificar-me dos sintomas para poder dar o diagnóstico. Há

quanto tempo a senhorita tem tido esses sintomas?

– Há algumas semanas - respondeu Shaara, ainda

confusa e preocupada.

–E isso ocorre antes ou depois das refeições?

– Varia, doutor. Sinto muitas tonteiras e enjoos.

– Entendo!

– O que há com a minha filha, doutor Sanches? Ela está

muito doente? - indagou o pai de Shaara, pondo uma das mãos

no ombro do médico.

Dr. Sanches levantou-se calmamente. Tirou os óculos e

levou o pai de Shaara a um canto onde, em particular, deu-lhe o

diagnóstico.

– Sua filha esta grávida, senhor Gonzáles. E os lapsos de

memória que ela vem tendo são provavelmente porque está

muito preocupada em como contar-lhe o fato. Isso acontece

muito quando as pessoas estão cansadas ou passando por

problemas. O senhor deve ter uma conversa mais franca com a

senhorita Shaara. Mas tenha cuidado, pois a situação é delicada.

O pai de Shaara ficou pálido. Transfigurou-se, parecia

ter perdido o rumo de onde estava. Era uma situação muito

constrangedora e delicada para ele. O médico não deu nem mais

uma palavra com o pai de Shaara. Apenas pediu às criadas e à

senhora que deixassem os dois a sós. O pai passou as duas mãos

sobre as faces pálidas, tentando recompor o ânimo. Por fim,

perguntou:

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 112 -

– Quanto tempo mais achava que poderia me esconder

tal fato? Esperava tudo de qualquer um, menos uma traição

vinda da minha própria filha.

Shaara arregalou os olhos, parecendo realmente não

entender o que estava acontecendo.

– Como assim? Não estou entendendo o que o senhor

está tentando dizer, pai!

– Não me faça perder a cortesia e esbofeteá-la, menina!

Há quanto tempo perdeu-se com aquele crápula? Deus do céu, o

que vão dizer? Devem casar-se de imediato. Não quero que

fique mal perante a sociedade. A Igreja pode excomungá-la e

bani-la para longe de mim. O que faço? - o homem parecia

desnorteado; mal podia manter-se de pé.

Shaara levantou-se e foi na direção do pai. Tentou

abraçá-lo, mas ele se afastou. Então, ela abaixou a cabeça e

disse:

– Perdoe-me, pai, eu amava muito Edward. Sei que traí o

senhor, não lhe contando a verdade. Mas senti medo da sua

reação. Não quis magoá-lo, juro! Eu o amo muito, pai, não sabe

o quanto... Não pode imaginar tudo o que passei para estar aqui

com o senhor. - Shaara referia-se à viagem.

– Deveria ter confiado em mim, Shaara. Quero que me

conte exatamente como e onde aconteceu o fato, para que eu

saiba qual providência tomar. - tomou Shaara pela mão e a fez

sentar em uma cadeira. Puxou um banquinho para perto dela e

disse:

– Estou esperando. Comece.

Shaara respirou profundamente, ergueu a cabeça e

começou a contar:

– No dia em que o senhor foi chamado para visitar

mamãe em seu leito de morte, Edward tinha vindo aqui para me

fazer o pedido de casamento. Eu não sabia se ficava feliz por ter

Adriana Matheus

- 113 -

sido pedida em casamento por ele, ou se me desesperava com a

situação de mamãe.

Shaara começou a contar em detalhes aquela história de

amor e ódio.

– Foi exatamente da forma como vou narrar. Não vou

mentir em uma só vírgula.

– Espero que não!

Shaara finalmente prosseguiu:

– Fomos ao jardim caminhar e Edward, naquele dia,

estava perfeito!

– Poupe-me de certos detalhes, por favor! - retrucou o

senhor Gonzáles, enfurecido.

– Estávamos no jardim e ele disse simplesmente quero

me casar. Sei que seu pai não dará permissão até que complete

dezoito anos, mas não estou aguentando mais. Fui promovido

por ordens do próprio bispo. O que ganharei será suficiente

para sustentá-la. Fuja comigo esta noite, eu imploro. Então,

quando voltarmos, seu pai não poderá nos impedir de ficarmos

juntos, pois estaremos casados. Foi quando Madalena

interrompeu-nos, dizendo que o senhor solicitava minha

presença de imediato.

– Esse canalha, juro... - Gonzáles interrompeu Shaara,

apertando o pulso. Ela pediu ao pai que a deixasse prosseguir

com a conversa:

– Deixei Edward sozinho no jardim, sem lhe responder

ao pedido ou me despedir, pois fiquei preocupada com o senhor.

– Filha... - ele caiu aos prantos, pois se lembrou do fato

ocorrido.

– Sim, pai. E depois que o senhor me deu a notícia de

que mamãe estava morrendo, Edward entrou e ainda lhe trouxe

água para beber. Enquanto o senhor se arrumava para ir ao

encontro de mamãe, Edward afirmou o desejo de se casar

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 114 -

comigo. Então, disse: Sei que posso parecer um pouco frio e

precipitado, mas não abro mão de você, meu amor. Vá com seu

pai, mas volte para mim. Assim que as notícias forem melhores,

escreva-me. Despedimo-nos e nada havia acontecido entre nós

antes daquele dia.

Shaara e o pai ficaram horas recordando a mãe de

Shaara. Os dois estavam nostálgicos e chorosos. A mãe havia

sido uma bruxa. Foi uma mulher muito amada por todos da

sociedade por sua bondade. Por amor a Gonzáles, nunca

praticou a bruxaria - com a condição de, às escondidas, poder

sempre estar perto de seus instrumentos de magia. Por anos,

durante a súbita doença, Efigênia Gonzáles foi mantida em um

bangalô, afastada da população por causa da lepra, que já estava

em estado avançado. Shaara, então, deu prosseguimento àquela

conversa, perguntando ao pai:

– O senhor lembra-se de quando mamãe pediu para falar

comigo a sós?

– Sim, lembro-me. - disse Gonzáles, passando a mão

sobre os olhos, envoltos pelas lágrimas.

– Sim, pai, foi naquele momento que ela me contou que

era uma bruxa. Mamãe pediu-me para pegar alguns objetos que

estavam em cima de uma mesinha. Então, depois de

desembrulhar, mostrou-me algo que guardara por anos.

Entregou-me uma varinha, um athame, um livro de receitas, um

cálice de prata e um caldeirão. Depois, explicou-me como eu

usaria cada um daqueles objetos, pai. Confesso que fiquei muito

assustada e incrédula também. Mas ela, parecendo perceber

essas coisas em mim, contou-me a seguinte história:

– Quando conheci seu pai, eu tinha dezesseis anos. Era

uma camponesa e morava em uma humilde casinha no meio da

floresta. A carruagem em que seu pai estava perdeu o eixo, e ele

e seus criados quase sofreram um sério acidente. Seu pai

Adriana Matheus

- 115 -

precisou consertar uma roda da carruagem antes que a noite

caísse e os lobos viessem, famintos e furiosos. Os lacaios de seu

pai mal sabiam guiar os cavalos. Eram totalmente

despreparados para uma situação de emergência. E foi aí que,

naquele momento, por uma artimanha do destino, seu avô, que

passava por ali, vendo a dificuldade de seu pai, resolveu

oferecer-lhe ajuda. Devido à alta hora, seu avô também

ofereceu-lhes pousada. Seu pai foi levado para a nossa humilde

cabana, mas foi muito bem recebido por minha mãe, que logo

tratou de matar um ganso para o jantar. A casa era pequena,

mas todos se acomodaram bem. Quando os meus olhos e os de

seu pai cruzaram-se, percebemos que não conseguiríamos ficar

um sem o outro. Minha mãe observou-nos atentamente. Seu pai

permaneceu em minha casa mais tempo do que o previsto.

Quando ele partiu, deixou a certeza de que iria voltar, pois me

deu o anel com seu brasão. Meu pai não acreditou muito, mas

minha mãe viu em seu tarô que ele voltaria para se casar

comigo.

– Seu tarô, como assim? – perguntei à mamãe. Sim, sou

uma bruxa, uma cigana ou como queira chamar-me. O mais

intrigante foi ver a pequena marca que ela me mostrou: era um

sinal, uma flor, pai. A flor de lótus, a marca das condenadas.

Mas mamãe era surpreendente. Antes mesmo que eu a

perguntasse, explicou-se:

– Consegui fugir de um inquisidor pouco antes de

conhecer seu pai. Esse homem cruel perseguiu-me muito tempo.

Quis me possuir como mulher antes mesmo que eu tivesse

dezesseis anos. Estive escondida no meio da floresta, na casa de

minha irmã Mercedes, que é uma feiticeira muito temida.

Depois de muito me esconder, recebemos a notícia que esse

homem perverso veio a falecer, devido a uma doença

desconhecida. Quando seu pai voltou para mim, contei-lhe tudo

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 116 -

a meu respeito. Ele simplesmente aceitou-me como sou, pois seu

amor foi muito maior do que o preconceito da sociedade que

nos cerca. Prometi que nunca praticaria meus feitiços, mas

nunca prometi que não os usaria às escondidas. Seu pai fez

olhos de mercador quanto a isso. Prometemos nunca mentir um

para o outro, e achamos melhor não contarmos tal assunto à

família dele.

Casamos e fomos felizes. Logo de princípio, confesso

que não foi fácil, pois sua bisavó era uma condessa de muitos

modos e etiquetas. Tive que aprender boas maneiras e foi-me

incumbida uma educadora familiar, que me ensinou etiqueta em

casa. Logo a sociedade aceitou-me, pois eu era muito aplicada

e dediquei-me ao máximo. Seu pai, durante toda a sua vida até

agora, nunca me traiu, mas deixou alguns amores para trás.

Certa jovem de nome Escarlate Mennellet, uma francesa muito

ambiciosa, que não se conformou por seu pai ter-me escolhido.

Fez de nossas vidas um inferno enquanto ela viveu. Ela e a mãe

procuraram uma velha feiticeira, que também se tornou inimiga

de nossas famílias. Essa jovem, minha filha, perseguiu-me

durante toda a sua existência. Ela seguia a mim e a seu pai

quando saíamos, fazendo escândalos. Várias vezes jurou matar-

me.

Essas três mulheres fizeram um sortilégio com o intuito

de trazer seu pai de volta. Só que elas se esqueceram de que um

sortilégio só funciona se a outra parte tiver algum sentimento

pela primeira. Seu pai não amava a senhorita Mennellet. Com o

passar do tempo, essa jovem teve vários outros amantes.

Deitava-se com homens, na esperança de conseguir status e

poder, para se aproximar de nós através da sociedade. Só que,

minha querida filha, senhorita Mennellet engravidou. Foi aí que

ela planejou uma artimanha, na tentativa de comprometer o seu

pai. Eu ainda não tinha engravidado. Não fazia a menor ideia

Adriana Matheus

- 117 -

do que estava acontecendo comigo. E um herdeiro era muito

importante para seu pai. Tentamos várias vezes, e a única vez

em que engravidei de um menino, ele nasceu morto - o que

deixou seu pai muito frustrado. Mas ele nunca deixou de me

amar por isso. Sempre foi muito compreensivo: para ele, não

importava se viesse um menino ou uma menina.

Como eu estava dizendo, a senhorita Mennellet planejou

contra seu pai: aproveitou tal gravidez e, como ainda estava no

início, convidou seu pai para ir até a casa dela, dizendo que

seria a última vez que o procuraria. Seu pai contou-me e eu

disse que ele deveria ir para ver o que ela queria. Ele, muito

relutante, aceitou o convite da senhorita Mennellet. Ao chegar

ao bangalô dela, toda uma teia já estava tecida, esperando por

ele. Ela o convidou para um drinque e o embebedou com uma

poção, preparada por uma feiticeira. Seu pai adormeceu. Ela,

então, o levou para a sua cama. Quando seu pai acordou,

estava nu e ela estava sorrindo ao lado dele. Seu pai vestiu-se

correndo e saiu daquele quarto.

Em casa, Gonzáles contou-me tudo. Chorei muito por

achar que meu esposo havia me traído - o que era pior, eu era a

única culpada por isso. O tempo passou. Mennellet procurou

seu pai, dizendo que estava grávida dele. Ele entrou em

desespero, mas, como homem honrado, ajudou aquela

senhorita, dando-lhe tudo o que ela precisou para ter seu filho.

Eu, a cada dia, me sentia frustrada por não poder dar a seu pai

um filho legítimo. Com o tempo, seu pai resolveu ouvir a minha

mãe, que dizia que sua irmã Mercedes poderia nos ajudar.

Fomos até ela e, assim como minha mãe havia dito, ela nos

ajudou. Ela também previu que a senhorita Mennellet não

estava grávida de seu pai, e que o verdadeiro pai da criança

frequentava sua casa e ainda a explorava, tirando toda a ajuda

de custo que seu pai lhe enviava. Seu pai colocou um

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 118 -

investigador e pegou-a em flagrante. O menino, nunca soube o

nome, mas já tinha feito quatro anos quando engravidei. Mas

não pense que Mennellet aprendeu a lição: aquela jovem

enlouqueceu e procurou novamente a feiticeira. Fez um

sortilégio contra mim, lançando-me essa maldição. Ela jurou

que, assim que a minha criança nascesse, eu cairia de cama sob

uma peste que nada no mundo desfaria.

Com o passar do tempo, seu pai e eu ficamos cada vez

mais unidos. Então, você nasceu. Ficamos tão felizes que

pensamos que nada ou ninguém poderia nos separar ou nos

prejudicar. De repente, caí de cama, com febre alta. Manchas

horríveis apareceram em todo o meu corpo. O médico da

família foi chamado e, em alguns dias, o diagnóstico foi dado:

era lepra. Tentaram de tudo, mas não descobriram a cura.

Minha mãe procurou a velha feiticeira para tentar dar-

lhe mais dinheiro. Assim, talvez pudesse inverter o feitiço. Só

que a feiticeira havia morrido subitamente e, com ela, a

esperança de uma cura. Por sete anos, seus avós cuidaram de

mim aqui, neste lugar escondido e isolado, até falecerem.

Alguns empregados corajosos e fiéis têm cuidado de mim nos

últimos anos.

– Segurei sua mão pálida e magra, pai. Perguntei se eu

era uma bruxa também.

– Sim, e da mais alta linhagem, querida. Tudo o que

precisa saber está dentro desse livro que lhe dei. Todos os meus

segredos estou-lhe entregando. Guarde-o... E, se algo

acontecer-lhe um dia, enterre-o. O diário tem tudo o que

precisa saber sobre mim e tudo que nunca pude compartilhar

com você durante toda a minha vida. É a minha história, ou o

que restou dela. A colher de pau é uma herança de família. Há

muitos anos tem passado de geração em geração. Agora ela é

sua. Essa é a sua varinha. Nunca a perca, pois tudo e todo o

Adriana Matheus

- 119 -

feitiço que vier a fazer deve ser mexido somente com essa colher

de pau. Nunca faça o mal a ninguém, filha. Nunca revide um

feitiço, nunca deixe que as pessoas matem sua essência. Não

faça sortilégios para segurar um homem, nem use seus poderes

para o mal dos outros. Lembre-se da lei do retorno e de que o

destino de ninguém é brinquedo. Lembre-se também de que, se

rezamos a Deus pedindo o mal de alguém, estamos fazendo um

feitiço. Deus nunca nos nega nada que pedimos em oração.

Porém, se um dia lhe fizerem um sortilégio, e o mal que lhe

laçarem não achar maldade em você, Deus lhe protegerá,

dando permissão para que o mal se volte contra quem lhe

enviou. Quando fazemos mal para uma pessoa inocente, Ele

permite que o mal se volte contra nós da mesma maneira. Todo

o mal que desejamos ao próximo, desejamos contra nós

mesmos. Não devemos estar em débito com Deus. Ele rege o

universo, e é a força do universo que rege os nossos destinos.

O mesmo se sucederá a alguém com o anjo da guarda

forte: quando o mal que fazemos a essa pessoa chegar até ela,

encontrará uma espécie de barreira protetora. Então, virá atrás

de quem o mandou, com a sua cobrança cega. O mal é

mercenário e carrasco. Inclusive contra quem o pratica. Por

isso, pense muito antes de ajudar alguém com sortilégios.

Investigue para saber se a pessoa está falando a verdade e,

principalmente, se é merecedora. Caso contrário, o mal vem

como uma fera cega em cima de você. No livro que lhe dei,

encontrará o segredo das ervas que curam. Como usar sua

clarividência, como usar as cartas, como usar a bola de cristal,

ou mesmo como fazer a viagem. A viagem é essencial para

conseguir entender a si mesma.

– Perguntei-lhe o que era a viagem.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 120 -

– É uma espécie de sono profundo, onde se consegue

viajar no tempo, encontrar respostas no passado para coisas

que podem lhe parecer absurdas e sem sentido no presente.

– Pai, como eu gostaria de ter estado ao lado de minha

mãe e aprendido tudo sobre aquela cultura misteriosa... Queria

ter participado de todas as coisas que foram importantes para

ela. Meu coração doeu tanto, pai, por ter que vê-la partir... Senti

muito mais do que piedade: o sentimento era uma mistura de

nostalgia, perda e amor. Naquele momento, tudo isso estava ali

na minha frente, indo embora. Ela estava morrendo. E não pude

fazer nada, porque isso também estava nas mãos de Deus, e Ele

regia o destino de nós duas naquele momento. Era como se

fôssemos um brinquedo e estivéssemos sendo manipuladas. O

livre arbítrio não funciona realmente, pois, caso funcionasse,

tenho certeza de que minha mãe teria escolhido ficar conosco

para sempre.

Shaara parecia sincera em relação àquela observação.

Suas lágrimas escorreram de suas faces como um mar

procurando abrigo por entre as rochas. O pai de Shaara

entendeu que a filha estava havia muito guardando aquela dor e

disse:

– Não lamente, não fomos culpados pela morte de sua

mãe. Fomos vítimas também.

Os dois abraçaram-se fraternalmente e Shaara contou-lhe

sobre Edward:

– Depois que voltamos do velório de mamãe, Edward

procurou-me no cemitério. Ele estava lindo, em um casaco de

veludo preto, calça bege e botas. Todos os nossos criados

estavam presentes, por isso nos afastamos. Edward puxou-me

para um canto, debaixo de uma árvore, e beijou-me

ardentemente. Tentei empurrá-lo, mas ficou difícil, pois ele

estava frenético e muito sensual. Edward estava muito mudado,

Adriana Matheus

- 121 -

não consegui controlar seus impulsos. Queria tentar entendê-lo.

Foi então que, num sussurro, ele disse: quero vê-la. Tentei adiar

aquela suposta fuga, respondendo claro, assim que tudo isso

passar, iremos nos encontrar para conversarmos. Mas Edward

não queria aceitar e respondeu-me: Não, de jeito nenhum! Acho

que não me entendeu, quero encontrá-la hoje à noite. Disse-lhe

que minha mãe havia acabado de falecer, que ele estava

perdendo a noção do certo e do errado. O senhor jamais

permitiria que nos encontrássemos aquela noite. Estávamos de

luto. Seu pai não precisa saber – respondeu-me Edward. Quero

que me encontre na taberna, perto do vilarejo. Direi ao

taberneiro que estarei esperando minha noiva, e ele não fará

interrogações quando lá chegar. Por favor, preciso tê-la, a sós.

Não acontecerá nada demais, prometo-lhe. Para que se sinta

mais segura, casaremos no dia seguinte. Assim, seu pai não

poderá nos impedir de ficar juntos. Quero contá-la como fui

promovido. Não me negue isso! Seus olhos eram suplicantes, e

sua voz deixou-me totalmente tonta e sem razão. Embora eu

soubesse o risco de estarmos sozinhos, confesso que também o

queria. Mesmo sabendo da imprudência do momento, eu disse

sim... Foi quando o senhor chegou e flagrou Edward beijando-

me. Pai, o senhor ofendeu-me e esbofeteou-me. Fiquei magoada

por não ter sequer me deixado explicar. Eu quis me vingar.

Perdoe-me! Fui uma tola.

Shaara baixou a cabeça, envergonhada e triste. Mas seu

pai compreendeu que ela havia agido por impulso e que ele

também poderia ter agido diferente em relação àquela situação

tão delicada. Depois de muito pensar, ele disse:

– Parece que o senhor Edward sabe bem como

funcionam as coisas na Inglaterra. Mas aqui, na Espanha, com

certeza ele terá que aprender a duras penas. Creio que precisarei

conversar em breve com ele.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 122 -

– Pai, por favor, ainda não terminei. Preciso que o senhor

saiba o que houve comigo, antes que faça uma tolice e ponha em

risco a sua vida.

Shaara estava tentando mudar o triste destino de seu pai.

Meu Deus, fiquei muito assustada porque meus sentidos de

bruxa avisavam-me o quanto ela poderia estar enganada. Ela

nunca poderia ter tomado aquela atitude, mesmo que estivesse

tentando salvar uma vida. Nunca podemos interferir no destino

de alguém, e muito menos usar a viagem para tal propósito.

Shaara, em seu momento de dor, tentou mudar o passado, mas

se esqueceu de uma coisa: isso era impossível. Senti muita pena

de Shaara, pois entendia sua dor. Fiquei quieta, ouvindo-a

prosseguir com aquela conversa insana de uma pessoa

desesperada. Shaara contou o seguinte a seu pai:

– Naquela noite, uma escrava ajudou-me. Ela não teve

culpa, pai, praticamente a obriguei a me ajudar. Chamei-a e pedi

que me trouxesse um vestido de camponesa e um capuz

vermelho, para que não fosse reconhecida por ninguém na

cidade. Disse que eu e Edward iríamos fugir aquela noite, que

ela não poderia contar a ninguém, muito menos ao senhor. Caso

contrário, eu mandaria puni-la por isso. Ela ainda disse, com

olhos arregalados:

– Credo em cruz, Sinhá! Não sou de fazer mexericos,

não. Só acho que a senhorita está muito enganada em relação a

esse capitão. Afinal, sua mãe nem esfriou ainda. Luto é coisa

sagrada!

– Ela não estava errada, pai. Mas, mesmo assim, passei

por cima de tudo e disse-lhe: Acredite, Joaquina, minha mãe

iria aprovar isso. Eu o amo muito e essa decisão já está para

ser tomada há muito tempo. Meu pai só fez antecipar os fatos.

Ela benzeu-se, num ar de desaprovação. Eu estava cega de ódio

Adriana Matheus

- 123 -

do senhor naquele momento, pai. Não ouviria nem mesmo

mamãe. Joaquina ainda tentou argumentar:

– O pai da Sinhá é um homem bom. Se fez o que fez é

porque está com a cabeça quente e o coração amargurado. Ele

amava muito sua mãe, e a dor da perda fundiu os miolos dele.

Acho que a menina deveria pensar mais um pouco antes de

tomar qualquer decisão.

– Meu pai nunca poderia ter me batido, Joaquina – eu

lhe disse. Se ele sofre, tem que saber que sofro também. Ela era

minha mãe. Fui privada de vê-la a minha vida toda. Nunca pude

ter os seus carinhos. Quando eu chorava por ter caído, não

tinha ninguém para me pôr no colo ou afagar meus cabelos. Ele

nunca teve tempo nem para me contar histórias de dormir. E

agora está se sentindo no direito de espancar-me? Vou mostrar-

lhe em quem ele bate.

– Está bem, sinhá. Tomara que o patrão não me castigue

por causa de sua cabeça dura. É mió a Sinhá andar depressa,

que o cocheiro já está aguardando onde foi combinado. É...

água morro abaixo, fogo morro acima: muié moça, quando

quer desembestar, ninguém segura.

– Joaquina disse isso entre dentes, quando me viu saindo

porta afora. Na saída, dei uma olhada em tudo e ainda respondi

a velha escrava, desaforadamente: Ouvi isso, sua insolente! Não

sei onde eu estava com a cabeça, pois nunca tratei nenhum de

nossos escravos daquela maneira. Muito menos Joaquina, que

praticamente me criou. Ninguém me viu saindo. Fui muito

cautelosa. Dei ao cocheiro o endereço e seguimos para o

vilarejo. Ao chegarmos à taberna, o cocheiro perguntou-me se

eu tinha certeza de que era ali. Respondi-lhe meio assustada e

curiosa pela pergunta: Sim. Algum problema?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 124 -

– Senhorita, desculpe-me pela intromissão, mas aqui

não é lugar para alguém de finos modos... Quer que eu entre

com a senhorita? – ofereceu-se o cocheiro.

– Não será preciso, meu noivo está me esperando.

Obrigada! Escutei quando ele falou noivo, hein? Sei... Perguntei

enfurecida se ele havia dito alguma coisa, no que me disse Não,

senhorita. Só pensei alto. O cocheiro virou o rosto e parecia

antipatizado comigo, mas me disse para aguardá-lo ali, que não

se demorava. Entrou na taberna sozinho. Parecia querer se

certificar se havia alguém esperando por mim lá dentro.

Quando de lá ele voltou, disse-me para entrar pela porta dos

fundos, para não chamar muita atenção dos homens que estavam

lá dentro. Desci da carruagem e entrei na taberna pelos fundos,

como sugeriu o cocheiro. Procurei pelo taberneiro. Ele me olhou

atônito, como se me reconhecesse, mas nenhuma palavra disse.

Colocou o copo, que estava enxugando com um paninho

encardido, em cima do balcão, pegou uma lanterna e guiou-me

em direção à porta dos fundos, novamente. Da portinhola,

mostrou-me um celeiro. Olhou-me de cima abaixo, parecendo

não acreditar que eu iria ter coragem de ir até lá. Mas o olhei

desafiadoramente e não lhe dirigi mais a palavra. Segui,

tentando mostrar-me corajosa. A noite estava fria e senti minhas

pernas tremerem. Vacilei e quase caí. Somente a luz da Lua me

guiou. Abri a enorme porta do celeiro e vi não vi ninguém.

Vários lampiões estavam acesos e, no meio, tinha uma mesa

com vinho, taças, queijo, frutas, e pães. Logo à frente, encontrei

um colchão feito com feno. Alguns cobertores estavam

dobrados ao lado. Sorri sozinha, pois sabia que Edward havia

preparado tudo nos mínimos detalhes. Edward, você está aí?,

chamei mais alto e ninguém respondeu. Comecei a ficar

assustada e, de repente, ele chegou por trás de mim, abraçando-

me e beijando-me. Virei para olhar para ele e fui beijada na

Adriana Matheus

- 125 -

boca, com paixão. Depois, empurrou-me pelos os ombros e

fitou-me toda.

– Não quero mais ouvir tais detalhes. - disse o pai de

Shaara, com o semblante que era pura decepção.

Mas Shaara pediu para que terminasse aquela conversa:

– Por favor, pai, preciso de resposta e, para isso, o senhor

terá que ouvir toda a minha versão dessa história.

Então, Shaara prosseguiu:

– Edward olhou-me de um jeito que nunca havia me

olhado antes e disse-me que eu estava linda, que me amava

loucamente, que não conseguia pensar em sua vida sem mim.

Seus olhos eram ternos, mas também cheios de luxúria. Fitei-o

de cima abaixo, enquanto foi buscar-me uma taça de vinho.

Estava com uma camisa branca muito fina, aberta, que deixava o

peito másculo e peludo à mostra. As mangas, longas, estavam

dobradas até o antebraço. Calça de couro, com um cinto largo, e

botas, lembrando os famosos corsários. Seus cabelos estavam

soltos, e sua barba muito bem feita. Ele usou sândalo naquela

noite. Aquele cheiro despertou em mim um lado adormecido até

então. Como eu disse, pai, também tive minha porção de culpa.

E Shaara prosseguiu com aquela história, que me

surpreendia a cada segundo:

– Edward trouxe-me uma taça e brindamos a nossa

felicidade antes de bebermos. Sentamos no colchão

improvisado, comemos queijo com fruta e pães, e contamos

histórias antigas. Ríamos como loucos por qualquer coisa.

Edward fitou-me, de repente, e beijou-me novamente com

ternura. Seus beijos foram ficando mais frenéticos e ardentes.

Suas mãos começaram a abrir caminhos desconhecidos no meu

corpo. Já entorpecida pelo vinho e pela luxúria, deixei-me

render. As mãos de Edward foram ágeis demais e, em instantes,

conseguiu abrir meu corpete. Percebi que estava completamente

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 126 -

indefesa e em suas mãos. Pude perceber sua experiência com as

mulheres, e senti um ciúme infindável. Como num passe de

mágicas, ele tirou o restante de minhas roupas. Queria falar-lhe

algo, mas seus beijos e suas mãos ficaram cada vez mais

insistentes e impacientes. Meu corpo tremeu ao sentir sua boca

escorregando em meus seios, jovens e inexperientes. Sua mão

desceu e alcançou meu local mais secreto. Senti tontura e um

devaneio sem fim. Sua boca percorreu todo o meu corpo, até

levar-me a um frenesi angustiante. Quando percebeu que eu

estava totalmente indefesa, fez-me implorar para ser possuída.

Como um louco, beijou-me na boca novamente e levou-me a

lugares jamais sonhados por qualquer ser humano. Naquela

noite, vi que o meu frágil corpo de mulher foi levado a um

paraíso nunca sonhado pelos anjos. Quando acordei, fiquei

olhando-o dormir. Como era lindo ver seu corpo masculino e nu

completamente vulnerável ao meu lado! Nada se comparava à

felicidade que estava sentindo ao lado de Edward. Eu estava

plena da certeza do nosso amor. Mas, de repente, senti uma

pontada no peito, como se algo estivesse errado. Sabia que

deveria contar a Edward sobre o meu atual segredo. Comecei a

chorar, abafadamente. E se ele não me aceitasse como eu era? -

pensei comigo. Talvez fosse bobagem e eu estivesse sofrendo

por antecipação. Comecei a beijá-lo nos lábios, tentando afastar

aquele temor da minha mente. Ele acordou e perguntou-me,

tentando ser natural e fazer-me sentir à vontade: Bom dia, meu

amor! Como passou a sua primeira noite como uma refugiada?

Tentei não deixar transparecer que eu havia chorado, pois não

queria que Edward se aborrecesse comigo. Então, continuei

aquela brincadeira, tentando também ser irônica: Bom dia,

minha vida, tirando a hora em que senhor me deixou dormir,

pode-se dizer que eu tive uma excelente noite. Ele respondeu

Eu?! A senhorita é que não me deu sossego. Parecia possuída

Adriana Matheus

- 127 -

por uma fera selvagem. Rimos os dois ao mesmo tempo. E o

senhor quer sossegar? - rocei minhas pernas entre as dele. Ele

olhou para debaixo das cobertas e falou, com voz rouca: Hum!

Não, de jeito nenhum. Fizemos amor novamente. Desculpe por

lhe contar tão vulgarmente, pai, todos os detalhes de meu

envolvimento com Edward. Mas eu precisava que o senhor

soubesse que eu não sou santa e que também permiti que as

coisas fossem longe demais. Mais tarde levantamos e tomamos

o nosso desjejum. Ele tirou, para mim, leite de uma vaca que

estava naquele celeiro. Tudo estava perfeito, até mesmo o pão

dormido. Edward contou-me sobre seus planos de se casar

comigo. Falamos da quantidade de filhos que teríamos. Ríamos

com coisas banais e, se o mundo acabasse, não teria naquele

momento a menor importância para nós, pois éramos a própria

felicidade encarnada. Eu havia esquecido completamente dos

meus temores, até que fiz a pergunta que não conseguia se calar

dentro de mim: Edward, posso perguntar-lhe uma coisa? Ele,

ainda deitado ao meu lado, enrolando na boca um pedaço de

feno, disse Sim meu amor, pode me fazer quantas perguntas

você queira, enquanto fitava o teto, parecendo não se interessar

muito por aquele assunto. Por fim, virou-se para mim e

perguntou, percebendo que eu me mantinha calada: Então, meu

amor, o que quer saber de mim que ainda não saiba? Disse-lhe

que precisava saber se ele me amava verdadeiramente. Na

verdade, queria testar o amor de Edward, queria saber se ele me

amava tanto quanto o senhor amava minha mãe. Edward,

naquele momento, pareceu-me tão seguro do nosso amor... Fui

uma tola e estraguei tudo. Achei que nada importaria ou

estragaria aquele sentimento. Edward virou-se e segurou meus

ombros. Fitando-me, disse: Nunca duvide disso, vou me casar

contigo. Nada nesse mundo poderá intervir nos meus

sentimentos por você. Mas por que tem essa dúvida a meu

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 128 -

respeito? Então, aproveitando aquele momento de felicidade,

abusei da minha sorte e perguntei: Se eu for diferente de todas

as outras mulheres que conheceu, vai me amar mesmo assim? E

se eu fosse uma bruxa, amar-me-ia do mesmo jeito? Edward

soltou uma gargalhada sonora. Mas, depois, fitou-me

seriamente, pois pareceu perceber em mim tristeza e

sinceridade. A fisionomia de Edward mudou. Afastou-se de

mim, parecendo querer que eu dissesse que era uma brincadeira.

Mas me mantive séria e firme. Meus olhos não desgrudavam

dos dele. Então, levantou-se, passou as mãos nos cabelos e

perguntou: Está falando sério, não é? Pai, Edward mudou por

completo. Correu a vestir suas roupas e mal olhava para o meu

rosto. Ficou enfurecido. Nunca imaginei vê-lo daquela forma.

Agitava-se de um lado para o outro, como se estivesse

procurando uma solução ou algo para fazer, que lhe livrasse

daquele peso. Por fim, jogou em cima de mim as minhas roupas

e pediu que eu me vestisse. Quando eu já havia me vestido,

Edward - que não parava de me observar um só segundo –

perguntou, por fim: Não brincaria com uma coisa séria dessa,

não é? Sua voz estava trêmula e confusa. Claro que não, por

que eu faria isso? Acabou de dizer-me que nada poderá intervir

entre nós, Edward! Juntos seremos invencíveis, fortes. Mas,

separados, não seremos ninguém – eu lhe disse. Fui muito

ingênua, pai. Achei que o amor pudesse vencer qualquer

barreira. Também tinha um conceito diferente e fantasioso do

que é ser uma bruxa de verdade. Eu achava que eu tinha poderes

mágicos, que podia usá-los para fazer qualquer coisa.

Pela primeira vez durante aquela viagem, vi minha

ancestral chorar como uma criança precisada de colo. Comecei a

entender por que ela queria tanto mudar o destino de seu pai:

não por ela, mas para tentar ajeitar as coisas e não ver seu pai

ser torturado até a morte por causa de um deslize dela. Na vida,

Adriana Matheus

- 129 -

temos que ter muita certeza do que estamos por fazer, pois, no

futuro, as consequências podem ser drásticas devido a erros que

nunca poderão ser consertados.

Observei Shaara chorando com as mãos no rosto e

percebi que seu pai, embora a amasse, estava indignado e

decepcionado com tudo que ouvira da boca da própria filha.

Confesso que não teria coragem de ousar tanto em relação às

minhas intimidades com meu pai.

Minha ancestral cometeu três pecados graves: a ira, pois

se vingou de seu pai sem ao menos tentá-lo compreender; a

luxúria, pois, embora amasse Edward, deitou-se com ele

somente por vingança; e o mais grave: invadiu o passado e

tentou ser mais que Deus, tentando mudar o destino de outra

pessoa. Com isso, o universo irou-se contra ela da maneira mais

cruel possível. Continuei em silêncio e a deixei terminar aquela

história, que já estava me assustando, pois temi por mim naquele

momento. Temi por perceber que eu é quem iria ter que resgatar

aqueles erros de Shaara. Ela continuou a história:

– Edward olhou-me nos olhos como se fosse um mostro

e disse: Shaara, lembra-se de que lhe disse que fui promovido a

um cargo de extrema confiança? Respondi-lhe Sim, amor, eu

me lembro, mas não vejo em que isso poderia intervir entre nós

e o nosso amor. Ele anunciou: Recebi ordens vindas do vaticano

de ficar no lugar do novo chefe da guarda, sou o novo capitão

da guarda real. Fui à sua direção para abraçá-lo, pois queria que

ele soubesse o quanto eu estava feliz por ele. Mas ele me

empurrou para longe de si e prosseguiu: Não é só isso. Também

recebi outro cargo de muita confiança por ter sido sempre

devotado à Santa Madre Igreja. Que bom, eu agora era a noiva

de um homem de poder - tentei ironizar. Fui até ele, tentando

abraçá-lo. Edward afastou-se de mim abruptamente e, naquele

momento, não me pareceu mais tão seguro do nosso amor. Em

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 130 -

um tom de voz áspero, falou: Shaara, nem de brincadeira fale

uma coisa dessas. Pois eu teria que mandar prender você e seu

pai, e todos os seus bens teriam que ser confiscados. Seus

criados teriam que ser torturados e mortos por ordem da

Inquisição. Eu disse que não o estava entendendo. O que teria

minha família, meus bens e meus criados a ver com o seu novo

cargo? Sou o novo inquisidor. Até que o vaticano envie um

inquisidor substituto para este condado, serei o responsável por

manter a lei e a ordem nesta região, ele me respondeu. Senti

como se tivesse perdido o chão, pai. Nunca imaginei passar por

uma situação como aquela: eu havia me entregado ao meu

algoz. É realmente incrível o quanto as coisas mudam da noite

para o dia. Meu sonho de amor tornou-se um pesadelo. Eu

estava sem saber o que fazer. Fiquei ali em pé, na frente de

Edward. Hoje percebo o quanto errei. Vejo que nada somos

quando tentamos ser arrogantes e passar por cima de Deus,

tentando antecipar o nosso destino. Depois de algum tempo

calados, apenas perguntei: O que um inquisidor iria querer aqui

em San Marino? O que há de tão especial em um pequeno

condado como o nosso? Creio que a Inquisição tem coisas

muito mais importantes para investigar. Ele me explicou que

havia boatos de que bruxas fugitivas de Salém estavam

escondidas no grande bosque e que, em nome do demônio,

estavam praticando feitiços e abominações. O último inquisidor

havia morrido e diziam ter sido obra de um feitiço poderoso,

praticado pela bruxa Mercedes. Essa lhes estava dando muito

trabalho para ser capturada, pois se escondia no meio da mata

virgem. O último feitor que tentara ajudá-los desapareceu

misteriosamente. Então, eu lhe disse: Porque as pessoas são

diferentes não quer dizer que estão possuídas pelo demônio. Já

ouvi falar dessa tal Mercedes, dizem que veio de Salém, no

Norte da Inglaterra. Para mim, tudo nunca passou de mexericos

Adriana Matheus

- 131 -

e sandices de pessoas ignorantes. Eu mesma sempre gostei de

ler livros místicos. Confesso já ter consultado uma cigana.

Edward parou e fitou-me como se não mais me reconhecesse:

Está realmente falando sério? Sabe que eu posso levar isso

como uma confissão. Não quero mais ouvi-la. Cale-se, é melhor

irmos embora. Pensei que o seu amor por mim fosse muito mais

importante do que essas lendas criadas por pessoas

supersticiosas e fanáticas! Confessei-lhe que minha mãe

contara-me, em seu leito de morte, que era uma bruxa, e que

também vi em suas costas a flor de lótus, o sinal das renegadas.

Esse sinal tinha sido marcado pelo inquisidor do qual ele

acabara de me falar. Esse homem, Edward, não era um homem

íntegro. Ele colocou esse sinal em minha mãe depois de torturá-

la por horas, tentando obrigá-la a fazer tudo o que ele quisesse.

Como ela não se entregou a ele, foi marcada como um animal.

Minha mãe só tinha doze anos, era apenas uma menina e nada

sabia de feitiçaria. A família de minha mãe segue uma tradição

muito antiga, mas nunca fizeram mal a ninguém nesta vida. Ele

quis saber como eu sabia disso, se não convivia com minha mãe,

se só estive com ela por algumas horas durante toda a sua vida.

Ele quis saber como eu poderia ter tanta certeza de que ela

nunca praticara feitiçaria. Minha mãe era uma mulher honesta,

Edward, de muito boa índole. Nunca fez mal a ninguém. Quem

a conheceu contou-me como ela era. Sabe, Edward, posso não

ser experiente, mas sei muito bem ver nos olhos de uma pessoa

quando ela está sendo honesta comigo. E acredite: vi isso nos

olhos da minha mãe. Espero que tudo o que acabei de lhe

contar não mude nada entre nós, Edward; eu o amo demais. Ele

insinuou que fiz amor com ele, mas com quantos mais? Disse

que eu não passava de uma mulher mimada, que só quis se

vingar do próprio pai por mera pirraça. Acha mesmo que eu

confiaria em uma pessoa que, além de trair a confiança

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 132 -

paterna, deita-se assim, facilmente, com qualquer homem que

lhe convide? Acha mesmo que vou acreditar em uma filha de

bruxa? Foi o que ele disse. Acusei-lhe de louco. Disse-lhe que

ele havia sido o único homem que tive em toda a minha vida. E

que sempre seria único. Aquilo não faz o menor sentido, eu

nunca havia sido praticante de feitiçaria. Só soube do segredo de

minha mãe no seu leito de morte. Disse-lhe que não levaria em

consideração tais palavras rudes, pois sabia que ele estava sendo

guiado por uma revolta insana. Sei como as malditas bruxas

agem: enfeitiçam os homens para que não as vejam como são,

demônios de saias – ele concluiu. Perguntei-lhe por que odiava

tanto o meu povo. Seu povo? Então agora confessa também que

é uma bruxa? Pois que seja. Sabia que essa raça maldita

destruiu minha mãe? – disse-me, segurando o meu rosto com

uma das mãos. Prosseguiu, enfurecido:

– Quando minha mãe era jovem, uma maldita bruxa

enfeitiçou o noivo dela. Minha avó fez de tudo para mostrar a

verdade ao meu pai, mas o pobre homem estava tão cego e

enfeitiçado que se mudou da França, largando minha mãe

grávida ao vento. Mas é claro que a senhorita bonequinha de

luxo não sabe o que são essas coisas, não é verdade? Não

consegue imaginar o que é estar grávida aos dezoito anos e ser

abandonada à própria sorte, não é? Minha mãe não perdeu o

bebê, como praguejou a maldita bruxa, porque minha avó fez

uma promessa de que eu serviria ao Senhor de alguma maneira.

Minha mãe foi uma mulher sofrida e viveu às escondidas,

porque ficou mal afamada perante o povo. Depois de certo

tempo, minha mãe conheceu o coronel Sebastian. Embora o

coronel fosse bem mais velho que minha mãe, ele cuidou de nós

enquanto viveu. Ele deixou para minha mãe um pequeno

obséquio, que ela guardou para me ajudar nos estudos, mais

tarde. O coronel era um homem de muitos conhecimentos,

Adriana Matheus

- 133 -

embora não tivesse muitas posses. Foi graças a ele que estudei

no melhor colégio militar da Europa. E foi com muito esforço

que me tornei, mais tarde, o capitão da guarda real na

Inglaterra, até ser transferido para cá. E, por fim, caí aqui em

San Marino. Nesse pequeno vilarejo, cheio de contos e lendas

sobre as bruxas fugitivas de Salém. No início, não dei ouvidos,

pois pensei serem apenas histórias contadas pelos aldeões.

Mas, com o passar dos meses, pude observar que coisas

estranhas estavam acontecendo com frequência. Como, por

exemplo, mulheres que se esfriavam no leito conjugal; pessoas

que desapareciam no meio da floresta, sem deixar rastro. O

leite do gado de alguns fazendeiros começou a talhar, e isso

acontecia a cada Lua cheia. As crianças de Salamanca estavam

nascendo com deformidades, ou morriam na hora do parto.

Algumas mulheres não conseguiam gerar um filho homem,

como é o desejo de todo patriarca. Foi então que a Igreja

resolveu investigar minuciosamente, em sigilo, todos esses fatos

ocorridos. Depois de uma detalhada investigação, foi

descoberto que tais fatos eram verídicos. Vários suspeitos estão

sendo mantidos sob investigação, e alguns são interrogados

constantemente para que confessem seus crimes. No corpo de

algumas mulheres, já foi achada a marca do demônio. Um

especialista em desvendar fatos como esse está aqui, em sigilo,

investigando os hereges. Houve, também, alguns suicídios

misteriosos e sem causa aparente. Até mulheres com três

mamilos foram encontradas e estão sendo interrogadas

diariamente em masmorras. Ainda não conseguimos encontrar

a feiticeira Mercedes, mas é só uma questão de tempo. Escravos

fugiram e jamais foram encontrados. Soubemos que uma velha

senhora presenciou um ritual no meio da mata enquanto

juntava lenha. Ela teve sorte de não ter sido capturada pelas

feiticeiras. Tudo isso que acabei de lhe contar é prova de que o

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 134 -

demônio tem usado as mulheres de San Marino. A Inquisição

não perdoa, Shaara.

– E o que isso tudo tem a ver com nós dois? – perguntei-

lhe, pai. As pessoas têm problemas todos os dias. Algumas não

conseguem superar as suas dificuldades e acham que o suicídio

é a solução. Essas pessoas são doentes, carentes e solitárias,

Edward. Escravos fogem e vão para os quilombos, porque já

estão fartos de serem torturados por seus senhores. Eles fazem

isso na ânsia de acharem a liberdade. Todos já ouvimos boatos

que há quilombos por toda a Europa. Quanto ao leite que

azeda, é devido ao calor e a falta de cuidados. Pessoas com

deformidades nascem todos os dias, Edward. Isso não quer

dizer que sejam marcadas pelo diabo só porque são defeituosas.

E se as mulheres estão esfriando com seus maridos, creio que

eles deveriam começar a tratá-las melhor. Somos mulheres,

Edward, não somos seus animais de estimação. E se os bebês

estão morrendo na hora do parto, talvez algumas mulheres

devessem parar de usar espartilho durante a gravidez. Não

estou dizendo que são todas, mas sabemos que algumas

senhoras não tiram nunca os espartilhos. Isso pode ser o preço

da vaidade. E de que marcas estranhas está falando, afinal? De

pintas ou manchas? Ora, Edward, francamente... Pensei que

fosse um homem mais inteligente. Não entendo como isso tudo

está relacionado com a nossa vida. A vida que nós planejamos

durante esses dois longos anos juntos. E quanto às bruxas,

Edward, elas são pessoas normais como nós. Nada têm a ver

com os contos e fábulas que circulam em torno delas. Acho que

deveria mudar esses conceitos antigos e preconceituosos sobre

as pessoas. Só porque algumas são diferentes de nós, não quer

dizer que sejam seguidoras do diabo. Se cada um - não apenas

nesta cidade, mas neste mundo em geral - deixasse de querer

obrigar as pessoas a serem iguais a elas, o mundo seria muito

Adriana Matheus

- 135 -

melhor. Viver, Edward, é aprender a conviver com as diferenças

- sejam quais forem.

– Shaara, quando a minha mãe faleceu, ela me fez

prometer que acharia a bruxa que enfeitiçou o meu pai. Aquela

mulher destruiu a vida da minha mãe, e a minha também. Ela

destruiu os sonhos da minha mãe de ser mãe de novo. Minha

mãe faleceu durante o parto, junto ao meu irmão, de uma

doença misteriosa e sem explicação. Eu tinha apenas seis anos,

Shaara, e vi minha mãe gemendo de dor, suplicando pela morte.

Ela me fez jurar, em seu leito de morte, que a vingaria,

procurando e matando a bruxa que fez aquilo com ela. Não sou

homem de quebrar uma promessa.

– Isso é uma tolice, Edward! Creio que nem deva saber

o nome dessa suposta bruxa!

– Pai, no fundo eu não queria ouvi-lo mencionar o nome

de minha mãe. Pois, depois que me contou que estava

perseguindo a tia Mercedes, eu me recusava a acreditar que

alguém pudesse mentir sobre minha mãe daquele jeito. Mas

deixei que ele continuasse.

E Shaara prosseguiu, contando ao seu pai o diálogo que

teve com Edward, como se o estivesse revivendo. Seu pai

apenas a ouviu, sem interferir:

– Sim, eu sei, Shaara. - disse Edward, com os olhos fixos

nos meus. Seu nome é Elizabeth Méquiz. Essa foi a mulher que

enfeitiçou meu pai e amaldiçoou minha mãe, para que ela

morresse como morreu.

– Fiquei ouvindo-o sem mais conseguir falar. Pasmei-me

ao ouvi-lo pronunciar o nome de mamãe, daquele jeito tão cruel

e fraudulento. Por fim, depois de engolir a seco aquelas

palavras, perguntei:

– Sua mãe é Escarlate Mennellet?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 136 -

– Sim, esse é o nome da minha mãe. Como sabe o nome

dela? Não me lembro de ter mencionado seu nome para

ninguém, pois tenho evitado lembrar-me de minha mãe. Ainda

dói na minha frente a forma com a qual ela morreu. Onde ouviu

mencionar o nome dela?

– Edward ficou curioso e trêmulo. Então, falei:

– Estive por horas no quarto de minha mãe antes que ela

partisse, como já mencionei. Foi ela quem me contou sobre a

sua mãe.

– Edward empalideceu e encostou-se em um monte de

feno. Tapou a boca com as mãos. Ele parecia não querer

acreditar, mas prossegui:

– Sim, Edward, sou a filha de Elizabeth Méquiz, a bruxa

que mencionou em sua suposta versão, ainda há pouco. Esse

era o nome de solteira de minha falecida mãe. Agora que me

contou a sua parte da história, espero que ouça também a

minha.

– Antes que Edward tivesse uma reação inversa a que

estava tendo, prossegui com a conversa, pois percebi que ele

estava sem voz. Aquele era o momento de saber alguns fatos e

tentá-los encaixar. Então, perguntei-lhe:

– Como exatamente sua mãe faleceu, Edward? Diga-me

sem mentir para mim.

– Nunca minto. O que te contei é o que aconteceu.

– Edward estava meio tonto, mas prosseguiu:

– Os doutores não conseguiram identificar a doença

dela. Eu só sei que seu corpo encheu-se de tumores horríveis.

Seu sofrimento foi inigualável, ela não merecia aquilo. Como

lhe contei, minha mãe morreu com o meu irmão, durante o

parto. Por causa de uma bruxa maldita, perdi minha família.

Fui criado por minha avó e pelo coronel Sebastian. Não tem

ideia do que é ser criado por um homem que não é o seu pai, e

Adriana Matheus

- 137 -

que vive o tempo inteiro ditando regras militares. Eu vivia mais

interno em um colégio do que dentro da casa materna. Tenho

gratidão ao coronel Sebastian, mas confesso que ele era cruel

comigo. Fui um rapaz solitário e não tive amigos. Meu único

objetivo era vingar minha mãe.

– Ouvindo aquelas palavras amarguradas de Edward, eu

disse, muito entristecida: Meu Deus, é a lei do retorno. Minha

mãe estava certa. Ele desconhecia a lei e tive de contar a minha

história:

– Minha mãe me contou que, antes de se casar com o

meu pai, ele tinha se envolvido com várias outras mulheres.

Entre elas, uma jovem ambiciosa dançarina, cujo nome era

Escarlate Mennellet. Sinto muito por tudo que tenha vindo

passar.

– Percebi o desgosto de Edward, e o desespero dele por

pensar que éramos irmãos. Mas, antes que ele abrisse a boca,

prossegui:

– Meu pai terminou com a sua mãe assim que conheceu

a minha mãe. Sinto muito, Edward, mas a sua mãe mentiu

muitos fatos. Sua mãe perturbou a vida de meu pai e de minha

mãe enquanto ela viveu. E foi a sua mãe quem jogou um feitiço

na minha. Logo depois que eu nasci, minha mãe caiu de cama

com lepra, Edward. Minha mãe passou vinte anos em cima de

uma cama, isolada do mundo por causa da maldita doença. Ela

nunca pôde pegar-me no colo, nunca pôde ver-me dando os

primeiros passos. Sinto muito, mas sua mãe mentiu, pois foi ela

e sua avó quem recorreram a um terrível sortilégio para matar

minha mãe. A lepra de minha mãe, Edward, era um feitiço feito

por uma bruxa que morreu misteriosamente, logo após fazer o

sortilégio. Foi sua família a causadora do sofrimento da minha.

Eu podia odiá-lo por isso e muito mais, mas o meu amor por

você faz-me ver que não somos culpados pelos erros de nossos

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 138 -

pais. Estamos tendo uma chance de mudar todo esse mal com o

amor que sentimos um pelo outro; a chance de viver feliz e

corrigir tudo o que nossos pais fizeram de errado.

– Mas Edward estava cego e não ouviu uma só palavra

do que eu disse. E prosseguiu:

– Do que está falando? Você quer tentar confundir-me

com sua bruxaria maldita. Jurei que destruiria toda a sua raça

desgraçada. Não vou voltar atrás. Meu Deus, você sabia quem

eu era e nem se importou de sermos irmãos?

– Edward, não somos irmãos. Sua falecida mãe havia se

envolvido com outro homem antes de tramar contra o meu pai.

– Contei-lhe exatamente o que mamãe me havia dito. De

repente, vi cair de joelhos aquele homem que parecia ser de

ferro. Ele chorou incessantemente, pai, e gritava como se

sentisse ódio e dor ao mesmo tempo. O desespero de Edward era

tamanho que eu não soube como ajudá-lo. Percebi que ele

estava guardando aquela mágoa dentro dele há muito tempo, e

que precisava pôr para fora de alguma maneira. Tentei tocá-lo,

mas ele me empurrou abruptamente. Fiquei sem saber como

agir. Por fim, ele disse, entre dentes:

– Por que, Shaara? Por que você me enganou? Como

pôde fazer isso comigo?

– Seus olhos eram tristeza e dor. Tentei dizer-lhe,

novamente, que não tinha culpa e que só soube dos segredos de

minha mãe em seu leito de morte. Mas todas as minhas

tentativas foram inúteis. Ele parecia estar com nojo de mim. Era

como se eu tivesse contraído uma doença. Então, ele me

expulsou da frente dele. Foi o momento mais difícil da minha

vida:

– Vá embora da minha frente! Preciso pensar no que

farei com você. Quero ficar sozinho.

Adriana Matheus

- 139 -

– Amor, sou a mesma pessoa... Podemos lutar juntos e

não contar nada. Ninguém saberá. Foi assim com o meu pai:

ele aceitou minha mãe, e o amor dos dois superou tudo - até

mesmo a doença dela. Se quiser, nem mesmo leio o livro que

minha mãe me deixou. Posso renegar tudo por você, Edward.

Nada me importa, só o nosso amor. Eu o amo! Faça o que

quiser, mas não me tire de sua vida, pelo amor de Deus. Não me

deixe. Eu não saberia viver sem você, não mais.

– Eu a desprezo, sua bruxa mentirosa. Sei que nunca

deixará de ser uma bruxa.

– Nisso ele estava certo. Eu nunca deixaria de ser eu

mesma. Mudamos com o passar dos anos, adquirindo

experiência, sabedoria e rugas com a idade. Mas nossa essência

nunca muda. Ele estava exaltado e cada vez mais rude com as

palavras, e continuou a me ofender:

– Como você quer que eu ame a filha da mulher que

matou a minha mãe? E seu pai, um maldito canalha sem

coração. Nada que me contou vai mudar o desprezo que sinto

por sua família. Verdade ou mentira, agora os odeio mais

ainda. Desprezo você e toda a sua raça. Sei muito bem que está

tentando me iludir, para salvar seu pai e a você mesma. Saiba,

Shaara, que estou preparado para enfrentar seus feitiços.

Arrede-se de mim, satanás! Esconjuro-a em nome de Deus!

– Edward, acabamos de fazer amor! Não quero ouvir

isso. Sei que está fora de si, que ficou enfurecido e louco pelo

ódio que o consome. Não são sinceras essas palavras. Sei que

irá pensar com calma e cair em si.

– Tem razão: deitei-me com uma mulher, mas fui

iludido. Pois, na verdade, eu estava me deitando com o próprio

diabo disfarçado. Você usou o seu próprio corpo para tentar me

enfeitiça. - olhou-me de cima abaixo, com desprezo. Edward

estava transtornado, parecia outra pessoa. Nunca o havia visto

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 140 -

daquela forma antes. Ele continuava falando como um louco. Eu

só queria fugir para bem longe:

– Usou-me! Fui um tolo e ainda acreditei em sua

castidade.

– Ele começou a revirar os lençóis e disse:

– Não era mais virgem! Não há sangue nos lençóis. Sua

bruxa maldita! Queria que eu me casasse com você para

amaldiçoar a minha vida. Você já era usada, sua imunda! Acha

mesmo que me casaria com uma mulher já usada?

– Esbofeteei-o; ele me revidou. Coloquei a mão no rosto

e o olhei-o nos olhos: eram puro ódio. Nada mais pude fazer em

relação a Edward. Senti o sangue jorrar em minhas narinas e

disse:

– Juro por tudo que há de mais sagrado nesta vida,

Edward: um dia hei de vê-lo chorar lágrimas de sangue, como

as que escorrem de minha face agora. Está cometendo uma

injustiça e, o que é pior, não quer ver que sua mãe é que é a

culpada por isso tudo. Aquela maldita, mesmo depois de morta

ainda consegue perturbar a vida da minha família! Mas hei de

vê-lo ajoelhado e arrependido. Há alguns minutos, dizia que me

amava, que eu era a mulher da sua vida. Agora me trata como

qualquer mundana. Não o conheço mais, Edward, não sei quem

é. Imaginei uma pessoa completamente diferente, mas eu

deveria saber que de um maldito inglês não poderia vir boa

coisa. Principalmente quando esse inglês traz consigo o nome

Mennellet.

– Limpe a sua maldita boca quando mencionar o nome

da minha família. Se a senhorita tivesse tido uma mãe, ela lhe

teria ensinado que não deveria acreditar em tudo que ouve,

principalmente de um homem quando quer conseguir o que eu

consegui. Por Deus, mulher, achou mesmo que eu iria me casar

com você? Deito-me todos os dias com mulheres do seu tipo.

Adriana Matheus

- 141 -

Ora, Shaara, sabe que nunca foi a santinha que se dizia ser.

Você foi ágil demais para uma primeira noite com um homem.

Tê-la em meus braços foi como ter uma simples meretriz.

– As lágrimas começaram a escorrer e saí correndo como

louca, para não deixá-lo perceber minha fraqueza. Eram oito da

manhã e o cocheiro estava me esperando, no mesmo lugar de

antes. Estava sem ar e tonta. Subi na carruagem, sem olhar para

trás. Queria esquecer que Edward existia. O cocheiro veio à

janela da carruagem e perguntou-me se estava tudo bem. Pedi-

lhe que me levasse a uma pensão. Não podia voltar para casa do

meu pai, não poderia lhe causar tamanho desgosto. Mas, com o

passar do tempo, comecei a me sentir mal e a dona da pensão,

contra a minha vontade, chamou o senhor. Voltei para casa a

contragosto, o senhor sabe. Deixei-o pensar que estava doente

até ontem, quando desmaiei novamente e o doutor contou-lhe a

verdade. Agora o senhor sabe toda a verdade, pai. Não quero

que tome nenhuma atitude drástica. Não quero que se vingue de

Edward. Ele também é uma vítima dos erros do seu passado.

– Sim. Eu deveria ter eliminado essa maldita família

quando tive a oportunidade. Nada do que você me disse muda o

ódio que sinto por esse homem e a mãe dele. Penso que ele se

fez de vítima para você. No fundo, ele já sabia que era a filha de

Elizabeth. O tempo inteiro ele fez tudo pensando em vingança.

Esse mau caráter seduziu-a de caso pensado. Não posso deixar

isso da forma como está. Tenho que tomar uma atitude em

relação a isso tudo.

– Pai, por favor, contei-lhe tudo exatamente como

aconteceu para que o senhor tivesse uma noção de que a nossa

família também teve culpa de tudo o que houve com Edward.

– Shaara, em que tivemos culpa? Só porque cometi o

erro de me envolver com aquela mulher em minha juventude,

agora tenho que pagar o preço pelo resto da minha vida? Olhe só

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 142 -

para você agora: está grávida daquele bastardo! Acha mesmo

que posso deixar tal situação no esquecimento? E onde fica a

minha postura de homem? Sinto muito, Shaara, não posso

atender ao seu pedido dessa vez. Prometo lavar sua honra com

sangue - e isso é indiscutível.

– Pai, pelo amor de Deus, não faça isso! Edward é um

homem poderoso. Vai trucidá-lo.

Shaara tentou modificar o seu destino e salvar a vida de

seu pai, contando-lhe tudo na tentativa de que, se ele soubesse a

verdade, perceberia que ela foi a culpada por tudo o que Edward

lhe fizera. Só que Shaara se esqueceu de uma coisa: não se pode

mudar o destino.

Fiquei ali, em pé, percebendo o desespero de Shaara.

Seu pai saiu daquele aposento, deixando-a sozinha e chorando

desesperada. Parecia que todo o peso do mundo havia caído

sobre ela. A dor tinha-a transformado em um verdadeiro flagelo

humano. Os erros de Shaara foram muitos e, naquele momento,

todo o universo estava de costas para ela. Compreendi que

Shaara foi a única responsável por toda a sua desgraça.

Os valores que nos são impostos por nossos pais

deveriam ser encarados como uma aula básica, e não como um

martírio constante. Mas só percebemos isso quando os

problemas surgem para nos pesar o pensamento.

Shaara desceu e tentou uma última conversa com o pai,

que estava apeando o cavalo.

– Pai, por favor, eu lhe imploro: não faça essa loucura! O

senhor não tem ideia do que vai lhe acontecer.

O pai de Shaara fitou-a nos olhos e disse:

– Soube desde o instante em que ouvi no vilarejo, pela

primeira vez, que ele era o procurador do rei, e que ficaria no

lugar de inquisidor até que Mercedes fosse capturada. Desse dia

então, soube que os dois jamais poderiam ficar juntos, porque

Adriana Matheus

- 143 -

nem todo mundo a entenderia, Shaara. Desde que você nasceu,

sabíamos que seria diferente, por causa da origem de sua mãe.

Sonhava uma vida de felicidades para você ao lado de um bom

homem, mas o capitão Edward apareceu nem sei de onde, e foi

impossível evitar que ficassem juntos. Sua mãe e eu

conversávamos sobre seu futuro. Ela sempre dizia que não cabia

a mim mudá-lo, pois já estava traçado no dia em que foi

concebida em seu ventre. Então, está feito. Parece que sua mãe

estava certa mais uma vez.

– Pai, por que não me contou antes?

– Você nunca me deu tempo. Depois, fugiu na calada da

noite, sem explicações. Só Deus sabe o quanto eu sofri,

procurando-a por todos os lugares.

– Pai, perdoe-me!? Fiquei furiosa por ter me batido.

Queria me vingar. Estava confusa, e Edward parecia me amar

tanto... Naquela hora, pareceu que era o certo a se fazer. Pensei

que nos casaríamos e que, quando voltássemos, o senhor nada

poderia fazer para nos separar. Fui uma tola e insensata!

– Não, filha, eu não deveria ter perdido a cabeça com

você. Eu estava furioso comigo mesmo, pois não pude salvar

sua mãe e estava perdendo-a para um homem estranho. Eu

deveria ter me controlado e conversando com você. Por isso,

tenho que consertar esse erro à minha maneira agora.

– Pai, pela última vez, escute o que estou lhe dizendo:

Edward está louco. Prometeu se vingar de mim e do Senhor.

– Não se preocupe, Shaara, esse canalha não lhe tocará

enquanto eu estiver vivo. Ele vai pagar por tudo que lhe fez. Eu

já deveria ter extinguido essa raça maldita há tempos.

Shaara percebeu que não importava o quanto ela

argumentasse: não adiantaria, seu pai estava decidido a vingar a

sua honra a duras penas. Ele montou em seu cavalo e saiu em

disparada, deixando Shaara desesperada e aos gritos.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 144 -

Ela voltou para dentro da casa e subiu para seu quarto.

Parecia não querer ver ninguém naquele momento de aflição.

Ela agora sabia que era a culpada pela morte de seu pai, e não

tinha mais como voltar atrás. Abriu o quarto e trancou-se. Em

seguida, aproximou-se da cama, deixou o corpo cair pesado.

Esticada na cama, com os braços abertos, sentiu algo e levantou-

se para ver o que era: o livro das bruxas. Shaara, então, começou

a folhear aquele livro e caiu em si. Percebeu o enorme erro que

havia cometido. Ela havia ido contra todos os princípios da

magia, quando tentou interferir no destino de outra pessoa e no

seu próprio. Com isso, ela gerou um grande conflito com o

universo. Isso lhe causaria uma catástrofe maior do que a que

ela já haveria de passar.

Naquela hora, o vento entrou pelo quarto de Shaara e ela

soube que algo de errado havia acontecido. Os olhos de Shaara

percorreram o quarto, em busca de alguma resposta invisível.

Foi à janela e respirou, de olhos fechados. O cheiro que o vento

trazia era de morte. Ela pôs as mãos nos olhos e chorou

profundamente. Era como se ela quisesse que sua alma pedisse

perdão ao universo.

A criada de Shaara que se chamava Gina estava na

varanda e olhava o horizonte, como se estivesse muito

preocupada. Mesmo quem não tivesse uma mediunidade

formada sabia que algo estava errado, pois o tempo estava

demonstrando suas alterações.

As horas tornaram-se um suplício, e os minutos pareciam

não passar. Shaara já estava na varanda havia horas, esperando

pelo retorno de seu pai, até que ao longe conseguimos avistar

um homem. Ele estava arriado sobre o cavalo e parecia muito

ferido. Gina, a governanta, deu um grito de pavor. Ambas

correram para socorrer o pobre homem. As indagações

começaram:

Adriana Matheus

- 145 -

– Quem é o senhor, onde está meu pai?

– Corra, Gina, vá chamar Tobias, o nosso capataz. Peça

para chamar o doutor Tostes.

– Sim, senhorita.

Quando o médico chegou, horas depois, examinou o

homem minuciosamente e disse:

– Sinto muito, minha filha. Este homem não tem muito

tempo mais de vida. Parece que algum instrumento agudo

perfurou-lhe o pulmão. É um verdadeiro milagre que ele tenha

conseguido chegar até aqui.

Shaara olhou fundo nos olhos do homem, segurou o

rosto dele com as mãos e falou:

– Preste muita atenção, caríssimo senhor: tem que me

dizer onde está o meu pai. O que o senhor veio fazer aqui?

O homem mal conseguia abrir os olhos, mas parecia ter a

necessidade de contar o paradeiro do pai de Shaara. Ele

levantou a cabeça lentamente e apenas pronunciou as seguintes

palavras:

– O senhor Gonzáles está preso para prestar

depoimentos. O capitão Edward enviou-lhe o seguinte recado:

que a senhora se entregue, ou o senhor Gonzáles irá sofrer as

consequências em seu lugar.

Shaara perdeu a cor e só não caiu porque foi amparada

pelo capataz. Era difícil de acreditar que Edward havia chegado

a tanto. Em seguida, o homem entregou nas mãos de Shaara

uma carta, onde estava escrito:

San Marino, 20 de agosto de 1814 - Espanha.

Shaara, minha filha, ao ler este bilhete estarei em

perigo, mas confio em você e sei que irá tomar as providências

para me tirar desta prisão em que me encontro. Vá até o meu

quarto e veja debaixo de minha cama. Lá irá encontrar uma

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 146 -

tábua solta, onde guardo uma pequena quantia em dinheiro.

Pegue este dinheiro e arrume homens de confiança. O resto

deixarei em suas mãos. Envie uma carta à sua tia Mercedes.

Para isso, deve ir até a casa do sapateiro e apenas dizer-lhe que

preciso de ajuda. Não se preocupe, filha. Ele saberá como

proceder.

Arrume os suprimentos e pague os criados. Se alguns

quiserem ir com você, será melhor. Mas os avise do que se

trata, para que por si possam tomar suas próprias decisões.

Não tenho a menor intenção de deixar nada para esses porcos

covardes. Que fiquem com minhas terras e todo o resto. Não me

importo, quero apenas que você fique bem.

Confio em você. Sei que não irá me decepcionar.

Juan Gonzáles.

Shaara olhou para o homem que estava em seus braços e

ele havia falecido. Sem saber o que fazer, minha ancestral

entregou o corpo para que o capataz tomasse as providências

cabíveis. Em seguida, Shaara levantou-se e foi ao quarto de seu

pai, onde achou o dinheiro guardado no exato lugar

mencionado. Procurou pelas joias da família e pelas suas.

Guardou esse pequeno tesouro em um pequeno baú. Shaara foi

até o armário de seu pai e vestiu umas roupas dele. Em seguida,

desceu as escadas e pediu que chamassem todos os criados,

onde lhes passou todo o fato ocorrido, como lhe havia pedido

seu pai.

Pediu ao capataz que juntasse alguns escravos e fosse

com ela até a cidade. Enviou um bilhete através de um dos

escravos para sua tia Mercedes. Feitas todas essas coisas,

seguiu com o capataz para a cidade.

Adriana Matheus

- 147 -

Shaara tentou invadir, durante a noite, a prisão onde se

encontrava seu pai, mas, não conseguindo, prometeu que

voltaria no dia seguinte com mais reforços.

Ao chegar à sua casa, a Lua já estava alta no céu. Shaara

estava exausta, mas se surpreendeu com a visita inesperada que

havia recebido. Com um sorriso que mais parecia de alívio,

disse:

– Tia Mercedes!

Shaara abraçou aquela mulher como se quisesse

proteção. Ambas conversaram muito durante toda a noite. Não

poderiam dormir, tinham muitas providências a serem tomadas.

O dia estava raiando quando o capataz veio avisar que tudo já

estava pronto para a viagem. Ele prosseguiu, dizendo:

– Senhorita, quero falar em nome de todos os criados e

escravos de sua fazenda.

– Bom, homem, diga! - disse Shaara, parecendo surpresa

e curiosa.

– Por tudo que sua família foi para nós, não queremos

ficar, queremos partir com a senhorita.

– Não sei se posso deixar que venha, meu querido Jorge.

O risco é muito grande e ainda temos que salvar meu pai da

prisão. Isso pode ser muito perigoso. O inquisidor poderá acusá-

los também de traição por complô junto a mim.

– Se ficarmos, senhorita, seremos todos trucidados. A

Inquisição não vai nos ouvir. Seremos culpados e correremos

risco de morte. Preferimos correr o risco de fugir e poder lutar

por nossas vidas.

– Sendo assim, agradeço-lhes. Sejam bem vindos! Agora

temos que nos preparar para irmos resgatar meu pai.

– De jeito nenhum! Não permitirei que parta em uma

missão perigosa dessas, no estado em que se encontra. - disse

Mercedes, preocupada com a gravidez de Shaara.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 148 -

– Senhorita, não gosto de me intrometer em assuntos de

família, mas sua tia está certa. Se algo der errado e uma bala

atingir a senhorita, pode colocar não só as nossas vidas em risco,

mas também a vida da pequena criança que está por vir. Creio

que seu pai não concordaria com isso. Acho que devemos todos

nos colocar em segurança e, depois sim, voltaremos para fazer o

resgate de seu pai. Pense um pouco, senhorita Shaara. Creio que

o inquisidor não fará nada com o seu pai. Afinal, ele deu um

prazo e espera que a senhorita se entregue de livre e espontânea

vontade. Isso nos dará tempo de agir.

Muito a contragosto, Shaara concordou em fugir com a

tia, os criados e escravos. Foi assim que Shaara nunca mais viu

ou teve notícias do pai. Mercedes e os demais não deixaram

Shaara sair da floresta. Com isso, Dom Gonzáles morreu sob

tortura, acreditando que a filha o havia traído. Shaara, naquela

viagem, tentou mudar este fato, mas sua atitude conseguiu piorar

a situação do pai.

Shaara, então, resolveu voltar daquela viagem. Ao

despertar, chorou como louca ao se ver em um calabouço sujo e

molhado.

A porta da sela abriu-se, mas Shaara estava tão triste

que parecia não ouvir nada à sua volta. Ela sequer levantou a

cabeça quando um homem, encapuzado e acompanhado por dois

soldados, aproximou-se dela. Por fim, ele, percebendo que

Shaara não o havia notado, disse:

– Gostando das acomodações? Responda-me, bruxa

maldita!

Depois de ter recebido um chute nas costelas, Shaara

levantou a cabeça para olhar o seu algoz e falou:

– O que foi que eu lhe fiz para me tratar deste jeito? Já

não me humilhou o bastante, capitão? Quer que eu confesse?

Adriana Matheus

- 149 -

Creio que isso não seja necessário, pois já sabe que sou uma

bruxa e não tenho a menor intenção de negar minhas origens.

O capitão puxou Shaara, fazendo com que ela ficasse de

pé abruptamente. Ela deu um gemido de dor, pois seu corpo

estava todo machucado. O capitão Edward puxou Shaara para

junto de si e tocou-a intimamente. Ela tentou recusar, mas o

capitão era muito mais forte. Ele parecia um animal enfurecido

e, depois de dispensar seus soldados, disse:

– Eu sei do que e como gosta de ser tocada, sua imunda.

O capitão estava com a mão no pescoço de Shaara,

impossibilitando-a de reagir. Depois de rasgar-lhe as vestes,

violentou-a da maneira mais repulsiva já imaginada. Depois,

jogou-a como um monte de trapos velhos para o lado, e chorou

como uma criança desorientada. Shaara ficou em um canto,

tremendo e apavorada, sem saber o que fazer. Por fim, o capitão

falou:

– Quando foi decretado o pedido da sua prisão, fiquei

desesperado em saber que poderia perdê-la para sempre. Então,

corri como um louco para tentar resgatá-la antes que os meus

soldados a levassem. Mas chegando à sua casa, percebi que já

havia fugido. Fiquei louco e enfurecido. Pensei que havia fugido

com outro homem. Procurei-a por todos os cantos desta terra,

mas foi em vão. Eu mesmo disse a seu pai que a filha o tinha

abandonado e o traído, na esperança que ele a entregasse. Então,

depois de muito torturá-lo, seu pai suicidou-se dentro da prisão.

Sim, Shaara, seu pai morreu acreditando que era uma traidora.

Eu queria que ele odiasse a filha por traição e que sentisse na

pele o que é ser abandonado por alguém que se ama. Seu pai

confirmou-me a sua história em relação à minha mãe. Eu estava

louco pelo ódio e pela vingança, Shaara.

Eu não conseguia sentir pena do capitão. Ele era um

covarde, mas percebi que Shaara estava comovida, porque sentia

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 150 -

arrependimento naquele homem. Ela estava muito fraca, mas

prosseguiu com aquela conversa, dizendo:

– Edward, nunca o traí, nunca. Você foi um covarde em

punir meu pai daquela forma. Não sabe o que fez! As pessoas

cometem erros na vida, e o meu maior erro foi ter fugido e não

ter lhe contado toda a verdade.

O capitão Edward parou e ficou olhando Shaara,

parecendo não entender o que ela estava tentando dizer. Era

como se uma espécie de transe tivesse tomado conta daquele

rosto enfurecido.

– De qual verdade está falando?

– Do nosso filho, Güillian. Ele está na cela junto a uma

das mulheres.

De carrasco e inquisidor, tornou-se vítima de si mesmo.

Depois, caiu em desespero, chorando sem cessar. Num tom de

desabafo, ele disse:

– O que foi que eu fiz com a gente? Perdoe-me, Shaara...

Agi como um insano e agora nada posso fazer para reverter essa

história.

– Eu já o perdoei, Edward, nada mais me deve. Só lhe

peço que salve nosso filho! Como lhe disse certa vez, a nossa

consciência é nosso próprio algoz. Somos os únicos

responsáveis por nossos atos. Ninguém nos obriga a fazer nada.

– Machuquei-a, Shaara, e isso não tem perdão.

– Machucou-se a si mesmo, Edward. Quando me

violentou agora há pouco, era com você que estava fazendo

aquilo. Todo o mal que fazemos contra nosso próximo fazemos

contra nós mesmos. Prova disso é só olhar para você e ver como

está se sentido péssimo.

– Perdoe-me, suplico!

O capitão pôs-se de joelhos na frente de Shaara. Mas ela

lhe respondeu, friamente:

Adriana Matheus

- 151 -

– O perdão pertence somente a Deus. Minha palavra só

serviria de consolo, nada mais. Terá que dormir todos os dias

com isso em sua consciência. Mas sabe o que foi pior nisso

tudo, Edward? É que você fez tudo sabendo que estava errado.

Quem sabe se algum dia, quando meu aparelho reencarnar em

algum lugar próximo a você, terá a oportunidade de me rever

para que, juntos, possamos resgatar esse sentimento de maneira

mais verdadeira e humana. Até lá, espero de você apenas uma

coisa: salve o nosso filho.

– Acredita mesmo que haja outras vidas, não é?

– Sim, é claro que sim. Vivi esse tempo todo por causa

da minha esperança de que um dia iremos ter a chance de

resgatar essa história. Não podemos, Edward, acreditar que

exista apenas uma vida e nenhuma chance de corrigirmos nossos

erros. Se eu não acreditasse em reencarnação, eu o odiaria por

tudo que já me fez sofrer nesta vida.

– Se isso for verdade, então prometo que lhe encontrarei

onde quer que seja. Nunca mais amarei outra mulher. Será

sempre minha e serei seu. Mesmo que demore séculos, nunca a

deixarei até que, um dia, seja permitido que estejamos juntos.

– Meu Deus, Edward, não faça isso. Não nos castigue de

tal maneira. Temos que seguir em frente. Não nos amaldiçoe, ou

nenhum de nós poderá ser feliz. Liberte nosso espírito agora

mesmo dessa promessa; imploro-lhe, Edward. O universo e os

deuses são muito rígidos quanto a tais promessas. Não pode

prender nossos espíritos nessa jura inconsequente. Como

sempre, está precipitando as coisas, seguindo o seu emocional.

– Não quer que nos encontremos para sermos felizes?

Achei que ainda me amasse!

– Sim, quero, mas não com uma jura. Está impedindo a

si mesmo de ser feliz. Não poderemos sempre nos encontrar,

não é assim que funciona. Você pode ficar ate séculos

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 152 -

procurando-me e tornar-se um espírito obcecado por tal ideia.

Não quero que fique a vagar sem luz.

– Não me importo. Se assim for, farei isso até que eu

possa reparar o meu erro com você e poder viver o nosso amor

em paz.

– Desfaça agora essa promessa e essa jura, Edward, ou

nunca poderemos realmente ser felizes. Não vê o absurdo que

está fazendo, prendendo meu espírito ao seu por toda a

eternidade? Nunca seremos realmente livres. Pode acontecer de

ficar no vale dos esquecidos, sem que ninguém se lembre de

você. Ou poderá vagar sobre a Terra, perturbando por centenas

de anos, atrás do meu espírito e impedindo-me de ser livre em

escolhas. Isso me trará frustrações. Serei uma infeliz por não

saber o motivo de não ser amada. Temos que seguir o nosso

destino, Edward. O nosso tempo nesta vida já passou.

– Nunca farei isso. Só de pensar que poderei não vê-la de

novo enlouqueço. Não dividirei você com mais ninguém. Fui

um louco em fazer tudo que fiz. Pensei que, se a acusasse,

poderia achá-la e tê-la de novo só para mim, mas as coisas

saíram do meu controle. Não vou arriscar perdê-la para sempre.

Se essa for a única maneira, juro por toda a eternidade procurá-

la e nunca a deixarei até que estejamos juntos novamente.

– Não sabe as consequências de suas palavras. Elas são

piores do que qualquer um dos erros cometidos pela sua

ignorância ou pela falta de esclarecimento no assunto em

questão.

Nada do que Shaara fizesse ou falasse faria o capitão

Edward voltar atrás. Qualquer argumento foi em vão. Por meses,

capitão Edward visitou Shaara no cativeiro. Ele também tentou

revogar a sentença, mas seus apelos não foram ouvidos e nem

suficientes para apaziguar o que ele próprio fez. Ele havia ido

longe demais e os mexericos cresceram como bola de neve.

Adriana Matheus

- 153 -

Nem mesmo uma contraordem do Papa mudaria o destino de

Shaara naquele momento.

Engraçado como a maioria das pessoas só conseguem

enxergar seus erros quando eles não têm mais solução... Nos

últimos meses, o capitão Edward cuidou de Shaara, tentando

aliviar a sua culpa por sua amada estar passando por todos

aqueles sofrimentos. Durante os interrogatórios, ele também não

a deixava sozinha, pois sabia que Shaara seria massacrada pelo

carrasco e pelo interrogador. Houve horas em que o capitão já

não falava coisa com coisa, ele parecia estar certo de que Shaara

não seria condenada, mas isso era só mais uma fantasia em sua

mente. O capitão estava realmente ficando louco.

Foram feitas inúmeras perguntas a Shaara e às outras

prisioneiras. Algumas negaram tudo, para morrerem e serem

perdoadas de seus pecados. Pude observar nos rostos daquelas

mulheres uma tristeza maior do que a dor de serem torturadas.

Elas estavam perdendo a essência - isso, para uma bruxa, é a

própria morte. Havia horas em que as pobres mulheres

colocavam-se em uma espécie de transe e pareciam estar em

outra dimensão. Era como se a vida já tivesse esvaído de seus

corpos e só aguardavam serem enterradas, pois já estavam

praticamente mortas. Perder a identidade é perder a verdadeira

essência da alma para uma bruxa, e ter que mentir sobre a sua

origem é como entregar ao fogo toda a história de suas

ancestrais.

Para algumas, o perdão foi concedido depois de jurarem

nunca mais serem praticantes da magia. Mas elas não tinham a

liberdade de saírem à rua sem uma escolta. Houve muitos

suicídios por causa desse tipo de sentença, pois uma bruxa

jamais pode viver sem a sua liberdade.

Uma das mulheres do grupo, mesmo depois de ter

perdido seu marido e filhos para a Inquisição, negou o próprio

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 154 -

nome de batismo. Casou-se com um homem de posses com o

triplo de sua idade, apenas para não morrer sob tortura. Mas o

preço que ela pagou foi muito mais alto do que própria morte,

pois o homem a ofendia e a esbofeteava diariamente, obrigando-

a a comer as próprias fezes para provar que ela não era mais

uma de nós.

As torturas e as humilhações para quem não morria pela

Inquisição eram as mais abomináveis e cruéis possíveis. A

morte era só um consolo. Era como se o castigo pudesse

purificar a alma daquelas mulheres. Algumas se tornaram

concubinas e eram mantidas sob cárcere privado. Outras foram

obrigadas a trabalhar em tabernas, prostituindo-se com os piores

elementos já vistos. As mais jovens foram vendidas para as

beatas e faziam os mesmos serviços que os escravos. Ainda

eram obrigadas a manter relações sexuais com seus senhores às

escondidas de suas esposas. Quando descobertas, eram

torturadas até a morte e acusadas de sedução e luxúria através da

magia. Algumas perderam parte dos membros, como dedos dos

pés e das mãos, como a prova de que a parte endemoniada fora

arrancada para sempre.

Shaara estava com os dias contados. Por isso, entregou a

sua alma a Deus. Passava horas a orar e todo dia pedia auxílio

aos espíritos de luz, para que a guiassem para perto do

esclarecimento quando o seu espírito tivesse que deixar o

aparelho transitório.

Shaara nunca negou suas origens e, vendo aquela tão

devotada fé, o capitão Edward passou a crer no espiritismo, mas

não abriu mão da jura de me encontrar e não me deixaria ficar

com mais ninguém em outra encarnação.

A preocupação de Shaara com o capitão Edward era

porque ela sabia que ele não a deixaria em paz e sofreria com a

sua morte mais do que o esperado. O capitão não conseguia

Adriana Matheus

- 155 -

perceber que só Deus era o dono do destino e que ele, fazendo

tal jura, poderia ficar preso entre dois mundos, caso não a

desfizesse antes que Shaara fosse morta.

Lembrei-me das palavras de Cristo quando disse Pai,

perdoa-lhes porque não sabem o fazem...

O inquisidor, a pedido do bispo, foi deposto de seu cargo

de origem, pois foi considerado incapaz de julgar e dar a

sentença de Shaara. O novo inquisidor, nomeado para ocupar o

lugar do capitão Edward, chamava-se Cerenzo de La Pena. Um

homem gordo e muito alto, cuja presença lembrava a própria

morte e seu olhar fulminava-nos vivos. O senhor Randolf de La

Concita, nomeado como carrasco, tinha mais crimes do que o

próprio diabo tinha almas.

Um vigário também foi mandado para a prisão por

suspeita de manter contato com bruxas. O pobre homem era um

senhor de quase oitenta anos. No mínimo, já não tinha mais

nenhum serviço a prestar à ordem do vaticano. Durante seu

interrogatório, ele disse que não precisava do perdão da Santa

Madre Igreja, pois não havia cometido crime algum.

Naquele mesmo ano, pouco antes de Shaara morrer,

cento e cinquenta pessoas, entre homens, mulheres e crianças,

foram condenadas à morte por tortura. Durante o julgamento de

Shaara, ela também disse que não tinha nada por que pedir

perdão, e que não havia cometido nenhum crime para que fosse

condenada à fogueira - o que causou alvoroço dentro do tribunal

do júri. Indignado, o juiz disse:

– Como pode uma bruxa achar que não tem que se

redimir dos seus crimes?

– Padre, curei os doentes com lepra e outras doenças que

os seus doutores não se atreviam a examinar, porque achavam

que as suas mãos eram limpas demais para tocá-los. Existiam

pessoas entre nós que sua sociedade excluiu, simplesmente por

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 156 -

serem pobres mal cheirosos e maltrapilhos. Pessoas como os

judeus, que vieram de outro país, procurando fugir de gente

como o senhor, que se diz homem de Deus, mas cuja piedade

afastou do próprio coração.

– Cale-se, sua insolente! Com que mérito curou os tais

doentes? Usou, por certo, os poderes que o demônio lhe

ofereceu para cegar esses pobres coitados. Ande, bruxa infeliz!

Confesse logo para que eu vá atender a quem realmente merece.

– Não precisa mais perder o seu tão valoroso tempo

comigo, excelência. Tem razão de chamá-los de pobres

coitados, pois são mesmo. Afinal, foram banidos do meio da sua

sociedade. E quanto a confessar, só confesso a Deus. Mas se

quer que eu diga quem sou, digo sem o menor problema: sou

uma bruxa e morrerei afirmando isso, mas nunca serei hipócrita

de me fantasiar com uma batina para me posar de santa diante

dos meus fiéis.

– Blasfêmia! Seu Deus é Satã. Levem essa maldita filha

do diabo daqui! Que queime em uma fogueira em praça pública,

para que todos saibam que ela mesma aceitou o demônio como

o seu único Deus.

No dia vinte e nove de abril do ano de 1725, às seis

horas da tarde, Shaara foi declarada bruxa pela Inquisição e a

sua sentença foi a fogueira. Sem poder questionar o menor

argumento para a defesa, Shaara baixou a cabeça e manteve-se

em silêncio.

No meio da grande praça, as pessoas gritavam como

loucas. Algumas atiravam objetos pontiagudos, como pedras.

Outras pronunciavam palavras de baixo calão.

Shaara olhou tudo ao redor e percebeu que era muito

grande o número de pessoas que assistiria à sua morte. A

maioria delas era praticamente a mesma que a conhecia desde

criança.

Adriana Matheus

- 157 -

Um homem que estava entre o júri sussurrou ao ouvido

de Shaara, pedindo que ela gritasse por clemência, para que pelo

menos a sua alma se salvasse. Ela, porém, nada disse ou

murmurou.

Shaara, em seu momento de dor, sentiu piedade dos que

estavam à sua volta e, em pensamento, pediu perdão por eles.

O inquisidor leu toda a sentença e acusou Shaara de

traição, conspiração, bruxaria e de práticas demoníacas. Um

homem encapuzado levou-a pelos cabelos para um tronco, no

meio da fogueira.

Os direitos de Shaara foram citados em voz alta, como se

ela tivesse direito a alguma coisa de verdade... Os direitos

citados foram:

–Tem o direito de dizer uma última palavra antes de ser

executada. Diga rápido, antes que eu resolva antecipar seu

destino em alguns minutos.

– Quero falar com o capitão Edward. Chamem-no para

mim, por favor!

O inquisidor e o carrasco entreolharam-se, mas

concordaram em chamar o ex-capitão e ex-inquisidor. Enquanto

isso, Shaara pronunciou:

– Se sou culpada por tantos crimes, por que não

conseguiram achar em mim culpa suficiente para me

condenarem? Precisaram da ajuda de um inquisidor para dar

minha sentença? Por que precisaram tirar proveito dos

mexericos de senhoras mal amadas para me acusarem de algo

leviano e fictício? Por que Sir Edward foi afastado do cargo de

inquisidor? Será que foi por que ele próprio percebeu que estava

cometendo um grave erro?

– Ele estava enfeitiçado, sua bruxa suja - gritou uma voz

no meio da multidão.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 158 -

– É, sou mesmo uma bruxa, e estou muito suja porque

me negaram todos os direitos de um ser humano. Até o direito

de tomar um banho para morrer com dignidade, sabe, Sir

Williams? - disse Shaara para aquela voz.

Shaara prosseguiu seu discurso:

– Quando o senhor contraiu certa doença, por viver

andando em bordéis, foram as minhas ervas que o salvaram da

morte. Não lhe cobrei uma única prata sequer. Assim como o

senhor Williams, muitos de vocês foram à floresta em busca de

sortilégios e curas. Muitas vezes me neguei a fazer seus

sortilégios, porque jamais uso minha sabedoria para separar

pessoas ou matar alguém. Só quis viver em paz. Todos aqui

presentes, principalmente as mulheres, não são vistas com bons

olhos, pois não podem expor livremente suas emoções. Todas as

mulheres aqui vivem de cabeça baixa e são humilhadas pelos

homens desta maldita sociedade. Acolhi, sim, malfeitores,

mulheres espancadas e até prostitutas. Por que eu não faria isso?

Curei as feridas de todos os doentes que me procuraram, até

mesmo dos leprosos. Fiz um trabalho de humanidade e caridade

e amei o próximo, como Jesus. Lembram-se? Amai-vos uns aos

outros, como eu vos amei. E vocês, o que estão fazendo consigo

mesmos? Assassinam pessoas inocentes todos os dias só por

elas não serem como vocês querem. Seus amigos, vizinhos e

parentes estão sendo exterminados de maneira brutal e

desumana. Haverá um dia em que não terá mais ninguém para

que apresentem em praça pública esse espetáculo de horror.

– Blasfêmia! - gritaram do meio da multidão, de novo.

– É, pode ser uma blasfêmia mesmo. Afinal, é mais fácil

achar que seja uma blasfêmia do que aceitarem que estão

errados. Mas e a senhora, Dona Esmeralda, que deixou seu

único neto ser amarrado a quatro cavalos e ser partido ao meio

Adriana Matheus

- 159 -

só porque ele gostava de poesias? Ser uma pessoa gentil o torna

afeminado?

– Ele era afeminado e estava sob o efeito do poder

maligno do demônio. Fiz isso para libertar a alma dele. –

respondeu Dona Esmeralda.

– Meu Deus, ele só tinha quatorze anos! Era uma criança

que gostava de ler romances e contos de fadas. Quem vai fazer

agora o serviço da sua casa, já que está em idade avançada? Sei

que não é uma mulher de posses e não pode ter o luxo de

comprar um escravo para ajudá-la. Será que também os demais

aqui não lhe queimarão viva? Afinal, em que uma senhora com

idade avançada pode ajudar a sociedade?

A velha senhora baixou a cabeça com tristeza e retirou-

se do meio da praça. Shaara prosseguiu:

– Se um filho nasce defeituoso, é mais fácil afogá-lo do

que amá-lo? Quem são os demônios aqui? Onde está o mal? Eu

digo: está nos corações amargos e revoltados de pessoas

covardes, que preferem se esconder por trás de histórias e

mexericos para encobrir o próprio erro. Não seria hora de sanar

toda essa loucura e começar a amar a seu próximo, sem tentar

achar seus defeitos ou qualidades em demasia? Quando amamos

alguém, devemos amá-lo como é. Se tentarmos mudar as

pessoas, quando discutirmos com elas, estaremos discutindo

com o reflexo que criamos de nós mesmos. Somos responsáveis

por tudo aquilo que praticamos ou criamos. Brigamos ou

condenamos o próximo porque é mais fácil do que olhar para

dentro de nós mesmos e achar nossas próprias falhas.

Deveríamos olhar o mundo de uma maneira mais inocente,

como as crianças. Mas estamos transformando, cedo demais,

meninas em mulheres, querendo que elas se casem com homens

mais velhos e cheios de posses, para garantirem o nosso próprio

futuro e nossa velhice. Queremos que nossos filhos se tornem

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 160 -

doutores ou soldados, e estamos esquecendo que estamos

separando nossa família de maneira discreta e sutil. Entre vocês,

morrerão sozinhos por causa desse egoísmo e ganância. Lógico,

todos nós temos que seguir o nosso caminho um dia. Mas

devemos também ter o direito à escolha. Seus Natais solitários

poderiam ser repletos de alegria, se houver mais concordância e

união. Suas vidas poderiam ser muito melhores se

cumprimentassem seus vizinhos sem os desdenhar. Se ao invés

de tomarmos conta da vida alheia, fizéssemos um bolo,

estaríamos muito bem de vida. Todos nós viemos nesta vida

para aprender e temos por obrigação deixar algumas coisas para

que alguém também aprenda conosco. As pessoas não são lixo,

ou coisas velhas que jogamos fora quando não nos servem mais.

Quando me queimarem, vai doer e sangrarei como sangraria

qualquer um de vocês. Talvez eu só tenha jogado pérolas aos

porcos, e nem tenha feito por todos o que eu deveria ter feito. Só

sei de uma coisa: com certeza, nunca mudei minha essência.

Nunca deixei de acreditar nos meus sonhos, e sempre lutei pela

igualdade de liberdade de todos. Até dos que me condenam.

– Está tentando nos ludibriar! - gritaram novamente.

– Não estou. Muito pelo contrário, prefiro ser queimada

a ter que viver no meio de uma sociedade hipócrita e ignorante

como essa. Só não esqueçam que, assim como aconteceu

comigo, pode acontecer com qualquer um que se julgue perfeito.

Se o marido de uma de vocês, mulheres, resolver trocá-la, é

mais fácil que ele invente fuxicos e digam que são bruxas.

Assim, enquanto forem queimadas, eles se deleitarão com as

amantes.

Muitas pessoas saíram, principalmente mulheres.

– Calasse, queimem-na! - gritou o restante da multidão.

O inquisidor leu rapidamente a sentença, já lida antes. O

carrasco jogou-lhe um líquido, parecia querosene, e ateou fogo.

Adriana Matheus

- 161 -

– Queime rápido, bruxa! Meus cães estão esperando por

seus ossos para o desjejum - gritou o dono da taberna.

– A fumaça sufocava Shaara. Seus pés começaram a ser

atingidos pelas chamas. A dor era inigualável. E, do meio das

chamas, Shaara viu quando o capitão Edward levantou o

pequeno Güllian no meio da multidão. Dos olhos de Shaara

escorreram o mar da sua alma. E ela simplesmente sorriu, por

saber que seu filho estaria salvo. Com o filho nos braços, o

capitão Edward gritava, desesperado:

– Vou me encontrar com você, Shaara.

Os gritos do capitão foram levados com Shaara, junto

aos últimos pensamentos. Pude sentir cada pedaço do corpo da

minha ancestral sendo queimado. Aliás, foi muito difícil manter-

me inerte durante toda aquela viagem. A dor que Shaara sentiu

era tanta que vi quando o seu espírito implorou para ser

desligado do aparelho dela. Então, parei de sentir frio e o calor

que queimava Shaara ao mesmo, e pude perceber que ela havia

deixado o plano terrestre. Os gritos de Shaara ecoaram com o

vento. Toda a multidão foi, aos poucos, desfazendo-se. A vida

voltaria ao normal, mas aqueles habitantes teriam muito o que

comentar durante muito tempo.

O capitão Edward voltou para a Inglaterra e lá viveu,

levando uma vida modesta com o filho Güllian. Como prometeu

a Shaara, nunca parou de tentar encontrá-la.

Chorei como uma criança e fui acalentada por Dona

Helena, que estava ao meu lado, segurando a minha mão. Todos

os que estavam na floresta vieram me saldar. Alguns estavam

apagando a fogueira, mas acenavam para mim, com satisfação.

Então disse, orgulhosa e em lágrimas:

– Shaara Méquiz era o nome de minha ancestral. Ela foi

uma bruxa, considerada assim por ter recebido um dom divino.

Foi diferente de todas as outras mulheres e não deixou nenhum

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 162 -

homem ou ninguém roubar sua essência. Foi a mulher mais

corajosa e capaz de qualquer coisa que eu já havia conhecido.

Como ser humano, abriu mão de todo o poder e fortuna para

cuidar dos pobres e doentes de seu tempo. Filha da condessa

Elizabete Dornellas Méquiz e do conde Juan Gonzáles, mortos

por causa da ganância, da inveja e do ódio. Ela teve um grande

amor, que foi o capitão e inquisidor senhor Edward III, morto

em batalha contra a Inquisição, onde defendeu o direito das

bruxas de serem livres. O capitão Edward III arrependeu-se dos

erros que cometeu contra o seu único amor, e passou a lutar ao

lado dos rebeldes, em prol da liberdade dos escravos e de outros

que considerasse injustiçados. Shaara era uma pessoa

incrivelmente forte e dedicada a causas consideradas

impossíveis. Ela foi o que eu quero ser agora. Edward III foi o

ancestral do monge dos meus sonhos, pois durante a viagem o

reconheci. Agora sei porque ele me persegue nos meus sonhos.

Foi por causa da jura que ele fez no passado de me encontrar

onde quer que eu esteja. De alguma maneira, sei que iremos nos

encontrar nesta vida. De alguma maneira, tenho certeza de que

iremos nos encontrar muito em breve.

Dona Ana estava atenta a tudo que eu contava e, por fim,

perguntou:

– Por que acha que esse homem a persegue até em seus

sonhos?

– Porque ele fez a única coisa que não nos é permitido

pela lei da natureza. Jurou-me amor eterno, prometendo-me

procurar por toda a eternidade. Disse que jamais me deixaria em

paz, enquanto não pudéssemos viver verdadeiramente nosso

amor.

Falei aquelas palavras olhando para Bernadete, pois

passei a entender perfeitamente o que ela havia me dito antes. E

dei continuidade àquele assunto, dizendo:

Adriana Matheus

- 163 -

– Estou selada por toda a minha vida. Tenho que o

encontrar e fazê-lo entender que isso nunca poderia ter

acontecido. Só espero que ele seja uma pessoa com mais

esclarecimentos, pois o capitão Edward sofreu muito com suas

lembranças tortuosas. Ele foi o único culpado por seu amor ter

sido queimada na fogueira. Após sua morte, jamais aceitou a

orientação dos espíritos de sabedoria. Por fim, desejou

reencarnar-se de novo. Mas isso foi só um protesto, pois

manteve a sua jura no coração. Sei que ele anda por aí,

procurando-me de alguma maneira. Por isso, nunca consegui

gostar de ninguém. Por isso eu achava que o amor verdadeiro

não existia. Minha vida nunca iria ter sentido. Sou grata a todas

por compartilharem comigo todos os seus segredos, por me

encaminharem ao mundo onde descobri minha verdadeira

identidade. Realmente voltei muito mais madura e confiante em

mim mesma. Sei agora que ninguém pode mais me humilhar, a

não ser que eu permita. Não vou deixar mais ninguém ser mais

do que eu, pois sou parte do universo.

Todos os que estavam à minha volta, inclusive minha

amada Maria, deram um sorriso de alegria. Dona Ana, depois

de ouvir atenta e satisfeita tudo o que eu contava, prosseguiu:

– Meus parabéns, minha filha! Aprendeu muito em sua

viagem. Agora tem que se preocupar com seus compromissos

espirituais e deve preparar para conhecer o seu amor. Saiba que

não será fácil, pois ele é um monge, e o amor de uma mulher,

ainda mais com dons como o seu, nunca lhe será permitido.

– Sim, eu sei. Também não será nesta vida que

viveremos o nosso amor com liberdade. Mas o mais importante

é fazê-lo ver que precisa retirar a jura, para que possamos seguir

nossos caminhos em paz.

Fizemos uma oração para nos preparamos para a minha

volta à casa do moinho. Sentia-me renovada espiritualmente. Eu

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 164 -

havia recebido um compromisso do universo. Eu tinha que

vigiar os meus pensamentos para que não se tornassem palavras,

pois palavras mal direcionadas machucam as pessoas.

Muitas vezes, devemos conter nossos impulsos antes de

sermos sinceros, porque as pessoas nem sempre estão

preparadas para a verdade. A sinceridade está dentro de nossos

corações. Na verdade, a sinceridade de alguns é pura maldade e

só serve para machucar o próximo. O silêncio é sempre um sinal

de sabedoria e respeito. Isso foi o que aprendi com a minha

viagem.

Saímos em direção à casa do moinho. A noite estava

silenciosa e, no caminho, fui aprendendo a respeitar o silêncio

da floresta: era um sinal de individualidade e oração. Engraçado

saber que tudo ao meu redor tinha o seu momento de falar... A

floresta ensinou-me a lei do respeito e do silêncio; os animais, a

obediência e a liberdade. As flores ensinaram-me que o amor

pode estar em todos os lugares, na forma mais simples e bela

possível. As pessoas ensinar-me-iam todos os dias, com sua

inconstância e individualidade, que vale a pena lutar por uma

maneira de viver melhor. Aprendi comigo mesma que, todos os

dias, tínhamos coisas para aprender. Ao chegarmos à casa do

moinho, tomei um bom banho para tirar o cheiro de fumaça e a

fuligem que estavam impregnados em mim. Maria entrou e

ajudou-me a vestir. Como estávamos sozinhas, ela perguntou:

– E então, como está a mais nova discípula da

confraternização da Lua?

– Estou muito bem, não poderia estar melhor. Estou

apenas um pouco ansiosa para começar o meu trabalho como

aprendiz de bruxa.

Maria acompanhou-me até a cama e, depois de me

cobrir, falou:

Adriana Matheus

- 165 -

–Tenha calma, minha amiga. Sua viagem foi perfeita e

bastante reveladora. Daqui para frente, tudo será apenas

consequência de suas novas experiências e de seus atos. Por

isso, lembre-se sempre de refletir antes de tomar qualquer

decisão. Pense bem antes de falar alguma coisa sem ponderação.

Pois palavras também se transformam em atos, e alguns atos

catastróficos são o resultado de atitudes impensadas, levianas,

incoerentes e revoltosas.

Maria baixou a cabeça, em sinal de agradecimento. Com

um sinal ainda misterioso para mim, abençoou-me. No mesmo

instante, senti que o sono havia chegado de imediato. Foi quase

como uma hipnose. Simplesmente não pude ver mais nada.

Naquela noite, dormi como nunca havia dormido em toda a

minha vida.

“Felizes aqueles que tiveram compreensão de

reconhecer os seus próprios erros. Essa é uma virtude que faz o

ser humano grandioso. A caridade é também uma forma de bem

comum, mas tudo isso deve ser feito sem interrogações ou

especulações. Pois o maior dom divino está em ouvir e servir

com humildade, sem querer saber a quem fazemos o bem.”

.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 166 -

III - O LIVRO DAS SOMBRAS

spreguicei na cama, esticando bem os braços. O Sol

entrava pela janela harmoniosamente. Percebi

movimentos no quarto e levantei a cabeça para ver quem

era. Maria estava arrumando as malas para o nosso retorno para

casa. Decidi ficar mais um pouco na cama, pois precisava pôr as

minhas ideias em andamento.

Durante aquela noite, tive sonhos que mudariam minha

vida. Sonhei com todas aquelas bruxas que estiveram presentes

na minha viagem, inclusive a minha ancestral. Elas vieram em

meus sonhos para me mostrar os símbolos e a história da magia.

Eu precisava contar para Maria, mas teria que ser prudente, pois

as bruxas do meu sonho não me deram permissão para que eu

contasse alguns segredos que elas me revelaram.

O sonho que tive deu-me a sensação de ser real.

Participei de uma espécie de cerimônia religiosa, e as bruxas

fizeram-me jurar que guardaria segredo de algumas coisas que

me foram reveladas. Sonho ou realidade, eu não poderia trair

minhas irmãs de alma, pois me tornei parte de um grande clã.

Nunca me arrependi de ter escolhido o caminho da Lua como

uma opção de vida. Ter-me tornado uma bruxa foi uma grande

E

Adriana Matheus

- 167 -

honra. Eu estava pronta para assumir qualquer responsabilidade

que surgisse.

Mas, por outro lado, tinha a certeza de que, se eu traísse

as leis da ordem, pagaria um preço muito alto. A minha maior

preocupação naquele momento foi de, sem querer, trair a mim

mesma. Porque conseguimos esconder segredos das outras

pessoas, por uma questão de ética, moral e fidelidade – mas,

sem querer, por causa da nossa vaidade, traímos a nós mesmos.

Isso acontece porque, atrás da nossa felicidade, sempre vem o

exibicionismo de querer parecer melhor do que os outros. O

meu sangue jovem corria em minhas veias como as larvas de um

vulcão pronto para explodir. Minhas emoções estavam à solta -

isso poderia ser perigoso, caso a vaidade tomasse conta de mim.

Sabia que, se contasse a Maria, poderia com certeza

contar com a sua discrição. Mas eu havia feito um juramento de

silêncio e não poderia nunca quebrá-lo. Isso sem contar que

Maria poderia falar sobre o meu segredo com o meu pai, caso

ela fosse interrogada. Pois, assim como eu, ela fez o juramento

de nunca mentir. Portanto, de jeito algum eu poderia colocar a

vida da minha melhor amiga em risco. O meu maior objetivo,

então, passou a ser como proteger Maria sem que ela soubesse e

ficasse magoada comigo, por estar lhe escondendo um segredo.

Meu tempo estava curto, pois meu destino estava pronto

a se consumar. Senti-me como o mestre Jesus, que soube

exatamente quando iria ser entregue nas mãos de seus algozes.

A traição é uma ferida que chega antes que o coração pare de

funcionar, e faz doer na alma por toda a eternidade. Não sabia

quem iria me trair, mas sabia que seria alguém muito próximo a

mim. Porque sempre quem nos trai são as pessoas mais

próximas de nós, as que mais amamos e em quem confiamos.

Pessoas como Judas Escariotes, que traiu Jesus com um beijo.

Geralmente, os traidores são pessoas que só conseguem ver um

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 168 -

lado da moeda, e cuja ambição é o único valor que conseguem

enxergar. O traidor é individualista: maquina sozinho e não pede

ajuda para enfiar o athame do ódio no coração do seu alvo. E é

egoísta porque não vê que o seu próximo também é um

indivíduo e que merece respeito por ter suas próprias ideias.

De repente, senti-me frágil e indefesa por ter me

descoberto tão perto da morte. Esse seria o meu preço a pagar:

teria que viver no silêncio e na solidão para o resto da minha

vida. Embora sempre tivesse sido uma pessoa solitária, agora

era diferente. Pois eu guardava segredos que, se pronunciados

em voz alta, colocariam em risco a vida de todos que eu amava e

também de todos que me cercavam.

Tinha muitas ideias a serem colocadas em prática, mas

tinha que ser cautelosa, porque, além de o tempo estar curto,

poderia acabar sendo mal interpretada pelas pessoas próximas a

mim. Quando nossas ideias e opiniões tornam-se diferentes das

ideias e opiniões dos demais, podemos ser considerados loucos.

O que não quer dizer que temos que seguir a regra da mesmice -

afinal, a única opinião importante é a da nossa consciência.

Sabia que teria que trabalhar também o meu ego. Não

poderia deixar a vaidade tomar conta de mim. Mas,

principalmente, teria que dominar o medo do que as pessoas

poderiam dizer a meu respeito, pois sabia que elas diriam que eu

estava possuída por um espírito imundo e maligno. Na verdade,

as pessoas fazem esse tipo de coisa para tentar encobrir os seus

próprios delitos, e sempre encontram alguém para lhes servir de

Cristo. Pois é muito mais fácil seguir um padrão ético e moral

para não contradizer os ditadores de regras, do que aprender a

pensar por si próprio.

Pensando em todas aquelas consequências, estava decida

definitivamente a proteger Maria. Sabia que minha melhor

amiga também não seria poupada pela Inquisição e por todos

Adriana Matheus

- 169 -

aqueles que se julgavam sem mácula. Se os adeptos da Santa

Madre Igreja colocassem as mãos em Maria, por certo a fariam

confessar coisas que ela nunca havia feito, deixando para ela

apenas a morte como opção de salvação.

Fiquei olhando-a, em silêncio, enquanto ela arrumava as

malas para o nosso retorno. Ela era mesmo muito especial, pois

sempre se dedicou à minha família e cuidou de mim, sem nunca

sequer pensar em nos abandonar. Maria abdicou de toda a sua

juventude e de seus sonhos. Sabia que ela era merecedora de

toda a felicidade do mundo e, por isso, senti-me na obrigação de

ajudá-la de alguma maneira. Nunca poderia pensar em deixar

Maria ser prejudicada pela decisão que eu teria de tomar em um

futuro próximo.

Ela terminou de arrumar as malas e saiu do quarto.

Parecia não ter percebido que eu estava acordada - o que me deu

tempo para escrever, no meu diário, todas as coisas que eu havia

aprendido com as bruxas durante o sonho. Assim que Maria

fechou a porta do quarto de Bernadete, peguei o diário e fui

folheando aquelas páginas aparentemente vazias, para que a

inspiração me fluísse à mente. Ao abri-lo, fiquei maravilhada

com a luz que saiu de dentro dele e que quase me deixou cega.

Por certo Bernadete não sabia, mas seu avô estava com

razão ao dizer que o diário era mágico. A cada página que eu ia

folheando, ele me dava, por si só, as figuras e os desenhos que

ajudaram com que eu me lembrasse do meu sonho quase

acordada da noite anterior. Era como se ele lesse as imagens que

estavam na minha mente. O diário era pequeno, mas suas

páginas pareciam nunca acabar. Por trás daquela aparência

singela e humilde, ele respondia todas as minhas perguntas de

uma maneira sábia e simples.

Na verdade, todos aqueles segredos que me foram

revelados em sonho já estavam guardados dentro do meu

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 170 -

inconsciente. Apenas se afloraram quando regressei da viagem.

Aprendi, com isso, que todos temos dentro do nosso

inconsciente as memórias das nossas vidas passadas. Todos

temos, por obrigação, que tentar lembrar ao menos alguns

desses fatos que nos ocorreram, pois eles nos ajudam muito no

nosso presente.

No meu sonho, as bruxas também me mostraram o maior

de todos os livros já escritos pelas mãos de um místico: o livro

das bruxas, também conhecido como o livro das sombras ou

livro dos feitiços. O meu diário era mágico e, na medida em que

ia me tornando mais íntima dele e merecedora de sua confiança,

ele ia me mostrando alguns dos segredos que existiam dentro do

grande livro das sombras. Tais segredos nunca haviam sido

revelados a nenhuma outra bruxa antes.

O livro das sombras havia sido escrito por um dos

magos mais poderosos de todos os tempos, cujo nome nem

mesmo em meus sonhos tive autorização para pronunciar, pois

era um nome tão poderoso que poderia abrir as portas do tempo.

A capa do grande livro era feita de madeira de lei, e ossos

polidos foram usados para fazer a sua fechadura. O livro era

forrado por uma couraça misteriosa, parecia couro de um

dragão. Suas folhas eram feitas de papiro e já estavam muito

amareladas e sensíveis devido ao tempo. Foi de grande valia ter

descoberto que esse livro - também um documento histórico -

desapareceu misteriosamente. Com o passar dos anos, muitos de

meus ancestrais desistiram de procurá-lo, porque, em torno do

seu desaparecimento, sugiram lendas de que o grande livro era

protegido por forças ocultas malignas, e seu conteúdo só poderia

ser lido por alguém muito especial e de coração muito puro.

O livro das sombras era a coisa mais incrível que os

meus olhos já poderiam ter visto. A chave do grande livro foi

feita toda de ouro maciço, cuja forma era de uma estrela de seis

Adriana Matheus

- 171 -

pontas. Esse livro tinha oitocentas páginas de pura sabedoria e

cultura milenar. Seus muitos símbolos e a sua tradução eram

quase impossíveis de serem lidos, pois era escrito em uma

língua muito antiga e estranha, chamada aramaico. Uma língua

somente usada nos tempos de Jesus Cristo. Os símbolos e

fórmulas que a mim foram revelados, embora muito antigos, não

me eram totalmente estranhos. Aliás, o livro, de alguma

maneira, pareceu-me muito familiar. Talvez em alguma outra de

minhas encarnações ele já tivesse sido manuseado por mim.

Naquela manhã, especificamente, considerei-me uma

pessoa especial por ter recebido das minhas ancestrais tanta

informação e tanta sabedoria, e por também ter ganhado aquele

diário maravilhoso. Só tinha a agradecer aos céus e aos deuses

por terem me cedido a honra de ter conseguido tantos amigos

especiais e generosos.

Precisava contar aquele fato novo sobre o diário a

Bernadete. Não queria esconder da minha mais nova amiga que

o presente que ela havia me dado com tanto carinho tinha

aqueles poderes extraordinários. Sentir-me-ia uma traidora se

escondesse esse fato dela.

Escrevi no meu diário tudo o que achei necessário contar

para as minhas gerações futuras. Mesmo que houvesse

mudanças no tempo, minhas irmãs também precisavam saber

que, no meio de tanta dor e preconceito, ajudamos de alguma

maneira a escrever a história de uma nação. Queria que elas

soubessem, também, o valor de uma amizade verdadeira e que,

embora não pudéssemos voltar no tempo, sempre temos a

obrigação de encontrar o nosso verdadeiro amor - mesmo que,

para isso, tenhamos que nos abdicar de uma vida feliz ao lado

dessa suposta pessoa. Pois, como já citei, ninguém pode ser

obrigado a nos amar. Ressalto, ainda, que o amor pode aparecer

em nossas vidas de várias maneiras, podendo ser ele um parente

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 172 -

próximo, um grande amigo ou até um desconhecido que por nós

tenha uma grande afinidade. Mas uma coisa é certa: temos que

aprender a reconhecê-lo e aceitá-lo da maneira com que nos for

encaminhada, sem tentar forçar nada através de um sortilégio.

O maior perigo de um sortilégio é não pensar nas

consequências que pode ocasionar: talvez uma verdadeira

catástrofe futura na vida de uma pessoa que, muitas vezes, é

inocente. Convenhamos: se uma pessoa nos fez algum mal, por

que temos que pagar tudo com a mesma moeda? Estamos nesta

vida para nos aperfeiçoar. Tudo na vida tem um preço. Por isso,

não é necessário usar magia para fazer uma vingança. Ao

consultar uma bruxa, tenha certeza do que realmente seu

coração quer. A magia não pode e não deve ser usada para

vingança, vaidade, ou um mero capricho. É por isso que uma

bruxa só deve fazer um feitiço para um consulente que

realmente saiba o que quer - o que raramente acontece, pois os

seres humanos são muito indecisos e inconstantes em suas

vontades e decisões.

O preço para quem usa a magia inadequadamente é a

solidão. É aconselhável nunca fazer um sortilégio de amor,

porque, muitas das vezes, os consulentes podem simplesmente

estar envolvidos pela emoção passageira. Ou o que é pior: pelo

capricho e pela arrogância de terem sido desprezados por seus

supostos companheiros. Toda pessoa que pede um sortilégio é

uma pessoa incapaz de conquistar por si só qualquer coisa ou

alguém. Ou o que é ainda pior: pode estar com o seu orgulho

ferido. Pode, também, ser uma pessoa muito ansiosa - o que

atrapalha o sortilégio, em todos os sentidos. Portanto, a bruxa

deve ser conhecedora de todos os poderes da magia, e também

deve tentar sondar para saber se o consulente é uma pessoa

apenas movida pela vingança ou se é uma pessoa sincera e

realmente necessita ajuda.

Adriana Matheus

- 173 -

Qualquer sortilégio é muito perigoso, pois devemos nos

lembrar de que estamos interferindo no destino de alguém.

Ressalto, ainda, que, se não houver um pouquinho de sentimento

da outra parte, o sortilégio não funciona. Sem contar que a

pessoa pode estar muito bem amparada espiritualmente - ou

seja, pode ter uma fé inabalável. Esse tipo de situação pode

atrasar o sortilégio, ou o relacionamento que o consulente já

tenha com o seu suposto parceiro pode ser desmoronado.

Na hora em que um feitiço é feito, a paciência do

consulente é testada. Um sortilégio pode demorar até anos a se

realizar, mas nunca falha. Basta que o consulente saiba que o

tempo dos espíritos não é o mesmo que o nosso. Com isso, o

consulente pode acabar achando que, pelo fato de o feitiço estar

demorando, ele não irá funcionar. Não devemos nunca nos

esquecer que um fiel consulente pode se virar contra a própria

bruxa de quem pediu ajuda - por simplesmente achar que ela

nada fez por ele, ou simplesmente por medo de ser considerado

um adorador do diabo pela Inquisição. Portanto, todo cuidado é

pouco. Tudo é um risco.

Na verdade, toda e qualquer pessoa tem que ser

esclarecida de que mexer com o destino de alguém, além de ser

perigoso, é arriscado. Pois, com isso, estamos aprisionando o

anjo da guarda dela. Não creio que aprisionar anjos seja uma

boa ideia, pois os anjos são generosos e bons, mas podem ser

vingativos quando irados. Como já disse antes, toda moeda tem

seus dois lados. Isso se aplica fielmente à magia.

Um consulente nunca deve, por si, tentar fazer um feitiço

- seja ele para o bem ou para o mal. Deve sempre pedir ajuda de

uma bruxa ou de um mago, pois são pessoas preparadas para

lidar com as forças ocultas.

As pessoas dizem algo muito peculiar da fé: que ela,

aliada à coragem, pode mover montanhas. Já eu, digo que o

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 174 -

medo muitas vezes nos impede de cometer um terrível engano.

Ser corajoso nem sempre é o caminho. Pois, no ímpeto e na

ansiedade de vencer, o consulente não percebe que a faca afiada

do inimigo o espera na retaguarda. Acredito que até mesmo os

grandes heróis tiveram medo, e isso com certeza os fez pensar

em uma estratégia de vitória. Nesta vida, temos que ter a ciência

de que há tempo para tudo, inclusive o tempo de refletir sobre as

nossas prováveis ações. Prejudicar espiritualmente uma pessoa é

garantir que ela, após sua morte, se torne nosso algoz. A mesma

pessoa pode nos perseguir até a nossa próxima encarnação.

Embora não tivesse me permitido contar sobre todas as

coisas que me foram ensinadas pelas bruxas do meu sonho,

espero ter conseguido passar para as minhas irmãs uma rápida

ideia do que realmente é ser uma bruxa. E que elas passem para

as suas futuras gerações a grandeza e a honra de terem nascido

com um dom especial. Espero que minhas irmãs façam uso dos

poderes que lhes foram dados com muita sabedoria, e que elas

sempre lutem pelo direito de liberdade de expressão e de

religião.

Algumas das coisas que aprendi com a minha ancestral e

com as bruxas, através do meu sonho, estão nessas linhas. São

coisas como os símbolos tradicionais da boa magia e os seus

significados, entre outras coisas que achei serem muito úteis

para as futuras bruxas. Achei interessante começar pelo livro das

sombras, pois muitas bruxas não sabiam como usá-lo e para que

realmente ele servia.

O Livro das Sombras é um diário usado por praticantes

da magia em rituais místicos. É como o diário de bordo de um

navio: indispensável, irrevogável, individual e intransferível. É o

manual da bruxa, o seu tricô, a sua essência. Só deve ser escrito

pela própria mão do praticante e deve ser escolhido com carinho

Adriana Matheus

- 175 -

e seriedade. Eu havia ganhado o meu, e estava extremamente

satisfeita, pois, na verdade, ele me escolheu.

A flor de lótus foi muito usada na época da Inquisição

como a marca das condenadas, principalmente na França do

século XV. Mas algumas bruxas dos séculos XVI ao XVIII

continuaram a usar esse símbolo desenhado em seus corpos,

como uma forma de respeito pelas irmãs que morreram

queimadas na fogueira. Da flor de lótus era extraído um chá

poderosíssimo que, diziam, enlouquecia os homens. A flor de

lótus também era conhecida como nelumbo nucifera, lótus-

egípcio, lótus-sagrado e lótus da Índia. É nativa do sudeste da

Ásia. Muitas pessoas morreram por causa dela, inclusive

grandes homens ligados à ciência.

A taça é o símbolo da deusa. Representa o ventre da

mulher, o princípio da vida feminina. Sua energia está

relacionada ao elemento água e à pureza. É muito usada nos

rituais e sabás, como recipiente para água ou para o vinho

consagrado. É um instrumento que nunca perde o seu lugar no

circulo mágico, e é posicionada ao leste. A taça pode ser feita de

vários materiais, como prata, bronze, ouro, barro, alabastro,

cristal, entre tantos outros. Porém, é recomendado que seja de

prata. Seus desenhos ou símbolos variam de bruxa para bruxa.

A espada desempenha o corte simbólico ou psíquico,

especialmente quando é usada para desenhar o círculo mágico,

isolando o espaço imaginário dentro dele. Além de traçar

círculos, exorciza o mal e as forças negativas. Também é

tradicional que seu cabo tenha símbolos mágicos de força e de

luta. A espada é um sinal de reverência à Santa Joana D’Arc: é

o respeito dos homens aos mortos em batalhas travadas pela

Igreja em ascensão.

O athame é uma adaga, obrigatoriamente de cabo preto,

usada em algumas linhas de bruxaria. Ele também é utilizado

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 176 -

para lançar o círculo mágico, para traçar emblemas mágicos no

ar, para direcionar a energia e para controlar e banir espíritos

que não devem invadir nosso mundo físico. As origens da

palavra athame foram perdidas na história: alguns diziam ter

vindo de a chave de Salomão, que se refere à faca como

arthana, enquanto outros afirmam que athame vem da palavra

árabe al-adhamme, ou seja, é uma faca sagrada usada na

tradição mourisca. Em qualquer um dos casos, há manuscritos

datados do século XI que abordam o uso de facas em rituais da

magia. O uso de uma faca sagrada em ritos pagãos é bastante

antigo. Certa vez, quando ainda era criança, lembro-me de ter

visto um desenho em um vaso grego, datado de

aproximadamente 200 a.C., que mostrava duas bruxas nuas

tentando invocar os poderes da Lua para sua magia. Uma delas

estava segurando uma varinha, e a outra segurava uma pequena

espada. Aquela obra magnífica ficava guardada no sótão de

minha casa, junto aos pertences de minha mãe.

A cruz é o símbolo do cristianismo e, em toda a parte do

mundo, ela representava para nós, bruxas, os quatro elementos:

a terra, o fogo, o ar e a água. Mas quando alguém usava a cruz

torta, pendurada à Soleira da porta, significava que havia uma

bruxa por perto. Pura superstição, pois nós, do grande clã,

consideramos isso um sinal de igualdade entre as irmãs de

consagração. Para os leigos, é um sinal de paganismo e foi

motivo para a excomunhão de muitos inocentes.

A faca de cabo branco, por vezes chamada de bolline, é

simplesmente uma faca prática de trabalho. Ao contrário da pura

e ritualística faca mágica, só a utilizamos para cortar galhos ou

ervas sagradas, escrever símbolos em velas ou na madeira.

Normalmente possui cabo branco para distinguir-se da faca

mágica.

Adriana Matheus

- 177 -

O homem vitruviano, também chamado de cânone das

proporções, é usado por algumas de nós como um mapa. Essa

ideia tão grandiosa foi criada por volta de 1490 e estava em um

dos diários de Leonardo Da Vinci. Toda a cura que praticamos é

dimensionada através dos chakras e das linhas imaginárias.

Essas linhas imaginárias somente podem ser vistas pelas bruxas

curandeiras. Todo o segredo da existência humana está dentro

do mapa do corpo humano, e Leonardo Da Vinci descreveu isso

em suas ilustrações. Sua referência estética e simétrica

proporcionou-nos saber, com exatidão, os pontos alfas ou

chakras de um consulente doente. O homem vitruviano também

foi muito usado pelas feiticeiras para fazerem seus vodus em

rituais de magia negra.

Leonardo Da Vinci engloba o homem vitruviano em um

todo, mas o que poucos sabem é que essa forma é uma resposta

para um desafio matemático. Algo como uma parábola ou uma

senoide para aquele incrível inventor, que foi, com certeza, um

alquimista das ideias.

Para nós, as bruxas, o homem vitruviano é um

pentagrama humano e, na magia, o símbolo do pentagrama é

geralmente desenhado com a ponta para cima, a fim de

simbolizar as aspirações espirituais humanas. Um pentagrama

voltado com duas pontas para cima é um símbolo do deus

cornífero, mas representa também a matéria sobre o espírito. Por

isso, é muito usado. Muitos supersticiosos acreditavam que

representávamos com o pentagrama o lado negro da magia - o

que nem sempre é verdade. Esse tipo de pentagrama representa

o próprio corpo, os quatros membros e a cabeça, bem como as

representações primordiais dos cinco sentidos, tanto interiores

como exteriores. Além disso, representa os cinco estágios da

vida do homem. O pentagrama - ou a estrela de cinco pontas -,

ao contrário do que dizem, não é um símbolo satânico. É um

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 178 -

símbolo muito antigo e muito usado até pelo filósofo Pitágoras,

e também por seus seguidores, que o usavam para simbolizar o

respeito pela beleza da matemática do universo.

Em muitos lugares e épocas, foi utilizado como um

símbolo geométrico sagrado. O fato de satanistas usarem o

pentagrama não significa que eles são bruxos - da mesma forma

como usam o crucifixo e não são cristãos. O pentagrama é

conhecido, também, como tentáculo ou cruz dos gnomos.

Uma estrela de cinco pontas circunscrita em um círculo

representa os quatros elementos místicos da natureza: o fogo, a

água, o ar e a terra, superados pelo espírito da quintessência.

Na antiga arte da magia, meus ancestrais geralmente

usavam o pentagrama como um instrumento de proteção ou uma

ferramenta para evocar os espíritos. O pentagrama fechado

existe desde os princípios dos tempos. Ele é usado para nos

proteger dos inimigos e também serve como portal para evocar

forças ocultas. Por isso, sua simbologia é múltipla e

fundamentada pelo número cinco, que exprime a união dos

desiguais.

Muitas feiticeiras usaram o pentagrama indevidamente.

Por isso, dizia-se que elas conseguiam abrir os portais do

inferno com ele. Os mesopotâmios tinham o pentagrama como

símbolo imperial. Entre os hebreus, foi designado como a

verdade para os cinco livros do velho testamento. Por isso, o

pentagrama foi muitas vezes chamado incorretamente de selo de

Salomão. A magia tem dois lados. Portanto, qualquer símbolo

pode ser usado tanto para o bem quanto para o mal. Isso

dependerá apenas de seus praticantes, pois os símbolos por si só

não podem fazer nenhum mal. Logicamente, isso é uma escolha

bastante singular, pois nós é que devemos ter a real consciência

de qual lado estamos.

Adriana Matheus

- 179 -

Por inúmeras vezes, quando eu era criança e frequentava

a igreja cristã, li sobre uma citação no evangelho que nos ensina

a não acender velas para dois senhores. O propósito dessa

citação é que isso causa desequilíbrio entre os dois mundos

astrais. Esse desequilíbrio pode abrir um portal, dando passagem

a espíritos desordeiros.

O Pentáculo é um prato de metal ou de madeira, com um

pentagrama cravado dentro de um círculo. Esse objeto é muito

utilizado na consagração de diversos instrumentos ritualísticos,

como as ervas e os amuletos, sendo utilizado, também, como um

ponto de concentração nos rituais.

O hexagrama, ou selo de Salomão, é um antigo e

poderoso símbolo mágico. Consiste em dois triângulos

entrelaçados, um voltado para cima e o outro para baixo. O selo

de Salomão simboliza a alma humana. É utilizado por bruxas e

magos em cerimoniais de encantamentos ou conjuração de

espíritos. É um símbolo de sabedoria, de purificação e reforça os

poderes psíquicos. Os judeus também foram perseguidos por

causa dele, usado na santa cabala. A estrela de cinco pontas ou

estrela de David forma outro pentagrama, dividido por duas

estrelas que chamamos de invocante e evanescente. Quando

queremos invocar as energias da deusa do deus cornífero, ou das

entidades dos quadrantes para selar algum tipo de encantamento,

traçamos o pentagrama chamado de invocante. Os instrumentos

usados são: o bastão, a varinha, o athame ou dedo médio, para

fazer movimentos circulares no espaço físico.

Quando queremos banir, dispersar e exterminar

qualquer tipo de energia ruim, usamos o pentagrama

evanescente. O Pentagrama evanescente é traçado de maneira

contrária a do invocante - lembrando que um pentagrama pode

ser aberto ou fechado, dependendo para o quê fosse usado.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 180 -

O triângulo é um símbolo de manifestação finita na

magia ocidental, sendo usado em rituais para invocar os

espíritos quando o selo ou sinal da entidade a ser invocada está

no centro do triângulo. O triângulo é equivalente ao número três,

ou número mágico poderoso, que é o símbolo sagrado da Deusa

tripla virgem, mãe e anciã. O triângulo invertido simboliza o

princípio masculino. Se, mentalmente, meditarmos um triângulo

e dentro dele entrarmos, conseguiremos livrar-nos dos maus

pensamentos e de outras coisas que insistem em invadir nossa

mente. O triângulo é uma forma que temos de calar os

pensamentos ruins. É a maneira mais simples que podemos usar

em qualquer lugar, sem que ninguém perceba. Também serve

para fugirmos de energias negativas, que algumas pessoas

lançam através de suas palavras.

Os espirais são dois: o espiral de evocação e o espiral de

banimento. Os espirais são outra forma de invocar ou banir

energias espirituais. Podem ser usados com os mesmos

propósitos dos pentagramas invocante e evanescente. O espiral

de invocação é muito utilizado para carregar instrumentos,

amuletos, talismãs, entre outros. Já o espiral de banimento é

usado para o banimento da negatividade, sugando e

transmutando as más energias. Esses símbolos são da forma dos

seios de uma mulher. Na verdade, na magia, quase todas as

representações geométricas são inspiradas em nós, mulheres.

O fogo é o elemento da mudança, da vontade e da

paixão. Em certo sentido, contém todas as formas de magia, pois

é o processo de mudança. A magia do fogo pode ser

assustadora: os resultados manifestam-se de forma rápida e

espetacular. O fogo não é um elemento para os fracos.

Entretanto, é o principal e, por isso, o mais usado. Este é o reino

da sexualidade e da paixão. O fogo não representa apenas o fogo

sagrado do sexo, mas também a faísca da divindade, que brilha

Adriana Matheus

- 181 -

dentro de nós e de todas as coisas vivas. Ele é, ao mesmo tempo,

o mais físico e o mais espiritual dos elementos.

A vela, ou lume, também simboliza o elemento fogo.

Porém, é o símbolo do seu pedido de oração, pois enquanto vai

se queimando, a fumaça leva o seu pedido para que ele se

misture ao elemento ar – fazendo, assim, com que os seus

desejos se realizem.

A terra representa a mãe, de onde tiramos nosso poder e

nossa força. É o elemento do qual somos mais próximos, é a

nossa casa. A terra não representa necessariamente a terra física,

mas aquela parte que é estável e sólida, da qual dependemos.

A terra é o reino da abundância, prosperidade e riqueza. Ela é o

mais físico dos elementos, pois todos os três se apoiam sobre

ela. A terra, para nós, é a força maior: a mãe, aquela que gera e

nos permite a sobrevivência e a procriação. Muitos diziam que a

terra calou-se para que pudéssemos fazer do seu corpo a nossa

morada. Mas ela nos fala todos os dias, da forma mais

maravilhosa já criada por Deus para se expressar. Fala-nos

através das suas plantas e da sua beleza. Só que nunca temos

tempo para observar seus sons... O som do mundo está sempre

presente. É só fechar os olhos e desligar-se de todos os outros

sons à nossa volta para podermos escutá-lo. É um som quase

mudo, mas muito presente.

O vento ou o ar é a alma do mundo, o mensageiro, a

vida, o sopro de Deus. Muito usado em evocações para

apaziguar tempestades e tufões. Podemos enviar uma mensagem

para alguém através do vento, caso a pessoa esteja em sintonia

total conosco. O vento é o elemento do intelecto, é a realidade

do pensamento, é o primeiro passo para a criação. Também é o

movimento, o ímpeto que manda a visualização na direção da

concretização, governando os feitiços e rituais que envolvem a

viagem, instrução, liberdade, obtenção do conhecimento,

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 182 -

encontrar itens perdidos, descobrir mentiras... e assim por

diante. O vento também pode ser usado para ajudar no

desenvolvimento das faculdades psíquicas. O ar é masculino,

seco, expansivo e ativo. É o elemento que se sobressai nos

locais de aprendizagem. O ar governa o leste, pois é a direção da

maior luz: a da sabedoria e da conscientização. Sua cor é o

amarelo do Sol e do céu na aurora. O ar governa a magia dos

quatro ventos de concentração e visualização, bem como a

maioria das magias adivinhatórias.

A água é o espírito purificador, a fonte de limpeza

espiritual através do corpo para a alma, pois sempre a usamos

em banhos de purificação. É o elemento da absorção e

germinação. O subconsciente é simbolizado por ela, pois está

sempre em movimento, como o mar que nunca descansa - quer

seja noite ou dia.

O caldeirão é um dos objetos mais essenciais: com ele,

fazemos nossos rituais, entre tantas outras coisas. Ele está

sempre acompanhado de uma colher de pau e um livro de

receitas especiais. Esse objeto é intransferível e de uso exclusivo

da pessoa que irá praticar o suposto ritual. Ninguém mais deverá

manuseá-lo além da própria bruxa em questão. O caldeirão é o

instrumento da bruxa por excelência. Um antigo recipiente

culinário, imbuído em mistério e tradições mágicas. O caldeirão

é o recipiente no qual ocorrem as transformações mágicas. Tem

um significado muito especial: é o símbolo máximo da Deusa: é

seu útero, sua essência e feminilidade manifestada, a sua

fertilidade. Está relacionado com os elementos água e fogo.

Situa-se ao centro do círculo mágico e do altar. É, também, um

símbolo da reencarnação, da imortalidade e da inspiração. O

caldeirão é geralmente o ponto central dos rituais. Toda bruxa

que se prezasse teria que ter um caldeirão consigo. A lenda

antiga também castigou esse elemento, pois diziam que

Adriana Matheus

- 183 -

cozinhávamos crianças nele - blasfêmia e heresia contra o ser

humano. Nunca praticávamos canibalismo ou qualquer outro

tipo de feitiço em adoração ao demônio. Muitas vezes, íamos ao

bosque pegar raízes para o tingimento de nossas roupas, mas

algumas dessas raízes eram de um odor muito forte depois de

cozidas. Por isso, colocávamos nossos caldeirões no meio da

mata - o que gerou muitas lendas em torno de nós.

O gato preto é um símbolo da capacidade de meditação e

recolhimento espiritual, autoconfiança, independência, liberdade

e plena harmonia com o universo. Esse animal sempre foi visto

ao lado de uma feiticeira, e os supersticiosos acreditavam que o

mascote era uma bruxa disfarçada. Com isso, as feiticeiras

transitavam livremente, enquanto levávamos a fama de

malvadas.

O símbolo do gato preto era utilizado pelos médicos

egípcios para anunciar a sua capacidade de cura, onde Bastet,

sua deusa, é representada como uma gata preta, e foi uma das

divindades mais veneradas no antigo Egito. Bastet é a Deusa

protetora dos lares e da família. Protetora dos gatos, das

mulheres, da maternidade, da cura. Era guardiã das casas e feroz

defensora dos seus filhos, representando o amor maternal. O

gato tem uma grande ligação com a Lua. Os Olhos de Bastet

podem ver através da escuridão, assim como os do gato. Alguns

espíritos, entidades ou passantes - como os chamam os espíritos

mais superiores - costumam referir-se aos animais de estimação

como sacrifícios, mas não são todos. O gato, em si,

independente da cor, vive em dois mudos paralelos. Ou seja: o

gato está interligado entre o mundo espiritual e o mundo real.

A Bola de Cristal é também um instrumento das artes

adivinhatórias. É muito popular entre os videntes ciganos. A

cristalomancia é também muito praticada pelas bruxas em

magias, mas com um propósito ainda maior. É por onde nos

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 184 -

comunicamos com a grande deusa mãe. Por onde recebemos as

mensagens da deusa, que fortalece e orienta as bruxas. A Bola

de Cristal reflete mensagens, ajudando-nos a descobrir mais

sobre o nosso mundo interior.

O baralho do tarô tem o mesmo efeito da bola de cristal:

também o usamos para prever o futuro. Mas devo ressaltar que

todo objeto de clarividência deve ser mantido como particular e

intransferível. O primeiro baralho conhecido foi pintado pelo

artista Jacquemin Grigonnur, em 1392, para a coroa francesa.

Deste maravilhoso trabalho sobraram apenas dezessete cartas,

que foram guardadas na biblioteca nacional de Paris, com data

de entrada do século XV. Com as mudanças na Europa, surgiu

uma série de baralhos, especialmente na Itália. Graças a Deus,

ganhamos esse fabuloso auxiliar da magia. Nunca devemos nos

esquecer de que as cartas não mentem jamais. Mas nem tudo

pode ou deve ser revelado ao consulente, pois a pessoa, em si,

muitas vezes, não está preparada para ouvir a verdade.

Uma bruxa sábia deve ter consciência de que tudo gera

uma consequência na vida do consulente. Muitas vezes, ao

dizermos que o marido de uma consulente a está traindo,

podemos estar destruindo um lar supostamente feliz. E a

felicidade varia de pessoa para pessoa: cada um tem o seu lado

de ver e aceitar as coisas. O que para nós pode parecer errado,

para alguns é a coisa mais correta desta vida. Não temos o

direito de separar um casal, ou de desgraçar a vida de um

consulente. Afinal, que mulher não tem suas próprias intuições?

Vendo por esse ângulo, sabemos, em nosso interior, que uma

mulher só fica na ignorância caso ela queira. Isso sempre

acontece, porque a maioria das mulheres permanece nesse tipo

de situação por, muitas vezes, lhes ser conveniente, ou porque

não têm mesmo outro lugar para onde irem.

Adriana Matheus

- 185 -

Quando uma bruxa revela a verdade, pode até ser mal

interpretada e vista como mentirosa, pois existem muitas coisas

que um consulente não quer enxergar. Deixar as coisas como

elas são não é ser conivente: é permitir que o destino do

consulente cumpra-se por si só. Não temos o direito de interferir

no destino de um consulente, a não ser para ajudar e salvar a

vida de alguém - mas isso é apenas uma exceção. Deixar que as

coisas aconteçam naturalmente é a melhor maneira de deixar o

consulente aprender a como lidar com seus próprios erros. É

assim que a vida funciona. É a lei da sobrevivência.

Os cristais e as pedras servem para banhos, para

meditar, orar, curar, energizar ambientes, plantas, animais e

pessoas. Devemos sempre ter um cristal só nosso. Podemos

andar diariamente com o cristal junto ao corpo, usando-o como

um talismã ou, caso não quisermos que alguém o veja, pode-se

guardá-lo dentro da roupa íntima. Mas, uma vez ou outra,

devemos tocá-lo para que ele se sinta amado e lembrado. O

cristal tem vida própria e sente-se carente quando se sente

sozinho. Os cristais transmitem-nos muito mais energia do que

recebem de nós. Na verdade, é uma espécie de troca, porque eles

nos emitem em dobro, em triplo e, às vezes, até em décuplo as

energias que lhes damos. Por isso, precisa ser muito amado. Não

escolhemos um cristal. Ele nos escolhe.

Os cristais e as pedras são parte da natureza, sendo que

eles, pela pureza, são mais poderosos e mais iluminados que

nós. Essa fonte de energia natural recebe a perfeição e a

harmonia do cosmos. Se nos conscientizarmos disso,

procuraremos trabalhar mais com eles, pois seus benefícios

serão incontáveis. Para tanto, basta desenvolvermos nossa

intuição, nossa sensibilidade, nossos sentimentos e nossas

virtudes. Assim, canalizaremos todo o bem e, com eles, faremos

um universo melhor.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 186 -

Uma bruxa, através dos cristais, pode tentar entrar em

um estado temporal - isto é, ver o presente, o passado e o futuro.

Mas, para fazer brilhar a luz temporal, é necessário ficar em

estado de meditação com os cristais, pelo menos dez minutos ao

dia. Como recurso auxiliar, podemos usar músicas e velas. Mas,

antes de usar seu cristal, não se esqueça de que ele deve ser

energizado, colocando-o em uma ânfora de prata ou louça.

Leve-o para a janela em noite de Lua cheia e deixe-o dentro

d’água, com sal e ervas aromáticas, para que ele receba da mãe

Lua toda a sua energia. Repita o mesmo pela manhã, expondo o

cristal à luz solar. Depois de fazer esse pequeno - mas muito

significante - ritual, seu cristal estará pronto para ser usado.

O ankh é um antigo símbolo egípcio que nos lembra

uma cruz, encimado por um laço. Simboliza a vida, o

conhecimento cósmico, o intercurso sexual e o renascimento.

Também é conhecido por vários bruxos como cruz ansata. O

ankh é muito usado por várias bruxas para encantamentos e

rituais que envolvem saúde, fertilidade e divinação.

A triluna simboliza sagrada donzela, mãe e anciã. Tem

as três faces femininas e é muito utilizada em rituais de

invocação à grande deusa mãe e deidades lunares.

O círculo - ou portal - representa o poder sagrado

feminino, a mãe, a terra e o espaço. É o símbolo universal de

totalidade e união. O círculo sempre representa a deusa e é

identificado pelo elemento terra.

A vassoura, embora muitos ignorantes a associassem a

um ser vivo, cheio de poderes, isso nunca foi verdade. Ela é,

para nós, como o cajado de Moisés. Usamo-la para varrer o

espaço físico antes, durante e depois dos rituais. Nos rituais de

casamento, a vassoura representa um pacto, pois ela é o símbolo

da união da deusa com o deus. Conta-nos a lenda que, se uma

vassoura cair ao chão, é um sinal de que receberemos uma visita

Adriana Matheus

- 187 -

masculina em casa. Nas noites de Lua cheia, algumas bruxas

colocavam suas vassouras do lado de fora para espantar os maus

espíritos. Minhas ancestrais sofreram muito no passado por

causa desse utensílio doméstico, pois os cristãos contavam

horríveis histórias e lendas. Como, por exemplo, a de que, em

noite de Lua cheia, especificamente no dia 31 de outubro de

cada ano, nós, bruxas, saíamos voando em nossas vassouras, à

procura do primogênito de cada família para, assim, o

devorarmos. Com esse estranho e bizarro ritual, diziam que

ficaríamos mais fortes e poderosas.

A mente humana é incrível, pois é capaz de criar

qualquer coisa. Mas nunca cria algo construtivo e apaziguador.

Por causa dessas histórias, muitas mulheres morreram em Salém

e em outros países da Europa. É muito triste pensar em quantas

pessoas inocentes foram condenadas somente por causa de

lendas criadas por pessoas com a mente fértil e maldosa. Essas

histórias também eram criadas, muitas vezes, para desviar a

atenção dessas mesmas pessoas.

A viagem é uma forma de transe espiritual, onde

limpamos a mente de tudo ao nosso redor e imaginamo-nos

dentro de uma grande luz. Geralmente, fazemos a viagem

através do tempo para descobrirmos, em nosso passado, quem

fomos. Também é usada para que possamos adquirir sabedoria e

respeito pelas coisas às quais muitas vezes não damos valor. A

viagem também é uma forma de conhecermos o nosso eu

interior.

A princípio, por causa da falta de fé e sintonia astral, só

enxergamos um grande escuro mental. Mas, mesmo dentro

desse escuro, encontramos a luz e, muitas vezes, nossas

ancestrais vêm ao nosso socorro. Se a pessoa for realmente uma

bruxa, vai saber o que digo. Todas vamos, quase sempre, ao

mesmo lugar. Nessa viagem, são mostrados fatos, objetos e o

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 188 -

grande livro das sombras, de onde retiramos uma enorme

sabedoria.

Na viagem, é a nós revelado nosso nome ancestral, ou

seja, o nome de bruxa, que nunca deveremos falar a ninguém.

Pois esse nome, em mãos erradas, faz-nos ficar vulnerável e à

mercê de qualquer pessoa - principalmente dos inimigos.

O triskelium - triskelio ou triskele - também representa a

deusa em todos os seus aspectos tríplices: donzela, mãe e anciã.

O nascer, o viver, o morrer; o corpo, a mente e a alma, os

mundos celtas, a terra, o céu e o mar. É uma espécie de estrela

de três pontas, geralmente curvadas, o que confere ao símbolo

uma grandiosa fluidez de movimentos. É um dos elementos

mais presentes na bruxaria. Também representa primavera,

verão, outono e inverno. Está ligado, principalmente, ao

elemento terra. Alguns magos usam o triskele desenhando-o no

corpo, como uma forma de caráter nada mais do que simbólico.

O bastão - ou varinha - é um dos instrumentos mais

importantes para as bruxas, pois funciona como um instrumento

de invocação. A deusa e o deus podem ser chamados para

assistirem o ritual por meio de palavras e de um bastão erguido.

Também é, por vezes, utilizado para direcionar a energia, para

desenhar símbolos mágicos, círculos no solo, e para indicar a

direção de perigo, quando perfeitamente equilibrado na palma

da mão ou no braço de uma bruxa. Também serve para mexer

um preparado em um caldeirão. O bastão representa o elemento

do ar.

Há madeiras tradicionais para a confecção de um bastão.

Dentre elas, o salgueiro, o sabugueiro, o carvalho, a macieira, o

pessegueiro, a avelã e a cerejeira. As bruxas o cortam com o

comprimento da ponta de seu cotovelo até a extremidade de seu

indicador. Geralmente, o galho a ser cortado para o bastão

chama a bruxa para ele. É como se ambos fossem um só ser.

Adriana Matheus

- 189 -

Nenhuma outra pessoa pode ou deve colocar as mãos no bastão

de uma bruxa.

O Buril é um ferro usado para gravar nomes sagrados,

números, símbolos em punhais, espadas e também usado na

fabricação de medalhões sagrados. Toda bruxa tem um

medalhão que representa o seu elemento.

O Prato de Sal simboliza a terra e é usado para

purificação em banhos. Sempre devemos ter um copo com sal

atrás da porta de nossas casas, para puxar a energia negativa do

ambiente.

O girassol é uma flor de cor amarela, formada por muitas

pétalas, de tamanho geralmente grande. Tem esse nome porque

está sempre voltado para o Sol. O girassol simboliza a páscoa e

representa a busca da luz, que é Jesus Cristo. Assim como ele

segue o astro rei, os cristãos buscam em Cristo o caminho, a

verdade e a vida. Usamos o girassol para produzir uma espécie

de óleo para bálsamos, que curam várias mazelas.

Eu precisava citar, também, a grande mártir Joana

D’Arc: essa mulher que deu a vida pela França e por seu rei,

mas que, por causa da inveja e da ambição dos membros da

Santa Madre Igreja, foi traída e injustiçada. Para mim, Joana

D’Arc foi um símbolo de luta e de amor. Por isso, dedico aqui,

em meu diário, um cantinho a essa fabulosa mártir, que deve ser

citada e lembrada por toda bruxa, pois foi a mulher mais forte e

corajosa que a História pôde contar. Alguém consegue imaginar

a força de liderança que havia nessa jovem mulher durante o

período medieval da França? Nenhum homem venceu ou

vencerá essa mulher virtuosa. Essa é a minha opinião final.

Joana D'Arc foi uma mártir francesa, heroína da Guerra

dos Cem Anos contra a Inglaterra. Sua participação na História

foi movida pela sua fé inquebrantável. Joana D'Arc nasceu no

dia seis de janeiro no ano de 1412, na cidade de Domrémy, em

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 190 -

uma família modesta de camponeses. Faleceu no ano de 1431,

com apenas dezenove anos de idade. Aos doze anos, começou a

ouvir as vozes divinas de Santa Catarina e de Santa Terezinha.

As vozes diziam-lhe para salvar a França das mãos dos ingleses.

Durante cinco anos, manteve essas mensagens em segredo, por

medo de ser castigada pelos pais ou pelo padre local.

Vale lembrar, aqui, que ouvir vozes estava totalmente

relacionado às práticas de bruxaria da época. É claro que não

são bruxas todas as pessoas que ouvem vozes, mas Joana D’Arc

ouvia vozes que dizia ser de uma divindade. Se fosse de sua

mente, ela provavelmente pensaria que estava louca, mas não.

Em todos os relatos sobre a trajetória de Joana D’Arc, há essa

verdade. As vozes que ela escutava eram de uma divindade –

ou, como ela mesma dizia, dos santos.

Em seu julgamento, Joana D’Arc admitiu ter dançado ao

redor da árvore das fadas. Um de seus amigos que honrava as

fadas também foi queimado como bruxo, na mesma época.

Joana D’Arc dizia que eles eram santos. Na verdade, em minha

opinião, São Miguel e Santa Catarina eram ambos antigas

divindades disfarçadas de santos cristãos. São Miguel

representaria, então, o deus Sol, e Santa Catarina representaria

Cerridwen. Isso pode explicar a popularidade desses dois santos

como patronos das igrejas e capelas construídos sobre colinas,

os velhos santuários das alturas. Isso é uma opinião

exclusivamente minha, que fique bem claro.

Em 1429, ela deixou sua casa, na região de Champagne,

e viajou para a corte do rei francês Carlos VII. Lá, convenceu-o a

colocar suas tropas sob seu comando e, então, partiu para

libertar a cidade de Orléans, que estava sitiada há oito meses

pelos ingleses. Liderando um pequeno exército, Joana D’Arc

derrotou os invasores em apenas oito dias. Isso foi em maio de

1429. Um mês depois, conduziu Carlos VII à cidade de Reims,

Adriana Matheus

- 191 -

onde ele foi coroado. As vitórias trazidas pelas tropas de Joana

D’Arc para Orléans, para a coroação do rei, fizeram a esperança

do povo renascer. Embora todos quisessem a liberdade a

qualquer custo, o preconceito contra Joana D’Arc ainda era

muito grande - afinal, era uma mulher e, para eles, isso era o

bastante.

A corte, na verdade, era influenciada pela Santa Madre

Igreja, que não podia aceitar uma mulher liderando um exército

de homens e que, ainda, conseguisse ótimas vitórias

estrategistas. É importante que eu ressalte que, na época, as

mulheres já eram bastante recriminadas, sujas e pecadoras, de

acordo com os eclesiásticos. Portanto, sempre vistas como

inferiores aos homens.

Joana D’Arc escandalizou muitos padres pelo fato de se

vestir com roupas masculinas e usar o cabelo quase raspado.

Esses homens puros de coração julgaram a maneira de se vestir

de Joana D’Arc como uma heresia - apesar de ter sido apenas a

forma que ela encontrou para afastar o preconceito da Igreja.

Mas não posso deixar de lembrar que, em algumas tradições

pagãs, as sacerdotisas, por vezes, vestiam-se de homem para

representarem o deus. Então, visto por esse lado, os padres

julgavam-na.

Joana D’Arc usava um curioso emblema, adotado por ela

mesma para ser o seu estandarte pessoal. O emblema era uma

espada vertical com a ponta circundada por uma coroa, com

uma flor-de-lis de cada lado - figura idêntica ao da espada do

símbolo místico, utilizado por ocultistas do tarô.

Joana D'Arc, afinal, era ou não uma bruxa? Por mim,

consigo pensar na possibilidade de Joana D’Arc ter sido uma

bruxa de verdade. Mas é claro que o conceito de bruxa em 1420

não é o mesmo conceito de bruxa em 1822. Pois Joana D’Arc,

embora tenha liderado um exército de homens, na verdade, foi

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 192 -

apenas manipulada e usada pela Igreja o quanto sua ajuda lhes

foi conveniente, até o dia em que acharam que ela não lhes seria

mais útil.

Não posso me esquecer dos muitos mitos envolvendo a

grande deusa caçadora Diana, que demonstrou uma enorme

força de vontade e coragem. Em suas trajetórias de vida, Joana

D'Arc é bastante semelhante. Podemos ver na história da deusa

Diana os muitos traços da deusa caçadora.

Na primavera de 1430, Joana D’Arc retoma a milícia e

tenta libertar a cidade de Compiégne, que havia sido dominada

pelos borgonheses, aliados dos ingleses. Depois de mais uma

vitória, Joana D’Arc foi traída, capturada, e entregue aos

ingleses, pelas mesmas pessoas que ela sempre ajudou. Isso foi

no dia vinte e três de maio do mesmo ano. O interesse desses

fatos, no entanto, não era simplesmente matá-la ou torturá-la:

eles queriam ridicularizá-la na frente do seu próprio povo.

Agiram dessa forma porque a influência de Joana D’Arc entre

os camponeses era muito grande e, com isso, a Igreja estava

com medo de perder seus adeptos, assim como a coroa tinha

medo de perder a confiança real de seus súditos. Creio que

ambos julgavam que Joana D’Arc, por ter conseguido tanta

confiança do povo, poderia um dia vir a exigir a coroa para si.

Isso preocupou o rei e a Igreja, pois não poderiam jamais pensar

na hipótese de serem governados por uma mulher.

Alguns tinham o conceito de que as bruxas tinham

grande influência sobre o povo, pois, para eles, elas eram as

parteiras da região, ou as curandeiras conhecedoras de ervas - o

que não era verdade. Mas, mesmo assim, a Igreja achava que o

povo ficava dependente delas não pela caridade que elas

prestavam, mas pelo suposto feitiço que elas lançavam sobre

eles. Mais uma vez, era uma inverdade, pois o que acontecia é

que muitas pessoas, por serem muito pobres, achavam nessas

Adriana Matheus

- 193 -

tais supostas bruxas a única solução para curarem suas

moléstias. Mas Joana D’Arc foi mais que uma parteira ou

curandeira: ela foi uma simples camponesa que quase dominou

um reino, por falar com espíritos e derrotar os inimigos da

coroa. Para a Igreja, Joana D’Arc quase estava tirando sua

liderança. Foi por isso que a condenaram por bruxaria e heresia.

Joana D’Arc foi submetida a um tribunal católico em

Rouen, sendo condenada à morte após meses de julgamento, na

mesma cidade. No dia trinta de maio de 1431, foi queimada

viva. Suas cinzas foram jogadas no rio Sena. A revisão de seu

processo começou a partir de 1456, e a Igreja em ascensão - por

certo para reparar seus erros, e até por uma questão política –

canonizá-la-ia futuramente.

Joana D’Arc era mesmo uma bruxa? Pergunto-me

sempre isso. Não tenho dados detalhados sobre a vida dela a

ponto de dizer se ela era uma bruxa ou não. Mas, através dos

fatos que tenho, posso chegar bem perto do conceito de

bruxaria. Então, para mim Joana D’Arc foi a maior bruxa e

símbolo feminino guerreiro de todos os tempos.

Quem para a Igreja Mãe é verdadeiramente digno? Em

minha opinião, é muito injusto santificar uns por conveniência e

condenar outros só porque não concordam em ser como os

demais. Mas eu era apenas uma minoria, e era muito pouco

provável que alguém me ouvisse.

Bom, fico feliz por ter contado a história da mulher que,

para mim, foi mais que uma simples mártir. Para mim, Joana

D’Arc foi a minha heroína.

Antes de terminar a parte sobre o livro das sombras,

quero esclarecer algumas dúvidas que sei que fará muita

diferença para as minhas gerações futuras. Como, por exemplo,

a diferença entre as bruxas e os magos. Sei que é sempre uma

pergunta muito básica, mas que causa muita dúvida. Faz muita

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 194 -

diferença obter uma resposta clara, pois eu mesma a tive. E,

vendo por esse prisma, explico aqui: o mago é quem pratica

magia, a bruxa é quem pratica bruxaria. Pode parecer simples e

óbvia essa diferença, não é mesmo? Mas não é bem assim.

A magia tem diversos ramos de estudo, e a bruxaria é

apenas um deles. A bruxaria é uma forma específica de magia

que utiliza elementos da natureza. A bruxa pode ser uma maga e

não ser bruxa. Pode trabalhar com a magia sem estar ligada à

bruxaria. O foco do mago é a própria magia: ele lida com ela o

tempo todo. Estuda correspondências, astronomia, tabelas,

transfigurações, hermetismo, espíritos, cabala, cálculos diversos,

necromancia e tudo o que estiver relacionado à magia. Uma

bruxa não necessariamente lida somente com seus objetos de

prática no dia-a-dia, como o modo de cultivo e preparo de ervas,

rituais para a Lua e o Sol... coisas desse tipo.

Não que um seja melhor ou pior que o outro, mas a

evolução de um não foca a maneira de trabalho do outro. E isso

os torna diferentes. Não que as bruxas não sejam racionais,

obviamente. Mas é que os magos calculam milimetricamente

cada ação, cada ritual, e cada trabalho que vão fazer. Eles usam

os símbolos dentro de cálculo, como uma coisa cerimonial.

A bruxa é infinitamente mais simples: colhe as ervas e,

no momento seguinte, já está sujando as mãos para preparar o

unguento. Toda bruxa pratica magia, mas é a magia natural,

simples. A tradição, por exemplo, tem muito tanto da bruxaria

quanto da magia cerimonial. E usamos os objetos como o

athame, a espada, o cálice, o caldeirão e a vassoura, que são

indispensáveis. Não dispomos desses objetos – que, para nós,

são indispensáveis -, mas também não fazemos da magia uma

coisa tão complicada. Muito pelo contrário: trabalhamos com a

magia usando dela a força da natureza. É como se fosse uma

Adriana Matheus

- 195 -

união, fazendo, assim, com que as forças ocultas se tornem

nossas aliadas.

Uma bruxa, em caso de necessidade, pega qualquer tipo

de faca que estiver ao seu alcance - essa é uma das grandes

diferenças da magia. Um mago é como um astrônomo: ele é

aquela imagem tradicional do homem sentado, rodeado por

milhares de livros. O mago é um eterno pesquisador e

alquimista.

É bastante comum existir uma tradição familiar de

bruxas e de magos? Nem tanto. Magos formam ordens e toda

bruxa é pagã. Os magos não necessariamente - aliás, muito

raramente - são de origem cristã. Claro que existem

controvérsias. E também existem bruxas que, como eu, tiveram

formação cristã.

Isso ocorreu em diversas partes da Europa. A História e a

tradição convencional religiosa fizeram com que isso

acontecesse. E foi por causa da liberdade de expressão religiosa

que nós, bruxas, sempre lutamos contra aqueles que se diziam os

donos da verdade e do destino das pessoas. Não é justo que

todos tenhamos que seguir uma mesma religião, somente porque

isso se tornou uma imposição e não uma vontade. Não estou, de

forma alguma, querendo que o cristão se converta ao

paganismo. Muito pelo contrário, respeito-os e somente quero

que me aceitem como sou e pelo que sou - assim como os aceito

da mesma forma.

Outra diferença - ainda citando a cultura - entre os

magos e as bruxas é a origem de suas práticas. Os magos

possuem práticas centradas nas antigas tradições persas, egípcias

e babilônicas. As bruxas, porém, têm suas crenças enraizadas

nas culturas europeia, celta e italiana.

O fato é que estamos na Terra há muitos séculos. Somos

o espinho atravessado na garganta dos inquisidores, dos

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 196 -

preconceituosos e dos ignorantes. Querendo ou não, muitos vão

ter que nos engolir, pois somos filhas do mesmo e único Deus.

Logicamente, isso tem sido uma luta desigual e silenciosa, na

qual muitas de nós foram sacrificadas como ovelhas. Mas essas

pessoas, por viverem na ignorância, não sabem que a morte,

para nós, é apenas um começo - embora o caminho que nos

levasse até a ela fosse bem árduo e doloroso, pois passávamos

por várias sessões de torturas antes de morrermos. O que, para

esses ignorantes, era como uma forma de penitência e salvação

para nossas almas pecadoras.

Todos os seres humanos têm dentro de si uma bruxa ou

um mago. O difícil é alguém querer admitir isso. Em todo lugar

deste planeta sempre haverá uma bruxa ou um mago. Isso pode

parecer uma loucura, mas quem entre vós não sois loucos?

Quem entre vocês, ao ver que o filho está doente, não recorrerá

a uma velha receita caseira para tentar salvá-lo? Quem entre

vocês que, ao cozinhar, já não quis dar certo sabor diferente à

comida? A culinária é a forma mais simples e a mais fantástica

de praticarmos alquimia, através da mistura das ervas e dos

temperos. Misturar temperos e ervas é o que de melhor fazem

as bruxas e os magos.

Quem nunca amou e depois adoeceu? Quem nunca

sentiu uma enorme vontade de voar nas asas do vento? Quem

nunca sonhou? São perguntas simples e aparentemente tolas,

mas que não conseguimos responder por medo de ouvir a

resposta que está dentro de nossos corações. Tudo que quis, em

toda a minha vida, foi ser livre e poder exercer o meu dom em

paz. Tudo o que quis foi amar livremente, sonhar livremente,

beijar livremente. Tudo o que quis foi ter podido ser uma mulher

com o direito de ir e vir. Mas essa liberdade foi-me tirada,

porque nunca quis aceitar ser o que eu não era. Será que todas

Adriana Matheus

- 197 -

essas pessoas que me condenaram a uma vida de cárcere nunca

participaram de algum tipo de sabhat ou outro ritual da magia?

Esse é outro ponto crucial da magia: não importa qual o

momento em que uma pessoa tenha participado de um sabhat ou

qualquer ritual, ela deve saber que ficará presa à magia para

todo o sempre. Pois a magia é como se fosse um cordão

umbilical: só se separa um ser do outro após cortado.

Toda bruxa ama a natureza, as árvores e os animais.

Cuidamos deles como se fossem nossos irmãos e auxiliares.

Isso é uma coisa que nos difere dos seres humanos comuns.

Enquanto cuidamos das coisas que Deus nos deu, o restante da

humanidade as destrói impensadamente. Somos extremamente

livres - por isso, não gostamos de prisões. O contato com a mãe

terra e seus elementos é a fonte da nossa vida. Aprisionar uma

bruxa é morte certa para ela. É como o amor verdadeiro: se o

deixarmos livre, o prendemos; mas se o prendermos, ele se

sente sufocado e se vai.

Consegui descobrir e saciar minha fome de saber

através das literaturas proibidas. Confesso que esse tipo de

literatura era-me muito excitante. Foi através dela que me

diferenciei das demais pessoas. Através desses escritores,

considerados obscenos e de caráter duvidoso, descobri meu

universo. Por isso, quando fui apresentada à magia, eu já estava

bastante familiarizada a ela. Na verdade, sempre fui uma

solitária, devido à forma com que me criaram. Mas, mesmo

assim, eu ainda era diferente, pois, naquela época, ainda podia

contar à Maria tudo o que se passava comigo. No entanto,

depois de fazer parte do círculo mágico, não podia mais, nem

em meus sonhos, colocar Maria nos meus planos, pois isso

seria muito arriscado e a colocaria em risco de vida.

Eu realmente gostaria de ter sido igual às moças da

minha idade. Assim, teria sido amada pelo meu pai. Mas a vida

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 198 -

é cheia de caminhos e, como cada caminho tem uma escolha,

preferi ter feito a minha. Na verdade, isso não poderia ter sido

diferente, pois as moças da minha idade eram vazias e sem

objetivos concretos. Já os rapazes não tinham assuntos para

mim, inclusive porque achavam que nós, mulheres, só

servíamos para procriar. Algumas mulheres talvez aceitassem

esse tipo de situação vergonhosa, mas nunca poderia me

sujeitar a viver ao lado de alguém sem amá-lo.

Não me engrandeço por ser diferente, jamais fiz isso.

Mas confesso que olhava aquela gente de uma maneira

perplexa e diferente. Não fazia isso por arrogância ou por

preconceito. Na verdade, queria tentar entendê-los melhor, pois

não conseguia imaginar como conseguiam viver de uma

maneira tão igual e sem sentido pra mim.

Antes de conhecer os caminhos da magia, eu era uma

jovem muito tímida e oprimida pelas vontades da minha

madrasta. Pensava que minha vida nunca teria outra opção

além de ter que seguir, um dia, o que ela sempre me impunha:

ou seja, casar-me com um homem mais velho e ser

completamente infeliz e autômota. Mas, no meu íntimo, tinha

comigo que não era correto uma mulher ser escrava de seu

marido. Achava que ambos tinham que ser cúmplices, em todos

os sentidos. Era assim que eu via uma união de amor: como um

todo. Não me arrependo de ter escolhido meu caminho, embora

pense que minha tentativa de ter encontrado o meu único amor

foi em vão.

Houve tempos em que passei quase um mês trancada

em meus aposentos. Não saía nem para beber água, somente

para poder terminar de ler certo livro, cujo autor me fascinava

com a maneira com que descrevia a forma de ver as pessoas.

Esse autor foi muito temido pela Igreja e a corte francesa, pois

descrevia a imoralidade e o sadismo dos monarcas e dos

Adriana Matheus

- 199 -

padres. Ele traduzia perfeitamente a maneira cruel e sádica com

que os castos virtuosos padres viam as mulheres em geral.

Resumindo: para mim, ele foi mais um herói da literatura e da

liberdade de expressão. Como eu disse, a literatura considerada

devassa, obscena e perigosa excitava-me, porque nela descobri

verdadeiramente a maneira livre de as pessoas escreverem o

que realmente viam e sentiam.

O caminhar de uma bruxa exige muito estudo, muita

leitura e disciplina. Quanto mais uma bruxa lê, mais se

aprimora em seus conhecimentos ocultos. Isso requer tempo,

paciência e obstinação da aprendiz. Embora eu tivesse sido

uma rebelde, encaixava-me nas outras duas regrinhas básicas

da bruxaria: leitura e estudo.

As pessoas da minha época - ou de qualquer outra, creio

- não suportavam que alguém fosse mais inteligente e literário

do que elas. O conhecimento e a cultura sempre será a principal

forma de discórdia entre os homens e mulheres -

principalmente quando a leitura tornar a mulher mais

competitiva e capaz, e menos escrava dos caprichos

masculinos.

Gostaria, sinceramente, que minha ancestral tivesse lido

esses pensamentos. Ela com certeza iria se orgulhar de mim,

assim como me orgulhei dela.

Não deixei herdeiros como Shaara. Não que não

quisesse, mas porque os que se diziam ter autoridade sobre

mim privaram-me do dom de ser mãe e de também viver um

grande amor ao lado da pessoa que escolhi.

Meus algozes, em todas minhas duas encarnações,

foram as pessoas que mais amei. Pessoas que determinaram

que meu tempo terreno se extinguisse por conta delas. Deus

presenteou-me a vida, mas não pude honrar esse compromisso

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 200 -

segundo a Sua vontade, pois me tomaram esse presente, que

somente Deus poderia ter tomado de volta.

Essa também seria a segunda vez em que perderia a

minha juventude cedo, por imposição da Inquisição e da Igreja

em ascensão. Mas, dessa vez, deixei registrada a forma como

meu destino foi modificado por imposição de pessoas do meu

convívio, que se julgavam com o direito de modificar a minha

maneira de ver o mundo.

Creio que, em um futuro próximo, o homem continuará

a ser sua própria derrota, o seu próprio carrasco e o seu próprio

algoz, mas nunca vai perder essa arrogância e essa presunção

de ser o senhor de todos os destinos. O homem nunca deixará

de querer ser como Deus. Creio que, por isso, o Mestre tenha se

arrependido de nos ter criado. Assusta-me esse pensamento e

faz-me sentir terrivelmente impotente em saber que nunca nada

disso mudará, simplesmente porque o ser humano nunca

deixará de ser competitivo, ambicioso, covarde e infinitamente

cruel.

Qual é a diferença entre bruxas, santos e inquisidores,

sendo que todos somos filhos de um mesmo Pai? Quando nos

debruçamos sobre a relação entre as acusadas de feitiçaria com

os inquisidores que as conduziram em seus processos, muitas

vezes deparamos com essa pergunta. Especificamente,

respondo da seguinte forma: bruxas são pessoas que lutam por

uma ideia de liberdade que não condiz com as normas da Santa

Madre Igreja. Os santos foram pessoas que lutaram por um

ideal de paz. Mas, ao contrário das bruxas, baixaram a cabeça e

entregaram-se como ovelhas prontas para o abate. Devo dizer

que o fato de terem seguido as normas morais da Santa Madre

Igreja de nada lhes adiantou, pois muitos dos santos também

foram torturados e morreram da mesma forma que nós, bruxas.

Os inquisidores são pessoas que receberam da Santa Madre

Adriana Matheus

- 201 -

Igreja o poder de julgar o seu semelhante. Abusaram desse

poder para usufruir de benefícios próprios. Esses homens, além

de verem as coisas como eles querem, induzem seus supostos

acusados a falarem o que eles querem que seja dito em tribunal.

Essa foi a minha opinião formada a respeito da grande

diferença entre os santos, as bruxas e os inquisidores. Não me

importava o que a Inquisição pudesse me fazer, nunca poderia

deixar que se calasse a verdadeira voz da verdade. Como essas

pessoas poderiam se julgar superioras ou donas da verdade,

sendo que elas praticavam atrocidades e mentiam até mesmo

sobre a verdadeira palavra de Deus?

Grande parte das confissões foi obtida através de

requinte de crueldade. Sim, requinte de crueldade, pois, depois

de torturarem e matarem os inocentes, esses homens virtuosos e

sem pecados voltavam para suas casas e comportavam-se como

Lorde. Era como se a monstruosidade que eles praticavam nos

calabouços e nas prisões não surtisse nenhum efeito sobre a sua

consciência. Eles chamavam essa atrocidade de trabalho.

Tudo o que uma mulher fizesse era motivo para que

fosse acusada de feitiçaria. A suposta bruxa deixava de falar a

sua língua, passando a falar a língua do inquisidor, através da

manipulação ou da tortura.

A acusação por bruxaria surgia sempre a partir de um

suposto malefício. Podia ser a doença repentina de uma pessoa

ou de animais domésticos ou, em casos menos comuns,

problemas causados à plantação ou, ainda, ao próprio clima.

Em Salém, as denúncias surgiram a partir da súbita doença

inexplicável de meninas, que nada mais tinham do que uma

histeria coletiva.

Em Boston, em 1688, as filhas do senhor John

Goodwin, ao adoecerem, levaram a julgamento a senhora

Mary Glover. Ela era uma pessoa do convívio de todas aquelas

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 202 -

que a acusaram levianamente. Não importava qual fosse o

argumento, o importante era sempre achar um culpado e acusá-

lo de algum tipo de crime – pois, assim, parecia que aliviava a

culpa e a conciência daqueles hipócritas.

No vilarejo de Salém, ao norte de Boston, na colônia de

Massachusetts Bay, Nova Inglaterra, Sarah Good - uma

mendiga louca -, Sarah Osborne - uma parteira - e Tituba - uma

escrava indígena de Barbados - foram acusadas, em primeiro de

março do ano de 1692, de prática ilegal de feitiçaria e de

manterem contato com o demônio. Naquele mesmo dia, Tituba,

possivelmente sob coerção, confessou o crime, encorajando as

autoridades a iniciar uma caça às bruxas de Salém. Uma

verdadeira histeria coletiva espalhou-se, dando margem à

intolerância e ao fanatismo religioso que se seguiu. Tais

fatos vitimaram, no início, quase vinte pessoas inocentes. Os

problemas na pequena comunidade puritana começaram no

mês anterior, quando Elizabeth Parris - uma criança de apenas

nove anos - e Abigail Williams - de onze anos -, filha e

sobrinha, respectivamente, do reverendo Samuel Parris,

passaram a sofrer ataques compulsivos e outras misteriosas

doenças. O médico local, como não achou nada nas meninas,

concluiu que só poderiam estar sofrendo os efeitos de uma

bruxaria muito poderosa. Logicamente, elas colaboraram para

que o médico chegasse a essa conclusão. Na verdade, essas

santas e inocentes crianças estavam sendo usadas por seus pais

para acusarem pessoas que provavelmente eram odiadas por

eles. O reverendo Samuel Parris, por exemplo, cobiçava as

terras do senhor Giles Corey. E como o senhor Giles Corey

negou-se a dispor de suas terras, então, com a ajuda das

inocentes meninas, o reverendo Samuel conseguiu acusá-lo de

prática ilegal de bruxaria. Esse pobre homem, então, foi

sentenciado e executado por esmagamento. O devaneio dessas

Adriana Matheus

- 203 -

supostas inocentes crianças prosseguiu por muito tempo ainda.

Com isso, diversas pessoas inocentes - entre homens, mulheres

e até mesmo uma criança de quatro anos - morreram por terem

sido acusadas de praticar a bruxaria. Ao todo, dezenove pessoas

morreram por causa da pirraça e devaneio de treze meninas e

de seus pais gananciosos. Devo ressaltar que nenhuma dessas

pessoas praticou algum tipo de bruxaria contra nenhum de seus

acusadores. Todos os fatos ocorridos foram causados por

pessoas maliciosas, capazes de se valerem da imaginação de

meninas mimadas, mentirosas e dissimuladas. Esses tipos de

pessoas contribuíram para que o bom nome das bruxas e da

magia fosse denegrido de maneira corriqueira e leviana.

O fato é que a magia estava em todos os lugares,

embora ninguém quisesse admitir - por medo ou puro

preconceito. Os santos e os demônios também sempre, de

alguma maneira, estiveram interligados através da leitura e da

escrita. O próprio Santo Ofício mostra-nos diversos exemplos

de orações e conjuros, em que os nomes de Cristo, da Virgem

Maria e de santos misturam-se, numa mesma frase, aos de

satanás, Lúcifer e outras potestades infernais.

Afinal, há ou não diferença entre uma santa e uma

bruxa? Não sei ao certo. Diziam que santos nunca cometiam

pecados e que curavam os enfermos em nome de Deus. O fato

é que isso não é toda a verdade, pois existiram apóstolos que

foram corruptos e ladrões - assim como também existiu bruxa

incorruptível, que foi capaz de morrer apenas por acreditar em

uma causa de liberdade e de igualdade. Assim como os santos

curam em seus supostos milagres, curandeiros e bruxos

também o fazem. Eu mesma já ouvi e vi pessoas de bem dentro

da Igreja pedindo a Deus para matar a amante do marido em

oração. Algum tempo depois, soube da morte da amante.

Também já vi pessoas pedirem a outras divindades para serem

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 204 -

curadas de suas enfermidades, e também foram curadas. Na

verdade, não é a quem pedimos, mas com que força e fé

pedimos. Saber pedir é essencial, mas saber o que pedir é

primordial. Pois tanto Deus quanto o diabo irão atender ao

pedido do consulente devotado e aflito. A diferença é que Deus

sonda-nos para saber se somos merecedores de termos o pedido

realizado. Já o diabo concede quase imediatamente, pois -

devemos nos lembrar disso - está em constante disputa com o

Pai Maior.

Deixo registrado que nunca foi a minha intenção

glorificar o demônio. De modo algum – que isso fique bem

claro! Só estou tentando mostrar a igualdade das forças e a

grandeza da fé.

Somos Deus e também o demônio, porque nos foi dado

o livre arbítrio de poder direcionar a nossa vida e escolher qual

caminho tomar. Logicamente, se podemos escolher o caminho

do bem, por que, então, escolheremos o caminho mal? O

problema é que o ser humano está sempre querendo mais. Na

maioria das vezes, é derrotado pela falta de fé e pelo excesso de

vaidade que domina o seu ser.

Costumo dizer que o ser humano é infinitamente cruel

com a boca fechada e, com ela aberta, destrói e guerreia.

Somos fruto do pecado de nosso ancestral Adão, mas não

fazemos nada para nos livrar dessa praga.

Não somos francos, mas sim curiosos, teimosos e

inconsequentes quando desafiamos as leis de Cristo. Nossa

arrogância nos destrói, só nos leva ao inferno da consequência

dos nossos atos impensados. O pior é que não sabemos aonde

toda essa loucura temperamental chegará. Mas o certo é que

temos a obrigação de parar em algum momento de nossas vidas

e refletir que estamos nela para aprender e aprimorar. Foi para

isso que nos foi dada a chance de reencarnar. Ou será que

Adriana Matheus

- 205 -

vamos ficar como o vento, que sopra em qualquer lugar sem

direção, sem nunca poder ter um porto seguro para pousar?

Lembre-se: o vento é o nosso mensageiro, a alma do mudo, e o

seu destino é correr os quatro cantos da Terra, sem ter o direito

de parar - pois ao vento foi dada essa missão. Quanto a nós,

foi-nos incumbida a missão de cuidar da Terra e das coisas que

nela existem. Por isso, refletir e pensar sobre nossas ações e

atitudes é muito importante.

Utilizo aqui as expressões bruxas, feiticeiras e acusadas

de feitiçaria, no feminino, levando em consideração que uma

parte significativa da população condenada nos processos

inquisitoriais foi formada por nós, pobres mulheres, além do

fato de que o estereótipo da bruxa está muito mais consolidado

do que o do bruxo. As observações constantes, no entanto,

aplicam-se igualmente aos muitos homens acusados, julgados e

condenados pela Inquisição que, na maioria das vezes, eram

camponeses pobres e escravos, sem direito sequer a uma defesa

justa.

Terminei minhas anotações e fui para a janela,

agradecer ao Pai Maior pelas inspirações que Ele me deu.

Agradeci por tudo, pelos amigos maravilhosos que eu já tinha e

pelos que ganhei através do meu mais novo caminho. Em

minhas orações, pedi sabedoria e discernimento aos bons

espíritos, para que guiassem meus passos através da minha

mais nova jornada – que, embora transitória, seria de grande

valia para o meu aparelho. Pois ele ainda era só um aprendiz e

não estava pronto para a sua despedida, que seria em breve.

Pedi luz e compreensão para que, quando encontrasse o espírito

encarnado de Edward, pudesse fazê-lo entender seu erro

cometido no passado, quando fez a jura de me encontrar,

seguir-me e amar-me por toda a eternidade. Depois disso, fiz

alguns rituais de adoração ao deus Sol. Terminando minhas

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 206 -

obrigações matinais, observei a enorme floresta que cercava a

casa de Dona Helena e pude notar que as pessoas já estavam

todas acordadas, cumprindo suas obrigações e afazeres diários.

Como eu estava de pé, mas virada para a janela, não

pude perceber que Bernadete já estava acordada e observava-

me em todos os meus movimentos e ações. Quando me voltei

para o lado de dentro, ela falou:

– Agora sei, senhorita Anna. Está preparada para

enfrentar o que lhe for incumbido pelo universo através da

magia. Só se lembre de nunca esquecer o que aprendeu em sua

viagem astral, e de não usar os seus poderes para o mal. Deve

saber que, quando usar seus poderes para fazer algum feitiço ou

para entrar em sintonia com os espíritos, ficará fraca. Mas não

se assuste com isso: procure um lugar silencioso para repousar

e, se possível, durma, para que as suas forças voltem. Quando

isso ocorrer, é muito importante que, caso esteja perto de

alguém, essas pessoas não descubram de sua fragilidade,

principalmente os seus inimigos. Pois, nessa hora, ficará

vulnerável e indefesa - o que pode ser perigoso, pois qualquer

pessoa poderá prejudicar-lhe, seja física ou espiritualmente.

Dei um largo sorriso. Confesso que fiquei um pouco

encabulada por saber que Bernadete poderia estar ali havia

horas, observando-me. Depois de ouvir atentamente o que

Bernadete estava me explicando - embora já estivesse ciente de

tudo o que ela estava me dizendo -, achei melhor calar-me, pois

demonstrar humildade nunca é demais.

Quando percebi que minha jovem amiga havia feito

uma pausa em suas explicações, respondi:

– Aprendi muito com a minha viagem. Fiquei muito

satisfeita por saber que vou reconhecer o meu amor assim que o

vir.

Adriana Matheus

- 207 -

Bernadete baixou a cabeça e, com um ar pesaroso,

respondeu-me:

– Sinto muito ter que ser eu a lhe dizer isso, senhorita

Anna, mas não é bem assim: ele pode demorar a reconhecê-la, e

talvez nem a reconheça. Portanto, ao encontrá-lo, vá com calma,

para não confundi-lo ou assustá-lo. Sendo ele um monge, poderá

achar que está possuída por um espírito maligno - isso é muito

perigoso. Além disso, ele poderá excomungá-la. Lembre-se de

que o seu amor foi, no passado, um inquisidor. Mesmo que ele

não saiba disso, traz consigo, inconscientemente, as lembranças

de quem foi. Se a senhorita não tiver discernimento, poderá cair

no abismo da revolta e do desentendimento com ele. Os dois

precisarão estar em uma perfeita sintonia astral, para que se

reconheçam de imediato, assim como a senhorita deseja que

aconteça. Todos temos a obrigação de nos lembrarmos de nossas

vidas passadas. Mas, muitas vezes, o sofrimento ou a culpa nos

fazem querer apagar nossa memória passada. Lembre-se disso,

senhorita Anna, para que não se machuque com uma grande

decepção.

Embora soubesse que Bernadete estava correta, tive que

respondê-la com um pouco de intolerância, usando a plena

certeza do meu coração:

– Respeito tudo o que está me dizendo, minha querida

amiga. Mas tenho certeza absoluta de que ele também sonha

comigo e que está me esperando tão ansiosamente como estou

por ele. Em minhas visões, sei que ele é um homem solitário e

sem ninguém, assim como eu. Sinto o sofrimento dele, a

vontade dele de estar comigo, mesmo sem saber quem sou.

Talvez sua aparência física tenha mudado, mas nossos olhos

espelharão nossas almas, pois trazemos uma bagagem muito

grande de outras encarnações.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 208 -

Na verdade, não queria ouvi-la. Queria pôr minha

certeza acima de tudo, porque a certeza de amar e de ser amada

era a única coisa que me importava. Mesmo que Bernadete

estivesse coberta de razão, eu sabia que, muitas vezes, as

palavras, mesmo que verdadeiras, podem se tornar um veneno

para a nossa mente, pois acabam gerando dúvidas em nossos

corações. Por isso, quis calar a voz dela antes que entrasse

qualquer dúvida dentro da minha mente e do meu coração. Mas

Bernadete parecia ter a necessidade de tentar me orientar e,

antes mesmo que eu tentasse argumentar novamente, ela

prosseguiu:

– Sua certeza deixa-me, sinceramente, preocupada,

senhorita Anna. Temo por uma grande decepção. Fala como se

já tivesse se comunicado com esse homem antes. É como se ele

já tivesse falado do amor dele por você.

– Quem garante que ele não falou? Não é fato que, em

nossos sonhos, podemos sair de nossos corpos físicos e viajar

através espaço? Não é verdade que, através dos nossos sonhos,

chamamos um espírito para junto de nós? Digo-lhe, minha

querida amiga, que isso já aconteceu comigo várias vezes.

Bernadete, estou presa a esse homem por causa da jura de amor

que, por mais inconsequente que pareça, ligou-nos através do

tempo e do espaço. Se esse homem é o meu suposto amor, e se

realmente está vivendo nesse convento ou mosteiro com o qual

vivo sonhando, com certeza é porque meu destino está ligado ao

dele. Confio no destino e, de alguma maneira, ele se incumbirá

de nos colocar juntos. Não se preocupe, minha querida amiga:

estarei preparada, mesmo que ele me rejeite a principio, pois

aprendi que a espera e a paciência nos fazem sábios e fortes.

Mas uma coisa é certa: tenho que encontrá-lo e não poderei

rejeitá-lo, mesmo que seja desprezada por ele.

Adriana Matheus

- 209 -

– Senhorita Anna, está tão mudada depois que voltou da

viagem! Não parece a mesma pessoa que aqui chegou, cheia de

dúvidas e perguntas tolas. É como se agora outra pessoa tivesse

tomado seu corpo físico. Parece que agora a senhorita sabe todas

as respostas e faz-me acreditar em tudo, pela forma firme com

que direciona suas certezas. Sabe, quando fiz minha viagem,

pensei ter voltado forte e preparada para enfrentar todas as

minhas dúvidas. Pois não estava certa se o meu noivo Magald

era meu verdadeiro amor, porque eu vivia em um mundo de

conflitos e angústias desnecessárias. Se quer saber, até hoje

ainda tenho algumas dúvidas sobre o nosso amor. Mas a

senhorita voltou muito forte, sábia, e tão segura! Minha tia

Helena tem razão quando disse que a senhorita é uma bruxa

muito poderosa. Fomos abençoadas por termos lhe despertado

esse dom. Sabe o que mais? Tenho muita sorte por tê-la

conhecido, por sermos amigas agora. Na verdade, agora sou eu

quem tem muito o que aprender com você, senhorita Anna. Se a

senhorita me permitir, quero ser sua aprendiz nos segredos da

magia.

Dei um sorriso prazeroso, mas lhe disse:

– Teria a maior honra em tê-la como minha aprendiz,

minha cara Bernadete. Porém, seu destino já está escolhido e

creio que não poderia tê-lo feito de maneira mais sábia.

Acredite: terá ao lado de seu noivo Magald dois lindos filhos, e

ambos serão muito felizes. Cada um nesta vida tem a sua

jornada já programada pelo destino. A sua não poderia ser

melhor: é tranquila, feliz e sem problemas.

Disse isso porque toda a vida daquela jovem passou

perante meus olhos, nitidamente. Naquele momento, eu acabara

de ser abençoada com o dom da visão.

Bernadete, depois de me ouvir em silêncio, sorriu-me

largamente, pois ficou feliz por ter-lhe revelado algo que ela já

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 210 -

sabia, mas em que não confiava – pois, como todo ser humano,

ela não cria em suas próprias intuições. Muitas vezes, temos a

certeza de que nossos projetos de vida irão dar certo, mas, por

vivermos ansiosos e cheios de perguntas, acabamos por não

acreditar nas respostas do nosso coração. Todos temos a visão

do nosso próprio futuro, só que não damos muita credibilidade

ao dom maravilhoso que Deus nos deu. Preferimos consultar,

então, cartomantes, quiromantes e outras pessoas que nem

sempre são honestas em suas previsões. Isso só nos serve para

nos confundir sobre o que realmente pertence a nós. Todas as

respostas estão dentro de nós mesmos. Somos o nosso próprio

guia - basta que acreditemos e confiemos em nossas intuições.

Isso quer dizer que podemos abrir ou fechar as portas da

prosperidade, cuja chave está dentro da nossa mente que, muitas

vezes, está insana ou debilitada pelos muitos fracassos já

ocorridos em nossas vidas.

Tudo o que nos acontece, de alguma maneira, é porque o

programamos mentalmente. No entanto, ao invés de termos

pensado em algo destrutivo, poderíamos ter simplesmente

pensado em algo muito grandioso e produtivo. Mas o ser

humano prefere pensar negativo e se passar por coitado, do que

tentar pensar positivo e ver as coisas maravilhosas que os

pensamentos felizes podem lhe trazer.

Cada vez que uma bruxa chora e usa seu poder, ela

enfraquece, pois a lágrima tira-lhe a visão real das coisas.

Quando uma bruxa faz um feitiço, isso também ocorre, porque

ela está gastando sua energia espiritual. Então, ao invés de

ficarmos danificando nossos pensamentos com coisas supérfluas

e desnecessárias que não nos levam a lugar nenhum, devemos

pegar um bom livro para ler, pois o saber é o ponto-base da

capacidade de uma bruxa. Somos eternas aprendizes, inclusive

de nós mesmas. Não devemos ter um autor específico: mesmo

Adriana Matheus

- 211 -

os mais chatos e banais têm algo a nos ensinar. Pois nossa mente

tanto nos é produtiva como também autodestrutiva.

Devemos aprender a trabalhar o silêncio mental. Esse é o

mais difícil de todos os dons, pois a mente nunca para de falar.

Muitas vezes suas palavras transformam-se em ofensas ou

injúrias. As palavras que saem da nossa boca podem se

transformar em uma coisa extremamente prejudicial para nós

mesmos. Principalmente quando não confiamos em nossas

intuições e saímos por aí, pedindo ajuda a qualquer pessoa que

não tem um bom caráter...

Certa vez, Maria contou-me a história de uma jovem

mulher que recebeu, em seus sonhos, a notícia de que ganharia

uma grande herança, vinda de um parente do interior. Essa

mulher nunca chegou a conhecer o suposto parente e, ainda por

várias noites seguidas, continuou a ter o mesmo sonho. Tudo o

que ela deveria fazer foi-lhe confirmado, inclusive o dia e a hora

em que ela receberia a suposta herança. Então, a jovem ansiosa

mulher foi invadida por um espírito de vaidade excessiva e

acabou se tornando desleal consigo mesma: contou aquela

história a todos que encontrou pela frente. Criou, então, uma

energia ao seu redor de inveja e zombarias, pois muitos, por não

acreditarem nela, também a chamaram de louca.

A mulher, por não ter confiado em sua própria intuição,

correu a uma bruxa, que diziam ser bastante eficaz em revelar

inclusive os sonhos. Lá, a jovem mulher contou-lhe tudo o que

estava passando. A suposta bruxa ouviu-a em total silêncio e,

mesmo depois de ter recebido uma resposta positiva através de

suas cartas, disse à sua consulente que era apenas um sonho,

tornado frequente na vida dela porque ela estava preocupada

com suas muitas dívidas. A suposta bruxa, então, mandou que a

consulente voltasse para casa e esquecesse toda aquela tolice,

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 212 -

pois só lhe faria mal. Em seguida, despachou-a rapidamente,

sem nenhuma explicação.

Assim que a mulher saiu, a suposta bruxa, muito esperta

e nada honesta, correu e arrumou suas malas, seguindo para o

interior, onde a consulente descrevera que estaria o suposto tio

moribundo. Chegando lá, a vigarista encontrou realmente o

homem velho moribundo e bastante carente, pois havia perdido

contato com seus verdadeiros parentes muito tempo atrás. A

espertalhona correu em se apresentar ao pobre homem como

sua sobrinha, usando os nomes dos parentes que a consulente

lhe havia narrado em sua história. Contou, também, a triste

história de vida da consulente: que sua mãe e irmã tinham

morrido de tifo, e que não tinha mais nenhum outro parente

próximo ou vivo no mundo a não ser ele. O pobre homem, que

já estava com a sua saúde bastante debilitada, ficou comovido

com a história da bruxa e recebeu-a em sua casa de braços

abertos, acolhendo-a sem nenhum problema ou sequer tentar

fazer uma investigação. Aí, a falsa sobrinha cuidou do velho

homem e, quando ele morreu, deixou para ela toda a sua fortuna,

entre empregados e muitas terras.

Devemos aprender uma lição com este pequeno conto:

nunca confiar nossos segredos a quem não conhecemos. E,

quando se tratar de uma premonição então, devemos guardá-la a

sete chaves. Não devemos nunca duvidar do dom que nos é

dado, porque, com certeza, é uma dádiva divina. Só procuramos

uma bruxa, cartomante, vidente ou quiromante se não tiver outro

recurso. Deve-se sondar muito bem se a pessoa com que a

consulente irá se consultar é verdadeiramente idônea. Mas,

acreditem, todos temos uma boa intuição a nosso próprio

respeito. Devemos aprender a ouvir nosso coração: ele só nos é

enganoso se deixarmos nossa mente interferir sem ser

Adriana Matheus

- 213 -

convidada. Todos temos um dos nove dons dados por Deus. Nas

horas mais difíceis, ele nos servirá de leme.

Conversei por muito tempo ainda com Bernadete e

contei-lhe sobre os feitos do diário que ela havia me dado.

Afinal, ela precisava saber que seu avô não era um contador de

histórias. Ela ficou tão maravilhada quanto eu. Em seguida,

disse:

– Fico muito feliz por ter me contado tudo isso. Mas sei

que esse diário era para ser somente seu, pois ele a escolheu. Sei

disso porque, por diversas vezes, tentei escrever nele e nada

aconteceu de tão grandioso como aconteceu com você. Esse

diário, na verdade, só me usou como intermediária para chegar

até as suas mãos.

Fiquei muito emocionada por Bernadete ter-me dito

aquelas palavras. Então, agradeci-lhe, dando um afetuoso

abraço. Iríamos combinar de fazer alguma coisa juntas durante a

tarde, mas bateram à porta do quarto e tive que ir atender, pois

Bernadete estava ainda deitada.

Era Maria, pedindo para que descêssemos para o

desjejum e para que me preparasse para o nosso retorno de volta

a casa. Nós duas sorrimos e nos entreolhamos, pois estávamos

com fome. Eu e Bernadete apressamos em nos arrumar para o

desjejum. Ela me ajudou com algumas coisas que eu precisava

terminar de arrumar. Eu já não tinha muito a levar de volta, pois

dei todos aqueles meus vestidos que havia levado para

Bernadete e suas irmãs. A alegria de seus rostos foi como um

elixir para minha alma. Estava começando a aprender que dar

era bem melhor do que receber e guardar. A vida é passageira e

curta. Devemos, então, dar o melhor de nós para termos uma

existência feliz - mesmo que, como eu, a pessoa já tenha a

consciência de que ela será breve.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 214 -

A despedida não foi muito feliz, pois sabia que nunca

mais as veria novamente. A velha senhora, de nome Andélia,

também estava presente e deu-me duas coisas que encheram

meus olhos de lágrimas. A primeira foi a cruz torta, para me

identificar com as demais do grupo, pois eu já estava fazendo

parte daquela grande família. A segunda foram muitas pétalas de

rosas brancas, para eu ir jogando pelo meio do caminho. Esse é

o ritual que serve de libertação: significa que estamos

recebendo, com flores, nosso novo caminho, deixando para trás

toda a tristeza e a dúvida que nos perseguia.

A velha Anna havia ficado para trás. A Anna mimada,

covarde e medrosa. A Anna melancólica e triste. A Anna

materialista e cheia de perguntas tolas havia morrido naquela

fogueira, dando lugar a uma mulher segura, forte e sem medo do

escuro. Na verdade, eu havia ressuscitado de algum lugar que

estava dentro de mim e que eu não me lembrava, até então.

O medo e as condições impostas pela sociedade que me

cercava fizeram com que, muitas vezes, me sentisse incapaz de

enfrentar as coisas mais simples e corriqueiras. Na verdade,

todos somos frutos daquilo em que acreditamos. Deixamos,

muitas vezes, que as pessoas que nos cercam direcionem e

conduzam, com palavras ou atitudes, nossa vida pessoal. Isso

não pode de maneira alguma acontecer, porque somos seres

individuais e temos que seguir sem nos deixarmos ser

manipulados.

Criticar é mais fácil do que elogiar. Duvidar é mais fácil

do que acreditar. Confiar em si própria quase nunca acontece.

Ignorar é mais fácil do que ajudar. São pequenas coisas que

passam pela nossa frente e que, às vezes, ficam despercebidas,

mas que poderiam ter feito muita diferença na vida de outras

pessoas se não fossemos tão egoístas. Se não estivéssemos tão

preocupados com o que os outros pensam de nós, talvez

Adriana Matheus

- 215 -

pudéssemos fazer do ambiente ao nosso redor um lugar mais

harmonioso e civilizado. Não podemos mudar o mundo todo,

mas poderíamos mudar o nosso meio de vida, fazendo de nós

mesmos pequenos exemplos em que pessoas aflitas e cheias de

problemas possam se espelhar. Poderíamos ser uma autoajuda

ambulante, mas fazemos o contrário: tornamo-nos fracos e

problemáticos. Na verdade, duvidamos da nossa capacidade

infinita de renovação. E é tão simples! Basta um sorriso e uma

palavra gentil. As pessoas esperam de nós o que esperamos

delas. Quando alguém carrancudo se aproximar, devemos lhe

sorrir. Na verdade, ele só deve estar triste ou com algum

problema pessoal ou até mesmo espiritual. Se o tratarmos com

desprezo, intolerância e mau humor, ele, com certeza, ficará

ainda mais exasperado do que já estava. Ouvi, certa vez, uma

história que Maria me contou. Entre tantas outras histórias, essa

me pareceu afinar-se como exemplo do que tenho dito.

Um cavaleiro passou por uma menininha,

acompanhada de sua mãe. Ele as olhou como se as

desprezassem, mesmo sem nunca tê-las visto antes. A mãe,

por sua vez, estava com tantos problemas em sua cabeça que o

tratou de igual modo. Virou-lhe o rosto e, ainda, disse-lhe

palavras ofensivas. Tudo teria terminado com o desprezo

dessas duas pessoas. Cada qual seguiria o seu caminho, e

ambas passariam um dia péssimo, pois aquelas pessoas

haviam trocado energias negativas. Mas o senhor olhou,

também, para a pequena criança, que lhe sorriu

espontaneamente.

Pensou, então, consigo mesmo: Uma mãe tão

antipática, e uma criança tão angelical: que controvérsia! E,

sem querer, esboçou um sorriso. Um amigo, que passava por

ele naquele momento, parou-o e perguntou o motivo da

alegria. Ele, por sua vez, contou ao amigo, que acabou por lhe

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 216 -

convidar para tomarem uma xícara de chá. Os dois

encontraram entre si motivos diversos para sorrirem. De

repente, aquele senhor carrancudo estava de bem com a vida e

se sentiu capaz de enfrentar seus problemas. Ao olhar para a

porta do estabelecimento onde ele e o amigo se encontravam,

percebeu que a menina e a senhora entraram, sentando-se bem

ao lado deles. Aquele senhor, então, não perdeu tempo:

levantou-se, e apresentando-se à mãe da menina, convidou-as

para tomarem uma xícara de chá com ele e o amigo.

Depois de se desculpar por ter parecido grosseiro, ele,

durante a conversa que tiveram, descobriu que ambos eram

viúvos e que suas tristezas estavam lhes tornando pessoas

amargas. Por não conseguir superar a falta de sua amada

esposa, e ela por estar tão preocupada com o que a sociedade

falaria dela, acabavam por se esquivar sempre de fazer novos

amigos. Assim, com aquele comportamento da menininha,

todos acabaram tendo uma tarde muito agradável. Com

certeza, ele encontrou uma nova companheira para lhe auxiliar

em sua jornada terrena... O poder está em nós mesmos, não

nos outros. Um gesto, que pode nos parecer simples e banal,

pode ter uma força inenarrável.

O caminho de volta para casa foi tranquilo e sem

nenhum problema. Eu e Maria conversamos sobre minha

viagem astral e sobre o quanto estávamos nos sentindo bem

espiritualmente. Fizemos planos sobre algumas coisas que eu

faria ao chegar em casa.

Cochilei bastante no decorrer do caminho, só para variar!

Mas, dessa vez, não tive sonhos turbulentos. Aliás, não sonhava

com o monge desde que retornei da viagem. Mas, para mim, o

importante é a certeza de que estava em meu coração. Estava

muito feliz por ter sido iniciada como bruxa, e não deixaria

ninguém invadir o meridiano imaginário que me separava do

Adriana Matheus

- 217 -

mundo real do meu novo mundo. Lógico, sempre ouviria a todos

com atenção e educação. Mas fazer o que me diziam, só se meu

coração dissesse que sim. Caso contrário, entraria por um

ouvido e sairia pelo outro. Devemos nos lembrar de que nunca

nos é demais aceitar conselhos – mas, se fossem tão bons,

colocaríamos uma tenda e os venderíamos bem caro...

A estrada estava ainda mais bela do que quando

ingressamos. Então, resolvi manter-me bem acordada, sem

cochilar: dessa vez, queria estar alerta a tudo. Maria

compartilhou alguns segredos comigo. Depois, o cansaço a fez

dormir, por fim. Era muito engraçado vê-la naquele estado

ébrio. De vez em quando, ela arregalava os olhos, por causa do

susto que levava quando a carruagem passava por cima de

algumas pedras. Na verdade, nós duas estávamos muito ansiosas

para chegar e poder tirar as roupas empoeiradas e os sapatos

apertados. Foi quando Lorenzo avisou-nos de que chegaríamos

em casa em quatros horas. Ou seja, quando a Lua já estivesse

alta no céu. Estava contente e pronta para iniciar minha missão

como a mais nova bruxa daquele condado.

“O amor é um sentimento abstrato. Não podemos tocá-

lo, não podemos vê-lo. Mas podemos dá-lo através de várias

maneiras. Quem ama não tem medo, orgulho ou dúvida. A

pessoa que está amando quer somente ter a certeza de que será

feliz. O lugar não importa; com quem, não interessa. Mas que,

quando esse amor chegar, seja bem vindo... Aceitar quem nos

ama. muitas vezes. pode não nos ser conveniente, pois,

infelizmente, só conseguimos ver as aparências físicas. Mas, se

realmente queremos um verdadeiro amor, basta olharmos para

nosso próximo com os olhos de Deus. Aí, sim, passaremos a

enxergar a verdadeira beleza escondida por trás da aparência

física. Difícil é compreender que as rosas, no meio de tanta

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 218 -

beleza, escondem espinhos que podem machucar o coração do

homem. E que, em alguns espinhos, encontramos a cura para

nossas doenças. Encontre o seu amor e viva com sabedoria. Só

não pise nas pessoas menos favorecidas, porque elas também

tiveram seus espinhos - talvez causados por rosas, como

você...”.

Adriana Matheus

- 219 -

IV – O segredo de Elizabeth

uando a carruagem finalmente parou frente à

minha casa, respirei profundamente, aliviada

por termos chegado. Estava mesmo ansiosa

para poder colocar todos meus planos em

prática. Tive que despertar Maria, que caíra em sono profundo.

Havia tantas coisas a fazer... Comecei a pensar nas mudanças

que faria em meu quarto, nos objetos que compraria para dar

início ao ritual da Lua, já que estava atrasada com o meu

primeiro equinócio de outono. Eram muitas as coisas que

precisava fazer antes que se cumprisse meu destino. Como sabia

que meu tempo era curto, precisaria correr contra ele.

De repente, dei-me conta do quanto a ansiedade estava

tomando conta de minha mente. Então, fechei brevemente

meus olhos e fiz uma oração silenciosa. Respirei

profundamente e contei o máximo que pude. Soltei lentamente

o ar pela boca. Então, quando abri os olhos novamente, já

estava mais calma e Lorenzo abria a porta da carruagem para

nós. Com a sua ajuda, pude descer da carruagem, apoiada em

Q

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 220 -

suas mãos. Olhei para o céu, lindamente estrelado, e pude

certificar-me que a Lua estava lá, como já havia previsto.

Fique de pé, ao lado da carruagem, observando Maria

acabar de descer. Foi muito engraçado vê-la, ainda meio

sonolenta, tropeçando em seus próprios pés.

Joseph e Tereza vieram receber-nos. Maria, por sua

vez, não parava de indagar à pobre mulher, querendo saber

como tudo ocorreu durante a sua ausência. Rubens, um

escravo de confiança da casa, carregou a bagagem para dentro.

Enquanto Maria seguia com Tereza, Lorenzo e Joseph

levavam a carruagem e os cavalos para o estábulo. Por minha

vez, fui caminhando tranquilamente em direção à casa. Afinal,

devido aos muitos afazeres de todos, parecia que eu havia sido

completamente abandonada e esquecida - o que era hilário.

Porém, isso me deu tempo para pôr minhas ideias e

pensamentos em ordem.

A grama ficou verde musgo por causa da luz do luar.

As pedras brancas, postas ao caminho para servir de passarela,

davam certo ar de conto de fadas. A escadaria ficou

completamente iluminada por causa da luz da Lua. Subi

lentamente cada um daqueles degraus, observando até mesmo

os pontinhos luminosos das pedras. Antes de colocar a mão na

maçaneta, dei uma boa espreguiçada, pois meu corpinho

cansado só queria um bom banho e cama naquele momento, é

claro!

Antes de entrar, ainda pensei Apesar de tudo, era bom

estar de volta à casa e poder desfrutar dos momentos em

família novamente, mesmo que raros. Engraçado, mas estava

com saudades até das rabugices e arrogâncias da condessa.

Ao entrar, nem mesmo olhei para os lados. Corri,

subindo as escadas, indo direto para o meu quarto. Desarrumei

rapidamente as malas, colocando minhas roupas em cima de

Adriana Matheus

- 221 -

uma poltrona, para que, no dia seguinte, a aia viesse pegá-las

para serem lavadas.

Depois de algumas horas, a copeira, parecendo

adivinhar o meu desejo, trouxe água para meu banho. Só que,

desta vez, fiz com que ficasse admirada, pois pedi que

preparasse uma poção para colocar na água do banho. Tirei da

bagagem um pequeno saquinho com ervas que havia trazido

comigo na viagem. Eram folhas secas de hortelã e cascas de

maracujá. Ela, embora tivesse achado aquela atitude muito

estranha, deu de ombros, sacudiu a cabeça negativamente e

saiu para fazer o que eu havia pedido.

Aquela mistura de erva e casca de fruta, ao ser

colocada na água, faria relaxar-me e ter uma boa noite de sono.

Esse tipo de preparado também pode ser tomado como um chá.

Mas, naquele dia, preferi usá-lo como um bálsamo

aromatizante para banho.

Maria, que sempre estava atenta a tudo, trouxe-me um

chá de camomila com biscoito logo que a copeira saiu.

Enquanto ela arrumava a bandeja na mesinha, pude perceber,

através de seus movimentos, que havia algo errado no ar.

Maria parecia querer dizer-me algo, mas estava sem saber

como falar.

Percebendo aquela situação, disse-lhe:

– Maria, está acontecendo alguma coisa. Se a senhora

tem algo a me dizer, então diga.

Ainda de cabeça baixa, arrumando os guardanapos,

mas sem olhar para mim, ela falou:

– Percebi que a senhorita pediu à copeira para que lhe

fizesse um banho de relaxamento!

– Sim, Maria. Pedi sim, admito. Estou precisando ter

uma boa noite de sono.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 222 -

– Fico satisfeita que já esteja colocando em prática os

seus dons, mas me preocupa que tenha pedido logo a uma

estranha e não a mim. Essa atitude sem pensar de sua parte

pode colocar nós duas em risco. Afinal, deveria saber que a

copeira é fiel à senhora Del Prat.

– Desculpe-me, Maria, jamais a colocaria em risco.

Infelizmente, agi sem pensar. Mas achei que a senhora estava

ocupada demais com os seus afazeres. Por isso pedi à nossa

copeira. Sinto muito, estou muito decepcionada comigo

mesma.

– Senhorita Anna, conhecendo-me como a senhorita me

conhece, sabe muito bem que jamais deixaria de atender a um

pedido seu. Não se preocupe, porque já dei a ela uma desculpa,

dizendo que esse banho é coisa da minha irmã que, por ser do

interior, sempre tem dessas manias antigas. Mas, da próxima

vez, tenha mais cuidado.

Baixei a cabeça numa atitude de constrangimento e

nada mais disse. Maria, por sua vez, arrumou a xícara de chá

com biscoitos em cima da mesinha e saiu, parecendo ter

percebido que eu havia ficado muito sem graça. Ela estava

completamente correta: eu poderia ter-nos colocado em uma

situação muito arriscada, principalmente se minha madrasta

tivesse visto e ouvido o que pedi à copeira. Sei que era apenas

um banho - mas, na mente doentia da condessa, aquilo seria

um feitiço. Precisava definitivamente controlar minhas atitudes

levianas e emoções, e pensar dali para frente. Precisava

definitivamente, também, tomar cuidado com a ansiedade e a

vaidade.

Quem me trouxe a água para o banho foi Inaynmin, a

jovem escrava, filha de Joana. Ela, depois de colocar na tina a

água junto com o preparado que eu havia pedido, fez uma

pequena observação:

Adriana Matheus

- 223 -

– Não sei o que a senhorita andou fazendo no interior

junto à Maria, mas tenha muito cuidado quando for pedir

certas coisas à copeira. Não a estou criticando, senhorita, de

modo algum. Afinal, sei que todas temos certos segredos e, se

são segredos, devem continuar ocultos, não acha?

Disse tais palavras e saiu, deixando-me meio

apreensiva e também muito pensativa. Afinal, que segredo

poderia ter a jovem escrava Inaynmin, sendo que Joana nunca

a deixava sozinha? Pensei, por fim, A vida é mesmo cheia de

mistérios. Imagine só! Obviamente, eu teria que descobrir que

segredos a jovem escrava Inaynmin haveria de ter. E como ela

sabia que eu tinha um segredo? É, pensei comigo, a vida está

repleta de surpresas...

Dormi como um anjo a noite toda, depois do banho e

do chá que Maria havia preparado para mim. Para falar a

verdade, aquela noite nem me lembro de ter vestido a camisola

após ter tomado banho, pois estava tão relaxada que, mesmo

depois de ter cometido tamanho deslize, não pude ver muita

coisa, pois o sono pegou-me no colo e levou-me para o mundo

dos sonhos.

No dia seguinte, ao acordar, depois de dar um enorme

bocejo, percebi um ventinho frio entrando pelo meu quarto.

Levantei para ver o que era. A janela estava completamente

aberta. Virei o rosto rapidamente e o cobri com o lençol, pois o

Sol entrava intrépido pelo quarto. Não me lembro de ter-me

esquecido de fechar as janelas e as cortinas na noite anterior!

Fiquei pensativa, imaginando quem poderia tê-las aberto.

Quando Maria viesse ao meu quarto, perguntar-lhe-ia sobre

isso.

De um salto só, consegui sair da cama. Como precisava

resolver muitas coisas que tinha em mente, quis correr contra o

tempo. Quanto mais cedo, melhor seria. Além do quê, não

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 224 -

poderia dar margens a que minha madrasta levantasse antes de

mim e tentasse impedir-me de fazer as coisas que eu precisava

pôr em prática. Muita coisa mudaria com o meu retorno da

casa de Dona Helena e, se minha madrasta desconfiasse,

poderia enlouquecer de vez – ou, o que era pior, poderia tentar

algo contra minha vida, pois a condessa era imprevisível e

cheia de artimanhas.

Mas, como eu era uma boa moça, comecei a me

preocupar com a frágil saúde da pobrezinha... Então, achei

melhor aos poucos ir demonstrando a minha mais nova

personalidade. Assim, evitaria que ela tivesse uma síncope.

Aqueles pensamentos maldosos e irônicos precisavam sair da

minha mente. Mas era inevitável querer dar uma pequena lição

na minha madrasta. Afinal, durante anos ela foi muito má com

todos naquela casa. Mas isso seria apenas uma lição e não uma

vingança, pois não era da minha índole querer vingar-me de

quem quer que fosse - até mesmo de uma mulher como a

condessa.

Enquanto eu colocava aqueles pensamentos irônicos

em dia, percebi que Maria estava à porta e disse-lhe:

– Entre, Maria. Sei que é a senhora que está aí fora!

Ao entrar, ela disse, arregalando os olhos e

prosseguindo com aquela conversa:

– Minha nossa! Isso foi para me impressionar? Saiba

que já conseguiu, viu? Estou mesmo impressionada com

tamanha perspicácia. Aliás, já está usando seus poderes de

adivinhação, é?

Dei um sorriso largo e sincero e, depois, falei:

– Não preciso ser adivinha para saber que só poderia

ser a senhora, pois sei que sempre fica atenta a todos os

movimentos desta casa. Sei que sempre presta atenção ao

barulho do fechar e do abrir de cada porta, e que sabe de qual

Adriana Matheus

- 225 -

cômodo ele veio. Concluindo pelo pulo que dei no chão ao me

levantar, sei que a senhora soube de imediato que eu já estava

de pé. Afinal, quem mais vem ao meu quarto além da senhora?

Nem mesmo meu pai quando está em casa, pois sempre me

pede para descer quando precisa falar algo comigo.

– Chega, já conseguiu impressionar-me! Confesso que

não sabia que eu era tão previsível assim.

Ela sorriu, tentando disfarçar que estava sem graça,

pois, no mínimo, desconfiou que eu também soubesse que ela

escutava atrás das portas. Para mudar um pouco o rumo

daquela conversa que não me levaria a lugar algum, perguntei:

– Então, como está tudo? Está do jeito que a senhora

gosta? A propósito, que horas são?

– Como está tudo? Nem pode imaginar a imensa

confusão que esses incompetentes aprontaram na minha

cozinha. Por causa desses transloucados, fiquei até altas horas

acordada, areando várias panelas de cobre. Com isso, hoje

estou morrendo de dores pelo corpo todo.

– Maria, Maria... Por que ficou até tarde fazendo um

serviço que não era da sua ossada? Sabe muito bem que

poderia esperar até o dia amanhecer e pedir a Joana que fizesse

isso.

– Nunca, de jeito algum! Esses incompetentes já

deveriam ter deixado tudo pronto e arrumado a meu gosto,

para evitar que eu tivesse mais um aborrecimento como esse.

Além do mais, não gosto de deixar nada para depois. Gosto de

ver o serviço pronto a tempo e à hora. Não quero mais discutir

sobre isso com a senhorita. Sou desse jeito, sempre fui assim.

Não será agora, com a minha idade, que vou mudar.

Fiquei olhando-a, sem nada mais conseguir dizer.

Maria era uma mulher que gostava da perfeição. Um jarro fora

do lugar era motivo para que ficasse nervosa. Então, tentei

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 226 -

novamente mudar o rumo daquela conversa, que já estava

partindo para a área da neurose. Respirei fundo, tentando não

ficar nervosa. Então, perguntei-lhe novamente:

– A senhora, por favor, poderia dizer-me, sem muitas

palavras, que horas são?

– São quase oito. Veja como o Sol está alto no céu. O

tempo não para, minha filha. A vida passa em um piscar de

olhos. E se tem a intenção de irmos a algum lugar, é melhor

que seja bem rápida, antes que a condessa Del Prat levante-se e

comece a me chamar como uma louca.

Embora eu tivesse pedido para que Maria me

respondesse em poucas palavras, vindo dela não poderia

esperar uma frase sem um longo discurso junto. Então, acabei

de vez com aquela conversa, pedindo-lhe para fazer uma

tarefa:

– Maria, por favor, esquente a água para eu tomar

banho, pois tenho muitas coisas para fazer hoje na cidade.

Tenho que ir a alguns lugares e comprar algumas coisas que

me estão faltando.

– O que poderia estar faltando para a menina?

– Coisas para eu começar meu trabalho. Coisas que

nunca pensei em usar, mas que agora sei que vou precisar.

– Não acha que está se precipitando novamente em

tomar certas decisões, minha filha? Pense um pouco: deveria

agir com um pouco mais de prudência e cautela.

– Em tudo o que me diz, vejo coerência e sensatez.

Mas, infelizmente, minha querida Maria, desta vez não poderei

atendê-la, pois tenho mesmo que comprar essas coisas que me

faltam. E isso tem que ser bem rápido, porque o meu tempo é

curto demais.

– Por que está me dizendo que seu tempo está curto?

Está pensado em me abandonar? Já sei, arrumou um pretende e

Adriana Matheus

- 227 -

nem me contou! Que egoísta! Logo eu, que sempre lhe fui tão

fiel... Agora estou aqui, merecedora desta desfeita.

– Lógico que não, Maria! Não vou deixá-la nunca.

Apenas sei que tenho coisas a fazer que, se eu não correr e

colocá-las em prática, não conseguirei terminar tudo a tempo.

– Mas precisa ser assim, desse jeito? Parece até que a

menina está com uma sangria desatada.

– Ora, Maria, parece que tirou o dia para me azucrinar

as ideias! Vamos, ande, vá preparar meu banho e arrume-se

rápido. Além de tomar banho, também tenho que me arrumar.

– Está bem, a menina não precisa me tratar assim. Vou

descer, tenho que pedir permissão à condessa Del Prat para lhe

acompanhar. Afinal, sou apenas uma serviçal nesta casa. Não

tenho o menor valor!

Olhei para Maria com certo ar zombeteiro e falei-lhe:

– Maria, sabe muito bem que nunca lhe vi como uma

serviçal! Pare de ser tão dramática, pelo amor de Deus! E

mais: de agora em diante, também dou ordens nesta casa. Se a

condessa desaprovar qualquer atitude minha, vai ter que

engolir um sapo boi, pois as coisas mudaram.

Maria arregalou os olhos e ficou na minha frente,

estática. Depois saiu de mansinho, dando um sorriso que mais

parecia de satisfação - o que me deixou curiosa e fez-me

perguntar-lhe:

– Isso quer dizer que a senhora aprovou essa atitude

minha?

– Não sei, depois de quase eu ter sido lançada porta

afora como um cão sarnento pela senhorita, isso quer apenas

dizer que estou surpresa por ver a menina assim, tão senhora

de si.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 228 -

Dizendo isso, Maria saiu, deixando-me a sós. Eu a

amava e isso era um fato. Mas, às vezes, Maria ironizava

muito as coisas e aquilo me tirava do sério.

Assim que a escrava trouxe-me a água para o banho,

não me demorei e arrumei-me o mais rápido que pude. Fiz

uma pequena lista de todos os ingredientes e utensílios que eu

precisaria. Maria ainda veio avisar-me que estaria pronta assim

que eu estivesse, e que teve a permissão da minha madrasta

para sairmos. Isso me foi uma surpresa. Senti no ar que a

condessa tentaria aprontar alguma coisa contra mim. Então,

esperei Maria sair para que pudesse fazer uma oração e

fortalecer meu espírito. Em seguida, saí do quarto e apressei-

me em descer as escadas correndo. Mas deparei-me com a

condessa, que me estava esperando no último degrau, com as

mãos na cintura e ar de soberania. Logicamente, isso não me

era mais uma surpresa. Respirei profundamente e fui descendo

vagarosamente as escadas, pois sabia que, se ela estava me

esperando, boa coisa não aconteceria.

Ficamos frente a frente e, depois de muito cambalear e

de ter-me feito uma cara feia - que não consegui compreender

se era de fome ou de enjoo causado pelo hálito de bebida que

saía da sua boca -, ela falou:

– Onde a senhorita pensa que vai? Não me lembro de

ter-lhe dado permissão para que saísse.

Dei um sorriso matreiro e fui caminhando calmamente,

circulando em volta dela. Ao dar uma volta completa entorno

dela, disse-lhe assim:

– Sério? Pelo que me consta, a senhora deu, sim,

permissão à Maria para que ela saísse comigo.

– Não me lembro de ter dado tal autorização à Maria! E

muito menos me lembro de tê-la deixado sair também!

Adriana Matheus

- 229 -

– Quer dizer, então, que a senhora vai ter a coragem de

chamar Maria de mentirosa assim, na sua frente?

Disse isso porque Maria havia acabado de entrar e

estava de pé atrás dela, com os olhos arregalados. A pobre

mulher mal sabia que direção tomar. A condessa virou-se

cinicamente, olhando para Maria de cima abaixo, e disse:

– Se dei tal autorização, estou tirando-a agora mesmo.

Foi saindo, querendo deixar-nos sem saber o que fazer,

como ela sempre fazia. Mas só que, daquela vez, corri para

frente dela e disse:

– Alto lá! Não é bem assim que as coisas funcionam. A

senhora não vai sair e deixar-nos aqui, falando ao vento.

Vamos terminar essa conversa agora mesmo. Acho muito

interessante a senhora não se lembrar de ter-me dado a tal

autorização. Sendo assim, devo ressaltar e refrescar-lhe a

memória. Sabe por quê? Porque também não me lembro de tê-

la pedido nenhuma autorização para fazer da minha vida o que

eu bem quisesse.

Disse isso desafiadoramente, olhando-a bem nos olhos.

Peguei-lhe um dos braços e falei bem baixinho ao ouvido:

– Vamos combinar o seguinte: a senhora, minha

madrasta, não conta ao meu papai que saí sem suas ordens, e

prometo não mencionar nada sobre suas festas escondidas nos

fins de semana. Isso é muito mais fácil do que minha querida

madrasta pode pensar, sabe como? Faça de conta que não

existo e continuarei a fazer o mesmo - embora não seja da

minha índole ter que mentir para o meu próprio pai! Lembre-se

de que faço isso somente pelo afeto que lhe tenho. Afinal,

sempre fomos tão amigas! Então, o que me diz, querida

madrasta?

Àquela altura, nem me lembro como foi que Maria

desapareceu do meio de nós duas! Eu estava tão interessada

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 230 -

em terminar aquela conversa que me esqueci de tudo ao meu

redor, até de Maria. Minha madrasta, após ranger os dentes de

ódio, disse-me:

– Odeio-a com todas as minhas forças! Pode ter certeza

de que isso não vai ficar assim. Prometo-lhe que farei da sua

vida um inferno.

Ao ouvir aquelas palavras, dei uma gargalhada que

parecia não ser minha e prossegui:

– Engana-se, minha querida madrasta. A senhora já fez

da minha vida um inferno. Agora não fará mais. Sabe por quê?

Porque aprendi com o diabo lá no inferno, onde a senhora me

colocava, que posso ser muito mais má do que pensa. Portanto,

pense duas vezes antes de meter-se comigo ou com Maria de

agora adiante. E que essa conversa termine aqui e agora. Aliás,

já até me esqueci! Imagina... O que é mesmo que devo me

lembrar de não contar a meu pai?

Fitei-a nos olhos e continuei:

– Agora, se me der licença, estou de saída. Até já,

madrasta querida. - joguei-lhe um beijinho com a mão.

Ela ficou boquiaberta e sem reação aparente. Encontrei-

me com Maria, que estava perto da carruagem. Ela continuava

com os olhos arregalados, a cor rosada do seu rosto estava de

um tom empalidecido. Esfregava as mãos uma contra a outra.

Temia por mim, mas, sendo uma criada, não poderia se

intrometer entre mim e minha madrasta. Percebendo seu

desalento, dei-lhe um sorriso largo, tentando disfarçar o

nervoso em que me encontrava. Mas Maria parecia ansiosa por

saber o que havia acontecido. Então, perguntou-me:

– O que foi que a senhora Del Prat disse? Ela lhe fez

algum mal, senhorita?

– Nada demais, entramos em um acordo civilizado.

Não se preocupe, Maria. A condessa não tocou em um só fio

Adriana Matheus

- 231 -

dos meus cabelos. Pelo contrário, acho que de agora em diante

ela vai até me pedir conselhos.

– Hã!? Como assim? O que realmente aconteceu?

Como consegue estar tão tranquila, sabendo que a condessa lhe

odeia?

– Fique calma, Maria. Apascente seus nervos. Acredite:

não aconteceu nada. A condessa não disse muita coisa, pois

ainda está meio em estado ébrio. A senhora sabe que, quando a

minha madrasta está desse jeito, mal dá para entendê-la. Na

verdade, acho que ela confundiu as coisas e achou que não

tinha lhe dado autorização para sairmos. Aliás, descobrimos

coisas tão em comum entre nós! Estou tão admirada quanto a

senhora, acredite!

– E quais seriam essas coisas, Santo Deus!? Vejo que

hoje será um longo dia...

– Está bem, Maria. Vou-lhe responder, mas somente

para matar a sua curiosidade: descobrimos que somos senhoras

distintas, civilizadas e que falamos a mesma língua. Fiquei

impressionada de como eu e minha madrasta poderemos nos

dar bem de agora em diante.

Se Maria não estivesse encostada na carruagem, teria se

espatifado ao chão, pois quase perdeu o equilíbrio das pernas,

por não ter entendido absolutamente nada. Por fim, depois de

ter tomado fôlego, disse-me, com a voz meio trêmula:

– É melhor seguirmos em frente, antes que meu

coração pare de uma vez. Por hoje já me bastam tantas

emoções fortes.

De repente, ao ver Maria subindo na carruagem, deu-

me a sensação de que em breve teríamos que nos despedir para

sempre. Dentro da carruagem, mudei aqueles pensamentos

tristes, tentando animar Maria, que estava tremendo por minha

causa. Inventei uma história engraçada e contei para ela.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 232 -

Também fiz algumas caretas para que se distraísse e mudasse

os pensamentos, antes que eles virassem palavras aborrecidas.

Isso funcionou, pois seguimos o resto do trajeto rindo. Contei à

Maria alguns dos dons que havia recebido. Ela se admirou por

saber que eu havia adquirido o dom da clarividência. Eu

também, pois foi a primeira manifestação de Deus em mim.

Depois de meia hora dentro da carruagem, descemos

em frente a uma casa de chás. Dei à Maria metade da lista que

havia feito e fui saindo.

– Aonde a mocinha pensa que vai sozinha, sem a minha

companhia?

– Procurar um ferreiro, ora!

– Posso saber para quê, já que a mocinha agora

resolveu ser tão independe e desligada de mim? - disse Maria,

mais uma vez usando de suas ironias e, ao mesmo tempo,

preocupada comigo.

– Não se preocupe comigo, Maria. Sei onde tem um: no

final desta rua. Volto logo e encontro-a aqui, neste mesmo

lugar, em frente a esta casa de chás.

Saí e deixei Maria, sem dar muitas explicações, antes

que ela me indagasse mais alguma outra coisa, é claro!

Olhei para todos os cartazes que podia ver, tentando

achar a ferralheria da cidade. Foi quando, finalmente, avistei

em uma esquina um enorme cartaz escrito Ferraria Campo

Belo.

Deu-me certa tonteira ao olhar aquele cartaz. Não

soube explicar de imediato, mas era como se alguém naquele

local não estivesse bem de saúde e, de alguma maneira, minha

energia foi toda direcionada para lá. Cheguei a sentir meu

corpo arrepiar-se. Alguém naquele lugar estava mesmo

precisando de mim. Respirei profundamente e fechei olhos,

Adriana Matheus

- 233 -

buscando forças. Em seguida, caminhei em direção à

ferralheria.

Quando estava virando a esquina, deparei-me com uma

jovem soluçando muito, encostada em um muro. Se tivesse

acontecido isso antes, teria passado despercebida por mim

aquela cena. Mas, agora, era mais que isso: era como se eu

tivesse uma obrigação de captar tudo que estava ao meu redor.

A jovem não tinha mais que dezessete anos. Mas, de

tanto que chorava, dava a impressão de ter muito mais idade.

Abaixei perto dela e perguntei-lhe:

– Tudo bem, senhorita? Sabe informar-me onde

encontro uma ferralheria por aqui? - tentei despistar, já que a

loja estava à minha frente.

– Sim... Fica logo ali, na frente da senhorita. É a

ferralheria do senhor Juan Campos. Ele é muito habilidoso,

mas não é muito amistoso, devo adverti-la. - disse-me isso

entre soluços, passando as mãos sobre os olhos, tentando

esconder-me que estava chorando - como se isso fosse

possível!

– Ah! Desculpe-me, sou mesmo uma distraída!

Imagine, nem vi que estava ali na minha frente! Olhe, não

estou querendo ser inconveniente, mas posso perguntar-lhe

algo?

– Sim, claro.

– A senhorita não gostaria de tomar uma xícara de chá

comigo? Vejo que não está se sentindo muito bem. Veja,

querida, talvez eu não consiga resolver o seu problema, mas ao

menos posso ouvi-la. Às vezes desabafar faz bem ao espírito.

E então, o que me diz?

– A senhorita é mesmo muito gentil, mas não tenho

uma roupa apropriada para entrar em um lugar tão refinado

como aquele.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 234 -

– Santo Deus! O que tem de errado com as suas vestes?

A jovem baixou a cabeça, pesarosa, e disse:

– Se eu entrar naquele lugar usando esses trapos,

certamente me colocarão para fora como um cão sarnento.

Nem todos nesta cidade veem os pobres da mesma forma que a

senhorita. Algumas pessoas acham que temos algum tipo de

doença contagiosa. Não nos dão emprego porque somos sujos.

Não temos direito a um médico porque não temos dinheiro

para pagar. Então, quando percebem que não lhes temos

nenhuma valia, arrumam alguma coisa para que sejamos

descartados de vez dessa sociedade egoísta e sem coração. É

muito triste, senhorita, termos que viver na miséria! Mas como

poderemos ser alguém se não nos dão uma oportunidade?

Como podemos ser parte do mundo se as pessoas existentes

nele não nos veem como seres humanos dignos? De que

adianta querermos lutar, se somos podados até de nossos

sonhos? Essa sociedade desumana está sempre tentando

encontrar alguma coisa de que nos acusar. Como vamos

cheirar bem se nem o mínimo recurso para sobrevivência nos

dão?

Aquela jovem não estava errada. Mas seu coração

parecia cheio de revolta e amargura. Sabia que não adiantaria

argumentar muito com ela. Então, disse-lhe:

– Está bem, então. Não vou mais insistir para que vá

comigo à casa de chá. Mas posso me convidar para tomar chá

em sua casa?

– Oh! Senhorita, não temos chá em casa, apenas água. -

disse a jovem, baixando a cabeça, parecendo constrangida por

ter que demonstrar a real situação financeira de sua família.

– Ótimo, estou morrendo de sede. O calor está me

deixando sufocada. Aceito o seu copo d’água.

Adriana Matheus

- 235 -

A jovem esboçou um sorriso meigo e levantou-se. Por

fim, meio a contra gosto, acabou convidando-me para ir até a

sua casa, que não ficava muito longe dali - apenas a uns trinta

metros, creio!

Aprendi uma coisa nessa minha curta existência: nunca

ouvir um não antes de ouvir um sim. Era óbvio que eu nunca

deixaria aquela jovem ali chorando, sem nada tentar fazer por

ela.

Chegamos, por fim, em frente a uma casinha muito

velha e com os alicerces à mostra. O mato cobria toda a lateral.

O portão era de madeira e estava todo quebrado - a jovem teve

que levantá-lo para passarmos. O interior da casa era muito

simples e havia pouquíssima mobília. Para me sentar, a jovem

ofereceu-me um caixote. Ela foi até a cozinha e trouxe-me

água em uma moringa de barro, e serviu-me em um copo,

também de barro.

Depois de tomar calmamente aquela água,

deliciosamente fresca, perguntei-lhe:

– A senhorita vive sozinha nesta casa?

– Não, vivo com a senhora minha mãe. Sabe, senhorita,

minha mãe está muito doente e não tenho como ajudá-la,

porque ninguém me dá um emprego. Não sei como fazer para

pagar o doutor e comprar os remédios dela.

– Eu a entendo. Talvez, se a senhorita me permitir,

possa ajudá-la. Mas nem pense em dizer-me que isso será um

incômodo.

A jovem olhou-me tão triste que, em seus olhos, pude

ver o tamanho de sua dor. Por certo, não poderia abandoná-la.

– O que tem a sua mãe? Preciso saber do que se trata,

para poder saber em quê poderei ajudar.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 236 -

A jovem, então, contou-me tudo sobre a doença da

mãe.

– Minha mãe sofre com dores horríveis nos rins. Isso já

está acontecendo há mais de dois anos. Procurei o doutor e ele

veio até aqui examiná-la. Depois disse que o tratamento seria

muito caro e demorado. Estamos passando por muitas

dificuldades, pois meu pai faleceu precocemente, há seis anos.

Ele não tinha recursos e não nos deixou nada além desta velha

casa.

– Posso vê-la? Se não se importa, é claro!

– Imagina... Que falta de delicadeza a minha. Venha

comigo.

A jovem levou-me até o quarto da mãe, onde ela estava

deitada em uma caminha muito simples, quase sem cobertores

para cobri-la do frio da febre. Fiquei catatônica por alguns

segundos, olhando aquela triste cena, sem saber por onde

começar. Por fim, olhei-a bem dentro dos olhos e disse:

– Quero que a senhorita confie em mim. Mas, antes,

escute o que tenho a lhe dizer, pois não quero que, de modo

algum, pense que estou me esquivando de lhe ajudar. Agora

não posso fazer absolutamente nada pela senhorita, porque

estou com os pés a as mãos atados. Tenho que sair. Vou ao

armazém comprar alguns utensílios de extrema importância

para mim. Infelizmente, hoje já me havia programado para

esse tipo de tarefa. Mas prometo-lhe que voltarei assim que

tiver com tudo pronto para ajudá-la. Se a senhorita puder

deixar sua mãe um pouco sozinha, gostaria imensamente que

me acompanhasse à ferralheria e, depois, fosse comigo

encontrar uma grande amiga.

A jovem olhou para a mãe que, embora muito

convalescida, aprovou com a cabeça para que a filha fosse

comigo.

Adriana Matheus

- 237 -

Passei a mão sobre a testa daquela senhora e perguntei-

lhe:

– Como a senhora se chama?

– Catariana de La Costa. Quero agradecer por tentar

ajudar minha filha e eu. De agora em diante, seremos suas

servas.

– Não tem que me agradecer. Não as quero como

servas, mas como amigas.

Passei novamente a mão em seu rosto, tentando não

deixar que as lágrimas rolassem. Depois, silenciosamente, fiz o

sinal mágico que sempre Maria me fazia para que eu

adormecesse. Este sinal, de repente, veio-me claramente, como

tudo o que estava acontecendo comigo depois da viagem. A

mulher adormeceu rapidamente e, então, pudemos sair

sossegadas. A jovem ficou admirada, mas nada comentou

sobre o acontecido.

Esperei que a jovem trocasse de roupa, pois parecia

muito preocupada com suas vestes. Logo em seguida, fomos à

ferralheria. Lá, encontrei um homem tossindo muito forte. A

tosse era rouca. Observei-o logo da entrada e percebi que

aquela seria uma longa manhã. Mais um precisava de mim e,

com certeza, eu teria que ajudar também. Então, pigarreei para

que ele se virasse e disse:

– Bom dia, senhor!

– Bom dia, senhorita! Em que posso ajudá-la? - disse o

homem, tossindo e olhando-nos de cima abaixo.

– Quero saber se o senhor pode me fazer uma chave?

– Por que a senhorita não procura um chaveiro? Não

sabe ler? Sou ferreiro, não faço chaves.

– Sim, sei disso. Mas quero que o senhor derreta estas

correntes de bronze e me faça uma chave. - disse isso, tirando

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 238 -

de dentro de uma bolsinha algumas correntes de bronze que

eram de minha mãe.

Então, continuando com o assunto, falei:

– Tenho certeza de que o chaveiro entende de chaves,

por certo. Mas não me fará um serviço tão perfeito quanto o

senhor fará.

– Sim, nisso a senhorita tem razão: sou mesmo o

melhor ferreiro do condado. E saiba que, por meus serviços

serem todos manuais, cobro muito caro.

Disse isso olhando-me de cima abaixo, parecendo

duvidar que eu tivesse condições de pagá-lo. A arrogância

daquele homem já estava começando a me incomodar. Mas

apenas lhe disse:

– Faça seu preço e sei que lhe pagarei muito bem,

acredite! A propósito, sei como curar a sua tosse.

Depois de me olhar meio incrédulo, parecendo não

acreditar que eu tivesse dinheiro para pagá-lo, o homem

respondeu-me num tom de deboche:

– Ah... Não sabe, não. O que uma mocinha como a

senhorita pode entender da minha doença? Nem mesmo o

doutor conseguiu curar essa tosse horrível. Ora, senhorita,

aceito fazer o que me pede. Agora, não me venha querer passar

a carroça na frente dos bois e dizer-me que é mais entendida

do que o doutor. O que está querendo me dizer? Que a

senhorita é uma curandeira?

– O orgulho do senhor não vai melhorar as dores das

suas costas.

– Como sabe que sinto dores nas costas?

– Porque percebi que, ao tossir, faz careta e leva as

mãos até as costas. Isso significa que a tosse é intensa e já lhe

afeta os pulmões. Percebi, também, que o senhor sente certa

falta de ar - o que significa que está com um grande muco

Adriana Matheus

- 239 -

preso no peito. É isso que lhe causa essa terrível dor nas

costas. E o senhor tem razão ao dizer que não entendo nada

sobre as coisas que os doutores levaram anos aprendendo nas

faculdades da Europa. Mas tenho uma coisa que os doutores

com certeza não têm. Sabe o que é? Amor e caridade ao

próximo. Compadeci-me de vê-lo trabalhando assim, doente.

Se lhe estou dizendo que sei como curar sua doença, ao menos

o senhor poderia me dar uma chance de poder tentar, não

acha? Quanto a ser uma curandeira, saiba que não sou. Quem

me dera eu fosse, pois seria uma honra para mim ter nascido

com dons tão especiais. Assim, poderia curar muitas pessoas

necessitadas e carentes. Ouça uma coisa: não precisa fazer o

que vou lhe ensinar. À noite, peça à sua esposa para preparar-

lhe um unguento de água e farinha de milho. Depois de pronto,

peça-lhe que coloque o unguento quente dentro de um saco de

pano e, em seguida, coloque sobre as suas costas. Durante sete

dias, na hora de se deitar, repita isso. Com certeza vai aliviar-

lhe as dores nas costas. Mas, por favor, evite tomar golpes de

vento.

Percebi que o homem, embora arrogante, estava

prestando atenção em tudo o que lhe falava. Então, continuei,

passando-lhe uma receita caseira de ervas.

– Existe uma erva que se chama assa-peixe. É muito

comum achá-la no meio do mato. Um raizeiro que conheça

bem de ervas poderá ajudá-lo. Prepare-a do seguinte modo:

coloque duas colheres de sopa das folhas picadas da erva em

uma xícara de chá. Adicione água fervente e, depois, abafe

para amornar. Adoce com mel e tome duas a três vezes ao dia.

Pode também amassegar as folhas e tomar o seu sumo, mas é

meio amargo. Portanto, é mais aconselhável fazer o chá. Isso

vai lhe curar essa tosse. Acredite em mim, senhor Juan.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 240 -

– A senhorita não é uma bruxa, é? Pois não me lembro

de tê-la dito o meu nome também.

Dei um largo sorriso. Confesso que foi tentador não

poder confessar-lhe que sim. Mas, mais uma vez, precisei

esconder minha condição.

– Não, sou apenas uma jovem curiosa. E o seu nome

me foi dito por esta jovem que aqui me trouxe. Ela conhece o

senhor, não conhece?

Ele fez uma aceno positivo com a cabeça e prossegui:

– Não devemos criticar as pessoas, senhor Juan.

Principalmente quando está nos estendendo a mão. Como

disse, sou apenas uma jovem curiosa e gosto muito de ajudar

os outros. Isso sem contar que leio muito, senhor Juan, muito!

Não menti para o senhor Juan. Apenas omiti algumas

coisinhas, para que não saísse acusando-me levianamente.

Afinal, não estava praticando bruxaria, apenas ensinei a ele

uma maneira de curar-se daquela doença. Mas sabia que, se eu

citasse a palavra bruxaria, ele poderia colocar todos os meus

planos a perder por causa do preconceito que já havia

manifestado. O senhor Juan, após muito analisar minhas

palavras, olhou-me meio receoso e disse:

– Farei sua chave. Pode pegá-la amanhã, às oito horas.

Este é um bom horário para a senhorita?

– Sim, está ótimo! Amanhã estarei aqui, britanicamente

no horário combinado. E tenho absoluta certeza de que

encontrarei o senhor bem melhor e mais disposto.

– Acha mesmo que farei uso da sua mandinga? Se

pensa isso, está enganada, pois sou um homem muito católico

e não usarei de nenhum feitiço para curar-me. Não sou o tipo

de pessoa que passa por cima das leis de Deus. Isso seria uma

heresia contra o meu Pai.

Adriana Matheus

- 241 -

A arrogância e a ignorância daquele homem estavam

começando a tirar-me do sério. Mas, por uma questão de

lógica e sensatez, apenas lhe respondi:

– De modo algum, senhor Juan, estou passando por

cima da vontade de Deus. Mas também creio que não seja da

vontade Dele que o senhor continue doente. Também não tive

a menor intenção de ofendê-lo e, se o senhor pensa dessa

forma, então esqueça tudo o que esta jovem ignorante aqui lhe

ensinou. Afinal, nada sei desta vida, não é mesmo? Estando

aqui, diante de um mestre artesão, quem sou para discutir?

Também não quero que o senhor pense que sou intrometida e

sem educação. E, principalmente, não quero que o senhor

pense que estou lhe ensinando um feitiço para que fique ainda

mais doente. Não foi a minha intenção, senhor Juan. Só tentei

ser-lhe gentil e amigável.

Disse aquelas palavras porque estava imensamente

ofendida, porque percebi que aquele velho turrão começou a

ter pensamentos maliciosos e abomináveis em relação a mim.

Com isso, aprendi que, às vezes, não adianta tentar ajudar

algumas pessoas, pois elas, além de nascerem no meio da

ignorância e do preconceito, preferem morrer a darem o braço

a torcer, aceitando que estão erradas.

Olhei para a jovem que me acompanhava e ela estava

extasiada com minhas palavras. Depois de dar uma piscadinha

de olhos para ela, levantei a cabeça e disse:

– Até amanhã, senhor Juan. Espero, sinceramente, que

neste período o senhor reflita e baixe a sua guarda em relação a

mim. Afinal, não lhe estou afrontando em nada. Passar bem.

– Até, senhorita. Criatura insolente! - disse o velho

entre dentes, demonstrando total antipatia por mim.

– Anna, esse é o meu nome. E a recíproca é verdadeira.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 242 -

Falei dessa forma, olhando para trás e fitando-o nos

olhos. Com certeza ele entendeu que também o achei um

antipático. Eu e a jovem saímos da ferralheria, rindo daquele

velhote sisudo e arrogante. A jovem, ainda, acompanhou-me

até a carruagem, onde Maria estava. Eu as apresentei. Depois

de já estarem familiarizadas, virei-me para a jovem e

perguntei:

– A propósito, depois de termos passado todo esse

tempo juntas, ainda não sei o seu nome.

– Chamo-me Samara Cortez de La Costa, às suas

ordens!

– É um prazer, Samara, tê-la conhecido.

Maria deu um sorriso, parecendo ter aprovado a minha

mais nova amizade. Contei a ela, fazendo uma breve

retratação, tudo o que me havia acontecido desde o primeiro

momento em que chegamos à cidade juntas. Maria ficou

indignada em relação à arrogância do senhor Juan, mas

também se compadeceu da história da jovem Samara e deu-lhe

um pequeno obséquio, para que pudesse comprar alguma coisa

de comer para ela e a mãe. Prometi a Samara que voltaríamos

para ajudá-la no dia seguinte.

Depois de nos despedirmos, Maria e eu fomos ao

armazém comprar os outros ingredientes que faltavam.

Logicamente, comprei muitas coisas para minha nova amiga.

Dessa vez, Maria não deu nenhum palpite contrário. Parecia

estar aprovando tudo que eu fazia.

Andamos muito. Fomos a todos os fabricantes de

panelas de ferro da redondeza, até que achei a minha panela -

ou melhor, o meu caldeirão. O fabricante era um senhor que

vendia coisas usadas, e disse que aquele caldeirão havia

pertencido a uma famosa bruxa de Salém. De imediato,

comprei-o sem pestanejar. Depois, fomos a um marceneiro e

Adriana Matheus

- 243 -

perguntei-lhe com qual tipo de madeira ele trabalhava. Ele

citou várias. Mas, de repente, avistei um galho de carvalho

jogado em um cantinho. Perguntei ao homem:

– Senhor, o que fará com este galho de carvalho?

– Este? - disse ele, pegando e examinando o galho de

todos os ângulos.

– Sim. Esse mesmo.

– Vou jogá-lo na fogueira para servir-me de lenha.

– Hã? Não pode estar falando sério!

– Por quê? A senhorita quer este galho?

– Se o senhor for se desfazer dele e quiser me vender,

compro.

– Vender um galho? Não, senhorita, dou-lho, embora

não faço a menor ideia para que ele lhe será útil.

Fiquei muito grata ao marceneiro e, mesmo ele não

querendo aceitar, paguei-lhe. Em casa, pediria a Joseph para

talhá-lo para mim.

Comprei diversos vidros e potes. Maria, por sua vez,

indagou-me porque eu havia comprado tantos vidros, potes e

garrafas. Então, respondi:

– Ora, Maria, as garrafas são para os xaropes. Os potes

são para colocar as compotas especiais que farei, e os vidros

são para colocar as essências aromatizadas - segredinhos que

aprendi com a minha ancestral.

– Sério? Que pessoa mais cheia de mistérios ficou a

senhorita! Agora, além de me tratar mal, anda a fazer mistério

de tudo o que faz.

Ri muito do tom de ironia na voz de Maria e, depois,

completei a curiosidade dela, dizendo:

– Não voltaremos amanhã à cidade para cumprir a

promessa que fiz à jovem Samara.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 244 -

– Jesus! Não me precisa dizer mais nada. Já entendi

tudo, esse será um longo dia... E é melhor eu preparar meu

espírito para o que estar por vir daqui para frente. Santo Deus,

menina, não tenho mais tanta idade para lhe acompanhar

nessas suas novas mudanças de hábito. Pois a senhorita, depois

que conheceu o seu novo caminho, cria tantas ideias como o

vento muda de direção.

Dei uma gargalhada sonora e Maria ficou olhando para

todos os lados, para ver se havia alguém conhecido nos

olhando. Afinal, uma moça de família não podia jamais rir tão

alto. Era escandaloso demais. Qualquer demonstração de

alegria em público, por mais sincera que fosse, era motivo para

excomunhão. Mas não estava, naquele momento, preocupada

com o que as pessoas poderiam falar de mim, muito menos

com as regras da Santa Madre Igreja. Pois, pela primeira vez

em minha vida, estava sendo eu mesma. Havia me libertado

daqueles tabus, cheios de etiquetas de refinamento e educação.

Para mim, aquilo tudo não passava de uma máscara para

encobrir a verdadeira face da devassidão daquele povo

hipócrita e com falsa moral.

Voltamos para a carruagem, que estava em frente à

casa de chá, onde Lorenzo nos estava esperando para

retornarmos à casa. Esperei que o cavalariço empilhasse tudo

em cima da carruagem. Então, disse-lhe:

– Haverá uma pequena mudança nos planos, meus

queridos! Antes de voltarmos para casa, tenho que resolver um

pequeno assunto que ainda está pendente. Não se preocupem:

chegaremos à casa ainda esta tarde.

– A senhorita é quem manda! - disse o cavalariço.

–Vire na primeira esquina, antes da praça, e entre na

terceira rua, antes de chegar à ferralheria. Vou visitar uma

amiga.

Adriana Matheus

- 245 -

Maria olhou para o céu e sacudiu a cabeça, como quem

diz Eu sabia!.

Não demorou muito e, em alguns minutos, já

estávamos em frente à casinha da minha mais nova amiga. A

jovem, ao ver a carruagem parando em frente à sua casa, veio

logo nos receber com um sorriso amistoso nos lábios.

– Senhorita! Não acreditei que viesse. Ainda mais

assim, tão rápido.

Assim que desci da carruagem, ela veio receber-me

prazenteira, dando-me um abraço afetuoso e, em seguida,

convidando-nos para entrar. Antes de entrarmos, pedi-lhe

desculpas por ter antecipado minha visita. Disse-lhe que meu

coração pediu aquela atitude.

Já dentro da casa, deparamo-nos com Dona Catarina, a

mãe de Samara, sentadinha em um caixote. Embora a mulher

estivesse ainda muito pálida, ela me pareceu mais animada do

que quando a vi pela manhã. Samara, por certo, deve ter-lhe

dado algo de comer com o obséquio que Maria lhe doara.

Assim que me viu, abriu um sorriso simples no rosto e

cumprimentou-nos com um aceno de cabeça que mais parecia

gratidão. Pude chegar a uma conclusão com aquela inesperada

visão à minha frente: a mãe de Samara, na verdade, não saía da

cama porque estava enfraquecida. E, por já ter certa idade, isso

a debilitou. Não havia preço no mundo que pagasse aquela

cena. Percebi o quanto é importante ajudarmos os outros.

Mesmo que essa ajuda seja pequena, faz diferença.

Pedi ao cavalariço que trouxesse as compras de

mantimentos que havíamos feito no armazém. Dei a elas,

também, algumas panelas e potes de vidro que havia

comprado. Eu e Maria ajeitamos a casinha, passando a

vassoura e espanando. Maria arrumou toda a cozinha e, depois,

preparou-nos uma deliciosa canja para o jantar.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 246 -

Lorenzo e o cocheiro auxiliar capinaram em volta da

casa e arrumaram o portão quebrado. Ajudei Samara a dar

banho na mãe, que mal podia ficar de pé. Depois de tudo

pronto, procurei por Lorenzo e o flagrei olhando a jovem

Samara de uma maneira terna. Ele parecia estar tão

hipnotizado pela jovem que nem me viu pigarreando para

chamar sua atenção. Então, cutuquei-o com o dedo indicador e

disse:

– Será que o Don Juan poderia me dar um minuto da

sua atenção?

– Hã? Claro que sim, senhorita Anna. Em que posso

ser-lhe útil?

– Por favor, Lorenzo, vá até a casa do doutor e traga-o

aqui. Diga que é a filha do conde Juan Vladimir Porto Señra

que o chama a esta casa. Faça isso agora, que tenho pressa e

urgência. Depois, o Don Juan pode flertar com a jovem

Samara.

Ela corou de imediato. Logicamente, eu já teria planos

futuros para aqueles dois enamorados. Lorenzo apertou o

chapéu nas mãos e saiu tropeçando, parecendo muito sem

graça com o meu comentário. Samara não sabia o que fazer;

então, fez um comentário, tentando desviar a minha atenção

daquela cena que havia visto de dois jovens apaixonados se

olhando.

– Meu Deus, a senhorita é uma duquesa? Estou tão

envergonhada... Santo Deus, como pude ser tão ignorante em

não perceber!?

– Não. Sou apenas filha de Juan Vladimir Porto Señra.

Na verdade, somente minha madrasta é condessa. Meu pai

casou-se com a senhora condessa Marli Von Del Prat e, por

isso, exerce também o direito ao título. Mas nada tenho a ver

com a nobreza. Minha mãe, embora não a tenha conhecido, era

Adriana Matheus

- 247 -

filha de fidalgos, mas eram pessoas muito simples. Eles foram

os pioneiros deste condado; muitas melhorias aqui foram feitas

por eles. Eles, sim, são importantes. Nada sou além de uma

boa amiga. Por favor, não faça cerimônias comigo. Senão, eu

que ficarei constrangida com a senhorita. Não estou aqui para

observar sua casa ou seus modos. Estou aqui para ajudá-la.

– Minha Santíssima Mãe de Deus! Mesmo assim, como

eu pude ser tão displicente, oferecendo-lhe um caixote para a

senhorita sentar-se!?

Dei um sorriso e, depois de sacudir a cabeça, respondi:

– Se não tem outra coisa para me oferecer, então, o

aceito de bom grado, fique sabendo! Além do mais, é melhor

sentarmos em caixotes do que ficarmos de pé, não acha? O

mais importante para mim agora é a cura e a saúde de sua mãe.

Pois ela, sim, tenho certeza de que já lutou muito. Agora

merece, ao menos, um mínimo de conforto. Saiba, senhorita

Samara, que todos estamos aqui para ajudá-las em tudo o que

pudermos. De modo algum estamos aqui para julgá-las ou

prestar atenção nos objetos que faltam em sua casa.

– A senhorita é uma santa! Pelas suas atitudes, provou-

me que tem, sim, a nobreza da alma.

– Oh! Não sou santa nem em pensamento, acredite! Só

resolvi fazer o que todos deveriam: caridade!

Ela ficou sem saber como me agradecer, de tão feliz

que estava com os presentes. Por fim, muito sem graça e de

cabeça baixa, perguntou-me:

– Como poderei agradecer-lhe, senhorita Anna?

Segurei seu rosto magro com carinho, forçando-a olhar

em meus olhos, e respondi:

– Em suas orações, lembre-se de mim, pois muito em

breve serei eu quem precisará da senhorita.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 248 -

Maria, que estava à porta, já ia me fazer uma pergunta

quando fomos interrompidas pelo cocheiro. Ele chegou junto

com Lorenzo, trazendo o doutor, todo aflito. Ele já foi direto

em minha direção, perguntando:

– O que tem a menina e o que faz aqui? Essa gente fez-

lhe algum mal?

– Não, doutor, estou muito bem. Não tenho

absolutamente nada. Essa gente, como o senhor se refere, são

apenas pessoas pobres que precisam da sua ajuda. Como não

têm condições, estou pagando para que o senhor as atenda da

melhor maneira possível.

Fiquei muito zangada com aquele velhote fedido e

cheio de preconceito. Engolindo uma resposta malcriada,

prossegui:

– Mandei chamá-lo, doutor, porque esta senhora

precisa de cuidados. Está muito debilitada e sei que o senhor é

o único médico no condado. Mas, caso o senhor não quiser

atendê-la, irei ao condado vizinho e pedirei ao doutor de lá

para vir aqui atendê-la.

Sabendo da rivalidade entre os dois doutores, acabei

pegando o ponto fraco daquele velhote ensebado. Apertei os

olhos e senti arrepio com aquele pensamento nauseante. Ele

ainda continuou com aquela conversa, parecendo não ter

ouvido o que falei de início.

– Creio que não tenham dinheiro para serem atendidas.

Preciso comer também. – disse ele, com ar carrancudo. - Seu

pai sabe que a senhorita usa o dinheiro dele com indigentes?

Por pouco não o segurei pelo colarinho encardido do

terno. Mas, respeitando a idade em que ele já se encontrava e

também a má condição auditiva, disse-lhe, por fim, quase aos

gritos, para ver se ele me escutaria:

Adriana Matheus

- 249 -

– Estou pagando! A propósito, o senhor não fez um

juramento junto ao conselho de medicina? Nesse juramento,

não é verdade que não poderia negar auxílio médico a

ninguém? O dinheiro é meu, são minhas economias; não

preciso do dinheiro do meu pai. Além de ter o meu dote, juntei

algumas economias e agora achei uma boa maneira de gastá-

las. Então, já que será remunerado, cumpra o seu papel, se

quiser receber o meu dinheiro... Sabe, doutor, nunca gostei do

senhor, e o que fará aqui eu faria muito melhor. Só que preciso

do seu diagnóstico para saber o que melhor fazer. Agora

comece a trabalhar, examinando a paciente, pois sabemos que

tempo é dinheiro, e o senhor já gastou metade do meu dinheiro

com conversa desnecessária até agora.

Ele ficou muito nervoso, mas o mercenarismo falou

mais alto. Levamos a mãe de Samara para o quarto, para

melhor examiná-la. Samara ficou com a mãe dentro do quarto;

eu e Maria ficamos do lado de fora, apreensivas. A consulta

demorou umas duas horas e, naquele intervalo de espera, mil e

um pensamentos passaram na minha cabeça. Fiquei pensando

em uma ideia para ajudar Samara e deixar Dona Catarina

amparada no pouco de vida que ainda tivesse. Obviamente,

colocá-los-ia em prática. Só precisaria organizar-me mais em

algumas questões.

Depois de muito esperar, o doutor saiu do quarto,

acompanhando Samara. Depois de coçar a cabeça cheia de

casquinha, disse:

– A senhorita tinha razão em estar preocupada com a

saúde dessa mulher. Ela está com anemia profunda e

problemas na bexiga. Eu diria que seus rins também estão

quase parando de funcionar. Isso é o que está causando aquela

cor amarelada nela. Mas devo adverti-las que uma cirurgia

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 250 -

seria de alto risco, pois ela está muito debilitada devido à

anemia.

– O que devemos fazer, então?

– Passarei remédios para a dor e para a anemia. É só o

que posso fazer por hora. Duas vezes por semana, passarei por

aqui para vê-la e acompanhá-la em seu tratamento. É muito

importante a questão da alimentação, que deve se muito rica

em ferro. Ela deve comer muito fígado de boi e, também,

tomar muito suco de frutas.

– Não se preocupe com isso, doutor. Farei o que for

necessário para que elas fiquem bem de agora em diante. Eu

mesma cuidarei da alimentação dessa senhora.

Depois de pagá-lo e ter-lhe adiantado o dinheiro das

futuras consultas, peguei a receita e pedi que Maria fosse ao

boticário para encomendar os remédios. Ela foi de imediato.

Fui para a cozinha e preparei uma poção à base de ervas

medicinais. Coloquei tudo dentro de um vidro e dei à Samara,

para que desse à mãe três vezes ao dia, por um mês.

Eram ervas simples, que podem ser encontradas até no

meio do mato. Usei a tanchagem ou Plantago major, também

conhecida como transagem. Essa erva, tão popular e comum,

combate as seguintes moléstias: inflamação nos ouvidos, nos

olhos, nas gingavas, na garganta, nas amígdalas, nas faringes,

no estômago e nos rins, entre tantas outras doenças.

A outra erva que usei foi a quebra- pedra, que serve

para chás caseiros, para dissolver cálculos nos rins ou pedras,

como vulgarmente falamos. Essa erva tem as seguintes

propriedades: antiespasmódica, adstringente, analgésica,

antisséptica, anti-hipertensora, anti-inflamatória, diurética e

tônica.

Não sabia bem como essa pequena erva veio parar em

Salamanca, na Espanha. Mas o fato é que ela era muito eficaz

Adriana Matheus

- 251 -

para o tratamento de todas as doenças citadas. É muito

importante que eu cite, aqui, que nunca quis ser uma doutora.

As receitas que ensino são apenas auxiliares à medicina. Elas e

as dicas aqui expostas são uma orientação prática e fácil

àqueles que desejam se utilizar de plantas e ervas à disposição

de todos. Nós, bruxas, vivemos de tudo o que a mãe terra nos

fornece. Se ela nos oferece a cura, então, por que não utilizá-

la?

Quando Maria voltou, trazendo o remédio preparado

pelo boticário da região, entreguei nas mãos da jovem Samara,

orientando a maneira como ela daria à mãe. Tomamos a canja

que Maria havia preparado e, depois de tudo resolvido,

despedimo-nos. Ao sairmos, prometi que voltaria a vê-la. A

jovem agradeceu-me tanto que cheguei a corar.

Já na carruagem, Lorenzo olhou-me com os olhos

cheios de lágrimas, dizendo as seguintes palavras:

– A senhorita é um anjo, um anjo... O que faria essa

pequena família se a senhorita não lhe tivesse ajudado?

– Não, Lorenzo, só fiz a minha obrigação como cidadã.

Lorenzo nem desconfiava que eu tivesse planos para

ele e Samara. Maria deu-me um tapinha nas costas, olhando-

me com ar de admiração. Praticamente havia me tornado uma

heroína para aqueles dois. Mas eu não poderia deixar que me

vissem daquela forma, pois não havia feito nada demais.

Na volta para casa, eu e Maria não falamos muito

dentro da carruagem. Só queríamos descansar depois daquele

dia de trabalho árduo. Não vimos a minha madrasta quando

chegamos em casa. Segundo nos informou a copeira, ela

estaria em seu quarto, com terríveis dores de cabeça –

obviamente, causadas pelo excesso de bebidas da noite

anterior. Mas ela disse para a copeira que foi por causa do

desgosto que eu lhe havia causado.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 252 -

Como eu não estava mais com vontade de ouvir as

intrigas da copeira, fui para o meu quarto, deixando Maria a

sós com ela. Tirei os sapatos tranquilamente, sentei-me na

beira da cama e peguei um livro para ler. Naquele dia, estava

muito calma e não deixaria que nada perturbasse minha paz.

Algumas horas depois, a copeira trouxe-me o banho.

De cabeça baixa eu estava e de cabeça baixa continuei, lendo o

meu livro. Mas percebi que ela me olhava com cara feia. Acho

que ela queria que eu perguntasse como a minha madrasta

estava, para que pudesse defendê-la, como sempre fazia. Ao

perceber que não me manifestei com nenhuma emoção

aparente, ela saiu, esbarrando propositalmente o balde em

todos os cantos – pensando, assim, que me incomodaria.

Fiz meu asseio tranquilamente. Coloquei uma camisola

limpa e fresca. Certifiquei-me de ter fechado a janela.

Dispensei o jantar e outras refeições, porque estava satisfeita.

Depois de fazer algumas anotações em meu diário, virei para o

lado e adormeci, simplesmente.

Naquela noite, especificamente, tive um sonho

estranho. Sonhei com um lugar frio e sombrio, onde eu era

mantida em cativeiro por pessoas encapuzadas. Elas

circulavam em volta de mim e apontavam-me o dedo, como se

estivessem acusando-me de alguma coisa. Porém, não

consegui ouvir o que diziam.

Acordei de supetão, como se alguém me estivesse

acordando, ou como se tivesse levado um choque de um raio.

Fiquei muito assustada. Era como se alguma coisa estivesse

para acontecer naqueles dias que viriam pela frente. Também

sabia que aquele sonho fazia parte do meu futuro, mas não

conseguia entendê-lo de imediato. Sabia que as pessoas do

meu sonho eram religiosas, e isso me intrigou muito. Fiquei

Adriana Matheus

- 253 -

durante algum tempo sentada na cama, tentando decifrar

aquele sonho confuso.

De repente, olhei para a janela e ela estava aberta,

novamente. Confesso que me deu certo receio. Quem estaria

entrando em meu quarto e abrindo a janela? E com qual

propósito isso estava ocorrendo? Havia me esquecido de

perguntar à Maria no dia anterior, mas nunca me esqueceria de

perguntar-lhe no dia seguinte.

Mudei meus pensamentos de direção. Levantei-me e fui

até a janela, fechá-la. Resolvi, por uma questão de segurança

própria, trancar a fechadura da porta do meu quarto também.

Como percebi que não conseguiria dormir aquela noite, peguei

meu diário e comecei a anotar algumas coisas nele.

Foi quando ouvi um barulho estranho vindo do jardim.

Fiquei muito intrigada. Então, levantei-me na ponta dos pés,

para não chamar atenção, e fui até a janela. Abri bem

devagarzinho e olhei de meia greta. A condessa estava de

camisola e roupão, correndo pelo jardim em direção ao portão.

Vi quando ela conversou com um homem, que não era um dos

seus convivas. Embora a Lua estivesse iluminando tudo à

distância, não me deixou ver o rosto do homem. Mas, pelo

modo de se vestir, pareceu-me um fidalgo ou mesmo um

monarca. Fiquei imaginando o que aquele homem estava

tramando junto à minha madrasta, àquelas horas da noite. O

mais estranho foi perceber que os dois gesticulavam e olhavam

em direção à minha janela. Pensei Será que minha madrasta

estaria planejando me matar?

Depois de ver e presenciar aqueles fatos, não consegui

dormir mais aquela noite. Fiquei apavorada, pensando que a

condessa poderia estar tentando me assassinar. Aqueles

pensamentos começaram a me deixar trêmula, pois sabia

perfeitamente que a esposa de meu pai era uma mulher

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 254 -

ardilosa e vingativa e, com certeza, estava planejando algo

para se vingar pelas coisas que falei com ela pela manhã.

Sentei-me na cama, cruzei as pernas e comecei a orar com toda

a força do meu ser. Tentei espantar aqueles pensamentos que

não me deixavam dormir. Pedi a Deus que acalmasse meu

coração e que me desse forças e visão para que pudesse ver o

que a condessa estava planejando contra mim.

Depois que orei a Deus, meu coração foi se acalmando

lentamente, até que fiquei mais relaxada. Então, voltei a

escrever no meu diário. Aproveitei para falar sobre a

meditação e o dom da paciência.

A meditação é um processo de se contatar com o ser

interior e canalizar as energias puras e vibratórias num

processo de transcendência. Possui técnicas que permitem que

a vida interior se desenvolva, proporcionando o caminho para

uma percepção maior da vida real. É a forma de nos despertar

para a presença do Divino na criação e no nosso mais profundo

ser. A meditação contribui de forma positiva para nosso

desenvolvimento pleno e harmonioso. São Paulo definiu o

estado da meditação em sua epístola aos efésios, capítulo 4,

versículo 13.

Meditar é orar em silêncio. É ocupar o pensamento

com o vazio - ou seja, temos que esvaziar o pensamento atual,

deixando a mente sozinha. Meditar é a coisa mais difícil que o

ser humano pode imaginar. Pois o homem não consegue, por si

só, estar sossegado dentro de si mesmo. Não só as bruxas, mas

todos os seres humanos deveriam meditar, ao menos uma vez

na vida. Meditar é deixar o pensamento ser absorvido para

dentro de uma realidade suprema da consciência - o que é

absolutamente indescritível. O centro do nosso ser é o ponto

onde Deus nos toca, levando-nos ao despertar espiritual,

produzindo várias experiências de caráter místico. Na

Adriana Matheus

- 255 -

meditação, deve-se silenciar a mente pensante, pondo em

prática o entendimento das coisas que não podem ser vistas e

que pertencem à consciência pura. Temos que ter apenas uma

noção única da meditação: nela não há consciência pensante.

Falo de consciência pura quando o espírito habita a mais alta

verdade, sem qualquer mistura de pensamento imaginativo.

Para chegar a esse nível, devemos calar todas as memórias e

ideias inquietas, silenciando o pensamento. Nenhum

movimento na vida religiosa tem qualquer valor, a menos que

seja um movimento para o interior, em direção ao centro

silencioso da nossa existência, onde está Cristo: o nosso eu. A

meditação é um encontro cósmico, não só com o passado ou

com os espíritos, mas com a nossa mente inconsciente. É o

encontro da paz interior.

Para que uma pessoa entre em contato consigo mesma,

precisa saber que a primeira coisa a fazer é treinar a respiração.

Tem que ser uma respiração correta, disciplinada e induzida ao

mesmo tempo. Não pode existir nada pendente e nenhum

barulho em volta dela, pois isso atrapalha o treino mental. Uma

vez dominada a respiração, a segunda coisa a fazer é corrigir a

postura. Essa postura é designada de hasanas. Depois disso,

comece a desenvolver a sua concentração física e mental. Para

isso, procure respirar, mantendo a postura e olhando para

frente, fixando num ponto. Seguidamente, olhe para o ponto e

para si. Fique assim, em silêncio absoluto. Espere que as ideias

fluirão à mente, mas se não as agarrar, elas, por si mesmas,

passarão. Isso acontecerá até que a mente esteja aquietada e

consiga tocar a consciência pura. Como citei, meditar não é

fácil e nem é para qualquer um.

A busca de Deus, ou contato com as divindades, é algo

intrínseco ao ser humano. O maior contato com Deus é aquele

que estabelecemos através da prática da meditação. Algumas

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 256 -

pessoas pensam que se trata de ensinamentos genéricos, e que

basta esperar o espírito em questão aparecer. Mas no nosso

sentir, há um erro nessa maneira de pensar.

Em primeiro lugar, porque ao nosso redor há sempre

espíritos querendo comunicar-se conosco, mais comumente de

baixa categoria. Em segundo lugar, porque, não chamando um

espírito em particular, abrimos um portal para qualquer

espírito - até mesmo os vulgares ou malignos. Em uma reunião

ou assembleia, não dar a palavra a nenhum espírito que se

manifeste é esperar por um resultado catastrófico. Os espíritos

têm uma necessidade muito grande de se comunicar com as

pessoas - isso é fato consumado. É muito imprudente, também,

que nos neguemos a falar com um espírito que procura

comunicar-se conosco, levando em conta que ele pode ser um

conselheiro ou um mentor espiritual. Quando um espírito aflito

tentar falar, mesmo que seja confusa a sua manifestação e não

consigamos entendê-lo, apenas ouvir é a melhor resposta. Na

maioria das vezes, esses espíritos precisam de ajuda. Devemos

levar em consideração, também, o fato de que os espíritos

estão muito distantes de nós. Por isso mesmo, é difícil que

manifestem a comunicação. Caso alguém queira comunicar-se

com um espírito, deve ter muita paciência, pois ele pode

demorar até dias para que consigamos escutá-lo. Geralmente,

manifestam-se muitos de uma vez, pois a necessidade de se

comunicarem é muita. Isso é o que causava as muitas vozes

que eu ouvia quando criança. O apelo direto a determinado

espírito é um laço direto entre nós e ele. Por isso, ao evocar um

espírito, tenha muita cautela - isso é uma regra básica e

absoluta. Espíritos familiares são habituais e também sempre

aparecem, mesmo sem serem chamados.

Fiz essas anotações porque senti a necessidade de

meditar e tentar chamar o meu mentor espiritual. Ainda não o

Adriana Matheus

- 257 -

conhecia. Mas, como precisava de ajuda para acalmar-me os

nervos e orientação para saber lidar com aquele perigo

eminente, tive que chamá-lo. Podemos, sempre que quisermos,

chamar nosso mentor espiritual. Mas isso não é para se tornar

um hábito frequente, pois estamos lidando com pessoas.

Embora elas não estejam mais no plano terrestre, merecem

respeito de igual modo. Portanto, nunca faça do mentor

espiritual uma marionete.

Relaxei os músculos e fiz novamente minhas orações,

de olhos fechados. Pedi a Deus que me desse a capacidade de

entender os espíritos com clareza, porque sabia que antes, para

mim, eles eram apenas vozes e eu nada entendia do que me

falavam.

Depois de meditar e limpar o meu eu, sentei-me na

cama com as pernas cruzadas e perguntei, em voz alta, mas

com os olhos ainda fechados:

– Acaso há algum espírito familiar aqui presente que

possa responder-me algumas perguntas?

A princípio, nada ocorreu. Então, fiz essa pergunta

mais duas vezes. Até que um vento forte entrou pelo quarto,

com tamanha força que tive que me manter firme. Havia

naquela experiência um fator muito importante: minha janela

estava completamente fechada. Senti medo e calafrio, mas me

mantive inerte e de olhos fechados. Foi, então, que senti uma

forte presença feminina perto de mim. Um suave perfume de

mulher invadiu todo o ambiente. Perguntei, então:

– Quem é você? Se está aqui neste recinto para fazer o

bem, seja bem vinda. Mas se veio atormentar este lar, por

favor, peço sua compreensão para que se retire em nome de

Deus. Se for minha parenta, diga-me seu nome.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 258 -

O vento soprou novamente, só que dessa vez mais

suave e bem próximo ao meu ouvido. E uma voz doce e

sussurrante falou-me:

– Não se preocupe, Anna, não lhe faria nunca nenhum

mal. Sou Elizabeth, sua mãe.

– Mãe!

Tive vontade de abrir os olhos e abraçá-la, mas resisti

mais uma vez, pois sabia que não estava preparada para vê-la

em sua forma incorpórea. Isso sem contar que, sem querer, eu

poderia afastar seu espírito. Um espírito familiar não vem com

a intenção de nos assustar, mas de nos ajudar ou pedir-nos

algo. Mas, muitas vezes, não o vemos de uma maneira muito

agradável. Isso varia muito com a forma que está nosso

pensamento. E o meu, naquele momento, não estava em

perfeita harmonia com o universo espiritual - o que poderia

ocasionar uma manifestação ectoplásmica assustadora.

Continuei aquela conversa, sem fazer movimentos bruscos: da

mesma forma que eu poderia me assustar, ela também poderia

se assustar comigo. Alguns espíritos são cautelosos e sensíveis.

Então, por fim, disse-lhe:

– Mãe, como a senhora está? Tenho tantas saudades...

Sinto tanto a sua falta. Tenho tantas perguntas...

Ela deu um sorriso, que pude perceber com a minha

mente inconsciente.

– Estou bem, minha filha, mas ainda estou estudando

muito.

– Como assim, estudando?

– O mundo espiritual é bem parecido com o mundo de

vocês. Só que aqui vivemos em paz e temos que escolher

tarefas. O trabalho é constante. Tive alguns problemas quando

deixei meu aparelho. Levei algum tempo para aprender que

não voltaria tão rápido. Fiquei em um hospital, curando-me de

Adriana Matheus

- 259 -

uma espécie de loucura sintomática. Não aceitava não ter você

em meus braços e era muito apegada ao amor carnal de seu

pai. Com o tempo, os auxiliares foram me mostrando como era

o funcionamento deste lado. Aceitei, por fim, viver em uma

colônia onde as casas eram parecidas com as do mundo onde

vivi. Conheci muita gente e encontrei alguns parentes, mas

outros decidiram reencarnar. Comecei, então, a fazer um

trabalho social com crianças vítimas de abortos. Elas são

espíritos difíceis, pois foram rejeitados por seus pais e, muitas

vezes, não aceitam uma nova família. Por anos assombram as

casas onde queriam morar, e até deixam seus habitantes com

problemas mentais sérios. O caso mais grave foi de um

menininho cuja mãe tentou três abortos e, no oitavo mês,

quando ele finalmente conseguiu nascer, ela o enforcou ainda

vivo. Mas, mesmo tendo tanto trabalho, sempre tive permissão

para visitá-la. Quando você era criança, eu sempre estava por

perto, evitando que se machucasse ou que alguém lhe fizesse

algum mal.

Interrompi minha mãe, fazendo-lhe uma pergunta que

havia muito tempo me deixava intrigada:

– Foi a senhora quem esteve comigo aos dez anos,

quando me olhava ao espelho?

– Sim. Perdoe-me se a assustei, não foi minha intenção.

Por isso, não apareci mais.

– Eu sei, mãe. Na verdade, sempre soube que era a

senhora quem me cobria à noite. Só não sabia como. A

senhora é o espírito que vai me auxiliar durante minha jornada

terrena?

– Não, só vim para poder apresentá-lo a você e matar as

saudades que sentia.

– Quem será, então? É algum dos meus entes falecidos?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 260 -

– Também não. Seu nome é Heixe, e ele é um espírito

de muita luz e de uma sabedoria infinita. Ele é o responsável

por proteger você e o seu amor. Também é o responsável

pela colônia onde vivo.

– E qual é o nome dessa colônia, mãe? - quis saber.

– La Paz. É um lugar maravilhoso, com tantos campos

e flores... Lá é como se fosse uma fazenda. Só que, ao invés de

cultivarmos hortaliças, cultivamos pessoas. Resgatamos

crianças vítimas de abortos e crianças que são assassinadas de

maneiras cruéis. Damos a elas todo o amor que não tiveram.

Ensinamos-lhes princípios morais e encaminhamo-las para

uma nova encarnação. Confesso, minha querida, que é um

trabalho duro e árduo, mas compensador! Sempre que damos

amor, recebemos de volta. Como vê, essa foi a maneira que

acharam para compensar a falta que você faz para mim.

Ficamos vinte minutos conversando. Ela me respondeu

sobre uma série de perguntas sucessivas que lhe fiz. Foi

maravilhoso poder conhecê-la. Minha mãe pareceu-me um

espírito muito sereno e dedicado. Perguntei-lhe se ela é quem

estava abrindo minha janela.

– Não, Anna. Não temos permissão para fazer esse tipo

de coisa. Quando esses fatos acontecem - o que é uma raridade

-, sempre são provocados por um incumbo: espíritos sem luz,

vulgarmente denominado assim na terra de demônio. Mas não

é o caso aqui.

– Então é uma pessoa de carne e osso que está fazendo

isso?

– Sim, é sim.

– Quem é essa pessoa e por que está fazendo isso?

– A pessoa que está fazendo isso é a sua madrasta. Mas

não tenho permissão de lhe contar mais nada. Terá que

Adriana Matheus

- 261 -

descobrir por sua própria conta. Apenas lhe peço que tome

muito cuidado.

Aquelas palavras só serviram para me deixar mais

apreensiva, pois ressaltaram minhas suspeitas de que minha

madrasta poderia estar tentando algo contra mim.

Interrompemos a nossa conversa, pois uma grande luz

apareceu, iluminando todo o recinto. A luz era tão forte que,

mesmo eu estando com os olhos fechados, pude percebê-la.

Depois de escutar minha mãe apresentando-se, senti um

leve perfume de flores no ar e, então, Heixe apresentou-se. Sua

voz era grave, mas ponderada. Então, como se fosse o vento

forte, ele falou:

– Abra seus olhos, Anna, não precisa ter medo de mim.

Não há nada que temer. Abra os olhos para que possamos falar

com você.

Senti um arrepio percorrer todo o meu corpo.

Lentamente, fui abrindo os olhos, para que a luz que saía de

Heixe não me cegasse, pois era muito reluzente.

Na minha frente, deparei-me com um homem alto,

muito louro, aparentando ter trinta e poucos anos. Suas vestes

eram de um linho muito branco e ele calçava sandálias

douradas. Seus olhos eram de um azul inigualável. Todo o

recinto foi tomado pela forte luz e pelo cheiro de flores que

saíam dele. Fiquei completamente extasiada. Nunca havia

visto nada tão maravilhoso antes. Heixe, percebendo meu

estado de euforia, disse:

– Sou seu mentor espiritual. Estou aqui para ajudar-lhe

no que for preciso.

– Sinto-me muito honrada por receber em minha casa

alguém com tanta grandeza como você. Espero poder ser digna

de tamanha responsabilidade e confiança. Muito obrigada por

ter vindo ajudar-me.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 262 -

Conversei com Heixe a respeito de várias coisas. Tirei

muitas dúvidas que tinha em relação ao mundo espiritual. Ele

foi maravilhoso comigo, tendo paciência e respondendo-me

tudo, pois estava meio confusa e perdida em relação a muitas

coisas.

Heixe contou-me, também, ter sido vítima de uma jura

de amor e, durante duas de suas reencarnações, ele assassinou

seu amor porque sentia ciúmes. Custou a se libertar e a libertar

sua vítima. Até que, depois de muito sofrimento, aceitou ajuda.

Após se restabelecer, estudou durante anos a fio e, finalmente,

encontrou seu amor em uma colônia. Ambos, agora, auxiliam

vítimas de sortilégios e juras.

Sua presença transmitia-me muita paz e sabedoria.

Heixe orientou-me a como seguir o meu caminho. Estava

eufórica e muito feliz por ter tão perto de mim um espírito de

tão alta grandeza. Então, fiz a pergunta principal, o pivô por tê-

los evocado:

– Como farei para descobrir o que minha madrasta está

planejando contra mim? Pois sei que é algo diabólico.

Confesso que tenho medo.

Heixe respondeu-me, meio a contra gosto, da seguinte

forma:

– Tem toda a razão por temê-la. Mas saiba que

estaremos aqui para lhe ajudar, Anna. Não posso dizer-lhe

muita coisa, mas na hora certa você saberá como agir. Tenha

certeza apenas de uma coisa e ouça com muita atenção o que

irei lhe dizer: não centre muito suas energias em apenas uma

pessoa, pois o mal, Anna, às vezes está dentro de quem mais

amamos. Alguém que, para nós, é considerado um herói. Sabe,

minha querida, você passou uma vida de repressões e

sofrimentos nesta casa. Portanto, mediante a sua dor, não

percebeu quem era o seu verdadeiro inimigo. Não quero que,

Adriana Matheus

- 263 -

de forma alguma, se revolte ou se entristeça com as minhas

palavras. Quero apenas que pense e ore muito, minha querida,

pois o que ainda estar por vir pode fazer-lhe querer fraquejar

em sua jornada. Saiba, Anna, que tudo o que nos acontece

nesta terra é permitido pelo Pai Maior. O que posso lhe dizer

mais sobre isso é que essa pessoa que irá lhe trair traz consigo

uma grande mágoa de sua outra vida como Shaara. O espírito

dessa pessoa tornou-se muito revoltado. Resgatá-lo foi muito

difícil. Achamos que uma reencarnação junto a você seria boa

para ele. Mas nos enganamos: as memórias revoltosas que ele

trouxe em seu inconsciente não lhe abandonaram. Preste bem

atenção, pois logo acontecerão fatos que lhe colocarão não só

em perigo, mas também lhe causarão muita decepção. Não

julgue essa pessoa, pois ele a ama muito. Inconscientemente,

não consegue perdoá-la.

Entendi que Heixe falava sobre o meu pai. Aquela

revelação deixou-me chocada. Então, comecei a juntar os fatos

e percebi que Heixe estava coberto de razão. Meu pai sempre

ficava estático, olhando o horizonte. Sua depressão fazia-o

beber compulsivamente. Houve momentos em que o flagrei

olhando para mim como se me odiasse. Eu, às vezes, achava

que a minha madrasta estava certa quando dizia que ele

também culpava-me pelo falecimento de minha mãe. Embora

ele mesmo tenha me defendido certa vez, agora muitas coisas

faziam mais sentido.

Fiquei conversando com Heixe e minha mãe até três da

manhã, quando se despediram de mim. Ela não tinha muita

permissão para me responder, mas ele me orientou,

respondendo tudo o que eu perguntava. Prometeram sempre

atender-me quando necessário fosse.

Aprendi, com essa experiência, que os espíritos

poderiam sempre nos auxiliar e nos ajudar, mas nunca

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 264 -

poderiam interferir em nossos destinos. E que também

poderiam nos responder só o que lhes fosse permitido. Eles

respeitavam a hierarquia das ordens superiores e divinas. Têm

obrigações com seus escolhidos e respectivos trabalhos,

habitam em colônias e podem estar em muitos lugares, mas

nunca ao mesmo tempo.

Sabia que deveria ter muito cuidado com zombeteiros,

pois nosso espaço físico e invisível aos olhos está povoado de

espíritos de todas as classes. Aquele pensamento deixou-me

um tanto assustada e tímida: só de imaginar um espírito

observando-me trocar de roupa, constrangia-me.

– Espero que vocês respeitem minha privacidade!

Imagine só!- disse em voz alta, rindo sozinha.

Aprendi, também, que somos nós que atraímos os

espíritos errantes e sem doutrina – ou, como vulgarmente os

chamamos, espíritos sem luz, ou rebeldes. Isso depende muito

da doutrina espiritual de cada um.

A faculdade mediúnica não é só para isso: ela é apenas

um meio de comunicação. Aprendi que podemos atrair a

antipatia ou a simpatia de um espírito. Compreendi que posso

estar rodeada pelos que têm afinidades ou não, sendo

superiores ou inferiores. Os espíritos não passam de almas

desprendidas dos corpos, que levam consigo o reflexo de suas

qualidades e imperfeições. A ciência humana ainda está muito

longe de aprender sobre essa magnitude. Ouso dizer que irá

demorar muitos séculos para que aceitem esse tipo de

sabedoria astral. Por mais que os estudiosos e cientistas - e até

alguns astrólogos - estudassem, os seres humanos não

alcançariam com facilidade tal sabedoria. Eu, agora, estava

entre dois mundos e sentia-me privilegiada. Minha missão era

ajudar os enfermos e necessitados, e esclarecer-me o quanto

mais na ciência do saber.

Adriana Matheus

- 265 -

Minha mente estava cansada e minha cabeça parecia

estar cheia de bolhas. Mas precisava levantar-me e ir à cidade.

Queria ver como estava passando Dona Catarina, e ainda

precisava passar no ferreiro e pegar minha encomenda. Depois

de muito lutar contra a fadiga e de não ter conseguido dormir,

levantei-me a contra gosto e fui olhar-me ao espelho. Santo

Deus!, pensei comigo. Estava péssima: meus olhos, cobertos

por enormes olheiras. Teria que arrumar uma desculpa para

contar sobre aquilo à Maria. Caso lhe falasse o que havia

acontecido, ela poderia ficar muito preocupada -

principalmente sobre o fato de que meu pai seria o causador de

toda a minha desgraça.

Arrumei-me rapidamente. Não poderia ficar um

segundo parada ou o sono tomaria conta de mim novamente.

Desci para o desjejum e, no caminho, encontrei com a copeira,

que subia com a bandeja de desjejum da condessa.

Cumprimentei-a casualmente. Ela, por sua vez, falou:

– Senhorita, já ia levar seu desjejum daqui a pouco!

Perdoe-me, estou atrasada?

– Não, decidi levantar-me mais cedo hoje. A propósito,

de hoje em diante, tomarei meu café na cozinha com vocês.

Não me olhe assim, porque não estou doente. Muito pelo

contrário: estou me sentindo muito bem. Aliás, nunca me senti

tão bem em toda a minha vida. Sabia que aquela

inesperada e súbita mudança de hábito geraria muitos

comentários entre ela e a condessa, mas foi irresistível

provocá-la. Ao chegar à porta da cozinha, Tereza, Joseph,

Lorenzo e o capataz Tomaz estavam tomando café. Ao me

verem, todos - inclusive Maria - se levantaram, espantados.

Então, disse-lhes:

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 266 -

– Pelo amor de Deus, sentem-se! Para que tanta

reverência? Acaso aqui chegou alguém da realeza? Fiquem

despreocupados e, por favor, não façam cerimônias comigo.

Dizendo isso, fui sentando e pegando um pedaço de

pão de milho. Percebendo que continuavam de pé, disse:

– Olhem, se for para eu vir aqui todos os dias e ter que

vê-los em pé até que eu acabe de tomar o meu desjejum, então

prefiro ir para o meu quarto e dar-lhes o trabalho de subir as

escadas para me servirem.

Foram se sentando um a um, entreolhando-se. Portanto,

prossegui, dizendo:

– De hoje em diante, serei uma companhia e

constantemente me verão nesta cozinha. Espero que isso não

seja um empecilho, e sim que isso possa nos unir. Afinal, sou

ou não sou a pequena sombra desta casa? - disse isso olhando

para Tereza, enquanto todos soltaram um largo sorriso.

Tomei meu café calmamente, degustando os manjares

que Tereza havia preparado. Tentei deixá-los cada vez mais à

vontade, contando-lhes histórias engraçadas. Tudo isso sob os

olhares atentos de Maria, é claro! Depois de ter saciado minha

fome, olhei para Lorenzo e perguntei-lhe:

– Poderia arrumar a carruagem para mim, Lorenzo? Eu

e Maria iremos novamente à cidade hoje.

– Claro, senhorita Anna! Mas vai demorar um pouco,

porque ainda não tratamos dos animais.

– Não há problema algum, não estou com pressa.

Enquanto isso, irei ao jardim, dar uma caminhada e respirar o

ar puro desta linda manhã.

– Posso saber aonde vamos desta vez? - perguntou

Maria.

– Claro que sim. Iremos à casa daquela jovem que

visitamos ontem.

Adriana Matheus

- 267 -

Respondi a pergunta de Maria olhando para Lorenzo,

que corou de imediato. O rapaz sorveu o último gole do suco

que estava tomando e levantou-se, dizendo:

– Sendo assim, é para já, senhorita. Apronto a

carruagem rapidinho. - disse isso saindo às pressas, porta

afora.

– Será que eu disse alguma palavra mágica?

– Por certo que sim. - respondeu Maria.

O resto da criadagem foi para seus postos, cumprir com

suas tarefas diárias. Enquanto Maria passava as ordenanças aos

criados e escravos da casa, fui calmamente caminhar pelo

jardim. O céu estava lindo naquela manhã, as flores bailavam

ao vento. Continuei, então, caminhando até o portão de saída,

para recordar-me da cena da noite anterior. Quando cheguei

bem perto do portão, notei ao chão um objeto reluzente.

Aproximei-me para ver do que se tratava e percebi que era

uma medalha. Baixei e peguei-a. Na medalha, havia uma

insígnia de um brasão da nobreza. Porém, eu nunca havia visto

nenhum como aquele. Parecia inglês.

Lorenzo interrompeu-me, avisando que a carruagem já

estava pronta. Pedi que avisasse Maria que já estávamos

prontos. Enquanto ela não vinha, fiquei pensando de qual

família real seria aquela insígnia.

Quando Maria chegou, eu já havia entrado na

carruagem e esperava por ela. Dentro da carruagem, mostrei a

medalha e perguntei-lhe:

– Maria, a senhora já havia visto esta insígnia?

– Confesso que não me é estranha. Mas onde foi que

achou isso?

– Na entrada do portão de saída, do lado de dentro.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 268 -

Contei-lhe, então, o que vi na noite anterior e o que

estava havendo nas outras noites em relação à minha janela.

Maria ficou muito assustada e disse:

– Então, agora terá que dormir com a porta do seu

quarto trancada. Se quiser, até posso dormir lá em cima com a

senhorita.

– Obrigada, Maria, mas isso não será necessário. Basta

que eu tranque a porta. Estou de olhos e ouvidos atentos,

acredite!

Ficamos pensativas e nem percebemos que Lorenzo já

havia saído de casa com a carruagem. Mudei meus

pensamentos daquele assunto que nos estava fazendo mal e

perguntei à Maria:

– Não achou Lorenzo muito entusiasmado com a jovem

Samara? Não acha que os dois formariam um belo casal?

– Menina, em que está pensando?

– Hum... Lorenzo é um homem bem apanhado, solteiro,

jovem, trabalhador... Samara é tão solitária e está passando por

tantos problemas por cuidar da mãe sozinha...Ontem percebi a

maneira como eles se olhavam. Acho que poderiam formar um

belo par.

– A senhorita não para mesmo, não é? Agora está se

passando por alcoviteira também? Santo Deus! Acho que,

quando lhe trouxeram de volta da viagem, esqueceram-se de

verificar se o espírito que trouxeram do passado era o mesmo,

viu?

– Ora, Maria, não dizem que voltamos renovadas!?

– Sim, minha filha, por certo é o que acontece. Mas a

senhorita se renovou demais, nem consigo acompanhar tantas

mudanças. A cada instante parece ser uma pessoa. Confesso

que isso está me assustando, pois não sei mais com quem estou

lidando.

Adriana Matheus

- 269 -

– Sou a mesma pessoa, Maria. Apenas decidir olhar a

vida por outro prisma. Não vou aceitar mais que ninguém

mande em mim ou que me obriguem a ser o que eu não quero

ser. De agora em diante, tomarei minhas próprias decisões.

Não quero mais viver às escondidas, chorando. Quero e exijo

que as pessoas me respeitem como eu as respeito.

– Só quero que tome mais cuidado para que nada de

mal lhe aconteça. Gosto muito da senhorita. Concordo que

deva mesmo mudar e não aceitar que lhe façam de capacho,

como faziam antes. Mas isso deve ser devagar, porque,

mudando tão rápido como a senhorita está, pode causar um

choque nas pessoas que não entenderam essa sua mudança de

hábitos. Sabe muito bem o que essa nossa sociedade, regida

por homens, pensa de mulheres que têm certas atitudes. A

senhorita poderá trazer danos a si mesma.

– Não estou fazendo nada demais. Também pouco me

importo com o que as pessoas pensem de mim. Maria, se eu

continuar como eu era, meu destino cumprir-se-á do mesmo

modo, certo?

– Certo.

– Então, que pelo menos eu ocupe o pouco tempo que

ainda tenho nesta vida praticando a caridade, lutando pelos

meus direitos!

– Agora estou entendendo aonde a menina quer chegar.

No decorrer do caminho, eu e Maria conversamos tanto

que nem vimos o tempo passar. Quando aquietamos a boca, já

estávamos na frente da casa de Samara. Ela veio de imediato

receber-nos e abraçou-me ao descer da carruagem. Seus olhos

grudaram em Lorenzo e Maria, ao perceber aquilo, deu-me

uma cutucada com o cotovelo. Assinalei com a cabeça,

positivamente.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 270 -

Ao entrar naquela casa, percebi que a paz reinava

novamente. Dona Catarina estava de pé e havia preparado um

bolo para o desjejum. Samara havia colocado um vasinho de

flores em cima de uma pequena mesa, no cantinho da casa.

Quando Dona Catarina percebeu a minha presença na

casa, veio cumprimentar-me com os olhos cheios de lágrimas.

Dei-lhe um beijo na testa. Para mim, não existia nada mais

gratificante do que ver aquela mulher de pé novamente.

Enquanto conversávamos, pude notar que Lorenzo e Samara

estavam em um canto da sala, olhando-se em silêncio. Então,

percebi que era a hora certa para intervir pelos dois. Enquanto

Dona Catarina levava as xícaras para a cozinha, acompanhei-a

na desculpa de ajudá-la. Foi aí que contei a ela sobre o

interesse de Lorenzo por Samara. Ela disse já ter reparado. E

também disse que fazia muito gosto se eu não me importasse.

Resolvemos, então, juntas, perguntar a Samara se ela gostava

de Lorenzo. Fomos respondidas com um largo sorriso da

jovem, o que confirmou as minhas suspeitas de que os dois

estavam apaixonados. Foi amor à primeira vista. Seriam muito

felizes, por certo.

Fui até a entrada e conversei seriamente com Lorenzo.

No princípio, aquele assunto pegou Lorenzo de surpresa. Mas,

depois, o sorriso largo revelou-nos a verdadeira vontade dele

de se unir à Samara. A conversa foi um tanto longa, pois

precisava deixar certas coisas muito claras. Depois de lhe dizer

tudo o que ele precisava ouvir, convidei-o a entrar, deixando-o,

assim, a sós com Samara e a mãe. Eu e Maria fomos para o

lado de fora da casa, para que os três ficassem à vontade.

Meia hora depois, todos saíram, felizes e prazerosos lá

de dentro. Por fim, Lorenzo disse-me:

– A senhorita é mesmo um anjo. Logo que vi Samara,

apaixonei-me de imediato. Porém, sou muito tímido e talvez

Adriana Matheus

- 271 -

nunca tivesse tido a coragem de me aproximar e dizer sobre

meus sentimentos. Passei a noite de ontem todinha

atormentado, tentando imaginar uma maneira de vê-la

novamente. Quando a senhorita disse que voltaria aqui, foi

como se o céu da esperança se abrisse para mim. Tentei lhe

falar sobre meus sentimentos hoje mesmo, na hora em que ela

veio me servir café, mas estava nervoso demais. As palavras

fugiram-me, como se estivessem agarradas na minha garganta.

Rimos todas ao mesmo tempo nesta hora, porque

Lorenzo gaguejou como uma criança, de tão nervoso que

estava. Resolvido aquele problema, voltamos para casa. Mas,

no caminho, passamos na ferralheria, para apanhar minha

chave.

A carruagem parou do outro lado da rua. Então, pedi a

Lorenzo que fosse buscar minha encomenda. Não queria me

deparar com aquele homem carrancudo novamente e estragar o

doce sabor daquela manhã maravilhosa. Lorenzo assim o fez.

Para minha maior surpresa, o ferralheiro debruçou-se sobre a

janela da carruagem, colocando a cabeça para dentro. Parecia

estar afoito. Achei meio grosseiro da parte dele. Mas, antes

que pudéssemos falar alguma coisa, ele disse:

– Perdoem-me, senhoritas, sinto estar invadindo a sua

privacidade. Mas jamais poderia deixá-la sair sem pedir-lhe

humildemente minhas desculpas por ontem à tarde. As dores

que eu sentia deixavam-me de muito mau humor. Depois que a

senhorita saiu, refleti e resolvi, por curiosidade, tomar o chá

que me receitou. Quero dizer-lhe que, de ontem para hoje, sou

um novo homem. Ainda sinto um pouco de dor, mas não é

mais tão intensa como era. Vim até aqui para entregar-lhe

pessoalmente a sua encomenda e dizer que não irei lhe cobrar

nada. Vai ficar como um presente em retribuição pelo que fez

por mim.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 272 -

– Imagina, o senhor trabalhou, tem o direito a ser

remunerado devidamente. Ficarei muito sem graça se não lhe

pagar pelo trabalho.

– Ficarei ofendido se me fizer esta desfeita.

Olhei-o nos olhos e eram sinceras aquelas desculpas.

Mediante aquela súplica, eu disse:

– Está bem, se o senhor se sente melhor assim, vou

aceitar o presente. Mas quero que saiba que lhe ensinei os chás

porque realmente fiquei preocupada com o senhor, mesmo sem

o conhecer. Se um dia o senhor precisar de mim novamente,

procure por Dona Catariana e peça à filha dela que entre em

contato comigo. Virei ajudar o senhor onde quer que esteja.

O homem sorriu prazerosamente, todo desconcertado

por perceber que Maria o olhava meio de lado. Ela ainda

estava cabreira por causa das coisas que eu havia contado dele

para ela. Despediu-se de nós e se foi.

Às vezes, os problemas fazem-nos parecer alguém que

não somos. A dor nas costas que aquele homem sentia não lhe

dava o prazer de sorrir e tornava-o cada dia mais e mais

carrancudo. Se alguém não o tivesse ajudado, chegaria um dia

em que até a fé em Deus ele haveria de perder por pensar que

Deus não o estava ouvindo em suas orações. Devemos prestar

muita atenção a isso, porque Deus não só nos ouve, mas

também nos envia auxiliares para nos socorrer.

Finalmente, estávamos voltando para casa. Precisava

deitar-me e dormir um pouco para recuperar minhas energias.

Maria também precisava descansar. No trajeto de volta, não

falamos muito. Praticamente fui cochilando o tempo inteiro.

Quando a carruagem finalmente parou, eu mal podia abrir os

olhos, de tão cansada que estava. Desci da carruagem e pude

perceber que havia outra carruagem na lateral da casa. Maria

olhou-me como quem também queria saber quem seria.

Adriana Matheus

- 273 -

Dei o braço à Maria e fomos caminhando até a entrada.

Ela me abriu a porta e foi uma grande surpresa! Meu pai estava

de volta. Quando percebeu que eu havia chegado, virou-se

para a porta e disse:

– Pensei que teria que mandar a milícia atrás da

senhorita. Fiquei sabendo que agora não para mais dentro de

casa.

– É só isso que o senhor tem a dizer-me depois de

meses fora de casa? Achei que sentisse minha falta!

Ele me deu um largo sorriso e veio ao meu encontro,

abraçar-me.

– Lógico que senti sua falta, mas gosto de saber que as

mulheres da minha família estão em casa quando eu retorno.

Agora, pode me dizer onde estava?

– Fui à cidade com Maria, visitar uma amiga.

– Quem seria essa amiga? Não me lembro de ter

amizades.

– Mas agora tenho. Conheci-a ontem, a caminho do

ferreiro.

– A caminho do ferreiro? E o que uma senhorita

poderia querer com um ferreiro?

– Fui pedi-lo que fizesse uma chave para aquele

bauzinho que mamãe deixou para mim.

– Ah, sim. E por que tinha que ser um ferreiro?

– Porque quis que a chave fosse de bronze e fiquei com

medo de o chaveiro não fazer bem feito o serviço.

Ele parecia desconfiado. Por certo, minha madrasta

tinha colocado muitas ideias destorcidas na cabeça dele. Por

isso, contei-lhe a verdade. Depois de muito me olhar, ele disse

para ir-me aprontar para o almoço.

– Pai, essa noite não dormi muito bem. Prefiro jantar

com o senhor, se não se importar, é claro.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 274 -

– Bom, só pensei que estivesse sentindo minha falta.

Mas, pelo que vejo, terei que sentar à mesa sem a minha

família.

– Ora, meu pai! Nunca fomos uma família tradicional.

Não será a primeira vez que o senhor se sentará sozinho à

mesa. Eu mesma já comi sozinha várias vezes em meu quarto

por falta de participantes desta casa à mesa. Desculpe, mas

hoje estou mesmo muito cansada e não farei a sua vontade,

pois estaria sendo hipócrita comigo mesma.

Disse isso o lembrando das vezes em que ele e minha

madrasta discutiam à mesa, deixando-me sozinha. Ou das

tantas vezes em que almocei e jantei sozinha em meu quarto,

porque Maria dizia-me que ambos haviam saído para algum

outro evento.

Subi as escadas, meio cambaleando de tanto sono. Abri

a porta do meu quarto e olhei para a cama, atirando-me sobre

ela. Não vi mais nada: do jeito que eu estava, acabei

adormecendo.

Despertei com Maria batendo à porta. Esfreguei os

olhos e, percebendo o meu estado, dei um sorriso. Então, disse:

– Pode entrar, Maria. Já estou acordada.

– Minha nossa! Nem os sapatos a senhorita tirou para

dormir?

– Não, adormeci do jeito que eu estava. Mas me diga: o

que a faz vir aqui me chamar?

– Seu pai tem um convidado e pediu-me para dizer à

senhorita que desça imediatamente. Parece que é gente

importante.

– Bom, diga ao senhor meu pai que imediatamente será

impossível, porque acabei de acordar. Depois que me lavar, se

estiver pronta, desço.

Adriana Matheus

- 275 -

– Senhorita Anna, sabe que não posso dizer isso ao seu

pai. Afinal, ele é meu patrão.

– Está bem, então. Invente qualquer desculpa e diga

que já estou descendo.

Maria saiu muito desorientada, sacudindo

negativamente a cabeça.

Eu não tinha a menor intenção de contrariar meu pai -

mesmo porque sabia que ele odiava ser contrariado. Arrumei-

me o mais rápido que pude. Coloquei uma saia de veludo azul

marinho, com uma blusa branca de mangas longas, toda

rendada. Usei um conjunto de pérolas para dar certa graça

àquele traje. Prendi o cabelo em um coque e puxei alguns fios.

Apertei as bochechas para dar cor às minhas faces. Depois de

me visualizar no espelho, dei um largo sorriso e disse a mim

mesma Há certas coisas que não mudam mesmo! Por mais

que eu quisesse me libertar de toda aquela superficialidade, eu

ainda era uma mulher. E, como tal, nunca deixaria de ser

vaidosa.

Abri a porta e caminhei calmamente pelo corredor. Era

fascinante saber que havia dois homens esperando por mim.

Isso me envaidecia ainda mais. Por minha vez, queria ser o

centro das atenções - pelo menos para variar. Ao chegar à sala

de estar, encontrei meu pai sentado a uma poltrona em frente à

porta. A condessa estava sentada ao piano, e um jovem ruivo,

de muito boa aparência, em uma cadeira.

Ao entrar, meu pai e o jovem levantaram-se e minha

madrasta parou imediatamente de tocar o piano. Então,

começaram as apresentações:

– Filha, esse é conde Celso D´Louchoa, filho do gran

duque Albert D´Louchoa. Ele ficará conosco para o jantar.

Conde, essa é minha filha, Anna. O meu tesouro mais

precioso.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 276 -

– Senhorita! - levantou-se o conde, fazendo-me

reverências.

Ele continuou com aquela conversa que, para mim,

durou uma eternidade:

– É um prazer conhecê-la. Seu pai falou-me muito bem

da senhorita durante uma viagem que fizemos juntos a

Londres. Ele, porém, mentiu para mim sobre uma coisa.

– É mesmo? E em que meu pai andou mentindo para o

senhor conde? - indaguei-lhe curiosa, olhando para meu pai,

pedindo socorro.

– Sobre sua beleza. Disse-me que a filha era bonita.

Mas nunca, em toda minha vida, vi beleza como a sua.

Senti-me corar e vi que a condessa iria explodir de ódio

e inveja. Afinal, ninguém poderia resplandecer mais do que ela

própria e, com certeza, ela não poderia flertar com o conde na

presença de meu pai.

Maria salvou-me daquela conversa, que já estava se

tornando constrangedora. Veio avisar-nos que a mesa estava

posta.

Fomos para a sala de jantar. O conde deu-me o braço;

minha madrasta acompanhou meu pai. Sentamo-nos do mesmo

lado, meu pai na cabeceira da mesa, a condessa na sua lateral

direita. Quem nos visse diria que éramos uma família

tradicional e exemplar.

O conde indagava-me o tempo todo, querendo saber

tudo a meu respeito. Apenas o respondia polidamente, sem

demonstrar o menor interesse nele.

Foi-nos servida uma deliciosa e poderosa paella como

primeiro prato.

– Conhece a comida espanhola, senhor conde? –

perguntei-lhe, tentando mudar o rumo daquela conversa, que já

estava indo para o campo da intimidade.

Adriana Matheus

- 277 -

– Não. Mas se for tão saborosa como as belas as

mulheres do país, fartar-me-ei.

Corei pela audácia daquele homem. Ele conseguia

deixar-me encabulada. Por fim, respondi:

– Espero que goste, então.

Meu pai começou a lhe fazer perguntas sobre negócios

e política - o que foi um alívio para mim, pois me salvou não

só das conversas indiscretas do conde, como também dos

olhares calientes dele.

Como segundo prato, foi servido um cochinillo assado.

Para sobremesa, uma mousse de maracujá. Comemos

praticamente em silêncio, o que me foi um alívio. Embora o

conde ficasse fitando-me constantemente, consegui manter

minha postura, fingindo não perceber nada.

Ao terminarmos o jantar, fomos para a sala de estar,

onde foi-nos servida uma sangria. O conde, por sua vez,

parecia obcecado para estar perto de mim. Para tentar

desvencilhar daquele assédio, que estava se tornando

constante, tornei a falar sobre a culinária espanhola.

– Então, senhor conde, o que o senhor achou da nossa

culinária?

Ele sorriu maliciosamente, parecendo ter percebido a

minha intenção.

– Digamos que eu achei... caliente! Como as senhoritas

daqui.

– Desculpe-me, senhor conde, mas não o estou

entendendo. Creio que o senhor e eu não estamos falando o

mesmo idioma. Talvez o senhor esteja confundindo um pouco

as coisas. É melhor que encerremos essa conversa por hora.

– Ofendi a senhorita?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 278 -

– Por enquanto, não. Mas antes que nossa conversa

ultrapasse os limites da civilidade, prefiro que encerremos com

ela.

– Não a entendo, senhorita Anna. Se lhe disse alguma

coisa ofensiva, peço-lhe minhas sinceras desculpas. - disse o

conde, sinicamente.

Dei-lhe um sorriso e virei-me para meu pai, dizendo:

– Pai, não estou me sentindo muito bem, peço

permissão para me retirar.

– Estava tão bem agora há pouco! O que foi que

houve?

– Acho que é só uma indisposição. Peço para ir para o

meu quarto.

– Sim, é claro. Pedirei à Maria que lhe acompanhe.

– Obrigada, pai! Senhor conde, espero que em outra

ocasião nossa conversa seja mais proveitosa do que a de hoje.

– Sim, por certo será, senhorita Anna. Em outra

ocasião, espero poder corrigir esse mal entendido.

– Creio que não houve nenhum mal entendido, senhor

conde. Mas vou dizer uma coisa apenas: uma vez perdida a

minha confiança, perdida ela estará para sempre.

Ele abaixou a cabeça, em um cumprimento casual. Dei

um beijo de boa noite em meu pai e passei por minha

madrasta, que me olhava de um jeito incógnito. Havia alguma

coisa no ar. Mas, como eu estava muito irritada com o

comportamento do conde, não prestei atenção aos detalhes - o

que poderia ser perigoso. Devemos nos lembrar de que Deus

está presente constantemente em nossas vidas, mas o diabo

está presente nos detalhes.

Subi as escadas e nem esperei por Maria. Quando

cheguei em meu quarto, joguei-me em cima da cama e

comecei a chorar. Na verdade, não sabia se era de raiva ou de

Adriana Matheus

- 279 -

decepção. Maria chegou e, ao ver-me naquele estado,

perguntou-me, assustada e com as mãos no rosto:

– Santo Deus, senhorita Anna! O que houve?

– Estão me vendendo, Maria. Estou sendo leiloada

como uma escrava ou animal premiado. E o pior disso tudo é

que o meu próprio pai é o responsável por essa

monstruosidade.

Maria entendeu do que eu estava falando e correu ao

meu encontro, dando-me um abraço fraterno. Ficamos

abraçadas por alguns minutos, até que ela falou:

– Fuja, minha filha! Vá para bem longe daqui! Se

quiser, posso enviar uma carta à minha irmã, pedindo a ela que

lhe dê abrigo. Acredite, seu pai nunca lhe encontrará.

Olhei chorosa e comovida para Maria e disse:

– Não posso, Maria... Se fizer isso, meu pai irá puni-la.

Ele pode não ter recursos financeiros, mas ainda é um homem

poderoso. Com isso, pode mandar trucidar aquele povo. Nunca

seria covarde a tal ponto de fugir, Maria, e de principalmente

colocar a vida de outras pessoas em risco. Vou ficar e lutar

enquanto puder. Esse é o meu destino, o meu triste destino,

lembra-se? A senhora mesma viu em seu tarô.

Maria abaixou a cabeça e nada mais disse sobre aquele

assunto. Levantei, passei as mãos pelo rosto, tentando me

recompor. Olhei para todo o quarto e falei:

– Que se cumpra o meu destino, Maria! Mas, se eles

pensam que serei leiloada, nunca isso acontecerá comigo!

Fique sabendo.

– E o que pretende fazer então, senhorita Anna? Pois

seu pai acabou de pedir para avisá-la que marcou um jantar

formal para apresentar o conde à nossa sociedade.

– Eu já imaginava isso. Pois que seja dessa forma.

Estou mesmo precisando me divertir um pouco.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 280 -

– Divertir-se? Não a entendo... Acabei de pegar a

senhorita em desespero por achar que seu pai a estava

leiloando para o senhor conde. E agora fala em divertimento?

– Então, prepare-se para ouvir o Gran Finale dessa

história.

– Ouh lala, e mais o que poderia me surpreender? A

condessa é quem vai organizar o jantar e o baile. O senhor

conde deu-lhe carta branca para gastar o que precisasse.

Depois que a senhorita saiu, ouvi tudo o que diziam. Não que

eu os ficasse escutando atrás da porta... Na verdade, foi quase

sem querer. Eu já estava entrando, mas parei para ouvi-los. O

que pude entender é que a condessa terá total liberdade

financeira para organizar esse baile de boas vindas ao senhor

conde.

Sentei-me na cama e fique pensativa. Como o conde,

que mal conhecia minha madrasta, estava dando esse poder a

ela? Isso me pareceu muito íntimo. Alguma coisa não estava se

encaixando. Tive a sensação de que, muito em breve,

descobriria o que era. Pedi a Maria que me fizesse um chá,

pois precisava dormir bem. Na manhã seguinte, com as ideias

mais claras, tentaria resolver aquele assunto.

Maria saiu, deixando-me sozinha com meus

pensamentos aflitos. Andei de um lado a outro do quarto. Fui

por várias vezes à janela, mas, naquele momento, nenhuma

ideia iluminada passou-me pela cabeça para fazer-me ter uma

real noção de como a minha madrasta poderia ter conseguido

tão rapidamente a confiança do conde. Se ele fosse um de seus

amantes, entenderia. Mas, pelo que me constava, ele nunca

havia estado na Espanha. Algo não estava se encaixando, mas

não consegui ver às claras o que era.

Algum tempo depois, Maria veio trazer-me o chá e

disse:

Adriana Matheus

- 281 -

– Seu pai pediu-me para avisar que o conde retornará

aqui amanhã para jantar novamente. Pediu a sua presença à

mesa. Senhorita Anna, sugiro que aceite com prudência e não

recuse esse convite.

Maria abaixou a cabeça e prosseguiu:

– Eles estão esperando que eu leve uma resposta

positiva da senhorita.

– Não se preocupe, Maria. Diga ao senhor meu pai e ao

conde que estarei presente amanhã a esse jantar. Fique

tranquila, comportar-me-ei dignamente e não demonstrarei que

sei o que está se passando.

Dei um beijo na testa de Maria e pedi para que ela me

deixasse sozinha. Precisava meditar e tentar dormir um pouco.

Minha mente conturbada não conseguiria fluir nenhuma ideia

naquela noite. Foi uma noite muito difícil, custei a pegar no

sono. Mesmo tendo trancado a porta, tive a sensação de que

alguém estava me espionando. Sentia-me impotente mediante

a situação de alguém invadindo a minha privacidade. Por fim,

acabei adormecendo.

Na manhã seguinte, despertei com Maria batendo à

porta. Levantei-me meio sonolenta e abri a porta para ela, que

já me trazia o desjejum. Embora eu quisesse ter ido tomar café

na cozinha, achei melhor não tentar nada contra o gosto de

meu pai naquele dia.

Maria, ao ver-me, logo foi dizendo:

– Bom dia, minha filha. Pelo que vejo, teve uma

péssima noite de sono! Mas logo irá recuperar as forças, pois

lhe trouxe um desjejum bem reforçado esta manhã.

– Obrigada, Maria. Sei que sempre poderei contar com

a senhora. - disse isso analisando a minha fisionomia ao

espelho, vendo minhas olheiras.

Maria, no entanto, prosseguiu:

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 282 -

– Infelizmente, tenho a lhe dizer que sua madrasta e seu

pai saíram muito cedo hoje. Os dois pareciam ter um

compromisso inadiável.

– Que estranho... Ela nunca se levanta cedo! Tem

alguma coisa errada acontecendo nesta casa, Maria, e eu vou

descobrir. Por favor, arrume a água para o meu banho. E

separe para mim aquele vestido branco. Irei ao jantar do conde

com ele.

– O que a menina está aprontando? Nunca usou aquele

vestido.

– Sim, eu sei, e essa é a hora. Quero estar

elegantemente sedutora hoje, Maria.

Maria saiu sorrindo, parecendo ter entendido o que se

passava na minha cabeça. Logo que ela saiu, comecei a

imaginar como eu iria colocar em prática meu comportamento

com o conde. Só tinha um pequeno problema: nunca havia me

comportado levianamente antes. Aí, comecei a lembrar-me dos

trejeitos da condessa. Achei engraçado como até mesmo quem

tenta nos fazer mal acaba nos ajudando, mesmo sem saber.

É preciso aprender até com os inimigos e usar suas

armas sempre a nosso favor. Muitas vezes, não percebemos

que nossos inimigos são nossos maiores aliados. Mas isso só

acontece com tempo e maturidade. Estamos tão voltados para

o lado da vingança que esquecemos que também podemos

virar contra nosso opositor as suas próprias estratégias.

Devemos pensar da seguinte forma: eles são nossas espadas

contrárias e, de alguma maneira, estão em nossas vidas para

também nos ensinar. Eu tinha muito que agradecer por

perceber isso ainda no começo da minha juventude, pois

muitos demoram anos até alcançar esse estágio alto de

percepção.

Adriana Matheus

- 283 -

Sentei-me na cama para fazer minhas orações e

agradeci pelo dia perfeito que teria. Então, escutei a voz de

Heixe.

– Anna... Escute com atenção o que tenho a lhe falar.

Fechei os olhos para prestar atenção e não me distrair

com as coisas ao meu redor. Heixe, então, prosseguiu:

– Anna, tenha muito cuidado ao falar com sua madrasta

hoje, pois ela tentará provocá-la ao máximo. É a maneira que

ela vê de prejudicá-la moralmente na presença de seu pai.

Tenha cuidado com o conde, Anna. Ele não é o que parece ser.

– Como assim? Já desconfio dele, mas o que quer dizer

com essas palavras?

– Sei que você tem suas desconfianças, mas esse

homem é ainda mais perigoso do que pensa. É um assassino

perigoso e sanguinário, e também um usurpador.

Fiquei muito assustada com aquela revelação. Porém,

Heixe não me deu tempo de pensar muito e continuou:

– Você deve correr, pois o seu tempo nesta casa está

passando. Vá à casa de madame Hortência amanhã. Lá

encontrará uma resposta para poder ajudar a sua amiga Maria.

Pergunte a ela sobre o paradeiro de um escravo chamado

Lourival.

Eu não conseguia entender em que madame Hortência

poderia me ajudar com relação a Maria. A voz de Heixe foi se

distanciando até que não mais pude ouvi-lo. Mas aquelas

palavras ficaram na minha mente como uma espécie de

enigma. Fui à janela tentar colocar a cabeça em ordem, pois a

cada minuto ela parecia ficar mais cheia de problemas. Pude

observar o vento. Ele estava mudo e um mistério pairava no ar.

Estava tão nervosa e assustada que podia sentir o pulsar das

minhas veias. Meu coração estava apertado dentro do peito.

Quis fugir, desaparecer, mas para onde eu iria?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 284 -

Maria bateu à porta, despertando-me daquele transe de

agonia. Ela havia vindo perguntar se já poderia pedir que me

trouxessem a tina para colocar a água do meu banho. Mas, ao

ver-me, logo percebeu que havia algo de muito errado comigo.

– Você está bem, senhorita Anna? Precisa de alguma

coisa? O que aconteceu? Seu rosto está empalidecido.

Tive que contar à Maria sobre a mensagem que Heixe

me transmitiu. Só omiti a parte em que ele se referia a ela.

Maria abaixou a cabeça e, por fim, disse-me:

– Eu deveria ter-lhe contado o que via em meu tarô.

Talvez eu pudesse ter evitado tantos transtornos como esse.

Não deveria tê-la levado à casa de minha irmã, também.

– Ora, Maria, não seja tola. Nada que falasse comigo

antes teria sentido. Eu era uma jovem mimada e alienada. Não

daria importância a nada que me dissesse antes. E por que está

arrependida por ter me levado à casa de sua irmã?

– Porque acho que sou culpada.

– Culpada pelo quê?

– Por ter antecipado o seu destino.

– Maria, ninguém antecipa o destino de ninguém. E

além do mais, como eu poderia me interar do meu dom sem a

sua ajuda e a de sua irmã? Descobri o meu caminho graças à

senhora. Não tem do que se arrepender.

Maria pareceu não estar muito certa das minhas

palavras. Depois de conversarmos mais alguns instantes, ela

desceu para terminar seus afazeres. Fiquei dentro da tina com

água quente por quase uma hora, pois precisava relaxar.

Depois que me vesti, fui dar uma volta pelo jardim: queria

tomar o sol da manhã e receber boas energias da natureza.

Joseph estava cuidando das flores como sempre fazia,

pacientemente. Acenou-me e retribuí, com um sorriso. Meu

Adriana Matheus

- 285 -

coração estava pesado! Sentei-me em um banco, próximo ao

canteiro de girassóis, e clamei a Deus:

– Deus todo poderoso, se puder, apascente meu

coração, cuja aflição é dominante e incessante. Mostra-me a

verdade onde ela estiver, mesmo que escondida dos meus

olhos e obscura para meu espírito. Estende sobre mim a Sua

mão e guie-me segundo Sua vontade. Acalme essa angústia

que insiste em me rodear como os mares em dias de tormenta.

Toque no meu eterno amor com seu eterno amor e dê-lhe a paz

que ele almeja. Dê-lhe a certeza do meu amor por ele e diga-

lhe que em breve nos encontraremos. Apascente aquele

coração aflito, para que o meu também encontre essa

harmonia.

Naquele momento, meu coração abrandou-se e senti no

vento um perfume masculino muito discreto. Tive a certeza de

que aquele era o cheiro do homem dos meus sonhos. Sorri e

meus pensamentos foram se tornando cada vez mais leves. Era

como se Deus tivesse me ouvido e, de alguma maneira, o

monge também. Senti uma lágrima de felicidade rolar em

minhas faces. Agradeci mais uma vez ao céu por ter me

ouvido.

Voltei para o meu quarto e, lá estando, percebi que a

única maneira de conseguir calar o pensamento em certos

momentos era trabalhando. Olhei tudo ao meu redor e resolvi

fazer uma limpeza em meus guardados. Tirei e encaixei tudo o

que não me servia mais. Juntei muitos vestidos que nunca usei

e nunca usaria e os coloquei em caixas. Chamei por Maria e

por Joana para que me ajudassem. Quando chegaram ao meu

quarto, deparando-se com tamanha confusão, Maria falou:

– Santo Deus, o que houve aqui!? Parece que um vento

forte passou dentro deste quarto!

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 286 -

Joana ficou em pé na porta, sem saber que rumo tomar.

Por minha vez, percebendo que as duas estavam espantadas,

disse:

– Estou apenas fazendo uma limpeza nos meus

guardados. Mas, com certeza, não chamei as duas para me

criticarem ou ficarem em pé, sem nada fazer.

Estava de joelhos, guardando uns livros dentro de uma

caixa, e prossegui:

– Peguem essas caixas aí, perto da porta, e levem tudo

lá para cima, junto aos pertences de minha mãe. São livros

velhos que eu havia trazido para cá e não levei de volta. As

outras duas caixas ao lado da cama são para dar a Lorenzo.

São vestidos que estou dando para Samara.

– E esta caixa aqui, senhorita? - perguntou Joana.

– Essa pode deixar debaixo da minha cama, usarei em

breve.

– E o que há dentro dela?

– Coisa de meu uso pessoal. - eu estava me referindo

aos objetos que comprei para o uso da magia.

Depois de tudo organizado, desci e fui almoçar com

Maria na cozinha. Aproveitando que ainda estávamos

sozinhas, disse-lhe:

– Acho, Maria, que está na hora de tirar esse luto.

– Não me sentiria bem, senhorita Anna. Já me habituei

a andar com essa cor.

– Mas deveria pensar com carinho no que lhe estou

sugerindo. Afinal, só a senhora ainda mantém o luto nesta

casa.

– Sim, por certo. Mas é um hábito tão antigo que nem

sei se tenho algo menos sóbrio.

– Tenho certeza de que encontrará algo em seus

guardados. A senhora ainda é bastante jovem para andar por aí

Adriana Matheus

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parecendo uma viúva. Devo lembrar que o viúvo desta casa há

muito tempo já não usa luto. Pense, Maria: a cor negra, além

de ser considerada uma cor fúnebre, é também uma cor que

neutraliza as outras cores. Essa cor pode ter não só

neutralizado a sua vida, mas também pode tê-la impedido de se

casar.

Maria ficou pensativa... Percebendo que havia tocado

profundamente no seu eu, saí, deixando-a refletir sobre o

assunto. De certa forma, eu tinha acabado de interferir

indiretamente na vida dela. Fazendo isso, sem querer,

mudamos a forma de agir e pensar de uma pessoa. Sabia que

isso poderia ser perigoso. Mas, no caso de Maria, foi preciso:

queria que ela tivesse outra postura sobre si mesma. Ela estava

muito apegada a mim e, futuramente, sofreria com a minha

ausência. Ela precisava se distanciar. Precisava ser feliz, e

aquela cor havia se tornado uma espécie de cela em sua vida.

Era como se ela fosse uma lagarta e estivesse precisando de

uma mãozinha da natureza para se tornar uma bela borboleta.

Novamente em meu quarto, parei para escrever em meu

diário. Aproveitei para dar uma cochilada: queria estar bem

disposta para o jantar com o conde. Devo ter dormido muito,

pois nem vi que meu pai e a minha madrasta haviam chegado.

Quando despertei, Maria, toda aflita, veio avisar-me que, se

não me apressasse em me arrumar, não daria tempo. O conde

chegaria às oito para jantar.

Em questão de uma hora, eu já estava pronta e descia as

escadas para encontrar com meu pai na sala de jantar. Ele, por

sua vez, estava tomando uma sangria. Ao ver-me, disse:

– Filha, está encantadora. Sabia que não me faria uma

desfeita.

– E por que eu lhe faria uma desfeita, meu pai? Não

estou entendendo.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

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– Pela atitude que teve ontem no jantar. Achei que

estava dispensando o senhor conde, como sempre faz com seus

pretendentes.

Dei um sorriso, pois havia acabado de descobrir que

estava certa. Depois disse, por fim:

– Então o senhor conde é meu pretende, meu pai? Não

me lembro de o senhor ou quem quer que seja ter vindo a mim

e me consultado se quero ou não me casar.

– Ora, Anna, já está com quase vinte anos. Daqui a

pouco não haverá mais pedidos de casamento para a senhorita.

Quer ficar uma solteirona como Maria? Não estarei aqui para

sustentá-la para sempre. Diga-me, afinal, o que quer da vida,

menina?

Quando eu já estava pronta para responder, a condessa

interrompeu-nos, dizendo:

– Boa noite, marido! Ao entrar, pude ouvir o que falava

com sua filha. Creio que ela quer ser irmã de caridade.

– Boa noite, condessa! Mas por que a senhora acha isso

de minha filha?

– Porque fiquei sabendo hoje que a sua querida filhinha

andou fazendo caridade.

– É mesmo, Anna?! E que tipo de caridade? Para

quem?

– Essa estúpida, meu querido esposo, andou dando

todos os vestidos caríssimos dela para a criadagem. Agora,

além de louca e caridosa, quer andar nua também.

– E por que fez isso, Anna?

– Se a senhora condessa deixar- me responder, poderei

retratar-me.

A megera olhou-me de cima abaixou, fazendo cara de

antipatia.

Adriana Matheus

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– Meu pai, em primeiro lugar, não dei todos meus

vestidos para a criadagem. Dei apenas alguns que já não usava

mais e outros que nunca usaria, pois foi escolhido pela senhora

condessa - que, por sinal, tem um péssimo gosto em se trajar.

Dei, também, alguns sapatos velhos, entre outras coisas que

não me serviam mais. Fiz uma limpeza em meus guardados, já

estava sem espaço para tantas tralhas velhas e sem utilidades.

Ressalto: não dei para a criadagem, dei a uma amiga.

– Uma indigente, pelo que me consta. - retrucou a

condessa.

– Não sabia que ser pobre faz de uma pessoa indigente.

Saiba que ela está noiva de nosso cavalariço, Lorenzo.

– Nossa, que partido! Quem sabe, marido, sua filha

também queira se juntar à ralé? Vai ver está enamorada do

cocheiro. Não me faltava mais nada agora, ter que conviver

com esse tipo de gentinha dentro de minha casa. Além de ter

que ouvir comentários sobre criar a filha solteirona de um

homem viúvo, agora também ter que ser o alvo de comentários

de que estamos tão pobres que, agora, andamos até com

concubina do cavalariço! Olhe, marido, não posso aceitar isso

de forma alguma. Não posso permitir que meu nome seja

enlameado de tal forma perante a sociedade. Sinceramente,

acho uma perda de tempo querer incluir sua filha no meio da

sociedade. Já lhe havia sugerido: deveria trancá-la em um

convento. Essa moça é cheia de espíritos imundos, e eles

fazem dela o que bem querem. Ela é como a mãe dela, e o

senhor meu marido sempre soube disso.

Tive que me controlar ao máximo para não estrangulá-

la com minhas próprias mãos. Mas pensei no que Heixe havia

me pedido e avisado. Respirei fundo e disse:

– Fale o que quiser falar de mim, mas não fale mal da

minha mãe, sua bruxa! A intrusa nesta casa é a senhora. Só não

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

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vou tolerar mais insultos de sua parte, e só não abro minha

boca agora para contar a meu pai sobre quem é a senhora

verdadeiramente, porque não quero que ele se aborreça. E

muito menos tenho a intenção de estragar o jantar dele. Pense

bem, senhora condessa, se eu abrir minha boca é a senhora

quem terá que dar certas explicações por aqui. Como, por

exemplo, como a senhora conseguiu que o senhor conde lhe

desse carta branca para organizar o baile de apresentação dele,

sendo que mal se conhecem?

Meu pai interrompeu aquela discussão e falou, num

tom rouco e nervoso:

– Pare as duas com essa discussão! Não quero que o

conde chegue e pegue-as rolando pelo chão como duas loucas.

Sua madrasta está certa, Anna: não fica bem que seja vista por

aí na companhia de uma plebeia. Seja essa moça quem for, não

quero saber que está andando com ela. Não tem estirpe! Não

faz parte da nossa sociedade. O que está acontecendo com

você, minha filha? Era tão sensata! Agora mal cheguei e já

percebo mudanças adversas em seu comportamento. Não me

faça tomar nenhuma atitude drástica a seu respeito. Acho

muito bonito que queira fazer caridade - isso é até bom para a

nossa reputação. Mas não precisa fazer parte da ralé.

Realmente, está mesmo se parecendo como sua mãe: ela não

tinha medidas, estava sempre se misturando com esse tipo de

gente. Até que... - ele se calou, parecia engasgado.

– Até que o quê, pai? O que o senhor ia me dizer?

– Outra hora, Anna, falaremos sobre esse assunto.

Agora não quero mais chatear-me com esse tipo de conversa.

Maria entrou, avisando-nos que o senhor conde havia

chegado. Meu pai foi recebê-lo. Afastei-me da minha madrasta

para não ser mais provocada por ela. Aquela conversa ficaria

pendente, por certo, porque eu não deixaria que meu pai

Adriana Matheus

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esquecesse. Tinha algo estranho em relação à história da morte

de minha mãe. Agora, era uma questão de honra descobrir.

Maria, por certo, saberia responder-me. Interrogá-la-ia na

manhã seguinte, a caminho da casa de madame Hortência.

Meu pai chegou à porta da sala de estar na companhia

do conde, que me deu um sorriso enigmático. Em seguida,

veio beijar-me a mão. Em outra ocasião, eu teria puxado-a.

Mas, naquele momento, tive que fingir certo prazer. Ele

levantou a cabeça e fez-me um elogio:

– Está linda, senhorita Anna. Não me cansarei de dizer

isso.

– O senhor é muito gentil, conde. Confesso que está

muito elegante também. Teremos uma noite muito agradável.

Espero que possamos tirar a impressão ruim causada por

ambos.

Olhou-me admirado e falou:

– Tenho certeza de que teremos todo o tempo do

mundo para que mude a má impressão que posso lhe ter

causado. Quanto à senhorita, acredite: só me causa boas

impressões.

Olhou-me parecendo desnudar-me, o que me causou

ainda mais repulsa por ele. Foi muito difícil controlar-me a

noite toda, esquivando-me das investidas do conde. Estava me

sentindo péssima por ter que manter uma personalidade que

não era minha. Era repulsivo ter que fingir daquela forma.

Mas, se eu quisesse descobrir o que estava acontecendo, tinha

que manter a aparência.

O conde mal dirigia a palavra à condessa, mas ela não

parecia irritada - o que era intrigante, pois sempre quis ser o

centro de todas as atenções. Após o jantar, fui com o conde até

a varanda, onde ele me disse:

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 292 -

– Anna, creio já ter notado minha afeição pela

senhorita.

– Sim, senhor conde. Creio que sim.

– Quero pedir-lhe que me dê a honra de dançar a

primeira valsa comigo no baile.

Antes que eu pudesse responder alguma coisa, ele

prosseguiu:

– Saiba que não aceito um não como resposta. Então, o

que me diz, senhorita Anna?

– Digo que o senhor é um homem muito persuasivo,

conde. Mesmo que eu lhe disser um sim contra meu gosto,

mesmo assim ficará feliz. Então, mediante a esse tão gentil

convite, aceito.

Ele sorriu satisfatoriamente. Parecia ter ganhado mais

um jogo. No restante daquela noite, o conde ficou na sala,

jogando com meu pai; a condessa retirou- se aos seus

aposentos e, em seguida, fiz o mesmo. Passei metade da noite

imaginando o que o meu pai quis dizer em relação à minha

mãe.

Na manhã seguinte, não deixei que Maria viesse ao

meu quarto, como de costume. Acordei muito mais cedo do

que o resto da criadagem. Minha mente precisava de distração.

Então, ocupei meu corpo com algo útil. Desci, fui para a

cozinha e preparei o café para todos. Enquanto aparecia

imaginação em minha cabeça, ia criando as guloseimas. Maria

escutou o barulho na cozinha e levantou-se para ver o que era.

Ao perceber a minha presença, disse:

– Senhorita Anna, pare imediatamente o que está

fazendo ou seremos todos punidos por causa dessa sua atitude.

– Não posso, Maria. Preciso fazer alguma coisa para

não deixar minha mente torturar-me com tantos pensamentos.

Adriana Matheus

- 293 -

Maria, percebendo que eu estava fora de mim, abraçou-

me, tentando fazer-me parar - eu estava batendo uma massa de

bolo compulsivamente. Então, ainda me abraçando, ela

perguntou:

– O que está realmente acontecendo, minha criança?

Aquelas palavras foram motivos para que eu desabasse

em choro profundo. Então, entre soluços, respondi:

– Como realmente a minha mãe faleceu? Precisa

contar-me isso, Maria. Ontem, pouco antes do jantar, a

condessa insinuou que eu iria terminar louca como a minha

mãe. Meu pai quase falou alguma coisa. Mas, como sempre, a

conversa ficou perdida no ar. Precisa dizer-me a verdade.

– Não sei muito, filha. O que sei é que sua mãe ficava a

maior parte do tempo escrevendo naquele diário que está lá no

quarto dela. Com o passar dos tempos, seu pai começou a se

distanciar dela dia após dia. Sua mãe cobrava muito as

ausências dele, e ele passou a dizer que sua mãe estava muito

doente. Quando ela engravidou da senhorita, a história

complicou-se, pois seu pai não nos permitia cuidar de

Elizabeth. Somente ele e o doutor entravam no quarto. Às

vezes, escutávamos os gritos e pedidos de socorro dela, mas

nunca nos foi permitido tomar alguma providência.

Aquela revelação foi um golpe no meu coração. Então,

disse:

– Maria, a senhora tem que me dar a chaves do quarto

de minha mãe. Não pode me negar isso.

– Filha, se eu fizer isso, serei punida. Ninguém entra

naquele quarto há anos, a não ser para limpá-lo. Se

descobrirem que lhe dei as chaves, expulsar-me-ão desta casa.

– Não vai lhe acontecer absolutamente nada, Maria, eu

prometo. Mas preciso entrar naquele quarto.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 294 -

Maria, percebendo que não conseguiria convencer-me

do contrário, disse:

– Está bem, só lhe peço que espere um dia em que os

senhores não estejam em casa.

– Obrigada, Maria!

Beijei-lhe as mãos e continuei:

– Já que a senhora está de pé, então venha: sente-se,

vamos tomar o desjejum juntas.

– Serei a primeira a ter que experimentar sua tentativa

de envenenamento?

– Lógico que não! Esqueceu-se de que fui criada no

meio das cozinheiras e aprendi tudo?

Por fim, Maria aprovou meus quitutes. Depois de

ajudá-la a arrumar a bagunça que eu havia feito, subi para o

meu quarto, para me limpar. Estava parecendo um boneco de

neve, de tanta farinha que tinha no meu corpo. Comuniquei a

ela que sairíamos, pois queria ir à casa de madame Hortência.

Ela fez uma caretinha de desaprovação, mas sabia que seria

impossível segurar-me dentro de casa.

Esperei Maria subir para lhe avisar que meu pai já

sabia que sairíamos. Não queria que a condessa arranjasse

algum contra tempo. Já no hall de entrada, encontrei meu pai,

que me indagou:

– Posso saber por que quer ir tão cedo à casa de

madame Hortência?

– Ora, meu pai. Não foi o senhor quem me disse que eu

deveria me comportar como uma moça da sociedade? Então,

estou indo à casa de madame Hortência para pedir-lhe que faça

um vestido à altura do baile do conde. Não quer que eu pareça

com a filha de uma criada, quer?

– Se é assim, então vá! Quero que fique radiante.

Adriana Matheus

- 295 -

– Ficarei, meu pai. Não o decepcionarei. A propósito,

estou tirando o luto de Maria. Espero que o senhor aprove.

Não fica bem que ela receba aos convivas com a mesma roupa

que usa há séculos.

– Se acha que isso pode ajudar em alguma coisa e lhe

faz feliz, então, fique à vontade.

Saí e encontrei-me com Maria na porta da carruagem.

Contei tudo o que o meu pai me perguntou. Ela concordou que

eu tivesse lhe dito o que faria na cidade. Assim, não daríamos

margem à condessa.

Chegamos, por fim, em frente à casa cor de rosa de

madame Hortência. Lorenzo foi apressadamente ajudar-nos a

descer. Em seguida, pediu-me autorização para ir ver a noiva.

Logicamente, consenti.

O lacaio de madame Hortência veio às pressas ajudar-

nos. Era um rapaz de estatura mediana, mas muito bem

encorpado, apesar da pouca idade que aparentava. Ao

entramos, madame Hortência recebeu-nos de braços abertos e

perguntou:

– Oh! Minha querida, que prazer e surpresa tê-la aqui!

Em que posso lhe servir hoje?

– Meu pai dará uma festa em nossa casa para apresentar

o senhor conde Celso D’Louchoa à nossa sociedade. Portanto,

viemos aqui para que a senhora me faça um vestido lindo para

o baile do conde. Quero, também, que me veja alguns modelos

para Maria escolher. Ela está tirando o luto. Mas, por favor,

madame: nada extravagante.

– Oh! Minha querida, pode deixar: vou caprichar no

seu modelito. Será algo muito especial. E quanto à senhora

Maria, santo deus! Já estava mais que na hora de tirar aquele

luto horrível!

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 296 -

Chamou todas as suas costureiras e, de imediato, foram

tiradas as medidas de Maria. Enquanto isso, madame

Hortência ia tagarelando sem parar a respeito da festa.

– Espero que o seu pai me convide, pois sentirei

insultada caso ele não o faça. Imagine, eu, uma costureira

renomada, que fiz vestidos até para a corte francesa, ser

deixada de lado em tamanho evento! E quando será o grande

baile?

– Daqui a duas semanas.

– Oh, sim! Isso é tempo suficiente para terminar os

modelitos a tempo.

Enquanto Maria escolhia os modelos a seu agrado,

chamei Madame Hortência à parte e disse, quase em seu

ouvido:

– Madame Hortência, quero perguntar-lhe uma

coisinha. Mas tem que prometer-me que manterá em segredo.

A mulher, que adorava um fuxico, arregalou os olhos,

fazendo um sinal positivo com a cabeça. Quase num sussurro,

indagou-me:

– Oh, é claro! Do que se trata? Saiba que sou um

túmulo: o que me contar, guardo comigo a sete chaves.

Percebendo que madame Hortência estava achando que

se tratava de um mexerico, respondi:

– Na verdade, não quero lhe contar coisa alguma.

Quero, sim, que a senhora me responda uma coisa.

– Claro, querida. O que quiser saber, pode me

perguntar. Sei de quase tudo o que acontece nesta cidade. Não

que eu seja uma mexeriqueira, mas é que muitas coisas

chegam aos meus ouvidos.

– Sei, e jamais pensaria que a senhora é uma

mexeriqueira. Mas o que preciso saber é o seguinte: a senhora,

por acaso, tem ou teve um escravo de nome Lourival?

Adriana Matheus

- 297 -

– Oh! Mas por que a senhorita estaria interessada

naquele negro? Acaso tem a intenção de comprá-lo? Não sabe

como me arrependo de tê-lo comprado do vigário. Aquele

insubordinado e insolente só me deu despesas. Vendi-o há

muito tempo para Senhor Dominique. Soube que morreu no

tronco por causa de suas insubordinações. Imagine, tentou

fugir para o quilombo várias vezes e foi pego pelo capitão do

mato. Apanhou até a morte - graças a Deus, ou todos os

escravos do condado pensariam em fazer o mesmo. Ele era

quase um Deus para toda aquela negrada suja.

Ela me dava náuseas pela maneira como falava, assim,

de seres humanos, criaturas perfeitas e filhos do mesmo

criador. Por certo, o pobre homem estava em desespero e

cansado de ser torturado quando resolveu fugir. Infelizmente,

tinha que conviver com pessoas preconceituosas. Aquela

mulher era uma pessoa digna de pena: por ser um espírito

muito atrasado, precisaria muito de minhas orações. Por certo,

em um futuro próximo, ela voltaria como escrava ou

empregada de uma pessoa de cor, que a faria pagar por seus

delitos. Ela não sabia, mas ela mesma escolheria esse destino

para aprender e evoluir.

Coloquei as mãos sobre as mãos dela e fiz uma oração

silenciosa, fazendo-a esquecer tudo o que havíamos

conversado. Sei que não era correto usar de meus dons para

apagar a memória de uma pessoa. Mas, no caso de madame

Hortência, foi necessário.

Fui interrompida pelo lacaio, que veio avisá-la da

chegada de mais uma cliente. Ele ficou me olhando, meio

assustado. Disse-lhe que estávamos fazendo uma oração.

Madame Hortência ficou meio aérea e perguntou-me:

– Do que mesmo estávamos falando, minha querida?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 298 -

– Do vestido que a senhora irá fazer para mim.

Lembre-se de que terá que ser exclusivo.

Tinha a certeza de que, daquele dia em diante, aquela

mulher passaria a olhar para as pessoas de cor de uma nova

maneira. Infelizmente, tive que usar meus poderes com um ser

tão ignorante.

Tomei fôlego antes de sairmos da pequena salinha onde

estávamos. Madame Hortência saiu na minha frente. Foi

quando percebi que o jovem lacaio apalpara seu enorme

glúteo. Havia muitas intimidades entre aquela repulsiva

senhora e aquele jovem empregado. Continuaram com aquela

intimidade até que os perdi de vista.

Cheguei a uma conclusão: por certo, o jovem negro

Lourival - por dignidade ou por amor à Maria - não se

sucumbira às vontades de madame Hortência. Esse foi o erro

do pobre rapaz. Sabia que eram épocas difíceis para todos e

que, muitas vezes, os maridos viam-se obrigados a viajar,

deixando sozinhas em casa suas jovens e fogosas esposas.

Muitas delas se entregavam por pura satisfação à luxúria -

como a condessa. Outras se mantinham falsamente discretas,

de romances com seus escravos. Outras, ainda, arranjavam um

consorte - como madame Hortência. Isso, é claro, não era

constante. Também existiam senhoras realmente recatadas e

sinceras em seus sentimentos e fidelidade - o que era uma

exceção, pois a maioria dessas esposas era muito mal amada.

Eu não havia vindo neste mundo para julgar ninguém,

mas aquela cena de hipocrisia fazia-me muito mal. Essa era a

sociedade que meu pai fazia questão que eu frequentasse.

Bom, o meu maior problema foi como contar à Maria

que seu único amor havia sido assassinado. Despedimo-nos o

mais rápido possível de madame Hortência, pois não queria

ficar nem mais um segundo perto daquela sujeira toda. Pedi à

Adriana Matheus

- 299 -

Maria que fôssemos à igreja local, pois precisava falar com o

padre Ignácio. Ela, por sua vez, perguntou-me:

– O que houve? Está com problemas de consciência

pesada, logo assim, pela manhã?

Sorri, mas não era essa a minha real vontade. A contra

gosto, respondi:

– Preciso caminhar, respirar e rezar um pouco. Por isso,

quero ir até a igreja. Quero sentir o vento da manhã soprando

em meu rosto.

Mas Maria não era tola e logo desconfiou,

perguntando:

– O que foi que aquela mulher lhe fez?

– A mim, não fez nada. O problema é o que ela faz a

ela e aos outros, todos os dias. Sei que não sou santa e não

posso salvar a humanidade, mas fico triste quando vejo um

espírito se denegrir daquele jeito. E o pior é que pessoas assim

vão à igreja todos os domingos. Comungam cheias de pecado e

sentem-se na capacidade de julgar os outros. Tive que gastar

meu poder de esquecimento com aquela criatura vulgar.

– Então, foi muito sério o que estava falando com ela.

– Sim, Maria, foi. Quando chegarmos à igreja, depois

da conversa que terei com o padre Ignácio, se a resposta for do

meu agrado, prometo que lhe conto tudo. Mas agora preciso

encontrar forças em Deus Pai. Sabe bem que, quando usamos

nossos poderes, ficamos fracas.

Apoiei-me em Maria e fomos caminhando abraçadas

até a igreja. Ao chegarmos lá, corri os olhos por toda aquela

imensidão, tentando encontrar o padre Ignácio. Foi em vão: só

encontrei silêncio, frio e muito luxo. Mas, de repente, ouvi

barulhos de chinelos arrastando pelo chão. Às vezes, ouvir

barulhos em lugares tão vazios dá-nos certo medo. Olhei

imediatamente para trás, achando ser um fantasma. É nas horas

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 300 -

mais banais que temos que aprender a enfrentar nossos

temores. Pois, quando enfrentamos as menores coisas, estamos

treinando para enfrentar as maiores. Abri um largo sorriso ao

perceber aquela figura amiga e bem materializada. Que alívio,

não estava preparada para lidar com um incumbo - não estando

tão fraca.

A mente, em estado débil, cria formas, cores e até

barulhos. Não queria e não iria, de forma alguma, deixar

minha mente ficar atrasada e cheia de absurdos. Já sabia que os

desencarnados não poderiam me fazer mal. O mal eram os

meus semelhantes encarnados: estes, sim, poderiam me

prejudicar de todas as maneiras. Era incrível perceber como

um lugar que pode nos trazer paz consegue, também, causar-

nos tanto pânico. Isso ocorre por causa das duas energias

adversas que se misturam. Muitos vão a lugares santos para

rezar e pedir o bem, mas existem também aqueles que entram

nestes lugares com o coração cheio de egoísmo, ambição e até

mesmo ódio. Existem pessoas que pedem a Deus o mal, como

já citei antes. Deus lhes concede os desejos do coração, não

importa qual ele seja. Não é a quem pedimos, mas a força com

a qual pedimos.

Algumas pessoas têm o pensamento errôneo de que os

íncubos ou súcubos não entram em locais ou solos sagrados.

Pois digo que entram, sim. A maioria desses espíritos

assombra igrejas e locais considerados sagrados porque apega-

se a esses lugares, ou também porque vão acompanhando as

pessoas que frequentam esses locais. Esse pensamento errôneo

chega a ser quase uma lenda. Por isso, a maioria desses locais

é assombrada devido às tantas energias que se misturam no

nosso espaço invisível. No mundo espiritual, existe uma guerra

onde o bem combate o mal, onde os anjos lutam contra os

demônios, onde espíritos iluminados tentam doutrinar os

Adriana Matheus

- 301 -

espíritos impuros e rebeldes. Por isso, é necessário não só

tentar entender o mundo espiritual, mas também respeitar o

invisível. Essa guerra sempre afetou a humanidade desde a

época de Cristo. Por certo, em um futuro muito próximo, essa

guerra invisível será muito mais prejudicial, pois o homem, em

sua evolução científica, afastar-se-á da fé. Com isso,

acontecerá a degradação da humanidade.

Temos que ter uma noção básica de que nem tudo é

lógica, nem tudo é explicável e nem tudo é ciência. Pois, se

Deus quisesse que fôssemos sabedores de todas as coisas, o

mundo e as pessoas não precisariam de um Mestre para guiá-

los.

Maria havia me deixado sozinha dentro da igreja - o

que me foi muito bom, pois consegui recuperar minhas forças

e colocar minhas ideias em dia. Despertei-me daquele quase

transe porque senti alguém me tocar com as mãos. Quando me

virei para ver quem era, disse:

– Padre Ignácio! Que bom vê-lo. Estava mesmo

precisando falar com o senhor.

Ele, por sua vez, respondeu em tom de brincadeira:

– Anda se assustando na casa de Deus, querida? O que

foi que houve, minha filha? O que lhe fizeram os santos desta

paróquia?

Gostaria de ter-lhe dito que não eram os santos que me

assustavam, mas sim as pessoas. Mas, por fim, resolvi apenas

responder:

– Preciso de respostas, padre. Somente o senhor poderá

me responder.

– Calma, filha. Sinto que está muito afoita. Respire um

pouco e depois me explique de que tipo de respostas está

precisando.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

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– Quero, primeiro, que o senhor me responda: que

paradeiro levou um escravo de nome Lourival? O senhor o

conheceu, não?

– Sim, por certo. Comprei-o da fazenda de seu pai.

Mas, a pedido do mesmo, tive que vendê-lo para madame

Hortência. Parecia que esse homem encontrava-se com Maria,

sua governanta, às escondidas.

– E por que meu pai estaria tão incomodado que Maria

se relacionasse com um escravo?

– Porque seu pai temia que Maria fugisse com ele e

abandonasse a senhorita, ainda pequena. Seu avô pegou Maria

ainda menina e ela foi criada para cuidar da casa. Recebeu boa

educação, mas não poderia nunca se casar. Quando sua mãe

casou-se com o seu pai, Maria era pouca coisa mais velha que

ela, e passou a ser a governanta da sua casa. Ela só saía de casa

com a sua mãe. As duas eram muito amigas. Como seu pai

viajava muito, ao descobrir o envolvimento de Maria com esse

jovem escravo, logo o vendeu. Seu pai não queria perder a

companhia de sua mãe. Sua mãe disse que não se importaria

que Maria fugisse para ser feliz, mas seu pai não aceitava.

Trancou Maria por dias em um sótão, até que tivesse

conseguido vender o escravo. Então, a pedido de seu pai,

comprei o escravo, que chegou até a mim muito debilitado.

Cuidei de suas feridas físicas. Mas, infelizmente, não pude

curar sua alma, pois estava indo demasiadamente para um

precipício sem volta. O ódio no coração daquele homem era

muito grande. A mim nunca fez nada - muito pelo contrário,

sempre me tratou com respeito. Então, após alguns meses,

Maria descobriu onde Lourival estava e passaram a se

encontrar às escondidas, aqui dentro desta igreja. Seu pai, ao

descobrir isso, mandou que castigassem Maria, colocando-a no

tronco, para que servisse de exemplo a todos. Fui obrigado por

Adriana Matheus

- 303 -

seu pai a vendê-lo. A primeira pessoa que o quis foi madame

Hortência. Mas ela também se viu obrigada a vendê-lo para

um fazendeiro muito cruel. Dizem que Lourival fugiu e, ao ser

capturado a caminho de um quilombo, morreu com um tiro.

Mas não acredito que aquele homem tenha fugido, pois o amor

dele por sua governanta era muito grande. Ele nunca deixaria

Maria sozinha. Os dois haviam feito uma espécie de juramento

de nunca um deixar o outro.

– Meu Deus, padre, isso é muito grave! Eu tinha meu

pai em alto preço, mas a cada dia descubro uma coisa sobre ele

que mais me decepciona. Não sei como pude ser tão cega!

– Não pense assim, filha!

– E o que o senhor quer que eu pense? Na minha

imaginação, meu pai era um herói. Nunca o vi fazendo nada de

mais, nunca soube que ele torturasse os escravos. E agora

venho saber que ele surrou Maria! Sempre pensei que ela

estivesse conosco esses anos todos porque havia feito um

juramento à minha mãe de sempre cuidar de mim. E agora o

senhor está me contando que ela foi obrigada a ficar comigo.

Santo Deus, padre! Minha dívida com essa mulher é muito

maior do que eu supunha.

– Sinto ter sido eu a lhe contar tudo isso, senhorita

Anna, pois estou vendo que é uma pessoa de coração puro e de

alma inocente. É uma pena que essa pureza será corrompida

em breve.

– Não, padre. Isso não irá acontecer comigo. Agora

quero que o senhor me responda outra pergunta.

– E qual seria, minha filha?

– Conte-me exatamente como minha mãe morreu.

Sempre me contaram que ela morreu no parto, dando-me a luz.

Mas fiquei sabendo de fatos que demonstram que isso não é a

verdadeira história.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 304 -

– Senhorita Anna, essa é uma história muito perigosa

de se envolver. Posso pagar por isso caso seu pai descubra que

lhe falei sobre esses assuntos.

– Por favor, padre, preciso saber. O senhor não pode

me negar isso. Passei muitos anos vivendo na ignorância.

Agora, descobrir a verdade é uma questão de honra para mim.

O senhor entende?

– Sim, entendo. Mas que fique bem claro que não

podem saber que fui eu quem lhe contou isso!

– Não se preocupe, padre. Não contarei a ninguém.

– Não sei muito. Mas o pouco que vou lhe contar é o

que sua mãe me contava quando eu tinha permissão de visitá-

la. Pouco antes de Elizabeth ficar doente, ela me contou o

seguinte...

– Minha mãe estava doente? Mas que tipo de doença

ela tinha? Pensei que ela tivesse falecido por uma insuficiência

respiratória durante o meu parto.

– Por favor, minha filha, deixe-me terminar. Elizabeth,

segundo o senhor seu pai, estava sofrendo de perturbações

espirituais. Foi quando o seu pai chamou-me para fazer um

exorcismo. Primeiro, tive que me certificar de que era verdade

o que seu pai estava alegando.

– E era, padre?

– Não. Felizmente, Elizabeth não tinha nenhum indício

de estar possuída ou perturbada por um espírito maligno. Ela

me pareceu uma mulher muito sensata e muito ingênua, assim

como a senhorita.

– E por que meu pai estava acusando minha mãe tão

levianamente?

– Seu pai sempre foi um homem muito ambicioso,

senhorita Anna, e também um jogador compulsivo. Ele havia

perdido em um jogo a metade da fortuna da família. Seu pai

Adriana Matheus

- 305 -

sempre viajou muito, e sua mãe ficava sozinha durante meses

dento de casa. Seu pai também passou a não desejar mais sua

mãe como mulher. Então, ela desconfiou das atitudes dele. As

brigas entre os dois começaram a deixar sua mãe muito

depressiva e angustiada. Moramos em uma cidade pequena e

os boatos a respeito de seu pai cresciam. Chegou aos ouvidos

de sua mãe um suposto envolvimento dele com uma condessa

muito rica.

– Padre, está querendo me dizer que o senhor meu pai e

a condessa Del Prat já se conheciam quando a minha mãe

ainda estava viva? - sentei-me no banco da igreja para não cair,

pois minhas pernas tremiam sem parar.

– Não sei se a sua madrasta e a suposta condessa que

comentam são a mesma pessoa. Mas o fato é que Elizabeth

narrou tudo isso em um diário. Ela queria que a senhorita, ao

nascer, soubesse toda a verdade. Ela chegou a ameaçar de

acusar seu pai de adultério. Foi, então, que seu pai começou a

levantar a falsa suposição de que ela estava possuída por

espíritos imundos. Quando pude constatar esse fato e provar

que era falso, seu pai, então, aliou-se ao doutor e sua mãe foi

declarada como louca. A intenção de seu pai era internar

Elizabeth em um manicômio assim que a senhorita nascesse.

– Então, foi por isso que ele a manteve trancada em

seus aposentos?

– Sim, nem mesmo Maria podia entrar para vê-la.

Somente ele e o doutor tinham essa permissão. Houve um

baile em sua casa e Elizabeth conseguiu, nesse dia, escapar do

cárcere. Dizem que ela se vestiu de negro e foi para o meio de

todos, e flagrou seu pai junto a essa condessa de quem tanto

todos falavam.

– O senhor está me dizendo que o meu pai deu um baile

em minha casa com a minha mãe ainda viva para essa mulher?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 306 -

– Foi o que me disseram, filha. Talvez Maria possa lhe

esclarecer mais sobre esses fatos.

– E onde está o diário de minha mãe?

– Não sei, filha. Talvez ela o tenha escondido. Seu pai

também nunca o achou.

Fiquei pensando e, depois, respondi:

– Acho que eu sei onde possa estar, padre.

– Filha, prometa-me que terá muito cuidado.

– Não se preocupe, padre, eu terei. E quanto a esse

conde inglês, o que o senhor sabe?

– Na verdade, quase nada. Até achei que estivesse

morto.

– Como assim?

– Parece que houve um assassinato e, se não estou

enganado, a história é que ele e o pai haviam morrido. Mas

deve ser apenas um boato.

– Sim, deve ser um boato.

Fiquei de cabeça baixa, pensando em como agiria ao

ver meu pai. Percebendo meu jeito, padre Ignácio falou:

– A senhorita está bem?

– Sim, estou. Preciso ir, Maria está me esperando lá

fora. Não posso me demorar mais.

– Está bem. Espero que a senhorita consiga resolver

seus problemas com sabedoria.

– Vou tentar, padre. Prometo.

Tomei sua benção e saí para encontrar-me com Maria.

Achei-a parada, estática, em pé em um dos degraus da igreja.

Deu-me tanta pena saber que aquela mulher havia sofrido

tanto! Caminhei em direção a ela e coloquei as mãos em seu

ombro. Ela deu um pulo de susto. Disse-lhe:

– Fique calma, Maria. Não há do que temer.

Adriana Matheus

- 307 -

– Estava distraída em minhas lembranças. Então, como

foi a conversa com o padre?

– Instrutiva. E não agora, mas futuramente, falaremos

sobre o que eu e o padre Ignácio conversamos. Agora preciso,

ainda, digerir o que ele me contou. Vamos para casa, antes que

comessem a ter ideias erradas sobre a nossa ausência.

Maria parecia não estar muito bem, pois não falou

muito no caminho de volta naquele dia. Chegamos à frente da

mansão Del Prat e já não senti mais aquela casa como minha.

Pela primeira vez em minha vida, soube o que queria dizer.

Senti nojo de mim mesma. Sim, senti nojo de mim mesma por

pertencer àquela gente. A condessa estava nos esperando à

varanda, com um sorriso que mais parecia deboche. Pedi a

Deus para dar-me forças, pois não estava com a menor

disposição para ouvir o que quer que fosse daquela boca

imunda. Deus ouviu as minhas preces, porque passamos por

ela, que nada mencionou. Apenas nos olhou com cara feia e

cruzou os braços. Maria baixou a cabeça, mas fingi que não

era comigo.

Maria seguiu para seus afazeres e fui até a sala de

leitura, onde encontrei meu pai bebendo. Ao ver-me, ele

sorriu, falando:

– Estava gastando o pouco de dinheiro que ainda me

resta?

Percebi que ele não estava sóbrio.

– Não, meu pai, ainda deixei o bastante para o senhor

gastar tudo em jogatinas ou para que sua amada esposa esbanje

com futilidades.

Ele veio cambaleando para o meu lado e desvencilhei-

me dele. Por fim, ele disse, apontando o dedo para o meu

rosto.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 308 -

– Você está ficando uma fedelha muito insolente,

sabia? Posso agora mesmo mandar que... - ele interrompeu a

fala.

– Diga, meu pai! O que o senhor vai mandar que me

façam? Serei trancada em meu quarto como uma louca, ou irá

me amarrar a um tronco e dar-me chicotadas para eu servir de

exemplo?

Ele cambaleou e, embora não compreendesse o que eu

estava falando, sentiu aquelas palavras como um peso na

consciência. Então, afastou-se de mim e encostou-se na

parede, sem saber o que dizer. Saí da sala, deixando-o com o

fantasma de suas lembranças.

Fui para a cozinha atrás de Maria. Deparei-me com ela

consolando Tereza, que estava chorando. Quis saber o que

estava acontecendo. Foi quando Maria respondeu-me:

– O netinho de Tereza está muito doente. Ela pediu

autorização à condessa para ir até a casa da filha, mas ela não

deu.

Pensei em uma solução para aquele problema e disse:

– Pode ir, Tereza. Responsabilizo-me. Depois falo com

o meu pai a respeito.

– Mas, senhorita, a condessa poderá puni-la também. E

quem fará o jantar?

– Joana, ora! Maria e eu tentaremos despistar a

condessa. Saia pelos fundos, para que ninguém a veja.

Ela beijou as minhas mãos em agradecimento e eu

disse:

– Vá logo, mulher! Está perdendo o seu tempo comigo!

Tereza saiu de costas, agradecendo. Maria perguntou-

me:

– O que falarei à condessa, caso ela dê pela falta de

Tereza?

Adriana Matheus

- 309 -

– Não se preocupe. Ela está ocupadíssima com os

preparativos do baile para o conde.

Eu e Maria comemos uma prenda na cozinha. Não

estava com muita fome. Acabei deixando metade do que

estava comendo de lado. Subi para meu quarto e fui meditar.

Aquele havia sido um dia bastante difícil. Quase deixei que

energias inferiores me perturbassem a alma. Senti-me fraca e

incapaz por não estar conseguindo falar com Maria.

Temos que ter muito cuidado com a tristeza. Ela nos

deixa vulnerável. É por isso que uma bruxa não pode se

apaixonar: a tristeza e a paixão andam de mãos dadas e, por

nos fazer chorar, enfraquecemos e as lágrimas não nos deixam

ver com clareza que caminho tomar.

Abri a janela e olhei para o céu: a deusa Lua estava

magnífica aquela noite; sua luz iluminou tudo ao redor.

Recorri a ela para recarregar minhas forças. Depois de fazer

minhas orações, fui para a cama e adormeci tranquilamente.

Horas depois, um beijo na testa acordou-me

suavemente. Abri os olhos com Maria dando-me um bom dia.

– Bom dia, filha! Dormiu bem? Desculpe-me tê-la

acordado assim, tão cedo, mas creio que precisamos conversar.

Depois de dar um bocejo, espreguicei-me na cama e

disse:

– Bom dia, Maria, que horas são? Caiu da cama, foi?

– Ainda não amanheceu o dia, mas tive que vir até

aqui. Preciso saber o que a senhorita tanto falava com o padre

Ignácio. Nem venha me dizer que não é nada demais, porque

sei que era sobre mim.

Sabia que Maria sempre sentia quando alguma coisa

estava errada. A minha sombra mental precisava saber a

verdade e, como percebi que não daria mais para remediar esse

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 310 -

fato, levantei-me da cama, fui até o meio do quarto, olhei-a nos

olhos e falei:

– Sim, por certo está com razão: era mesmo sobre a

senhora que eu e padre Ignácio falávamos.

– Sobre o que a senhorita conversou com aquele padre

anarquista?

– Ele não é nenhum anarquista, Maria. Muito pelo

contrário, ele é um homem muito sensato e honesto. Não seja

como essas pessoas que o julgam só porque ele não é velho e

antiquado como o padre Alencar. Por favor, Maria, não faça

um julgamento precipitado antes de ouvir tudo o que tenho a

lhe dizer. Sei muito bem porque a senhora tem esse conceito

dele. Mas quero que saiba que ele não foi culpado por nada

que aconteceu a Lourival. Padre Ignácio também foi obrigado

a vendê-lo para não sofrer punições.

Maria abaixou a cabeça pesarosamente e disse:

– Sei, senhorita Anna. Mas também sei que, como

membro da Igreja, ele poderia ter interferido e pedido para que

Lourival não fosse vendido à madame Hortência. Aquela

mulher horrível torturava Lourival todos os dias. Ele mesmo

me contou que ela o queria intimamente. Mas Lourival nunca

cederia aos caprichos daquela porca gorda.

As palavras de Maria confirmaram a minha

desconfiança. Ela prosseguiu, contando-me:

– Éramos muito jovens e cheios de planos. Nossos

corações eram puros e achávamos que poderíamos vencer

qualquer barreira. Mas não foi bem assim: o preconceito não

permitiu que ficássemos juntos. Depois que Lourival foi

vendido para um fazendeiro de outra região, nunca mais o vi e

também nunca mais ouvi falar nada sobre ele. Ele deve ter

encontrado outro amor. Caso contrário, teria dado um jeito de

voltar e buscar-me, levar-me para onde quer que fosse.

Adriana Matheus

- 311 -

Naquele momento, tive certeza de que Maria nunca

soube o que acontecera com o seu amor. Não poderia mais

deixá-la naquela ignorância. Então, falei:

– Maria, Lourival nunca teve outro amor além da

senhora, acredite.

– Não se preocupe em me falar a verdade, senhorita

Anna. Agora sou mais conformada com essa história. Não é

como antes, que eu ficava muito triste. Agora sou uma mulher

velha e não tenho mais nenhuma perspectiva de vida para

mim.

– A senhora está muito enganada. Sei que ainda será

muito feliz ao lado de alguém que muito lhe quer. E quanto a

Lourival, infelizmente ele morreu, Maria.

A mulher caiu sentada sobre a minha cama, parecendo

perplexa. Portanto, prossegui:

– Sim, Maria. É por isso que ele nunca voltou para a

senhora, como lhe havia prometido. Dizem que ele tentou

escapar do tal fazendeiro e, durante a perseguição, foi baleado

e morreu.

– Lourival nunca fugiria. Não era do feitio dele ser um

covarde. - disse Maria, com plena certeza nas palavras e no

coração.

– É exatamente isso que o padre Ignácio também acha.

Maria, acredito que tenha o dedo do senhor meu pai nessa

história. E nem queira defendê-lo, pois também já fiquei

sabendo do que ele mandou fazer com a senhora.

Maria caiu em prantos e disse:

– Nunca lhe contei toda a verdade porque não queria

que a senhorita crescesse com ódio em seu coração. Desculpe-

me, senhorita Anna, por esse meu momento de fraqueza.

– Não tem de que se envergonhar ou pedir desculpas.

Sou eu quem deveria pedir-lhe humildemente minhas

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 312 -

desculpas, pois indiretamente fui a culpada pela senhora ter

sido privada de viver a sua história de amor.

– Não diga sandices, criança tola. Tudo o que fiz pela

senhorita foi por amor. Se não tivesse tido a senhorita em meus

braços, ali, tão pequenina e precisada de carinho, por certo

teria cometido suicídio, pois me foi muito duro viver sem

Lourival.

Abracei Maria com carinho e deixei-a desabafar toda

aquela dor em lágrimas. Depois de muito conversarmos, pedi-

lhe que voltasse para seus aposentos, pois não seria bom que a

vissem sair àquelas horas do meu quarto, ainda de roupa

íntima. Por certo, achariam que estaríamos planejando algo.

Quando ela estava saindo, virou-se para mim e falou:

– Fiquei sabendo que, mais tarde, o patrão e a condessa

sairão para darem uma volta. Estou pensando em levá-la aos

aposentos de sua mãe.

Dei um largo sorriso de cumplicidade e disse:

– Perfeito! Estarei esperando pela senhora, então.

Fiquei muito triste por Maria, mas foi melhor que ela

soubesse que seu amor estava morto a viver acreditando que

ele a abandonou. Naquela madrugada, até que o dia

amanhecesse, não conseguiria mais dormir. Então, fiquei lendo

meus livros e fazendo minhas anotações até que o Sol firmasse

no céu. Depois, arrumei-me calmamente e desci, encontrando

meu pai já na soleira da porta. Antes que ele saísse, falei:

– Pai, quero ter uma conversa franca com o senhor.

Ele, que já estava saindo, virou-se e disse-me:

– Então será quando eu voltar, pois estou saindo coma

sua madrasta e não quero deixá-la esperando muito tempo na

carruagem.

– Não, pai! Quero falar com o senhor agora. Não quero

mais adiar nossa conversa. Não se preocupe, serei breve.

Adriana Matheus

- 313 -

– Então, que seja. O que há de tão importante que não

possa esperar que eu chegue da cidade?

– Sei que o senhor está arrumando um casamento de

conveniências para mim. Não acho justo que queira me vender

para saldar suas dívidas com o conde.

– Acho que você já está passando dos limites, Anna!

Quero que me respeite, ainda sou seu pai. Todos nesta casa

temos deveres e obrigações. É justo que tenha chegado a sua

hora de dar a sua contribuição.

– Sei disso, pai. Só estou tentando lhe mostrar que,

caso o senhor não tenha percebido, de tola não faço nem o

papel.

– Tudo bem, Anna. Vou ser-lhe mais direto, então: o

conde procurava uma esposa e eu lhe devo muito dinheiro.

Isso sem contar que metade das dívidas da família ele também

pagou. Sendo assim, não vejo nada mais justo que aceitar o seu

casamento com ele. Além do mais, de que está reclamando?

Será uma mulher rica e terá de tudo. E ainda receberá um título

de nobreza. Tem ideia de quantas jovens de sua idade

gostariam de estar no seu lugar? E essa união será muito útil

para os negócios e para a família. Anna, o conde não é nenhum

velhote. É jovem e de boa aparência, e é muito vigoroso! Logo

terão filhos e, além do mais, você acabará se acostumando com

ele. Todo casamento é baseado em negócios. Não achou que

eu lhe criei até agora sem, no mínimo, tirar proveito disso. Já

me bastou sua mãe não ter me dado um herdeiro homem.

Agora chega com essa conversa. Fico satisfeito que esteja

ciente dos meus negócios e, querendo ou não, você faz parte

deles. Agora saia da minha frente, que preciso passar.

Poderia ter-me calado naquele momento e ter aceitado

que o meu destino fosse ao lado daquele crápula, mas tinha

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 314 -

outros planos para mim. Então, mesmo vendo o meu pai

saindo porta afora, disse:

– Saiba que eu não vou ceder tão fácil como o senhor

pensa, meu pai. Pode me casar com este homem, mas juro que

fujo no dia do casamento e o senhor não me verá nunca mais.

O senhor não vai me tratar como trata as suas vacas ou os seus

escravos. Tenho sentimento e sou uma pessoa livre! Vou lutar

por meus direitos enquanto viver.

– Meu Deus, Anna, por que você tem que fazer as

coisas parecerem tão difíceis? Você está complicando uma

coisa que é demasiadamente fácil para uma mulher. Só vou lhe

dizer uma coisa, mocinha: tente passar por cima das minhas

ordens e irá descobrir quem sou realmente.

– Pai, estou falando de sentimentos, dos meus

sentimentos. O senhor está me tratando levianamente como se

eu fosse uma mulher que trabalha em uma taberna. Nunca em

minha vida conheci um homem, e agora o senhor quer me

vender? Sabe, pai, outro dia mesmo eu fiquei pensando no

quanto: estava enganada com o senhor. Pensei que o senhor

era muito diferente de sua esposa - ambiciosa e arrogante, que

o senhor teima em cativar por mero capricho. Mas eu estava

enganada, não é?

– Você está passando dos limites, mocinha! É melhor

que se cale ou não me responsabilizo pelos meus atos.

– Não, pai. Estou expondo minha indignação! Não sou

objeto, pai, sou sua filha! Aposto minha vida como a senhora

sua esposa está envolvida nesse leilão humano. O senhor não

passa de uma marionete nas mãos dela.

Ele me esbofeteou com toda a força no rosto.

Agarrando-me pelos ombros, jogou-me no chão. Revivi minha

vida passada. Sabia que tinha passado das medidas, mas não

poderia abaixar minha cabeça para um ato tão abominável

Adriana Matheus

- 315 -

como aquele. Não era como as outras mulheres. Não poderia

submeter-me a um homem por dinheiro ou para pagar as

dívidas do meu pai.

Depois, parecendo ainda não satisfeito, ele me levantou

do chão por um dos braços e disse:

– Queria fazer isso de uma maneira mais amena e

menos dolorosa para você. Ambos poderíamos ter entrado em

um consenso ou em um acordo vantajoso, o que poderia ter

sido muito bom para ambas as partes. Mas agora estou lhe

dizendo afirmativamente: fará o que eu quiser e quando a

mandar, ou lhe enviarei pessoalmente para um convento, de

onde nunca mais verá a luz do dia, pois me encarregarei de

pedir-lhes que a enclausurem. Veja se arruma um traje que

condiga com a nobreza do conde. Pois, ultimamente, tem se

vestido como uma camponesa.

Em seguida saiu, batendo tão fortemente a porta que

estremeceu todo o ambiente. Pude ainda ouvir seus berros,

gritando por Lorenzo. Fiquei ali, parada no meio do hall, com

os olhos fechados, tentando esquecer aquelas tenebrosas

palavras. Mas, em momento algum, chorei. Não seria fraca,

não daria o meu braço a torcer. Guerreiros não choram, dizia a

voz em minha cabeça. Isso me fez lembrar de minhas

antepassadas, que nunca deixaram o medo ou o fracasso cair

de seus olhos em forma de lágrimas. Eu não seria diferente:

precisava lutar e, para isso, precisava estar muito lúcida. Sabia

que, se aceitasse me casar com o conde, tornar-me-ia uma

marionete em suas mãos. Pois, quando ele se cansasse de mim,

descartar-me-ia, colocando-me de lado - como a maioria das

senhoras casadas, que sempre eram trocadas por concubinas ou

cortesãs. Não queria passar o resto da minha vida amargurada,

fazendo tricô e frequentando a igreja diariamente por não ter

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 316 -

nenhum outro lugar para ir. Não, meu pai não faria isso

comigo.

Maria estava na cozinha e veio correndo, querendo

saber o que havia acontecido comigo.

–Você está bem, Anna? Ouvi seu pai gritando com

Lorenzo, como um louco que acabara de fugir de um

manicômio em chamas.

– Sim, estou muito bem, Maria.

Contei-lhe com detalhes tudo o que acontecera. Depois

de me ouvir atentamente, falou:

– Santo Deus, ele está mesmo louco! E o que pretende

fazer para escapar dessa trama? A não ser que a senhorita

resolva aceitar a vontade de seu pai e casar-se com o conde,

pois não consigo achar nenhuma solução para poder ajudá-la.

– Nunca, jamais serei vendida ou me casarei sem amor.

Darei aos dois uma boa lição.

– Senhorita Anna, deve ter mais cuidado. Seu pai pode

perder a cabeça e nem sei o que ele poderá fazer.

– Não se preocupe, Maria. Serei bastante sutil. Mas,

antes, quero que me dê as chaves do quarto de minha mãe.

Tenho o direito de conhecer o que tem em seus pertences.

– Tudo bem! Mas deixe que acabem de sair e tomem

distância.

– Então está bem. Assim que saírem, suba e traga-me

as chaves.

Disse isso voltando para os meus aposentos. No meio

da escada, ainda ouvi Maria dizer-me:

– Que Deus me ajude! Seu pai, se souber, esfola-me

viva.

Então, respondi-lhe:

– Ele só vai saber se a senhora contar!

Adriana Matheus

- 317 -

Maria saiu meio a contra gosto, pois estava muito

preocupada com as consequências de meus atos. Para falar a

verdade, eu também, mas estava disposta a ir até o fim.

Ao chegar em meu quarto, corri para a janela para

observar quando meu pai partiria na carruagem. Pude observar

a condessa gesticulando muito. Ela conversava com meu pai e,

por certo, estavam falando de mim. Antes de subir na

carruagem, ela olhou para cima e deu-me um sorriso

sarcástico. Cumprimentei-a com a cabeça, pois bem sabia o

que queria dizer-me com aquele sorriso matreiro e os olhos

cheios de maldade.

Maria subiu imediatamente, assim que a carruagem

tomou distância.

– Estou com o coração nas mãos, mas estou aqui,

arriscando-me a ser mandada embora. Tudo por amor e

amizade a uma aprendiz de bruxa que só me põe em confusão.

– Ora, Maria, pense pelo lado positivo: é só comigo que

a senhora consegue ter uma vida agitada e cheia de aventuras!

Lembrei-me de minha infância, quando sempre fazia

Maria correr horrores atrás de mim, ou a fazia subir em cima

de árvores para pegar as frutas que eu queria. Mesmo que

houvesse uma bem pertinho do chão, eu a fazia pegar a mais

alta. Era muito divertido vê-la se atrapalhando toda, subindo

árvore acima. Maria, então, prosseguiu com aquela conversa:

– É mais: se o patrão me pega, vou ter algo muito mais

empolgante do que aventuras ao seu lado. Serei obrigada a

tirar férias para o resto da minha vida.

Não me importava o que Maria pudesse me dizer.

Pegar aquela chave fez meu coração disparar, pois seria a

primeira vez que conheceria as intimidades de minha mãe.

Abrimos a porta e fomos para o final do corredor, na frente do

quarto de minha mãe. Olhei para Maria, muito ansiosa.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 318 -

– Vamos, abra logo. Não temos o dia todo para perder,

ou quer que a copeira venha e nos flagre?

Ao abrir o quarto, senti um carinho muito grande em

todo o ambiente e fiquei muito feliz, pois minha mãe estava lá

dentro, esperando-me com um lindo sorriso. Senti as lágrimas

rolarem e vi quando Maria me olhou. Em seguida, falou:

– Sinto uma presença muito forte aqui dentro. Estou

toda arrepiada. Talvez não seja uma boa ideia ficarmos.

Olhei para minha mãe, que estava sorrindo e olhando

para Maria, com ternura.

– Sim, eu sei, Maria. Minha mãe está aqui e manda lhe

dizer que está muito feliz por vê-la. Não precisa ficar

assustada. Na verdade, ela só está aqui para nos receber.

Maria deu um salto para trás e perguntou onde ela

estava. Respondi que ela estava bem próxima à janela.

– Ufa! Então os arrepios que estou sentindo devem ser

por causa do ventinho frio entrando pela janela!

Eu e minha mãe olhamos uma para a outra com

indignação, pois não acreditávamos ter ouvido aquele

comentário tão esdrúxulo vindo de uma pessoa extremamente

esclarecida sobre a espiritualidade como Maria era. Mas, no

fundo, entendemos, pois ela estava nervosa e assustada. Afinal,

ela nunca realmente havia se confrontado com um espírito.

Aquela presença incorpórea mexeu com seus nervos, fazendo-

a não perceber que estava prestes a cair na obscuridade de sua

imaginação com uma manifestação de ignorância. Engraçado

como as pessoas se assustam com o que não podem ver ou

tocar... Quando, na verdade, a única coisa que pode nos

prejudicar está dentro de nós mesmos: é a nossa maneira cega

e preconceituosa de olhar a vida e as pessoas ao nosso redor.

Os seres incorpóreos nunca poderiam nos fazer mal, a não ser

se os deixássemos invadir nosso meridiano, ou seja, a linha

Adriana Matheus

- 319 -

imaginária que não devemos deixar os espíritos sem luz

ultrapassarem. Esses seres são usados por feiticeiras, para o

malefício da magia negra, na qual os desejos obscuros da

maioria dos seres humanos são atendidos. Na verdade, os

espíritos sem luz são como escravos: apenas cumprem ordens

de seus senhores e estão à espera de uma recompensa.

Abrimos a janela para que o ar e a claridade entrassem.

O quarto era repleto de pequenos bibelôs e parecia que a

tristeza estava bem longe dali. Minha mãe mostrou-me suas

coisas pessoais. Mostrou-me um lugar secreto, onde guardava

o primeiro casaquinho de lã que ela mesma havia tricotado

enquanto estava grávida de mim. Até Maria espantou-se, pois

havia um fundo falso em uma gaveta de sua cômoda. Fiquei

tão emocionada por poder compartilhar aquele momento único

com minha mãe! Encontrei um antigo diário e algumas coisas

que me surpreenderam. Tinha uma estranha varinha de

madeira muito trabalhada, um amuleto, uma toalha bordada em

fios de ouro e um cristal azul. Guardei tudo isso em um

pequeno baú de madeira e marfim. Maria disse-me que mamãe

havia ganhado de meu pai de uma viagem que fizeram à Índia.

Ao abrir seu guarda-roupa, fiquei encantada com o que

vi: logo de primeira mão, um vestido preto, todo de renda

muito fina. Olhei para minha mãe maravilhada. Pedi-lhe

permissão para usá-lo no baile de sábado. Ela respondeu-me,

com um largo sorriso, que tudo aquilo me pertencia. Admirei

cada bibelô. O quarto era muito amplo e tudo era em tom bege

e marfim. A cama de casal era enorme e muito alta. O véu

sobre a cama dava um ar extremamente romântico, mostrando

um pouco do temperamento harmonioso e elegante dela. Ela

me disse que estava triste com papai, mas que era para eu ter

paciência com ele, pois ele estava muito atordoado por causa

das imprudências que havia cometido. Disse-me que ele corria

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 320 -

risco de vida, pois o conde não era uma pessoa tão amena

quanto se mostrava. Pediu que eu também tomasse cuidado

com minhas atitudes com ele e que, principalmente, tentasse

ser discreta quanto à minha nova escolha. Isso me fez ficar um

pouco com o pé atrás quanto ao que faria no baile de sábado.

Depois de muito conversarmos e ela me instruir sobre como eu

deveria proceder em minhas atitudes, despediu-se e retirou-se,

deixando-me pesarosa e com saudades antecipadas.

Agradeci a Maria por permitir encontrar-me com um

pouco da minha história. Saí daquele quarto e tentei deixar

tudo da mesma maneira, pois não quis que ninguém

desconfiasse de nada. Saí com o vestido em minhas mãos, é

claro! Acho que foi o presente mais lindo que eu havia

ganhado. No corredor, entreguei-o a Maria, que me esperava

impaciente. Pedi-lhe que o lavasse em segredo, pois não queria

que ninguém soubesse que eu o usaria no baile do conde. Ela

pegou a chave e desceu para colocá-la no mesmo lugar, para

que ninguém desconfiasse dela.

Voltei imediatamente para meu quarto, levando comigo

alguns dos pertences de minha mãe. Depois de colocar minhas

coisinhas no quarto, em um lugar seguro, fui para a cozinha,

onde fiz minhas refeições ao lado dos criados. O meu lado

humano ainda estava muito triste com meu pai, e não gostaria

de ver ou falar com ele naquele dia tão fatídico.

Depois de ajudar Joana com a louça, voltei para o meu

quarto e resolvi ler o diário de minha mãe. Pude perceber sua

sensibilidade e a maneira humana como via as coisas e as

pessoas. O perdão era o seu lema. Pude perceber que meu pai

não era tão puritano como demonstrava ser - em poucas linhas,

minha mãe dizia saber de suas traições, mas se manteve digna.

Saltei algumas páginas, para não me aborrecer ainda mais

Adriana Matheus

- 321 -

como ele, e descobri uma coisa que me deixou boquiaberta.

Logo depois de dez páginas, estava escrito:

Anna, sei que neste momento você está lendo estas

páginas. Espero que já tenha identificado seu dom. É, filha, sei

que não viverei o bastante para lhe contar sobre isso

pessoalmente. Sou uma bruxa. Antes de deixar meu aparelho,

passar-lhe-ei neste livro todo o meu conhecimento sobre a

magia. Lógico que muitas coisas você terá que aprender por si

mesma, pois a magia é uma busca eterna do saber. Seu pai

nunca soube desse segredo, que agora compartilho

exclusivamente com você. Não culpe Maria: ela prometeu-me

guardar segredo. Nunca lhe revelei sobre o fundo falso ou

sobre a passagem secreta do porão, onde pratico meus rituais

de magia. Nesta hora, sei como está se sentindo e se

perguntando onde fica a passagem secreta. Fica atrás do 3º

lote de vinhos de seu pai. Lá, encontrará tudo o que precisa

saber sobre mim e nossa raiz. Como já deve ter ouvido,

estudei até os dezesseis anos em um colégio de freiras, na

França. Lá, aprendi muitas coisas, inclusive sobre a crueldade

e a falsidade que ocorre por trás das paredes de um convento

rigoroso. Minha mãe queria que eu tivesse uma vida religiosa

e que fosse preparada para ser uma boa esposa e dona de

casa. Só que sempre tive esses sonhos românticos. Também

sentia que o mundo precisava de mim de uma outra forma.

Minha primeira manifestação como bruxa foi quando, no

convento, começou a surgir um boato de que várias freiras

estavam ficando loucas por causa da influência do demônio.

As pobres mulheres davam crises e debatiam-se, jogando seus

frágeis corpos de um lado para o outro da parede de suas

celas. Algumas cometeram suicídio. Algumas engravidaram, e

as freiras as fizeram abortar. O horror e o pânico

expandiram-se por todo o convento, e meus pais estavam

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 322 -

vindo me buscar. Só que algo dentro de mim gritava e dizia

que aquilo tudo nem de perto tinha a ver com o demônio.

Numa bela tarde, eu estava sentada na soleira, lendo um

romance, depois de uma monótona aula de literatura, quando

ouvi alguém me chamar. Levantei-me rapidamente, pois tanto

os padres como as freiras eram muito rígidos quanto à

obediência. Então, de um salto, respondi “Pois não,

senhora!?”. E, abaixando a cabeça, continuei imóvel,

esperando que alguém viesse me impor alguma ordem.

Quando percebi que ninguém falou nada, ergui minha cabeça

e vi que não havia ninguém. Fiquei assustada e saí correndo

para o meu quarto, onde sentei na cama e fiquei tentando

entender o que teria acontecido. Cheguei a pensar que

realmente poderia ser um tipo de demônio que tivesse falado

comigo, o mesmo que estaria deixando as freiras loucas.

Fiquei com mais medo ainda por não saber como diria aquilo

para as freiras sem que elas achassem que estava possuída.

Foi quando a voz, mais uma vez, falou comigo: “Elizabeth,

não temas, não viemos lhe fazer nenhum mal. Escute-nos,

temos que lhe prevenir: está correndo um risco muito grande

aqui dentro”. Primeiro, esconjurei e rezei incessantemente.

Depois, cobri a cabeça com travesseiros, mas as vozes não

paravam. Então, em soluços e com muito medo, resolvi

perguntar: “O que querem de mim? Por que estão me

atormentando? Sou filha de Deus e renego vocês, espíritos

imundos”. Ouvi responderem-me: “Também somos filhas de

Deus, Elizabeth, e precisamos de sua ajuda para evitarmos

mais uma tragédia com as meninas”. Ao ouvir aquilo, fiquei

mais calma. Pois, além de a voz ser suave, parecia-me

sensata. Perguntei “Em que posso ajudar as pobres moças?

Por que os demônios estão torturando essas pobres mulheres,

por que estão possuindo-as?”. Explicaram-me que não eram

Adriana Matheus

- 323 -

demônios, e muito menos pessoas daquele meu mundo.

Indaguei-lhes sobre quem estava fazendo aquilo.

Responderam-me que o padre Moises invadia as celas das

moças e as obrigava a manter relações com ele. Contestei-os:

“Isso é mentira, elas dizem que é um homem sem rosto e

encapuzado”. Eles me disseram que o padre realmente usava

um capuz, e elas não o reconheciam por estarem entorpecidas

com um chá, feito com uma erva muito poderosa, que as

deixava em completo êxtase. Mas como isso era possível, se os

padres não tinham acesso às celas? Segundo as vozes, o padre

convenceu a cozinheira que esse chá as fazia ficar calmas.

Então, ele conseguia entrar em suas celas. Depois do ato

abominável, ele colocava na cabeça delas que foi o demônio

que as violou. As pobres meninas ficavam loucas, pois o

alucinógeno as fazia delirar. Era por isso que os exorcistas

haviam dito nunca terem visto esses tipos de manifestações

antes. As vozes disseram-me que eu poderia ajudar as

meninas, escrevendo uma carta anonimamente, dizendo que,

durante a estadia do padre Moises em outro convento da

região, o mesmo havia acontecido. Eu deveria entregar a

carta ao leiteiro e pedir-lhe que, quando ele voltasse na

manhã seguinte, entregasse à madre. “Lembre-se de ser

bastante severa e cite o nome do convento e o nome da madre

superiora do local”, advertiram-me. Assim fiz, como as vozes

me ensinaram. Naquela noite, mal consegui dormir: se tudo

fosse obra de espíritos impuros, eu estaria envolvida em atos

de bruxaria e satanismo. Isso poderia me custar a vida.

Depois de uma noite péssima, fui a primeira a me levantar.

Mal consegui prestar atenção nas minhas aulas sequenciais e

cotidianas. Depois de muito sofrer por antecipação, ouvi no

meio do corredor um grande zunzunzum. Corremos todas para

ver o que estava acontecendo. O monsenhor havia sido

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 324 -

chamado. Todos estavam trancados e aos berros, na sala da

madre superiora. Deus, com que agonia eu estava... “Onde fui

me meter?”, pensei, temerosa e certa de que estava

encrencada. Somente às duas da tarde, depois de muito

alarido, foi que soubemos o que realmente houve. Os espíritos

estavam completamente certos: padre Moises foi levado por

seus superiores e acompanhado por um inquisidor.

Supostamente, quem estava endemoniado era o padre. Em sua

cela, acharam muitas raízes alucinógenas e abortivas. Raízes

a que só as feiticeiras e os magos teriam acesso. Interrogaram

as jovens freiras e várias disseram que o padre bolinava com

elas, mas que o efeito das drogas as faziam acreditar que fosse

o demônio que se disfarçava de padre Moises. O escândalo

gerou a retirada de muitas moças da escola interna e o

fechamento temporário do convento. Graças a Deus, fui uma

dessas moças. Continuei na França a pedido de uma tia, que

continuou com os meus estudos em casa. Durante um baile,

conheci seu pai. Os espíritos preveniram-me de sua reputação

de conquistador, mas disseram que você nasceria de nossa

união. Disseram que você seria muito especial e que teria uma

missão a cumprir. Mostraram-me várias vezes o seu rostinho

em sonhos. Minha união com seu pai não foi por interesse

meu, pois realmente estava apaixonada por ele. Mas você

também já deve ter percebido que não fui muito feliz, porque

seu pai sempre gostou de viajar e esbanjar. Quando os

espíritos avisaram-me de que minha doença não teria cura

porque se tratava de um mal de sentença, comecei, então, a

preparar um local secreto para que, quando você crescesse,

tivesse o seu lugar para trabalhar. Maria ajudou-me e sempre

me orientou a como agir. Com as viagens constantes de seu

pai, fiquei muito sozinha. Então, a prática da magia foi-me um

aprendizado constante. Algumas coisas estão anotadas para

Adriana Matheus

- 325 -

que lhe sirvam de exemplos. Espero, filha, que cumpra sua

missão com muito amor e designação. Lembre-se de sempre

manter a discrição sobre a magia, e de só praticá-la quando

realmente necessário e para o bem comum. Cuide de seu pai e

nunca o contradiga, pois se torna violento e pode agredi-la.

Ajude Maria a encontrar seu grande amor e liberte-a, pois ela

ainda tem que seguir seu caminho. Deixo-lhe tudo o que

aprendi com os espíritos, e prometo que sempre estarei

presente para protegê-la.

Cumpri tudo o que ela me pediu naquele diário, embora

nem tudo tenha sido da compreensão de todos os que me

cercavam. Mas nunca fiz nada esperando que alguém me

compreendesse. Apenas quis ser livre. Esperava poder seguir o

caminho que escolhi.

Era impressionante como minha mãe poderia saber

que, um dia, eu leria seu diário. O que mais me intrigava era

como ela havia conseguido esconder de meu pai que também

era bruxa. Maria, com certeza, tinha algumas respostas a me

dar.

Peguei no meu diário um pouco para fazer minhas

anotações e esclarecer algumas coisas sobre a tradição da Lua.

Aproveitei para acrescentar as seguintes anotações: nós,

bruxas, acreditamos na deusa como a criadora de tudo e de

todos. A deusa é a principal deidade da bruxaria. Ela é

simbolizada pela Lua e pela Terra, e recebe diferentes nomes

em diversas culturas em que é cultuada e celebrada. A deusa é

eterna, imortal e exerce supremacia em nossas práticas e

rituais.

A bruxaria é uma religião polarizada. É por isso que

também acreditamos no princípio criador masculino do deus

cornífero, simbolizado pelo Sol, representando a fauna, a flora

e os animais. Ele é considerado filho e consorte da deusa. Sei

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 326 -

que isso poderá parecer uma heresia a princípio. Mas, em

nossa cultura, existem muitas coisas misteriosas por si só que

são consideradas abomináveis, irregulares e anormais aos

olhos humanos. Com o passar do tempo e muito estudo, são

coisas com que se aprende a conviver, com naturalidade.

Tudo nesta terra é uma questão de cultura e aceitação.

Mas uma coisa digo: não cultuamos o demônio, não comemos

criancinhas e muito menos praticamos orgias nas quais -

supõe-se - o demônio deita-se com as bruxas.

Não posso dizer o mesmo das feiticeiras. São pessoas à

parte da magia. Não seguem regras e fazem uso de seus

poderes à revelia e mercenariamente. Mas, em nossa tradição,

nunca houve sequer nenhum evento singular a esses

mencionados por inquisidores e fanáticos religiosos. Todos os

rituais mágicos sempre são executados visando efeitos

benéficos, de forma que as pessoas jamais sejam prejudicadas.

A natureza é o templo de nossos antigos deuses. Por

isso, a maioria dos nossos rituais é realizada em meio à mata

fechada. Apesar de muitas bruxas realizarem seus rituais em

suas casas ou locais fechados, por uma questão de privacidade,

discrição e cautela, a natureza é sempre vista como o local

ideal para a celebração de nossos rituais. A magia é um

instrumento que, quando bem usado, torna-se um grande

aliado. Mas, caso contrário, pode desencadear todo o universo

à sua volta. Como devo sempre lembrar, não podemos e nem

temos o direito de interferir no destino de ninguém.

Relembrando uma coisa: bruxas não usam suas

vassouras para voar, nem seus caldeirões para fazer cozidos de

dragão ou sopa de sapo, como diz o dito popular. Esses

instrumentos são realmente utilizados em nossos rituais e

feitiços, mas não da forma fantasiosa e folclórica que diversas

vezes são mencionados em relatos e histórias supersticiosas.

Adriana Matheus

- 327 -

A vassoura original de uma bruxa é feita com um

punhado de planta amarrado ao redor de um cabo: os dois

sexos, o côncavo e o convexo. As bruxas mais antigas usavam

esse instrumento de forma fálica para abençoar, fazendo um

ritual de fertilidade. À noite, pulavam sobre vassouras nos

campos e, quanto mais alto se pulasse, maiores eram as

bênçãos da fertilidade. Esse tipo de ritual era noturno e, por

isso, muitas vezes foi confundido com rituais de maldição - o

que também gerou a lenda de que a bruxa voava em vassouras.

No fundo, as bruxas antigas gostavam de se parecerem

místicas e estranhas - o que foi um erro, pois os supersticiosos

usaram da sua alegria e também de sua maneira debochada

para prejudicá-las com calúnias e estórias folclóricas.

Esclarecendo, também, sobre a viagem, ressalto o

seguinte: quando estamos despertos, o corpo astral coincide

com o físico. Mas, quando estamos adormecidos, ele se

destaca, dando, assim, origem à projeção astral. O corpo astral,

nesse estado, mantém-se ligado ao corpo físico pelo cordão de

prata por toda a vida. Quebrando-o, a vida termina -

desligando, assim, o corpo Astral do corpo Físico. O cordão de

prata é a ligação do corpo físico ao corpo astral, através da

qual é transmitida a energia vital para o corpo físico, durante a

projeção astral, mantendo sempre os dois corpos interligados,

independentemente da distância a que se encontrem. Por mais

afastados que estejam, o cordão de prata jamais se partirá:

antes funcionando como um elástico, trazendo sempre de volta

o corpo astral, por mais longe que ele se encontre. O cordão de

prata também é conhecido como cordão astral, fio de prata,

cordão luminoso, cordão vital, entre tantos outros nomes.

O plano astral é um universo paralelo ao nosso, é a

quarta dimensão. Durante a projeção astral, consegue-se fazer

o que se quiser e ir onde o nosso pensamento desejar. Não

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 328 -

existe espaço nem tempo – mas, sim, forma e pensamento.

Pensa-se num lugar e, quase de imediato, estamos lá. Existem,

no entanto, algumas limitações. Por exemplo: muitas pessoas

que não são capazes de se tornarem visíveis ao visitar um

amigo ou familiar. No entanto, algumas pessoas conseguem.

Há pessoas que não veem a presença de outras na viagem

astral. No entanto, conseguem sentir a presença. Durante a

viagem astral, a projeção pode ser involuntária ou voluntária.

A maior parte das projeções involuntárias acontece ou durante

um sonho ou nas experiências de quase-morte. Nesse caso de

projeção, a pessoa não tem consciência do que lhe está a

acontecer, observando por vezes o seu corpo físico deitado na

cama e imaginando que está desencarnada. Procura

desesperadamente mergulhar violentamente no seu corpo

físico. Muitos dos sonhos de voo e de queda estão

estreitamente relacionados a essa experiência. Entretanto,

outras pessoas que se projetam involuntariamente sentem-se

com uma sensação de flutuação e liberdade tão boa, fazendo-

os sentir demasiadamente bem para se questionarem sobre o

que se está a passar. Ao acordar, algumas imaginam que

aquela experiência foi um sonho bom.

Existem pessoas que praticam viagem astral

voluntariamente, comandando, neste caso, a experiência, tendo

total consciência de que estão fora do corpo. Podem, assim,

observar calmamente o seu corpo, viajar e visitar com

tranquilidade todos os lugares que desejem na Terra, podendo

voar e atravessar objetos físicos. Durante essas viagens, podem

se encontrar e contatar com outras pessoas em viagem astral

ou com entidades desencarnadas. Podem regressar quando

desejarem, bastando, para isso, pensar no seu corpo físico para

que o corpo astral fique novamente ligado a ele. Ressalto que

não é aconselhável que uma pessoa faça essa viagem sozinha.

Adriana Matheus

- 329 -

Isso seria demasiadamente inconsequente. A viagem astral não

é tão simples e pode ser perigosa, pois o indivíduo pode não

conseguir voltar por si só – ou, o que é ainda pior, pode não

querer voltar.

Resolvi, também, esclarecer sobre as formas de

demônios que se manifestavam nas pessoas e como eles as

possuíam. O súcubu é um espírito do mal que toma a forma de

mulher com o propósito de ter relações sexuais com um

homem. A sua versão masculina denomina-se incúbus. O

objetivo dos súcubus e incúbus é unirem-se carnalmente com

um ser humano. Na realidade, sugar-lhe a energia vital, pois

essas entidades alimentam-se dela. Seus ataques ocorrem à

noite. A vitíma raramente se lembra, ou tem uma vaga

memória, muito esfumaçada, como se o ataque lhe parecesse

um sonho ruim. Ao acordar com uma grande sensação de

fraqueza para a qual não acha explicação, o ser possuído pode

ter ataques de fúria e violência, podendo até mesmo machucar

um ente querido. Se os ataques se tornarem sucessivos, a

pessoa começa a ficar pálida, sem ânimo e depressiva,

geralmente com problemas sanguíneos ou pulmonares. Perde

totalmente as forças anímicas vitais. Vai, inexplicavelmente,

perdendo até as suas forças espirituais. Energias são

rapidamente sugadas, podendo ocorrer perda total do apetite

ou compulsão alimentar. O ser atingido pode ficar totalmente

desiquilibrado e, em alguns casos, pode vir a morrer. Isso

explica muitas doenças que nossos doutores não conseguiram

explicar - como a loucura, por exemplo. Ressalto, ainda, que

muitas das vítimas da Inquisição não tinham nenhuma espécie

de demônio em seu corpo físico ou astral.

Terminei minhas anotações e estava sentindo-me

muito melhor. Ocupar a mente com a leitura é a maior e a

melhor higiene mental que podemos fazer. Levantei-me e

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 330 -

arrumei a bagunça que etava no meu quarto. Havia coisas de

minha mãe espalhadas por toda a parte.

Maria subiu, avisando que meu pai e a condessa

estavam de volta e que o jantar seria servido na sala de estar,

às oito em ponto.

– Que interessante! Então agora resolveram que somos

uma família? - respondi à Maria.

– Parece que o casal está divinamente bem. Para falar a

verdade, senhorita, nunca os vi assim, tão harmoniosos e gentis

um com o outro.

– Imagino, Maria. Isso porque ambos estão

concordando em alguma coisa que lhes é conveniente.

Infelizmente, terá que dizer ao meu pai que não estou bem

disposta.

Maria assim o fez. Ela não estava para muitos

argumentos, pois ainda estava se sentindo triste. Fiquei à

janela, observando a natureza. Quando Maria voltou ao meu

quarto, já era noite e eu nem tinha percebido que a tarde caíra.

Mal comi: apenas revirei a comida, para dar a impressão de

que tinha comido. Estava me sentindo entediada e sem lugar.

Deitei-me na cama, peguei um livro e adormeci, sem ao menos

tirar as roupas. Maria deve ter me cobrido durante a noite, mas

não me acordou.

Na manhã seguimte, logo que despertei, percebi

novamente a janela do meu quarto aberta. Lenvantei e fui dar

uma olhada pelo lado de fora. Se foi um sucumbo, não teria

deixado marcas normais. Mas, para o meu espanto, percebi

uma coisa que até então não tinha notado. A trepadeira que

subia pela parede da minha janela estava toda arrebentada.

Concluí que tinha algum estranho no meu quarto, e esse

alguém não era um espírito. Resolvi procurar em todo o quarto

indícios ou pistas que me mostrassem algo mais sobre o

Adriana Matheus

- 331 -

invasor da minha privacidade durante minhas noites de sono.

Para meu maior espanto, descobri que o diário de minha mãe

havia desaparecido. Fiquei desesperada, pois sabia que, quem

quer que fosse, essa pessoa agora me teria nas mãos. Minhas

pernas tremiam tanto... Fiquei sem chão. Maria entrou depois

de ter batido inúmeras vezes. Ao me ver, perguntou,

preocupada:

– Senhorita, o que está havendo? Estou batendo à sua

porta há alguns minutos e, como a senhorita não respondia,

resolvi entrar.

– Desculpe-me, Maria. Realmente não a ouvi.

Aconteceu uma coisa muito grave.

– Então diga-me, senhorita: o que mais descobriu?

– A senhora sabe que desconfiava que alguém estava

entrando aqui. Não são apenas desconfianças, Maria, pois

alguém realmente está entrando em meu quarto, subindo pela

trepadeira. O diário de minha mãe desapareceu. Maria, deixei-

o debaixo do travesseiro.

Ela ficou pálida e tão desorientada como eu. Por fim,

falou:

– A senhorita tem certeza? Meu Deus, sua mãe

escreveu coisas naquelas páginas que podem comprometê-la, e

muito!

– A senhora sabia desse segredo e escondeu-me

também.

– Por favor, senhorita Anna, entenda-me: isso não é

uma coisa que a gente sai falando por aí. A senhorita era

muito imatura e tive medo de que pudesse interpretar mal a

condição de sua mãe.

– A senhora tem razão. E agora não é hora para

discutirmos sobre esse assunto.

– Mas a senhorita está decepcionada comigo?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 332 -

– Não, Maria, só curiosa de como a minha mãe

conseguiu esconder esse segredo durante tanto tempo.

– Não foi fácil, senhorita. Mas, naquela época, como

seu pai viajava muito, sua mãe tinha mais acesso a toda a casa.

Ela mandou construir um local secreto. A senhorita deve ter

lido isso no diário.

– Sim, mas a pessoa que está com o diário agora

tembém sabe disso.

– Então, temos que descobrir quem é essa pessoa,

senhorita, ou estaremos em maus lençóis. Sugiro que nós duas,

de agora em diante, não sejamos vistas tão juntas.

– Não podemos ter tal atitude, Maria. Sempre

estivemos juntas e, se nos separamos agora, a pessoa que está

com o diário poderá desconfiar.

O segredo de minha mãe havia sido descoberto e, mais

do que nunca, precisava tirar Maria daquela casa. Ela voltou

para seus afazeres e fiquei ali, em meu quarto, sentindo que a

qualquer momento alguém entraria com um guarda e entregar-

me-ia à Inquisição.

Por fim, percebendo que não adiantaria fugir por muito

tempo, resolvi descer e caminhar pelo jardim. O dia não

estava ensolarado, pois o tempo estava virando e estava meio

nublado. Meu pai estava na sala de estar, bebendo, e minha

madrasta havia saído para resolver as coisas dos baile.

Eu estava muito perdida e caminhei pelo jardim inteiro.

Precisava encontrar o lugar secreto de minha mãe. Decidi que

seria lá que faria os meus feitiços. Tinha certeza de que nesse

lugar eu encontraria forças para lutar contra aqueles que me

perseguiam em silêncio. Mas meu maior temor, naquele

momento, era descobrir quem estava com aquele bendito

diário. Resolvi, então, descansar debaixo de uma árvore.

Encostei-me e deixei meu pensamento voar. Aquela árvore

Adriana Matheus

- 333 -

começou a me passar suas boas energias e, em instantes, estava

mais tranquila. Veio-me a certeza de que descobriria quem era

o mau caráter que estava invadindo a minha privacidade.

Alguma coisa me dizia que minha madrasta estava envolvida

naquela trama diabólica. Por fim, fiquei ali, deitada de olhos

fechados, buscando na natureza a resposta para as minhas

tormentas.

“Sempre encontraremos uma resposta para tudo, pois o

conhecimento nunca foi negado ao ser humano. Mas devemos

ter consciência de que e para que usamos tanta sabedoria

adquirida. Pois devemos nos lembrar do tratado pessoal de

Deus com os homens. Atos transformam-se em consequencias. E

colhemos exatamente o que plantamos”.

.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 334 -

V – O Mosteiro

epois de ter recuperado minhas energias debaixo

daquela árvore amiga, levantei-me e voltei para

dentro de casa. Meu pai ainda estava na sala de

estar, lendo um livro. Peguei um que me interessava e sentei-me

em uma poltrona lateral. Ficamos ali, sem dirigir a palavra um

ao outro. O ambiente estava pesado e hostil, pois aquele silêncio

forçado fez-me sentir excluída. Mas, no fundo, preferi que ele

não falasse comigo. Embora aquele silêncio me incomodasse,

era melhor do que ouvi-lo dizendo que eu era o pagamento para

o débito dele com o conde.

Depois de algumas horas folheando páginas e mais

páginas daquele livro, sem prestar a menor atenção ao seu

conteúdo, fomos interrompidos pelos relinchos de alguns

cavalos. Era a condessa que havia chegado. Meu pai levantou-

se, foi à janela certificar-se de que era mesmo sua esposa.

Depois, saiu apressadamente para recebê-la.

Assim que ele saiu porta afora, também corri à janela

para olhar aquela cena inédita. Cheguei a pensar que a

condessa havia sofrido algum tipo de acidente por causa da

maneira afoita e apressada com que meu pai saiu do recinto

D

Adriana Matheus

- 335 -

onde estávamos. Mas, para meu espanto, vi uma cena

completamente inversa: a condessa, ao descer da carruagem,

correu para os braços de meu pai, dando-lhe abraços afetuosos.

Os dois pareciam um casal muito apaixonado e em lua de mel.

Aquela cena seria normal se eu não os conhecesse e

convivesse com eles desde menina. Os dois pareciam não se

importar com a criadagem, que os olhava atônita.

Entraram apressadamente para seus aposentos,

deixando para trás Lorenzo e o cocheiro abarrotados de

embrulhos. Maria, que estava no hall de entrada, sequer

conseguiu pronunciar uma palavra mediante aquele casal tão

apaixonado. Definitivamente, havia algo de errado naquela

casa. Em outros tempos, meu pai teria tido um ataque ao ver a

condessa com tantos embrulhos, pois ele estava coberto até o

pescoço com dívidas. Não só eu, mas toda a cidade de

Salamandra sabia que a condessa e meu pai não se entendiam

como marido e mulher.

Depois de presenciar aquela cena exótica quase em

extinção, resolvi permanecer na sala de estar para tentar

colocar as ideias em ordem. Aquela visão amorosa do mais

novo casal romântico do país havia me deixado traumatizada.

Ao meio dia, Maria veio me comunicar que o almoço

estava pronto e seria servido para a família - o que queria dizer

que meu pai praticamente me estava obrigando a sentar-me à

mesa com ele e sua esposa adorada. Já sentada à mesa, o casal

de enamorados parecia não ter notado a minha presença.

Parecia que haviam se juntado num complô silencioso contra

mim. Não que eu desse a menor importância ao desprezo dos

dois, mas a súbita harmonia entre aquele casal parecia algo de

história de horror. Eu precisava prestar mais atenção aos

detalhes. Era pela minha vida que eu temia.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 336 -

Não consegui comer. Apenas remexi minha refeição

em total silêncio. Depois, levantei-me e saí em direção aos

meus aposentos. Ouvi-os comentando algo sobre mim e, em

seguida, riram debochadamente. Confesso que estava com

medo deles, mas não poderia demonstrar isso, pois

demonstraria que a tática que estavam usando estava surtindo

efeito.

Fiquei em meu quarto o restante da tarde, sem sair um

minuto sequer. Eu e Maria, naquele dia, quase não nos

falamos, pois a condessa a ocupou com várias tarefas

relacionadas ao baile do dia seguinte. De uma coisa eu estava

certa: o diário de minha mãe não estava em poder da condessa

Del Prat – ou, caso contrário, ela teria vindo ao meu quarto

para me chantagear.

Meu pai e a condessa saíram logo após o almoço. Já

eram nove horas da noite e os dois não haviam voltado. No

mínimo, estavam na companhia do seu mais novo amigo, o

conde. Maria, assim que conseguiu uma folga, veio ao meu

quarto para saber se eu estava bem, pois ela não havia me visto

desde o almoço. Depois de conversar comigo por alguns

minutos, ela desceu e aconselhou-me a trancar as janelas e a

porta. Foi o que fiz. Maria, por certo, não poderia dormir antes

que o casal de enamorados voltasse. Eu, por minha vez, estava

cansada de esperar por notícias e acabei adormecendo em cima

do meu diário.

No dia seguinte, acordei disposta a não permitir que

nada e nem ninguém me perturbasse a paz. Levantei-me da

cama, fiz minhas orações matinais, abri as janelas, deixando o

ar da manhã entrar no quarto. Depois, fui interrompida em meu

momento de oração pelo som do toque de Maria à porta. Abri

e fui logo dizendo:

Adriana Matheus

- 337 -

– Bom dia, minha querida Maria! Que lindo dia

teremos hoje, não acha? É só gratidão por termos tantas

bênçãos do Pai Maior. O que faremos hoje para compensar os

dias ruins que passamos esta semana nesta casa de aflições?

Maria parecia não ter entendido minha reação e olhou-

me atônita:

– O que deu na senhorita? Viu um anjo durante a noite,

foi? Se isso aconteceu, passe para mim também um pouco

dessa energia incandescente, pois estou precisando me sentir

assim, tão bem disposta.

Maria disse aquilo esfregando as mãos nas minhas

vestes, parecendo querer captar a suposta energia angelical.

Dei-lhe um largo sorriso, pois sabia que ela estava usando de

suas ironias mais uma vez e disse-lhe:

– Não é nada disso, Maria. Estou decidida a não deixar

que ninguém me ponha de baixo astral. Eu disse que iria viver

para lutar por minha liberdade de expressão e igualdade.

Então, que seja com um sorriso nos lábios. Afinal, inimigo só

se vence com perseverança, e não com ódio. Tudo o que os

meus inimigos querem, Maria, é ver-me triste e definhando dia

após dia. Mas lhe juro que não darei este gostinho a nenhum

deles. Hoje acordei com este pensamento e, acredite, é

definitivo.

Maria olhou-me e, depois de parecer muito pensativa,

disse-me:

– Bom, senhorita Anna, espero, então, que não seja eu a

pessoa que irá lhe trazer aborrecimentos. Pois sinto lembrá-la:

é hoje o dito baile que a sua madrasta dará em homenagem ao

conde. Mas, pela sua súbita alegria, vejo que se esqueceu

disso.

– Não... Mas estava tentando pensar em coisas mais

agradáveis.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 338 -

Comecei, então, a mordiscar os lábios. Meu plano seria

colocado em prática, finalmente. Por fim, perguntei à Maria:

– O vestido de minha mãe está pronto?

– Sim, como a senhorita pediu. Mas madame Hortência

enviou hoje mais cedo o que a senhorita havia lhe

encomendado.

– Sério? Hum... Terei que pensar em uma forma de me

livrar dessa encomenda.

– O que a senhorita fará? Pois o vestido de sua mãe está

em meu quarto, guardadinho para que ninguém desconfie de

nada.

– Ainda não sei, mas todos têm que pensar que irei ao

baile com o vestido que encomendei.

– Quanto a isso, a senhorita não precisa se preocupar.

Sabe que sei ser discreta.

– Sim, Maria, sei que posso sempre contar com sua

fidelidade. Agora desça e espere que todos saiam. Então, traga-

me o vestido de minha mãe.

Maria já estava saindo quando ouvimos barulhos

vindos de fora da casa. Olhamo-nos com espanto. Corremos as

duas para a janela. Ao olharmos para baixo, vimos um grande

movimento de pessoas desconhecidas. Havia um grande

alvoroço de criados, correndo de um lado a outro do jardim.

Eles traziam inúmeras peças de coração para dentro do grande

salão. Minha madrasta dava de braços e, ao ver-nos

debruçadas à janela, levantou o nariz e entrou como uma

abelha enfurecida. Eu e Maria nos olhamos novamente e

começamos a rir dos trejeitos de menina mimada da condessa.

Ela estava se sentindo a dona do mundo só porque organizava

o baile do conde.

Adriana Matheus

- 339 -

Depois que Maria desceu para ajudar a condessa e

cumprir o que eu lhe havia pedido, voltei para a janela para ver

onde daria aquela confusão.

Eu estava faminta naquela manhã. Havia me esquecido

de pedir à Maria para trazer-me algo de comer. Mas, quando

ela finalmente voltou, trazendo nas mãos a encomenda que eu

havia feito à madame Hortência, trouxe consigo algo que, com

certeza, nem em meus pesadelos mais temerosos eu haveria de

encomendar: a condessa Del Prat. Ela, ao ver-me, foi logo

dizendo:

– Então, resolveu atender seu pai como uma menina

boazinha?

– Não é o que todos esperam? Que eu me comporte

como uma futura condessa e pague as dívidas da família!?

– Pode enganar o tonto do seu pai, mas sei que está

planejando algo. Saiba que estou de olho na senhorita. Não a

deixarei sozinha um segundo sequer. Sei que vai tentar fazer

algo para se livrar do compromisso que lhe foi imposto.

– E o que eu poderia fazer? Como a senhora mesmo

disse, estará de olho em mim. E, para falar a verdade, espero

que fique mesmo de olho em mim, porque esta noite a senhora

irá colher o bom resultado dos frutos que plantou a vida toda,

condessa.

– Não se atreva a estragar o baile de apresentação que

estou preparando para o conde.

– Não se preocupe. Não farei nada que pareça

escandaloso ou que venha a desonrar a sua conduta. Também

não pretendo fugir, se é o que está pensando, e muito menos

desfazer o compromisso mediante todos os convidados. Mas

de uma coisa eu tenho certeza.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 340 -

– E o que é?

– Estarei presente e serei a pessoa mais comentada de

todo o baile. Desta vez, ninguém reluzirá além de mim.

A inveja relampejou nos olhos da condessa. Ela, depois

de andar pelo quarto todo, olhou para o embrulho em cima da

minha cama e perguntou.

– Esse é o seu vestido?

– Sim, é. Ele é o vestido que me fará reluzir esta noite

perante todos os olhares. Serei a mulher mais cobiçada e linda

do baile. E, por certo, depois que o conde me vir dentro deste

vestido, pedir-me-á em casamento imediatamente.

A mulher olhava para o embrulho, parecendo

enlouquecida. De repente, ela deu um salto, pegou-o e saiu

correndo com o pacote nas mãos. Eu, como tinha que parecer

aborrecida pelo fato ocorrido, fingi correr atrás dela, que se

escondeu em seu quarto, trancando a porta. Mais uma vez,

fiquei pensando em como até mesmo os nossos inimigos são

nossos aliados. Sacudi a cabeça e ri muito, sozinha em meu

quarto.

Quando Maria subiu escondida, trazendo o verdadeiro

vestido que eu usaria no baile, ela disse:

– A condessa esta lá embaixo e parece-me a mulher

mais feliz do mundo. O que foi que a senhorita disse a ela?

– Não disse nada, Maria. Foi ela quem veio ao meu

quarto, tentando descobrir o que eu faria para atrapalhar o baile

do conde. Tentei dizer-lhe que não faria nada. Só insinuei que

seria a mulher mais cobiçada da noite. Acho que ela não

resistiu e roubou meu vestido.

– O quê? Ela roubou o vestido que a senhorita mandou

madame Hortência fazer?

Adriana Matheus

- 341 -

– Sim, aquele mesmo. Agora imagine como ela ficará

encantadora dentro daquele modelito exclusivo que madame

Hortência fez.

Eu e Maria rimos a valer, pois sabíamos que um

modelo exclusivo vindo de madame Hortência só poderia

resultar em extravagância e mau gosto - o que era mesmo o

feitio da condessa.

Maria, depois de me entregar o vestido de minha mãe,

saiu do meu quarto. Coloquei-o dentro de um baú, com muito

cuidado para não o amassar. Sentei-me à frente da penteadeira

e fiquei examinando qual penteado usaria e qual joia me cairia

melhor para usar com o vestido. Optei por um rico colar com

uma única pedra de rubi, ao meio, e brincos e anel com a

mesma pedra.

Horas depois, alguém bateu à porta, tirando-me daquele

devaneio de vaidade. Mas o toque não era o mesmo que Maria

costumava dar. Então, respondi:

– Entre, por favor!

Era a copeira e, depois de olhar por todo o quarto,

parecendo querer bisbilhotar, disse:

– O conde está lá embaixo, no salão, e solicita a sua

presença, senhorita. Mas, se preferir, digo-lhe que a senhorita

não está se sentindo muito bem.

Ela, com certeza, estava ali para me investigar. Mas

soube como lidar com ela, pois mal podia ouvi-la.

– Segundo me consta, estou ótima. Então, diga ao

senhor conde que estarei pronta em alguns minutos.

A mulher saiu cuspindo marimbondos. No mínimo,

esperava uma resposta negativa da minha parte para poder

contar à condessa. Ao sair, tranquei a porta do meu quarto,

para evitar um contragosto. Encontrei com Maria no corredor.

– Então, como estou, Maria?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 342 -

– Está linda, linda, como sempre, senhorita Anna. Só

acho que é muito feno para pouco cavalo.

– Também acho, Maria. Aliás, a senhora está sendo

muito gentil ao referir-se ao senhor conde como um cavalo.

Crápula seria a palavra.

– Meu Deus, senhorita, não deve falar assim do seu

futuro esposo. Ele é um homem tão íntegro e... bonito e gentil.

- ironizou.

– Oh, sim! Íntegro a ponto de pagar a dívida do meu

pai cobrando um juro mínimo. Ou seja: eu, por exemplo.

Bonito como um demônio, que se esconde atrás do rosto de um

anjo. E gentil, por certo, pois espera a hora certa de dar o bote,

como uma cobra.

Maria deu um sorriso, sacudindo negativamente a

cabeça, parecendo entender o que eu havia dito. Ela me

acompanhou até o salão, onde o conde e meu pai estavam. Ao

me verem, levantaram-se e cumprimentaram-me. Não deixei

lhes transparecer qualquer sentimento que demonstrasse que

eu estava aborrecida e magoada. Dei-lhes um sorriso largo e

estiquei a mão para meu futuro esposo, que veio em minha

direção como um cordeiro manso e tolo. Meu pai ficou

boquiaberto porque, com certeza, já estava com a cabeça cheia

de caraminholas, impostas por sua estimada esposa. Então,

usando de um fingimento improvisado, ele falou:

– Demorou, minha filha. Pensei que não desceria a

tempo de ver o conde, pois ele já estava de saída.

– Oh! Com certeza o senhor conde entenderá. Ele sabe

como as mulheres são. Ficamos horas na frente de nossos

espelhos. Afinal, não poderia aparecer feia como um

espantalho na frente de tão garboso senhor.

Adriana Matheus

- 343 -

Senti que o conde ficou envaidecido. Atendeu-me com

um sorriso falso, como era de se esperar de um hipócrita como

ele. Aproximei-me de meu pai e sussurrei ao seu ouvido:

– O senhor não achou que eu lhe daria esse gostinho,

não é?

Meu pai engoliu seco e, por certo, se eu estivesse

sozinha com ele, estaria morta mais cedo. O conde parecia não

ter percebido nada, pois, no mínimo, pensou que eu estava

cumprimentando meu pai com um gesto carinhoso.

– Nunca, em hipótese alguma, pareceria um

espantalho. E feiura, essa com certeza correu bem longe da

senhorita.

– Soube que o senhor queria falar-me. É algo sobre o

baile? - desconversei de imediato, pois não queria dar outro

rumo àquela conversa.

– Sim. Quero falar-lhe, mas não é nada sobre o baile. É

sobre nós dois.

Seu tom de voz havia mudado e era quase um sussurro.

O conde prosseguiu com aquela conversa tediosa:

– Esperaria a vida toda pela senhorita. Se não se

importar, gostaria de pedir a permissão de seu pai para poder

falar-lhe em particular.

Imaginei do que se tratava, mas tinha que me fazer de

rogada. Então, respondi:

– Creio que não sou o tipo de dama que tenha

conversas particulares com um cavalheiro. Mas o senhor é um

homem de modos refinados. Creio que não haja nenhum

problema.

Ele continuou a se sentir muito lisonjeado e mantinha

aquele sorriso traiçoeiro e enigmático no rosto. Meu pai, por

sua vez, respondeu:

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 344 -

– Tenho certeza de que o conde não lhe fará nenhum

mal. Não vejo porque não os deixar a sós.

Olhei para meu pai nos olhos e disse:

– O senhor tem razão, meu pai. Que mal o senhor

conde poderia me fazer?

Fechei o semblante, para demonstrar minha

desaprovação diante daquela situação. Por fim, dei o braço ao

conde e fomos caminhar pelo jardim. Lá, delicadamente soltei

o seu braço e, voltando-me para ele, disse:

– Então, senhor conde, o que de tão importante e

sigiloso terá o senhor para me confidenciar?

Ele deu um sorriso enigmático.

– Não vou me fazer de rogado - mesmo porque sei da

sua perspicácia e inteligência aguçada. Confesso que foi uma

das qualidades que muito me atraíram na senhorita.

– Não faça rodeios, senhor conde. Não conseguirá me

conquistar com seus elogios. Conheço muito bem minhas

qualidades.

– É sobre exatamente isso que estou falando. Então,

creio que a senhorita já deva saber que tenho um acordo com

seu pai. Também creio que a senhorita já seja sabedora que sua

dívida era muito alta. Bom, resumindo esses fatos: se o senhor

seu pai tivesse colocado todas as propriedades que possui,

mais os escravos e as joias de sua família, à venda, ainda assim

não saldaria a dívida que tinha. Como um cavalheiro que sou,

após ficar sabendo que seu pai tinha duas mulheres inocentes

em casa, quis imediatamente ajudá-lo. Paguei, assim, todas as

dívidas de seu pai, senhorita Anna. E ainda lhe emprestei uma

grande soma em dinheiro para que pudesse manter-se

dignamente. Não quero que a senhorita se espante: minha

família é muito conhecida por termos um coração generoso.

Além do quê, não poderia sair em total prejuízo: embora agora

Adriana Matheus

- 345 -

eu seja o dono de todas as propriedades de seu pai, necessitava

uma esposa que me desse um herdeiro. Portanto, quero que

saiba de meus próprios lábios que a senhorita agora me

pertence.

Depois de ouvi-lo, indignada com tamanha audácia e

falta de escrúpulo, disse:

– O senhor está sendo indelicado e vulgar. Mas não me

surpreende: desde o primeiro momento em que o vi, soube que

estava diante de um crápula. Na verdade, não sei quem é pior:

o senhor, meu pai ou a condessa. Como o senhor mesmo acaba

de mencionar, a dívida é do meu pai com o senhor. O senhor,

de forma alguma, tem o direito de me incluir no pagamento

dela. Não sou tão esperta como o senhor pressupõe. Caso

contrário, já teria descoberto uma forma de escapar do senhor.

Ele deu uma gargalhada diabólica, falando

sarcasticamente:

– Disse que a senhorita era inteligente, mas não disse

que seria tão fácil se livrar de mim.

– O senhor é o demônio, tenho certeza disso. Não há

nada neste mundo que me fará mudar de opinião. Saiba, senhor

conde, que serei o pior pagamento que o senhor já recebeu em

sua vida.

– Gosto da sua audácia. Saiba que isso me excita.

Gosto de mulheres com senso de humor. Principalmente, gosto

quando elas ficam arredias.

– O senhor é um homem doente, conde. Embora eu

ainda não saiba o seu segredo, em breve vou descobrir. Aí,

com certeza isso será um motivo para o senhor desfazer seu

acordo como meu pai.

Novamente ele sorriu, dizendo:

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 346 -

– Se eu fosse a senhorita, não me preocuparia em

descobrir o segredo dos outros, e sim em saber o que uma

pessoa pode fazer tendo em mãos um segredo como o seu.

– Não tenho segredos, senhor conde. Minha vida é um

livro aberto.

Ele se aproximou, lentamente, e disse:

– E se eu disser que tenho sob meu poder certo diário

que pode incriminá-la totalmente? Essas coisas, vistas pelos

olhos da Inquisição, poderão ser motivo para que a senhorita

seja condenada como bruxa - principalmente se a pessoa que

entregar o objeto for de grande influência política e financeira.

Tentei esbofeteá-lo, mas ele me segurou, dizendo:

– Não faça isso, senhorita. Não fica bem para uma

jovem de bons modos violentar seu futuro cônjuge.

– Como foi que o senhor conseguiu esse diário? Como

foi que o senhor conseguiu invadir meus aposentos sem que eu

percebesse ou acordasse?

– Isso foi muito fácil. Fiquei sabendo que a senhorita

sempre toma algum tipo de chá que a sua governanta lhe

prepara à noite. Então, tratei logo de fazer amizade com a sua

copeira, que é uma mulher muito persuasiva financeiramente

falando. Pedi a ela, então, que misturasse às ervas do consumo

da sua casa algumas das minhas ervas, cuja função é fazer

adormecer. A senhorita tomava sem perceber a diferença.

Então, mais uma vez, usei meu poder de persuasão com a sua

madrasta - que, além de bela, é extremamente carente de

afeições masculinas. Com isso, consegui que ela me desse a

chave do portão de sua residência. Assim, eu subia durante a

noite para ter com ela e, depois, entrava em seu quarto para

admirá-la. Em seguida, descia pela trepadeira. Confesso que

foi tentador vê-la seminua, deitada indefesa em sua cama.

Sabe, senhorita, cheguei a esta cidade muito entediado,

Adriana Matheus

- 347 -

confesso. Mas descobri que aqui, apesar de ser um pequeno

condado, está sendo para mim muito prazeroso e proveitoso

também. Que mais posso querer? Tenho uma linda jovem

como minha futura esposa, e sua fogosa e exuberante madrasta

como minha consorte.

Fiquei perplexa ao ouvi-lo. Cheguei a cambalear. Meu

estômago remexia-se em sinal de desprezo. Minha cabeça

rodopiava como o vento. Se eu fosse uma cobra, tê-lo-ia

picado. Por fim, disse-lhe, com a minha voz trêmula:

– Como o senhor consegue ser tão desprezível? Como

pode querer casar-se comigo, sabendo que o odeio mais do que

tudo neste mundo?

– Não me importo com o seu desprezo, muito menos

com o seu ódio. Afinal, terei o que me pertence e que é meu

por direito.

– Jamais me sucumbirei aos seus caprichos. Juro que

descobrirei o seu segredo.

– Até lá, lembre-se de que sou o dono do seu segredo.

A qualquer momento, mesmo a contragosto, posso entregá-la à

Inquisição, acusando-a de práticas ilegais de bruxaria. Pense

bem, senhorita Anna. É melhor facilitar as coisas para todos.

Assim, será prazeroso para ambas as partes.

Não respondi a mais nenhuma palavra que o conde me

dizia. Naquele momento, estava me sentindo totalmente

impotente e indefesa. Segui em direção à minha casa. O conde

seguiu-me, com um semblante que era só satisfação e vitória.

Quando finalmente entramos em casa - pois pareceu ser

uma eternidade aquele curto trajeto ao lado do conde-, chamei

por Maria. Meu pai, ao ver-nos, perguntou-nos:

– E então, o que conversavam afinal?

Fui a primeira a responder-lhe:

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 348 -

– Creio que nada de que o senhor já não esteja ciente,

meu pai!

O conde retrucou:

– Senhor Juan, creio que sua filha está um pouco

encabulada. Então, serei o portador de tão boas notícias. Eu e

sua filha estamos noivos! Isso quer dizer que o baile dessa

noite será não só para a minha apresentação, mas também para

anunciar o nosso noivado.

Aquele homem repulsivo estava me deixando sem

saída. Quis fugir, mas não poderia deixá-lo perceber que

estava insatisfeita. Ele precisava acreditar que me tinha nas

mãos, até que eu pudesse me livrar daquela chantagem.

Meu pai parecia eufórico com a notícia. Mandou logo

abrir um champagne. Maria, que havia vindo atender ao meu

chamado, ficou extasiada, em pé, olhando-nos, sem entender

absolutamente nada. A condessa apareceu e veio

cumprimentar-nos com falsidade. Tive que aparentar

felicidade. Precisava pensar rápido. Depois do brinde, o conde

despediu-se, prometendo fazer uma surpresa no baile daquela

noite. Vindo daquele monstro, não quis nem imaginar o que

seria. Por fim, vendo que estavam todos satisfeitos, puxei

Maria pelas mãos e disse-lhes:

– Se me derem licença, preciso descansar para estar

bem disposta mais tarde. Não quero que meu futuro marido me

veja com olheiras durante a nossa festividade. Quero, também,

agradecer a minha querida madrasta por ter se empenhado

tanto em organizar meu baile de noivado dessa noite. Estou

muito feliz porque, afinal, esse baile agora também é meu, não

é, meu querido conde?

– Sim, minha amada noiva. Não só o baile, mas tudo o

que dentro dele estiver.

Adriana Matheus

- 349 -

A condessa parecia que iria explodir de tanto ódio, mas

não disse uma só palavra. Ela teria que engolir que havia

arrumado tudo aquilo para o meu noivado com aquela besta

humana.

Dei um beijo na testa de meu pai, fingindo afeto e

obediência. Não poderia deixar de dar aquele tapa de luva. A

condessa, parecendo não aguentar a cena, subiu em disparada

aos seus aposentos, sem dizer uma palavra a ninguém. Um

inimigo eu havia vencido com a mesma moeda. Ainda me

faltavam dois.

Quando finalmente saí, carregando Maria pelas mãos e

deixando para trás aqueles dois leiloadores da vida humana,

pude ouvir o conde falando com meu pai:

– Sua filha é como um potro indomado, senhor Juan.

– É, eu sei. Puxou o gênio da mãe.

– Mas não tenho pressa. Colocá-la-ei do meu jeito.

Disso o senhor não tenha dúvidas.

– Vá com calma, meu caro amigo. Ela ainda é só uma

menina.

– Sim, eu sei. Mas meninas se transformam em

mulheres, não é mesmo?

Os dois comemoraram com sonoras gargalhadas. Era

detestável a maneira como se referiam a mim. Maria seguiu-

me, mas quase não conseguiu alcançar-me, pois acelerei os

passos no corredor. Ao chegar a meus aposentos, caí sobre a

cama, deixando todo aquele horror transportar-se para o peso

em que se encontrava meu corpo. Maria, ao entrar e ver-me de

bruços na cama, perguntou-me curiosa, com ar de indignação:

– O que houve, senhorita Anna? Não pude ouvir o que

conversavam, pois falavam muito baixo.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 350 -

Eu estava enfurecida e, depois de ranger os dentes,

virei-me para Maria:

– Argh! Foi o conde, Maria, que pegou o diário de

minha mãe. Ele agora me tem em suas mãos. Também era ele

quem entrava em meus aposentos durante a noite. A copeira

colocou ervas entorpecentes no meio das suas ervas. Ele a

pagou para que fizesse esse serviço sujo. É por isso que eu não

o via invadindo meu quarto à noite. A condessa entregou-lhe

as chaves do portão de entrada. Eles são amantes; o conde

mesmo me contou isso. Depois que ele visitava a condessa em

seu leito, saía e entrava em meus aposentos, descendo, então,

pela trepadeira. Sabe Deus o que aquele doente fazia comigo

enquanto eu dormia.

– Minha Nossa Senhora de Guadalupe! Isso é muito

sério, senhorita Anna. Esse homem é muito perigoso. Ele

chega a ser diabólico. Que Deus tenha pena da senhorita. Mas

uma coisa me intriga:

– E o que é, Maria?

– Como esse peste pode ter entrado em seu quarto, se

ele e seu pai chegaram juntos da Inglaterra?

– Não, Maria. Esse homem sem escrúpulos disse ao

meu pai que ficaria um ou dois dias na Inglaterra para resolver

negócios. Mas ele não fez isso. Sabendo que meu pai ainda

faria várias paradas no caminho para resolver os próprios

negócios, ele deixou a Inglaterra no mesmo dia para não

perder tempo. Foi assim que esse demônio chegou aqui antes

do meu pai. Quando meu pai chegou aqui, o conde demorou

quatro dias a aparecer na cidade.

– Santo Deus, minha filha! Esse homem tem pacto com

o demo, pois parece fazer tudo de caso pensado.

– Sim. Agora tenho que trancar minha porta sempre. E,

com todo perdão, Maria: não tomarei mais os seus chás.

Adriana Matheus

- 351 -

– Não se preocupe, senhorita. Não levarei como uma

ofensa, pois também tomei do veneno do conde.

– Maria, aconteça o que acontecer, quero que saiba que,

mesmo que pareça ser o pior, o que farei será melhor do que

ser vendida. Nunca me darei por vencida. Não serei objeto de

pagamento. Não sou escrava e, mesmo se o fosse, tenho

sentimentos e sangro como todo mundo.

– Senhorita Anna, saiba que sempre estarei do seu lado

para o que for necessário. Mas, às vezes, acho que deveria

fazer o que lhe mandam. Será melhor e a senhorita não sofrerá

tanto.

– É melhor ceder ao egoísmo do meu pai e perder a

minha liberdade? Nunca. Por que temos que mudar por causa

das pessoas e aniquilar a nossa essência? Se eu fizer isso, será

como usar viseiras para olhar sempre na mesma direção.

Suponhamos que eu aceite os cortejos do conde e ceda às

sandices de meu pai. Ele paga a dívida? Sim. Mas fará outras

mais. Não poderei ser vendida outras vezes. Ele nunca

aprenderá se tudo for do jeito que ele quer. Não sou mulher de

me render a um homem sem amor.

– Mas se a senhorita não fizer o que lhe impõe, seu

destino será cruel.

– Meu destino não pode ser mais cruel do que ter que

passar a vida toda ao lado de um homem vulgar, que me

trocará por uma esposa mais jovem assim que enjoar de mim.

Tenho muitos sonhos, Maria, e sei que nunca os realizarei.

Então, que seja o que me foi imposto por Deus, e não pela

vontade de um homem comum.

– Nunca conheci uma mulher tão destemida e com

tanta determinação quanto a senhorita. Lembrar-me-ei da

senhorita pelo resto de minha vida. - deixou as lágrimas

rolarem em suas faces, emocionadamente.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 352 -

– Não chore, Maria! Preciso de terra seca para pisar.

Se a senhora chorar, afundar-me-ei no barro da sua

desesperança.

– Desculpe-me, senhorita Anna. Foi inevitável. Mas só

em pensar que ficarei um dia sem a sua companhia, já me dá

um aperto no coração...

– Não pense assim, Maria. Sei que ainda me olha como

se eu fosse uma criança. Mas cresci, graças à senhora e a tudo

que tenho aprendido com a tradição. Agora desça, por favor:

prepare-me um banho e, se possível, algo para comer, pois

ainda não comi nada desde a manhã. Por favor, se puder,

prepare uma emulsão para colocar na água do meu banho.

Quero estar perfeita esta noite. Agora vou tentar dormir um

pouco, pois não quero parecer cansada para a hora do baile.

Não posso dar a eles o luxo de me verem com olheiras.

Depois que Maria saiu porta afora, fui para a janela

meditar, contemplando a natureza. Vi quando meu pai saiu de

carruagem com o conde. Os dois pareciam estar alcoolizados.

Em um instante, perdi-me olhando Joseph. Vi quando Maria,

carinhosamente, levou-lhe o almoço. Os dois conversavam e

sorriam, como se o mundo tivesse certo toque de magia. Então,

finalmente percebi que tinha algo muito mais importante a

fazer do que me preocupar com as ninharias que perturbavam

minha mente. Soltei o coque, tirei os brincos e desci ao

encontro daquele casal perfeito. Maria, ao ver-me, afastou-se

de Joseph, dizendo:

– Santo Deus, menina! Não disse que ia tentar dormir

um pouco? Eu ainda nem tive tempo de preparar-lhe algo para

comer.

Adriana Matheus

- 353 -

– Não tem nenhum problema, Maria. Só vim até aqui

para repousar ao sol. Quero ficar com uma cor rosada no rosto.

Veja: trouxe até um manto para me deitar.

– A senhorita vai deitar-se aqui fora? Não vai querer

comer nada?

– Pode me trazer aqui fora mesmo. Vou ficar aqui, sim,

e tentar dormir debaixo daquela árvore, pois ela me traz boas

energias.

– Que seja, então, como a senhorita deseja. - Maria

saiu.

Eu estava tranquilamente estendendo a manta no

gramado quando ouvi a voz de Joseph chamando-me:

– Senhorita Anna!

– Sim, Joseph. – disse-lhe, virando-me para atendê-lo.

– Consegui sementes de girassóis e, como Maria

contou-me que a Senhorita gosta muito desta planta, gostaria

de saber onde quer que eu plante as sementes.

– Se não for muito, quero que o senhor me dê um

pouco dessas sementes, pois quero levá-las comigo. O restante

pode plantar onde bem desejar.

– Como assim? A senhorita Anna está pensando em

nos deixar? Acaso irá fazer outra viagem com Maria?

– Não, Joseph querido. Em breve todas as suas

perguntas serão respondidas. Por hora, apenas faça o lhe pedi.

– Sim, senhorita Anna. Perdoe-me pela intromissão.

Maria retornou, trazendo-me um pedaço de pernil e um

copo de suco de melão. Enquanto eu estava saboreando o meu

quase desjejum, Maria e Joseph continuavam conversando

afastadamente de mim. Embora eles estivessem entretidos um

com o outro, eu os observava atentamente. Então, percebi que

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 354 -

era a hora de intervir por aqueles dois que, a meu ver, eram

feitos um para o outro.

Terminando, então, de saborear minha refeição,

levantei-me e caminhei em direção a eles, que se afastaram

com a minha presença. Então, disse-lhes:

– Sabiam que os senhores formam um belo casal?

Maria corou e Joseph abaixou a cabeça, sem graça.

Porém, prossegui:

– Ora, ora! Porque ficaram sem graça? O amor é isso:

estar bem com quem nos damos bem. Por que não pensam em

se unir, já que ambos são sozinhos e desimpedidos? Nunca

pensaram nisso? Vou deixá-los pensando sobre o assunto.

Disse isso percebendo que os dois não conseguiam

dizer uma palavra sequer. Em seguida, saí, voltando para

minha árvore. Não demorou muito para que o cansaço me

levasse a sono profundo.

Tive um sonho muito estranho: uma grande ave

pousava sobre o meu corpo nu e levava minha alma,

serenamente, para um lugar que mais parecia o paraíso. Devo

ter ficado ali por muitas horas, pois acordei com Maria

sacudindo-me e pedindo para levantar-me. Senão, atrasar-me-

ia para o baile. Abri os olhos, meio atordoada, e fui logo

dizendo:

– Hã? O que houve, Maria?

– Precisa acordar, senhorita. Já é tarde e tem que se

banhar e se vestir para o baile.

– Nossa, dormi muito, não foi?

Contei à Maria sobre meu sonho estranho. Ela o

traduziu, dizendo que se tratava de uma ave de rapina - o que

queria dizer que alguém do meu convívio estava tentando me

seduzir. Por fim, Maria insistiu:

Adriana Matheus

- 355 -

– Levante-se, minha filha. Seu banho já está pronto,

como me pediu. Coloquei rosas vermelhas, que é para abrir o

seu caminho do amor, e jasmim com alfazema, para aromatizar

a água.

– Que bom! Assim me apaixono de vez pelo conde, que

já está quase casado com meu pai.

– Hã? Não entendi, filha. O que quis dizer dessa vez?

– É que os dois estão tão unidos - por um elo que

julgam ser eu - que só faltam confirmar a união entre si. Fico

tão emocionada que posso chorar agora mesmo. Mas creio

que, se pararem para pensar, o verdadeiro elo entre eles é a

condessa.

Maria sorriu, mas me preveniu:

– Não deixe que a ouçam falando assim, ou acharão

que a senhorita não é uma pessoa normal. Pois pensarão que a

senhorita está falando da união entre dois homens.

– E tenho que ser normal? Não me importa o que

digam a meu respeito. O importante é que a senhora tenha

entendido o que disse. E se meu pai e o senhor conde não

querem que boatos circulem em torno deles, então que parem

de serem vistos juntos como um casal de namorados. Pois hoje

mesmo, mais cedo, vi-os bêbados, andando abraçados em

direção à carruagem. Se algum inquisidor os tivesse visto, por

certo seriam chamados de sodomitas.

– Só não deixe seu pai ouvi-la falando desse jeito.

Senão, ele...

Interrompi Maria:

– Senão, ele pode o quê? Pode bater-me, ofender-me,

ignorar-me, ou quem sabe coisa pior? Maria, ele já fez tudo

isso e mais um pouco. Só está faltando cumprir o resto da

missão.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 356 -

– Mas fico preocupada com o que pode lhe acontecer.

Seu pai, se a ouvir falando dessa forma, pode trancá-la em seus

aposentos ou enviá-la para bem longe desta casa - como, por

exemplo, para um manicômio, onde a senhorita pode ser

torturada constantemente por ser considerada louca.

– Nossa, jura? Acredite: ele jamais faria isso. Pode ser

que, depois do baile, ele me desse alguma punição. Mas antes?

Isso seria sonhar alto demais. Maria, Maria... Só está assim

porque sua cabeça está confusa com as coisas que lhe falei a

respeito de Joseph. Sinto muito se a fiz ver o que já está na

frente dos olhos há muito tempo e que a senhora, por estar

sempre tão ocupada com os afazeres e comigo, não se dava ao

luxo de enxergar. A senhora está amando... E não tem que ter

vergonha disso. Então, pare de usar subterfúgios para ignorar o

amor que está sentindo por Joseph. Maria, a senhora está

fugindo de si mesma.

– Não deveria ter falado comigo daquele jeito na frente

de Joseph. A senhorita caçoou de mim. O que ele irá pensar

agora?

– Não! Jamais tive a intenção de caçoar da senhora.

Maria... A senhora está amando e está sendo amada. Só não

consegue perceber isso por estar relutando consigo mesma.

Acha-se velha, gorda e, na sua cabeça, o tempo já passou, não

é verdade?

Ela confirmou positivamente com a cabeça. Prossegui:

– Sei que a senhora está realmente preocupada comigo.

Mas, conhecendo-me como me conhece, sabe que não vou

parar de falar o que penso das pessoas ou do que quer que seja.

Então, não fique usando o pretexto de que meu pai irá me

punir por causa das minhas ideias, pois sabemos que isso será

inevitável futuramente. O que é importante agora é a sua

felicidade com Joseph.

Adriana Matheus

- 357 -

– Imagine se uma mulher na minha idade tem o direito

de amar de novo!

– E por que não? Não vejo nada demais em duas

pessoas maduras encontrarem entre si o verdadeiro amor. A

senhora está viva e ainda tem o direito de amar muito. Vá atrás

do que lhe pertence, mulher, e seja feliz. Faça isso sem olhar

para trás, sem medo ou preconceito. E principalmente: sem

pensar em mim uma única vez na sua vida. Esqueça a questão

de que Joseph irá pensar mal da senhora. Na verdade, ele só

está esperando que a senhora lhe dê uma chance para que ele a

faça feliz. Segure o seu homem! E nem pense em mim. Sabe

muito bem que nesta casa a minha missão já acabou.

Ela enxugou uma lágrima, pronta a rolar, e abraçou-me.

Em seguida, respondeu-me:

– A senhorita às vezes fala como uma mulher muito

experiente. Se eu não a conhecesse, ficaria confusa.

– Como todas nós, mulheres, quando se trata de algo

relacionado ao coração. As experiências que trago são de

minhas vidas passadas. E me diga só uma coisa: estou errada?

A senhora tem alguma coisa a perder? Vá viver com sua irmã,

case-se e seja feliz enquanto pode. Sabe que ela lhe está

esperando. Também será bom para Joseph. Afinal, ele já está

cansado de tanto trabalhar.

– E se ele descobrir que sou uma bruxa e repudiar-me?

– “E se? E se?”. Ora, Maria, deixe disso. Joseph é um

homem maduro e experiente. Vai é gostar daquela terra toda

para plantar e cuidar. Agora devemos entrar, pois tenho que

me preparar para a primeira parte do meu plano.

– Como assim? Que plano é esse?

– Sinto muito, Maria, mas não posso dizer-lhe. Peço

apenas que confie em mim.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 358 -

Ela, então, não perguntou mais nada a respeito. Ao

entrarmos, demos de cara com a famigerada condessa, afoita

com o restante dos preparativos, mas fingiu nem ter-nos visto.

Virei-me para Maria, perguntando-a se madame Hortência

havia entregado também os novos vestidos.

– Sim, senhorita Anna. Fiquei até sem jeito de ver tanta

coisa bonita.

– Ah! Então coloque o mais bonito esta noite e vá ter

com Joseph.

Ela saiu completamente corada, sem nada mais a dizer.

Meu banho já estava pronto, esperando-me. Comecei,

então, a despir-me serenamente. Toquei a água com o dedão

do pé e, finalmente, relaxei meu corpo naquele líquido

purificador. Fechei os olhos e ouvi quando a condessa entrou

na ponta dos dedos e pegou a chave de minha porta, trancando-

me por fora. Sorri, pois já estava esperando que ela fizesse tal

artimanha infantil. Ela sabia que, se eu não comparecesse ao

baile, meu pai ficaria furioso e punir-me-ia. Sabia, também,

que ele não faria escândalos e não subiria naquela noite ao

meu quarto - o que lhe daria tempo de voltar à cena do crime

para colocar a chave em seu devido lugar enquanto eu dormia.

Óbvia demais e pouco esperta para mim. Terminei o meu

banho, deitei-me na cama e fiquei lendo o restante do meu

livro, enrolada em um roupão de seda lilás. Maria bateu à

porta.

– Senhorita Anna, está tudo bem?

– Sim, querida Maria, está. Tudo está como eu havia

previsto. E você, já está pronta?

– Ainda não, mas já irei me aprontar.

– Ótimo! Joseph está lá no fundo, perto da floreira.

– Vou terminar meus afazeres. Tem certeza de que

conseguirá sair daí?

Adriana Matheus

- 359 -

– Claro! Assim que o conde chegar, farei a minha

entrada triunfal.

– Se é assim, descerei. Veremo-nos amanhã.

– Obrigada, Maria, mas acho que ainda hoje nos

veremos.

Levantei-me da cama e fui arrumar meus cabelos. Fiz

um lindo coque e puxei algumas mexas. Usei um conjunto de

rubis que já estava separado. O mais difícil foi o espartilho,

mas consegui, com muito custo. Fiquei na janela, observando

os convidados chegarem um a um. Já eram oito horas quando o

conde resolveu dar o ar de sua graça. A condessa e meu pai

estavam no hall de entrada, recebendo os convivas mais

solenes. Ela olhou para cima e sorriu, como quem estava

vingada. Entrei e, calmamente, coloquei meu vestido. Vesti as

luvas pretas, também de renda, e ouvi quando a condessa, do

lado de fora da porta, chamou-me:

– Anna, seu pai pediu-me para vir apressar a senhorita.

Mas é uma pena, não é? Porque vou dizer a ele que não irá

descer. Que está furiosa e que quase me agrediu. Agora, se me

der licença, vou para a minha festa. Que pena que você não

poderá ver a cara de aborrecimento dele... Mas tenho certeza

de que verá amanhã. Durma bem, minha filha.

Não pude ver a face dela, mas sabia que estava rindo da

suposta situação que ela pensava ter causado. Esperei que ela

descesse as escadas para terminar de me vestir. Finalmente,

depois de me arrumar, vesti o vestido negro de minha mãe.

Olhei-me no espelho para ver como tinha ficado: perfeito. Era

um vestido negro todo de renda, com pequenas lantejoulas,

que realçavam ainda mais a exuberância do tecido. Sua saia era

muito rodada, pois tinha sete véus, um sobre o outro. A blusa

deixava os ombros à mostra. Uma pequena rosa negra de

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 360 -

veludo salientava-se no meio do busto, prendendo o babado de

renda.

Depois de terminar aquele ritual de vaidade, fui à

mesinha de cabeceira e peguei a chave de bronze que tinha

mandado o ferreiro fazer. Abri a porta e, elegantemente, segui

pelo corredor em penumbra. Do alto da escada, pude ver

muitos convidados. Minha vontade era de sair correndo para o

meu quarto, mas era tarde demais: um criado avisou que eu

estava descendo. Todos olharam para cima, boquiabertos. Meu

pai e a condessa, que usava o vestido que encomendei de

madame Hortência, ao verem-me vestida de negro com os

trajes de minha mãe, empalideceram imediatamente. Pareciam

ter visto um fantasma descendo as escadas. O sussurro foi

geral, e muitos disseram:

– Como ela se parece com Elizabeth!

Mediante o estado de catatonismo em que se

encontrava meu pai, o conde tomou a decisão de conduzir-me

para o meio do salão, estendendo-me a mão para que eu

acabasse de descer os degraus. Todos abriram alas para que eu

e o conde passássemos em meio aos convivas. Ele, então, fez

uma pequena observação:

– Fui informado de que a senhorita não estava disposta.

Juro que pensei que haveria de me fazer esta desfeita.

– Não estou compreendendo o que o senhor quer dizer

com isso. Por que, afinal, eu lhe faria uma desfeita? Creio que

temos um acordo, não é mesmo? Saiba que o senhor está me

ofendendo, pois não sou uma pessoa que volta atrás com a

palavra. Agora, responda-me, meu querido conde: quem foi a

pessoa maliciosa que lhe disse que eu faria uma desfeita dessas

ao meu futuro esposo?

Adriana Matheus

- 361 -

– Não sei ao certo o que está acontecendo nesta casa.

Mas, para mim, basta que a senhorita esteja aqui para firmar

seu compromisso comigo.

– Concordo plenamente com o senhor. E espero que,

daqui por diante, antes que o senhor ouça alguma maledicência

a meu respeito, procure saber primeiro se ela é verdadeira.

A valsa começou e o conde e eu demos início ao baile.

Preferi valsar em silêncio. Não queria muita proximidade com

aquele homem. Ao terminar a música, meu pai veio pedir ao

conde para dançar a próxima valsa comigo. Imediatamente, ao

ter-me em seus braços, ele me disse:

– Esse vestido era de sua mãe! O que é que está

tentando fazer, sua insolente? Saiba que amanhã será punida

por tentar desafiar-me.

– Ora, meu pai, não estou lhe entendendo! Por que o

senhor haveria de me punir, se lhe estou obedecendo

rigorosamente? O que tem demais eu usar o vestido de minha

mãe? Acaso viu um fantasma ou foi a sua consciência que lhe

está pesando? Sinceramente, o senhor confunde-me. Mas vou

enterá-lo dos novos acontecimentos dentro de sua casa: estou

usando este vestido velho de minha mãe porque a sua

queridíssima esposa roubou o meu e o está usando neste

momento. Então, vendo-me sem saída, decidi procurar por

toda a casa algo apropriado para usar no baile e não ter que

decepcioná-lo com a minha ausência. Também quero preveni-

lo de que, a partir de hoje, firmo um compromisso com o

homem que comprou todas as suas propriedades. Sendo assim,

como ele mesmo disse, como tudo o que existe dentro dessa

casa, também pertenço a ele. Então, ressalto que o senhor não

tem mais o direito de punir-me, pois não lhe pertenço mais.

O ódio nos olhos do meu pai era visível, mas ele teve

que se manter dançando comigo até que a valsa parasse. Os

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 362 -

musicistas deram uma pausa para que todos descasassem - o

que foi um alívio, pois meu pai estava apertando os meus

braços com muita força.

Quando a música cessou, o conde veio em minha

direção, dizendo:

– Pensei que teria que esperar por mais uma valsa até

poder tê-la em meus braços novamente. Ainda não tive a

oportunidade de dizer-lhe, mas a senhorita está lindíssima

neste vestido.

– Fico satisfeita em ver que agrado meu futuro esposo.

Espero poder sempre agradá-lo.

– Eu também, senhorita. Confesso que hoje, pela

manhã, deixou-me furioso. Mas, depois que estava só, percebi

que nunca havia conhecido alguém com tanta personalidade

assim.

– É mesmo? E houve outras mulheres que o senhor

também recebeu como pagamento?

– Senhorita Anna, estou tentando dizer-lhe que estou

completamente apaixonado. Na verdade, nunca senti nada

assim. Não deveria rejeitar meu sentimento. Pode ser perigoso.

–Para quem: para mim ou para o meu pai? O senhor

vem me falar de amor sob imposições e ameaças?

Francamente, deveria tentar outra estratégia. Essa não

funcionará comigo, conde. Aceitei selar esta noite um

compromisso com o senhor. Agora, não espere que eu leve

este compromisso adiante, e muito menos que eu lhe tenha

algum afeto. Não me vendi, senhor conde, e jamais faria isso.

– E o que a senhorita pretende fazer? Fugir? Creio não

ser uma boa ideia. Encontrá-la-ia facilmente.

– Não sou mulher de fugir.

Adriana Matheus

- 363 -

Meu pai se aproximou de nós e interrompeu aquela

conversa - que estava ficando perigosa -, perguntando

ironicamente:

– E então, estão se entendendo bem? Como está se

comportando a minha filhinha, conde? Está lhe dando muito

trabalho?

– De modo algum, senhor Juan. Sua filha consegue ser

encantadora até mesmo quando tenta não ser.

Um criado veio servir-nos uma taça de champagne.

Isso desviou um pouco a atenção de meus leiloeiros. O líquido

efervescente desceu pela minha garganta e logo me surtiu um

efeito entorpecente. De imediato, senti-me tonta. Alguma coisa

estava errada, porque minha visão começou a ficar turva.

Tentei manter-me ereta e pedi licença aos dois cavalheiros,

pois precisava tomar um pouco de ar. Fui, então, à varanda. As

imagens rodopiavam como mariposas na luz. Procurei por

Maria. Precisava dela imediatamente. Até mesmo a luz do luar

estava dando-me náuseas. Olhei para baixo e a vi conversando

com Joseph de mãos dadas, sentados discretamente em um

banquinho, na lateral do jardim. Embora ela estivesse plena de

felicidade, precisaria interrompê-la e pedir-lhe ajuda. Ela olhou

em minha direção e fiz-lhe um sinal. Não pude perceber se ela

havia entendido o meu pedido de socorro, pois uma mão

tocou-me o ombro. Logo que me virei, a condessa foi falando,

em um tom exasperado:

– Não sei o que fez para sair de seu quarto, mas tenha

certeza de que irei descobrir. Não pense que se livrará de mim

assim tão fácil!

Eu mal podia entender o que aquela louca estava me

dizendo, pois as palavras que saíam de sua boca pareciam

destorcidas. Mas lhe respondi:

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 364 -

– Não sei do que a senhora está falando! Tão cedo e já

está em estado de ébrio? Que feio! O conde não se sentirá à

vontade com essa conduta tão vulgar.

Ela levantou a mão para me esbofetear. Foi quando o

conde e a conteve, segurando sua mão. A condessa olhou-o

fulminantemente nos olhos, parecendo não ter aprovado aquela

atitude de “herói”. O cafajeste, por sua vez, disse em tom de

ironia:

– Acalmem-se, minhas queridas! Não briguem por

minha causa. Prometo dividir a atenção com as duas. Mas não

quero que fiquem enciumadas e violentas uma com a outra.

Não há necessidade para isso, senhora condessa. Sabe muito

bem que não quero que toquem em minha futura esposa.

A condessa olhou-o de soslaio, furiosamente, e saiu

como que pisando duro, deixando-nos a sós. O conde olhou-

me nos olhos e falou:

– A senhorita está bem? Não quero que machuquem o

brinquedinho que ainda não usei.

Não cuspi nas faces daquele homem nojento por um

milésimo de segundo apenas. Mas resolvi manter-me quieta.

Então, respondi, fingidamente:

– Sim, estou muito bem, graças ao senhor. Senhor

conde, não sei o que há comigo, mas estou me sentindo muito

tonta. Desculpe-me, nunca me senti deste jeito.

Senti que iria cair. O conde amparou-me. Por fim,

quando levantei a cabeça para agradecê-lo, ele aproximou os

lábios dos meus e disse, num tom que mais parecia um

sussurro:

– Calma, moça! Acho que deve ter se excedido no

champagne.

– Não me excedi em coisa alguma, conde. Não tomei

mais que dois goles da bebida. Há alguma coisa errada.

Adriana Matheus

- 365 -

– Por que não para de me chamar de senhor e passa a

me chamar pelo meu nome, Albert? Afinal, seremos marido e

mulher muito em breve.

Tentei empurrá-lo, pois estava grudado em mim.

Estava enfraquecida por causa da tonteira. Ele continuou a me

segurar fortemente:

– Não seja tão arredia comigo. É melhor não fazer tanta

força. E vá se acostumando com os meus carinhos, pois não

gosto de mulher puritana.

Eu já não tinha mais reação. Meus membros estavam

adormecidos. Então, o conde puxou a minha cabeça para junto

de si e beijou-me. Tentei esbofeteá-lo, mas foi em vão, pois ele

segurou minhas mãos. Depois de ter forçado aquele beijo,

puxou-me, cambaleando para dentro do salão. Foi logo

pedindo a atenção de todos. Disse, então, em voz alta, batendo

com uma colher em uma taça:

– Meus queridos, hoje é um dia muito importante para

mim, pois estou sendo integrado em sua comunidade. E é com

imenso prazer que estou pedindo em casamento a senhorita

Anna Vladimir Gondin, filha do senhor Juan Vladimir Del

Prat.

O alarido de espanto foi geral. O conde prosseguiu, não

me deixando dizer absolutamente nada:

– Senhorita Anna, presenteio-a com o anel real de

minha avó. Que esta joia seja o elo entre nossas famílias.

Todos aplaudiam e, quando o conde colocou finalmente

o anel em meu dedo, caí em um abismo profundo. Foi como se

formasse na minha frente um enorme buraco negro. Não me

lembro de mais nada, pois desmaiei.

Horas depois, acordei em meu quarto, rodeada por

várias pessoas. O doutor passava-me nas narinas um líquido

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 366 -

horrível para que eu despertasse. Maria estava ao meu lado e

perguntou-me, passando a mão pela minha testa:

– Fique calma, minha filha. Estou aqui agora. Não a

deixarei de novo, prometo.

– Maria, o que houve? O que aconteceu comigo?

– Fique quietinha. Alguém colocou um entorpecente na

sua bebida. - disse ela, sussurrando ao meu ouvido.

Fiquei quieta, esperando que Maria colocasse para fora

toda aquela gente curiosa. Não vi o conde, mas Maria depois

me informou que ele havia ido embora. Quando o quarto já

estava vazio, tentei levantar-me, mas...

– O que fizeram comigo, Maria? Não me lembro do

que aconteceu. Eu estava me sentindo tão bem. Só consigo me

lembrar do beijo que o conde forçou-me a dar-lhe, e depois do

anel em meu dedo.

– Meu Deus, ele fez isso? Então é como eu suspeitava.

Foi o conde que colocou o entorpecente em sua bebida. Ele

queria fazer-lhe algum mal. A sua sorte foi não ter tomado

todo o líquido que estava em sua taça. Caso contrário, poderia

estar acordando nos aposentos do senhor conde agora. Mas

quando a vi na varanda, percebi que havia algo de errado com

a senhorita. Só sinto não ter-me apressado em atendê-la

quando me chamou.

– Este homem é mais perigoso do que supúnhamos.

Devo precaver-me contra ele de agora em diante.

– Sim. Não deve ficar mais sozinha com ele - pelo

menos o quanto puder evitar.

– Não se preocupe, Maria. Só temos o direito de errar

uma vez, e já errei duas. A primeira quando deixei minha

porta aberta, depois de já ter encontrado minhas janelas

destrancadas. E a segunda foi aceitar uma bebida na presença

do conde. Deveria ter desconfiado quando ele pegou a taça,

Adriana Matheus

- 367 -

parecendo saber qual era a minha. O que farei, Maria? Estou

me sentindo completamente vulnerável nesta casa.

– Não sei, minha filha. Não consigo pensar em nada

para ajudá-la, a não ser em pedir-lhe mais uma vez que fuja.

– Não posso fugir, Maria. Para onde eu iria?

– Para a casa de minha irmã, como já mencionei.

– Maria, a senhora está se esquecendo de que o conde

tem o diário de minha mãe. No diário dela, há o mapa de como

chegar até a casa de sua irmã. Não posso colocar aquele povo

em risco por minha causa.

Maria sentou-se na beira da minha cama, parecendo

sentir-se impotente também.

– Esta noite direi ao seu pai que, devido ao seu estado,

dormirei aqui com a senhorita. - disse Maria, depois de muito

pensar.

Em seguida, saiu e trancou o meu quarto pelo lado de

fora, com a minha chave extra. Logo depois que Maria saiu,

percebi uma pequena bola de luz em um canto do quarto.

Curiosamente, levantei-me para ver de perto. Ao me aproximar

daquela bola de luz, ela se materializou. Afastei-me para trás,

meio assustada. Vi uma senhora trajando um fino vestido de

seda verde. Depois de muito me olhar, ela me disse:

– Desculpe-me por invadir seus aposentos, minha

jovem. Mas estou aqui para preveni-la quanto ao conde. Este

homem não é quem todos pensam. Ele é um assassino e

usurpador.

– Sim, meu mentor espiritual já me disse isso. E quem

é a senhora, por favor?

– Sou a marquesa de Monte Carlo, mãe do verdadeiro

conde de Monte Carlo. Este homem assassinou o meu filho e o

meu marido. Agora está usurpando o lugar deles. Tenha

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 368 -

cuidado, minha filha. Ele é mais perigoso do que a senhorita

supõe.

Dizendo isso, o espírito desapareceu. Fiquei parada, em

pé, no meio do quarto, sem saber o que fazer. Minhas pernas

começaram a tremer de tal maneira que me vi obrigada a voltar

para a cama. Fiquei encolhida e assustada, esperando que

Maria retornasse.

Quando estamos nos sentindo coagidos, não

conseguimos ver a solução para os nossos problemas. De

repente, senti as lágrimas rolarem-me nas faces. Queria ter um

amigo para me proteger. Queria colo de mãe. Sentia-me tão só!

Embora estivesse preparada para enfrentar meu destino,

naquele momento a solidão tomou conta da minha alma.

Parecia que meu espírito estava envolto por uma grande

escuridão. Meu coração estava cada vez mais apertado. Não

tinha para onde ir, correr, escapar, o que quer que fosse. Sem

querer, blasfemei em voz alta:

– Se eu morresse, seria melhor para todo mundo!

De repente, uma voz me respondeu ao ouvido:

– Melhor para quem, Anna? Para você? E a pobre da

Maria, que lhe cuidou com tanto zelo, abdicando-se da própria

vida? Está sendo egoísta e imatura, Anna! Esse é o erro de se

saber o futuro. Muitos acham que podem antecipá-lo ou

modificá-lo. Acredite: acabam terminando no abismo sem fim

da escuridão imortal. Não vai querer isso para sua vida, Anna.

Não passamos pelos problemas da vida - são os problemas que

passam por nós, ensinando-nos a viver. Então, devemos viver

de maneira que esses problemas sejam exemplos de como não

procedermos de maneira excêntrica e precipitada. Não posso

permitir que siga seu destino sem ao menos aprender o dom da

paciência. Você tem que entender que é uma pessoa diferente.

Estou muito decepcionado com você. Saiba que as palavras

Adriana Matheus

- 369 -

nunca são totalmente jogadas ao vento. Elas podem ser

ouvidas por espíritos impuros, que podem vir atender o seu

suposto desejo. Uma atitude precipitada poderia prejudicar

todos à sua volta. Se fizer o que disse há pouco, Maria seria

colocada na rua e, com isso, voltaria para a casa da irmã. Ela

nunca mais veria Joseph. Lorenzo seria despedido e, com isso,

cairia nas bebidas e não mais se casaria com Samara. Esta, por

sua vez, acabaria se tornando uma prostituta para tentar se

sustentar. Tereza e seu esposo seriam despedidos também e,

como estão em idade avançada, não arrumariam mais

emprego. Com isso, a pobre netinha morreria de fome. Tereza

e o marido têm uma família que depende deles. Como

percebeu, tem muita gente que depende de você, Anna. Mesmo

assim, teve um pensamento tão egoísta como esse? Não posso

acreditar no que ouvi, Anna!

Eu estava debulhada em lágrimas, mas respondi, entre

soluços:

– Perdoe-me, Heixe! Por favor, perdoe-me, meu amigo!

Porém, ele prosseguiu:

– Não sou eu quem tem que lhe perdoar. É você

mesma. Precisa parar de sentir pena de si mesma. Levante-se

desta cama e vá até o pequeno templo que sua mãe construiu.

Prepare uma poção, faça o ritual da chuva. Purifique sua alma

e deixe que a chuva lave as mazelas da sua alma. Agora vá e

faça o que tem que fazer. Tenha cuidado apenas para que a

condessa não descubra nada.

Quando Maria voltou, contei-lhe o que havia

acontecido. Ela fitou-me tristemente e respondeu:

– Saiba que o seu mentor espiritual está coberto de

razão, senhorita Anna. Esse foi o pensamento mais egoísta que

a senhorita já teve. Como acha que me sentiria sem a

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 370 -

senhorita? Não pensou nos sentimentos das pessoas que a

amam de verdade?

Maria ajeitou um lugar no chão para dormir, sem

dirigir-me a palavra novamente.

Depois que ela adormeceu, ainda fiquei um bom tempo

acordada, refletindo sobre aquele assunto. Muitas pessoas

confiavam em mim, e quase coloquei toda a tradição a perder

por causa de um pensamento egoísta. Às vezes, ficamos cegos

com nossa revolta e agimos de maneira insana. Achamos que

não temos nada mais a perder, mas esquecemos tudo e todos

que nos cercam. Fui uma tola por pensar tão levianamente.

Ainda bem que tinha amigos no espaço para me auxiliarem. O

suicida não é somente aquele que se envolve com

entorpecentes ou bebidas - estes se suicidam lentamente. O

suicida também é aquele que se anula espiritualmente,

matando o seu aparelho. E era o que eu ia fazer, caso Heixe

não tivesse vindo em meu auxílio. Uma bruxa ou uma pessoa

que tenha dons especiais não pode jamais ter este tipo de

pensamento, pois isso faz com que vá contra as leis da

natureza de Deus. Logicamente, o mesmo serve para todas as

pessoas – mas, principalmente, para todos aqueles que seguem

uma tradição espiritual.

Fiz minhas orações e olhei para Maria, que estava

deitadinha no chão somente para me proteger. Como fui

egoísta, Senhor, em dizer que sou sozinha... Depois de muito

meditar sobre minha vida, adormeci, deixando que meu corpo

repousasse em sono profundo.

Quando acordei, o dia ainda não tinha raiado. Então,

levantei-me bem devagarzinho e coloquei o roupão, cutucando

Maria bem de mansinho para que não se assustasse. Então,

chamei-a baixinho:

– Maria, Maria... Acorde, por favor...

Adriana Matheus

- 371 -

– Hã? Menina, o que faz fora da cama? Está bem? O

que está sentindo? Meu Deus, dormi demais, foi isso? -

levantou-se de um salto só, com os olhos que pareciam dois

pires de tão arregalados.

– Maria... Não faça tanto barulho... Calma, não estou

sentindo nada, estou muito bem. Levante um minuto e venha

comigo. Quero que me mostre onde é o templo que minha mãe

fez.

Ela levantou meio receosa e, parecendo não crer no que

eu dizia, vestiu o roupão e saímos no meio da casa escura,

carregando um lampião que mal deixava enxergar os próprios

pés.

Atravessamos todo o pátio do fundo da cozinha e

chegamos ao porão, onde meu pai guardava seus preciosos

vinhos. Acendi outro lampião que estava pendurado junto à

porta.

Maria retirou uma garrafa da adega. Então, como em

um passe de mágica, abriu-se uma porta secreta. Entramos e

acendi mais dois lampiões que estavam pendurados. Todo o

lugar ficou logo iluminado. Parecia uma caverna mística.

Fiquei extasiada e boquiaberta com o que vi.

– Maria, minha mãe construiu isso antes de eu nascer?

Como ela conseguiu fazer isso sem que meu pai percebesse?

Quem a ajudou?

– Sim, senhorita Anna. Elizabeth construiu isso tudo

com a minha ajuda e de alguns irmãos da tradição, que vinham

até aqui enquanto o seu pai viajava. Este local demorou algum

tempo para ficar pronto, pois foi feito parcialmente, nos

intervalos e ausências do seu pai. Elizabeth era uma mulher

muito discreta e reservada. Por isso, foi fácil esconder a

tradição de seu pai.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 372 -

Depois de andar por todo o local e admirar tudo o que

encontrei, disse à Maria:

– Venha, ajude-me a lavar esse caldeirão. Preciso fazer

um preparo para o ritual da chuva. Meu primeiro equinócio

será comemorado com a chuva no fim do outono.

– Jura? E quando será?

– Na próxima quarta-feira. A chuva será à noite.

Devemos nos preparar para irmos à floresta. Temos que nos

preparar para a purificação do corpo.

– Posso participar? Nunca fiz o ritual da purificação.

– É claro que sim! Então, faremos juntas a poção.

Maria lavou o caldeirão e a colher de pau. Decidi não

usar o material que havia comprado: aquele me serviria muito

bem e já estava cheio de boas energias. Limpamos todo o

ambiente nos mínimos detalhes. Preparamos as ervas para o

cozimento. Pegamos a imensa colher de pau e mexemos a

poção - as duas juntas, ao mesmo tempo. Durante o processo,

dissemos:

– Que o espírito da cura se reúna a esta essência,

trazendo-nos paz, harmonia e forças para que nosso corpo

físico possa conseguir seguir a sua jornada.

Cantamos, também, naquela língua antiga. E rimos

muito, passando energias positivas para a essência.

Rodopiamos e dançamos em volta do caldeirão, enquanto ele

cozinhava a poção. As chamas pareciam dançar conosco. A

dança é, para nós, uma forma de libertação. Quando dançamos,

soltamos a alma e não pensamos em mais nada à nossa volta.

Talvez tenha sido um grande erro dançarmos naquela

noite. Pois ficamos tão inertes que não percebemos a presença

silenciosa e maligna da condessa, que nos vigiava

sorrateiramente. Ela havia sido acordada pela copeira, sua

cúmplice, que nos denunciou. A fumaça e a penumbra do lugar

Adriana Matheus

- 373 -

não nos deixaram perceber sua presença. Ela ouviu tudo,

atentamente, sobre as poções e o ritual da chuva.

Eu e Maria parecíamos estar embriagadas pela essência

que saía do caldeirão. As ervas eram muito fortes, e o cheiro

nos fez viajar. Acrescentei sálvia e óleo de girassol. Por fim,

sentamos e rimos muito, pois estávamos felizes e absortas.

Tomamos o chá do poder e abrimos o nosso chácra do

conhecimento. O poder do chá era inigualável e, logo ao

bebermos, sentimos toda a força do universo nos cercando.

Esse chá representa toda a força da mãe terra, a fonte de vida,

o côncavo e o convexo, o macho a fêmea. As duas forças

uniam-se durante a ingestão desse chá. Seu poder de cura era

infinito. Mas o principal objetivo é curar a alma. Depois de

muito meditarmos, disse à Maria:

– Acho que passamos da hora. Precisamos apagar o

fogo e tampar o caldeirão. Lembre-se de vir aqui e cozinhar as

ervas até quarta-feira.

– Pode deixar que ficarei atenta para não deixar passar

do ponto.

Esse ritual tinha que ser preparado com muita

antecedência. A erva devia ser cozida até desmanchar, pois o

banho era por inteiro e deveríamos deixar a terra consumir

tudo o que saísse do nosso corpo. Nesse ritual, damos à terra

todos os nossos problemas, e recebemos da chuva toda a sua

energia renovadora. Pois a chuva traz tudo de bom que a terra

nos dá. Isso se chama círculo rotativo. A terra recolhe a água

que sai do nosso corpo doente, e a chuva leva o que não presta

para o céu, reciclando essa energia e devolvendo-a em forma

de energia positiva.

De repente, escutamos um barulho do lado de fora.

– O que foi isso, Maria? - perguntei assustada.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 374 -

– Não sei, senhorita Anna. Espere aqui que irei ver o

que é.

Senti um frio na barriga. Algo estava errado e havia

ativado todos os meus sentidos. Comecei a ficar com dores de

cabeça. Foi aí que percebi a presença da condessa: ela havia

estado ali o tempo todo e, com certeza, eu estava em suas

mãos. A partir daquele momento, eu sabia que seria

chantageada por duas pessoas ao mesmo tempo. Maria voltou

e disse-me:

– Não vi ninguém, senhorita Anna. Deve ter sido algum

tipo de animal.

– Pouco provável, Maria. Com certeza, foi a condessa.

Meus sentidos de bruxa mostraram-me ser ela.

– A condessa? Meu Deus, ela fará chantagem com nós

duas. O que faremos?

– Devemos ter calma, para melhor raciocinarmos sobre

o que fazer.

– E o que faremos com essas provas? - disse Maria,

apontando para tudo à nossa volta.

– Eu poderia dizer que estávamos procurando um vinho

raro para ofertar ao meu futuro marido e, sem querer,

descobrimos esse lugar.

– E o que diríamos sobre o caldeirão e a poção que está

ainda em cozimento?

– Sim, a senhora tem razão. Não conseguirei inventar

uma desculpa plausível para essa situação eminente. O melhor

a fazer é esperar para ver o que a condessa fará.

– Sim, mas até lá morreremos ansiosas, sem saber o

que a condessa irá nos aprontar.

Sentei ao chão e coloquei as mãos no rosto, pensando

em como achar um meio de driblar a condessa, pelo menos até

o dia do ritual da chuva. Sabia que, se eu quisesse usar meus

Adriana Matheus

- 375 -

poderes, poderia pôr um fim naquilo tudo. Mas nunca poderia

usá-los em benefício próprio, pois as consequências seriam

muito piores. Quando usamos nossos poderes para controlar

alguém ou para fazer um indivíduo esquecer-se de uma

situação, além de gastarmos muita energia vital, podemos

passar por coisas horríveis. Como, por exemplo, ser

atormentada dia e noite por espíritos levianos. Isso pode

resultar na loucura mental do corpo físico ou no suicídio do

indivíduo em questão. Por isso, disse à Maria, que estava se

borrando toda, por medo da sombra que nos espreitou a noite

toda:

– Não faremos absolutamente nada.

– Como assim, nada?

– É o que a senhora ouviu. Daremos tempo ao tempo e

ele se incumbirá de nos responder.

Maria não disse mais nada, mas senti que estava aflita.

Arrumamos as coisas, apagamos o fogo do caldeirão e saímos,

em silêncio. Passamos tranquilamente pelo pátio e pelos

corredores. Foi assustador pensar que poderíamos ser pegas de

repente. Maria deixou-me na porta de meu quarto e desceu. Foi

uma madrugada muito difícil. Cheguei a pensar que não

passaria daquela noite. Arrumei-me e, em seguida, fiz minhas

orações. Não poderia descuidar do espírito. E também não

estava mais em condições de dormir. Abri a janela e vi Joseph,

já se preparando para cuidar do jardim. Então, resolvi descer e

fazer-lhe companhia. Abri vagarosamente a porta e saí, meio

que na ponta dos pés. Já estava no meio do corredor quando a

condessa agarrou-me pelo braço e puxou-me para um canto,

interrogando-me:

– Estava aprontando alguma coisa ilícita naquele porão.

Pretendo descobrir o que é.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 376 -

Percebi, então, que a condessa, por causa da fumaça,

não conseguiu ver o que estávamos fazendo e também não

ouviu o que dizíamos. Então, respondi-lhe, tentando inverter

aquela situação:

– Ah! Então a senhora não sabe? Se a senhora anda

espionando as pessoas atrás das portas, deveria saber.

– Infelizmente, não deu para ver por causa da

penumbra. Mas saiba: estou de olho.

Respirei aliviadamente, confirmando a minha atual

suspeita de que a condessa não sabia de nada. Tentei apressar-

me para contar à Maria, aliviando-a daquele fardo

desnecessário. Fui saindo, mas a condessa, que ainda segurava

meu braço, prosseguiu:

– Antes de sair, terá que me contar: que lugar era

aquele?

– A senhora não sabe? É ali que queimam as ossadas

dos escravos que morrem torturados. Estou impressionada

como a senhora, que vive nessa casa há tantos anos, possa

estar tão alienada deste fato tão corriqueiro. Agora, se a

senhora duvidar da minha palavra, posso eu mesma levá-la até

aquele local. Ou melhor: peço a meu pai que lhe mostre o local

pessoalmente.

– Não será preciso. Saiba que sei de tudo o que se passa

dentro da minha casa. – mentiu, querendo parecer senhora

absoluta de tudo.

Olhando-me bem nos olhos, ela prosseguiu com a

conversa:

– E o que estava fazendo junto à Maria àquela hora da

madrugada?

– Santo Deus, senhora condessa! Como a senhora é

desinteressada e insensível! Ainda não sabe que uma de nossas

escravas perdeu um bebê por esses dias? Eu e Maria estávamos

Adriana Matheus

- 377 -

acendendo velas e rezando para a pobre alma daquele pequeno

inocente. A fumaça que a senhora viu foi porque queimaram

os ossos do pobrezinho ainda hoje. Cheire só o meu braço para

a senhora ver como estou cheirando a defunto queimado.

Disse isso estendendo e colocando meu braço nas

narinas da condessa, que recuou e soltou-me, finalmente. A

tola mulher, além de apavorada, ainda disse, arrogantemente:

– Saia de perto de mim, com esse cheiro de escravo

queimado! Não faço questão de me envolver em assuntos de

escravos. Deixo isso para seu pai. Mas não me surpreendo em

saber que uma estúpida como a senhorita se envolva nesses

casos medíocres, com esse tipo de gente.

– Sabe, condessa, a senhora é mesmo uma pessoa

muito doente. Por que não aproveita que o médico está na casa

e faz uma consulta? Mas não se esqueça de informar-lhe que

sua doença é na alma: chama-se preconceito.

A condessa empinou o nariz e saiu, remexendo as

cadeiras, até entrar em seus aposentos. Por minha vez, saí pelo

corredor afora, saltitante como uma menina. Procurei Maria na

cozinha e contei-lhe tudo. Ela se arriou sobre uma cadeira e

disse:

– Definitivamente, a senhorita é mais cheia de

artimanhas que o próprio demo!

– Eu!? De maneira nenhuma, Maria. A condessa que é

desprovida de neurônios - o que, para mim, é uma salvação.

Acredite, Maria: ninguém nos impedirá de realizar o ritual da

chuva.

Eu já ia pegar algo para comer quando resolvi

perguntar outra coisa à Maria, ainda sentada naquela cadeira,

sem conseguir dizer-me uma só palavra:

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 378 -

– Ah! Já ia me esquecendo... A senhora retornou ao

crematório para acendê-lo? Lembre-se de que nosso cozido

deve ferver diariamente.

Maria pareceu entender sobre o que eu queria dizer e

riu a valer. Depois de degustar tranquilamente meu desjejum,

virei-me para Maria e falei-lhe:

– Iremos ter com Joseph daqui a pouco - fique a

senhora sabendo!

– E para quê? No que a senhorita está pensando em

envolver o pobre homem? – perguntou, com medo do que eu

poderia estar planejando.

– Nada demais. Só vamos, de uma vez por todas,

resolver a sua situação que está pendente com ele.

Disse isso degustando uma deliciosa fatia de queijo.

Maria, por sua vez, levantou-se apressadamente da cadeira e

começou a remexer nos objetos da cozinha, desconexamente.

Até que, não resistindo, perguntou-me:

– Posso saber qual seria a situação pendente que tenho

para resolver com o senhor Joseph?

– Ora, Maria! Fracamente, não lhe cabe agora se fazer

de rogada comigo. Sabe muito bem que estou falando do seu

afeto por ele. Não achou que eu não faria nada quanto a essa

questão, não é mesmo?

– Para falar a verdade, já estava suspeitando que a

senhorita fosse me colocar em mais uma de suas confusões.

Mas, dessa vez, imploro-lhe: não me faça passar por tamanha

vergonha. Pois, caso contrário, irá ver essa sua amiga aqui

esticadinha ao chão. E creio que não quer isso, não é verdade?

Ela apertava as mãos uma contra a outra, enquanto me

olhava com um olhar suplicante, esperando que eu lhe desse

uma resposta a seu favor. Porém, respondi:

Adriana Matheus

- 379 -

– Se for para o seu bem, pode desmaiar à vontade!

Quem sabe Joseph, ao vê-la esticada ao chão, abaixe-se para

beijá-la e já lhe faça um pedido de casamento ali mesmo.

Maria virou-se de costas para mim, benzeu-se e

respondeu:

– Perdeu foi o juízo de vez, viu!? Imagina só se irei

permitir tamanho despudor!

– Ora, então a amarro e pronto!

Percebi que Maria estava rindo baixinho, pois havia

gostado da ideia de ser beijada por Joseph - embora

continuasse a manter aquela postura rígida. Enquanto ela

ficava sonhando com o suposto beijo dele, comecei a matutar

uma forma de tirar Maria de toda aquela enorme confusão na

qual eu estava atolada até o pescoço. Podia-se dizer que eu

estava em um beco sem saída. Mas não poderia deixar minha

melhor e única amiga ir direto para o poço, sem fundo, junto

comigo. Depois de muito queimar tutano e deixar meus

cabelos todos enfumaçados, cheguei a uma real conclusão,

finalmente: Maria deveria escrever urgentemente para sua

irmã. Mas, como eu sabia que ela não concordaria com o meu

plano, teria, então, que eu mesma escrever a tal carta.

Meu pai e a condessa saíram muito cedo e,

provavelmente, não voltariam tão rápido. Maria disse para ele

que eu ainda estava dormindo - o que me deu tempo suficiente

para pôr o meu plano em prática.

Naquela manhã, Tereza chegou um pouco mais tarde e

parecia estar de mau humor. Pelo que aparentou, não nos

queria por perto. Mas ela normalmente já era assim: detestava

invasores no seu território sagrado. Porém, naquele dia, o mau

humor imperou sobre ela. Eu e Maria saímos à francesa,

deixando a mulher com seus próprios demônios.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 380 -

Do lado de fora, corri os olhos, tentando achar Joseph.

Por fim, avistei-o cuidando das magnólias. Olhei para Maria,

dando-lhe um sorriso maroto, e saí correndo em seguida, para

chegar perto de Joseph antes dela. Maria tentou acompanhar-

me, mas fui muito mais ágil. Quanto cheguei à frente de

Joseph, estava morrendo de rir de saber que Maria estava

vindo toda afoita atrás de mim. Joseph, parecendo perceber

que tinha algo no ar, olhou para mim e correu os olhos para

localizar Maria. Ele, também num tom de riso, disse:

– Senhoritas, onde pensam que vão desta forma aflita?

Em seguida, o homem levantou-se para nos

cumprimentar melhor e se tornar ciente do que estava

acontecendo. Depois de olhar-nos dentro dos olhos, ele falou:

– Em que posso ajudá-las? O que houve? Aconteceu-

lhes algo?

Então falei, sem muito dar margens a outros

comentários e perguntas, antes que Maria pudesse interromper-

me:

– Querido Joseph, estou ciente de seus sentimentos por

minha amada Maria. Quero que saiba que é recíproco. Porém,

ela é tímida demais para lhe dizer isso. Portanto, estou aqui,

sendo uma intermediária entre os dois.

Maria não sabia onde se enfiava, de tão envergonhada

que a fiz ficar. Ela me beliscava e tentou várias vezes tampar a

minha boca. Mas, uma vez que comecei a falar, ninguém

conseguiria impedir-me de terminar.

Joseph olhava para Maria com olhos vidrados e cheios

de lágrimas. O homem parecia estar com aquele sentimento

entalado no peito havia anos. Percebendo que ele não tinha

coragem de abrir a boca, prossegui:

– E então, senhor Joseph? O que tem a me falar a

respeito do que lhe acabo de dizer?

Adriana Matheus

- 381 -

Ele girou o corpo de um lado para o outro, parecendo

procurar algo nos bolsos de trás da velha calça. Fiquei ali,

esperando uma resposta, mas o pobre homem parecia tão

preocupado em achar sabe-se lá Deus o quê que me deixou ali,

parada à sua frente, por vários minutos. Por instantes, achei

que havia cometido um grande erro, porque o homem não

respondia nada e parecia ter escondido o rosto debaixo do

chapéu de palha. Olhei para Maria, que parecia estar ansiosa

por uma resposta dele. Então, resolvi arriscar tudo, antes que

virássemos um fóssil humano, por causa de um simples sim de

Joseph para Maria. Imagine só minhas futuras gerações

passando por ali, depois de milhares de anos, e achando uma

jovem bruxa e uma senhora petrificadas. Por certo, indagariam

entre si Nossa, o que será que transformou essas pobres

mulheres em fóssil? E alguém estudioso no caso responder-

lhes-ia Foi a demora de um simples “sim” do futuro

pretendente de uma delas. Aquele pensamento fez-me rir

sozinha. Portanto, tratei logo daquele assunto banal, dizendo:

– Joseph, por céus, homem! Está entalado com um

sapo, ou os comichões são por causa de uma urtiga?

Fiz-lhe, então, uma simples pergunta, de maneira

pausada:

– O senhor gosta de minha governanta, Maria Peres?

Sim ou não?

– É que não entendi o sentido da pergunta.

Sua voz era tremida e vi o quanto aquela conversa seria

demorada e difícil. Meu Deus, pensei comigo. Ou ele era um

desprovido de inteligência ou era surdo. Ou ainda pior: estava

se fazendo de sonso mesmo!

– Estou lhe perguntando se o senhor quer se casar com

Maria, homem!

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 382 -

– Bom, confesso que já andei escrevendo alguns

versinhos para ela. Mas nunca me atrevi a ir além disso, pois

ela é uma dama de muitíssimo respeito.

Oh! Glória, meu Deus, até que enfim!, pensei. Não era

muito, mas pelo menos ele havia dado um sinal de vida.

Aproveitando aquela oportunidade, Maria falou, por fim,

porque parecia que também estava engasgada e aflita por uma

resposta daquele aprendiz de Romeu, confuso e tímido:

– Ora, homem, e desde quando versos são sinal de falta

de respeito? - ela colocou as mãos na cintura e fez uma cara de

brava.

Dirigindo-se a mim, ela disse:

– Pense bem, senhorita Anna: passei esse tempo todo

na desesperança de encontrar minha cara metade, sendo que

ela estava o tempo todo ao meu lado. Esse homem cabeçudo

fez-me perder o melhor tempo da minha vida só porque me

julgava uma mulher acima dele. Imagine só: como posso

perdoá-lo por ter ficado solteirona esses anos todos?

Quem ficou de olhos arregalados desta vez fui eu, que

fiquei admirada por ver a revolta de uma mulher solteirona.

Deus, que bom que não chegaria a tanto! Às vezes, o que o

nosso destino nos reserva é mesmo uma dádiva! Pois não me

conseguia ver dando uma crise daquelas por falta de um

casamento. Céus! Depois de ter que pegar meu maxilar, que

estava caído ao chão, falei a Joseph:

– Bom, o que posso dizer, senhor Joseph? Depois de

um desabafo desses, é melhor que o senhor tome logo a atitude

de pedir-lhe a mão.

– Mas não pode ser assim. Tem que ser com jeito e...

Maria não deixou que o pobre homem, prestes a ser

enforcado, dissesse uma só palavra:

Adriana Matheus

- 383 -

– Que jeito, homem? Acha mesmo que estamos em

idade de esperar mais alguma coisa? Acha que quero ser

cortejada a essa altura da nossa história? Conhecemo-nos há

mais de dez anos. Diga-me: o que o senhor ainda não conhece

da minha pessoa? Se tiver alguma dúvida em se casar comigo,

então não me merece. Mas se sente algum sentimento por

mim, vá logo e se decida de uma vez por todas. Não tenho

mais a intenção de criar os netos da senhorita Anna.

Continuei recolhida à minha insignificância e de olhos

bem arregalados. Por fim, disse, humildemente:

– Se o problema é a ocasião, pedirei permissão ao meu

pai para que assemos um leitão com direito a rodada de banjo.

Joseph, no entanto, fez uma pergunta que, embora

parecesse um tanto irregular, era de se esperar mediante a

reação quase histérica de Maria:

– Quero só perguntar uma coisa.

– Lógico que sim, Joseph, mas que seja breve. -

respondeu Maria, parecendo estar sem a menor paciência.

O homem, tirando o chapéu da cabeça e torcendo-o nas

mãos, levantou os olhos e, meio sem graça, respondeu

timidamente, parecendo saber qual seria a reação de Maria:

– Acaso a senhora não estaria esperando criança,

estaria?

– Esperando o quê, seu cara de fuinha? O que está

pensando de mim? Acha que sou sua parenta por acaso?

Imagine: esperando criança com cinquenta anos!

Na verdade, Maria estava com cinquenta e oito anos.

Mas eu é quem não a contrariaria, principalmente naquele

momento tão solene para ela. Maria já estava saindo pisando

duro quando Joseph a segurou pelo braço e disse-lhe, olhando

nos olhos:

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 384 -

– Aonde pensa que vai a minha futura esposa? Não

quero que a senhora me interprete mal, mas a pergunta que

acabo de fazer foi apenas para me certificar de que a senhora

não havia feito nada de errado. Mas peço-lhe humildemente o

seu perdão, pois procedi como um tolo machista, sendo que a

conheço há tantos anos.

Dizendo isso, Joseph puxou Maria pela cintura, dando-

lhe um beijo apaixonado. Por minha vez, afastei-me um pouco,

deixando que aquele novo casal se entendesse sozinho. Estava

feliz, pois mais uma parte da minha missão estava cumprida.

Caminhei um pouco mais adiante e fui olhar o canteiro

de tulipas. Estava quase me perdendo em meus próprios

pensamentos quando Joseph chamou-me.

– Senhorita Anna, posso falar-lhe um instante?

– Sim, Joseph, mas onde está Maria?

– Foi para dentro da casa. Ela parece estar muito feliz,

a senhorita não acha?

– Joseph, parece que sim. E o senhor cuide bem dela,

está me ouvindo?

– Disso a senhorita não tenha dúvidas.

– Confio no senhor e sei que fará muito bem à Maria.

Mas, antes que o senhor se una a ela, quero lhe falar algo

muito sério.

– Então diga, senhorita Anna. Afinal, queremos a

senhorita como nossa madrinha.

– Fico muito feliz, mas antes tem que saber algo sobre

Maria e eu. Pois, como fui intrometida em uni-los, sinto-me na

obrigação de lhe contar sobre certos fatos.

– Senhorita, vou deixá-la falar para não lhe parecer mal

educado, mas já sei do que se trata.

– Bom, Joseph, não sei se o que está pensando é sobre a

mesma coisa que lhe contarei. Maria e eu pertencemos a uma

Adriana Matheus

- 385 -

tradição milenar. Muitas pessoas têm certa dificuldade em

aceitar nosso tipo crença.

– A senhorita quer me dizer que ambas são bruxas?

– Sim... Mas de maneira alguma fazemos o mal aos

outros, como nos julgam erroneamente.

– Senhorita Anna, de maneira nenhuma tenho comigo o

defeito de pré-julgar os outros. Sempre respeitei todas as

crenças porque trabalho com a natureza. Muitas vezes, por

estar sempre em contato com ela, já vi e ouvi coisas que nunca

contei por medo de acharem que estou possuído por um

espírito maligno. Sei bem o que é guardar um segredo. Quem a

senhorita acha que construiu o esconderijo de sua mãe?

– Foi o senhor, Joseph? Por que nunca me contou

nada?

– Como disse a senhorita, sou muito bom em guardar

segredos. Sua mãe era uma pessoa admirável! Confidenciou

coisas que nunca contaria a ninguém. Ela estava sempre pronta

a servir a Deus e aos necessitados. Quando um empregado ou

até mesmo escravo necessitava de seu auxílio, ela enfrentava

até mesmo seu pai. Nunca ouvimos um grito ou xingamento da

parte dela como ouvimos de sua madrasta. Muito pelo

contrário: ela conseguia tudo com um sorriso e muita

gentileza. Por ter estado ao lado de uma pessoa tão fantástica,

como poderia não aprender a respeitar sua crença? Ao

contrário do resto das outras pessoas, jamais fiz objeções ou

repudiei o que não conhecia. A experiência que adquirimos

com o passar dos anos traz-nos sabedoria e discernimento de

como olhar para o que julgamos ser irreal e imaginário.

Mesmo que Maria fosse uma possuída - o que não é -, ainda

assim a amaria do mesmo jeito. Aprendi que tudo tem jeito na

face da Terra. E, para a morte, cabe a Deus saber o que fazer.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 386 -

Fiquei admirada ao ouvir tais palavras saindo da boca

de um homem tão simples como Joseph. Com isso, aprendi

mais uma lição: não julgar ninguém pela aparência ou

simplesmente porque a pessoa demonstra-se tímida mediante

tais situações. Digo isso porque julguei muito mal Joseph

quando ele aparentou-se em cima do muro, mediante a

resposta que exigi que desse à Maria. Depois de olhá-lo

admiradamente, respondi:

– Joseph, não sabe o quanto fico feliz por saber a sua

maneira de pensar. Mas algo terrível está para acontecer com

Maria. Por isso, tenho urgência que se case com ela e vá para o

norte, onde estão os parentes dela. A menos, é claro, que o

senhor tenha alguma objeção em ir morar na floresta.

– Imagina, senhorita Anna! Será um prazer poder

conviver com a natureza. Além do mais, estou mesmo

precisando descansar. Só não sei se serei bem recebido pela

família dela!

– Foi o que imaginei que o senhor pensaria. Não se

preocupe, pois são pessoas fantásticas. Com certeza, o senhor

será muito bem recebido por todos. Falo assim porque tive o

enorme prazer de conhecê-los pessoalmente, quando eu e

Maria passamos aquele fim de semana lá.

– E as senhoritas, por que estão correndo perigo?

– Porque o conde, com quem me obrigaram a firmar

compromisso, tem em seu poder o diário de minha mãe. Neste

diário, ela conta tudo sobre a tradição, sobre a parceria dela

com Maria nos rituais, e sobre a futura herdeira - no caso, eu.

Ela mencionou até mesmo os poderes que eu herdaria dela.

– Minha nossa, senhora senhorita Anna! Isso é grave.

Esse homem não pode, de forma alguma, casar-se com a

senhorita. Com certeza fará da sua vida e a de Maria um

Adriana Matheus

- 387 -

verdadeiro inferno. Pode contar comigo para o que der e vier a

partir de agora.

– Sei disso, Joseph. Por isso, hoje mesmo escreverei

uma carta para a irmã de Maria. Quero que os dois fujam daqui

ainda no próximo final de semana. Agradeço-o imensamente

pelo apoio que me está dando.

Joseph respondeu-me um pouco apreensivo em relação

à suposta fuga:

– Não podemos fugir, senhorita Anna. Somos adultos e

não fizemos nada demais. Não é correto fugir como dois

criminosos.

– Joseph, sabemos disso. Mas, quando o conde revelar

a meu pai quem foi a minha mãe e quem sou, por certo ele

culpará Maria e a entregarão à Inquisição. Agora não é hora de

ter orgulho. É hora de pensar somente em Maria e no povo

dela. Pois, no diário de minha mãe, também há um mapa

ensinando o caminho até a casa da família de Maria. O certo

seria que tentássemos encontrar o diário e tirá-lo do poder do

conde.

– Tem razão. Devo pensar em minha amada e no bem

estar de sua família. Mas como a senhorita pretende recuperar

o diário de sua mãe?

– Isso o senhor deixe comigo.

Viramo-nos automaticamente, pois Maria chegou e

interrogou-nos, toda desconfiada.

– O que estavam tramando em minhas costas?

Rimos, pois sentimos o tom de ciúmes em sua voz.

Contei-lhe, então, quase tudo que conversávamos. Ela nos

olhou matreiramente, suspeitando que não estivéssemos

falando totalmente a verdade. Porém, nada disse. Então,

Joseph, percebendo aquele ciúme todo, abraçou Maria. Ela lhe

disse:

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 388 -

– Ora, deixa de assanhamento, homem! Ponha-se em

seu lugar.

Joseph riu às gargalhadas. Achou graça porque Maria

mal havia se acertado com ele e já estava enciumada daquele

jeito. Depois de nos despedirmos dele, voltamos as duas para

dentro de casa. Pedi à Maria que cuidasse do cozimento das

ervas, pois deveriam estar prontas para o ritual. Subi para o

meu quarto, pois precisava achar uma veste apropriada para

que eu e Maria usássemos no ritual. Infelizmente, não tinha

nada apropriado. Fiquei imaginando onde encontraria algo.

Caminhei em direção à janela para abri-la e, ao olhar

para baixo, vi que a carruagem do conde estava parando em

frente à entrada da casa. Fiquei imaginando o que aquele

homem poderia estar fazendo ali se os donos da casa não

estavam presentes.

Não demorou muito e Maria subiu correndo para me

avisar que o conde estava pedindo para falar comigo

imediatamente.

– O que esse maldito ainda quer comigo, depois de

tudo o que aprontou?

– Não sei, senhorita. Mas, com certeza, não a deixarei

sozinha com ele novamente.

Descemos juntas e de mãos dadas. Ao entrar na sala de

estar, o conde estava me esperando e veio todo faceiro ao meu

encontro, dizendo:

– Senhorita Anna, fico feliz em vê-la de pé! E como foi

que teve tão rápida melhora? O doutor falou-me ontem que a

senhorita estava muito debilitada e talvez não se recuperasse

tão rápido.

– Vai ver foi um engano médico, ou quem sabe um

milagre divino!?

Adriana Matheus

- 389 -

Ele se aproximou para beijar-me. Mas, graças a Deus,

deu um passo para trás, porque Maria entrou em sua frente. O

conde olhou para ela, furiosamente, e disse:

– Vejo que a senhora zela muito bem a minha noiva.

– Por certo que sim, pois a criei como uma filha.

– E a senhora e minha noiva vão sempre juntas a todos

os lugares?

– Sim. Essa também é uma das minhas funções nessa

casa. Mas, acredite: faço isso por mero prazer e amizade à

senhorita Anna.

– Acredito que sim. Mas andei investigando um pouco

sobre a sua história e soube que a senhora não é muito de

frequentar a igreja, assim como a mãe da senhorita Anna. Não

é mesmo, minha noiva querida? Dizem que ela era uma mulher

muito misteriosa e quase nunca era vista na cidade. O gosto de

sua mãe por coisas exóticas era muito suspeito, não? – disse,

dirigindo-me a palavra.

Por minha vez, não pude ficar calada e respondi:

– Aonde o senhor conde está querendo chegar? Nós

duas já estamos cientes de que o senhor sabe do nosso segredo.

O que o senhor quer realmente nesta casa a essa hora?

– É por isso que gosto da senhorita, porque é uma

mulher inteligente. Mas, já que tocou no assunto, quero que

peça à sua governanta que se retire da minha frente, pois tenho

o direito de ficar sozinho com a minha noiva.

No entanto, ressaltei:

– Direito a que? De ficar com uma mulher em cuja

bebida o senhor teve a coragem de mandar que misturassem

entorpecente para que assumisse um compromisso com o

senhor, sem ao menos saber o que estava fazendo?

– Como a senhorita é esperta! Já que agora conhece

como posso ser perigoso, poderia simplesmente fazer o que

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 390 -

estou lhe pedindo, ou vai querer que eu pegue esta maldita

mulher e a entregue à Inquisição agora mesmo? - disse isso,

passando por trás de Maria e colocando um punhal em sua

garganta.

Gelei ao vê-la no poder daquele assassino e disse-lhe,

suplicando pela vida de Maria:

– Por favor, senhor conde, não machuque Maria. Ela é

uma boa pessoa e não fez nada para o senhor. Diga-me o que

tenho que fazer para que o senhor nada faça a ela.

– Agora, sim, parece que vamos chegar a um acordo.

Peça à sua governanta que saia daqui e acompanhe-me até

onde estou hospedado.

– Está bem, senhor conde. Vou com o senhor. Mas, por

favor, liberte Maria agora.

Maria, ao se ver livre daquele homem, saiu correndo

para o jardim, enquanto eu e ele seguimos atrás. O conde

estava falsamente abraçando-me, mas o punhal estava em

minhas costas. Foi quando, de repente, avistei a carruagem de

meu pai, que estava chegando com a condessa e o padre

Ignácio. Nunca fiquei tão feliz por ver a condessa e meu pai e,

principalmente, o padre. Logo que o cocheiro abriu a porta da

carruagem, padre Ignácio desceu e, parecendo perceber que

havia alguma coisa errada, perguntou:

– Interrompemos alguma coisa, senhorita Anna? Não

sabem que não fica bem que uma jovem fique a sós com seu

noivo na ausência de seus familiares?

Aproveitei aquela situação e corri para abraçar o padre,

livrando-me, assim, daquele monstro. O padre, parecendo

perceber que algo estava realmente errado, falou ao meu

ouvido:

– Acalme-se, minha filha. Seja o que for que estava

acontecendo, a senhorita agora está a salvo.

Adriana Matheus

- 391 -

Por fim, o padre Ignácio falou, dirigindo-se ao conde:

– E então, meu filho, o que tem a me dizer sobre o que

citei?

– O senhor tem razão, padre. Não deveria ter vindo

aqui. Mas, realmente, não sabia que o senhor Juan e a condessa

não estavam em casa. Peço desculpas a todos pelo meu mau

comportamento, mas quero que saibam que foi sem querer. –

disse, olhando para o meu pai e a condessa, aparentemente

atônitos.

Seguiram todos para dentro e fui atrás deles,

acompanhada do padre Ignácio e de Maria. Padre Ignácio,

durante o trajeto, disse-me:

– Quero que a senhorita vá à igreja e conte-me

exatamente o que está se passando nesta casa.

– Não está acontecendo nada, padre. - olhei para Maria,

que ainda estava amedrontada devido ao fato ocorrido.

Padre Ignácio, então, complementou aquela pergunta:

– Então por que quando a abracei estava tão gelada?

– Deve ter sido impressão do senhor, padre. Não há

nada de errado comigo.

– Está bem. Se não quer ir à igreja para se confessar,

daremos um jeito para que me conte hoje mesmo. Quem sabe

descubro um jeito de ajudá-la?

Fomos todos para a sala de estar. Meu pai mandou

servir um chá com bolo para o padre. O assunto foi sobre os

pregões do meu casamento. Eu, sentada ao lado do padre

Ignácio, ali fiquei até que ele se retirasse. O conde, no entanto,

lançava-me olhares fulminantes. Até que, por fim, resolveu

acompanhar padre Ignácio e foi embora. Porém, padre Ignácio

não deu muita importância para o conde e deixou que ele fosse

embora na sua frente. Meu pai ofereceu ao padre a carruagem

para levá-lo até a cidade. Acompanhei-o até ela. Foi aí que abri

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 392 -

meu coração ao padre Ignácio, dizendo tudo que estava

acontecendo. Ele, depois de me ouvir atentamente, disse-me:

– Minha filha, vou entender a sua história como uma

confissão. Pois, caso contrário, estaria pondo a sua vida em

perigo. Tenha cuidado com esse homem, pois me pareceu

muito perigoso. Quanto ao diário de sua mãe, deixe comigo:

darei um jeito para tirá-lo do poder do conde.

Beijei as mãos de padre Ignácio em forma de

agradecimento.

– Não tenho como agradecê-lo, padre! Mas como o

senhor irá recuperar o diário de minha mãe?

– Não se preocupe com isso, minha filha. Também

tenho os meus segredos e métodos para conseguir o que

preciso. Só lhe digo uma coisa: o diário de sua mãe não voltará

para suas mãos. Ele será destruído para a segurança de todos

nós.

Dizendo isso e subindo na carruagem, o padre deu-me

sua bênção e partiu.

Já dentro de casa, tentei respirar mais tranquila. Por

fim, procurei por meu pai, que estava na sala de estar com a

condessa.

– Pai, posso ter uma conversa em particular com o

senhor?

– Pode dizer-me o que quiser na frente de minha

esposa, pois nada tenho a esconder dela.

– Quero pedir permissão ao senhor para matar um

leitão e fazer uma rodada de banjo esta noite.

– E para que devo dar permissão para este evento? O

que está querendo comemorar?

– Nada demais, pai. Mas, como fiquei noiva e os

criados não puderam participar, quero dar a eles a alegria de

também terem uma festa.

Adriana Matheus

- 393 -

A condessa, ruim a valer, disse:

– Era só o que nos faltava, Juan! Sua filha agora, além

de andar com indigentes, quer dar uma festa para os criados.

Ignorei o que ela dizia e prossegui:

– Pai, é aniversário de Maria. Queria dar-lhe esse

presente. Não negue isso a ela, que sempre lhe foi fiel.

– Está bem, mas que limpem tudo quando terminarem.

E diga-lhes que fui eu que dei autorização, mas que não se

habituem com isso.

A condessa fuzilou-o com os olhos e saiu em direção

ao quarto. Imediatamente, corri até Maria para contar-lhe a

novidade. O resto, dali para frente, seria com ela. Depois de

ter contado a ela sobre o que padre Ignácio prometeu-me que

faria, dei-lhe um beijo na testa e fui para o meu quarto.

Tranquei a porta pelo lado de dentro. Fiquei horas em pé, ali,

encostada nela. Senti o suor escorrendo frio na minha testa.

Era como se eu estivesse vivendo tudo novamente. Não sabia o

que fazer para me livrar daquele homem perverso e matreiro. E

o que era pior: com poderes para condenar um ser humano

pelo mais horrível crime que ele não houvesse cometido. Pela

primeira vez em minha vida, senti o cheiro da morte. Era como

se todas as minhas ancestrais estivessem ali, tentando dizer-me

como era o medo e a dor que sentiram através daquele cheiro

de cipreste que estava no ar. Eu tremia tanto que dava para

ouvir meus dentes batendo. Fiquei em estado catatônico,

encostada na porta do meu quarto.

Fui interrompida em meus pensamentos por Maria, que

batia levemente à porta. Virei-me para abri-la. Por fim, depois

de fitar-me, ela disse:

– Em primeiro lugar, quero agradecê-la por tudo que

fez por mim e por Joseph. E em segundo lugar, quero dizer-lhe

que entenderemos se a senhorita não descer para a festa, pois

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 394 -

dado tudo que fez por nós e a situação que viveu hoje, não é

justo que se exponha ainda mais.

Não pude responder-lhe porque a condessa entrou em

seguida e logo foi dizendo:

– Sabia que encontraria as duas feiticeiras juntas,

tramando algo contra a moral e os bons costumes.

Gelei ao ouvi-la falar daquele jeito. Não podia ser que

ela também soubesse do meu segredo e de Maria. Por fim,

respondi, fingindo apatia:

– Não estamos tramando absolutamente nada.

Estávamos só conversando coisas que não lhe dizem respeito.

E de onde foi que a senhora tirou essa história louca de que

somos feiticeiras?

– Ah, claro! Estavam combinando com qual traje

elegante irão à festa dos plebeus, que resolveu dar para essa

gente imunda.

Naquele momento, Maria tomou a palavra e, pela

primeira vez em sua vida, enfrentou a condessa, exigindo

respeito:

– Senhora condessa, sempre lhe tratei com o devido

respeito, embora não merecido. Mas não vou mais permitir que

trate meus amigos desta forma, sejam eles quais forem.

– Insolente! Ponha-se no seu lugar e só se dirija a mim

quando eu lhe der permissão. Pois saiba que, para mim, sua

festinha medíocre só será realizada porque meu marido não

tem noção do ridículo. Caso contrário, ela nunca se sucederia.

Ande, vá, passe da minha frente! Volte para o seu lugar, junto

aos seus e aos seus afazeres de criada.

Dizendo isso, a condessa foi saindo porta afora.

Percebi, então, que Maria não estava no seu melhor dia e que,

a qualquer momento, poderia pôr tudo a perder por causa de

alguém que não valia a pena. Segurei sua mão no exato

Adriana Matheus

- 395 -

momento em que ela agarraria os cabelos da condessa. A

condessa virou-se para trás e, parecendo não perceber nada,

disse:

– Ainda esta aí, criatura inútil? Quer que me queixe

com Juan? Posso dizer que nada faz além de fuxicar o dia

todo, e que já está velha e caquética para dar conta do serviço.

Por exemplo: uma boa governanta não deixaria seus

subalternos tão relapsos. Veja todo esse pó! Esse quarto está

parecendo uma pocilga. Não que ele não seja o tipo de

ambiente adequado para a minha enteada. - olhou para mim

com ar zombeteiro, tentando tirar-me do sério - o que quase

conseguiu.

– Se inventar qualquer coisa que seja contra Maria,

terei que expor suas andanças obscuras na ausência de meu

pai. Garanto-lhe que provas e testemunhas não me faltarão.

– Está me ameaçado, criatura dos infernos?

– Pode ser que sim, pode ser que não... Só irá depender

da forma com que a senhora procederá.

– Ainda vou conseguir provas para entregá-la à

Inquisição e terei o maior prazer em vê-la morrer queimada.

– Não duvido! Pessoas como a senhora fazem qualquer

coisa para calar a boca da verdade. Mas está se esquecendo de

uma coisa: adultério também é considerado um crime

hediondo pela Inquisição. O inquisidor pode vê-la como uma

possuída pelo demônio - o que não é nenhuma novidade. Por

que a senhora não para de insinuar coisas sobre mim e Maria e

vai logo ao que interessa?

– Ainda não tenho provas, como disse, mas tenho

desconfiança de que está envolvida com bruxaria e artes do

demônio.

– E o que a faz pensar desta forma?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 396 -

A condessa enfiou a mão no seu decote e tirou um

medalhão. Ao ver aquilo, empalideci. No dia em que fui ao

quarto de minha mãe, trouxe junto com o diário alguns

pertences dela. Junto deles estava aquele medalhão que, de

alguma maneira, havia parado nas mãos da condessa. Olhei

para Maria, que estava totalmente pálida também. Então,

fingindo uma falsa frieza, respondi:

– Onde foi que a senhora achou esse medalhão e a

quem ele pertence?

– Interessante, não é? Achei aqui em seu quarto. Então,

isso quer dizer que só pode pertencer a uma das duas. – disse,

suspendendo o medalhão na mão.

– Então isso quer dizer que a senhora invade o meu

quarto na hora em que bem entende? Saiba que este medalhão

não me pertence e que pode muito bem ter sido a senhora que

o colocou aqui para me acusar levianamente.

– Levianamente ou não, vou conseguir provar que a

senhorita está envolvida com a arte do demônio. Este

medalhão é uma prova disso.

A condessa, então, virou-se novamente em tom de

arrogância para Maria, dizendo:

– Ande, criada! Não fique aí, em pé, como um dois de

paus. Siga-me. Tem muito serviço a fazer. Caso contrário, não

poderá participar da sua festa de plebeus.

Em seguida, para me perturbar mais um pouco, ela

falou:

– Até breve, minha enteada querida. Em breve irei vê-

la queimando no inferno, onde é o seu lugar.

– Não se preocupe. Estarei lá esperando pela senhora,

que também é vista pela Inquisição como uma discípula do

demônio.

– Então agora também está me acusando levianamente?

Adriana Matheus

- 397 -

– Não. Só estou mostrando que, em questão de pré-

julgamento, o inquisidor, a Igreja e o povo veem-nos de

maneira semelhante. Estamos caminhando para a mesma

fogueira. Se tivermos sorte, queimaremos juntas.

Ela bufou como um touro selvagem. Eu detestava ter

que agir do mesmo modo que ela, mas era a vida da minha

amiga que estava por um fio. Maria seguiu-a para não mais

causar confusão. Pude ouvir os gritos histéricos da condessa

com Maria no corredor.

Minha vida estava parecendo um pesadelo. Botei as

mãos no rosto, sem saber que rumo tomar. Precisava ter forças

para mim, para Maria e para todos que me cercavam. Não

aguentava mais ficar trancada naquele quarto, sem nada para

fazer. Pelo jeito, não poderia participar da festa de noivado de

Maria e Joseph, para não levantar suspeitas de que ambos

ficariam comprometidos. Pois, para o meu pai, a festa era para

comemorar o aniversário dela. Fiquei andando pelo quarto, de

um lado para o outro, como uma barata tonta, sem ter o que

fazer. Até que Maria voltou, trazendo Joana e também um

balde de água para eu tomar banho. Maria parecia ter

adivinhado que eu precisava relaxar e, logo após Joana sair,

colocou na água da tina um líquido que, segundo ela, far-me-ia

relaxar completamente. Enquanto me despia para submergir

dentro daquele líquido, ela falou:

– Se não fosse pela senhorita, hoje, por certo, eu teria

perdido as estribeiras. Já não aguentava mais vê-la ofendendo

a senhorita e eu daquela forma.

– Percebi, Maria. Só que teremos que ter muita cautela

de agora em diante, ou poremos tudo a perder. Preocupo-me

contigo, pois tem muito mais a perder do que eu.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 398 -

– Não diga uma tolice dessas. Ambas temos muito a

perder. Só não sei se não farei um feitiço para me vingar da

condessa, pois ela conseguiu hoje me tirar do sério.

– Não diga isso, Maria. Sabe que não deve criar

energias negativas em volta da senhora. Limpe seu coração.

Não desperdice o poder da magia com uma pessoa tão

medíocre como a condessa, pois não vale a pena. Lembre-se de

que temos o livre arbítrio, e essa escolha é somente sua.

– Sei disso. Mas, se temos o livre arbítrio, por que ela

não escolheu o lado bom e menos cruel?

– Tudo bem, então. Concedo-lhe a permissão para usar

apenas um pequeno feitiço para dar à condessa uma lição. Mas

tem que me prometer que me dirá o que é.

– Ainda pensarei o que será, mas lhe direi, com certeza.

Agora preciso descer, ou terei que fazer um chá para a senhora.

Seria tão bom se pudesse fazer um dos meus preparos

especiais... Daqueles que fazem pessoas como ela dormir para

sempre!

– Maria! Nem brinque com isso. Poderíamos ser

jogadas em óleo fervente só de ouvir-nos dizer tal barbárie.

Ela saiu, rindo como uma bruxa que era. Fiquei

pensando, quando ela fechou a porta, no quanto uma pessoa

sozinha pode contaminar tudo de bom ao seu redor. A

condessa despertou em Maria o seu lado negro e perverso e,

mesmo que ela nunca colocasse em prática, já havia sido

contaminada. Se isso acontecesse com outra pessoa de caráter

fraco, com certeza ela teria criado uma raiz maligna em seu

coração.

Adormeci profundamente dentro daquela água

quentinha e relaxante. Despertei, assustada, com uma voz

rouca falando muito próxima ao meu ouvido:

Adriana Matheus

- 399 -

– Que pele macia, senhorita Anna! Aposto que estava

sonhando comigo.

Dei um salto dentro d’água, tentando esconder-me

daquele invasor.

– O que está fazendo aqui, senhor conde? Como se

atreve a invadir a privacidade de meus aposentos?

– Não consegui resistir quando ouvi a senhora Maria

comentando com o jardineiro que a senhorita estava no banho.

Aproveitei-me da oportunidade de todos estarem entretidos

com os preparativos da festa e subi para vê-la em seu estado

natural. Confesso que não poderia ter uma visão melhor,

depois de uma noite tão estafante como a de ontem e um dia

tão decepcionante como o de hoje.

– Saia daqui agora ou chamarei meu pai para retirá-lo

pessoalmente!

– Senhorita Anna, seu pai tem dívidas muito altas

comigo. Se vier atender seus apelos de donzela em perigo, por

certo fará olhos e ouvidos de mercador. E ainda tem um outro

fator: por que não trancou a porta de seus aposentos? Por certo

estava esperando que eu subisse. Ninguém acreditará na

senhorita. Então, só lhe resta ser boazinha.

Ele colocou a mão dentro da banheira, tocando meu

corpo nu. Senti-me congelar dentro da água quente. Meu

fôlego estava se esvaindo.

– O senhor é um crápula e enoja-me.

Ele segurou meu rosto com toda a força, deixando-me

completamente sem nenhuma reação. Naquele momento, a

condessa entrou no meu quarto e flagrou-me no exato

momento em que o conde tocava-me intimamente.

Definitivamente, aquele não foi um bom dia para mim. A

condessa, usando de suas ironias vulgares, disse:

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 400 -

– Ora, ora! Mais que cena mais fascinante e romântica.

O jovem conde e a bruxa, juntos em um lânguido caso

amoroso. Imagina só se não é a mesma bruxa que anda me

desafiando e me acusando de leviandades! O que pensaria seu

pobre pai se entrasse neste exato momento? Por certo, não

ouviria nenhum argumento notório.

– Não é o que está pensando. – eu disse, tentando

afastar aquele homem, que não saía de perto de mim.

– E como sabe em que estou pensando? Ah! Havia

esquecido: também lê pensamentos, não é, bruxa maldita?

Levantei-me da banheira, sem me preocupar com

minhas condições de nudismo. O conde olhou-me como um

cão cheirando o cio. A condessa, com desprezo. Peguei a

toalha e disse-lhes:

– Saiam os dois do meu quarto, agora! Antes que eu

comece a gritar por socorro! E garanto que será muito

agradável ver os capatazes de meu pai tirando-os daqui para

fora aos safanões.

– Se sua madrasta não nos tivesse interrompido,

teríamos nos divertido muito. – disse o conde, dando uma

gargalhada que mais parecia ser um eco vindo do inferno,

enquanto se retirava dos meus aposentos.

A condessa seguiu-o e parecia haver cumplicidade

entre aqueles dois a respeito daquela situação. Fechei a porta -

com chave desta vez - e pude ouvi-los do lado de fora.

– Espero que tenha conseguido pelo menos fazer seu

trabalho decentemente.

– Se a senhora não tivesse chegado tão em cima da

hora e pudesse ter guardado sua curiosidade, por certo eu teria

ido até o fim.

– Ela não cederia assim tão fácil.

Adriana Matheus

- 401 -

– Não mesmo? Não conhece os meus métodos de

persuadir uma dama?

– Hum! Por certo não foram tão eficazes.

Depois de um tempo, não consegui ouvi-los mais, pois

se distanciaram a caminho das escadas. Mas de uma coisa

estava certa: os dois estavam juntos naquela trama. Ambos

davam-me náuseas. Arrumei-me rapidamente, sem dar

importância ao luxo. Coloquei apenas um vestido de renda

branca e um xale bege para proteger-me do frio da noite. Desci

as escadas, com medo de ser recepcionada pelos dois crápulas

no meio do caminho. Corri para os aposentos de Maria, que

estava se aprontando para a festa.

– Senhorita Anna! Não deveria estar aqui. É muito

arriscado, depois de tudo que passou hoje.

– Arriscado é ficar sozinha no meu quarto. Não faz

ideia do que tive que passar até decidir estar aqui agora.

Contei à Maria tudo que havia ocorrido.

– Então, senhorita Anna, não saia de perto de mim. Se

possível, durma aqui hoje. Definitivamente, temos que dar

uma lição em sua madrasta. Ela não pode continuar do jeito

que está, pensando que pode fazer o que quiser com todas as

pessoas.

– Olhe, Maria, até agora tenho escondido da senhora o

meu plano. Mas, pelo que vejo, terá que estar ciente dele para

também poder se defender. Preste bem atenção, pois não quero

que tenha nenhuma dúvida. E quero que saiba que essa é a

minha decisão final. Joseph está apoiando. Portanto, só falta

que a senhora se entere do meu plano agora.

Expliquei todo o plano à Maria, que me ouviu atenta. O

plano era o seguinte: Joseph esperaria por Maria na saída do

bosque dos mortos, enquanto eu e Maria faríamos o ritual da

chuva, normalmente. Assim que o ritual terminasse, ela sairia e

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 402 -

se encontraria com Joseph no local combinado. Eu, porém,

ficaria no lugar onde realizaríamos o ritual da chuva. Depois

de limpar tudo, rasgaria minhas vestes, jogaria sangue de

galinha em cima de mim, e fingiria um desmaio. Assim,

quando o conde, a condessa e meu pai chegassem com a

milícia, pensariam que fui vítima de um ritual de magia negra.

Fingiria estar tendo convulsões até que eles me levassem em

segurança para casa. Quando lá já estivesse, daria um jeito de

tomar um remédio que eu mesma haveria de preparar para que

dormisse até o dia seguinte - o que daria tempo de Joseph e

Maria escapar. Quando eu acordasse, começariam as

interrogações e eu diria que não conseguia me lembrar de

absolutamente nada. Diriam que eu estava sob influência

demoníaca e chamariam por padre Ignácio. Então, eu contaria

todos os fatos a ele e pediria que ele dissesse que a única

solução seria que me internassem em um convento, em São

Francisco, onde eu poderia cumprir o restante do meu destino.

Logicamente, não diria que Maria era a culpada. Eu

diria a todos que ela fugiu com Joseph porque ambos estavam

com medo e não queriam compactuar comigo naquele tipo de

insanidade.

Maria, depois de ouvir-me atentamente, falou:

– Esse seu plano é muito arriscado, senhorita Anna. E

pode não funcionar da maneira como a senhorita imagina. E

quanto ao diário de sua mãe? E se padre Ignácio não conseguir

recuperá-lo?

– Já pensei nisso também, querida Maria! Esse será o

plano dois. Caso isso ocorra, direi a todos que fiz tudo porque

estava influenciada pelas palavras do livro. Minha mãe há de

me perdoar por essa mentira, mas tenho que encontrar o meu

grande amor e não posso, de forma alguma, deixar que me

obriguem a casar-me com aquele assassino.

Adriana Matheus

- 403 -

– Vejo que a senhorita pensou em tudo mesmo!

Mesmo assim, ainda é arriscado deixá-la com esse homem e

sua madrasta. Não sei como Joseph pôde aceitar fazer o que a

senhorita lhe pediu. Ambos perderam a noção do real perigo,

é? Vou procurar Joseph imediatamente e cancelar isso tudo.

– De jeito nenhum! Fará tudo como o combinado e

fugirá no dia do ritual da chuva - amanhã. Confie em mim,

Maria, tudo dará certo.

– Senhorita Anna, e se não acontecer assim como

esperamos? Confio na senhorita, mas não confio no diabo e

nas pessoas que são usadas por ele.

– Tenha calma, minha amiga. Acontecerá exatamente

do jeito que estou planejando, acredite! Preparei um sortilégio

do tempo que fará tudo acontecer como quero. Agora, deixe-

me vê-la. Hum... Está linda! Joseph é mesmo um homem de

muita sorte.

Dei-lhe um beijo e abracei-a muito forte, pois estava

chegando a hora de nos despedirmos de nossa amizade. Maria

percebeu isso em meu abraço e chorou. Porém, sequei suas

lágrimas com a ponta dos meus dedos e disse-lhe:

– Seja forte, mulher! Escolhi esse destino. Sei que o

que estou fazendo é errado, pois estou antecipando-o e

interferindo no tempo e no espaço. Mas isso é o melhor a

fazer. Caso contrário, a senhora será crucificada pela

Inquisição.

Depois de dito isso, acompanhei-a até o jardim, onde

Joseph a esperava. Todos celebraram contentes, sem saberem

de nada. Às vezes, percebia no olhar de Maria certa tristeza.

Mas o restante da noite foi muito tranquila. A música durou até

alta madrugada. Samara, que estava presente com a mãe, fez-

me companhia o restante da noite, porque Maria tinha que dar

atenção aos seus convidados.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 404 -

Maria seria muito feliz ao lado de Joseph. Ela iria se

casar com um homem pobre, mas que pôde escolher. Não seria

uma união baseada em imposições ou chantagem. Estava

muito feliz por minha amiga. Ela, definitivamente, merecia ter

um pouco de felicidade.

Não conseguiria me ver jamais ao lado de um homem

por conveniências. O simples fato de pensar que poderia ser

tocada todas as noites por alguém pelo qual não sentia

absolutamente nada me embrulhava o estômago.

Às três da madrugada, a festa cessou e todos se

retiraram para suas casas. Alguns criados ainda ficaram

ajeitando tudo, para deixarem tudo em ordem para o dia

seguinte. Eu e Maria fomos para os aposentos dela. Naquele

dia, dormi no quarto de Maria para evitar novos contratempos.

Confesso que foi a melhor noite que já tive em toda a minha

vida. Quando amanheceu, Maria levantou-se e não quis me

acordar. Foi cumprir seus afazeres. Seria uma semana longa

para ela.

Às nove horas, levantei-me, vesti-me e fui à cozinha

para comer alguma coisa. Percebi que todos estavam muito

felizes e Tereza cantarolava. A festa havia surtido um efeito

positivo no coração dos criados. A copeira, ao ver-me, saiu de

mansinho. Percebendo que ela iria fazer alguma coisa, segui-a.

Não estava enganada: encontrei-a junto à condessa, levando

informações sobre mim. Cheguei de mansinho por trás das

duas e falei:

– O que a senhora está ganhando em dar informações

sobre mim à senhora condessa e ao conde? Sei muito bem o

que a senhora fez. Sei que colocou entorpecentes na minha

bebida.

As duas não souberam o que me responder. Prossegui:

Adriana Matheus

- 405 -

– É assim, condessa, que a senhora consegue

informações a meu respeito? A senhora usa de métodos baixos,

subornando essa pobre infeliz. Mas diga a ela que, quando ela

não tiver mais nenhuma utilidade para a senhora e o conde,

vão descartá-la da mesma forma como está tentando fazer

comigo. Sinto muita vergonha das senhoras, pois ambas são

mulheres e estão sujeitas a passarem pelos horrores da

Inquisição. Mas, mesmo assim, julgam-se no direto de

inventarem falsas acusações para me condenarem a um destino

tão cruel.

A copeira, ao ouvir minhas palavras, caiu em choro

profundo e disse-me:

– Desculpe-me, senhorita Anna. Mas a condessa disse

que me despediria caso não fizesse tudo o que ela me pedisse.

Tenho uma filha que não se levanta da cama e depende muito

de mim. A condessa disse que pode dizer aos inquisidores que

minha filha está daquele jeito porque está possuída por

espíritos imundos. Desculpe, senhorita, mas minha filha é

muito importante para mim. Nada tenho além dela. Sou viúva

e não tenho outro meio de sustentá-la além desse trabalho.

– Nada neste mundo justifica o que a senhora está

fazendo comigo, pois nada lhe fiz. Por que a senhora não me

contou isso antes? Talvez eu pudesse ajudá-la. Sinto muito,

senhora Cornélia, mas não consigo achar uma justificativa para

que me tenha traído. Logo a mim, que sempre fui tão gentil

com senhora.

Saí, deixando as duas para trás. Ainda pude ouvir

quando a condessa gritou com a mulher como uma louca.

Encontrei Maria no caminho e chamei-a para ir à igreja

comigo. Ela concordou de imediato. Pedi a Lorenzo que

atrelasse os cavalos à carruagem. Em seguida, fui pedir

permissão ao meu pai, que autorizou sem fazer muitas

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 406 -

interrogações. Logicamente, disse-lhe que seria para tratar de

assuntos do meu casamento com o conde.

Depois de tudo estar pronto e Maria já ter dado as

ordenanças à criadagem, seguimos para o portão, onde

Lorenzo nos esperava. Foi aí que tive outra ideia súbita. Voltei

e perguntei a Joseph se ele poderia nos acompanhar até a

igreja, pois precisava marcar a data do casamento dele com

Maria. Ele disse:

– Bom, acho que os patrões não vão precisar de mim

agora. - aceitou.

Chegamos à igreja em pouco tempo, pois Lorenzo

resolveu correr com os cavalos. Deixei o casal rezando

enquanto procurava por padre Ignácio. Ao avistá-lo, ele veio

em minha direção e perguntou-me:

– Aconteceu algo, minha filha?

– Não, padre. Nada que o senhor já não saiba. Viemos

aqui pedir um favor ao senhor, mas terá que atender a esse

pedido meu o mais rápido possível!

Contei ao padre que Maria e Joseph haviam ficado

noivos em sigilo. E pedi-lhe se poderia, naquele momento,

realizar o casamento religioso dos dois para que não vivessem

em pecado. O padre olhou-os sentados no banco da igreja e

chamou-os:

– Então, meus filhos, estou ciente de que querem se

unir. Isso é verdade?

– Sim, senhor padre. - disse Joseph.

– E o que acham se eu lhes casasse agora?

Joseph olhou para Maria e ambos concordaram entre si.

Ele respondeu:

– O senhor nos faria essa caridade?

– Tratando-se de duas pessoas maduras, cientes dos

sentimentos que se sentem um pelo outro, por que não?

Adriana Matheus

- 407 -

Padre Ignácio vestiu-se a caráter para aquela cerimônia.

Prosseguiu com aquele ritual, que não demorou muito. Ele os

abençoou e, em seguida, disse:

– Estão casados agora diante de Deus e da Igreja. Nada

poderá separá-los.

O mais novo casal foi dar uma volta pela cidade,

enquanto fiquei na igreja, conversando com padre Ignácio. Ele,

porém, disse:

– Que bom, senhorita, que ficou aqui na igreja comigo.

Precisava mesmo ter uma longa conversa com a senhorita.

Andei sabendo que a Inquisição está investigando até mesmo a

casa da parteira Magdalena e da viúva Dolores, do senhor

Gustave e dos irmãos Johnson também.

– E o que fizeram de tão grave para merecerem ser

investigados pela Inquisição?

– A parteira Magdalena, dizem, usa rezas estranhas na

hora de fazer seus partos. Os boatos em torno desta mulher é

que as crianças que ela trouxe ao mundo têm tido

comportamentos estranhos. A viúva Dolores está vendendo

xaropes, cataplasmas e poções para unir casais. Dizem que ela

e suas filhas estão sendo usadas pelo próprio demônio para se

sustentarem. O senhor Gustave, dizem, está usando rezas

diabólicas para curar as supostas enfermidades alheias. Por

fim, os irmãos Johnson, dizem, não saem dos tabernáculos. À

noite, estão sempre sendo vistos rodeados por mulheres de

conduta duvidosa, sempre embriagados, rodopiando pelas ruas.

Usam nomes feios quando passam pelas senhoritas de boa

família. Não estão respeitando nem mesmo as senhoras

casadas. A comunidade está preocupada com que possam estar

influenciados por algum tipo de demônio sedutor e promíscuo,

que está usando a boa aparência dos rapazes para seduzir as

donzelas e as senhoras do vilarejo.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 408 -

– E o senhor, padre Ignácio, o que realmente acha disso

tudo?

– Prefiro ser agnóstico neste caso e deixar que a justiça

civil faça sua sentença.

– Hã? O senhor quer dizer que prefere ficar em cima do

muro como um covarde?

– O que posso eu, um simples padre de uma pequena

paróquia, fazer? Já não são muitos os paroquianos que me

aceitam. Por eu ter vindo de outra província e ter ideias

divergentes, sou considerado por eles um padre anarquista. Por

não ser um homem de idade avançada e não ter nascido na

Espanha, sabe muito bem que passo por muitas dificuldades.

Se eu interferir nestas questões da Inquisição, então, serei por

certo excomungado. Senhorita Anna, sei como se sente em

relação a toda essa desigualdade. Mas o mundo,

principalmente o mundo masculino, envolve muitos preceitos e

regras. Sabe que as mulheres são muito visadas e não devem

sair por aí, expondo-se de qualquer maneira. A Igreja tenta ser

branda nestes casos. Mas há muita pressão política e

socioeconômica que envolve todas essas questões. O

financeiro do mundo fala mais alto. A Igreja vive de verbas e,

embora tenha uma boa influência sobre a monarquia, ainda

assim recebemos ordens superiores. Infelizmente, senhorita

Anna, não posso opinar nestes casos.

– Mas, no fundo, o senhor sabe que essas pessoas são

inocentes?

– Até que provem o contrário, sim.

Senti-me tão impotente como o padre Ignácio. Se não

poderíamos ter uma parteira, por que então os doutores não

atendiam gratuitamente as mulheres pobres da vila? Se Deus

escrevia certo por linhas tortas, por que não deixavam a viúva

Dolores e o senhor Gustave curarem da maneira que Deus lhes

Adriana Matheus

- 409 -

tinha permitido? E quanto aos irmãos Johnson, eram jovens

demais e tinham vindo recentemente do mar. Queriam gastar

seu dinheiro promiscuamente, se assim fosse. Mas a vida

alheia sempre incomodava. Pois, desta forma, era mais fácil

esquecer os próprios problemas, e - é claro - desviar a atenção

alheia para outro lado.

Mediante aquela conduta acovardada de padre Ignácio,

percebi que não poderia contar mais com a ajuda dele.

Colocaria em prática, então, o plano dois. O padre, percebendo

que eu estava absorta em meus pensamentos, chamou-me:

– Senhorita Anna!

– Sim, padre Ignácio. Perdoe-me, distraí-me em meus

próprios pensamentos. O que estava mesmo falando comigo?

– Estou preocupado no momento é com a senhorita. Se

a Inquisição virar-se para sua pessoa, não sei o que acontecerá.

– Serei levada para um convento!

– Se isso acontecer, depois de uma acusação de

bruxaria, sofrerá horrores, pois as freiras de qualquer convento

em que lhe puserem obrigá-la-ão a fazer de tudo. Suas

penitências serão as piores, pois sempre lhe acusarão de

bruxaria - não importa o que diga ou faça. Quero que me diga:

é uma bruxa ou não?

– Se eu disser que sim, entregar-me-á ao inquisidor?

– Não estou aqui para julgá-la, mas ficarei atento para

ajudá-la no que me for possível.

– Sim, sou uma bruxa. Mas, independente do que o

senhor possa pensar, não fazemos mal a ninguém. Não

cultuamos o demônio, não comemos criancinhas, não

seduzimos homens casados, não tiramos ninguém de suas

famílias. Consideramos o matrimônio um laço sagrado. Nosso

compromisso é com Deus e com as forças da natureza. Não

somos santas - ninguém é. Temos um dever com a

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 410 -

humanidade: o dever do bem comum, da caridade sem olhar a

quem. Somos diferentes, porque vocês assim o querem. Porque

todo mundo nesta vida tem um quê de bruxa.

Padre Ignácio deu um passo para trás e tampou a boca,

em sinal de espanto.

– Santo Deus misericordioso!

Puxou-me pelo braço, afastando-me ainda mais das

pessoas ali presentes.

– Senhorita Anna, não diga isso a mais ninguém. Caso

contrário, os resultados serão catastróficos.

– Padre, isso não é uma coisa da qual me envergonhe

ou pela qual tenha que me sentir mal. Lógico que não vou sair

por aí, dizendo aos quatros cantos da terra que sou uma bruxa.

O padre tampou minha boca com sua mão em sinal

desaprovação ou medo.

– Calma, padre. Sei o que o senhor está pensando: que

pode perder a batina ou ser excomungando por ser visto em

companhia de uma bruxa. Mas não se preocupe porque, se

depender de mim, ninguém saberá da minha condição.

– Não, senhorita Anna. Temo por você mesma.

– Nunca negarei quem sou. Nunca mudarei minha

maneira de ver as coisas. Nunca me transformarão em uma

pessoa comum e sem vida. Não serei como o gado, padre,

nunca. Antes de respeitar as pessoas, respeito-me. Antes de

respeitar as crenças dos outros, respeito meus princípios.

Amai-vos uns aos outros como se amam a si mesmos. Jesus

não disse isso?

– Sim, filha. Mas pode parecer blasfêmia aos olhos das

outras pessoas - principalmente aos olhos de um inquisidor. É

muito jovem para pensar desta maneira e não será

compreendida. Tudo bem que não quer mudar sua maneira de

pensar, mas pode fingir para não se prejudicar.

Adriana Matheus

- 411 -

– E em que isso me fará ser diferente de todos? Não, o

senhor não conseguiria me entender. Prefiro morrer queimada

a me anular como pessoa e como ser humano.

Ele só fez abaixar a cabeça. Por fim, falou em um tom

que mais parecia um sussurro:

– Então, sinto não poder fazer mais nada pela senhorita.

Só queria poder ter sua coragem.

– Hum, talvez não possa intervir por mim. Mas, se não

tiver medo de pegar uma doença ou de ser possuído por um

espírito maligno, e se quiser dar-me um abraço, não farei

objeção.

Ele sorriu e disse:

– Claro, minha amiga. Saiba que nem acredito nessas

superstições.

Demo-nos um gostoso abraço fraternal. Isso não era

para todos. Reparando em sua tristeza, resolvi fazer um

comentário:

– E se eu tiver muita sorte, poderei contar com sua

visita quando estiver no convento. Afinal, sabe que só um

padre tem permissão de visitar uma pessoa como eu.

Ele me afastou de seus braços. Olhando-me fixamente

nos olhos, indagou:

– Por que insiste em dizer que irá para um convento?

Então, depois de um grande suspiro, contei-lhe tudo o

que eu havia passado naqueles últimos dias.

– É bonita a sua história, senhorita Anna. Mas por que

acha que o senhor Juan lhe enviará para o mosteiro de San

Francisco?

– Em primeiro lugar, para não deixar que a notícia

escape e corra o risco de sujar o nome de sua amada esposa.

Em segundo lugar, porque usará toda a sua influência para que

eu não seja queimada viva. Não porque me ama, mas por

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 412 -

castigo de eu não querer me casar com o conde, e também por

crer que vou detestar ir para lá. E, em terceiro lugar, por

preguiça de procurar algo mais distante mesmo. Sem saber, ele

me estará empurrando para o meu destino.

– E como pode saber que esse suposto monge não é

alguém influenciado pelo próprio demônio para fazer com que

peque, desmoralizando o nome da Santa Madre Igreja?

– Padre... Muito me admira o senhor falando desta

forma!

– Tem razão. Não estou aqui para julgar ninguém. Só

espero que tenha razão nisso tudo, pois não gostaria de visitá-

la na Crucilândia.

Rimos e voltamos para o meio dos convidados, antes

que outros comentários maldosos surgissem sobre mim e do

pobre padre. Na verdade, eu estava muito satisfeita por ter

contado a alguém além de Maria. Foi como um desabafo.

Encontrei Maria conversando com seu esposo. Ela era

pura felicidade. Essa missão eu já havia cumprido. Fiquei

admirando aquele casal, até que eles se afastassem mais e eu

os perdesse de vista. Mas... alegria de bruxa dura pouco.

– Achou que escaparia de mim, querida, escondendo-se

atrás da batina de um padreco?

Não precisei virar-me para saber que era o conde.

Virei-me lentamente e respondi-lhe à altura:

– Não está sendo um tanto pretensioso em achar que

estou fugindo da sua pessoa? - olhei-o de cima abaixo.

– Não pensou desta forma quando tentou me seduzir

em seu quarto, ontem à noite, mostrando-me seu lindo corpo.

Formas perfeitas, devo dizer.

– O senhor sabe que não foi bem assim.

– A senhora sua madrasta estava presente e poderá

confirmar minha versão. Sabe que posso condená-la à

Adriana Matheus

- 413 -

fogueira. Posso dizer que o demônio em seu corpo tentou

seduzir-me para que não lhe entregasse.

– Senhor conde, em primeiro lugar: o senhor não tem

provas suficientes para me acusar de coisa alguma. Em

segundo lugar: sei que não é o inquisidor. Em terceiro e último

lugar: sei que anda de fornicação com minha madrasta. Mas

saiba que é preciso muito mais que ter posses, olhos azuis e

vestir calças. Sinto informá-lo de que o senhor vai ter que

nascer e renascer para tentar seduzir-me algum dia. Agora, se

me der licença, vou ter com os meus.

Ele agarrou-me novamente pelo braço, mais fui salva

por Lorenzo, que chegou naquele exato momento e foi logo

dizendo:

– A senhorita está precisando de ajuda?

– Sim, Lorenzo. Este senhor aqui presente estava

querendo me forçar a segui-lo.

– Sugiro que o senhor solte a moça agora, ou terei que

fazê-lo pessoalmente. - disse Lorenzo, fechando uma das mãos

e batendo contra a outra.

– Está desafiando minha autoridade, lacaio?

– Se for preciso... Posso até ser demitido, mas não

deixarei que encoste um dedo na senhorita Anna.

– Vejo que a senhorita Anna tem muitos admiradores.

Por hora, vou me retirar. Não me rebaixarei em lutar com um

lacaio aqui, no meio da rua. Mas saiba que vou voltar.

– Estarei esperando-o.

Ele se foi, mais uma vez.

– A senhorita está bem?

– Sim, Lorenzo. Graças ao senhor.

– Não estarei sempre por perto, senhorita. Deve ter

cuidado. Por que não conta para seu pai?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 414 -

– Bem que o faria, mas ele está certo de que o conde é

um santo e de que, firmando compromisso entre mim e ele,

salvará as finanças. Mas o conde só quer tirar proveito da

situação, desonrar-me e desfazer o compromisso em seguida.

Lorenzo fechou os punhos e disse:

– Que sem-vergonha, mau caráter... Se eu o pegar, juro

que o mato.

– Não vale a pena, Lorenzo. Pessoas como o conde

sempre conseguem o que querem. Por certo, ainda seria

condenado por causa de algo tão sem valor. Tem que pensar

em Samara. Por falar nela, por que não veio?

– Ela está terminando o enxoval, junto à mãe. Mas

mandou lembranças.

– Que bom saber que a mãe dela está bem, e que tudo

entre vocês continua encaminhando.

– Graças à senhorita! Conheci o amor da minha vida...

Sabia que ela está me ajudando com os estudos?

– Nossa, finalmente uma boa notícia! Sabia que Samara

seria a mulher ideal para o senhor. Posso lhe pedir uma coisa?

– Claro, o que quiser.

– Dê-me um abraço?

Sabia que seria a última vez que o veria. Lorenzo ficou

meio cabreiro, pois não entendeu absolutamente nada.

– Ande, homem! Aproveite que todos não nos estão

vendo, para evitar mexericos.

Então, ele me abraçou, finalmente, mas com um medo

de dar dó. Vi uma lágrima de gratidão em seus olhos. Tirei dos

bolsos um pequeno obséquio e coloquei em suas mãos.

– O que é isso, senhorita Anna?

– Não é muito, mas dá para ajudar com o casamento.

Consegui vendendo o meu colar de esmeraldas.

– Senhorita! Não poderei aceitar...

Adriana Matheus

- 415 -

– Se não o fizer, ficarei muito ofendida. Para onde

estou indo não precisarei de nada disso.

– E para onde a senhorita está indo?

– Saberá no momento certo.

– Agora, se puder, leve-me até Maria. Preciso falar-lhe

algo muito importante.

Ele me acompanhou em silêncio até onde estava o

casal.

Ao me aproximar de Maria, parabenizei-a pelo seu

casamento e contei-lhe o ocorrido desde a conversa com o

padre Ignácio até o encontro com o conde. Embora não

quisesse aborrecê-la, sabia que Maria não me deixaria em paz

até que eu lhe contasse tudo, pois aquela mulher me conhecia

apenas de olhar para mim.

– Senhorita Anna, não irei deixá-la sozinha hoje. Temo

que o conde invada seu quarto esta noite, pois ouvi seu pai,

enquanto eu ainda estava na casa, convidando-o para passar a

noite lá como hóspede. Dormirei com a senhorita.

– De jeito nenhum! Casou-se e agora deve ficar com

seu esposo. Imagina: no seu primeiro dia de lua de mel, já

separada de seu marido? Isso não é certo. Vá ter com ele. Sei

muito bem como me cuidar.

Joseph interrompeu-nos:

– Isso é que não mesmo! Maria está certa: esperamos

tanto tempo! Além do mais, um dia a mais ou a menos não fará

diferença. Não somos jovens, afoitos pela lua de mel. Nossa

relação será baseada na fidelidade, na confiança e no amor

verdadeiro. E isso sei que já temos. O resto é consequência

natural. Vá, Maria! Entendo completamente sua preocupação.

Não confio neste homem. Ele tem sangue ruim. Usa

artimanhas para conseguir o que quer.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 416 -

– Obrigada, senhor meu marido. Sabia que entenderia.

Criei esta jovem desde quando ainda era um bebê, e não a

deixarei logo agora, em nossos últimos dias juntas. Nada de

mal lhe acontecerá enquanto eu estiver por perto. Já está

decidido: dormirei em seu quarto. Se alguém vier interrogar-

me, direi que não fica bem que uma mocinha solteira durma só

debaixo do mesmo teto com o seu futuro marido.

Tudo ficou decidido por conta dos meus amigos, e

quem seria eu para contrariá-los? Fiquei muito feliz por saber

que existia amor por mim entre aquelas pessoas maravilhosas.

Nunca as esqueceria.

Depois de termos ido à casa de chá para comermos

algo, retornamos os três para casa. Estava exausta. Tudo o que

queria era tirar as roupas e os sapatos, e deitar-me para

descansar. Ao chegarmos à casa, não percebi nada demais.

Tudo parecia muito tranquilo. Maria voltou para seus afazeres

e Joseph a seguiu. Subi para meus aposentos. Dentro do

quarto, fui tirando toda a roupa, sem me preocupar com a

organização ou higiene pessoal, pois estava realmente cansada

devido à alta hora em que fui dormir na noite anterior. Resolvi

deitar-me, pois estava exausta. Puxei calmamente os lençóis

quando ouvi os cavalos muito agitados do lado de fora da casa.

Curiosa como sempre fui, não poderia deixar de ir ver o que

era. Ao chegar à janela, vi uma cena que realmente me

impressionou. Embora soubesse que era apenas uma visão, eu

tinha que saber do que se tratava. Então, fiz um pequeno ritual

para saber quem era o homem que apareceu naquela visão.

Fechei os olhos e apertei as mãos uma contra a outra, deixando

os dois indicadores em posição ereta. Abri os olhos e girei as

mãos, fazendo um círculo imaginário, abrindo, então, um

portal.

Adriana Matheus

- 417 -

Descobri que o homem na minha frente era o inquisidor

que me condenaria. Ele estava lá, de pé, em frente à minha

janela, segurando as rédeas dos cavalos. Parecia saber que eu

apareceria à janela. Mirei os indicadores juntos, em direção

àquela figura sinistra. Fixei meus pensamentos, canalizando

toda a minha energia. Senti toda minha força saindo do meu

corpo. Os raios eram de luz e abriram um portal em volta

daquela figura sinistra. O que vi foi realmente de impressionar,

pois criaturas terríveis que lhe cercavam: demônios

devoradores de energia, espíritos zombeteiros e desprovidos de

inteligência. Algumas dessas criaturas montavam-lhe as costas,

fazendo com que ele tivesse uma forma arcádica. Outros

falavam-lhe blasfêmias aos ouvidos. Alguns, ainda, mordiam-

lhe a panturrilha, fazendo-o ter dores abomináveis nas pernas.

Eram criaturas monstruosas e envolviam-no como sombras

negras. Também havia alguns espíritos revoltados, de pessoas

que ele havia condenado injustamente.

Maria chegou, trazendo-me um chá de hortelã,

camomila e cidreira. Fiz sinal para que ela ficasse em silêncio

e não chamasse a atenção daquelas criaturas, pois poderiam se

sentir ainda mais revoltadas e virem perturbar nossos sonhos à

noite. Maria fez uma oração de proteção e voltou-se para olhar

o que eu via. Em seguida, exclamou em um sussurro:

– Minha nossa! Quem é esta pobre alma atormentada?

Como consegue sobreviver com tanto tormento?

Os demônios ficavam ainda mais agitados a cada

movimento do inquisidor. Enquanto ele desatrelava os cavalos,

os demônios mordiam-lhe as orelhas, fazendo-o ter uma

espécie de cacoete. O coitado repuxava constantemente a

cabeça de um lado para o outro. Voltou a fitar-me e,

novamente, ficamos olhando um para o outro, inquisidor e

bruxa. Maria teve a boa ideia de puxar-me para dentro. Não

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 418 -

por medo dele, mas por chamarmos à atenção algum dos

demônios que estavam envolta dele. Encostamos à parede e

Maria fechou as cortinas, lentamente. Corremos juntas para a

cama e ficamos de mãos dadas. Maria colocou o chá para mim

em uma xícara de porcelana com florzinhas azuis. Tomei de

uma golada só. Ela se despiu para dormirmos. Também tomou

o seu chá de uma golada só. Naquela noite, resolvemos não dar

uma só palavra uma à outra, para evitar atrair tais energias

ruins para os sonhos.

Na manhã seguinte, ao acordar, Maria já não se

encontrava comigo. Já havia descido para preparar o desjejum

e verificar o banho que tomaríamos antes de começar o ritual

de purificação. Comecei a arrumar meus pertences e guardei

minhas coisas pessoais em uma tábua solta no chão. Guardei o

livro das sombras, a varinha e alguns amuletos. Arrumei todo o

quarto e fiz uma oração de despedida:

– Obrigada, Senhor, por ter sido meu amigo e mentor

durante essa caminhada tão difícil. Muito obrigada pelos

meus algozes, cuja incompreensão e intolerância fizeram-me

ver a luz, a Sua luz, Senhor. Guarde-me dos espíritos

malfeitores e zombeteiros. Mas que se faça em minha vida

somente a Sua vontade. Assim seja.

Maria estava atrás de mim, com a bandeja do desjejum.

Confiou-me o seu silêncio em sinal de respeito.

– Vim tomar café com minha amiga. Posso?

– Claro que sim, Maria. Vou adorar ter a sua

companhia para o desjejum. Alguém já se levantou?

– Somente Joseph e aquele diabo disfarçado de Lorde. -

Maria referia-se ao conde.

– E o que faz esse maldito, acordado a essa hora da

manhã?

Adriana Matheus

- 419 -

– Isso não sei. Mas é melhor prevenir. Por isso, estou

aqui, para tomar o desjejum com a senhorita.

Enquanto servia o nosso desjejum, Maria fez-me uma

pergunta que parecia não querer se calar:

– De quem era a visão daquele homem que vimos

ontem?

– Era do inquisidor que me irá sentenciar.

– Santo Deus! Nunca vi alguém com tantos demônios

de uma só vez. E o que é pior: aquele homem da visão parece

ser uma pessoa tão cega pelo ódio que não consegue perceber

que eles estão à sua volta.

– Maria, nem que ele quisesse poderia. Tem com ele

espíritos que estão impregnados em sua essência. Caso

tentássemos tirá-los, poderíamos levá-lo à morte, pois já fazem

parte um do outro.

– É. Mas talvez fosse melhor assim, pois ele pararia de

sofrer e de fazer sofrer todos à sua volta.

– Maria, sabe muito bem que qualquer coisa que leva

alguém a perder a vida e que não seja por morte natural é

considerado um crime imperdoável perante a lei de Deus e dos

homens.

– Mas podem nos condenar e nos matar por crimes que

nunca pensamos em cometer?

– Não estamos aqui para julgar.

– Mas podemos ser julgadas?

Maria estava revoltada por saber que eu seria

enclausurada em um convento e nada poderia fazer. Então,

resolvi dar por encerrada aquela conversa. Inclusive para evitar

conflitos mentais - o que poderia causar um desgaste de

energia desnecessário.

Depois de tomarmos o desjejum em quase total

silêncio, arrumei-me para extrair o óleo gerado pelo cozimento

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 420 -

das ervas, necessário para o ritual daquela noite. Saímos do

quarto nas pontas dos pés, para não acordar o resto da casa.

Chegamos à cozinha. Atravessei direto para a adega, onde abri

a porta secreta e fui aos afazeres. Mas, desta vez, Maria ficou

do lado de fora, para evitar surpresas desagradáveis. Enquanto

ela supostamente ficava na cozinha, adiantando os afazeres

domésticos, eu estava no porão, extraindo o óleo das ervas já

cozidas. Fiz um círculo de proteção em volta de mim. Este

círculo era feito com um pentagrama no meio, cercado por

dois círculos - um pequeno e um grande - e alguns símbolos.

Este símbolo é erroneamente chamado de o olho do diabo.

Deixei de lado todo o mundo ao meu redor. Comecei

no preparo do óleo que eu usaria. Purifiquei meu espírito com

orações que surgiram em minha mente, na mesma língua na

qual havia falado no primeiro dia em que entrei ali. De

repente, Maria veio correndo chamar-me:

– Venha depressa, senhorita Anna! Seu pai já

perguntou por você duas vezes. Disse que ainda estava

dormindo, mas agora não tenho mais nenhum argumento.

Entreguei à Maria todas as poções. Ela as guardou em

sua bagagem, que já estava pronta para a fuga daquela noite.

Deixei comigo somente a que usaria no ritual. Fui para o

jardim e fingi que estava lendo um livro, debaixo da minha fiel

árvore. Meu pai parecia aflito a me encontrar, pois veio afoito

ao meu encontro:

– Onde estava? Procurei a senhorita por toda a casa.

– Por certo não deve ser nada de tão importante, vindo

do senhor...

– O conde queria despedir-se da senhorita.

– Não disse? Não era mesmo nada de tão importante

assim.

Adriana Matheus

- 421 -

– Não creio que esteja lhe dando a atenção que ele

mereça.

– O senhor não se preocupa mesmo comigo, não é, pai?

Ou o senhor é cego ou não percebe realmente que esse homem

é mau caráter.

– Não é verdade. Tanto me preocupo que estou vendo

nesta união uma oportunidade de vê-la bem de vida quando eu

não estiver mais por aqui. E o que quer dizer quando faz

tamanha acusação?

– Pai, o senhor conde está...

A condessa interrompeu-nos no exato momento em que

eu iria revelar suas proezas junto ao seu amante.

Imediatamente, ela disse, parecendo adivinhar o que eu haveria

de revelar a meu pai:

– Juan, venha. Recebemos um convite para o baile dos

Menellaus. Acho melhor que envie uma resposta, pois não

perderia esta oportunidade de poder estar presente em baile

como esse.

– Minha filha, como percebeu, temos uma festividade a

mais. Por certo deve ser o jantar de noivado da senhorita

Lucinda. Espero que tenha um bonito vestido para logo à noite.

A propósito, o que estava mesmo tentando me falar?

Olhei para a condessa, que estava esperando minha

resposta se eu iria ou não ao tal jantar.

– Não é nada, pai. Deixa para lá. O senhor não veria a

verdade, nem que ela fosse uma raposa vestida de ovelha. E

não sei se quero ir ao jantar. Não estou me sentindo muito

bem.

– Seu futuro noivo irá. Então, não quero mais falar

sobre esse assunto. Vou entrar com a condessa, mas estaremos

lhe esperando na sala de estar. Portanto, não se demore, por

favor.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 422 -

Fiquei quieta, vendo-os sair da minha frente. A

condessa estava de braços dados com meu pai, mas não podia

deixar de olhar para trás e fazer uma careta zombeteira. Sacudi

a cabeça de forma negativa, achando aquela atitude muito

infantil.

Não demorei para seguir as ordens que meu pai havia

me dado e voltei para dentro de casa. Meu pai e sua esposa

passaram a manhã na sala de estar. A condessa resolveu

demonstrar seus dons musicais ao piano. Toda aquela

satisfação significaria duas coisas: ou meu pai estava muito

inspirado a noite passada - o que era pouco provável, pois

dormira embriagado -ou ela estava disfarçando a sua maldade,

tramando contra mim junto ao seu consorte de luxo. Ou seja: o

conde e ela já sabiam o que fariam para me incriminar. Mas eu

já estava preparada, pelo menos era o que eu esperava.

Ao ver-me, o conde veio em minha direção, com um

sínico sorriso de satisfação. Beijou minha mão e perguntou:

– Onde a pequena mariposa andou pousando? Não a vi

a manhã toda.

– Estava em meu quarto, mas é claro que o senhor já

sabia disso.

– Será mesmo?

– Se o senhor está insinuando alguma coisa, é melhor

que fale aqui e agora.

– Não estou com vontade de discutir com a senhorita,

pois agora estou de saída para resolver alguns negócios

pendentes. Mandei chamá-la por isso. Mas saiba que a

esperarei no baile desta noite.

Dizendo isso, o conde virou-se para meu pai para se

despedir.

Adriana Matheus

- 423 -

– Por que tanta pressa, senhor conde? Fique para o

almoço. Sabe que é um prazer tê-lo como hóspede em nossa

casa. – disse meu pai.

– Não se preocupe, senhor Juan. O senhor terá o prazer

de ter-me muitas noites a fio em sua casa como seu hóspede.

Depois disso, ele se despediu da condessa e saiu com

meu pai. Voltei, então, para o meu quarto, sem me despedir da

condessa - não queria pegar energia negativa daquela mulher.

Precisava me preparar para ter forças para a peça teatral que

montaria logo à noite.

Maria veio ao meu quarto, algumas horas depois,

perguntar se eu queria que ela trouxesse o almoço para mim.

Respondi-lhe que não, só queria ficar um pouco quieta com os

meus pensamentos. Então, ela se retirou.

Depois de algumas horas lendo meu livro, acabei

adormecendo profundamente e sonhei com o meu amor

verdadeiro. Ele estava tão bonito! Estava feliz e sorridente e

disse-me Está muito perto de nos encontrarmos. Tenha um

pouco de paciência, meu amor. Então, quando ele ia pegar a

minha mão, alguma coisa aconteceu, pois o vi caindo em um

abismo negro e acordei chorando. Passei as mãos pelos olhos,

levantei da cama e andei pelo quarto, de um lado ao outro. Era

a segunda vez que o via caindo em um precipício. Maria

entrou sem bater, parecendo aflita. Foi logo dizendo,

interrompendo meus pensamentos:

– Se pai pediu que se aprontasse. Sairão mais cedo,

porque parece que irá chover. O que a senhorita fará para se

livrar desta questão? Não poderei estar presente nesta festa, e

sabemos muito bem que o conde se fará presente.

Depois de pensar alguns minutos, respondi-lhe:

– Traga-me umas toalhas bem quentes. Lembre-se de

que quanto mais quente, melhor.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 424 -

– O que fará, menina?

– Nada demais. Só não vou a festa alguma com aquele

homem.

Maria, mesmo sem saber o que eu faria, saiu para

cumprir o que eu lhe havia pedido. Duas horas depois,

retornou com as toalhas quentes e encontrou-me toda arrumada

para o baile. Colocou as mãos na cabeça e perguntou:

– O que a senhorita, toda arrumada desse jeito, quer

fazer com dúzias de toalhas quentes?

Porém, não lhe respondi. Apenas pedi-lhe outra coisa:

– Maria, preste atenção: quero que desça e diga a meu

pai que suba para vir buscar-me aqui em cima.

– Mas não disse que não iria?

– Faça o que eu lhe estou pedindo, mulher. Não se

preocupe: dará tudo certo.

Quando meu pai chegou à porta e, correndo em minha

direção, disse:

– Anna! Santo Deus, filha! Está bem? Seu rosto está

vermelho como um tomate.

Quando colocou as mãos em mim, sentiu o calor do

meu corpo.

– Cristo! Deve estar com uns quarenta graus de febre.

Por que não está na cama?

– Porque o senhor disse para não desacatar suas ordens.

Prefiro ir a receber uma surra.

– De jeito nenhum. Ficará em casa, mocinha, e cuidará

desta febre. Por certo é o resfriado que teve e que ainda não

curou totalmente.

Chamou Maria aos berros. Até eu mesma acreditei na

minha suposta doença. Quando Maria chegou a meu quarto,

olhou-me sem entender absolutamente nada. Fez-me uma cara

de quem estava desconfiada.

Adriana Matheus

- 425 -

– Cuide bem de minha filha e faça com que essa febre

suma de vez. Use seus chás. Por certo, sempre funcionam.

Depois, virou-se para mim e falou exatamente o que eu

esperava ouvir:

– Não se preocupe, filha. Direi aos anfitriões e ao

conde sobre seu estado febril.

Beijou minha testa e constatou a temperatura alta do

meu corpo. Deu mais algumas ordens à Maria e saiu em

seguida. Corri para a janela e fiquei olhando de meia greta, até

eles sumirem na outra extremidade da rua. Maria, assim que

percebeu que o casal já estava bem longe, indagou:

– Menina, o que foi que fez? Seu pai estava totalmente

desnorteado. E não adianta mentir para mim, pois bem sei que

é mais uma de suas artimanhas. Acaso usou algum tipo de

feitiço para uso próprio? Sabe muito bem que não é permitido

usar sortilégios para engambelar os outros.

Nem consegui responder, pois estava muito

concentrada, tentando tirar aqueles panos enrolados em volta

do meu corpo. Ufa! E torce daqui e puxa acolá... Tirar aquele

monte de toalhas quentes era uma questão de honra e

desespero, pois quase morri de tanto calor. É que eu havia

escondido as toalhas debaixo do espartilho e dentro dos

saiotes. Para aparentar um rosto avermelhado, coloquei uma

das toalhas quentes nas faces. Antes de meu pai chegar, joguei-

a debaixo dos travesseiros. Maria ficou ali, olhando-me

admirada, sem saber de onde vinha tanta toalha. Por fim,

acabou rindo largamente, sem parar. Então, depois de me livrar

daquela tralha quente, disse à Maria:

– Confesso que já estava assando. Agora vamos rápido.

Senão, não teremos tempo suficiente.

Descemos as escadas correndo e, ao passarmos para o

hall de entrada, pedi à Maria que me buscasse um xale que eu

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 426 -

havia esquecido em seu quarto. Quando Maria chegou, saímos

rapidamente ao encontro de Joseph. Ele já estava na lateral da

casa, de prontidão, esperando-nos com uma pequena charrete,

já atrelada aos cavalos. Ao ver-nos, olhou para Maria e falou:

– Santo Deus, mulher! Por que está trazendo tanta

tralha?

Maria, levantando as duas maletas de couro, respondeu:

– Uma são os meus pertences pessoais. A outra são

coisas que trago comigo e não lhe dizem respeito, ora!

Joseph olhou-a, respirou profundamente, mas nenhum

outro comentário fez em seguida. Colocamos, então, todas as

coisas na charrete e seguimos em direção ao bosque dos

mortos. Lembrei-me, exatamente naquele momento, de uma

lenda do século XIV: havia uma jovem feiticeira que, por onde

quer que passasse, secava tudo. Ela era o mal encarnado,

segundo os moradores. Então, resolveram caçá-la. Depois de

julgá-la no tribunal local, decidiram dar-lhe uma cruel

sentença. Amarram-na a uma árvore até que morresse de fome,

de frio e de sede. Ela foi devorada pelos lobos. Contavam,

ainda, que durante seus dias de flagelo, ela urrava como um

animal feroz. Seus gritos de horror eram ouvidos até mesmo

pelos moradores da aldeia vizinha. Outros diziam que ela

amaldiçoou aquela floresta, não deixando que nenhuma planta

saudável brotasse de seu solo. Nas noites do dia trinta e um de

outubro dos anos seguintes, alguns aldeões juravam ter ouvido

seus gritos de desespero ecoando pelo vento. Diziam que até o

vento vindo daquele lugar era amaldiçoado e trazia o cheiro de

enxofre do inferno.

Escolhemos aquele lugar porque o acesso era difícil.

Muitos não se atreveriam a ir até ali, por medo das lendas

locais. Era um trajeto difícil e já estava começando a chover.

Algumas vezes, tivemos que descer da charrete e ajudar Joseph

Adriana Matheus

- 427 -

a desatolar as rodas do lamaçal. A charrete era frágil e

balançava muito e, o que era pior, fazia um barulho

insuportável. Não tive medo da escuridão mortal que cercava

toda a floresta. Mas o lugar, confesso, congelou meu coração.

Se olhássemos para frente, não víamos absolutamente nada. E

se olhássemos para trás, não conseguíamos ver sequer o chão.

Somente um homem como Joseph, experiente em trilhas,

conseguiria entrar e sair daquele lugar coberto pela escuridão e

a névoa constante. A tristeza e a agonia eram contagiantes.

Tinha cheiro de morte no ar, o que fazia jus ao nome dado

pelos aldeões. Era como se um espírito desesperado por

socorro estivesse por perto, implorando para ser ouvido. Por

fim, resolvemos parar. Escolhemos um local perto de uma

velha árvore petrificada, chamada de árvore do sacrifício.

Joseph levou a charrete para a estrada, mais fundo,

escondendo-a perto de um arbusto seco. Olhei todo aquele

ambiente sem vida e me comovi. Não sabia até que ponto

aquelas lendas eram verdadeiras, mas de uma coisa tinha

certeza: algo de muito ruim tinha acontecido naquele local.

Toda a vegetação havia secado totalmente. As árvores

pareciam estar mortas, e nem a grama crescia. Não havia pio

das corujas, nem uivo de lobos. Nem as crianças da noite, os

morcegos, voavam assombrando-nos com seus bateres de asas

rasantes.

Olhei para Maria, que parecia ter tido a mesma

impressão que eu. Fomos para trás das árvores e tiramos

nossas roupas. Ficamos somente de camisolas. Maria ungiu

todo o meu corpo com o óleo de girassol. O mesmo fiz com o

dela. Acendemos uma fogueira para nos aquecer, pois o vento

silvava e soprava fortemente. Mesmo que pressentíssemos que

em breve a chuva cairia, teimamos em acender a fogueira para

nos aquecer. Assim também pensávamos conseguir enxergar

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 428 -

melhor o local. Mas foi uma tentativa inútil, pois só

enxergávamos as coisas que estavam próximas de nós, pois o

nevoeiro era intenso e misterioso. No céu, as nuvens

começaram a se formar. Logo a Lua foi sumindo. Quando os

primeiros pingos começaram a cair, já havíamos preparado

todo o local. Enquanto Maria espalhou as sementes de

girassóis em volta de toda aquela árvore petrificada, eu fazia o

círculo, usando a vassoura sagrada. Depois, desenhei o

pentagrama da proteção no meio do círculo sagrado e giramos

nossas varinhas no ar, fazendo desenhos desconexos.

Clamamos os sete nomes sagrados da magia. Depois,

plantamos em todo o local as mudas que eu havia pedido a

Joseph para conseguir para mim. Fizemos isso para fertilizar

aquele lugar morto. Por fim, começamos as rezas em voz alta:

– Senhor, que a grande Deusa possa ouvir a nossa

humilde oração. Que possamos, com o nosso amor e bondade,

trazer de volta a beleza, a fertilidade e a paz para esse lugar

triste e sombrio. Que a nossa irmã desencarnada consiga

sentir toda a proteção emanada deste círculo sagrado. Que

seu coração se abra para o amor e o perdão, para que seu

espírito possa libertar-se desta prisão de ódio e ressentimento.

Pedimos ao espírito aprisionado de Áurea Scoth que se

manifeste, para que possamos mostrar-lhe o caminho a seguir.

Os espíritos aprisionados por Áurea àquelas árvores

foram se manifestando, dando formas aos troncos. Seus

gemidos de sofrimento eram assombrosos e torturantes a

qualquer ouvido lúcido. Mas não podíamos dar a impressão de

que sentíamos medo, pois qualquer demonstração de fraqueza

poderia deixá-los muito agitados e afastar o espírito de Áurea

Scoth de nós. De repente, uma brisa cheirando a cipreste

aproximou-se, mas não conseguiu entrar no círculo, cuja

função era exatamente essa. O que está fora não pode entrar, e

Adriana Matheus

- 429 -

o que está dentro não poderá ser atingido por nenhum espírito

imundo ou atormentado. Sabíamos que o cheiro de cipreste

significava a presença de um espírito atormentado. Em

algumas ocasiões, esse cheiro pode significar que alguém

próximo irá morrer. Mas ali, naquele momento, significava a

presença de alguém muito atormentado. Trancamos a mente,

apertamos as mãos contra o peito, fechando os olhos para que

aquele espírito atormentado não nos engabelasse ou nos

assustasse com outras formas ilusórias. Geralmente, os

espíritos atormentados tentam fazer-se parecer assustadores ou

tomam a aparência de anjos e fadas, para que os deixemos em

paz ou para desistirem de nos intrometer em suas vinganças ou

perseguições. Em outras ocasiões, esses espíritos podem se

fingir gentis e tomarem a foram de criaturas encantadoras,

apresentando uma falsa sabedoria. Áurea, por certo, havia se

tornado um obsessor. Mas nada do que ela fizesse nos faria

desistir de ajudá-la e de prosseguir com a nossa tarefa. Demos

continuidade às orações e aumentamos o fervor das palavras,

dizendo:

– Dê-lhe, meu pai, a Sua mão para que o espírito de

Áurea siga o seu destino em paz. Liberte-a desta prisão, desse

sofrimento sem igual.

Então, eu Maria dissemos juntas, em voz alta:

– Siga em paz, minha irmã, sem olhar para trás. Deixe

as marcas de sua dor na memória de seus algozes. Apague a

sua para começar uma nova vida junto aos irmãos de

sabedoria. Siga para a luz que brilha à sua frente. Veja

quantos irmãos estão lhe esperando para recebê-la de braços

abertos.

Falamos isso, pois as luzes dos irmãos desencarnados

brilhavam à nossa frente e podíamos vê-los esperando por

Áurea, a feiticeira. Sentimos novamente o vento forte perto do

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 430 -

círculo. Só que, desta vez, cheirava a flores do campo. Logo se

formou um pequeno redemoinho. No meio dele, surgiu uma

linda mulher de cabelos negros e ondulados e olhos azuis

como a água marinha. Ela estava vestida de céu e com muitas

chagas por todo o corpo. Delas, saía mel. Em pensamento,

contou-nos como foi violada por todos os aldeões e que,

depois de ser julgada injustamente e torturada violentamente,

foi acorrentada naquela árvore petrificada, onde fez um

juramento: nunca mais deixaria brotar daquele lugar uma só

folha verde enquanto houvesse um descendente de seus

algozes. Mas, que ao ver tanto amor, bondade e desinteresse

vindos de nós, estava pronta para desistir de sua jura e seguir

seu caminho em paz, com os irmãos espirituais. Toda aquela

névoa ao seu redor sumiu, dando lugar a uma luz muito

brilhante. Depois, Áurea transformou-se em uma pequena

estrela e desapareceu na imensidão do céu.

Então, continuamos com o ritual. Por fim, a chuva

começou a cair. Eu disse, em alto tom:

– Que o fogo nos empreste sua alma, fumaça, e que ela

leve todos os nossos pecados para o céu. Que a água da

chuva, nossa irmã e purificadora, nos devolva essa energia

renovada de volta para a nossa mãe terra. Que essas águas

em forma de lágrimas abençoem esta terra tão sofrida. Que

essas águas sagradas possam, também, lavar nossos pecados.

Que a nossa essência purificada traga de volta todo o amor e

o perdão para este solo, que durante anos sofreu

silenciosamente por um crime cometido por nossos irmãos já

desencarnados. Crime esse que fez uma de nossas irmãs ficar

aprisionada nesta floresta por anos, causando dor e

sofrimento não só a todos os aldeões e ao solo, mas também a

ela mesma. Peço, Senhor, perdão pelos ignorantes que por

aqui passaram. Mande, meu Pai, um espírito iluminado e de

Adriana Matheus

- 431 -

muita sabedoria para lhes tirar da escuridão onde se

encontram agora. Dê-lhes, meu Deus, uma chance de se

redimirem de seus erros e pecados! Que o vento purifique

essas águas e que elas nos devolva a nossa essência, depois de

tê-la sanado dos pecados recebidos da humanidade. Pelo

poder da terra, pela força do fogo, pela alma dos ventos e pela

pureza das águas, que se abra o portal e cumpra-se a minha

missão.

Um enorme raio de fogo cercou todo aquele lugar,

clareando até a mais longínqua imensidão escura que tomava

conta dali. Sentimos a presença da grande Deusa e do grande

Deus. Seus poderes eram tão grandes, tão imensos, que eu e

Maria tivemos de nos agarrar uma a outra. O calor daquele

fogo espiritual, misturado às forças da natureza, formava um

enorme redemoinho, que limpou toda a floresta daquela

mazela de revolta, vingança e loucura. Senti que toda a floresta

veio nos agradecer por termos libertado aquele espírito sofrido,

que havia tanto lhe sufocava a vontade de viver. Rodopiamos e

dançamos alegremente, recebendo a chuva com os braços

abertos, lavando todos os pecados de nossa alma. Nossos

corpos estavam completamente encharcados, mas não

sentíamos frio ou incômodo por estarmos molhadas dos pés à

cabeça, pois o amor dentro de nós era imenso e indescritível e

esquentava nosso corpo. Logo a chuva parou - embora tivesse

sido fortíssima, foi passageira. Olhamo-nos de cima abaixo e

gargalhamos. Então, procuramos Joseph, que estava debaixo

da charrete para não se molhar. Rimos ainda mais. Ele nos

olhou, interrogativamente:

– Não acham melhor trocarem de roupa? Vão pegar

uma febre e cairão de cama.

Sufocamos outra gargalhada, mas abaixamos a cabeça e

saímos em procura de toalhas secas. Maria trocou-se de

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 432 -

imediato e fiz o mesmo. Depois, sentamos na charrete e

arrumamos a comida que trouxemos para dar término àquele

sabat. Estendemos uma toalha bordada com desenhos místicos.

Então, servimos o pão e o vinho de samhaim. Recuperamos as

forças com uma sopa mágica.

Levantamo-nos e novamente varremos todo o local

com a vassoura sagrada. Desta vez, apagamos o círculo. É

muito importante usar a vassoura antes e depois de cada ritual.

Às vezes, também temos que usá-la durante o ritual. Demos

uma olhadela em volta e não acreditamos no que vimos: havia

pequenos brotos na velha árvore, que já não estava mais

petrificada. O chão estava repleto de graminha, ainda fina e

rasteira. Uma enorme coruja pousou sobre a velha árvore. Um

gamo correu em direção ao fundo da floresta. Os lobos

uivavam, cantando para a imensa Lua que reluzia no céu. A

vida finalmente estava de volta àquele lugar. Com certeza, ali

seria um novo paraíso celestial. Ficamos muito felizes e

choramos de emoção. Até Joseph ficou extasiado com o que

viu. Demos as mãos, os três, e agradecemos as bênçãos

concedidas naquela noite maravilhosa e produtiva.

De repente, ouvimos barulhos vindos do meio da

floreta escura. Aquilo gelou minha alma. Sabia bem o que era.

Pela segunda vez, senti-me como Cristo quando foi entregue

aos inimigos. Então, não conseguia pensar em mais nada e

disse à Maria:

– Corra com Joseph para longe daqui.

– Senhorita Anna, não posso deixá-la aqui sozinha –

disse Joseph.

– Anna, filha, venha conosco. Joseph tem razão: ainda

há tempo para a senhorita. Eu lhe imploro: não me deixe,

filha... Passamos tantas coisas juntas... Morrerei pela senhorita

Adriana Matheus

- 433 -

se for preciso. Eles não a entenderão, Anna... Não se vá, não

me abandone...

Maria ajoelhou-se e implorou para que não a deixasse

partir. Suas lágrimas comoveram-me, mas não pude

demonstrar nenhuma emoção, pois poderia colocar a vida dela

e de Joseph em risco. Olhei para ele, que também estava

chorando, e pedi-lhe auxílio com os olhos. Ele enxugou as

lágrimas e veio retirar Maria de perto de mim. Quando ele a

levantou do chão, dei-lhe um enorme abraço e disse:

– Para que consiga seguir em paz meu caminho,

precisarei que a senhora seja como sempre foi: forte e sensata.

Nunca nos esqueceremos, Maria, porque sempre estaremos

juntas em pensamento. Ninguém nunca conseguirá nos separar

porque o elo que nos uniu sempre nos unirá. Somos como essa

chuva que caiu e fertilizou esta terra hoje. Somos a terra, o sol,

o ar e sempre estaremos juntas, porque somos parte do mesmo

universo. A distância, para nós, não existe, porque ela é como

olhar o horizonte: cada vez que fazemos isso com os olhos do

aparelho, vemos coisas ao longe. Mas quando olhamos com os

olhos da alma, vemos apenas um caminho a percorrer até

alcançar o objetivo almejado. Sempre poderá me enviar cartas

pelo padre Ignácio. Agora, levante a cabeça e siga em busca da

sua felicidade.

Dei-lhe um beijo na testa e segurei seu rosto em minhas

mãos, para nunca mais me esquecer da minha amiga e mãe.

Foi o pior dia de minha vida. Engraçado como o amor nos

obriga a fazer coisas que não queremos fazer... Fiz minha

única amiga chorar e não tinha como evitar. Então, tentando

tirar Maria daquele local perigoso, disse:

– Não os estou expulsando, mas quero que ambos

corram agora para que não cheguem aqui e os vejam.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 434 -

Joseph saiu, segurando Maria. Ao tomarem certa

distância, ela tentou escapar de Joseph, que a abraçou

fortemente, tentando acalmá-la. Maria gritava meu nome e

esticava os braços em minha direção. Mais uma vez, minhas

premonições se concretizaram. Fiquei olhando-os sumir em

meio à noite escura, até que, finalmente, nada mais eram além

de um simples vulto. Enxuguei minhas lágrimas, rasguei

minhas vestes, arranhei meu rosto com minhas próprias unhas,

joguei sangue de galinha em meu corpo e fingi estar desmaiada

ao chão. Ouvi o grito de alguém. Não me atrevi em abrir os

olhos para saber de quem se tratava. Ouvi um homem dizer

algo:

– Vejam! Ela está caída aqui! Parece ter sofrido algum

tipo de violência.

– Há sinais de satanismo por todos os lados. Por certo,

as marcas em seu corpo foram deixadas por algum tipo de

demônio. Essa mulher está tomada por forças malignas.

Tive muita vontade de rir, pois percebi a ignorância

daquelas pessoas. No mínimo, aquele homem era

completamente louco e sua mente perturbada criava mais

histórias que a imaginação de uma criança de cinco anos.

Percebi que meu pai aproximou-se, pois ouvi sua voz bem

próxima a mim. Mas o inquisidor gritou, dizendo:

– Não! Os demônios dela passaram para o seu corpo.

Essa mulher está infestada de súkumbos. Aquele homem que a

tocar ficará atraído por essa mulher pecadora e imunda.

– O que são súcumbos? - perguntou o conde,

curiosamente.

– São demônios femininos que usam o corpo das

mulheres para seduzir os homens. Esse tipo de demônio, além

de destruir a vida de quem quer que seja, pode também levar o

indivíduo possuído à morte.

Adriana Matheus

- 435 -

Ele falava isso porque não podia ver os demônios que o

cercavam. Mesmo de olhos fechados, pude perceber

mentalmente a quantidade de demônios que estavam em volta

daquele homem, pois soltavam garagalhadas tenebrosas. Rezei

para que ele não me tocasse, pois aí sim, literalmente falando,

eu estaria perdida. Outra voz masculina ainda insistiu com meu

pai, dizendo:

– Senhor, não toque nela. Não ouviu o que o inquisidor

disse?

– Ninguém vai me impedir de levar minha filha para a

carruagem. Se quiserem discutir alguma coisa sobre este caso,

discutiremos em minha casa. Mas não a deixarei aqui, neste

chão molhado e, por certo, morrendo de frio.

Ufa!, pensei comigo. Até que enfim alguém sensato.

Pensei que ficaria ali até congelar, esperando aquele louco

endemoniado decidir se eu era ou não uma bruxa.

– Juan! Não espera mesmo que eu vá dentro da mesma

carruagem com essa endemoniada, espera? - disse a condessa,

parecendo não querer dividir aquele pequeno espaço comigo.

Porém, meu pai estava decidido a me levar com ele:

– Minha cara esposa, aonde vai e com quem vai eu não

sei. O que sei é que Anna, minha filha, irá na mesma

carruagem que eu.

– Recuso-me a entrar na carruagem em que esta mulher

está! - retrucou.

– Faça como quiser. Pode ir a pé ou no colo de alguns

dos soldados. Ou, se preferir, pode ficar aí mesmo onde está e,

é claro, poupar-me o trabalho de devolvê-la a seu pai - que é o

que eu já deveria ter feito há muito tempo. Mas não me

perturbe mais com seus chiliques histéricos. Este momento é

muito delicado para mim.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 436 -

Meu pai, então, pegou-me no colo e saiu carregando-

me em meio à pequena multidão que se formara em nossa

volta.

– Não lhes disse? O demônio tomou conta da mente de

senhor Juan. - disse o inquisidor. Porém, meu pai pareceu não

dar importância às sandices dos demais presentes e levou-me

para dentro da carruagem, cobrindo o meu corpo com

cobertores e deitando-me em seu colo. Ele, então, ordenou a

Lorenzo:

– Lorenzo, siga para a minha casa. Minha filha e eu

estamos cansados.

– Sim, senhor, imediatamente.

A condessa seguiu na carruagem do seu comparsa, o

conde. Os soldados e o inquisidor seguiram-nos cavalgando. O

balançar da carruagem e o aconchego do colo do meu pai

fizeram-me cochilar. Afinal, foram raras as vezes em que

estivemos tão próximos daquele jeito.

Ao chegarmos em casa, Lorenzo ajudou meu pai a

tirar-me da carruagem. Papai levou-me para meu quarto e

pediu à aia que me despisse e trocasse minhas roupas. Depois,

desceu e despachou aquelas pessoas indesejadas, pedindo-lhes

que voltassem no dia seguinte para retomarem o assunto em

questão. Isso me deu mais uma noite em minha casa. A

condessa, naquela noite, recusou-se a dormir no mesmo quarto

que meu pai, dizendo que ele estava contaminado pelos

demônios que habitavam meu corpo. Agora, sim, ela

enlouqueceria de uma vez por todas. Pois além de viver com a

cabeça cheia de caraminholas tramando contra as pessoas,

ainda arrumou parceria com um inquisidor totalmente

excêntrico que, por certo, enfiou mais sandices em sua mente.

Agora, a pobre mulher, além de tramar, ainda tinha que se

preocupar em esquivar-se dos supostos demônios que

Adriana Matheus

- 437 -

habitavam meu corpinho tão puro e inocente. Era hilário

imaginar a condessa de olhos arregalados, a altas horas da

madrugada, sentada na cama só com os olhos de fora, vigiando

para não deixar o coisa ruim se aproximar dela. Pobre mulher!

Confesso ter dormido maravilhosamente aquela noite. Só me

preocupei com Maria que, por certo, estaria triste de verdade.

Acordei, dei uma espreguiçada e levantei de uma só

vez meu desjejum - estava em uma bandeja do lado da cama.

Tomei calmamente e fui para a janela, observar o movimento.

Como eu já esperava, havia várias carruagens e cavalos no

pátio de minha casa. Como as pessoas gostavam de um mal

feito, qualquer coisinha era motivo de atração circense. Tereza

entrou, trazendo água para que me lavasse. Por certo, a criada

ficou com medo de mim depois de ter ouvido os boatos

mentirosos e alucinados que saíram da boca da condessa.

Tereza, então, disse-me, meio constrangida:

– Queria dizer, menina, que não acredito em nada que

dizem sobre a senhorita. - abraçou-me e saiu em seguida.

Fiquei feliz por saber que os verdadeiros amigos nunca

duvidam de nós, e que jamais caem em armadilhas levianas.

Lavei-me e vesti-me. Coloquei-me simples e formal. Meu pai

foi o primeiro a entrar em meu quarto. Deu uma leve

batidinha e, ao ver-me sentada, perguntou:

– Como está, Anna?

– Muito bem. E como eu deveria estar?

– Não se lembra de onde estava ontem à noite e de nada

que lhe acontecera?

– Não. Do que o senhor está falando? - menti.

– Encontramo-la caída no meio da floresta dos mortos.

Suas roupas estavam todas rasgadas, seu corpo estava todo

arranhado. Como pode não se lembrar do que houve?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 438 -

– Já disse: não consigo me lembrar de absolutamente

nada. O que o senhor está dizendo para mim é grego. - sentei-

me na cama e fiz uma cara de ingênua.

Meu pai sentou-se ao meu lado e disse:

– Anna, quero ajudá-la. Mas, para isso, preciso que

colabore comigo. Diga-me olhando em meus olhos: foi violada

por algum bandido?

– Não! Estou bem. Por que está me perguntando essas

tolices? Não conhece meu comportamento? Perdeu a confiança

em mim, pai?

– Confio na senhorita, Anna, mas algumas coisas não

estão se encaixando. Sabe que não sou homem de acreditar em

misticismos.

Olhei-o no fundo dos olhos e disse:

– Então, terá que continuar confiando.

– Eles a levarão de mim, filha. Não poderei fazer nada.

Se deixar que pensem que é uma feiticeira, eles lhes

condenarão e sabe Deus o que lhe farão.

– Não, pai. O senhor entregar-me-á, como tentou fazer

vendendo-me para aquele homem inescrupuloso, para saldar

suas dívidas. O senhor só pensou em si mesmo e no santo

nome de sua ambiciosa esposa. Mas se esqueceu de que sou o

único laço consanguíneo que o senhor verdadeiramente tinha.

Vá, abra a porta, antes que a derrubem por causa do peso de

estarem todos encostados nela.

Meu pai olhou-me espantado e só fez abaixar a cabeça.

– Tem certeza de que está preparada para isso?

– Sim. Deixe que entrem meus algozes.

Como eu havia dito, quando meu pai abriu a porta,

caíram todos de uma vez uns em cima dos outros, tropeçando

como urubus. Fiquei admirada de ver senhores tão distintos,

como o magistrado da cidade e Lorde Oswald, tentando

Adriana Matheus

- 439 -

equilibrar-se em cima do próprio peso para levantar-se. Todos

fingiram estar tirando a poeira das vestes. Depois, olharam-me,

esperando que meu pai lhes dissesse alguma coisa. Por fim,

Lorde Oswald perguntou, curiosamente, não aguentando

manter-se calado:

– Conseguiu arrancar dela alguma confissão?

Meu pai, porém, respondeu-lhe:

– Não estava tentando fazer minha filha confessar coisa

alguma. Só estava tentando encontrar uma resposta plausível

para o fato ocorrido ontem à noite. Mas, pelo jeito, ela não

consegue se lembrar de nada.

– Por certo o demônio afastou-se quando viu a luz. -

respondeu o magistrado.

Quando ele falou que a luz afastou o demônio, por

certo não era a dele, pois ele era uma das pessoas que estavam

rodeadas de pequenas criaturas zombeteiras. Meu pai tentou,

ainda, fazer-me falar na frente de todos o que eu estava

sentindo:

– Diga a eles, minha filha, o que está sentindo, para que

percebam que você é inocente.

– Já lhe disse, pai: não estou sentindo absolutamente

nada. Estou é achando engraçado todos esses senhores e

nobres aqui em meus aposentos, tentando achar algum defeito

em mim para esconderem seus próprios defeitos.

– Blasfêmia! O demônio está zombando de nós. - disse

um nobre rechonchudo, o senhor Oswald.

– Devemos levá-la para uma interrogação formal, a

portas fechadas. – disse, por fim, o inquisidor, que me

observava.

O homem mais parecia um mouro por causa de sua

forma arcaica. Ele era exatamente como eu e Maria vimos em

nossas visões: os demônios em seu corpo faziam sobre o seu

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 440 -

ombro os mesmos gestos que ele fazia ao falar, só que de

maneira zombeteira. Aqueles demônios o induziam a fazer

todos os tipos de crueldades jamais imaginadas por um ser

vivente temente a Deus. Aquele homem realmente era uma

pessoa que precisava de um exorcismo. Quase não consegui

olhar para ele por causa das criaturas deformes que o

rodeavam, blasfemando e fazendo gestos obscenos.

Por fim, meu pai, ao perceber que o inquisidor

aproximava-se de mim para tocar-me, disse-lhe, segurando sua

mão:

– Ninguém tocará em nenhum fio de cabelo da minha

filha.

Um soldado da milícia tentou se aproximar de mim,

mas Lorenzo e outros dois capatazes de meu pai mostram estar

armados, afastando-o de imediato. Então, imediatamente, o

soldado baixou a guarda e posicionou-se em um canto da

parede. O padre Ignácio chegou, dando braçadas, empurrando

toda aquela gente curiosa e impertinente que estava

aglomerada em meus aposentos. Quando conseguiu chegar até

a mim, disse:

– Saiam desse quarto imediatamente! Quero falar a sós

com a senhorita Anna.

– Ficou louco, padre? Esta mulher está repleta de

demônios. Já enfeitiçou o conde Alfred, dois empregados da

casa, e o próprio pai. O senhor não pode, de modo algum, ficar

sozinho com essa discípula de satã.

– Sim, é verdade. Quase a pedi em casamento por causa

dos súcumbos que estão dentro do corpo dela. Eu estava

totalmente enfeitiçado por esta mulher a ponto de quere-me

unir a esta bruxa, que invadiu minha mente com o seu poder

maligno. – disse o conde.

Adriana Matheus

- 441 -

Que hipócrita!, pensei comigo. Finalmente eu havia

conseguido me livrar daquele compromisso com aquele

homem inescrupuloso e assassino. Sentia-me muito orgulhosa

de mim mesma, pois nunca cedi de livre e espontânea vontade

às investidas daquele falso conde. A minha vontade, naquele

momento, foi de entregá-lo, dizendo tudo o que sabia sobre

ele. Mas tinha que deixar uma carta na manga para o último

momento.

Padre Ignácio interrompeu meus pensamentos quando

se sentou ao meu lado, na beirada de minha cama, e ordenou

em um tom severo, olhando novamente para aquelas pessoas

que teimavam em permanecer ali:

– Já havia pedido que se retirassem. Por favor, saiam

imediatamente. Quero falar a sós com a senhorita Anna.

Uma senhora muito gorda, que mais me lembrava um

grande porco capado, fez o sinal da cruz e um comentário

ofensivo:

– Pobre vigário... A maldita feiticeira já possuiu a sua

pobre alma!

Padre Ignácio, ao ouvi-la, respondeu severamente:

– E possuirá a sua se não fizerem o que mando agora.

Não veem que estão tirando o direito desta jovem a confessar?

Ela é ainda minha paroquiana e não lhes dou o direito de

ofendê-la sem ao menos ouvi-la antes.

– Blasfêmia! Bruxa não tem direito a defesa. - disse um

homem sem dentes e muito magro que estava no meio daquela

gente toda.

– Se é assim, então ficaremos. Tornaremos essa

confissão oficial. - disse o magistrado.

– Senhor Cortez, pelo respeito que tenho pelo senhor e

pela sua posição em nossa comunidade, este é um assunto que

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 442 -

só diz respeito à Igreja. Creio estar suficientemente preparado

para lidar com seres de outra dimensão.

Meu pai, então, interveio mais uma vez:

– É melhor sairmos todos. Vamos ver se o padre

consegue algum resultado favorável.

Falou isso e foi empurrando todos para fora do recinto

que, pelo jeito, já não me pertencia. Assim que conseguimos

ficar a sós, padre Ignácio falou:

– Filha, preste atenção no que vou dizer agora: quero

que me responda com toda a sinceridade possível.

Antes que o padre Ignácio prosseguisse, fiz um sinal

para ele, apontando o inquisidor, que estava encostado na

parede com os braços cruzados, ignorando suas ordens. Padre

Ignácio ficou furioso por ter sido desrespeitado e falou-lhe

asperamente:

– Creio não ter sido muito claro ou o senhor deve estar

sofrendo de perda de audição. Quero falar com essa moça a

sós.

– Não creio que ela tenha alguma coisa para falar que

um inquisidor não possa estar presente para ouvir. Quero que o

senhor saiba que estou aqui representando as leis da Santa

Madre Igreja.

Padre Ignácio colocou pessoalmente para fora o

homem surdo, segurando-lhe o braço e dizendo:

– O senhor pode ser o representante até mesmo do rei,

mas ainda mando nesta paróquia e meus paroquianos merecem

todo o meu respeito, assim como essa moça que aqui está.

Em seguida, olhou para mim, fazendo um sinal com o

dedo indicador nos lábios para que eu ficasse em silêncio.

Depois de ter colocado o homem para fora, ele esperou dois

minutos e abriu a porta de supetão, pegando aquela senhora

gorducha grudada com os ouvidos nela. A mulher caiu,

Adriana Matheus

- 443 -

esborrachando-se no chão como uma abóbora podre. Padre

Ignácio, indignado, falou:

– Que vergonha, mulher! Escutando atrás da porta? Vá

para baixo com os outros. Aqui não tem nada que lhe diz

respeito. Saiba que quero sua confissão na missa de domingo.

A mulher, custosamente, levantou-se do chão. Mesmo

com as bochechas vermelhas como tomates de vergonha, ainda

falou:

– Só estava tentando ouvir se os demônios no corpo

desta bruxa estavam machucando o senhor.

– Se fosse um exorcismo - o que não é -, a senhora

realmente correria o risco de ser possuída por um espírito

maligno por causa da sua proximidade tão homogênea com a

vítima em questão. Mas agora que já se certificou de que não

há demônios nenhum aqui, se a senhora não se retirar

imediatamente, eu mesmo tratarei de jogá-la escada abaixo.

A mulher saiu, fazendo o sinal da cruz e benzendo-se,

chamando o nome de tudo quanto era santo que haveria de se

lembrar. É claro, ao chegar perante os demais curiosos no

andar de baixo, ela inverteu toda a história, dizendo que ouviu

os gritos que eu dava quando o padre jogava em mim a água

benta. Este tipo de pessoa é que fazia a má fama das bruxas.

Pessoas sem nenhuma ocupação, sem razão para viver e, com

certeza, muito mal amadas. Pessoas que precisavam se garantir

causando a desgraça alheia, criando um motivo para que todos

prestassem mais atenção em sua figura patética e

insignificante. Tanto que eu nunca a havia notado além

daquele dia. Com certeza, ela deve ter conseguido uma boa

plateia para o seu teatro de mentiras e injúrias.

– Então, minha querida Anna, agora podemos

conversar. - disse padre Ignácio, com a voz cansada e pesarosa.

– Sim.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 444 -

Atirei-me em seus braços, pois estava me sentindo

completamente só e desprotegida. O peso do mundo parecia ter

caído sobre as minhas costas.

– Santo Deus! Calma, minha filha. Preciso que me

conte exatamente o houve para que possamos, juntos, resolver

esse problema.

Contei até os pormenores dessa nova situação.

– O senhor também irá me condenar por isso, não é?

– De modo algum. Já conversamos sobre isso. Não vim

a esse mundo para julgar quem quer que seja. Só me garanta

uma coisa apenas: algum dia a senhorita já teve contatos com o

demônio, ou qualquer ser vindo do inferno?

– Não, padre. Juro que não. Só não me peça para negar

quem sou. Se me perguntarem se sou uma bruxa, direi que sim.

– Agora, sim, consigo entender a carta que todos

comentavam quando cheguei. Pensou em tudo, não foi?

– Espero que sim, padre. Muita gente neste momento

está dependendo de mim.

Padre Ignácio olhou-me indignado e prosseguiu:

– Lançou-se na noite escura sem temor, por confiança e

amor verdadeiro. E foi amor ao próximo. Cada vez mais a

admiro, por ver o quanto o seu coração é cheio de fraternidade

e compaixão. É a pessoa mais corajosa que já conheci - até

mais que muitos soldados, pois foi capaz de abrir o peito para

o perigo eminente que está à sua frente. Está determinada a

enfrentar um cruel destino por amor ao seu próximo, abrindo

mão da própria liberdade e, talvez, da própria vida. A senhorita

é uma verdadeira filha seguidora do Cristo. Tenho muito

orgulho de você e nunca me esquecerei desta moça corajosa e

determinada que agora está aqui na minha frente.

Ele me abraçou e, dando-me sua benção e um beijo na

testa, prosseguiu:

Adriana Matheus

- 445 -

– Só preciso que confie em mim. Tudo o que eu fizer

ou disser jamais pense que será para o seu mal. Por isso, mais

uma vez vou lhe perguntar: a senhorita confia em mim?

– É claro que sim, padre. Se não confiasse, não teria lhe

contado todo o meu segredo.

– Então, fará exatamente do jeito que combinarmos.

Promete?

– Sim, prometo.

– Se a senhorita não colaborar, não poderei ajudá-la.

Ele segurou meu rosto para ter certeza de que estava

lhe ouvindo atentamente. Falou-me tudo em um tom de voz

que mais parecia um sussurro. Tudo isso para que não

fôssemos ouvidos pelos curiosos que estavam de prontidão, do

lado de fora da porta novamente. O desespero daquelas

pessoas era tanto que havia hora em que ouvíamos seus

tropeços e esbarrões na porta. Pareciam cães de guarda. É

engraçado como a vida alheia é muito mais interessante do que

a nossa própria vida. Então, o padre Ignácio levantou-se e

abriu a porta. Como esperávamos, estava novamente repleta de

curiosos tentando escutar minuciosamente o que

conversávamos. Imagine só: havia um que levou um copo para

tentar ouvir melhor. Outro tentava furar a parede. Eu era

praticamente a atração principal daquele espetáculo de injúrias.

Senti-me como um animal enjaulado, sendo exposto no meio

de uma multidão furiosa e pronta para atirar-me pedras. Padre

Ignácio olhou para eles indignadamente e falou, em um tom

sério:

– Entrem. Ela já está pronta.

– Ela confessou? Louvado seja o senhor padre! Nunca

duvidei que o senhor fosse capaz de fazê-la confessar. Então,

diga-nos: o que ela confessou ao senhor? - disse o magistrado.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 446 -

– Não tenho que lhes dizer nada em público. Este é um

caso reservado e de ordem judicial. Portanto, cabe às partes

competentes decidirem o que devem fazer.

Falando isso, o padre foi empurrando todos os curiosos

que ali se encontravam.

– Vamos, saiam daqui. Só entrarão as partes

interessadas no assunto.

Então, pôde entrar o meu pai, o chefe da guarda, o

magistrado, o inquisidor, o conde e o Lorde Gaspar - por estar

envolvido na política local – e, finalmente, a condessa. A

senhora gorducha também tentou invadir meu quarto assim

mesmo, mas o padre a bloqueou imediatamente na entrada,

empurrando-a com as mãos.

– Aonde a senhora pensa que vai?

– Ora, também sou importante neste caso! Afinal, fui

testemunha de um exorcismo. Vi esta mulher manifestar o

demônio.

– Senhora Eulália, se não sair daqui agora, juro que

pedirei ao chefe da guarda que lhe dê voto de prisão por

desacato e desobediência às autoridades presentes.

O chefe da guarda, na mesma hora, tomou a frente e

colocou-se de prontidão, com a mão na arma que estava em

sua cintura. Padre Ignácio fechou a porta, empurrando

fortemente com as mãos a velhota sisuda e mentirosa. Ela,

ainda, se fez de sonsa, mas padre Ignácio expulsou-a como um

cão sarnento. E ainda preveniu os outros curiosos que também

teimavam em bisbilhotar:

– E que isso sirva de lição a todos os bisbilhoteiros

presentes aqui! - gritou para aquelas pessoas.

Por fim, todos saíram, resmungando e debatendo-se

como crianças fazendo pirraça. Então, a portas fechadas, padre

Ignácio começou o interrogatório.

Adriana Matheus

- 447 -

– Senhorita Anna, é verdade que não se lembra de

absolutamente nada do ocorrido ontem à noite?

– Sim, padre, é verdade.

– Sabe que irá a julgamento sob pena de morte?

– Sim, estou ciente de tudo o que ocorrerá comigo.

– Então, sabe que não pode mentir. - padre Ignácio deu

uma piscadinha para mim.

Baixei a cabeça, para que não percebessem nossa

cumplicidade.

– Sim, padre, sei.

– Então, responda-nos: quem estava presente com a

senhorita durante aquele ritual satânico?

– Não houve nenhum ritual satânico. Eu estava sozinha.

Não havia ninguém comigo. Os senhores estão tentando me

confundir.

– Está mentindo! - disse o inquisidor.

– Então, como consegue explicar todas aquelas marcas

no solo e sinais de bruxaria espalhados por todos os lados? -

continuou o padre.

– Não havia ninguém. Só consigo me lembrar das

formas incorpóreas que me levaram no colo para a floresta.

– Oh! - exclamaram os demais presentes.

– Foram os demônios! - sussurrou o magistrado,

fazendo sinal da cruz.

– Então, o que tem a dizer sobre a carta escrita pela sua

governanta? - prosseguiu o padre, pedindo silêncio a todos,

que não paravam de tagarelar.

– Quero que todos os demais presentes prestem muita

atenção. A carta é muito esclarecedora neste caso.

Dizendo isso, tirou a suposta carta de Maria de dentro

de uma bolsinha de couro e deu início à leitura. Seu conteúdo

pareceu intrigar e interessar todos os ouvintes. A carta dizia:

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 448 -

Caro senhor Juan,

É com muito pesar que venho através desta dizer-lhe que

estou deixando sua morada. Sinto ter que estar abandonando meus

afazeres e meus compromissos como sua leal serva. Sinto mais

ainda por estar rompendo o compromisso feito à sua esposa, a

senhora Elizabeth Goldin. Mas é com imenso pesar que deixo o

ofício como sua governanta. Embora lhe tenha todo o respeito deste

mundo e gratidão por sua generosidade comigo, venho comunicar-

lhe que não poderei mais permanecer em sua residência. Já faz

algum tempo que venho tentando poupar-lhe maiores desgostos.

Embora eu tenha tentado lutar contra os meus próprios princípios

religiosos para achar uma forma de ajudar e afastar a senhorita

Anna, sua filha, das ciladas do demônio, confesso ser impossível.

Pois a senhorita Anna está totalmente possuída. Embora eu tenha

feito de tudo ao meu alcance, não posso mais continuar, pois me

sinto fraca e incapacitada de lutar contra o demônio que age em sua

filha de maneira desordenada. Ela tem tido ataques de

sonambulismo, influenciados pelos demônios que a possuem durante

o sono. Por várias vezes, segui-a durante a noite até o jardim, onde

ela parecia não estar ciente do que estava fazendo. Creio que isso

deve ter vindo de um local secreto que a senhorita Anna achou sem

querer, depois de ter lido o diário de sua estimada e falecida esposa

Elizabeth. Creio que ela deve ter construído o obscuro local para

culto demoníaco. Peço que o senhor, como um bom pai e sensato

homem, encaminhe-a aos rigores de um convento, onde poderá

afastar-se por completo dessas criaturas horríveis que tanto a

atormentam. Vendo-me, então, de mão atadas, desfaço a promessa

que fiz à senhora Elizabeth em seu leito de morte. Sendo assim,

deixo o meu cargo de governanta disponível a quem quer se

interesse. Espero, sinceramente, que o senhor compreenda minha

atitude aparentemente covarde e leviana. Embora eu o admire muito

e tenha por sua filha alta estima, não quero manter contato com o

demônio ou com alguém que tenha alguma proximidade com ele.

Sem mais,

Adriana Matheus

- 449 -

Maria Constança

Sua criada.

Fiz uma carta de meu próprio punho. Enquanto saíamos

apressadamente no meio da noite, deixei-a cair no chão, perto

da escada, sem que Maria percebesse, para que algum dos

empregados a encontrasse. Ao ler, quem quer que fosse

pensaria que Maria estava abandonando a casa por medo de

parecer ter estado envolvida em rituais de magia negra. Se eu

tivesse deixado a suposta carta que Maria havia escrito para

meu pai diretamente, e ela fosse lida por ele, certamente teriam

perseguido tanto ela quanto Joseph. Àquelas alturas, estariam

mortos. Porém, a carta foi encontrada por Tereza, que

procurou o padre Ignácio na igreja e entregou a carta a ele. Ele

seguiu imediatamente para a casa dos Menellaus, entregando-a

ao meu pai, que a leu em voz alta para o conde e para os

demais presentes. Foi assim que o boato da carta se espalhou.

Ao voltarem todos para casa, não me encontraram. Deu-se

início, então, a uma busca pela redondeza. Em seguida, o

conde enviou seus soldados para me procurarem e acionou o

inquisidor, que estava na cidade disfarçadamente, embora eu já

o tivesse visto em minhas visões junto a Maria.

Todas nós fazemos um juramento em que nos é

expressamente proibido mentir sobre a nossa condição de

bruxa. Devemos manter fidelidade às irmãs, mesmo sob

tortura. É por isso que fiz Maria ir embora fugida. Se alguém a

interrogasse, ela também diria a verdade sobre si, mas nunca

sobre mim. E isso não seria justo com a mulher que, além de

ter me criado como mãe e sido a minha única companheira até

aquele momento, também perdeu sua juventude por fidelidade

e ignorância de meus avós e de meu pai.

Padre Ignácio deu procedimento ao interrogatório:

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 450 -

– E então, senhorita Anna? Pode nos dizer o que sua

governanta quis dizer ao senhor Juan, fazendo-lhe tais

acusações?

– Ela estava tentando me ajudar.

– Por quê?

– Porque ela dizia que o demônio pegava-me durante a

noite e fazia de meu corpo o que bem queria.

– Oh! - exclamaram novamente.

– Então, confessa ter pacto com o satã? - interveio o

inquisidor.

– Não! Apenas disse que estou sendo usada, mas não

consigo me lembrar do que faço durante a suposta possessão.

Nem sei o que fiz ontem à noite.

Padre Ignácio socorreu-me, não deixando que ninguém

falasse mais nada. Então, continuou:

– A que veredicto os senhores conseguem chegar?

Por fim, o magistrado falou, ainda meio confuso:

– Diria que teríamos que analisar o caso, com calma, e

interrogá-la em uma corte de maneira formal.

– E os outros demais presentes? O que têm a dizer?

– Concordamos com o magistrado. - disse o chefe da

guarda.

– Então, marcaremos uma audiência pública para

amanhã bem cedo. Assim, depois de ouvirmos o que todos

dirão, daremos o veredicto, decidindo o futuro desta mulher. -

disse o magistrado, todo entusiasmado por finalmente ter algo

para fazer. Afinal, nunca houve um julgamento naquela cidade

pacata.

– Então, prendam a bruxa e levem-na para que aguarde

sua sentença na prisão, antes que ela faça mal a alguém ou

fuja. - disse a condessa, tentando livrar-se de mim.

Adriana Matheus

- 451 -

– Concordo com a condessa: esta mulher é uma

feiticeira perigosa. Eu mesmo quase caí nos seus encantos. -

finalmente o crápula do conde abriu a boca.

Lógico que ele gostaria que eu fosse para a prisão: lá

seria bem mais fácil para ele subornar um guarda e pôr aquelas

mãos imundas em mim.

– De jeito nenhum! Ela é uma moça de família e não

está acostumada a um lugar como aquele. Como pároco desta

cidade, sugiro que ela fique em sua casa, trancada em seu

quarto, até amanhã.

– Senhor Juan tem algo contra?

– Lógico que não. Ela ficará aqui, sob meus cuidados.

– E se ela resolver tentar escapar? Ou matar alguém

durante a noite? - a condessa tentou envenenar mais uma vez

(morro de medo dela...)

– Cale-se, mulher! Está decidido: minha filha ficará

nesta casa até que decidam o que será feito dela.

– Senhor Juan, a senhora sua esposa está coberta de

razão. E se sua filha tentar escapar durante a noite? Ou tentar

algo contra até mesmo o senhor? - disse o inquisidor.

– Garanto que ela não fugirá. Dou minha palavra como

cavalheiro. E quanto à preocupação se ela vai ou não fazer mal

a alguém desta casa, por que o capitão da guarda não coloca

dois guardas na porta, para garantirem a nossa segurança?

Houve novo murmúrio de conversa e, por fim,

chegaram a uma solução.

– Tem razão. Disponibilizarei dois de meus melhores

homens para que fiquem de prontidão, do lado de fora do

quarto da senhorita Anna.

– Então é melhor que coloquem outros dois montando

guarda do lado de fora da casa. – sugeriu a condessa.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 452 -

Ela não parava mesmo. Era uma pena que eu não podia

falar nada. Senão, com certeza teria lhe dito umas boas

verdades. E que bom que haveria guardas em minha casa para

me proteger. Assim, não seria perturbada por ela e pelo conde

durante a noite.

– Que assim seja, então. - disse o magistrado.

– Senhores, se estão todos de acordo, então vão para

suas casas descansar. Teremos um dia cansativo amanhã. -

disse meu pai, parecendo estar exausto.

– Tem mais uma coisa. Que fique bem claro que

ninguém entre neste quarto ou saia. Que esta mulher seja

levada a julgamento assim que o dia raiar. - disse o inquisidor.

– Dou-lhes a minha palavra. - disse o padre Ignácio.

– E a minha de cavalheiro. - confirmou meu pai.

Por fim, saíram todos. Cada um olhando-me com uma

cara pior que a outra. Ao passarem por mim, benziam-se,

como se estivessem vendo em mim o próprio demo. Fiquei

boquiaberta com a atitude ignorante daquelas pessoas. Mas,

ignorantes ou não, o importante é que me deixaram em paz.

Finalmente, pensei comigo. Padre Ignácio, ao passar por mim,

benzeu-me com as mãos, fazendo em minha testa o sinal do

santíssimo e confirmando em seus olhos nosso pacto de

silêncio e cumplicidade.

Assim que a porta fechou-se e, finalmente, o quarto

esvaziou-se, caí sobre a cama e chorei a noite toda. Sequer tive

forças para fazer minhas orações. Por causa dos soluços,

cheguei a engasgar com as palavras. Senti a presença dos meus

amigos espirituais. Mas, naquele momento, tudo o que eu

queria era sentir o calor e o abraço de minha amiga Maria.

Senti tantas saudades... Meu coração doía tanto que, se a dor

fosse real, eu mesma a teria arrancado do peito com as minhas

próprias mãos. Nas horas de muita dor, temos que ter cautela

Adriana Matheus

- 453 -

para não blasfemarmos contra Deus. Pois a fragilidade faz-nos

pecar contra tudo o que é sagrado. Naquele momento, agarrei-

me à fé e ao sagrado, cuja imagem sempre ficava na beira da

minha cama... Tentei desvencilhar minhas lembranças daquele

dia, mas todas as minhas tentativas foram em vão.

Rolei boa parte da noite de um lado para o outro. O

silêncio era torturante. Sempre odiei a solidão. Por fim, acabei

adormecendo com o som mudo do mundo.

“Nunca desista de seus objetivos, nem mesmo quando

alguém tentar frustrá-los. Saiba que somos testados vinte e

quatro horas. Isso é só para que os anjos tenham a certeza de

que nunca iremos desanimar no meio do caminho. Os

verdadeiros obstáculos são aqueles que deixamos para trás. E

a verdadeira vitória é aquela em que aprendemos a

reconhecer de imediato. Siga o seu caminho em paz e deixe

para trás os que tentarem derrubá-lo. Perdoe e deseje que

vivam. A vida é uma vingança - e a morte, um descanso. Pense

nisso”.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 454 -

VI – O SEGREDO DOS GIRASSÓIS

dormeci profundamente no início, mas a

madrugada invadiu-me com sonhos turbulentos.

Imagens desconexas iam e vinham, perturbando-

me a mente e a alma. Horas eu acordava como se meu corpo

estivesse tendo uma convulsão; horas visões assustadoras, com

rostos destorcidos e fantasmagóricos, assombravam-me. Era

como se meu espírito já soubesse o que estava para acontecer

comigo. Meus instintos de bruxa estavam agitados como átomos

em movimento.

Quando o dia amanheceu, apenas abri os olhos

lentamente, porque já estava acordada há muito tempo. O sol

entrou no quarto, trazendo sua poesia matinal e, como havia me

deitado com as janelas abertas, da cama pude olhá-lo

despontando no horizonte. Dei uma espreguiçada e tentei

levantar-me, mas minha cabeça doeu e tudo rodopiou à minha

volta. Então, deixei meu corpo cair pesado sobre a cama

novamente.

A noite anterior havia sido uma das piores da minha

vida. A despedida de Maria e as acusações levianas que foram

levantadas em falso contra mim fizeram-me sentir como se o

peso do mudo estivesse sobre minhas costas. Lembranças tristes

A

Adriana Matheus

- 455 -

e saudosas misturavam-se na minha mente. Queria deixar as

lágrimas caírem para aliviar aquela tensão toda, mas não

conseguia. Eram muitos os fatores que me deixavam tensa.

Inclusive a atitude de meu pai preocupava-me: embora ele não

tivesse deixado ninguém me fazer mal, havia alguma coisa de

errado no ar, pois aquela súbita espontaneidade dele em me

defender demonstrava que algo não se encaixava com a real

situação. Aquela atitude estava cheirando a trama e

oportunismo.

A opressão que passei foi muita para uma noite. Precisei

livrar-me daqueles pensamentos para tentar, ao menos, fingir

que existia algo de bom no coração de meu pai em relação a

mim. Comecei a pensar no quanto ele estava sendo enganado

pela esposa e que, embora ele tivesse tido comigo uma atitude

egoísta, preocupava-se com a família. Tentei realmente achar

uma resposta para os absurdos por que eu estava passando. Por

fim, desviei o pensamento de que meu pai era um vilão. Tentei

vê-lo como uma vítima daquela sociedade inescrupulosa. A

minha maior preocupação seria com os demais, que tentariam a

todo custo fazer-me confessar uma coisa totalmente inversa do

que realmente era a tradição da serpente ou tradição da Lua,

como também era conhecida. Meus sonhos de liberdade e

igualdade tornaram-se pesadelos - se é que algum dia pude

realmente ter o direito de sonhar... Incrível como vivi em poucos

dias tudo o que uma pessoa levaria no decorrer de sua existência

para viver.

Devido ao cansaço e à fadiga da noite anterior, acabei

esquecendo-me de tirar as roupas. Deitei-me em uma posição

muito desfavorável, com um infernal espartilho que me

estrangulou a cintura a noite inteira - o que me causou uma

terrível dor na cabeça e no corpo. Minha vontade era de ter uma

varinha mágica igual a dos contos de fadas e, com ela, abrir um

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 456 -

vácuo no tempo – sumindo, assim, de todo aquele problema.

Mas, infelizmente, ser uma bruxa também exigia

responsabilidades que não podiam ser ignoradas. Infelizmente,

ser uma bruxa era muito mais do que um conto de fadas ou uma

brincadeira folclórica. As fantasias que se criam sobre nós,

bruxas, quem dera fossem verdade!

Naquele momento, eu estava passando pela fase dos

efeitos e causas. Tudo porque interferi no meu próprio destino.

Havia criticado a minha ancestral Shaara - quando ela tentou

mudar o seu futuro, invadindo o espaço e o tempo -, mas

também mudei o meu, quando não aceitei as imposições do meu

pai. Quis ser livre nas minhas opiniões e vontades - o que, para a

época em que vivia, não era uma coisa normal. Deveria ter

deixado que as coisas fluíssem normalmente e seguissem o seu

rumo certo. Quando comecei a ver meu futuro, deveria

imediatamente ter esvaziado minha mente, como me ensinou

Dona Helena: toda ação leva a uma reação. Novamente,

deparei-me com meus ensinamentos e percebi que havia ido

longe demais, passando por cima de todas as leis da tradição.

A minha vontade de estar ao lado do homem dos meus

sonhos foi tamanha que me levou a estar onde me encontro

agora, nesta cela fria, com condições subumanas. Fui uma

inconsequente e sonhadora. Por mais que sempre tenha lutado

pela liberdade, deixei-me levar pela ilusão e pelos sentimentos

carnais. Definitivamente, o coração é enganoso. O que mais me

entristece é pensar que fiz tudo porque acreditei que poderia ser

salva pelo meu príncipe encantado. Talvez essa seja a maior

falha humana: acreditar na palavra do próximo. Se eu tivesse me

contentado em saber apenas o meu passado, confiado que em

um futuro vindouro encontrar-me-ia com o monge, talvez

tivesse aprendido a confiar na fé, não sendo tão intolerante,

precipitando os efeitos e causas. Deveria ter vivido aquela vida

Adriana Matheus

- 457 -

de imposições, onde talvez tivesse sido feliz. Poderia ter me

casado com o conde. Certamente, quando ele se cansasse de

mim, trancar-me-ia no convento, onde eu cumpriria meu destino

ao lado do monge. Mas não: quis ir muito mais além e, com

isso, interferi no meu destino, antecipando o que poderia ter

acontecido anos mais tarde. As dúvidas e o se sempre encontram

um lugar em nossas mentes depois que algo desagradável nos

acontece - ou depois de tomarmos decisões erradas, das quais

acabamos por nos arrepender. Naquele momento, precisava

arranjar forças dentro de mim, em um lugar completamente

desconhecido, antes que novamente as fraquezas da minha

mente tomassem conta do meu ser.

Voltemos novamente à minha história, em que meu

destino estava prestes a ser selado. Olhei rapidamente pela

janela, que havia deixado aberta inconsequentemente. Seria

difícil encarar aquela luz. Estava me sentindo como um ébrio

depois de uma noite de bebedeiras, estirada sobre a cama, com

os braços abertos e pensando coisas que nem eu mesma

conseguia distinguir.

Era tudo ou nada. Tinha que ser de repente, em um

supetão. Dei um pulo da cama, caindo sentada em seguida -

quase desmaiei por causa da terrível dor de cabeça. Foi quando

notei que havia um enorme alarido do lado de fora do meu

quarto. Fiquei com os olhos arregalados com todo aquele

alvoroço. Escutei alguém discutindo em um tom de voz muito

exasperado. Era a voz do meu pai, que estava tentando entrar.

Parecia que os guardas não o deixavam. Então, escutei um

barulho estrondoso. Só me dei conta do que era quando a porta

do meu quarto abriu-se e o meu pai caiu quarto adentro. Fiquei

atônita por ter visto aquela cena tão inusitada.

– Pai! É o senhor?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 458 -

Fiquei tão feliz por vê-lo. Estava tão sozinha que, mesmo

que ele me esbofeteasse, ficaria feliz apenas por ter tido o

contato daquelas mãos. Meu corpo tremia tanto que dava a

impressão que eu estava com febre alta. Meu pai levantou-se,

ainda cambaleando por causa da forma com a qual havia

entrado. Correu para minha direção e abraçamo-nos com

sofreguidão. Aquele momento foi único para mim, porque foi a

primeira e última vez que meu pai abraçou-me depois de adulta.

Olhei-o nos olhos, parecendo não acreditar:

– Pai, não sabe o quanto eu estava precisando do senhor.

Estou me sentindo tão sozinha... Estou com medo; minha alma

está fria como meu corpo agora. - disse isso porque senti um frio

que me gelava por dentro.

Ele continuou olhando para mim e disse-me:

– Estou aqui porque confio em Deus e sei que contará a

mim toda a verdade, minha filha. Quero que confesse que foi o

demônio quem a induziu a ter aquela atitude insana. Quero,

também, que diga que foram Maria e Joseph quem estavam

evocando o demônio, que lhe deram uma poção mágica para que

você adormecesse. E que foi assim que eles a levaram para o

meio daquele bosque maldito. Diga isso e poderá ter o perdão da

Santa Madre Igreja. Todos entenderão, pois verão que você é

uma jovem frágil e ingênua e que estava sob o poder e as forças

da magia negra. Aqueles velhos malditos arrependeram-se,

fugiram no meio da noite, sem darem satisfações. Dizendo o que

lhe sugiro, eles levarão a culpa toda, enquanto você se casará

com o conde e irá para bem longe desta cidade. Pense, minha

filha. Eu mesmo ouvi falar de vários casos em que o demônio

toma a forma de pessoas e até consegue conviver no meio de

uma família, sem que alguém sequer venha notá-lo. Por certo,

aceitarão essa história de que Maria evocava o demônio, e de

que Joseph era um bruxo poderoso e fazia uso do maldito

Adriana Matheus

- 459 -

conhecimento com as ervas para lhe pôr em transe. Vamos

resolver isso. Confie em mim e faça o que lhe estou

aconselhando. Tudo dará certo, minha filha. Você vai se casar

com o conde. Com essa feliz e satisfatória decisão, resolveremos

todos os problemas - inclusive os financeiros. Em breve

estaremos todos novamente frequentando a alta roda da

sociedade europeia. E quanto às vias de fato, não se preocupe,

pois todos logo esquecerão. Essa história acabará como mais um

mexerico infundável. Por certo, Maria e Joseph serão capturados

e, mais cedo ou mais tarde, serão mortos, levando consigo esse

segredo. Eu mesmo darei um jeito de impedi-los de dizer

alguma coisa. Esses traidores malditos pagarão por fugirem de

mim assim, como dois ratos, na calada da noite. Verão o quanto

custa terem brincado com alguém da nossa estirpe. Aquela

velha sempre foi uma insolente. Nunca gostei dela. Aquele

velhote não passava de um inútil. Só o tolerava aqui por pena.

Acharam que eu fosse mesmo acreditar naquela maldita carta

que me escreveram? Ambos vão me pagar por terem caluniado a

minha família. Basta, minha filha, que aceite e faça o que estou

lhe sugerindo.

Mal pude acreditar nas palavras que saíam da boca do

meu pai naquele momento. Como ele conseguia superar as

minhas expectativas em relação a ele ser um cafajeste e mau

caráter? Depois de ter ficado boquiaberta com tamanha decisão

vinda da parte dele, respondi:

– Hã!? O senhor deixa-me sem chão, meu pai. Quer

dizer que não veio aqui para me ver? Para saber como estou?

Meu Deus! Definitivamente, o senhor conseguiu se superar. Juro

que achei que estava realmente preocupado comigo. Achei que

poderíamos ter uma chance de resgatar o nosso passado, meu

pai, o nosso tempo perdido. Não estou acreditando no que estou

ouvindo. Como pude ser tão ingênua em relação ao senhor e a

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 460 -

todos? O senhor só está preocupado com as suas dívidas e com

o que as pessoas poderão falar, caso saibam que estamos na

falência. Nada do que estou sentindo importa realmente para o

senhor. Acha mesmo que fui capaz de fazer as coisas horríveis

das quais essas pessoas estão levianamente me acusando? Pai,

nunca fiz pacto com o diabo ou com qualquer outro ser do

inferno. Desde quando o senhor passou a acreditar nessas

sandices folclóricas? Não me lembro de tê-lo visto dando

importância a mexericos. O senhor conhece-me desde criança,

pai. Sabe muito bem que nunca me envolvi em sacrifícios de

espécie alguma. Sabe muito bem que não sou adepta a comer

carne de espécie alguma. E como o senhor pode ser tão cruel

com Maria e Joseph, caluniando-os e acusando-os de coisas tão

bárbaras? Pai, Maria ajudou o senhor a cuidar de mim. Ela

sempre lhe foi fiel! E Joseph!? O pobre homem dedicou os

melhores dias de sua vida cuidando do nosso jardim, entre

outras coisas que o senhor lhe pedia e que ele nunca negou

fazer. Acho mesmo que nunca teve uma companheira. Viveu

nesta casa por amor ao senhor e por mamãe. Meus Deus, pai,

foram as ervas de Joseph e Maria que curaram a moléstia da sua

esposa e tantas outras moléstias que surgiram nesta casa! A

ambição está lhe cegando a visão da verdade. Sinto muito, pai,

mas nunca poderei inventar tais coisas contra Maria e Joseph.

Não posso mentir quanto a isso. Nunca os prejudicarei. Prefiro a

morte a ter que inventar tais atrocidades contra duas pessoas

inocentes, se tudo o que eles fizeram nesta vida foi cuidar de

mim. Portanto, não me peça para mentir, meu pai.

– Então, você é inocente? Graças a Deus! Sabia que

todas as sandices que essas pessoas estão dizendo sobre ser uma

bruxa, entre outras coisas, não passavam de calúnias.

Conversarei com o conde. Sei que ele irá relevar tudo isso.

Afinal, um homem tão bom, fino e...

Adriana Matheus

- 461 -

– E rico? Não é mesmo, pai? O senhor não vai falar

coisa alguma com aquele déspota usurpador. Será que o senhor

não percebe que o conde nunca teve a intenção de se casar

comigo? Toda essa história leviana de que os colonos, a justiça

local, o inquisidor, e o senhor participaram só serviu de

desculpas para que ele colocasse em ação o que, na verdade, já

estava planejando. Não percebe que a senhora sua esposa está de

comum acordo com o conde? Eles fugirão assim que toda essa

história se apaziguar! Na verdade, pai, sou apenas uma atração,

um esteio para que todos - inclusive o senhor - se escondam

atrás de mim. Assim, enquanto todos estiverem voltados para

mim, não prestarão atenção nos reais fatos que estão

acontecendo. Esqueça o conde, pai. Se vendermos alguns bens,

junto com os dotes que já possuo, por certo o senhor poderá

quitar suas dívidas com ele. A condessa também tem muitas

joias que poderão ser leiloadas. Poderemos nos apertar por uns

tempos. Mas, com o esforço e a colaboração de todos, sairemos

desta situação. Pai, raciocine, suplico! Não há nenhuma

vergonha em ser pobre, ou em estar falido financeiramente.

Vergonha é não ter dignidade e coragem de levantar a cabeça e

seguir em frente. Juntos, pai, como uma família que nunca

fomos, venceremos tudo. O senhor vai ver! Quanto a ser ou não

verdade o que dizem a meu respeito, fica a cargo da sua

consciência. A única coisa que lhe peço é que me aceite como

sou. Ponha a mão na consciência e não acuse Maria e Joseph

levianamente. Pense, meu pai, em tudo o que acabo de lhe dizer.

Seja sensato, pelo amor de Deus.

Ele ficou parado na minha frente, parecendo estar

raciocinando. Por fim, resolveu responder:

– Acha mesmo que vou expor minha esposa e o meu

bom nome ao descaso da humilhação, sendo que tenho a solução

aqui na minha frente?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 462 -

– E qual seria essa tal solução? Vender-me como escrava

branca ou acusar de bruxaria e de crimes levianos dois inocentes

somente para que a senhora sua esposa se safe dos crimes de

luxúria dela? Quer que eu me case com aquele imundo para que,

com isso, o senhor quite as suas dívidas de jogo. É isso que o

senhor espera de mim, não é, meu pai? Se isso acontecesse - o

que não vai -, jamais seria feliz. Nunca mais falaria com o

senhor. Nunca o perdoaria. Antes de ser sua filha, antes de ser

uma mulher que o senhor se sente no direito de leiloar, sou um

ser humano. Sangro, choro, sinto dor e tenho sentimentos. Eu

penso, pai - não sou irracional. Não pode se passar por leigo

quanto a isso.

– Do que você está falando? Está louca! Padre Ignácio

está certo: devemos mandá-la para um convento para se curar

das alucinações e devaneios em sua mente, causados pelo

demônio que já está se apoderando de você. Deve ser um

demônio muito poderoso, pois está influenciando a sua maneira

de entender a realidade da vida. Onde já se viu dizer que mulher

pensa? Desde quando mulher tem algum direito? Onde foi que

ouviu tais insanidades? Nasceram ignorantes e submissas

porque Deus assim quis. Não adianta tentar querer ser diferente,

pois a única coisa para a qual vocês servem é procriar. Não pode

mudar os fatos ou as leis dos homens e sobre elas tentar travar

uma guerra solitária. Não pode mudar o rumo dos fatos - sempre

foi assim e sempre haverá de ser. Você deverá obedecer ao que

lhe for imposto pelos homens ou pelo chefe da casa – que,

afinal, sou eu. Imagina só, uma mulher pensando!

Ele deu um sorriso sarcástico e malicioso e prosseguiu:

– Quem está dormindo é você, Anna. Por certo, o

demônio lhe está embutindo tais pensamentos na cabeça. Mas

assim que for exorcizada, vai recuperar sua sanidade mental.

Vou usar minha influência e meu conhecimento para que vá

Adriana Matheus

- 463 -

para um convento onde terá tratamento adequado. Por certo, se

não for demônios, deve ser loucura. De lá, poderá ser transferida

para um manicômio, caso seja necessário. Mas lembre-se, minha

filha: basta que diga que entende o que lhe digo, é certo que

envio imediatamente alguém para lhe tirar de lá. Mas é

importante que não se demore nessa decisão, pois já está ficando

velha e logo já não arrumará um partido tão lucrativo como o

conde.

Era inacreditável ter que ouvir aquelas abominações

saindo da boca do meu pai. Mas eu precisava responder antes

que ele me fizesse calar para sempre.

– É! O senhor tem mesmo razão. Não sei o que falo. Por

certo, estou possuída pelo demônio mesmo! Se for assim, que o

senhor e essa gente vejam-me como uma louca endemoniada,

que assim seja. Mas é muito triste saber que o senhor considera-

nos, as mulheres, como um animal irracional. Isso também quer

dizer que, quando o senhor se deita com sua esposa, está se

deitando com uma das éguas do seu estábulo? Meu Deus! Estou

perplexa com tanta atrocidade que sai de sua boca, meu pai. O

senhor prefere deixar-me ser trancada como uma louca

endemoniada em um convento do que ouvir a verdade, do que

fazer a coisa da maneira correta. Se isso é o que o senhor acha

certo, então, cale-me. Faça como todos: sufoque a voz da

verdade. Mate-me, se assim o quiserem. Mas a verdade

aparecerá mais cedo ou mais tarde. E o senhor? Ficará sozinho

com sua consciência e embriaguez.

Disse aquilo porque sentia o forte hálito de bebida que

saía de sua boca. Depois de fitá-lo desafiadoramente, prossegui:

– Vou lhe contar uma coisa sobre sua esposa, pois acho

que o senhor ainda não sabe o que anda acontecendo debaixo do

seu próprio teto. Caso o senhor não tenha percebido, a senhora

sua esposa é uma desfrutável e anda o traindo. Não estou

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 464 -

dizendo isso para magoá-lo ou para vingar-me. Mas acredito que

o senhor está sendo ingênuo em relação a essa mulher.

Ele olhou-me fulminantemente e, por fim, respondeu

ironicamente:

– Todos temos que fazer certos sacrifícios para manter a

família, minha doce e querida filha! Aprenda que nada nesta

vida sai de graça.

– O senhor sabia? Como pude ser tão tola a esse ponto!?

Eu o achava vítima. No entanto, o senhor sempre foi conivente

com todas as traições da condessa?

Senti a cabeça dar uma girada, como se o mundo todo

estivesse caindo sobre mim. Era inacreditável que um homem

admitisse aquele comportamento leviano de sua esposa somente

para manter as aparências e o status. Depois de me ver ficar sem

atitude, ele continuou:

– Há coisas que uma esposa tem que fazer para manter

seu casamento feliz. Existem certos sacrifícios que são

necessários para o entendimento de um casal. Em um

casamento, tanto o marido quanto a esposa têm que ser

compreensivos e, muitas vezes, coniventes com certas coisas.

Ora, Anna! De onde você achava que vinham as roupas caras

que você usava? E toda a comida que comemos? Achava mesmo

que eu, à beira de uma falência, poderia suprir o luxo de uma

mulher tão cheia de mimos como minha esposa? Se pensa desta

forma, vejo que realmente é uma tola e ingênua. Tinha muitas

esperanças em você. Cria que, quando crescesse, dar-me-ia certo

lucro. No entanto, está se comportando como a garotinha

mimada e estúpida que sempre foi. Está sendo ingrata com a

condessa. Você deveria ao menos aprender a se calar e a

respeitar quem a alimentou por tantos anos. O obséquio que sua

mãe lhe deixou só poderá ser usado quando seja maior de idade

ou quando sele uma união matrimonial. Portanto, acho que já

Adriana Matheus

- 465 -

está mais que na hora de você ser mais compreensiva e retribuir

todo o sacrifício que fizemos por você. Afinal, se minha atual

esposa faz por mim tais sacrifícios, porque você, como minha

filha, também não pode simplesmente cumprir um simples

pedido meu? Afinal de contas, o conde é um homem ainda

jovem e cheio de vigor. E muito rico, sim: poderá lhe dar tudo o

que desejar. Não terá nunca que passar dificuldades.

– O senhor enoja-me. Está tentando me prostituir como

faz com sua esposa. Saiba que nunca vou ceder às suas

vontades. Prefiro apodrecer no calabouço de um convento como

louca endemoniada a fazer parte deste mundo miserável em que

o senhor insiste em sobreviver. Se já que não se importa com a

reputação de sua esposa, dê ela mesma de presente ao senhor

conde e poupe aos dois o trabalho de fugirem. Mas saibam que

pretendo gritar aos quatro ventos o que estão tentando fazer

comigo.

Meu pai olhou-me nos olhos como se sentisse repulsa

por mim. Esbofeteou-me nas faces, fazendo-me cair deitada

sobre a cama. Levantei-me, colocando as mãos no rosto, mas

nada disse. Novamente, apenas o fitei, tentando reconhecer

quem era o homem à minha frente. Depois que ele me olhou

com desprezo, prosseguiu:

– Então, a partir de hoje, renego-a como minha filha e

excomungo-a como ser humano. Não moverei uma palha para

amenizar sua pena. Por mim, apodrecerá em uma cela escura e

úmida para aprender a respeitar e obedecer às pessoas que só

quiseram o seu bem. E quanto a dizer sobre o que acabamos de

falar, não acreditariam em uma louca tendo crises de possessão.

Eu mesmo farei questão de me certificar de que sua pena será a

mais dura possível.

Ele gritou para que os guardas viessem me buscar.

Naquele exato momento, lembrei-me do pai de minha ancestral

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 466 -

Shaara, também ancestral do meu pai e que morreu pensando

que ela o tivesse traído. Definitivamente, meu pai trouxe

consigo essa revolta do passado. Ele me odiava

incondicionalmente por causa das lembranças da outra vida. Ele,

então, gritou, chamando os guardas e ordenando:

– Guardas! Tirem essa mulher da minha frente! Levem-

na para a carruagem. Já está na hora de cumprir minha

obrigação como cidadão espanhol.

Havia o fato de que ele também estava alcoolizado, mas

o ódio mortal por mim só era justificado por causa das

lembranças inconscientes que ele trazia, achando que Shaara o

teria traído e abandonado ao descaso do destino. O fato de que

eu não me tornaria submissa aos seus caprichos era somente a

centelha para que aquela raiva toda aflorasse. No fundo, ele

estava usando a promessa que o conde havia feito de esquecer

todas as suas dívidas quando firmasse compromisso comigo.

Meu pai estava, inconscientemente, tentando achar um motivo

para que eu fosse trancada em um calabouço e esquecida por

ele, como ele achou que foi no passado.

Por certo, todos viveriam bem. Meu pai continuaria a se

fingir de cego, deixando que o conde saboreasse os carinhos de

sua jovem e desfrutável esposa para, com isso, poder viver de

aparências. Mas, quanto a mim, acabei tornando-me um estorvo,

um contratempo para minha família, já que não tinha mais a

menor serventia. Ter sido esbofeteada doeu muito, mas o que

mais me doeu foi o fato de estarem me negociando como uma

mercadoria.

Aprendi a duras penas que vivemos em um mundo

teatral, onde somos obrigados a fazer parte de uma bela e feliz

historinha escrita pelas mãos dos ditadores, dos opressores e dos

fanáticos religiosos. O problema era a realidade por trás dos

bastidores – essa, sim, era muito triste. Pois, quando caíam as

Adriana Matheus

- 467 -

cortinas da aparência, a feia face da mentira e da falsidade vinha

à tona, dando lugar a uma dura realidade de miséria e fome,

onde os podres não podiam se misturar com a burguesia

decadente, escondida por trás dos bastidores. Eu não era daquele

mundo, nem sabia como proceder no meio de tanta injustiça e

desigualdade. Deus não poderia estar deixando que aquilo

acontecesse em vão. Tinha que ter algum propósito para tanto

sofrimento!

Corrigi imediatamente meus pensamentos para não

blasfemar contra o Pai. Deus não tem culpa sobre os erros da

humanidade. Tudo o que fazemos, mesmo sobre um ato

impensado, é culpa única e exclusiva de nós mesmos. Temos o

livre arbítrio de fazer e falar o que bem quisermos. Por isso,

temos que ter muito cuidado nas horas de dor ou de desespero,

para que não venhamos a fraquejar e blasfemar contra quem nos

deu o direto a escolha. Muitas pessoas se questionam por que

razão Deus, sendo tão zeloso e de absoluto amor, deixou que o

seu único filho Jesus Cristo morresse de uma maneira tão brutal.

Algumas ainda têm a ousadia de dizer que o Pai virou-se de

costas na hora da morte de seu único filho, para não o ver sofrer.

Isso não é verdade. Um Pai zeloso e amoroso nunca viraria as

costas ao seu filho amado. Jesus teve o livre arbítrio e escolheu

a sua sentença. Com certeza, na hora de sua morte, o Pai estava

segurando suas mãos para que o seu filho, assim, não sofresse

mais do que ele havia escolhido. E não nos castigou mais porque

o próprio Jesus o implorou Pai, perdoai-os, porque não sabem o

que fazem... Para mim, Jesus sempre vai ser um mestre em

sabedoria, benevolência e perfeição. Quanto ao Pai maior, este é

indiscutível em suas inúmeras qualidades, pois são supremas e

absolutas.

Quando o oficial chegou, trouxe mais dois guardas com

ele. Baixei minha cabeça e deixei que me levassem amarrada

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 468 -

pelos pulsos, como um animal selvagem. A cada volta que o

oficial deu com a corda apertando meus pulsos, senti minha

liberdade indo embora. Nada mais tinha a dizer; meu silêncio o

faria por si. Por mais que qualquer pessoa passe por um

momento de irracionalidade e insanidade, ela sempre tem um

momento chamado de consciência. Ninguém nesta vida se livra

da consciência. Ela é como um grito que nunca se cala dentro da

gente. Mesmo que mantenhamos uma aparência de

tranquilidade, mesmo que não tenhamos a coragem de admitir o

quanto somos falhos e que cometemos injustiças, esse grito

vem, mais cedo ou mais tarde, para nos mostrar o quanto somos

falhos.

Fechei bem os olhos e apertei as mãos sobre o rosto.

Queria esconder-me de toda aquela vergonha. Acabei desabando

em prantos. Meus soluços tornaram-se compulsivos. Por mais

que não queiramos fraquejar, a dor da decepção torna-se um

ponto de partida para a vulnerabilidade. Afinal, somos seres

humanos e, como tais, temos sentimentos. Não tive coragem de

olhar para o meu pai nem que eu quisesse. Levantei a cabeça e

engoli as lágrimas. Não daria o gosto da derrota nem a ele nem

àquelas pessoas. Quanto mais fracos aparecemos perante os

inimigos, mais eles se sentem no direito de nos pisarem. Temos

que ter na mente as seguintes palavras: não damos asas a cobras

e nem cutelo ao carrasco, porque inimigo se vence com

determinação, coragem e oração. O silêncio é a maior arma

que o ser humano tem nas mãos. A confiança em Deus e na

espiritualidade amiga é a única certeza de que venceremos todas

as barreiras. A fé é uma noite negra: não sabemos se seremos

salvos, mas temos a confiança de que seremos. É como se atirar

de um despenhadeiro para se livrar de um dragão. Não

saberemos se a voz que nos impulsiona é ou a não a de Deus,

mas temos que arriscar. A vida é um risco constante. Quem não

Adriana Matheus

- 469 -

arrisca, nunca vai ter a certeza se poderia ter dado certo ou não.

São as incertezas que nos fazem pensar. São os erros e os

tropeços que nos fazem crescer. Não existe este ou aquele que

nunca deixou de aprender algo. Existem, sim, pessoas que

preferem dizer que não se lembram de nada que lhes aconteceu.

Essas pessoas só fazem isso quando se trata de algo que elas

fizeram a alguém – porque, quando se trata de algo que foi feito

a elas, lembram-se por toda a eternidade. Nossos erros nunca

são visíveis ou lembrados. Nunca seremos capazes de admitir

que fazemos coisas que prejudicam o nosso semelhante. Mas, se

em algum momento alguém nos faz qualquer coisa que não nos

deixa satisfeitos, corremos em apontar o erro dessa pessoa.

Assim, ninguém vê o nosso. É fácil viver assim, não é?

Desmemoriado, sem lembranças, vagando sobre o lago do

esquecimento. Ouvir o que alguém tem a nos falar é essencial -

mas aprender com os nossos próprios erros é indispensável. Isso

não significa que nunca mais vamos errar. Porque erramos todos

os dias, todas as horas e não pararemos nunca. Isso porque

somos burros demais? Não. Porque somos fracos e não

controlamos nossos impulsos.

Quando começamos as descer as escadarias, mantive-me

em silêncio. Ao terminar, pude ver que os demais presentes iam

abrindo alas para que os guardas passassem comigo. Aquelas

pessoas que se encontravam nos degraus olhavam-me como se

sentissem por mim uma grande repulsa. Não vi a condessa - o

que foi uma surpresa. Ela não estar presente para se vangloriar

da minha derrota significava que ela estava aprontando alguma

coisa. Esse pensamento gelou-me a espinha.

Tereza, ao ver-me, caiu em prantos. Tentei passar as

mãos em seu rosto quando passamos por ela - que estava em um

dos degraus-, mas o guarda puxou minhas mãos. Um dos

guardas quase me derrubou, empurrando-me pelas costas no

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 470 -

final da escada. Só não caí porque o outro, que segurava as

cordas, puxou-me para junto dele. Um guarda ainda muito

jovem que estava na porta, esperando para abri-la, zombou de

mim quando me viu escorregar:

– Voe, bruxa maldita!

Parei no hall de saída e dei uma última olhada para me

despedir do lugar onde passei toda a minha vida. Foi a última

vez que vi minha casa.

O guarda novamente empurrou-me porta afora, tentando

mostrar-me que não podia parar. Cambaleei, mas não caí. Do

lado de fora, fui observando o jardim e as lembranças do

passado me vieram à mente: coisas muito pessoais, como o

cheiro das rosas que Joseph sempre me dava pela manhã; e

quando Maria me trazia sumo de frutas frescas embaixo do pé

de cedro. Esbocei um discreto sorriso. Olhei para tudo e disse

Adeus!, antes que o guarda me jogasse carruagem adentro.

Amarraram minhas mãos na portinhola, na parte de

cima, fazendo com que meus braços ficassem pendurados. Vai

ver acharam que eu iria fugir. E se o fizesse, para onde iria? E

para que tanta violência? Será que os supostos demônios em

meu corpo poderiam me possuir e me fazer sair mordendo a

todos? Certas medidas de segurança eram desumanas e

desnecessárias. Mas eram usadas para que a população ficasse

acuada e respeitasse as autoridades locais.

Comecei a bater o queixo. Sentia frio, pois saíra sem ter

a menor chance de levar um xale. Embora o sol já tivesse

despontado no horizonte, a neblina ainda era muito densa e, por

certo, choveria naquele dia, pois o céu estava cinza.

Olhei mais uma vez para a casa que um dia foi o meu

habitat. Vi à janela a condessa, que observava tudo por trás das

cortinas da sala. Pela distância em que se encontrava, não dava

Adriana Matheus

- 471 -

para saber o que ela estava pensando. No mínimo, seus

pensamentos eram de vitória.

Às vezes, julgamos e interpretamos mal as pessoas. A

condessa não era minha amiga, mas mesmo assim a entendia.

Ela era mais uma vítima de meu pai e daquela sociedade

machista. Entendia-a e não esperava ser entendida por isso.

Sabia que ela vingava em mim todas as suas frustrações. No

fundo, era muito difícil para ela ter que ser submetida a tais

coisas - logo ela, que sempre tivera de tudo. Casou-se porque já

estava com 28 anos e o pai não poderia ficar com uma filha

solteirona em casa. No fundo, o pai da condessa quis livrar-se

dela como o meu. Embora a entendesse, não significava que

eram justificáveis seus atos de maldade comigo. Mas é a vida!

Tornamo-nos vítimas das frustrações das pessoas com quem

convivemos. Mesmo sabendo que meu destino não seria dos

melhores, compadeci-me por vê-la ali, atrás das cortinas, pois

acabaria por se afundar nas bebidas e também passaria a gritar

com as paredes, pois não teria nem a mim nem a Maria para lhe

servir de esteio. Quando o conde se cansasse do seu

brinquedinho, descartá-la-ia, deixando-a ao relento.

Definitivamente, deve ter sido muito difícil para a condessa ter

deixado seus sonhos, sua vida e, provavelmente, um amor. E

agora lá estava ela, vivendo ao lado de um homem muito mais

velho, que bebia dia e noite e era um compulsivo por jogos. Por

não cumprir mais os deveres como marido, fazia vistas grossas e

deixava-a ter seus amantes para, com isso, lucrar também.

Era bizarro e inacreditável saber que os homens usavam

seu poder sobre as mulheres para fazê-las suas meretrizes

particulares. Logicamente, isso acontecia debaixo dos seus

próprios lençóis. Mesmo sabendo que o adultério era

considerado um crime hediondo para a Santa Madre Igreja, os

nobres não só o praticavam às escondidas, mas também

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 472 -

prostituíam suas esposas, fazendo-as cometer o mesmo crime.

Pois, para a sociedade, o importante era manter as aparências.

Também tinha o fato de que, enquanto estivesse dando lucros

favoráveis à Igreja, o povo não faria mal algum. Mas tinham que

se manter rigorosamente em dia com seus dízimos, entre outras

coisas. Qualquer deslize seria imperdoável e prejudicial à saúde

deles. Logicamente, todos sabiam das depravações dos nobres.

Mas era mais sensato que permanecessem calados. Assim, a alta

sociedade permanecia intacta.

Aqueles hipócritas depravados comiam e bebiam às

custas da desgraça alheia - da escória, como chamavam os

menos favorecidos. Repudiavam a pobreza como se eles fossem

vermes. Mas era o lodo de suas atitudes que destruía a raça

humana. Vivi em uma época onde a degradação não era só dos

corpos maus cheirosos. Vivi em uma época onde a

insociabilidade e a hipocrisia tomavam conta da humanidade

como uma doença contagiosa. As pessoas não se misturavam

umas com as outras. Os pobres tinham um espaço na exclusão.

Tinham que viver escondidos. Pessoas com deficiências eram

excomungadas ou tinham que pedir esmolas nas ruas. Os

negros, estes então... Sofreram com o preconceito dos que se

diziam ter poder sobre as pessoas. Gostaria de ter podido fazer

alguma coisa, mas só fui descobrir meu real caminho quando já

estava na hora de me encontrar com meu destino. As crianças

eram obrigadas a fazer duros trabalhos, enquanto as filhas das

senhoras feudais sequer podiam vestir-se sozinhas. Se um

menos favorecido ou uma mulher, como no meu caso, os

desafiassem, por certo poderia considerar-se morto. Mesmo que

confessassem e se arrependessem, como lhes era imposto muitas

vezes, por certo faltar-lhes-iam alguns pedaços do corpo. Aí,

sim, estariam fritos em óleo fervente, pois como

sobreviveríamos em uma sociedade totalmente preconceituosa?

Adriana Matheus

- 473 -

Ninguém lhes daria trabalho nem esmolas, e ninguém se casaria

com uma ex-bruxa. Principalmente porque nunca existirá ex-

bruxa. Uma vez conhecedora da magia, não adianta tentar se

converter.

As pessoas que eram consideradas bruxas, mesmo que

fossem perdoadas pela Santa Madre Igreja, jamais obteriam o

perdão. Mesmo demonstrando arrependimento, elas acabariam

mendigando, pois o povo nunca mais as olharia com os mesmos

olhos. Uma vez pagão, sempre pagão. Se eu tivesse aceitado o

que o meu pai havia me sugerido, teria que viver sob vigilância

constante e só sairia de casa acompanhada por um guarda e uma

aia de confiança do conde. Meu pai também poderia ser

chamado a qualquer deslize meu e poderia castigar-me, se assim

achasse necessário. Uma pessoa que estava em uma situação

como a minha, quando morria, era jogada em valas ou enterrada

em locais exclusivos para hereges, excomungados e pagãos. Não

obtinha da Santa Madre Igreja autorização e o direito de ser

enterrada em um cemitério público ou em um local sagrado. Na

maneira de ver desses hipócritas, Deus também não perdoava os

pecadores e os hereges. Eram pessoas que pregavam a palavra

do Criador sem ter o menor amor no coração. Mas, se Deus não

perdoava ninguém, então por que ele mesmo disse Sou a

ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra,

viverá; e quem vive e crê em mim, nunca morrerá?

A única coisa que Jesus realmente fez foi pregar o amor

e o perdão. Ele também nos ensinou que só o Pai poderia julgar-

nos e mais ninguém. Isso me pesou na alma naquele momento.

Se Jesus Cristo foi só perdão e bondade, como poderia o ser

humano, cheio de corrupção, com coração carregado de

maldade, sentir-se no direito de injuriar e julgar o seu próximo?

Por que ser diferente era um crime, um pecado? Por que tinha

que haver somente uma religião que pregasse sobre o Cristo

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 474 -

verdadeiramente? Por que tudo era heresia? Por que as missas

tinham que ser celebradas em latim, se a maioria da população

mal sabia assinar o próprio nome? Aos pobres, quando lhes era

permitido assistir uma missa, tinham que ficar do lado de fora da

igreja. Os negros nem da porta podiam passar. Se a casa era de

Deus, por que tanta desigualdade, preconceito e soberba? Será

que o mundo mudaria algum dia? Será que as pessoas em outra

época, em outra encarnação, seriam mais evoluídas? Será que os

apóstolos também tiveram dúvidas? Pois elas me pesavam o

ser. Que triste ter que fazer parte de uma humanidade tão

desigual! - pensei, por fim. Então, deixei-me levar pela

paisagem...

A caminho da cidade, fui observando tudo ao meu redor

nos mínimos detalhes, numa espécie de despedida fúnebre.

Adorava a cidade de Salamanca, com suas enormes montanhas e

árvores. Esta cidade mágica enfeitiçava os olhos de quem quer

que por ela passasse. Salamanca é uma província raiana da

histórica Região de Leão, na Espanha, e situa-se a nordeste de

Portugal. Também é influenciada pela bacia do rio Douro. Sua

denominação, em idioma local antigo, era doiri. Essa região

chegou a sofrer influências romanas, árabes e diversas outras

mais sutilmente. É uma terra de clima ameno e topografia

variada. A cidade é situada em local mais plano, mas com

montanhas ao norte e ao sul. Dona da penúltima catedral gótica

construída na Espanha, como seus maiores tesouros

encontramos: a Universidade de Salamanca, a segunda

universidade mais antiga da Europa, fundada no ano 1218 por

Alfonso IX de Leão; as Catedrais Nova e Velha; Plaza Mayor;

Ponte Romana, e outros, sem fim. Seu título deve-se ao fato de o

arenito, utilizado em suas antigas construções, apresentar

coloração levemente dourada clara. De acordo com a luz, pode-

se verificar que o título faz juz à sua beleza. Em suas terras, são

Adriana Matheus

- 475 -

produzidos vinho e azeite, e há alguma criação de ovinos e

caprinos. Não possui temperaturas extremas de calor e frio, e

recebe pouca afluência de chuvas. Já em suas montanhas, pode-

se verificar mais abundância pluvial. O mais rico de Salamanca

talvez seja sua história secular, onde se verifica acontecidos

inusitados. Cristóvão Colombo mesmo chegou a passar pela

cidade. Nela tivemos a Inquisição e a migração de judeus,

portugueses, árabes e tantos outros mais que compunham seu

quadro histórico. Também devido à sua localização geográfica,

sofreu influência de correntes celtas em dados momentos e

ocasiões. Talvez daí venha sua significação. Salamanca, com

certeza, seria no futuro um local onde as minhas irmãs poderiam

se encontrar.

Sonhos, belezas e histórias. Tudo isso passava na minha

frente. Eram pequenos momentos dos quais eu sentiria saudade.

Residia dentro daquela cidade uma força maravilhosa e que o

tempo nunca poderia apagar. Nenhuma maldade poderá acabar

com a magia de Salamanca. Isso eu sabia porque estava em meu

coração. Minha alma estaria ali para sempre. Poderiam me tirar

tudo, menos os sonhos e as lembranças dessa formosa província.

Eu era realmente apaixonada por Salamanca, pelo meu país,

minha Espanha... Viajei mentalmente, percorrendo toda aquela

terra maravilhosa com meus pensamentos e lembranças. Só fui

interrompida quando chegamos à cidade e pude ouvir o alarido

das pessoas que estavam nas ruas, naquela manhã de fim de

outono. Pareciam estar sabendo que eu ia ser levada a

julgamento, pois seus olhos curiosos e amedrontados não

desgrudavam da carruagem que estava em disparada. As pessoas

fizeram uma espécie de procissão nas laterais das ruas, de um

lado a outro. Multidões aglomeravam-se nas calçadas. Ouvi

gritos e xingamentos, mas não sabia decifrar nenhuma daquelas

palavras que, por certo, não eram de misericórdia ou de afeto.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 476 -

Impressionante como más notícias chegam rápido! Voam nas

asas do vento.

Minhas mãos e meus braços já estavam começando a

doer e a ficarem dormentes. Percebi, também, que meus punhos

estavam arroxeados. O pior é que nem poderia mexê-los muito,

pois a corda estava muito arrochada e poderia cortá-los, com

certeza. Minha boca estava seca e sentia medo e fome. Que

combinação sem requinte!

Meu pai não estava dentro da carruagem comigo.

Acompanhou-nos a cavalo. O guarda que me escoltava não me

pareceu muito amistoso. Olhava-me com certo pavor, escondido

atrás do semblante fechado. Resolvi permanecer calada, pois o

medo nas pessoas é geralmente muito perigoso. Elas acabam

usando a violência como uma forma de defesa. Então, por

sensatez, evitei até respirar muito alto.

O cocheiro corria tanto que parecia que iria tirar o pai da

forca. Meu estômago começou a embrulhar de tanto que sacudia

a carruagem. Elevei meu espírito ao céu em orações. Em um

instante, estava longe de tudo aquilo. Fechei os olhos bem

apertados, para olhar para dentro da minha alma, tentando achar

algum lugar tranquilo. Quando nos concentramos muito,

chegamos a lugares imaginários. Mas, naquele momento, só

queria me concentrar naquela magnífica paisagem de Salamanca

à minha frente. Viajei mentalmente por todo aquele cenário.

Senti meu corpo leve. Era como se o meu períspirito estivesse se

desprendendo naquele exato momento. Era uma forma de

socorro mental. Eu estava tentando encontrar a paz e segurança

dentro de mim mesma. Realmente, precisava desligar-me

daqueles acontecimentos - ou acabaria ficando louca. Cheguei

até a esboçar um sorriso causado pelo nervosismo em que me

encontrava, mas o guarda cutucou-me com a ponta do fuzil,

fazendo-me sair do meu estado de transe. No mínimo, deve ter

Adriana Matheus

- 477 -

pensado que eu estaria maquinando algo – ou, quem sabe,

naquela mente poluída, ele imaginou que eu já estivesse

incorporada por algum súcubo.

Súcubo é um demônio com aparência feminina, que

invade o sonho dos homens. Fazendo isso, eles podem

corromper totalmente a pessoa. Súcubos são demônios que se

alimentam da força sexual das pessoas. Quando estes demônios

invadem o sonho de uma pessoa, eles tomam a aparência do

desejo sexual delas e os atacados têm a melhor experiência

sexual de suas vidas nesses sonhos. A energia que vem do

prazer do atacado é sugada pelos súcubos. A palavra súcubos

vem do verbo em latim que quer dizer deitar-se sob. Íncubos são

demônios masculinos que afetam as mulheres. Ambos sempre

agem à noite, enquanto suas vítimas dormem. Para o meu

entender, nada mais era do que uma pessoa com seus desejos

sexuais reprimidos. E isso acabava aflorando durante o sonho,

quando o corpo está livre de represálias. Mas, por ter a mente

ignorante e ingênua, esses pobres tolos saíam a confessar tais

sonhos aos padres, que, por sua vez, condenava-os, dando-lhes

várias penitências e castigos abomináveis. E se o sonho

prosseguisse - o que quase nunca acontecia, porque,

logicamente, quem seria louco de ser torturado tantas vezes? - o

padre ou responsável diria que o infeliz estava dominado por

demônios da luxúria. Nem quis pensar no que aquela mente

libertina à minha frente poderia estar pensando a meu respeito.

No mínimo, achava que eu estava tendo delírios imorais porque

esbocei um sorriso. Mediante aquela cutucada, abri meus olhos

rapidamente e comecei a olhar pela janela, já que nem com os

meus pensamentos eu podia ficar sozinha.

Ao passarmos frente à igreja de padre Ignácio, vi um

cortejo fúnebre. O senhor Manoel Borges havia falecido. Houve

certo comentário que poderia ter sido por causa da peste, mas

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 478 -

nada havia sido comprovado. Todos pareciam não querer falar

sobre o assunto, sendo que a peste era considerada uma doença

do diabo. Próximo à praça principal, algumas moçoilas

desfilavam em seus belos trajes e, ao ver passando a carruagem

em que me encontrava, viraram de costas imediatamente,

impulsionadas por suas aias. No mínimo, pensavam que eu

jogaria um feitiço sobre elas ou, quem sabe, transformá-las-ia

em sapo ou coisa parecida.

Além de ter me tornado a única atração do condado,

também havia me tornado uma aberração da natureza. Sei que,

naquela manhã, não tive a oportunidade sequer de olhar-me ao

espelho, mas tinha certeza de que em minha face não haviam

nascido verrugas da noite para o dia. E sabia que, em meus

cabelos, embora despenteados, não tinham cobras mostrando a

língua. Mas, quando eu olhava para os rostos amedrontados

daquelas pessoas, era isso que elas passavam para mim. Senti-

me um monstro, uma aberração da natureza.

Quando chegamos, finalmente, frente ao tribunal local,

uma multidão já se reunia, aguardando a chegada da atração

principal - no caso, eu. Algumas pessoas estavam carregando

foices e paus nas mãos. Outras trouxeram cesta de legumes e

ovos podres. Senti um calafrio repentino invadir todo o meu ser

ao ver toda aquela gente aglomerada em frente ao tribunal. Por

instantes, achei que nem chegaria a julgamento. Os demônios

não me fariam mal. Mas, com certeza, poderia esperar tudo

daquelas pessoas. Na verdade, sabia que naquelas atitudes

ameaçadoras elas estavam demonstrando uma forma de

autodefesa. Isso foi o que me assustou: o medo que elas sentiam

de mim poderia surtir reações diversas em cada uma delas. As

pessoas, quando estão sendo influenciadas ou passando por uma

histeria coletiva, podem ser muito perigosas, em todos os

sentidos.

Adriana Matheus

- 479 -

Fui despertada daquele transe de medo pela voz

estridente de um homem. Estiquei o pescoço para ver. Era a voz

do chefe da guarda, gritando do lado de fora da porta tribunal.

Aquele homem espalhafatoso deixou-me ainda mais aflita com o

seu abanar de braços e gritos estridentes. Ele era um homem alto

e muito magro. Parecia ter saído de uma catacumba, pois sua cor

muito pálida e seus olhos extremamente esbugalhados eram

assustadores. E aquele bigodinho, então? Todo engomado sabe-

se Deus pelo quê! Arrepiei-me dos pés à cabeça ao ver aquela

figura exótica e nada convencional. Sua farda não lhe caía bem,

pois ficava curta nas bainhas e justa demais nas pernas e braços.

Eu até poderia ir para a fogueira, mas não consegui deixar de

observar o desleixo de quem estava tentando achar algum

defeito em mim. O homem, definitivamente, parecia-se com um

boneco fantoche, personagem de alguma cena de um teatro de

horror. Engoli o riso mais uma vez e continuei a detalhar aquele

pobre infeliz que havia caído nas minhas graças. Se eu estivesse

no escuro e sem ninguém por perto e aquela figura tivesse

aparecido de repente, no meio do nada, juro que cairia dura e

tísica ao chão. Santo Deus, tenha pena de minha alma, pensei

comigo! Estava sendo soberba e insana.

A cada instante, ficava mais desesperada. Isso fazia com

que a minha mente começasse a ter devaneios de tolices. No

fundo, não queria acordar para a realidade dos fatos - o que

explicava certos pensamentos ilógicos para o momento em

questão. Embora eu tivesse tentando manter meus nervos sob

controle para não cair em prantos e demonstrar fraqueza, estar

amarrada como um animal e vigiada por aquele soldado na

minha frente estava me deixando psicologicamente

desorientada. Às vezes, quando estamos muito assustados, não

conseguimos sequer ouvir o som que sai da boca das pessoas. Só

vemos que elas mexem os lábios. Era o que estava acontecendo

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 480 -

comigo. Eu estava quase em choque e, por isso, minha mente

tentava ser irracional. Era como se ela estivesse me protegendo

de um colapso repentino. Depois de respirar profundamente,

esvaziando a minha mente, voltei à realidade de novo. Lá estava

o homem comprido a falar e gesticular. Foquei-me em seus

lábios para sair daquela surdez mental e poder ouvir o que o

chefe da milícia estava dizendo. Por fim, depois de muito

esforço, consegui sair do devaneio e ouvi o que estava sendo

dito:

– Vamos, minha gente! Deem passagem para um oficial

em serviço. O show ainda não começou. Vão se afastando da

carruagem e dando-me licença, para que faça meu trabalho

como se deve.

Aqueles braços compridos iam abanando e afastando a

multidão que, aos poucos, foi abrindo passagem. Uma menina

fez-me uma careta e a mãe logo tratou de tapar os olhos da

pobre. Ela só estava brincando, mas a mãe deve ter achado que

eu a transformaria em uma boneca.

– A que horas vão queimar a bruxa? - perguntou uma

velha senhora.

O chefe da guarda, porém, respondeu-lhe, parecendo não

estar interessado em dar muitas respostas:

– Vamos deixar que os responsáveis respondam a todas

essas perguntas na hora certa, minha senhora. Primeiro, ela

deverá ser interrogada. Depois disso é que saberemos quais as

medidas serão tomadas.

Por fim, depois de muito esforço para abrir caminho por

entre a multidão, o capitão da milícia conseguiu aproximar-se da

carruagem. Abriu a portinhola, olhou-me seriamente, sem

nenhuma palavra a dizer, e foi desamarrando meus pulsos. Meus

braços pareciam estar mortos, devido ao tempo que ficaram

suspensos. O chefe da milícia tirou-me da carruagem aos

Adriana Matheus

- 481 -

safanões. Ele não estava com medo de mim, mas tinha que

mostrar ao povo que tinha autoridade. Fui, em seguida,

amarrada novamente. Só que, dessa vez, com os braços para

trás. Comecei, a partir daquele momento, a sentir que minha

liberdade tinha sido tirada de mim para sempre. As pessoas que

estavam do lado de fora do tribunal sussurraram coisas absurdas.

Outras, ainda, gritaram como se vissem em mim algum tipo de

forma deforme. O pânico de algumas delas causou uma histeria

coletiva. Os poucos guardas que existam ali mal conseguiam

controlar a multidão que havia se formado na porta do tribunal.

Subi a escada empurrada e quase recebi o golpe de uma pedra

que um fazendeiro lançou em mim.

Já dentro do tribunal, fui obrigada a ficar sentada por

horas em um corredor escuro, pois o magistrado e o inquisidor

ainda não haviam chegado. Fiquei observando o corredor.

Metade das paredes era de madeira e a outra metade era

decorada por enormes quadros. Um imenso lustre estava

pendurado sobre a minha cabeça. Seis bancos compridos

seguiam em fileiras corredor adentro, um ao lado do outro. A

porta de entrada era imensa e pesada, e a porta a sala de

audiência era dupla e muito alta. Era um lugar muito frio. Não

tinha nenhuma planta ou decoração que harmonizasse o

ambiente. Tinha certo clima de tristeza no ar. Era como se as

almas do purgatório gritassem por clemência o tempo todo ali

dentro. Eu estava parecendo um porco espinho, de tão arrepiada

que fiquei ao perceber que aquele lugar era um grande portal

para os espíritos sem luz e em aflição.

Dentro da sala de audiência, reuniam-se algumas pessoas

ilustres e importantes, como: o conde Alfred; o chefe da milícia,

senhor Antônio Santos; os dois maiores representantes

paroquiais, padre Ignácio Manuel, padre Alencar Sorancco;

madame Hortência Rivald; a condessa Marli Von Del Prat; meu

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 482 -

pai, Juan Vladimir Porto Señra; senhor Álvaro Lancastro; lady

Dornellas Carrucci; um representante legal de sua majestade o

rei, o Lorde Marllon D’ Runchieir; o Lorde. Octávio Güllians

III; o sobrinho de sua majestade a rainha, o duque Philip

Gonzáles; e, por último, o senhor Emanuel Tostes, que

representaria o povo legalmente e por todos faria as perguntas,

se necessário. Esse tipo de coisa praticamente não acontecia,

pois o representante do povo apenas servia para levar as notícias

do que se passava dentro da sala de audiência, já que o povo, em

certos momentos, não podia estar presente.

Por volta de onze e meia, chegaram o magistrado

Narcíseo de Freitas e o inquisidor Nicolau Neufrien. E, para o

espanto de todos, vieram acompanhados do bispo, Dom

Helvécio Hernandez, e do Prior Eurico Pastorino de La

Constance. O alarido foi tamanho quando o homem desceu da

carruagem que, de dentro do corredor do tribunal, pude ouvir. E

até mesmo eu, que já não esperava mais nenhuma surpresa,

fiquei completamente extasiada ao ver tal figura ilustre. Ao

passar por mim, olhou-me de soslaio, demonstrando desprezo

absoluto. Seu olhar era severo e gelava até os que já estavam

mortos. Ele era um homem alto e forte. Sua presença era de

imponência. Dom Helvécio Hernandez era muito comentado por

seus feitos e proezas pela forma como julgava os condenados de

feitiçaria. Diziam que as suas torturas eram implacáveis e que

não havia quem não confessasse todos os pecados a ele. Ele

vestia uma túnica negra comprida. Em sua cabeça, havia uma

mitra preta e vermelha. Ele aparentava ter uns setenta anos de

idade. Pela forma sisuda do rosto, por certo nunca em sua vida

soubera o que era um sorriso. Eu sabia que seria severo e

impiedoso comigo. O homem não era um emissário da Igreja,

mas sim um emissor de Lúcifer. Quando ele estava passando

perto de mim, ventou forte e o cheiro que pairou no ar foi de

Adriana Matheus

- 483 -

enxofre. Mas o mais estranho era que todas as portas estavam

fechadas. Havia algo de malévolo nele. Pude jurar que uma

sombra entrou ao seu lado na sala de audiência.

Definitivamente, aquele homem não era um ser humano.

Até aquele momento, não pude ter certeza se a sombra

era uma ilusão da minha mente cansada e nervosa, ou se

realmente a sombra entrara na sala com Dom Helvécio. Olhei

para todos os lados, mas nada vi. Até que, de repente, lá estava

ela, flutuando como um lençol negro sobre a porta da sala de

audiência. Era uma criatura irreal, com rosto deforme, olhos

vermelhos e um sorriso apavorante na boca. Quase não dava

para se ver nitidamente, mas os olhos foram o que mais me

assustou, pois demonstravam que era um demônio devorador de

almas. Ficou pairando alguns minutos, parecendo estar

procurando uma vítima para se apossar da sua alma. Tive que

me manter bem discreta para que ele não percebesse que eu

podia vê-lo. Pois, quando um demônio como aquele percebe que

podemos vê-lo, por certo se torna muito mais perigoso. Depois

de alguns minutos, pensei que ele tivesse ido embora. Mas, logo

em seguida, ele estava sobre a minha cabeça e sua forma

incorpórea já havia mudado de novo. Desta vez, ele parecia ter

criado asas de morcego. A figura deforme olhou-me com ar

zombeteiro e maligno. Eu, por minha vez, baixei os olhos,

tentando não demonstrar nenhuma reação. Se a morte tinha uma

forma, ali estava ela, na minha frente, olhando para mim.

Confesso que fique fiquei apavorada. Percebi que, além de

apavorante, era um zombeteiro, pois podia mudar de forma. E

ele, ao perceber que eu podia vê-lo, agarrou-se nas paredes com

suas unhas compridas e começou a correr pelo teto. Depois,

voltou para a porta da sala de audiência e sorriu-me, mostrando

sua língua de cobra.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 484 -

Certos espíritos acompanham as pessoas quando elas têm

um coração muito perverso. Tais espíritos são vulgarmente

chamados de demônios, atraídos por nossas energias - sendo elas

negativas ou positivas. Ou seja, se vibrarmos boas energias,

vamos atrair bons espíritos. Mas, naquele caso específico, o

espírito já havia tomado conta daquele corpo. Ambos eram

praticamente um só ser. Dom Helvécio estava carregando sobre

o corpo todo o peso das injustiças que cometera contra suas

vítimas. Aquele demônio era o seu julgador e, quando ele viesse

a morrer, com certeza ele seria o seu algoz e o faria ver as

atrocidades cometidas em vida. Por certo, Dom Helvécio havia

julgado muitas pessoas levianamente. O que eu achava mais

interessante era saber que esses homens de Deus faziam parte de

um clero e se diziam ter o poder de julgar e exorcizar as pessoas

supostamente endemoniadas, mas não conseguiam ver o

demônio que estava possuindo o seu próprio corpo.

Certos espíritos atormentam seus obsediados da pior

forma possível. As formas mais comuns de obsessão são: a

obsessão simples, a fascinação, a auto-obsessão, o obsessor por

amor e o suicida. O ser humano é objeto e alvo do processo de

obsessão constantemente. O obsediado trata-se de alguém cujo

débito é muito elevado diante da lei divina.

No plano de evolução espiritual em que se encontra,

nosso planeta é um local de expiação, no qual se concentra um

grande número de espíritos vibrando nas mais baixas

frequências possíveis. Esses espíritos vivem presos a situações

emocionais de ódio, raiva, egoísmo, amor não-correspondido,

entre outras emoções. Estão de tal forma presos ao plano físico

que muitos acreditam ainda estar em seus corpos carnais. Assim,

vivem próximos das pessoas com as quais um dia conviveram,

afastando-se dos planos espirituais mais elevados e atrasando

sua reencarnação. Entre esses espíritos, ainda existem aqueles

Adriana Matheus

- 485 -

que têm a consciência de que estão mortos e de que já não

habitam mais um corpo físico. Mas, como ainda estão presos às

vibrações muito baixas do mundo espiritual, realizam ações que

visam a prejudicar os vivos e atrapalhar ao máximo a vida e a

evolução espiritual de suas vítimas encarnadas. Esses espíritos

são os que chamamos de obsessores. Sua sensibilidade à Luz

Divina foi embrutecida pelo tempo e por sua natureza moral.

Eles ficam estagnados num círculo vicioso e numa obstinação

tão intensa que não é raro se esquecerem de quando e do porque

de tudo ter começado. Na maioria das vezes, estão tão cansados

e vivem há tanto tempo nessa condição que não sabem mais

como caminhar em direção ao esclarecimento e à Luz de Deus -

necessitando, assim, de toda ajuda que lhes possa ser fornecida.

É fácil para nós imaginarmos o surgimento de tais

obsessões pelo caminho do ódio. Afinal, sabemos do que os

homens são capazes quando tomados pela raiva descontrolada.

Mas também surgem obsessões, até mais graves, em virtude do

amor. O amor gera correntes que, unidas a outros sentimentos

como egoísmo, apego, carência afetiva intensa, falta de auto-

estima, podem produzir obsessões. A revolta, a dor e a raiva

podem mudar a energia do amor. Basta que exista um grande

apego alimentado por um forte egoísmo, gerado num coração

que viva uma grande carência, e teremos um espírito que sentirá

uma grande dificuldade de se separar dos entes queridos. Como

o amor e o ódio estão separados por uma barreira quase

imperceptível, em algumas oportunidades imaginamos que um

espírito está com ódio - quando, na verdade, ele pode estar

escondendo a dor de um amor não correspondido. Ou até

mesmo pode ser uma entidade que ainda quer manter o apego

que tinha em vida, agindo de forma a manter a outra pessoa

presa ao círculo de sentimentos que demonstrava quando o

espírito estava encarnado. De todas as formas de obsessão, a

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 486 -

gerada pelo amor é a pior de todas, pois aquele que ama sequer

pode imaginar ou aceitar que, na verdade, está atrapalhando seus

entes queridos. Ele acredita estar ajudando-os, supondo que não

poderiam viver sem sua presença e auxílio. A relação entre o

obsessor e suas vítimas é variada e segue por caminhos

tortuosos, mas que inevitavelmente levam à degradação física e

moral do obsedado - o que, por fim, pode levar à vitória do

espírito obsessor.

As obsessões são as ações que influenciam os vivos,

estimulando reações e semeando a discórdia e o ódio, nascido da

força exercida pelos espíritos inferiores. Eles influenciam

maleficamente, como os demônios das histórias bíblicas. Assim

como ocorre nessas histórias, as formas de o obsessor atuar

também são sutis e intangíveis. Só após muito tempo é que se

tornam evidentes. Nunca devemos tentar fazer um exorcismo ou

desobediar sozinhos, porque não sabemos o grau da obsessão no

qual se encontra o indivíduo. Sem contar que o espírito pode

também interferir na vida de quem tentar atrapalhá-lo. Ele pode

até mesmo se irar contra a terceira pessoa. Nunca tente fazer um

acordo com um espírito. Isso nunca funciona e o obsessor pode

passar a obsediar a quem lhe faz o acordo também.

É muito fácil saber quando uma pessoa está sofrendo de

obsessão, pois se tornam visíveis as alterações de

comportamento físico, mental e emocional. Tais como: olhar

fixo, esgazeado ou fugidio, sem encarar ninguém; tiques e

cacoetes nervosos; desalinho ou desleixo na aparência pessoal;

excentricidade comportamental; agitação; inquietude;

intranquilidade; medo e desconfiança injustificáveis; apatia;

sonolência; mente dispersa; ideias fixas; excessos no falar; no

rir; mutismo ou tristeza; agressividade gratuita, difícil de conter;

ataques que levam ao desmaio; rigidez; inconsciência;

contorções; pranto incontrolável e sem motivo; orgulho;

Adriana Matheus

- 487 -

vaidade; ambição ou sexualidade exacerbados e exagerados.

Quando a pessoa volta ao normal, após uma crise, geralmente

queixa-se do domínio sofrido e lamenta atos infelizes que

praticou. Na fascinação, os demais notam a fantasia, o

fanatismo, a fixidez, o absurdo das ideias. Só a pessoa obsediada

não nota.

Fiquei ali por horas, tentando achar uma qualificação

para aquele espírito cuja forma mal se podia ver. Aquele

inquisidor não sabia, mas, se houvesse um julgamento divino,

ele seria o primeiro a morrer queimado. Pois aquele obsessor era

o seu algoz espiritual e seria o primeiro a condená-lo.

Todos estavam dentro daquele tribunal havia horas. Até

os espíritos malignos ocupavam seus lugares de destaque.

Enquanto eu, reles bruxa, permanecia sentada em um banco

duro, isolada de todos, no escuro, amarrada com as mãos para

trás e sendo atormentada pelo obsessor de um monsenhor, que

se sentia no direito de me julgar e condenar. O que eu havia me

tornado para aquelas pessoas, um animal? O que de tão grave eu

havia cometido? Será que ter uma ideia própria e formada fazia

de mim ou de alguém uma pessoa endemoniada? Comecei sem

querer a deixar que a revolta tomasse conta de mim. Afinal,

quem sabe com tantos demônios sobre o meu corpo eu poderia

sair e engolir alguém? Com tantas criancinhas deliciosas à solta,

imagina o que eu não poderia fazer! Isso, por certo, eu não faria

- é lógico. E eles nem desconfiavam que o demônio-mor tivesse

acabado de entrar e estava lá dentro, no meio deles. Sacudi a

cabeça com indignação. Ingênuos, pensei em voz alta.

Pedi ao guarda que estava parado à minha frente, em

posição de estátua, que me desse um copo d’água, mas ele

permaneceu em posição ereta. Exclamei várias vezes,

implorando-o, mas o homem nada fez. Acho que ele era mesmo

uma estátua. Mas juro: não fui eu quem o transformou. Era

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

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como se eu fosse translúcida para aquele soldado. Não fazia a

menor diferença se eu morresse ou não. Meus braços

começaram a doer novamente. Toda aquela situação estava me

deixando completamente louca. Estava tendo alucinações e

devaneios. Já não conseguia distinguir o certo do errado, a

verdade da mentira. Houve hora em que eu acreditava que eram

verdadeiras aquelas acusações contra mim. A falta de

comunicação e o silêncio absoluto, causado pelo desprezo

daquele guarda à minha frente, já estavam realmente começando

a afetar os meus nervos.

Estava cansada e precisava dormir um pouco para

descansar a mente. Fiquei me lembrando de como era bom

poder cochilar dentro de uma tina com água quente. Fui criada

por Maria e, devido aos seus costumes e à tradição, ela me

ensinou a tomar banho todos os dias. Muitas vezes fazia isso às

escondidas de todos, em meus aposentos, pois não era o costume

europeu. Na verdade, as pessoas não eram apenas imundas de

pensamentos, mas também seus corpos tinham um cheiro fétido.

A senhorita D’Lú contou-me, certa vez, sobre os estranhos

costumes da corte europeia, onde a maioria das pessoas casava-

se no mês de junho, início do verão, porque, como tomavam o

primeiro banho do ano em maio, o cheiro delas ainda estava

mais ou menos tolerável. Entretanto, como já começavam a

exalar certos odores, as noivas passaram a ter o costume de

carregar buquês de flores junto ao corpo, para disfarçar, assim, o

mau cheiro. Os banhos eram tomados numa única tina, enorme,

cheia de água quente. O chefe da família, o rei ou monarca,

tinha o privilégio do primeiro banho na água limpa. Depois, sem

trocar a água - reparem que lindo!-, vinham os outros homens da

casa, por ordem de idade, as mulheres, também por idade e, por

fim, as crianças. Os bebês eram os últimos a tomar banho.

Portanto, quando chegava a vez deles, a água da tina já estava

Adriana Matheus

- 489 -

tão suja que era possível perder um bebê lá dentro. Ainda bem

que meu pai havia sido doutrinado por minha mãe e mantinha

quatro tinas em nossa casa. Meu pai nunca fora um homem de

tomar muitos banhos, mas também não se preocupava se

tomássemos com frequência. Em compensação, sua adorada

esposa só tomava banho quando precisava ir a uma festividade.

Confesso que seu odor era fétido e, misturado às caras

fragrâncias francesas, dava-me náuseas. E isso piorava no verão.

Comecei a achar graça daqueles pensamentos tolos e

sem lógica. Estava à beira de uma condenação e ainda conseguia

ver graça naquelas pessoas. Estava ficando tonta; precisava

comer alguma coisa. A falta de alimento, principalmente pela

manhã, causava-me tonturas e certos devaneios. Não podia pedir

socorro naquele local, pois poderiam achar que o demônio já

estava se manifestando. Tive de me manter calma, fria e

controlar os devaneios causados pela falta de algo doce,

principalmente. Por isso, Maria sempre se preocupava em me

fazer comer pela manhã e forçava-me a comer algo nos

intervalos das refeições. As vertigens começavam a me causar

devaneios. Estava sentindo a visão turva. Comecei a cochilar,

quando uma voz suave me chamou:

– Anna, precisa manter-se lúcida. Não poderemos ajudá-

la se não estiver consciente. Anna, acorde! Só poderemos ajudá-

la com a sua mente em total estado de lucidez.

Abri os olhos lentamente e vi um homem belíssimo,

vestindo uma túnica muito branca de um fino linho. Seus

cabelos eram cacheados e loiros e caíam sobre os ombros largos.

Seus olhos eram de um azul inigualável. Tinha as faces rosadas

e os lábios grossos. A pele mais parecia uma fina porcelana. Sua

luz deixou-me quase cega. Quando eu já estava totalmente

despertada, ele abriu-me um largo sorriso e falou-me:

– Sabe por que estou aqui, não?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 490 -

– Sim, Heixe. Faço uma ideia.

Ele abaixou e segurou o meu rosto com a mão, que mais

parecia um pedaço de seda. Era a primeira vez que me tocava.

Foi bom sentir um pouco de carinho, pois estava totalmente

indefesa e carente. Depois de afagar meu rosto e meus cabelos,

o espírito falou:

– Vim auxiliá-la, mas preciso que tente reagir. Sei o

quanto é difícil para você estar passando por tudo isso. Mas esse

foi o caminho que escolheu. Não fraqueje agora. Ainda tem

muito chão pela frente.

– Eu sei, mas meu corpo dói tanto! Estou fraca e com

fome. Talvez tivesse sido melhor se eu tivesse escolhido o

destino que queriam impor a mim. Talvez seja melhor eu negar

tudo e dizer que estava sob influência maligna. Estou cansada...

Não quero mais lutar, por Deus. Faça-os parar, por favor!

– Anna, sabe muito bem que não posso voltar o tempo.

Mesmo que negue quem é, não mudará o seu jeito de ser.

Liberte-se de todos esses pensamentos e alimente-se com

orações. Seu espírito está fraco e, por isso, seu aparelho

apresenta fraqueza. Só o amor do Pai Maior pode sustentá-la

nesta hora de dor. Anna, minha doce Anna... Como pode

esquecer tudo o que aprendeu?

Naquele momento, uma estranha força penetrou meu

corpo e entrei em total sintonia com Heixe. Juntos, fizemos uma

oração mental. Meu espírito foi levitando, até que saí do meu

aparelho e me vi fora do chão. Uma imensa luz cercou todo o

corredor escuro e frio. Uma paz tomou conta de mim. Meu

corpo já não sentia dor ou frio, muito menos fome. Suas mãos

alimentaram-me e curaram-me. Havia uma harmonia no ar e

uma doce melodia que imitava os sons das harpas dos anjos.

Naquele estado, pude ver meu aparelho em repouso. Parecia ter

envelhecido uns três anos naquelas últimas horas. Olhei,

Adriana Matheus

- 491 -

também, para o guarda que vigiava o meu aparelho. Pude

perceber uma áurea de tristeza em torno dele - o que justificava

aquela forma inerte e sem reação aparente. Olhei para Heixe. Ele

parecia ter percebido o que eu estava vendo. Então, emanou

vibrações de entusiasmo para aquele homem, que estava

também precisando de misericórdia. Depois, Heixe pegou-me

pela mão e guiou-me por entre as paredes, seguindo até a sala de

audiência. Por instantes, cheguei a pensar que havia morrido,

mas Heixe explicou-me que eu estava viva e presa pelo cordão

de luz que me segurava ao meu aparelho.

Dentro da sala de audiência, havia um comitê formado

por muitos Lorde, pelo bispo, o prior, entre outros que estavam

discutindo o meu caso. O murmúrio no local era muito grande, o

que me deixou tão confusa, quase não conseguindo entender o

que realmente estavam falando. Passei por todas aquelas

pessoas, mas não puderam me ver. Olhei para o bispo e lá

estava a sombra negra, pairando sobre ele. Na verdade, a

maioria das pessoas que estavam naquele recinto tinha um

obsessor como companheiro. Sabia que aqueles espíritos já

haviam sido seres humanos um dia. Mas, agora, pareciam estar

em decomposição, chorosos, agonizantes... Pareciam terem se

levantado das catacumbas. A maioria era obsessora. Outros,

parentes que só queriam orações. E outros imploravam para que

os ouvissem. Aquilo, sim, era o purgatório. Por isso, todos eram

tão desnorteados daquele jeito. Com tantas pessoas falando em

suas cabeças ao mesmo tempo, como poderiam ter ideias

próprias?

Meu corpo levitava sobre aquelas pessoas e seus

espíritos atordoados. Estava confusa. Na verdade, ainda não

havia me dado conta de minha atual condição. Esse é um estado

em que o espírito não deve permanecer por muito tempo fora de

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 492 -

seu aparelho. Isso é muito perigoso e inconsequente, mas confiei

em meu mentor espiritual, pois ele sabia de minhas limitações.

Pude ouvir o que o inquisidor estava falando e, com isso,

sabia com exatidão qual resposta teria que dar. Na verdade, eles

estavam mais assustados do que eu, como se isso fosse possível.

Eu teria que ter muito tato ao lidar com aquelas pessoas, pois,

por serem completamente leigas no assunto da espiritualidade,

poderiam colocar todos os meus planos a perder. Escolhi aquela

sentença e, daquele momento em diante, teria que ter liderança

sobre minhas palavras, pois qualquer deslize poderia condenar-

me à fogueira.

Precisava encontrar o meu monge. Sabia que ele estava

me esperando. Mesmo que todo o sofrimento que eu tenha

passado tenha sido pesado demais, nunca me arrependi do que

fiz, pois cada momento que vivi ao lado do meu amor valeu a

pena. Mesmo que ele tenha me traído... Aquela necessidade dar-

me-ia forças de prosseguir com a minha decisão. Podia senti-lo.

Sabia da sua infelicidade. Sabia como ele estava sozinho e sem

vontade de viver. Meu sofrimento estava ligado à solidão na

qual ele se encontrava. Éramos um só ser. Estava muito perto

para desistir agora. Dei prosseguimento ao aprendizado de

Heixe e deixei que ele me mostrasse o que me esperava. A

senhora gorducha que estava em minha casa, essa sim, era um

grande problema: a cada discussão, ela colocava mais lenha na

fogueira. Ela só estava ali por ser filha de um falecido e rico

proprietário de muitas terras. Por ser uma dizimista aplicada e

mão aberta, tinha o direito de permanecer entre os poderosos,

enquanto isso lhes fosse conveniente. Nunca havia se casado ou

namorado em toda a vida. Só se dedicou à Igreja e aos preceitos

religiosos. Sua língua felina era bastante útil nestes casos de

acusações. Principalmente porque ela julgava saber da vida de

todos do condado. Na verdade, ela queria algo para comentar

Adriana Matheus

- 493 -

durante sua quinta geração. Em um povoado tão pequeno como

aquele, não se tinha muitas coisas para se contar.

Heixe segurou minha mão e continuamos a ver o quanto

as pessoas cochichavam entre si. Os olhos da condessa pareciam

mortos, visando o nada. Era como se ela estivesse em êxtase.

Por trás de tanta soberania e arrogância, pude perceber a mulher

infeliz e sem vida que ela era. Seu espírito tinha uma cor cinza e

parecia muito solitário. O conde não se desgrudava de meu pai.

Ambos pareciam estar tramando o tempo todo. Algo estranho

naquela amizade começava a me intrigar. Não era só um simples

interesse em me casar com aquele homem. Existia uma espécie

de trama política e financeira. Meu pai fingia não saber que a

esposa era cortejada por outros homens e pelo conde - isso era

conveniente demais. Comecei a ver as coisas como realmente

eram. Aproximamo-nos deles, tentando ouvir o que diziam, mas

o alarido de vozes não nos deixou entender. Por fim, Heixe

achou que já era hora de retornar para o meu aparelho. E foi

bem a tempo, pois o magistrado havia pedido para que me

buscassem para o interrogatório. Como em um flash, meu

espírito passou rapidamente por todas aquelas pessoas,

atravessando as paredes e jogando-se em meu aparelho

inconsciente. Senti como se um raio atravessasse meu corpo.

Acordei de supetão, já com dois guardas ao meu lado,

sacudindo-me e entreolhando-se, parecendo achar que eu estava

possuída.

– Levante-se! - disse um guarda ainda muito jovem,

chutando as minhas canelas.

Levantei-me com a ajuda do outro, que segurou meu

cotovelo, dando-me certo apoio. Segui-os corredor afora.

Entramos por uma enorme porta, quase negra, talhada à mão.

Ao abrirem a porta pesada, fez-se total silêncio no recinto.

Todos se viraram para trás, levantando-se. O júri já estava

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 494 -

formado e o magistrado estava usando uma enorme peruca

cacheada. Tanto garbo e, por certo, era careca. A peruca estava

lotada de piolhos. Não conseguia parar de achar defeitos nos

santos que me acusavam de megera. Deu-me vontade de rir,

porque não conseguia ver como pessoas tão imorais e cheias de

defeito conseguiam achar em alguém como eu um defeito. E o

que é pior: inventavam mentiras atrás de mentiras para

satisfazerem os egos cheios de blasfêmias. Meus pensamentos

eram esdrúxulos e levianos. Mas não poderia falar. Então,

pensava. Sacudi a cabeça, prometendo não pensar mais

sandices. Embora já estivesse ciente do que me aguardava, senti

um frio na espinha! O que mais me doeu foi ver meu pai ali,

olhando-me tão friamente, como que desejando a minha morte.

Não me importava o que aquelas pessoas pensavam de mim,

mas o que realmente me doía era saber que alguém do meu

próprio sangue rejeitava-me não por dúvida sobre o meu caráter

pessoal, mas por saber que eu era um risco à sua reputação

como homem e por eu não ter baixado a cabeça às suas ordens

inescrupulosas. O conde olhou-me de cima abaixo, com um

desdém e desejo abomináveis. Os demais presentes esquivavam-

se, com medo de me tocarem e virarem pedra ou algo assim.

Talvez uma pessoa contaminada pela peste não fosse tão

repulsiva aos olhos deles como eu estava sendo naquele

momento. Baixei a cabeça, pois sabia que quanto mais humilde

eu fosse, melhor para mim seria. Sentaram-me em uma

cadeirinha em frente ao magistrado. O alarido de vozes começou

novamente, assim que me sentei. O povo estava muito agitado

do lado de fora, mas o magistrado e os demais queriam

interrogar-me primeiro.

– Levante-se, por favor! A senhorita tem noção do

porquê de estar aqui? – perguntou-me o magistrado.

– Não, excelência!

Adriana Matheus

- 495 -

Houve um alarido de exclamação, como se eu estivesse

mentindo. Por fim, prossegui:

– Não tenho certeza, excelência. Estou muito confusa

quanto às acusações.

– Então, nega ser uma bruxa?

– Não, excelência.

Houve um alarido ainda maior.

– Nego apenas ter cometido tais crimes contra a Igreja.

Sempre frequentei as missas aos domingos. Nunca faltei com a

eucaristia e sempre comunguei. Mas não nego que sou uma

bruxa.

– Blasfêmia! - gritou o advogado de defesa da Igreja.

– Protesto! Esta mulher frequentava a igreja quando

ainda não estava possuída pelo demônio.

– Protesto aceito. A senhorita deve ser mais explícita

quanto às suas palavras. Como pode não negar que é uma bruxa,

mas negar estar praticando a bruxaria?

– Só conheci os caminhos da magia há pouco tempo,

excelência. Mas confesso que tudo o que aprendi já estava

dentro da minha alma. Lembro-me de cada símbolo. Mas nunca

cometi nenhuma das atrocidades das quais estão me acusando.

– Acredito neste lado de sua história. Mas o que me

intriga é como foi que conheceu o caminho que a levou a

praticar coisas contra a Igreja, sendo que não tinha outra

companhia além da sua governanta, como mesmo disse - já que,

logicamente, é pouco provável que sua madrasta tenha se

envolvido com tais coisas ilícitas aos olhos da Igreja e de Deus.

Diga-me, senhorita Anna, é esse o seu nome, creio, ou o

demônio também usa outro nome quando a possui?

Os demais que estavam no recinto riram, formando um

coro, enquanto o advogado de acusação olhava-me

zombeteiramente por debaixo dos óculos. Ele era um homem

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 496 -

gordo e de meia idade, com bochechas de cachorro. Por fim,

depois daquela pequena pausa para servir de deboche, respondi

de cabeça baixa, tentando demonstrar humildade:

– Sim, este é meu nome, excelência. E não, o demônio

jamais esteve em meu corpo. Isso é um equívoco, excelência.

– Então afirma que sua governanta impunha-lhe cometer

tais crimes?

– Não, nunca disse isso! Maria era uma santa. Ela

sempre me ajudou em tudo e foi a pessoa que me criou. - fiquei

nervosa.

Estalando os dedos, ele disse:

– Mas tenho aqui relatos de que esta senhora – Maria,

como a chamavam - vem de origem cigana, e fazia chá para a

senhorita tomar durante a noite. Isso está certo?

– Sim. Eu perdia o sono à noite e Maria dava-me chás,

para que eu conseguisse dormir.

– E esses chás ou poções eram feitos do quê?

– Não sei. As receitas são sempre secretas. Maria trazia-

as guardadas sob sete chaves.

– Não tenho mais perguntas, excelência. – virou-se para

os demais.

O magistrado tornou-me a interrogar:

– Então, essa mulher, Maria, entorpecia sua mente com

suas poções? Fazendo-a ficar sobre o poder do demônio, em

estado de sonambulismo, a senhorita saía durante a noite e

atacava os aldeões, não é isso?

– Não, nunca houve tamanha barbárie. Quando eu

tomava os chás de Maria, dormia profundamente.

– Como a senhorita pode ter certeza, se diz dormir

profundamente? Mande entrar o agricultor Antônio de La Paz.

Trouxeram um homem magro e muito humilde diante do

tribunal. O advogado levantou-se e fez-lhe inúmeras perguntas.

Adriana Matheus

- 497 -

Esse homem fazia pequenos serviços para os fazendeiros locais.

Não poderia entender o que ele poderia ter com o meu

julgamento, pois mal o conhecia e nem nunca na vida trocara

uma palavra sequer com ele.

– O senhor é o agricultor Antônio de La Paz?

– Sim, senhor. Sou eu mesmo.

– Conhece essa mulher aí, na sua frente?

– Sim, senhor. Conheço sim.

– De onde o senhor a conhece? Poderia dizer a todos os

demais presentes? Devo lembrá-lo de que está sob jura.

– Vi-a pela noite, no meio das plantações, em trajes

íntimos. - ele disse isso com a voz trêmula e a cabeça baixa,

pelo medo de que alguma coisa que dissesse não fosse o que lhe

haviam mandado.

– Não ouvi. Poderia responder um pouco mais alto dessa

vez?

– Via-a frequentemente a perambular pelos campos, à

noite, quando a Lua estava alta no céu. Ela estava quase

desnuda. Eu até sentia vergonha por ela. Tentei várias vezes

pedir a ela que fosse para casa, porque não era certo uma

senhorita ficar daquele jeito no meio as hortaliças.

– E ela o ouvia?

– Não, senhor. Parecia estar em transe. Depois é que fui

saber que era uma bruxa e que estava amaldiçoando as

plantações.

Todos murmuraram... Ele prosseguiu:

– É verdade, sim. Logo depois, a plantação do senhor

Leônidas secou por completo. Pode perguntar vós micês para

ele. - ele se agitava e apontava o indicador na direção de todos.

– Então, o senhor quer dizer que esta mulher foi a

responsável pela colheita do fazendeiro Leônidas não ter dado

certo?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 498 -

– Sim, senhor. Foi ela sim.

– Por que o senhor nunca contou tal fato às autoridades?

– Porque tive medo de que ela fizesse algo ruim contra

minha família, senhor.

Tive mesmo vontade de fazer algo mais naquele

momento. Tive vontade de estrangular aquele estúpido, por

mentir tanto e vender-se por tão pouco. Ele é quem foi

negligente em seu trabalho e deixou que a plantação do homem

morresse. Aproveitou-se daquela situação para que o fazendeiro

não o punisse por sua falta de atenção ao trabalho. O cheiro da

bebida em seus lábios era insuportável. Ele era um mau caráter e

estava se fazendo de vítima.

Meu acusador mandou chamar uma senhora de nome

Samanta Castro. As mesmas perguntas de início foram feitas à

mulher. Depois, prosseguiu-se:

– É verdade que a senhora estava grávida de uma

criança? Uma menina, por assim dizer?

– Sim, é verdade.

– O que houve com a sua criança?

– Morreu. Isso foi logo depois que essa mulher apareceu

perto de minha casa, à noite.

– Como assim? Poderia explicar-se melhor?

– Eu já tinha ouvido o boato de que a plantação do

fazendeiro Leônidas tinha sido destruída por uma bruxa. Mas

sou muito devota do sagrado coração. Então, não dei

importância aos boatos. Mas, numa noite linda de Lua, eu estava

colhendo minhas roupas no varal e meu bebê, que estava com

dois meses, estava em uma cestinha bem perto de mim, para o

caso de, se chorasse, eu o ouvisse.

– E o que houve? Conte logo, mulher. - disse o

advogado, exasperado.

Adriana Matheus

- 499 -

– Então, acabei de colher toda a roupa e percebi que algo

errado tinha acontecido ao meu bebê.

– Explique-se, mulher! Pare de rodeios teatrais e vá

direto ao assunto.

– Fui até o cestinho e meu bebê já não estava mais lá.

Havia desaparecido como que por encanto. Gritei meu marido

Jésus e fomos os dois procurá-lo.

– E o encontraram?

– Sim. - a mulher desabou em prantos e não conseguiu

mais falar uma só palavra.

O magistrado pediu para que chamassem o marido dela.

– Que entre o senhor Jésus, o agricultor, para que dê

continuidade aos acontecimentos seguintes.

Fez as mesmas perguntas iniciais ao homem, que mais

parecia um pobre carvoeiro de tão mal vestido e sujo que estava.

– Essa mulher chamada de Samanta Castro é sua esposa?

– Sim, senhor; é sim.

– O senhor e esta mulher tiveram uma criança?

– Sim, senhor, tivemos sim. - o homem respondia com a

cabeça e com a boca.

– E o que houve com a criança, afinal?

– Está morta, senhor. - o homem baixou a cabeça, num

gesto de respeito e tristeza.

– E o senhor, Jésus Justos, é assim que lhe chamam,

certo?

– Sim, senhor; é sim.

– Então, senhor Jésus Justos, de que morreu a criança?

– Não sei como morreu, senhor... Mas a achamos sem a

cabecinha.

– Meu Deus! Que horror! - exclamaram todos os demais.

– E como, senhor Jésus Justos, acha que aconteceu essa

barbárie, essa monstruosidade?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 500 -

Apontando para mim, sem pestanejar, ele respondeu:

– Isso não sei dizer, senhor. Mas minha esposa, aquela

noite, jura que viu essa mulher que está sentada ali rondando lá

pros nossos lados naquele dia. Até fui atrás dela com uma foice,

mas não achei a famigerada, não. Acho que usou alguma magia

para evaporar-se daquele jeito.

– O senhor tem certeza de ser a senhorita Anna?

– Disso eu tenho sim, senhor. Porque somos pobres, mas

nunca haveríamos de falar mentira. Minha mulher nunca me deu

motivos para eu desacreditar dela, não, senhor. E se o senhor

quiser, pode perguntar por aí que vai ver que sou uma pessoa

que honra as calças que veste.

Todos caíram na gargalhada da maneira simplória como

falava o pobre homem. Ele até poderia ser uma boa pessoa e ter

uma honestidade acima do normal. Mas a esposa dele estava

mentindo. Ela deixou o bebê ao relento enquanto catava as

vestes do varal e, por certo, um animal pegou o bebezinho. Ela

ficou tão aterrorizada com o que vira que criou essa fantástica

história em sua mente. Também ficou com medo da represália

do marido. E é lógico que a bruxa tinha que ser eu, quem mais?

Eles supunham que tinha uma bruxa local. Mas, quando se

espalharam os boatos a meu respeito, juntaram tudo e fizeram

uma história. Eram muito fáceis de manipular. Caso não

fossem, jamais estariam testemunhando. O julgamento

prosseguiu:

– Por que não denunciaram às autoridades locais?

– Tivemos muito medo por causa que ela é uma bruxa.

Ficamos com medo de que minha mulher nunca mais

engravidasse, caso ela jogasse uma praga.

- Será que algum de vocês, aqui presentes, tem ainda

dúvidas de que essa mulher é uma bruxa, que cometia atos

satânicos? Não me importa se estava ou não inconsciente. O fato

Adriana Matheus

- 501 -

é que essa mulher admitiu e existem vários fatos que

comprovam a veracidade das informações. Se não estiverem

satisfeitos e quiserem mais testemunhas, peço permissão para

que o senhor magistrado aqui presente – logicamente, com a

permissão do senhor excelentíssimo Dom Helvécio Hernandes,

inquisidor de alto valor e escolhido por nosso querido rei Filipe

– mostre, a caráter decisivo, as testemunhas impostas a este júri.

O inquisidor olhou para o magistrado, assinalando

positivamente com a cabeça, como que dando permissão para

que as outras testemunhas de acusação entrassem. O magistrado

mandou que uma porta lateral fosse aberta. Entraram umas cem

pessoas que já estavam aguardando do lado de fora.

Logicamente, a plebe não poderia faltar, pois quem seria melhor

para encenar aquele teatro de horror? Logicamente, os ingênuos,

os analfabetos e, enfim, todos aqueles que sempre foram

rejeitados, mas que representavam a força final da palavra. Pois

essas pessoas julgavam pela aparência e pelos mexericos. Eram

pessoas altamente autossugestionadas e de fácil manipulação.

Cordeiros medrosos e vulneráveis, pessoas que muito tinham a

perder. Como a voz do povo é a voz de Deus, eu seria cozida

viva, por assim dizer.

Quando toda aquela gente acomodou-se, como previsto,

o alarido ficou maior ainda. Então, o magistrado deu um grito,

batendo com seu malhete em cima da mesa, pedindo silêncio. A

voz do magistrado ressoou pelo recinto como o ronco de um

trovão. Todos pareciam estar bastante nervosos e apreensivos.

Aquele alarido só fazia deixar todos ainda mais agitados.

Sempre existem pessoas capazes de tornarem as coisas ainda

muito piores do que elas realmente são. Podia ouvir os rumores

horrorosos a meu respeito. Podia ouvir algumas pessoas

chamando-me de devoradora de bebês! Havia malícia, maldade

e muito interesse político naquilo tudo.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 502 -

Eu era só uma desculpa para encobrir o que realmente

estava acontecendo - ou seja, esconder o triângulo amoroso que

existia entre meu pai, o conde e a condessa. Também, enquanto

todos estivessem prestando atenção em mim, não investigariam

o conde como suspeito de um assassinato.

O inquisidor, após ler publicamente a carta enviada pelo

rei, tomou cuidado para não declarar em sua sentença absolvição

alguma, ou que eu - a acusada - pudesse parecer inocente ou

isenta. Sua intenção era esclarecer bastante que tudo foi

legitimamente provado contra mim. Desta forma, se eu fosse

trazida mais tarde novamente diante do tribunal do júri,

indiciada por causa de qualquer outro crime, poderia, assim, ser

ordenada sem problemas, apesar de a sentença de absolvição já

ter-me sido negada. O magistrado, antes de passar a palavra

final ao inquisidor, perguntou-me uma última vez - não porque

estivesse interessado em saber a real verdade, mas porque na

sala havia muitas pessoas influentes e ele não poderia parecer

injusto:

– Tem mais alguma coisa a declarar? Saiba que a

senhorita está entre amigos e parentes, pessoas que a amam e

que realmente se importam com a sua saúde e seu bem estar.

Creio que agora é a hora de dizer algo que possa ajudá-la em sua

sentença. Saiba que não poderá nunca mais comentar sobre os

fatos ocorridos nesta sala. Portanto, esta é a hora.

Levantei-me, meio cambaleando por causa das muitas

horas que já estava sem me alimentar, olhei ao redor e voltei em

direção ao magistrado, fitando-o nos olhos. Ergui minha cabeça

e disse:

– Não tenho mais nada a dizer ou declarar. Não tenho

nenhum amigo, já que todos vivem o perjúrio de um suposto

purgatório. Não confio em ninguém, já que me lançam sobre a

desgraça humana. Não tenho nenhum laço familiar ou

Adriana Matheus

- 503 -

consaguinidade comprovada com alguém neste tribunal. Sou

apenas um corpo no mundo. Que se cumpra o meu destino.

Quero ressaltar, apenas, que nunca comi criançinhas, nunca me

prostituí, nunca tentei induzir ninguém a nenhuma seita ou

religião, quaisquer que fossem.

Depois de eu ter falado isso, o magistrado ainda

ressaltou:

– Senhorita Anna Goldin Señra, ressalto mais uma vez

que essa é a sua última chance de dizer alguma coisa em sua

defesa. Caso contrário, será declarada como bruxa e sentenciada

a viver nos calabouços de um convento em San Francisco.

Portanto, olhei para o conde, que estava de olhos

arregalados prestando atenção, e disse:

– Não será necessário que sua excelência declare-me

como bruxa, porque eu mesma me declaro. Não tenho vergonha

de ser quem sou e de seguir um caminho que eu mesma escolhi.

Mas sua excelência deveria prestar mais atenção a certas

pessoas neste tribunal.

O bispo, porém, tomou a palavra, indagando-me:

– O que a senhorita quer dizer com isso?

– Quero dizer que neste tribunal tem um usurpador e

assassino sentado aqui, bem em minha frente. - disse isso

apontando para o conde

Ele, de um salto, gritou, apontando o diário da minha

mãe em suas mãos:

– Blasfêmia, excelência! Essa mulher tentou seduzir-me

em seu próprio leito. Tenho provas aqui comigo de que ela,

além de bruxa, praticava, sim, os rituais da magia. Há também

indícios de que ela tinha o seu próprio local escondido dentro da

casa de seu pai, onde ela, a governanta e o jardineiro praticavam

rituais de magia negra, cozinhando e comendo os filhos dos

escravos.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 504 -

O alarido de espanto foi geral. O bispo, porém,

interrogou-o:

– E como o senhor ficou sabendo de tais fatos?

– Sei disso porque a senhora condessa aqui presente

também a flagrou fazendo seus feitiços em um lugar escondido,

atrás da adega de vinhos do senhor Juan. Essa mulher está

tentando enfeitiçar todos aqui, transferindo a sua culpa para nós.

Mas posso provar o que eu disse. - disse isso entregando o diário

de minha mãe ao inquisidor.

Depois de folheá-lo rapidamente, o inquisidor entregou-o

ao bispo, que, depois de uma breve análise, disse:

– É irrevogável a questão de que esta mulher seja uma

bruxa. É também irrelevante que ela acuse qualquer membro

que esteja presente dentro deste recinto, sendo que ela está

tentando distorcer os fatos para enganar a todos nós. Essa bruxa

está tentando usar seus feitiços para nos manipular. Mediante a

tais provas postas em minhas mãos, e mediante tão ilustres

testemunhas que comprovam sua culpa, declaro-a culpada.

Passo o caso ao senhor magistrado.

Sabia que não poderia ter dito nada, mas tinha que

arriscar e tentar salvar-me. Depois das palavras do bispo, não

pude dizer mais nada. Fiquei ouvindo a sentença que o

magistrado me impôs. Ele se levantou e começou a sentenciar-

me com as seguintes palavras:

– Que a mulher comumente chamada de Anna Goldin

Señra seja denunciada e declarada feiticeira, adivinha,

pseudoprofeta, invocadora de maus espíritos, conspiradora,

supersticiosa, implicada na prática de magia feita a ela, teimosa

quanto à fé católica, cismática quanto ao artigo Unam Sanctam e

em diversos outros artigos de nossa fé, cética e extraviada,

sacrílega, idólatra, apóstata, execrável e maligna, blasfema em

Adriana Matheus

- 505 -

relação a Deus e seus santos, escandalosa, sediciosa, mentirosa e

caluniosa.

Dito isso, o magistrado bateu o malhete sobre a mesa,

dizendo:

– Levem essa mulher daqui e que fique trancada na

prisão até que seja levada para o local onde será trancada e

enclausurada para o resto de seus dias. Ressalto, ainda, que ela

deve ser mantida sob vigilância constante, para que não tente

fugir ou usar seus poderes malignos.

Todos que estavam no tribunal foram se retirando. Fui

levada para uma sala até que o recinto tivesse sido esvaziado.

Logo depois, fui levada para a prisão. Atravessamos a praça

com um cortejo de agourentos atrás de nós. Onde passávamos,

juntava-se mais e mais gente. Logo depois de andarmos uns

vinte minutos, chegamos à prisão. Era um lugar muito

desleixado e sujo. Subimos os degraus e passamos por várias

salas. Por fim, começamos a descer sem parar, até chegarmos a

um lugar cheio de portas trancadas até em cima, uma de frente

para a outra. Devia ter umas quinze ao todo. Andamos uns dez

metros. Minha cela era a última do corredor. Dois homens foram

precisos para abrir a porta. Havia uma cama muito suja e de

palha, forrada com um tecido encardido e mal cheiroso. Parecia

que tinha manchas de sangue nele. O lugar era sombrio. O único

ar que se tinha vinha de uma fenda de trinta centímetros ou

pouco mais. O orifício era revestido por grades. Mal dava para

se ver se era dia ou noite, porque o orifício na parede era

pequeno demais para poder passar a luz do sol. As paredes eram

cheias de teias de aranhas. Senti um terrível cheiro de urina por

toda parte. Na verdade, havia vários excrementos humanos, mas

não dava para identificá-los por causa do tempo. O guarda

empurrou-me porta adentro e disse:

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 506 -

– Seja bem vinda aos seus novos aposentos, rainha das

bruxas.

Em seguida saiu, batendo a porta e dando uma

gargalhada que mais parecia ter vindo do além. Fiquei ali,

parada, olhando aquele lugar que não tinha mais que uns dez

metros de largura.

Os dias foram passando como noites. Agarrei-me em

orações para tentar ficar forte. O desespero do claustro é

indescritível. A solidão é uma companhia que não desejamos a

ninguém. Ela nos faz ver coisas no escuro e, se não tivermos

muito autocontrole, enlouquecemos. Comecei a fazer traços na

parede para não me perder de que dia era. Comecei a falar

sozinha, mas os guardas sempre me insultavam, perguntando se

o diabo estava lá comigo. Eu só tinha a companhia do guarda

carcerário nas duas vezes em que ele me trazia alimento. Às

vezes, o guarda da noite jogava em meu rosto a água que

serviria para eu tomar. Ele também, várias vezes, pisou no

pedaço de pão duro que me era oferecido como alimento. Várias

vezes, oferecia-me urina ou escarrava dentro da minha caneca

com água. A fome era tamanha que eu comeria a mim mesma.

Diziam que o inferno era algo abominável, mas quem

passou pelas torturas da Inquisição desejaria ir rapidamente para

lá. Diziam, também, que nos finais dos tempos os vivos

desejariam estarem com seus mortos - por causa do fim, que

seria duro e cruel. Para mim, ali era o fim do mundo. Todos os

meus pecados já estavam mais que pagos. Não existe inferno ou

demônio. Existem, sim, pessoas com mentes diabólicas, capazes

de extrema crueldade e covardia para conseguir seus objetivos a

qualquer preço. Deixamos que a vida passe por nós e

esquecemos de observar o quanto aqueles pequenos detalhes são

importantes. Só nos damos conta disso quando temos que

enfrentar uma situação muito difícil. Não damos conta quando

Adriana Matheus

- 507 -

passamos por cima dos menos favorecidos. Não damos conta

que um dia vem logo após o outro, com uma noite no meio para

nos fazer lembrar. Nunca pisei em alguém, mas pagava esse

preço por causa da ambição de terceiros. Deveria ter prestado

mais atenção aos sinais. Deveria ter fugido com Maria e Joseph.

O pecado é capaz de se aliar à desgraça da maldade. Aprendi

muitas coisas: uma era me manter em silêncio; a outra era nunca

brincar com a vaidade masculina, pois um homem sabe mesmo

ser cruel nessas horas de impulsividade. Eram nós, as mulheres,

quem os seduziam, que tínhamos mais propensão a ser induzidas

e fascinadas pelo mal. A mulher não podia se cuidar ou ter

vaidade; jamais podia sentir prazer com seu marido - pois ele

poderia chicotá-la em praça pública, acusando-a de induzi-lo às

luxúrias da carne.

Certa manhã, acordei toda suja: estava nos meus dias de

mulher. Não soube o que fazer, pois comecei a sangrar muito. A

vergonha tomara conta de meu ser. Como eu poderia dizer

àqueles guardas o que estava se passando comigo? Rasguei um

pedaço de minha anágua, tentando compor-me. Implorei ao

guarda do turno da manhã para que me desse uma tina com

água, para que eu pudesse me lavar. Ele fingiu nem ouvir.

Sentia-me mal e humilhada. Minhas forças estavam se esvaindo.

A cada dia que passava, ficava mais fraca. Até que Heixe

apareceu e aliviou-me um pouco daquele martírio. Ficou por

horas a fio conversando comigo. De vez em quando, o guarda

abria a portinhola e gritava, mandando-me calar a boca.

– Cale essa boca, bruxa infeliz! Anda a falar com satã?

Se me fizer entrar aí, juro que amordaço essa boca.

Heixe, naquele dia, despediu-se de mim com um ar

pesaroso. Mas era preciso, pois o guarda estava a ponto de me

espancar.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 508 -

Todos os dias, os outros prisioneiros que ficaram

sabendo que na última cela tinha uma mulher, gritavam meu

nome e insultavam-me com palavras odiosas. Alguns gritavam

meu nome como se eu fosse uma mundana. Em atitudes

suspeitas, gemiam a chamar por mim. Eram homens de caráter

muito duvidoso e que já estavam na prisão por anos a fio, sem

sequer ouvir a voz de uma mulher. A minha presença, mesmo

que do outro lado de uma parede e no fim de um corredor, fazia-

os ficarem como animais. Outros haviam passado por

tratamentos com médicos e haviam se esquecido de tudo. Esse

tratamento, bastante suspeito, deixava-os como vegetais.

Geralmente, esse tipo de tratamento era aplicado em pessoas que

cometiam algum delito contra algum Lorde ou até contra a

política, ou também em casos de homens sodomitas.

Estava rezando para que o convento enviasse o seu

emissário para eu sair dali. Os gritos de agonia vindos do

calabouço estavam me deixando completamente louca e

desesperada. Alguém estava sendo torturado incessantemente

todos os dias. Meu Deus! Estavam acabando com ele aos

poucos. Tinha que haver alguém para fazer parar o sofrimento

daquele pobre homem. Comecei a esquecer minha agonia e

sofrimento. Passei a orar para que aquele ser humano tivesse um

fim bem rápido. Logo depois, escutei quando abriu a porta da

cela ao lado e jogaram alguém cela adentro. Ouvia os choros e

gemidos de dor do pobre. Precisava fazer alguma coisa para

acalmá-lo. Então, comecei a cantar uma velha canção espanhola.

De repente, escutei mais dois presos acompanhando-me. Em

seguida, todo o cárcere estava ali comigo, cantando aquela

canção que falava de amor e liberdade. Um guarda passou no

corredor exasperando, batendo a baioneta na porta das celas.

– Calem-se! Ou levo todos para as masmorras.

Adriana Matheus

- 509 -

Fizemos um silêncio mortal e o medo tomou conta de

todo aquele local macabro. Passaram-se algumas horas. O

homem que estava do outro lado da parede começou a fazer uns

barulhos com uma espécie de objeto cilíndrico. Ele perguntou:

– Olá! Como se chama?

– Anna. E como se chama?

Seu sotaque era muito carregado.

– Meu nome é Ramon Bernard D’ La Mendonça. Qual

crime cometeu a senhorita?

– Não cometi crime algum, mas estou sendo acusada de

bruxaria, traição e tantas outras coisas que até me perco.

Acusam-me até de devoradora de criancinhas. Mas, se fosse

carnívora, creio que teria me autodevorado, pois ando a morrer

de fome. Por isso, enclausuraram-me aqui, até que alguém

venha me buscar para levar-me ao Convento e Mosteiro de San

Francisco.

– Oh! Compreendo. E com todo o respeito: qual a sua

idade?

– Vinte. Fiz há poucos dias.

– É muito jovem. Não acredito que uma senhorita com

tão pouca idade e de tão bom coração tenha cometido tais

barbáries. A senhorita deve ter irritado alguém em demasia. E a

pessoa, por certo, é de muito poder aquisitivo.

Dizendo isso, deu uma sonora gargalhada. Em seguida,

um gemido de dor.

– Acho que sim. - baixei a cabeça, lembrando-me do que

o conde me disse quando eu saíra do tribunal.

– Não quis aceitar um casamento de conveniências e fui

contra as ordens de meu pai. Na verdade, fui perdida em um

dívida de jogo. - respondi a ele, com voz meio trêmula.

– Então foi isso? Lamento, senhorita! Seu pai é um

homem desonrado. Nunca vi apostar a própria filha nas cartas.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 510 -

– Ele é uma pessoa doente e está consumido por esse

vício maldito. Ele bebe praticamente noite e dia, sem parar.

Enterrou-se até os cabelos em dívidas com esse conde.

– Desculpe-me, senhorita! Não estou duvidando de sua

palavra. Muito pelo contrário, estou achando demasiadamente

ingênua.

– E o que o senhor acha que realmente deve ser?

– Não sei, senhorita. Mas o senhor seu pai e o restante

devem ter outros bons motivos. A senhorita nunca desconfiou de

nada?

– De que eu poderia desconfiar? Ou de quem? Nunca

saíra de casa, a não ser acompanhada por minha governanta. Na

verdade, meus dotes foram confiscados. Também não era

nenhuma soma tão exuberante assim. Era o suficiente para me

manter depois da maior idade, ou a ser entregue ao meu futuro

marido, caso eu viesse a me casar um dia. Mas não creio que eu

valesse tanto a pena. Estranho o senhor dizer tais coisas...

– Estranho é a senhorita estar aqui por tão pouco! Tem

certeza de que não comeu nenhuma criancinha mesmo? -

dizendo isso, soltou outra de suas gargalhadas.

Esbocei um pequeno sorriso.

– Ora, o senhor ofende-me desta forma! É tão simpático

e como sabe acalmar uma mulher com palavras tão gentis! - fui

sarcástica.

– Só estava a caçoar da senhorita para passar o tempo.

Perdoe-me. Quem seria o seu futuro noivo, mal lhe pergunte?

– Era para ter sido o senhor filho do duque Celso D’

Louchoa, o conde Albert D’ Louchoa.

– Eu deveria ter suspeitado, senhorita. Sinto-lhe dizer

que esse homem não vale um doblón sequer. – riu em alto tom.

Antes que eu pudesse perguntar-lhe por que estava rindo,

ele prosseguiu:

Adriana Matheus

- 511 -

– Acha mesmo que esse peste irá deixá-la em paz?

– Creio que sim, pois agora estou aqui, presa, e ele esta

lá fora.

– Presa porque tem o dedo desse peste no meio. Com

certeza, ele irá atrás da senhorita, no convento. Ele nunca a

deixará em paz, acredite. Sempre terá olhos dele em toda parte.

Ele é o espião do rei, senhorita. Mercenário, trambiqueiro, entre

outras coisas mais. Seu pai deve ter falado da senhorita

enquanto jogava. Como disse que ele bebe, o conde por certo

trapaceou no jogo para ganhar a aposta. Agora as coisas estão se

encaixando. O que mais a senhorita sabe?

– Não sei mais nada; juro.

– Antes de vir para as masmorras, ouvi comentários de

que esse conde está aqui para investigar o convento para o qual

está sendo enviada.

– E por quê?

– Suspeitam que os cavaleiros da ordem andem se

escondendo por lá, à noite.

– Sério? E por que andam a perseguir os cavaleiros da

ordem?

– Por que dizem que enriqueceram muito e não estão

dando a parte da Santa Sé como havia sido combinado.

– E o senhor, por que está aqui?

– Porque sou escritor e escrevo sobre a verdade

encoberta por trás dessa podridão monárquica. A burguesia fede,

senhorita.

Depois de dar uma risadinha zombeteira, ele prosseguiu:

– Andei publicando uns exemplares sobre os monarcas.

Acho que não agradei muito.

– Imagino...

– Estou aqui, agora, às suas ordens! Um anarquista e

visionário, e um amigo ateu. Mas um amigo fiel, devo ressaltar.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 512 -

– É um enorme prazer, Ramon.

Os dias ao lado do meu novo amigo foram bastante

agradáveis. Ramon era um homem muito inteligente e aprendi

muito com ele. Embora a maior parte do dia ele passasse sob

tortura, sempre conseguia falar alguma coisa útil. Houve dias

em que, de tanto ser espancado, ficou desmaiado por horas a fio.

Ele era um homem de cinquenta e poucos anos, mas de uma

força fora do comum. Admirava-o, mesmo sem nunca tê-lo

conhecido cara a cara em vida.

Finalmente o dia chegou. As portas do meu cárcere

abriram-se. Dei um pulo da cama. A primeira pessoa que vi foi o

chefe da guarda, que logo veio pôr-me algemas, seguido dos

guardas e de uma freira com uma cara nada agradável. Ela

entrou, tampando o nariz com um lencinho. Olhou-me de cima

abaixo e disse ao chefe da guarda:

– Tirem-na logo daqui.

Fui retirada aos socos para fora do cárcere. Mas, quando

passei pela cela de Ramon, disse bem alto para que ele ouvisse:

– Fique em paz, meu amigo. Que Deus lhe acompanhe

sempre. Nunca o esquecerei, acredite.

O guarda deu uma risada e falou, sarcasticamente:

– Por certo, vai encontrar com ele no quintos dos

infernos, porque morreu ontem à noite de hemorragia. Não

resistiu às torturas da manhã anterior. - continuou rindo.

Chorei e senti pena de Ramon. Ele havia mesmo se

queixado de que lhe haviam feito um corte profundo em seu

abdômen. Mas ele sempre levava tudo na brincadeira para que

eu não ficasse preocupada com ele. Meu bom amigo agora

estava descansando. Nunca mais haveria de passar por toda

aquela dor. Que seu espírito descanse em paz, pensei comigo. A

maioria dos presos estava em silêncio. Deveriam estar mortos

Adriana Matheus

- 513 -

também, pois não me importunavam havia dias. Os barulhos

que eu conseguia ouvir eram gemidos de dor, mas muito fracos.

Fomos saindo daquele lugar dos infernos. Desta vez, não

saímos pela porta principal. Saímos pelos fundos, onde não

haveria tumulto. A carruagem esperava-me do lado de fora. Meu

Deus, quando vi o sol de novo, foi como se um milagre tivesse

acontecido! De princípio, fiquei totalmente cega, mas depois

pude ver o esplendor do dia que estava à minha frente. O ar no

meu rosto...

Fechei os olhos e lentamente fui abrindo... Vi meu amigo

Ramon ao lado de Heixe. Ele estava lindo... Todo curado de

suas chagas. Usava uma túnica muito branca. Por certo, estava

sendo levado para um hospital... Acenaram-me com as mãos e

desapareceram, no meio dos raios do sol. Eu agora estava em

paz, porque meu amigo estava em paz. Havia se livrado das

mazelas daquela fatídica vida terrena.

Havia outra freira esperando-nos na carruagem. Ela era

um pouco mais jovem e menos carrancuda. Ajudou-me a subir.

Fiquei sentada, de frente às duas mulheres. A mais nova olhou-

me com piedade. A mais velha ficou com seu lenço ao nariz o

tempo inteiro. Sentia-me muito mal com aquela situação. Um

padre usando uma túnica marrom comprida e um chapéu

enorme pegou uma carta das mãos do chefe da guarda. Ele ficou

na parte de cima da carruagem, com o cocheiro. Dois guardas

acompanharam a carruagem a cavalo. Eu estava algemada, mas

as freiras não deixaram que me prendessem os braços à porta

dessa vez. A carruagem começou a andar e eu só queria olhar

pela janela.

Passamos por quase toda a cidade. Fui me lembrando de

tudo o que havia passado. A carruagem praticamente deu a

volta na província de Salamanca. Ao passarmos pela igreja de

padre Ignácio, ele fez a carruagem parar. Pediu ao padre que

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 514 -

estava conduzindo aquela escolta para deixar que ele falasse

comigo. O padre permitiu. Ele chegou brevemente à janela da

carruagem e pegou nas minhas duas mãos, dizendo:

– Minha menina! Minha filha... Não fui ao seu

julgamento, não me permitiram. Meu Deus, o que fizeram a

você, minha criança?

Ele passou um pequeno bilhete para minhas mãos, que

eu leria mais tarde.

– Tenho rezado pela sua vida, filha. Nunca desista,

nunca abandone sua fé na divina senhora. Estarei aqui, torcendo

por você. - beijou minhas mãos e afastou-se.

Não falei nada, apenas chorei. A carruagem seguiu e

pegou a estrada. Fiquei com as mãos bem juntas para que as

freiras não vissem meu bilhete. A mais velha cochilava e

arregalava os olhos de acordo com o movimento da carruagem.

Lembrei-me de Maria em nossa viagem.

Ao meio dia, as freiras pararam para se refrescar e comer

alguma coisa. Tiraram-me da carruagem com elas. O sol estava

alto no céu. Elas me deram um pouco d’água para eu me

refrescar também. Depois, arrumaram uma toalha no chão e

colocaram a ceia. Fiquei de longe, olhando-as. Mas a mais velha

chamou-me para junto delas.

– Pegue pão e chá fresco. Temos frutas e queijo. Coma,

vá.

Peguei um pedaço de pão com queijo e um copo de chá.

Afastei-me das duas, fui para perto da carruagem. A mais jovem

buscou-me para ficar junto a elas e sentar-me.

– A casa de Deus não faz restrição aos arrependidos. -

disse a mais velha.

Agradeci e beijei suas mãos.

– Não faça isso. Coma e fique quieta.

Adriana Matheus

- 515 -

Obedeci sem pestanejar. Descansamos debaixo de um

salgueiro e depois seguimos viagem novamente.

A tarde caiu bem rapidamente. A freira mais velha caiu

em sono profundo; e a mais jovem, logo em seguida. Aproveitei

para ler meu bilhete. Era de Maria. Ela dizia que ficou sabendo

de tudo que eu havia feito e que estava bem. Que as irmãs

estavam em oração por mim e que daria um jeito de me visitar

quando eu estivesse no convento. Minha Maria... Coloquei o

bilhete na boca e engoli. Era muito perigoso se alguém pegasse.

Fiquei acordada, olhando pela janela. Era alta noite quando a

freira mais jovem acordou e perguntou-me:

– Você não dorme, senhorita Anna?

– Fiquei tanto tempo em uma cela escura que só quero

aproveitar cada minuto e cada detalhe da minha liberdade

temporária.

– Então, fique à vontade, querida. Mas descanse um

pouco também.

– Prometo repousar assim que o sono chegar.

Os quatro dias restantes passaram-se sem nenhuma

novidade. As freiras eram pessoas abençoadas. Observava-as

sem dizer muita coisa. Elas me passavam muita seriedade e

calma. Abençoavam o dia, a tarde, a noite, os alimentos, e a

tudo agradeciam e louvavam. Não eram muito diferentes das

bruxas da tradição. Às vezes, cantavam em vez de orar. Suas

vozes pareciam ter saído de uma harpa celestial. Não me

desprezavam ou me interrogavam. Pelo contrário, faziam-me

fazer parte de tudo o que conversavam. Era muito bom sentir-

me como gente de novo. Mas eu sabia que, dentro do convento,

não seria tudo maravilhoso como ali, naquele momento de

trégua, por assim dizer.

Certa manhã, acordei e dei uma espreguiçadela. Foi

quando avistei o mosteiro, ao longe. Coloquei bem a minha

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 516 -

cabeça do lado de fora, para ver melhor. Comuniquei às minhas

companheiras, que ainda estavam dormindo. Elas agradeceram a

Deus, com sempre faziam a cada ato conseguido. Dessa vez, foi

pela ótima viagem que tivemos.

Ele era majestoso. Imponente, todo feito de pedras, com

duas torres a cada lateral. Era lindo! De longe, pude ouvir um

coro gregoriano que saía de uma capela ao lado. Era composto

por voz feminina e masculina. Foi a música mais linda que já

tinha ouvido em toda a minha vida. Meus sonhos misturavam-se

àqueles sons como magia se mistura à realidade. Senti-me leve e

feminina. Havia um campo de girassóis. Era a coisa mais

fantástica de se ver! O mosteiro ficava ao fundo, harmonizando

ainda mais aquele cenário de conto de fadas. Algumas ovelhas e

cabritos pastavam ao redor. Havia, também, porcos, galinhas e

um celeiro. Todos pastoreados por monges. Todos pareciam tão

ocupados em seus afazeres. Mas, quando a carruagem foi

passando, um a um ia acenando cordialmente.

A carruagem parou na frente do mosteiro e seis pessoas

esperavam-nos do lado de fora. Uma freira muito idosa, uma

madre de meia idade, dois monges aguardavam-nos logo na

entrada do convento. Minha surpresa foi ao ver as outras duas

figuras ao lado da madre superiora: a condessa e meu pai. Desci

da carruagem e minhas pernas começaram a tremer. Já tinha

visto aquela cena antes. Mas onde? Alguma coisa não iria

acabar bem. Meu queixo, de repente, parecia bater como se um

frio tivesse tomado conta de mim. E não estava frio, pois o dia

estava demasiadamente quente. Aproximei-me deles e a madre

superiora foi logo falando:

– Tragam-na para dentro, imediatamente.

A condessa olhou-me com desdém. Meu pai fingiu não

me conhecer. Nem sequer olhou em minha direção. Os guardas

quiseram algemar-me, mas a madre disse não ser necessário.

Adriana Matheus

- 517 -

– Aqui não usamos força bruta, a não ser quando

necessário. Ela não sairá deste lugar. Não tem para onde ir. Ela

sabe muito bem disso.

Olhei para trás, tentando despedir-me de minhas

companheiras de viagem, mas elas haviam evaporado. Segui as

demais pessoas convento adentro. Deixaram-me em um corredor

comprido a esperar. Onde já tinha vivido aquela cena? De

repente, entrei em transe. Quando dei por mim, já estava

exatamente no lugar que sonhei durante minha viagem com

Maria. Foi em uma fração de segundos. Voltei no dia exato

quando tive o sonho com o mosteiro. Lembrei-me do meu

sonho!, disse em voz alta, com um largo sorriso nos lábios. Ao

abrir os olhos, vi-o ali, parado na minha frente. Era como se

fosse um sonho. Mal pude acreditar no que estava vendo. Fiquei

quase catatônica. Se alguém tivesse me beliscado, com certeza

não sentiria. Parece que ele percebeu o meu estado, pois falou...

“Todo pedido de perdão é um grande começo. Felizes

aqueles que encontrarem a paz no bem comum que fazem ao seu

próximo. Se plantarmos espinhos, colheremos espinhos. Se

plantarmos amor, colheremos amizade. Quando magoamos

alguém, seja por qual motivo for, recebemos uma paga muito

maior. Talvez não estejamos preparados para pagar tal preço.

Devemos nos lembrar de uma coisa chamada lei do retorno.

Viva bem e em comunidade. Seja feliz, faça feliz a quem está ao

seu lado. Ame o próximo, mesmo que ele esteja longe de você.

Reze para que os que na distância estiverem encontrem-se em

harmonia total. Pense, também, que por um orgulho ele deve

estar tão mal quanto você está agora. Reze para os seus

inimigos, se é que eles existem! Muitas vezes você criou esse

inimigo e, na maioria das vezes, ele nem sequer sabe que você

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 518 -

existe. Para que vingar-se? Para que procurar uma ferida que

você poderia já ter sanado? Siga em frente, ame ao seu próximo

como a si mesmo. Pense nisso. Muita paz e muita luz.”

Adriana Matheus

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VII – O SEGREDO DOS GIRASSÓIS

senhorita está bem? Quer que eu chame alguém

para ajudá-la?

Sua voz parecia com aquela durante

toda a minha vida, aquela que o vento trazia-

me aos ouvidos... Meu Deus! Mal podia ver seu rosto por causa

daquele capuz e da luz do sol que invadia todo o corredor por

trás dele. Mas isso era o que menos estava importando naquele

instante. O amor da minha vida estava ali, parado bem na minha

frente, e eu não sabia o que dizer! Aproximou-se de mim e meus

joelhos começaram a tremer. Arregalei os olhos e fiquei como

uma estátua. Até prendi a respiração. Agora vou morrer!,

pensei. Que coisa estranha! Eu era uma bruxa capaz de enfrentar

a Inquisição, mas não sabia como proceder diante daquela

situação absurda e tola. Agachou-se à minha frente, puxando o

capuz para trás. Tocando meu rosto, disse:

– Senhorita, se não está se sentindo bem, diga-me que

irei chamar agora mesmo por socorro.

Sorri meio sem graça e fitei-o nos olhos, tentando

demonstrar segurança ao lhe responder. Porém, a ansiedade

causada pela emoção fez-me cometer um pequeno deslize:

pronunciei seu nome, expondo meus poderes adivinhatórios.

– Eu... Estou bem, Wallejo, não se preocupe comigo!

–A

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 520 -

Ele arregalou os olhos e perguntou-me:

– Como sabe meu nome? - sorriu largamente, mais

parecia um anjo.

Sua pele era alva, com pequenas sardas nas faces. Seus

cabelos eram castanhos da cor de mel. Ele era muito alto e,

embora estivesse por trás daquele hábito tão austero, sabia

perfeitamente como era aquele corpo. Enrubesci com meus

próprios pensamentos. E seus olhos? Ah! Aqueles olhos!... Tão

azuis como o mar da minha Espanha. Dentro deles, pude ver um

lindo céu, cheio de estrelas.

– Como a senhorita sabe o meu nome? Será que as

freiras já andaram caluniando-me assim, tão cedo?

– E por que haveriam de caluniá-lo? Teriam motivo? -

senti ciúmes e apreensão por imaginar aquelas freiras tão

próximas do meu amor.

Ele, porém, justificou-se imediatamente:

– Não, senhorita, por certo que não. Só estava tentando

fazê-la se distrair um pouco, pois há pouco estava com o

semblante empalidecido e tremendo como vara de bambu ao

vento.

Se ele soubesse o motivo..., pensei. Ele prosseguiu:

– Bom, agora vejo que já está melhor. Por certo deve ter

sentido um mal-estar passageiro, causado pelo calor. Posso

saber o seu nome, já que tão misteriosamente sabe o meu?

Devo admitir que poucas pessoas chamaram-me durante toda a

minha vida como a senhorita chamou-me há pouco. Lembro-me

de somente a minha mãe me chamar assim.

Sorriu novamente. Meu coração quase saltou pela boca.

Por fim, meio gaguejando, respondi o meu nome a ele.

– Anna. Chamo-me Anna Goldin.

– É um prazer, senhorita Anna, embora tenhamos que

nos despedir tão cedo. Agora tenho que voltar aos meus

Adriana Matheus

- 521 -

afazeres. Vim falar com a madre superiora. Mas, pelo que vejo,

ela ainda está ocupada, atendendo os visitantes.

Tive vergonha e medo de contar a ele. Medo por não

saber qual seria sua reação. Um monge afoito veio correndo e

interrompeu a nossa conversa, dizendo:

– Padre Ângelo! Por favor, o senhor tem que vir

depressa!

– O que há, padre Alfredo? - disse Wallejo, com ar de

preocupação.

– Uma de nossas ovelhas está tendo problemas no parto.

Por favor, o senhor tem que vir rápido, pois a pobrezinha irá

morrer se o senhor não a acudir de imediato!

Aquele homem desesperado salvou-me de uma resposta

fora de hora. Ufa!, suspirei aliviada. Salva pelo bendito parto de

uma ovelha. Ele, porém, ficou meio confuso, parecendo não

querer ir embora. Mas, por fim, virou-se em minha direção

novamente e disse:

– Senhorita Anna, o dever chama-me. Espero que a

senhorita tenha escolhido este caminho por livre e espontânea

vontade. Se não… espero que acabe encontrando em Deus o

caminho para suas respostas.

Em seguida, saiu em disparada. Meus olhos teimosos

acompanharam-no até que sumisse, virando o corredor.

Eu estava sonhando, só podia ser isso! Naquele mesmo

instante, a porta abriu-se e a madre mandou que eu entrasse.

Levantei-me devagar, porque não podia demonstrar nenhuma

emoção de felicidade ou qualquer outro tipo de excitação que

contradissesse os preceitos normais e morais da Santa Madre

Igreja.

Pediu para que me sentasse ao lado da condessa, mas

preferi ficar de pé, ao lado da mesa. A madre observou a cena

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 522 -

em silêncio. Sem mencionar nenhuma palavra a respeito, apenas

prosseguiu com o assunto.

– Senhorita Anna, sabe muito bem porque foi trazida sob

meus cuidados. Portanto, não vou fazer-lhe muitas perguntas.

Primeiramente, porque não gosto de hipocrisias.

Concordei com um aceno de cabeça. A madre

prosseguiu:

– A senhorita foi trazida a esse convento sob a

penalidade de viver aqui em total vigilância e clausulo. Deverá

cumprir quaisquer ordens minhas ou de qualquer outra superior

à senhorita. Não terá nenhuma regalia, como vestes bonitas,

joias, entre outras coisas. - disse isso olhando para o anel que o

conde havia me dado e que ainda estava em meu dedo por um

milagre.

Naquela mesma hora, tirei o anel do dedo, entregando-a

em seguida. Depois de avaliá-lo e devolvê-lo ao meu pai, ela

prosseguiu:

– Nunca poderá sair dos arredores deste convento e

jamais deverá ser pega em atos suspeitos. Ou seja, não deve

manter nenhum contato físico com os monges. Aqui somos

obrigadas a conviver com a presença deles por motivos que não

lhe dizem respeito, é claro. Sempre nos mantemos distantes

deles, porque sabemos o quanto nós, mulheres, somos usadas

por satã para tentar o sexo oposto. Seus trabalhos serão

forçados. Dia e noite terá que trabalhar. Não poderá reclamar ou

questionar quaisquer ordens impostas. Quero-a presente no

santuário de acordo com as regras deste convento. Deverá

acordar às quatro horas da manhã e só poderá deitar-se após

terminar seus afazeres completamente. Jamais poderá dirigir

palavra alguma a nenhuma das irmãs da ordem, a não ser que

uma delas lhe dirija a palavra. Três vezes ao dia, deverá manter

jejum e oração. Temos uma sala de claustro somente para isso.

Adriana Matheus

- 523 -

Deverá tomar banho uma vez na semana. Sugiro-lhe que deva

fazê-lo o quanto antes, porque está cheirando muito mal,

menina! Sua cama deve ser mantida limpa e em ordem. Sua

cela deve estar sempre trancada. Irá trabalhar na lavanderia e

também na cozinha. Três vezes na semana, deve lavar todos os

corredores e escadarias deste convento. Receberá água e comida

o suficiente para manter-se viva. Suas refeições deverão ser

feitas na cozinha, e não com as outras irmãs no refeitório.

Deverá cortar os cabelos e andará descalça. Todo sábado, irá

para a colheita de algodão. Aos domingos, para o campo de

girassóis. Não terá nenhum dia de descanso. Ressalto, ainda, que

terá alguns minutos do seu tempo livre pela manhã para ir à

igreja, que também fica dentro do convento, para se confessar.

Isso deve ser feito todos os dias antes de iniciar cada trabalho. O

abade estará à disposição à uma e meia, na capela. Nem um

minuto antes e nem um minuto depois. Lembre-se de que deve

se apresentar ao trabalho antes das três e meia. O mais

importante: no período em que a mulher fica mais propensa às

tentações do demônio, deve permanecer trancada dentro da sua

cela, incomunicável, e em jejum de pão e água.

Ela estava se referindo ao ciclo menstrual. Eu havia

morrido e não sabia, pensei comigo. Aquilo, sim, era o

verdadeiro inferno. Fiquei ali, parada, ouvindo-a e imaginando

onde é que eu encontraria tempo para tantas tarefas ao mesmo

tempo. Pelo menos, deixar-me-iam tomar banho uma vez por

semana. Isso já era alguma coisa. A madre deu um grito

repentino, tirando-me daquele transe causado pelo pânico que

invadia a minha alma. Eu sabia que aquelas regras seriam

apenas o começo do meu purgatório.

– A senhorita compreendeu bem o que acabei de lhe

dizer?

– Sim, senhora madre superiora. Entendi.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 524 -

– Ainda tem mais uma coisinha... Se não cumprir com as

tarefas, saiba que será castigada impiedosamente. Estas foram as

ordens repassadas a mim pelo próprio bispo.

Deu-me um aperto no coração... Não pelas severidades

de meus castigos, mas porque senti que tinha alguma coisa

errada no ar. Era como se algo pior estivesse por vir. Então, ela

se virou para o padre que estava conosco na carruagem e falou:

– Mandem que preparem minha carruagem

imediatamente. Estou indo a Roma. O papa mandou chamar-me

a pedido do inquisidor. Recebi ordens específicas para que

viajasse assim que o senhor me entregasse esta carta em mãos.

– E quem ficará em seu lugar até que retorne, madre? -

perguntou o padre, parecendo preocupado com a tal notícia.

– A irmã Vicenta. Ela está ciente de tudo o que falamos

aqui e poderá perfeitamente, junto com o abade, encarregar-se

das tarefas até meu retorno. Agora, levem daqui esta senhorita e

façam-na tomar um banho, pois esta mulher cheira a chiqueiro.

Depois, cortem os seus cabelos, que devem estar repletos de

piolhos. Mantenham-na sob cárcere até amanhã. Logo cedo,

certifiquem-se de que ela fez tudo conforme lhe foi ordenado

nesta sala. Não quero ter problemas com a Santa Madre Igreja

por causa de uma jovem que teve um surto inconsequente de

rebeldia.

A condessa resolveu tagarelar:

– Madre, desculpe-me, não quero ser inconveniente. Mas

esta criatura, devo-lhe ressaltar, está aqui porque cometeu

crimes contra a Santa Madre Igreja, e também contra o povo de

Salamanca. A senhorita Anna, minha tão estimada enteada - por

quem abdiquei toda a minha juventude por amor a meu marido,

cuidando dela - nunca foi uma criança muito normal. Ela sempre

teve um comportamento totalmente inadequado para uma

criança. Várias vezes, vi-a perambulando pelos corredores da

Adriana Matheus

- 525 -

mansão durante a noite. Parecia estar morta. Ela não dormia,

estava sempre a andar com criados e escravos. Todos sabem

muito bem que os escravos são criaturas extremamente

suspeitas. Envolvem-se com o oculto e com vodu. Ela tinha

comportamento de uma pessoa louca. Várias vezes a flagrei

falando sozinha nos corredores. Ela lia livros impróprios para

uma jovem. Estava sempre de conchavo com a nossa

governanta, que é uma feiticeira poderosa - ficamos cientes

disso há pouco tempo. Não creio, portanto, que minha enteada

deva ficar solta pelos corredores deste convento. Deveria ser

trancada e, se possível, amordaçada pelo resto de sua vida, pois

poderá praticar feitiços contra as pobres irmãs que vivem aqui.

Sem contar que, com a boca, ela pode usar palavras para

amaldiçoá-las...

Tentei conter-me, mas não deu para resistir. Por mais

prejudicial que fosse para mim, tinha que falar alguma coisa em

minha defesa. Então, dei um pulo à frente e disse:

– Sua peste! Cheguei a ter pena de sua miserável vida.

Agora vejo que cada um tem o que merece e que lhe foi

permitido por Deus. Eu andava com os criados e com os

escravos porque não tinha companhia dentro de casa. Caso não

se lembre, era uma senhora muito ocupada e não podia dar a

devida atenção a mim, que ainda merecia todos os cuidados de

uma criança indefesa. Eu não falava sozinha: falava com minhas

bonecas, como fazem todas as crianças de sete e dez anos. Não

dormia, por certo, porque minha cabeça preocupava-se com os

problemas da minha casa. Não era fútil, como a senhora sempre

foi. Quando for se referir à Maria, lave sua boca imunda. Sabe

muito bem que Maria nunca foi uma feiticeira. Ela era apenas

uma senhora conhecedora da cura pelas ervas. Será que terei que

lembrá-la da vez em que ela lhe curou certa mazela íntima?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 526 -

Disse isso porque a condessa foi vítima de sífilis.

Prossegui:

– E teria morrido se não fossem as ervas de Maria. Será

que já não é satisfatório que eu já esteja sofrendo o suficiente

por causa das suas acusações levianas e por causa da covardia

de ambos? O que mais querem de mim? Sabem muito bem que

só estou aqui neste convento porque não quis ceder à vontade do

meu pai de me casar por interesse para saldar suas dívidas e,

com isso, manter seus caprichos. Sabe muito bem que é por isso

que fui condenada a viver neste convento. Muito me admira a

senhora condessa estar fazendo tudo isso comigo. Agradeça a

Deus por ninguém querer ter me ouvido naquela sala de júri.

Caso contrário, estaria a senhora aqui, junto comigo, ou quem

sabe já teria sido queimada em uma fogueira? E a senhora sabe

muito bem que estou falando do seu comportamento leviano. Eu

poderia, mesmo que ninguém acreditasse em mim, ter citado o

que e como a senhora faz para manter o seu casamento perfeito

com meu pai. Mas fiquei quieta. Então, por que a senhora não

me deixa em paz e segue a sua miserável vida?

A condessa tentou balbuciar alguma coisa, mas meu pai

a impediu. Por fim, a madre superiora, depois de ouvir

atentamente o que eu dizia, falou:

– Senhorita Anna, teve uma pena muito dura, por certo.

Por hora, acho que deverá ficar como está. Mas acredito no

arrependimento e em milagres. Sei que aqui dentro a senhorita

irá se arrepender de seus atos e comportamentos através dos

sacrifícios, das punições, das penitências e das orações que lhe

serão impostos. Não acredito em pessoas endemoniadas.

Acredito em Deus e em nada mais. Sei que o Seu poder é

infinito e Ele irá curá-la de suas feridas. Portanto, senhorita

Anna, irá imediatamente para sua cela, onde terá todo o tempo

do mundo para refletir sobre seus atos. Se realmente o demônio

Adriana Matheus

- 527 -

está agindo nesta jovem, aqui por certo ela irá encontrar a cura

para a sua alma. Não sou ninguém para julgar nenhum de vocês.

Mas, seja qual for a verdade, um dia ela virá à tona. Então,

espero que este assunto seja encerrado por hora, para que

nenhum outro sofrimento desnecessário caia sobre nossas almas.

Dizendo isso, pediu para chamar duas freiras, que quase

imediatamente vieram. Percebi sensatez naquela mulher e, por

certo, ela era verdadeiramente uma discípula de Deus. Então,

assim que as duas freiras se posicionaram, ela prosseguiu,

dirigindo-se a mim:

– Espero, sinceramente, que eu não tenha que lhe aplicar

nenhum castigo severo. Acredito, como já disse, somente em

Deus e sei que Ele é capaz de recuperar até o mais perigoso

criminoso. Mas não poderei segurar a mão de meus superiores

se eles acharem que a senhorita não está de acordo com as

normas da Santa Madre Igreja.

Novamente, a condessa interferiu:

– Madre! Ela é uma bruxa confessa. A senhora irá se

arrepender de tê-la deixado solta.

– Caríssima senhora condessa, creio que todos têm o

direito a uma segunda chance, não acha? Além do mais, só

acredito em confissões quando feitas a Deus sinceramente, e não

sob imposições. Bruxa ou não, aqui ela será punida e tratada

como me foram passadas as ordens recebidas. Creio que a

senhorita Anna já entendeu o que lhe foi dito nesta sala. – disse,

olhando-me nos olhos e procurando uma resposta positiva da

minha parte.

Mediante tal atitude, só fiz abaixar a cabeça e, com um

aceno, concordei. Em seguida, a madre superiora ordenou às

suas subalternas:

– Irmã Adelaide, oriente as outras irmãs para que, assim

que a senhorita Anna termine seus afazeres, seja encaminhada à

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 528 -

lavanderia. E que se cumpram, assim, minhas ordens. Não

estarei aqui a partir de amanhã, mas quero um relatório de tudo

em minhas mãos quando voltar de Roma.

– Por que a senhora está indo para Roma, madre? -

perguntou a irmã Carmencita.

– Isso só saberei quando lá estiver. Só sei que foi um

pedido e indicação do inquisidor ao nosso Santíssimo Papa. Por

certo, serão reconhecidos os meus méritos como a tutora deste

convento. Creio não me demorar tanto por lá. Logo estarei de

volta. Fique tranquila: tudo correrá bem. A irmã Imaculada e a

irmã Vicenta cuidarão de todas vocês e do convento em minha

ausência. Sei que também manterão a fé acesa aqui enquanto eu

estiver fora. Confio em Deus, Ele as protegerá. Não se esqueça,

minha querida filha, de que também contamos com o auxílio e a

proteção de nossos irmãos os monges, o abade e também de

padre Ângelo, que nos têm sido de tanta valia nos últimos anos.

Os monges defendê-las-ão dos invasores e salteadores.

Algo naquelas palavras soou como uma despedida. Eu

poderia até estar enganada, mas não estava: a madre não

retornaria a nós. Mais tarde, chegou-nos a notícia de que nossa

madre sofreu um acidente gravíssimo que a levou a óbito.

A condessa e meu pai não se despediram de mim

naquele dia. Embora já soubesse que isso iria acontecer, senti-

me muito depressiva e triste, mas me mantive indiferente. A

madre pediu às freirinhas que me levassem para a minha cela.

Acompanhei-as em silêncio corredor afora, tentando não parecer

insubordinada.

Estátuas de mármore e bronze enfeitavam aqueles

corredores escuros, iluminados apenas por tochas nas laterais.

Fui observando a decoração interna do convento. Nas paredes,

havia azulejos trazidos da China. Eram todos pintados à mão.

Suas gravuras contavam a história da crucificação de Cristo -

Adriana Matheus

- 529 -

uma obra de arte inigualável e sem preço que ficaria naquele

lugar, perpetuando sua história. O chão era todo de mármore

marrom e bege. Pelo tamanho dos corredores, percebi que

demoraria uma semana ou mais para limpar aquilo tudo. De

repente, ouvi o canto gregoriano ecoando de novo, só que mais

forte. Senti-me levitar naquele lugar devido à música que me

parecia tão familiar aos ouvidos. Descemos várias escadas que

nos levaram ao pátio central. No meio dele, havia uma enorme e

exuberante fonte com um anjo segurando um peixe, expelindo

água pela boca. Pequenos arbustos cercavam o redor da fonte e

iam aumentando, fazendo um círculo, como se fosse um caracol.

Conforme nos afastávamos, o caracol transformava-se em um

pequeno labirinto rasteiro.

Ao sairmos do pátio, entramos por uma enorme porta de

madeira maciça e deparamo-nos com um corredor iluminado por

tochas gigantescas. Seus pilares eram enormes. Davam-nos a

impressão de estarmos seguindo para dentro de um portal para o

paraíso. Havia pinturas maravilhosas no teto, com detalhes em

ouro e marfim. O ambiente, porém, era luxuoso demais para um

lugar onde deveríamos manter o voto de pobreza. Isso só me

mostrou, mais uma vez, a máscara por trás da aparente

humildade. Enquanto os pobres passavam fome nas ruas, as

igrejas construíam verdadeiros palácios ornamentais. Embora

aquele fosse considerado um lugar santo, eu tinha que observar

a verdade por trás da santidade e a falsa modéstia pregada atrás

daquelas paredes.

De repente, as irmãs começaram a rir uma com a outra.

Toda vez que se entreolhavam, riam mais. Por fim, interroguei-

as:

– Ora, irmãs... Por que estão rindo de mim? Sei que não

estou limpa e que estou toda maltrapilha, mas não creio que o

deboche por uma pessoa estar numa situação de desvantagem

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 530 -

seja uma coisa de Deus. Sabiam que eu estava em um cárcere,

onde ninguém me dava água sequer? Isso não é justo comigo.

Sei que tenho que respeitá-las, mas não deviam caçoar de mim.

– Não! Não, senhorita Anna, interpretou-nos muito mal.

Não faça tal juízo de nós. Só estamos contentes porque a madre

superiora irá a Roma: as irmãs que ficaram responsáveis pelo

convento não são muito exigentes. Isso significa que

trabalharemos bem menos. Ah, senhorita Anna! Nem imagina o

quanto temos que trabalhar... Viemos para cá porque já

estávamos dando despesas às nossas famílias e não conseguimos

arrumar um marido. Já passamos da idade de casar e não temos

mais atrativos aos olhos dos homens.

– Sempre quis uma vida diferente. Gostava de ler. Os

romances eram os meus favoritos. Mas meus pais diziam que eu

estava seguindo o caminho da luxúria - disse uma das freiras,

com um olhar triste e sem vida.

– Mas a senhorita vai gostar daqui, logo se acostuma.

Embora a madre nos coloque sob trabalhos forçados, nunca nos

castiga. Ela é generosa, vai ver. Por trás daquele hábito e

daquele ar severo, ela é uma excelente pessoa. Aqui vivemos

todas em comunidade. - disse a outra.

Fiquei ouvindo-as falar enquanto atravessávamos todo

aquele corredor que parecia não ter fim. Pareceu-me que havia

uma grande necessidade de falarem. Deveria ser muito difícil

ficar o tempo todo sem poder balbuciar uma palavra sequer.

Além do mais, elas não me importunavam. Sentia vontade de

ouvir vozes e de fazer amigos. Contaram-me coisas de suas

vidas e cheguei a uma conclusão: pobres mulheres! Nunca

viveram e agora se dedicavam a uma vida de sacrifícios,

penitências e escravidão. Nunca iriam ver além daqueles muros.

Jamais saberiam o que poderiam ter vivido se não lhes tivessem

roubado toda a liberdade. Eram tão jovens e a mais velha só

Adriana Matheus

- 531 -

tinha vinte e sete anos. Mas, para aquela sociedade, era

considerada uma mulher muito madura. Elas eram consideradas

muito velhas para arrumarem maridos e tornaram-se

dispendiosas para as suas famílias. Pois, em caso de falecimento

do patriarca da casa, seus bens ficariam para um parente

masculino mais próximo - como um primo, por exemplo. Isso

queria dizer que a viúva não teria como se sustentar com as

filhas mulheres encalhadas. No caso daquelas duas jovens, que

eram de origem muito humilde e não tinham, portanto, um dote

que chamasse a atenção de algum pretendente, foram levadas

para o convento para que ali vivessem o resto de suas vidas. O

restante de seus poucos pertences, como suas roupas, foram

doados à Santa Madre Igreja. Havia muitas como elas em igual

situação. Jovens que não tiveram nenhuma chance de serem

felizes.

O tempo naquele lugar era lento. Elas nem percebiam se

era sábado ou segunda-feira. Não fazia diferença, já que todos

os dias eram dias de trabalhos e de orações. Depois de andarmos

muito e subirmos várias escadas, felizmente chegamos ao lugar

onde eu permaneceria em clausulo. Elas abriram a porta e, pelo

que podia perceber, mais uma vez eu ficaria trancada. A

primeira freira entrou na frente. Em seguida, eu, acompanhada

da segunda.

– Esta é a sua cela, senhorita Anna. Espero que goste. -

disse a irmã Adelaide.

Não era muito espaçosa, mas muito limpa. Tinha uma

cama estreita, um colchão de palha, lençóis muito alvos e um

baú, onde eu poderia guardar os meus pertences - se os tivesse, é

claro! Também havia uma mesinha com uma cadeira. Sobre ela,

uma ânfora e uma bacia para eu lavar meu rosto. Uma

cantoneira com um oratório e um enorme crucifixo na parede.

Pareceu-me um lugar tranquilo. Não vi nenhum mau espírito a

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 532 -

rondar ali. A janela era espaçosa, de madeira, mas com grades

pelo lado de fora. Mesmo assim, dava-me a visão da plantação

de girassóis, a estrada, o mosteiro ao lado e o restante ao redor,

como as montanhas ao longe. Pelo menos não podiam me tirar a

visão das coisas perfeitas de Deus.

As duas freiras saíram, mas voltaram algumas horas

depois com água, sabão e uma tina. Despi-me para me lavar.

Enquanto uma arrumava minhas roupas, a outra amolava a

tesoura. Ajudaram-me a lavar os cabelos, que mantive presos

em um coque. Depois de vestida e seca, a irmã Carmencita

disse:

– É mesmo uma pena termos que cortar os seus cabelos...

São tão lindos!

Após eu tomar banho, elas me ajudaram a secá-los e o

pentearam com carinho. Então, começaram a cortá-los. Não os

colocaram rente à cabeça, como pensei. Ficaram nos ombros,

descendo em cascata, formando vários bicos. Como eram

cacheados nas pontas, não deu para ver as falhas deixadas pelas

artistas. Mas meus cachos foram-se embora, no meio da poeira

que elas varreram do chão. Quase chorei, porque cada pedaço de

cabelo era uma boa lembrança de Maria e de tudo que eu havia

vivido com ela no meu passado. Era como se a minha alma

estivesse em chamas, e meus restos mortais estivessem

esvaindo-se com o tempo. Fiquei na frente do espelho, olhando

aquela pessoa. Não me reconheci, trajando vestes de linho

branco, sem nenhum enfeite. O rosto pálido e sofrido. Meus

olhos não tinham cor ou brilho. As irmãs pareciam ter percebido

aquilo em mim, pois começaram a limpar tudo e, quando já iam

se recolher, perguntei-lhes:

– São felizes aqui?

A irmã Carmencita respondeu:

Adriana Matheus

- 533 -

– Não temos tempo de nos lembrar como é a felicidade.

Mas, na medida do possível, quando podemos parar nossos

afazeres, oramos e pedimos a Deus e aos anjos para que nos

deem forças para seguir nosso caminho com paciência. Sei que

agora está um pouco apreensiva quanto a toda essa mudança,

mas fique tranquila: Deus está com você. Verá que aqui tudo

passa despercebido.

Esse era o meu medo: perder a noção do tempo. Não

saber mais quem eu era, morrer sem ser enterrada! A pior morte

não é a do corpo, e sim a do espírito, quando nos esquecemos de

quem realmente somos e apagamos nossa memória. Precisava

do meu diário. Precisava pôr tudo sobre um pedaço de papel.

Não queria tornar-me uma morta viva, como a maioria ali dentro

era. Precisava lembrar-me de quem fui. Precisava das minhas

lembranças. Não poderia deixar minha história morrer. Já me

bastavam os meses que havia passado em uma prisão escura,

que quase me deixou louca.

Logo que elas saíram, trancando a porta da cela, olhei ao

redor. Não vendo nada para fazer, fui à janela e fiquei olhando

pelas grades o mosteiro ao longe, no meio daquela vasta

vegetação e plantações. Onde eu olhasse, tinha um monge

trabalhando. As freiras ficavam dentro do convento e faziam

todos os tipos de serviços domésticos, como cozinhar, bordar,

passar e tingir. Eram infinitas as tarefas ali dentro. Mas eu não

poderia deixar que a minha verdadeira essência morresse.

Precisava de mim mesma. Queria fugir não dali, mas das prisões

mentais.

Os monges tinham seu espaço, mas ficavam em um

mosteiro a certa distância do convento. Eles se ocupavam

diariamente com tarefas e afazeres domésticos e agrícolas para

não se lembrarem de quem eram. A cada dia, a vida lhes passava

despercebida e mais um morto vivo nascia. Eu era uma bruxa.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 534 -

Não poderia deixar que me anulassem isso. Minha alma gritava

por socorro. Abri os braços e girei, tentando capturar o pouco de

vida que o vento me trazia naquele momento: o cheiro das

plantações, dos campos dos girassóis.

Voltei à janela e olhei para baixo. Lá estava ele,

olhando-me. Acenou com um gesto simpático e caloroso, pois

não poderia demonstrar nada que desabonasse nossa conduta

naquele lugar. Dei-lhe um sorriso largo e baixei a cabeça. Na

verdade, queria voar para seus braços. Pela primeira vez em

minha vida, quis que tudo o que falavam sobre as bruxas fosse

verdade, principalmente a parte em que voavam em vassouras –

porque, assim, eu o levaria para bem longe comigo. Quando

levantei a cabeça, ele havia desaparecido. Foi tão rápido que

pensei estar sonhando ou algo assim.

Procurei algo para fazer naquele quarto, mas não achei

nada. Abri o baú e encontrei uns retalhos e umas agulhas. Então,

comecei a emendar os retalhos para fazer uma colcha. Passei o

resto da tarde fazendo aquilo. Aprendi muitas coisas com Maria.

Bordar e costurar eram duas delas. De repente, a porta abriu-se e

por ela entrou uma irmã pequenina e rechonchuda, com uma

carinha muito simpática, que veio logo dizendo:

– Olá! Deve ser a senhorita Anna. Sou a irmã Narzira.

Vim apresentar-me à senhorita. Disseram-me que era muito

bonita. Mas vejo que tais elogios não fazem jus à sua real

beleza. Não se assuste comigo: sou muito tagarela. E não

respeito nada das leis que regem este convento - falou isso

dando uma risadinha, levando a mão à boca.

– É um grande prazer, irmã Narzira! Mas estou aqui há

tão pouco e já sabe de coisas a meu respeito?

Fiquei admirada de saber como as notícias corriam em

qualquer lugar, mesmo naqueles onde o silêncio predominava.

Ela respondeu, sorrindo:

Adriana Matheus

- 535 -

– Oh, não há muitas novidades aqui! Qualquer fato

diferente para nós é uma bênção. Não vou me demorar e

também não vou perturbar o seu momento de silêncio, pois sei o

quanto deve estar precisando ficar só.

Ela não sabia, mas o que eu menos queria era ficar

sozinha de novo. Prosseguiu:

– Só vim trazer-lhe esses biscoitinhos com chá. É um

presente de boas vindas de todas nós. Mas, antes que eu saia,

diga-me uma coisa.

– Sim, claro.

– Como é estar lá fora?

– Como assim? A senhora deve ter suas lembranças.

Ela sorriu novamente e continuou:

– Oh! Não, senhorita. Fui deixada aqui quando era um

bebê. Nunca tive contato com o mundo exterior. Não sei o que

se passa por trás dos portões e nem dos muros.

– Quer dizer que a senhora jamais viu atrás dos muros?

– Nunca estive lá fora.

– Santo Deus! Como conseguiu viver sem memória?

– Ah, mas tenho memória! Lembro-me de tudo desde

que era criança. As irmãs sempre me deram de tudo. Se hoje

estou viva, agradeço a elas por terem me acolhido aqui com

carinho.

– Mas por que foi abandonada aqui, à própria sorte?

– Porque nasci defeituosa. Sabe como é... Pessoas como

eu são muito mais propensas a terem ímpios demoníacos.

Dizendo isso, ela levantou a saia e mostrou-me os pés.

Faltava-lhe o dedinho mindinho em um deles. Sacudi a cabeça,

pois nem conseguia acreditar naquilo. Para mim, não fazia a

menor diferença. Mas, para aqueles loucos, era um sinal do mal

e, por certo, quem se casasse com aquela mulher teria azar para

o resto da vida. Se os pais tivessem ficado com ela, não teriam

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 536 -

paz, porque, no mínimo, a parteira já deveria ter espalhado por

toda a vizinhança que certa senhora teve uma filha marcada pelo

diabo.

– Não há nada demais lá fora. Acredite: está muito

melhor aqui, dentro do convento.

– Mas me responda, por favor! Como é o mundo lá fora,

por trás desses muros? Preciso saber, senhorita Anna.

– Também não tenho muito a contar. Não sou tão viajada

como pensa. Conheci muito pouco do mundo.

Mas, percebendo o quanto era importante para ela me

ouvir, mesmo que eu quase não tivesse muito a falar, contei-lhe

como era a minha cidade em detalhes.

– A cidade de Salamanca, de onde venho, é maravilhosa!

Há muitos bailes e festas em dias de santos, e pessoas elegantes.

Príncipes, Lorde e duques visitam muito minha cidade, por ser

uma cidade anfitriã e festeira. Ela é tão linda!

Fui detalhando-a. Ela ia se maravilhando com as coisas

que lhe contava. Contei-lhe todas as histórias que ouvira de

Maria, todas que li no diário de minha mãe - principalmente

sobre sua viagem à Índia. Quando acabei, ela me abraçou com

os olhos cheios de lágrimas. Em seguida, saiu sem falar uma

palavra sequer. Fiquei pensando, ao vê-la partir, que nunca

estamos no lugar errado. O lugar errado é que não deveria

existir.

Voltei à janela e fiquei olhando aquela paisagem, que

misturava o rústico das plantações com a harmonia e a

simplicidade divina. O entardecer era perfeito. O sol escondia-se

por trás das montanhas no majestoso horizonte! De repente, uma

leve brisa do mar veio ao meu rosto. Seria possível? Cheguei a

fechar os olhos para me aproximar mentalmente e ver as ondas

quebrando as pedras. Deus! Como é fantástico comungar com o

universo! Se dermos asas à imaginação, podemos ir aonde bem

Adriana Matheus

- 537 -

quisermos. A natureza é fantástica. Nunca desistiria de ser quem

eu era. Ela me levou ali e agora me recompensava pela

paciência e pela devoção. Nunca devemos desistir de nossos

objetivos, mesmo que os caminhos sejam tortuosos e a

esperança já esteja por um fio. Eu estava ali, comungando com

as forças da magia. Tudo é magia, até a gota de um orvalho

sobre uma folha é magia. Tudo tem algo a nos dizer, mas é

preciso prestar atenção nos detalhes. Observei cada detalhe do

mosteiro e, mentalmente, fiz o seu mapa interno em minha

cabeça. Comecei a viajar pelo mosteiro e detalhar cada

pedacinho de sua história.

Nos mosteiros de toda a Europa medieval, os monges

eram arrancados do minguado conforto dos seus colchões de

palha e ásperos cobertores pelos sineiros, que os despertavam às

duas horas da madrugada. Momentos depois, dirigiam-se

apressadamente, ao longo dos frios corredores de pedra, para o

primeiro dos seis serviços diários na enorme igreja. Sempre

havia uma em cada mosteiro, cujo altar, esplendoroso na sua

ornamentação de ouro e prata, resplandecia sob a luz de

centenas de velas. Seus dias eram iguais a todos os outros, com

uma rotina invariável de quatro horas de serviços religiosos,

outras quatro de meditação individual e seis de trabalhos braçais

nos campos ou nas oficinas. As horas de oração e de trabalho

eram entremeadas com períodos de meditação. Os monges

deitavam-se, geralmente, pelas seis e trinta da noite durante o

verão. Era servida apenas uma refeição diária e sem carne. No

inverno, havia uma segunda refeição para ajudá-los a resistir ao

frio. Era esta a vida segundo a Regra de São Bento, estabelecida

no século VI por Bento de Núrsia, o italiano fundador da Ordem

dos Beneditinos. Canonizado mais tarde, São Bento prescrevia

para os monges uma vida de pobreza, castidade e obediência,

sob a orientação monástica de um abade, cuja palavra era lei.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

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Luís, o Piedoso, imperador carolíngio entre 814 e 840,

encorajou os monges a adotarem a Regra de São Bento. Por

volta de 1000, a regra seguida praticamente em todos os

mosteiros da Europa ocidental inspirava-se na dos Beneditinos,

tal como muitos dos edifícios baseavam-se no modelo delineado

para o Mosteiro de Santa Gallen, na Suíça, no ano de 820. Tanta

ostentação e regras... Os monges nem podiam respirar.

Pelo que consegui observar, tinha alguma coisa de

secreto naquele mosteiro. Embora o silêncio entre eles fosse

unânime e visível, tinha algo diferente até na maneira de

gesticularem e de procederem uns com os outros. Era como se

fosse um código secreto. Já eram sete horas da noite quando

uma carroça parou em frente à plantação de girassóis. Dez

monges desceram e outros dez, parecendo feridos, subiram na

carroça. Os que subiram seguiram viagem apressadamente. Se

não fosse muita distância e a Lua não estivesse ainda muito alta,

diria que vi uma espada na bainha da orla da túnica de um deles,

pois o brilho de algo metálico reluziu com a luz da Lua. Desviei

essas ideias e continuei com meus pensamentos no mosteiro.

Por que um convento uniu-se a um mosteiro? Essa

pergunta estava dentro de mim desde o momento em que vi a

união daquelas duas abadias. Por isso, ficava tão intrigada. Sabia

que ali era uma espécie de junção convento-mosteiro, mas sabia

que esse tipo de junção era muito raro. Precisava descobrir o que

estava acontecendo naquele lugar. Precisava tirar aqueles

pensamentos da minha cabeça. Pois, se bem me conhecia, não

teria sossego até que descobrisse tudo. Os monges dedicavam-se

aos estudos. Mas aqueles, em si, pareciam ser cultos demais.

Suas maneiras de se portarem eram de nobres cavalheiros. Não

eram homens frágeis e pequenos, mas esguios e bem fortes. Não

pareciam trabalhadores braçais ou homens comuns. Muito

menos pareciam monges.

Adriana Matheus

- 539 -

Anna, disse a mim mesma, pare com isso! Santo Deus,

quando eu começava a pensar, não conseguia parar. Olhei à

volta e comecei a desviar meus pensamentos para a plantação.

Fechei os olhos de novo. Nas plantações muradas, os monges

também cultivavam ervas medicinais. Num dado momento -

ninguém sabe quando-, ocorreu-lhes a ideia de adicionar

algumas ervas à aguardente, inventando, assim, o licor. A

alquimia era permitida para eles. Mas para nós, bruxas, não.

Eram verdadeiros magos alquimistas e julgavam-nos por sermos

individuais e não lhes contar certos segredos. Ora, que tinham

eles contra sermos individualistas? Pode parecer estranha esta

associação da vida monástica com o luxo das bebidas alcoólicas

- e era mesmo. Mas isso também seria necessário no duro e frio

inverno. O vinho era uma bebida permitida aos monges. No

entanto, os banhos, exceto para os doentes, eram

desaconselhados, pois era considerado um luxo exagerado. Isso

era realmente uma incoerência. Quer dizer: beber podia; mas

tomar banho, não.

De acordo com a sua imutável rotina, os monges, em

geral, viviam e trabalhavam em obediência absoluta ao seu

abade. Eram eles que o elegiam. Mas, a partir de então, sua

autoridade era total e vitalícia. Era o abade quem deliberava

sobre a faceta privilegiada do mosteiro, se este deveria primar

pela santidade austera, pela cozinha ou pela erudição. No

interior das suas paredes maciças, que nenhum cristão ousaria

atacar, os mosteiros possuíam bibliotecas nas quais se

conservaram intactas grandes partes das heranças literárias das

antiguidades durante os séculos em que a Europa foi assolada

por invasões e guerras. Na realidade, a segurança, tanto

econômica como física, que os mosteiros ofereciam às

respectivas irmandades deve ter constituído um dos seus

principais atrativos. Séculos após séculos, tanto os Beneditinos

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 540 -

quanto os Franciscanos e monges de outras ordens religiosas

viveram sem temer a fome, a guerra ou o desamparo.

Reconfortava-os sempre a ideia de que, no fim, tinham maiores

probabilidades de salvação do que os camponeses ou os

cavaleiros, que viviam apegados às coisas mundanas. Bom, era

um pensamento ingênuo - creio. Porque sabia que a Inquisição

não perdoou ninguém, nem monges, nem cavalheiros, ninguém

mesmo.

Corri meus olhos pelos campos sob a luz da Lua, que

magistralmente brilhava no céu estrelado. As estrelas eram

como gotas de orvalho em uma fina folha de manhã de inverno.

A brisa longínqua do mar embriagava-me as narinas. Era como

se eu pudesse sentir até o cheiro das conchinhas. Sabia que

estava presa, mas precisava arrumar um jeito de encontrar o

caminho até o mar. Era quase meia-noite quando resolvi deitar-

me. Adormeci de imediato. Meu corpo estava muito cansado.

Sabia que teria um longo dia pela frente.

– Bom dia, senhorita Anna!

Acordei com uma mão suave e agitada a me sacudir.

– Hã? O que houve?

– Sou a irmã Manuelita, encarregada de lhe mostrar seus

afazeres. Já são três horas. Deve se levantar para ir ao oratório e

ao confessionário. Tem muitas tarefas, senhorita. E o dia passa a

voar.

Não acreditei naquilo. Era um pesadelo - só podia ser!

– Vamos, senhorita! Pegue o seu hábito e vista-se. -

disse, batendo palmas.

Vesti-me muito rápido. Lavei o rosto e saí da cela,

seguindo a freira, que mais parecia correr pelos corredores. Fui

levada à sala de orações, onde fiquei por vinte minutos. Depois,

Adriana Matheus

- 541 -

seguimos para o confessionário, que ficava dentro da igreja,

dentro do convento. O abade não estava presente e, por isso, a

irmã deixou-me sozinha enquanto ela mesma foi procurá-lo.

Nunca havia rezado tanto em minha vida. E ainda tinha que

confessar. Não sabia o que teria realmente que dizer, mas estaria

ali, pronta para o que fosse. Será que teria que contar para o

abade tudo o que havia ocorrido comigo até aquele determinado

ponto? Tomara que suas penitências não fossem tão severas.

Santo Deus!

Meus olhos ainda pesavam de tanto sono. Fiquei em

frente ao altar, de joelhos, enquanto a irmã procurava o abade.

Aproveitei para admirar todo o esplendor e a magnitude daquele

templo. A igreja e convento de San Francisco foram fundados

pelos padres franciscanos, em 1645. Possuía duas fachadas e

uma torre única de canteira, de estilo espanhol. No interior do

convento, destacava-se uma tela monumental, na qual o artista

retratava a genealogia da família franciscana. Além disso,

encontravam-se obras pictóricas de artistas importantes e

memoráveis. Era um santuário, mas sua arquitetura era de tirar o

fôlego. O teto era coberto por anjos e nuvens. Senti como se o

céu estivesse sobre mim. Parecia que o chão estava rodando aos

meus pés, ou melhor, aos meus joelhos, que já estavam

adormecidos de ficar ali, como uma criança ajoelhada no milho.

Senti vontade de rir. Era uma felicidade ingênua. Como esses

santuários transformam pessoas em seres angelicais? Estava

cansada e, mesmo assim, ainda tinha que confessar. Era muita

penitência para uma pessoa apenas. Mas, ao mesmo tempo, era

maravilhoso estar ali, pois parecia que o canto gregoriano nunca

parava, mesmo quando ninguém o estava cantando. O som ainda

ecoava pelas paredes como uma flauta.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 542 -

À minha frente, observava todos aqueles santos e

lembrava-me de tudo que aprendi em minhas aulas de

catecismos. Bem na minha lateral esquerda, vi mais uma santa

linda - uma bruxa, em minha opinião: Santa Inês. Sua história,

cheia de controvérsias, foi muito triste. Entre todas as heroínas

da Igreja primitiva que derramaram o sangue em testemunho da

Santa Sé, Santa Inês é aquela a que os Santos Doutores da Igreja

tecem os maiores elogios. São Jerônimo, em referência a esta

santa, escreveu: todos os povos são unânimes em louvar Santa

Inês porque, vencendo a fraqueza da idade e o tirano, coroou a

virgindade da morte como martírio. De modo semelhante,

exprimem-se Santo Ambrósio e Santo Agostinho. Como Maria

Santíssima, Santa Inês era invocada para se obter a virtude da

pureza. Fiquei ainda alguns minutos admirando a imagem da

santa, até que uma voz rouca e, ao mesmo tempo, familiar falou

quase ao meu ouvido. Senti meu corpo todo se arrepiar e virei-

me para trás, para fitá-lo melhor.

– Ou assusto a senhorita, o que já está se tornando um

hábito, ou a senhorita vive com a consciência pesada?

Ficamos nos olhando ali, parados, por uns três minutos,

sem nada conseguir dizer. Não conseguia falar nada, e ele

também não conseguia tirar os olhos de mim. No entanto, deu-

me o sorriso mais lindo que eu já tinha visto. Por fim,

prosseguiu:

– Espero que a primeira hipótese seja a mais correta.

Porém, gaguejei, tentando responder:

– Eu!? Estou esperando o abade. Tenho que me

confessar, embora não saiba de que ainda!

Ele sorriu novamente, respondendo-me:

Adriana Matheus

- 543 -

– Sou mesmo um homem de muita sorte: no meu

primeiro dia como substituto do abade, não terei que ouvir as

confissões de uma freira velha e ranzinza. Deus, ao contrário,

abençoou-me com uma jovem e bela noviça. Estarei no lugar do

abade por duas semanas. Mas me diga: qual seria o pecado tão

grave que uma jovenzinha como a senhorita teria para ter que

vir a este templo tão cedo para se confessar?

Antes de responder, pensei comigo Como é estranha a

maneira como este monge fala! E sorte só se fosse a dele, pois o

destino estava era caçoando de mim: como eu poderia contar

toda a minha vida àquele homem? Se ele soubesse que eu era

uma bruxa, por certo nunca mais falaria comigo. Mas, por outro

lado, por uma questão de ética e moral, não poderia mentir a ele.

Com certeza, não era a minha intenção. Eu estava entre a panela

e a caldeira. Ser uma bruxa é demasiadamente difícil. Naquele

momento, não sabia como dizer com palavras o que eu era. Se o

antepassado dele, Edward, havia me condenado à fogueira, o

que não faria aquele monge? Por que ele não escolhera vir como

alguém comum? Como era difícil o meu destino! Amar alguém

que poderia ser o meu algoz novamente... O monge, porém,

depois de muito me fitar e parecendo perceber que eu estava

desorientada, disse, tentando tirar-me daquele devaneio mental:

– Desculpe-me, senhorita Anna, ter que interromper seus

pensamentos. Mas, por favor, podemos seguir para o

confessionário? - ele parecia meio irritado com o meu

comportamento distraído.

– Sim, claro, padre!

Eu estava tão atordoada com aquela presença que fiquei

sem saber o que fazer. O que era pior: nem sabia o que dizer a

ele. Por fim, fomos para o confessionário. Ele se sentou de um

lado e eu do outro. Assim, não podíamos nos ver - e talvez fosse

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 544 -

mais fácil. Ele se benzeu com o sinal da cruz, fiz o mesmo. Ao

entrarmos, cada um por um lado do confessionário, prosseguiu:

– Rezemos... A senhorita aceita o Senhor como seu

único salvador?

– Sim, aceito.

– Tem a consciência de que não pode mentir durante

uma confissão, e que deve ser inteiramente honesta em tudo o

que lhe for perguntado?

– Sim, padre, tenho.

– Ótimo. Então, podemos prosseguir, pois não tenho o

dia todo para ficar ouvindo as histórias de uma jovem noviça

rebelde.

Suas maneiras de falar eram tão estranhas... Nunca havia

conhecido um padre que falasse assim. Geralmente, eles eram

mais polidos ao falar. Este era informal demais.

– O que trouxe a senhorita a este convento?

– Minha família, padre. Eles não me queriam mais por

perto. - baixei a cabeça.

– Não perguntei quem a trouxe para este convento.

Perguntei o que a trouxe aqui. Ou seja, o que a fez sentir

vontade de seguir os caminhos do Cristo? Já que a senhorita

antecipou a segunda pergunta, poderia, então, desde já

responder-me os motivos pelos quais os seus familiares não a

quiseram por perto, minha filha?

Ele parecia mesmo curioso quanto a isso. Então, tentei

ser polida e sincera na resposta.

– Fui acusada de feitiçaria, padre, e de tantas outras

coisas abomináveis que nem sei por onde começar. Minha

Adriana Matheus

- 545 -

família trouxe-me para este convento porque me recusei a casar

sem amor. Creio que isso responde a outra pergunta.

– Sim, creio que sim. Mas pode começar do princípio e

com calma. Resolvi ouvi-la com mais atenção. Portanto,

ficaremos aqui o quanto for necessário. Antes, apenas me

responda algumas perguntas. Por que não sentenciaram a

senhorita à morte? Por que a trouxeram para um lugar como

esse, sabendo eles que, se estiver realmente endemoniada,

poderá contaminar todas as outras irmãs com seus pensamentos

e ideias pecaminosas? Desculpe-me, senhorita, mas algo não

está se encaixando. Não está me escondendo nada, não é?

Aquelas palavras cortaram meu coração como lâminas

afiada. Ele não me achava digna de um julgamento. Achava-me

suja demais, capaz de sujar até mesmo o lugar que eu pisasse.

Mas, por outro lado, aquelas hipóteses começaram a fazer

sentido para mim. Por fim, respondi-lhe:

– Não acharam culpa verdadeira em mim, padre. Não

tenho ideias pecaminosas. Sou apenas uma pessoa que acredita

na liberdade de expressão e de religião. Acho que qualquer

pessoa merece obter o direito de ir e vir e de escolher qual

caminho seguir. Se eu tivesse mais tempo de vida, juro ao

senhor que lutaria pela igualdade das raças e, principalmente,

pelo direito que acho que as mulheres têm de serem livres. Não

cometi nenhum crime, padre. Mesmo assim, fui considerada

uma criminosa. Se o senhor quiser acreditar em mim, fico feliz.

Mas, se não quiser, não me fará diferença, pois já vivo sob o

julgo de muitas pessoas. Um julgamento a mais ou a menos não

vai aliviar minha sentença.

– Por que se julga no direito de achar que seu tempo de

vida é curto? Acaso se sente superior às vontades de Deus?

Menina... Tenha mais cuidado com as suas palavras.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 546 -

Dependendo de quem as ouvir, poderá pensar que está sendo

insubordinada. Ainda não tomei conhecimento do fato real pelo

qual sentenciaram a senhorita a vir para este convento, tão

distante do seu povoado. Por hora, quero que se mantenha

afastada de todas as outras irmãs, principalmente dos monges.

Não quero que induza ninguém ao mal que supostamente a

acompanha. Sentencio-a a duzentas Ave Maria e a trezentos Pai

Nosso por dia. Saiba que vou saber se rezou ou não. Por hora, é

só. Amanhã, aguardo a senhorita neste mesmo horário.

Porém, não fiquei calada. Mediante tal afronta, respondi:

– Não quero e não posso admitir que o senhor fique

sabendo quem sou pela boca de outras pessoas. Sei que elas

falarão o que bem quiserem a meu respeito. Portanto, padre

Ângelo, quero que o senhor saiba de minha própria boca que fui

considerada pela Inquisição uma traidora das ordens da Santa

Madre Igreja, e que só não me lançaram à fogueira porque sou

filha de um nobre, e ele ainda tem esperança de que eu volte

atrás e aceite me casar com um inescrupuloso conde para que,

com essa união, eu possa saldar as dívidas da família.

Percebendo que ele teve uma reação de espanto por trás

do confessionário, prossegui:

– Mas sou mesmo uma bruxa, como irão lhe dizer. Não

importa o que há de acontecer comigo. Daqui por diante, saiba

que nunca mudarei meu jeito ou deixarei de ser quem sou. Sigo

o caminho que escolhi. E se o senhor for me castigar, que faça,

então, desde já. Ser diferente e seguir um caminho diferente não

significa que isso nos faça seguidores de satã. Amo a Jesus e

nunca neguei Deus como meu único Salvador. Está dito. Se o

senhor não tem mais nada a me dizer, também não tenho mais

nada a lhe confessar por hora. Não se preocupe: não tenho a

menor intenção de fugir deste convento.

Adriana Matheus

- 547 -

Dizendo isso, saí, sem nada mais a dizer. Percebi quando

ele saiu atrás de mim, no confessionário. Ficou em pé,

indignado. Porém, não precisei olhar para trás para me certificar

daquela reação. Não acreditava que teria que sofrer por amor

outra vez. Meu Deus! Ele era totalmente cego, egoísta e, por

certo, já me odiava. Pensei comigo O servo de Cristo e uma

bruxa... não é justo. Ele nunca iria me aceitar como eu era, e eu

nunca mudaria o meu jeito de ser. Nunca. Não daria certo. Por

que me escolheu, Senhor, para tal martírio? – perguntei,

virando meus olhos para o céu. Seria um suplício eterno ter que

conviver ao lado de um homem que só me daria o desprezo. A

fogueira estava acesa e a caldeirinha me esperando! Seria uma

luta difícil, pois ambas esperavam para ver quem seria a

primeira a me tostar.

Do lado de fora da igreja, vi a pobre irmã Manuelita

esperando-me impaciente. Ela não disse uma palavra sequer

comigo. Quando saiu andando, tive que adivinhar que era para

segui-la. Aquela história de silêncio estava me dando nos

nervos. Nunca fiquei tanto tempo assim, calada e taciturna.

Fui levada à cozinha do mosteiro, onde fui recebida pela

irmã Maria Perpétua e a irmã Vicenta, uma das responsáveis

pelo convento na ausência da madre superiora. Elas me

mostraram todos os serviços. Depois, serviram-me uma tigela de

mingau de aveia e um pedaço de pão de milho. Comi com boca

boa, pois sabia que só voltaria a comer muito mais tarde.

Quando terminei meu desjejum, tive uma pilha de canecas e

pratos para lavar. Ainda ajudei a sovar a massa dos pães da

tarde, sem contar os tachos de cobre que tive que mexer no

fogão de lenha.

Quando terminei na cozinha, levaram-me para a

lavanderia, onde tive que lavar pilhas e pilhas de roupas sujas.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 548 -

Percebi, entre elas, hábitos dos monges. O que mais me intrigou

foi que estavam sujos de sangue. O que será que estava havendo

naquele convento? Algo não ia bem! Durante todo este serviço,

não abri a boca, mas observei o comportamento de todos ali

dentro. O silêncio pode, às vezes, parecer-nos uma tortura, mas

é um grande professor e aliado. Não sabia o que havia de errado

naquele lugar, mas estava disposta a investigar minuciosamente.

Minha curiosidade estava aguçada.

Terminado aquele serviço árduo, levaram-me para o

tingimento, onde tive que tingir toda a roupagem suja de sangue.

As túnicas, alvas, tornaram-se marrom - o que explicava o

porquê de alguns monges trajarem vestimentas brancas e outros

trajarem vestimentas marrons. A lavanderia era muito quente.

Minhas mãos ficaram com bolhas por causa da água fervente.

Depois, fui para a sala de costura, onde bordei e remendei por

duas horas. Novamente fui levada à cozinha, onde lavei duas

pilhas de copos e pratos outra vez. Eram três da tarde e eu ainda

não havia comido nada. Depois de lavar toda a louça, serviram-

me um prato de sopa de arroz e mais um pedaço de pão. Senti

minhas pernas bambearem de fraqueza. Depois de ter que lavar

toda a louça suja, fui levada aos corredores do convento. Lá,

deram-me água e um esfregão para começar a lavar tudo. De

joelhos no chão, lavei sessenta e dois degraus e seis pavimentos.

Por fim, quando terminei, era meia noite. Ainda bem que duas

vezes por semana era o suficiente para aquele serviço.

Depois de secar todo o chão e escadarias e guardar os

utensílios, subi para minha cela. Levei comigo água para me

refrescar. Troquei a roupa e fiquei olhando minhas mãos:

estavam vermelhas e inchadas. Meus joelhos estavam esfolados

e doíam muito. Olhei para a janela e a Lua ainda estava alta no

céu. Estava tão cansada que nem me atrevi a levantar e dar uma

Adriana Matheus

- 549 -

olhada. Ouvi quando alguém veio fechar a porta com chave por

fora. Sacudi a cabeça. Como uma pessoa que não tinha para

onde ir e estava cansada em demasia poderia querer fugir?

Esbocei um sorriso e deixei meu corpo cair sobre a cama.

Adormeci profundamente em seguida. Nem pensei em rezar ou

balbuciar qualquer coisa aos céus. Por certo, Deus não me

castigaria por não rezar só por aquela noite!

Não sei por quanto tempo adormeci, mas logo pude

escutar uma vozinha doce e torturante ao fundo, chamando-me:

– Acorde, senhorita Anna! Está vinte minutos atrasada.

Irmã Manuelita era como um tremor de terra

sacolejando-me. Nem conseguia identificar o que ela dizia

direito, porque o badalar do sino da igreja também gritava aos

meus ouvidos. Aquilo era o purgatório, só podia ser! - pensei

comigo. Não estava mais viva - estava morta e se esqueceram de

me avisar! Já deveria estar queimando no mármore do inferno.

Levantei meio tonta e ela já foi logo me dizendo, impaciente:

– Ande, irmã. Tem que ser rápida: o padre Ângelo já a

está esperando.

Nossa, que notícia romântica! Encontrar-me-ia com

aquele rabugento de novo, pensei!

– Que horas são, pelo amor de Deus, irmã!?

– São duas e vinte. Teria que ter se levantado quinze

minutos antes.

Santo Deus, o atraso era mesmo enorme... Imaginei o

que fariam se fosse um atraso de uma hora! Porém, apenas

respondi:

– Está bem. Já estou indo.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 550 -

Levantei, cambaleando, lavei o rosto e vesti meus trajes.

Enrolei os que estavam sujos nas mãos e os levei comigo. Santo

Deus, pensei, só poderia ser brincadeira. O destino e Deus

estavam unidos para brincarem comigo em uma peça teatral e

dramática. Não deu tempo para eu tomar o meu desjejum.

Então, fui direto para o confessionário. Só tinha um pedido em

mente: não deixe que Wallejo pense mal de mim, Deus. Eu

poderia suportar tudo, menos o desprezo daquele homem. Fui

mentalmente fazendo minhas preces. Quando coloquei meus pés

dentro da igreja, ele apareceu como um fantasma vindo sabe

Deus de onde! Não me fez as mesmas perguntas do dia anterior,

mas falou num tom severo e irônico ao mesmo tempo.

– Descobri coisas sobre o seu passado, senhorita. Coisas

que me deixaram muito preocupado.

– O que foi que o senhor descobriu? – perguntei,

tentando fazer-me de desentendida, usando com ele o mesmo

tom de voz.

– Que a senhorita não merecia estar aqui, mas em uma

masmorra. Cometeu crimes contra uma comunidade inteira,

senhorita Anna. É uma pessoa monstruosa, de uma maldade

infinita. Confesso-lhe que pensei dezenas de vezes em vir aqui e

ouvir sua confissão.

– Já lhe disse, padre Ângelo, não fiz nada daquilo de que

me acusam.

Contei a ele toda a história verdadeira. Depois de me

ouvir, fazendo ares de incrédulo, disse-me:

– Acha que vou acreditar em uma vírgula do que me

conta? Sou imune a feitiços e seduções de bruxas como a

senhorita. Sou um cavaleiro....

Ele pausou esta frase e prosseguiu.

Adriana Matheus

- 551 -

– Sou um servo do Senhor. Nenhuma bruxa poderá me

seduzir. Nenhum mal pode entrar no meu corpo e pensamento.

Se estou neste monastério é porque o senhor quis. Tenho certeza

de que ele nunca me incumbiria de uma missão tão árdua como

esta se não soubesse que sou capaz.

Aquilo começou a me irritar. Levantei-me, saindo da

sacristia. Ele, porém, saiu atrás de mim, dizendo em alto tom:

– A senhorita não pode fazer isso! - olhando-me com

indignação.

– É mesmo? Sei que não posso. Afinal, o senhor pode

me condenar a mais mil penitências e até me mandar para as

masmorras. Ou quem sabe me excomungar ao inferno!? Pois

fique sabendo que já vivo em uma prisão silenciosa e este

mundo em que estamos, para mim, já é o verdadeiro inferno.

Minha vida já é uma penitência. Já fui excomungada pelo meu

pai, já perdi tudo o que tinha, e estou aqui como o Cristo: de

braços abertos e coração limpo, dizendo-lhe a mais pura

verdade. Não cometi os crimes dos quais me acusam, padre

Ângelo. Mas o senhor, embora tenha ouvido ainda em confissão

e eu lhe tenha dito que sou inocente, mesmo assim prefere

acreditar no que os outros lhe disseram a me dar um voto de sua

confiança. Mas o que não vou permitir, de forma alguma nesta

minha curta vida neste mosteiro, é que um homem comum como

o senhor, só porque está trajando uma vestimenta santa e

fazendo-se de bom samaritano, venha insultar-me com qualquer

tipo de palavra que seja. Prefiro a morte a ter que me submeter a

tal humilhação. Agora, se não quer acreditar, o problema é seu

unicamente. E se está se sentindo tentado com a minha presença,

padre Ângelo, não tenho culpa nenhuma se também é um

homem por trás da sua batina. Tenho certeza de que não sou o

tipo de senhora que faz por onde esses tipos de desejos fluam na

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 552 -

mente de uma pessoa respeitável ou de qualquer outra. Acho

que o senhor deveria é procurar o abade assim que ele voltar e

confessar-se também. Agora, se não tem nada mais a dizer,

tenho muito serviço a fazer. Caso não saiba, fui colocada aqui

para cumprir a pena dos pecados e crimes que nunca cometi.

Disse aquilo tudo porque vi claramente o que se passava

na mente dele enquanto eu ficava atrás do confessionário.

Afinal, sou uma bruxa e, como tal, entre meus dons, o da

clarividência era um deles. Saí em seguida, sem olhar para trás.

Ele, porém, ainda me chamou:

– Espere um minuto aí, mocinha. Ainda não terminei.

Está passando por cima de ordens superiores. Não vou me

comprometer por causa de uma insubordinada como a senhorita.

Levarei o seu caso aos meus superiores, acredite.

– Tenho certeza de que o fará. Faz parte da índole dos

padres também serem delatores e perversos, pois não sabem

como resolverem seus próprios problemas. Não se preocupe:

coloco mais mil ladainhas em minha penitência.

Respondi de costas e de costas continuei. Ai, como ele

me deixava louca! Eu o queria longe de mim, mas nem tão

longe. Corrigi aquele pensamento. Que estúpido! Como podia

ser tão cego? Fui para a cozinha e arrumei tudo muito rápido.

Estava soltando fogo pelas ventas. Fui à lavanderia e terminei o

serviço às pressas. O mesmo aconteceu com as costuras. As

irmãs, se perceberam alguma coisa, não se manifestaram em

nada. Naquele mesmo dia, fui levada à colheita de girassóis.

Enchi vários balaios em poucas horas. Parecia que a raiva estava

me dando forças, pois em minutos terminei aqueles afazeres. Às

três horas, almocei na cozinha, como da última vez. Depois de

lavar toda a louça, fui levada à colheita de algodão. Parecia

fácil. Mas, no final do dia, minhas mãos sangravam por causa

Adriana Matheus

- 553 -

dos espinhos. Uma das freiras ajudou-me a preparar um bálsamo

para as feridas que estavam abertas. Chorei de tanta dor que

senti. Era água de sal, vinagre e aguardente. Às sete horas da

noite, subi para minha cela. Minhas mãos estavam enfaixadas

com tiras de trapo. Chorei a noite toda, de tanta dor. Tive febre.

Não conseguia dormir. Por mais que clamasse a Deus par aliviar

minha dor, parecia que ela só piorava.

Na manhã seguinte, quando a Irmã Manuelita veio me

chamar, já estava de pé e batendo o queixo de febre. Muito

admirada, falou:

– Santo Deus, senhorita Anna, o que houve?

– Minhas mãos! Acho que infeccionaram. - disse isso

mostrando o estado em que se encontravam.

– A senhorita colheu algodão, isso é normal! Não se

preocupe: logo isso passa. É só nos primeiro dias. Depois, a

senhorita se habitua. Vamos, tenho que levá-la para o desjejum

e, depois, ao confessionário.

Ela pareceu fazer pouco caso de mim e nem ligou para

minha febre. Rezei para que o padre Ângelo não estivesse por

lá. Não queria que ele me visse naquele estado. Mas, por mal

dos meus pecados, ele estava de pé, na frente do confessionário,

e foi logo dizendo:

– Bom dia!

A irmã Manuelita deixou-nos e saiu em seguida, como

sempre fizera. Ele entrou no confessionário, mas fiquei parada,

no meio da igreja, em frente ao altar. Minhas pernas começaram

a tremer. Estava sem forças. Ele saiu do confessionário e parecia

estar furioso comigo.

– Está me desafiando, mocinha? Quer que faça um

relatório sobre essa sua insubordinação? Não me custaria nada.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 554 -

Minha cabeça estava rodando... Queria responder, mas

não conseguia.

– Senhorita Anna! O que há? Está se sentindo bem?- ele

pareceu, por fim, entender que havia algo de errado comigo.

Apenas mostrei as mãos envolvidas nas bandagens a ele,

que sagravam e estavam com indício de infecção purulenta.

– Senhorita!...

Não consegui ver mais nada. Caí por terra. Acordei e já

era alta hora da noite. Meu corpo estava tão cansado e fraco...

Minha boca estava seca e ressecada. Havia uma irmã ao meu

lado que nunca tinha visto antes. Ela era tão simpática! Passava

sobre minha testa um pano embevecido em água fria para baixar

a minha febre. Pedi um pouco de água e ela pingou umas gotas

em minha boca para que eu não vomitasse.

– Vou buscar um caldo para que não fique muito

debilitada, e também pedir ao padre Ângelo que entre, pois ficou

a tarde toda sentado em um banquinho do lado de fora. Pareceu-

me muito preocupado com a senhorita. Ele nem foi para os seus

afazeres hoje. Ficou em oração pela senhorita. Tem muita sorte.

Ele é um homem maravilhoso e um sacerdote exemplar.

Aguarde. Volto já, não me demoro.

– Como se chama, irmã? - perguntei, curiosa.

– Juanita. - deu um largo sorriso e saiu porta afora.

Fiquei pensando... No mínimo ele estava preocupado

comigo porque pesava sua consciência. Virei a cabeça para o

lado, onde estava a janela, tentando achar a Lua. Não dava para

ver devido à posição em que se encontrava o meu leito. Quanto

voltei o rosto para o lado da porta, ele estava ali, parado, com

um pequeno girassol nas mãos.

– O que senhor veio fazer aqui? Certificar-se de que não

enfeiticei suas freiras? Vê? Também sangro. Não sou demônio.

Adriana Matheus

- 555 -

Sou de carne e osso, como o senhor. – disse isso levantando as

mãos para ele, mostrando o estado em que estavam.

Ele baixou a cabeça e disse:

– Desculpe-me. Fui um tolo. Não quis ofendê-la. Olhe,

colhi este girassol para a senhorita! Pensei que gostaria. Aceite,

é um pedido de desculpas, por favor! Sabe, não sei explicar...

Mas, enquanto estava desmaiada, fiquei sentado ali fora, pois

queria saber como estava passando. Por fim, adormeci sentado.

Então, sonhei com a senhorita. No sonho, pedia-me um girassol.

Foi tão real que, quando acordei, fui à plantação de girassóis e

colhi este – ainda pequenino no tamanho, mas grandioso na

qualidade e beleza. Senhorita, por favor, aceite este mimo. É a

forma que encontrei de lhe pedir perdão. Já estou aqui, na sua

frente, sentindo-me um tolo. Não tenho ouro nem joias caras,

como a senhorita deve estar acostumada, mas tenho a certeza de

que irá fazê-la bem olhar para a flor. A mim sempre acalma.

Esta flor é como uma fada: sempre traz boas novas. Se aceitar,

conto-lhe a lenda dela.

Ele parecia Maria, tentando acalmar-me com histórias

sem pé nem cabeça. Os homens... Parecem meninos quando

querem se desculpar depois de cometerem algo errado! Sorri

largamente e peguei o girassol, pois era irresistível ver aquele

homem adulto virando-se do avesso para se desculpar comigo.

Nossas mãos tocaram-se e ele ficou fitando-me, como se só eu

existisse. Seus olhos eram mel e pareciam ter uma luz divina

que saía deles. Aquele toque quase sem querer teve um efeito

mágico e fez meu sangue correr mais acelerado. Os anjos

novamente tocaram suas harpas para nós... Mas ele se afastou de

mim e passou as mãos pelos cabelos. Sorri, porque vi que estava

envergonhado e confuso. Se ele soubesse que era o meu amor

por quem eu estava esperando havia tanto tempo, não teria se

afastado de mim. Embora eu respeitasse a sua condição de

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 556 -

padre, pensei Meu grande amor! Queria poder falar isso a ele,

mas tinha que esperar o momento certo, pois éramos de mundos

e crenças muito diferentes. O amor é a mistura de uma série de

coisas. Mas, entre elas, o respeito tem que falar mais alto. Caso

isso não aconteça, as diferenças tornam-se insuportáveis. Temos

a obrigação de sermos sempre sinceros, mas tem que usar a

sinceridade com cautela, porque ofensa nunca foi sinceridade.

Ele ficou ali, contando-me como funcionavam as regras

dentro do convento. Falava com tanto entusiasmo que não quis

interrompê-lo. Seus olhos brilhavam como estrelas. Acho que,

no fundo, ele também tinha necessidade de falar, pois o silêncio

ali dentro era sufocante e insuportável.

Juanita entrou, trazendo-me um caldo de galinha e um

copo de suco de uva. Aquele caldo quente e forte fez-me suar

frio, pois eu estava fraca e sem me alimentar havia muitas horas.

Observando a minha aflição ao comer, a irmã falou calmamente:

– Coma devagar, menina! Se necessário for, trar-lhe-ei

mais um pouco.

Mas a fome era tanta que nem me importei se estavam

me olhando ou reparando os meus modos. Ao terminar, percebi

que a irmã Juanita estava fitando o padre Ângelo, como se o

tivesse interrogando por ele estar me olhando daquela maneira.

Porém, como ele não parava de me fitar, por fim a irmã fez-lhe

uma pergunta na tentativa de tentar tirá-lo daquele transe de

fascinação repentina.

– E então, padre, como andam as ovelhas? Padre, o

senhor está me ouvindo!?

– Hã? Sim, irmã. Estão ótimas. Creio que este ano

teremos muitas crias de primeira linhagem. Fizemos um bom

negócio com aquele fazendeiro quando trocamos aquela ovelha

no ano passado.

Adriana Matheus

- 557 -

Ele falava, mas com o olhar grudado em mim. Essa

maneira indiscreta já estava me deixando sem graça e poderia

nos comprometer. O que era pior: nada havíamos feito de

errado. A irmã, parecendo ter percebido que eu estava

constrangida, argumentou:

– Padre, ficamos muito agradecidas pela sua companhia,

mas a jovenzinha precisa descansar. Não quero que o senhor me

interprete mal, mas está ficando muito tarde e o senhor precisa

ir.

– Sim, sim... Claro, irmã, a senhora está certa. As horas

passaram e nem percebi. É o claustro. Ficamos tanto tempo sem

poder falar aqui dentro que, quando encontramos uma boa

companhia para conversar e que queira nos ouvir, esquecemo-

nos das horas. Perdoe-me, senhorita Anna, retirar-me-ei.

Amanhã passarei aqui para dar-lhe a comunhão e ouvir sua

confissão. Espero que a senhorita durma bem.

A irmã Juanita, porém, tomou a frente nas palavras:

– Padre Ângelo, se preferir, o senhor pode deixar que,

assim que ela estiver melhor, poderá ir com as próprias

perninhas. Não creio que haja necessidade de o senhor vir aqui

amanhã para vê-la.

Ele ficou muito sem graça com os dizeres da irmã

Juanita, pois percebeu que ela havia notado suas intenções

verdadeiras. Ele, então, tentou se retratar, dizendo:

– Imagina! A pobre noviça está acamada e não é bom

que fique sem receber a eucaristia. Também é minha obrigação

como sacerdote levar a comunhão e as bênçãos do Senhor aos

arrependidos e doentes enfermos. Além do mais, esta jovem está

neste convento sob a pena de ter que se confessar todos os dias

para se redimir dos seus crimes através de confissões e orações.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 558 -

– Está bem, padre Ângelo. Faça como o senhor desejar,

então. - disse a irmã, percebendo que não havia argumentos que

o fariam mudar de ideia.

Ele, porém, estava tão encabulado que saiu, sem mais

nada a dizer. Olhamo-nos uma para a outra e arregalamos os

olhos. Irmã Juanita falou, parecendo muito preocupada:

– Parece que temos um sério problema aqui.

– Como assim, irmã? - tentei disfarçar, fingindo não

estar entendendo.

– Olha, senhorita Anna, destas coisas do coração entendo

muito bem. Acredite-me: já passei por isso antes de vir para cá.

Conheço um homem quando está apaixonado. Isso até não seria

mal se ele não fosse o que ele é e...

– E?... Continue, por favor!

– Se a senhorita não fosse uma noviça, ora!

Ela parecia que não sabia totalmente da minha história.

Então, resolvi contar-lhe, pois senti que podia confiar nela.

Quando acabei, deparei-me com uma mulher branca como cera,

que só teve duas reações. Caiu sentada boquiaberta em uma

cadeira e disse, em seguida:

– Santo Deus misericordioso, que história! Eu, que

sempre achei a minha história a mais triste deste convento...

Senhorita Anna, sinto dizer-lhe que está encrencada. Não sei

como e em que posso ajudá-la. As acusações feitas contra a

senhorita são muito sérias.

– Acredita que sou tudo o que falaram de mim? Sei que

mal me conhece, mas acha que eu seria capaz de fazer tamanhas

barbáries? Se fosse tudo isso, acha que eu contaria em confissão

minha história ao padre Ângelo, sabendo que ele pode a

qualquer momento quebrar o sigilo de confessionário para me

entregar ao inquisidor? Ou acha, irmã, que contaria algo tão

pessoal sobre mim, sendo que pode me delatar? Estou correndo

Adriana Matheus

- 559 -

risco, irmã. Sabe muito bem disso. Por favor, pense um pouco.

Se já amou de verdade, deixe que essa essência que ainda está

no seu coração lhe mostre a verdade.

– Deixe-me pensar sobre o assunto. Amanhã lhe

responderei o que acho disso tudo. Nunca passei por tal situação

antes. Tudo isso é muito novo para mim. Envolver-me com uma

bruxa de verdade... Saiba que posso perder a minha vida por

causa da senhorita. Não creio que devesse ter me contado tais

fatos da sua vida. Mas não vou tomar nenhuma decisão

precipitada. Prometo consultar meu coração e pedir a Deus que

não me dê sabedoria e discernimento para saber o que fazer em

relação a esta situação tão delicada. Até lá, fique quieta e não

comente sobre isso a mais ninguém. Porque, se mantiveram

segredo sobre sua história até agora, é porque estão observando-

a ou tem algo a mais envolvido.

– O que acha que pode ser, irmã? - lembrei do meu

amigo Ramon, que me disse exatamente aquilo enquanto

estávamos na prisão, e também das suposições do padre Ângelo.

– Não sei, mas tem alguma coisa errada no meio disso

tudo.

– A única coisa errada que percebi até agora, desde o

primeiro dia em que cheguei aqui, é que os monges comportam-

se como Lorde. Posso jurar ter visto uma espada na bainha de

um deles durante a noite, enquanto descarregava uma carroça

com abóboras. Mas as abóboras que trouxeram não eram

suficientes para o almoço de um dia aqui neste convento.

Percebi, então, que havia monges sendo substituídos. Desciam

dez e ficavam dez. Também reparei que alguns pareciam estar

doentes, pois foram amparados pelos irmãos da ordem.

– É muito perspicaz, senhorita Anna... Está há tão pouco

tempo aqui e já observou tantas coisas. Confesso-lhe que já

ando a bisbilhotar há alguns anos. Tudo começou depois que

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 560 -

um dos abades faleceu, há três anos. Ele era um verdadeiro

carrasco. Houve muitas mortes neste convento, senhorita.

Muitas coisas lastimáveis. Estas paredes choram sangue

inocente.

– Sério? Meu Deus! Que absurdo... Até neste lugar santo

houve torturas?

– Conta-se, às escondidas, a história de um monge que

parece ter traído a Santa Madre Igreja e foi torturado até a

morte.

– Que tipo de traição ele cometeu?

– Não sei dizer ao certo, mas acho que foi porque ele fez

alguma coisa que não condizia com as normas morais da Santa

Madre Igreja. Até o próprio padre Ângelo, dizem, está aqui por

motivos obscuros. Dizem que está se escondendo de algum tipo

de crime.

– Mas o que pode ter sido? Ele me parece uma pessoa

tão sensata!

– Sim, por certo é. Mas a Igreja não perdoa nenhum

deslize de seus seguidores. Sabe muito bem disso, senhorita

Anna. Ainda mais ele, sendo um sacerdote.

– E que tipo de tortura usaram com o monge que foi

assassinado aqui, no passado?

– A roda do despedaçamento.

– Santo Deus misericordioso! Que crueldade...

– Sim. Dizem que houve uma grande multidão

assistindo, e que o infeliz custou a morrer.

– Que gente mais sádica. E depois quem são os maus?

São os bruxos, os ciganos, os judeus, os sodomitas e tantos

outros. Todas acusações levianas para esconder seus próprios

crimes. Acha que algum de nós seria capaz de cometer um

pecado deste? Isso é não só um crime contra a humanidade, mas

Adriana Matheus

- 561 -

também contra o nosso Deus. Vocês, cristãos, pregam uma

coisa, mas procedem de maneira totalmente diferente.

A roda do despedaçamento foi um dos maiores

instrumentos de tortura da santa Inquisição. Era, depois da forca,

a forma mais comum de execução na Europa germânica, desde a

baixa Idade Média até princípios do século XVIII. Na Europa

latina e gálica, o despedaçamento era feito por meio de barras

maciças de ferro e maças, em lugar da roda. A vítima, nua, era

esticada de barriga para cima na roda, no chão ou no patíbulo,

com os membros estendidos ao máximo e atados a estacas ou

anilhas de ferro. Por baixo dos pulsos, cotovelos, joelhos e

quadris, colocavam-se suportes de madeira atravessados. O

verdugo aplicava violentos golpes com a barra, destroçando

todas as articulações e partindo os ossos, evitando dar golpes

que pudessem ser mortais. Isso provava como é fácil imaginar-

se um verdadeiro paroxismo de dor, o que muito divertia a

plateia. Depois do despedaçamento, desatavam o condenado e

entrelaçavam-lhe os membros com os raios da grande roda,

deixando-o ali até a morte, ao cabo de algumas horas ou até

dias. Os corvos, outros sim, arrancavam pedaços de carne e

vazavam os olhos até a chegada do último momento. Esta era a

mais atroz e longa agonia prevista dentre todos os

procedimentos de execução judicial. Assim como a fogueira, o

despedaçamento ou desmembramento era um dos espetáculos

mais populares que tinham lugar nas praças da Europa.

Multidões de plebeus e nobres deleitavam-se ao contemplar um

bom despedaçamento. Na verdade, a desgraça alheia sempre foi

e será uma diversão para a sociedade sádica e hipócrita.

Ninguém que vê o outro caído nas ruas é capaz de juntar-se para

ajudá-lo, mas sim para terem o que falar. Enquanto se divertem

às custas das desgraças alheias, elas se esquecem da própria

desgraça. Falar dos outros era um sinal de poder; rir de alguém

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 562 -

era sinal de soberania - na cabeça deles, é claro. Porque, na

verdade, são fracos e doentes. Pessoas sem instrução, sem nível,

submissas e levianas, escondendo-se por trás da flagelação

alheia.

Juanita, porém, prosseguiu, tirando-me daquele devaneio

de pensamentos:

– Mas isso foi muito antes da madre superiora vir para

cá. Naquela época, quem regia este convento com punhos de aço

era um inquisidor que, segundo me contaram, foi o próprio

diabo encarnado. - ela se benzeu ao pronunciar o nome diabo.

Vendo aquela atitude tão religiosa e infantil, resolvi

perguntar-lhe:

– Por favor, irmã, diga-me: há quanto tempo a senhora

está aqui, enclausurada neste convento? Pelo que percebo, está

há um século neste lugar. A senhora parece saber de tudo o que

aconteceu e, pelo jeito, passou pelos piores momentos de sua

vida aqui dentro.

– Sim, confesso que sim. Vim para cá aos dezesseis anos

de idade, porque meus pais descobriram meu romance com o

filho de um fazendeiro rival à nossa família, cujo nome era José

Navarro. Deste dia adiante, fui obrigada a ficar neste convento.

A princípio, contra as minhas vontades. Mas, depois, acabei me

conformando. Estávamos muito apaixonados, senhorita Anna.

Ele tinha dezoito anos; era só um menino também.

Encontrávamos às escondidas na divisa de nossas fazendas. Ele

era tão especial... Éramos apenas duas crianças descobrindo o

mundo.

Os olhos de Juanita pareciam estar cheios de estrelas, de

tanto que brilhavam. Este amor nunca haveria de morrer e podia

apostar que se encontrariam em outra encarnação. Ela começou

a contar toda a história. Resolvi ficar quieta, ouvindo-a.

Adriana Matheus

- 563 -

– Conhecemo-nos no dia em que minha mãe estava

dando à luz meu irmão caçula, o Pedro Manuel Borges. Minha

casa era construída no alto de uma colina. Tínhamos as ovelhas

mais produtivas de toda aquela região. Naquele dia, não pude

ficar no quarto com as parteiras. Então, saí para caminhar um

pouco. De repente, vi-o pulando a nossa cerca. Corri até ele,

tentando impedi-lo de ultrapassar nossos limites. Mas, quando

olhei em seus olhos, nada pude dizer, pois me vi rendida por

uma força muito maior. Deste dia adiante, passamos a nos

encontrar às escondidas. Mas a história era muito mais antiga

por causa de uma rixa entre nossas famílias - coisa de nossos

avós e bisavós... Éramos uma família livre, senhorita Anna.

Andávamos por todos os lados. Não existiam limites para as

nossas criações pastarem. Mas a família Navarro mudou-se para

a parte mais baixa da colina. Desde então, nossas ovelhas

começaram a desaparecer misteriosamente. De igual modo, o

pasto dos Navarro crescia de um dia a outro. Isso começou a

gerar certa desconfiança por parte da minha família. Meu bisavô

e meu avô tentaram dialogar com os Navarro, que os

expulsaram a balas de suas terras. Minha família não gostava de

confusão. Acharam melhor deixar para lá esta questão.

Cercaram a fazenda e colocaram um capataz com vários

escravos protegendo os arredores, para evitar outras perdas e

danos. Minha família proibiu qualquer contato nosso com os

parentes dos Navarro. Crescemos assim, por várias gerações,

odiando uns aos outros, sem saber como agir e, ignorantemente,

alimentando esse sentimento que nem era nosso, mas sim de

nossos bisavôs. Certo dia, eu e José estávamos deitados e

esticados ao solo, olhando para o céu e conversando. Não

fazíamos nada, senhorita, apenas conversávamos. Foi neste

momento que ouvimos o capataz gritando para que capturassem

José. Pedi a ele que corresse o mais rápido que pudesse, mas foi

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 564 -

atingido pelas costas por uma bala. Corri e tentei acudi-lo, mas

foi inútil. José faleceu em meus braços, deixando-me apenas a

lembrança de um jovem cheio de sonhos e planos. Meus pais,

então, trouxeram-me para este convento. Diziam que a família

dos Navarro havia me enfeitiçado porque eu não queria mais

comer. Mas eu não poderia. Só quis morrer e encontrar o meu

grande amor.

Ela parecia ter uma grande necessidade de pôr para fora

tudo o que estava dentro do peito aqueles anos todos. Depois de

muito fitar o espaço vazio à sua frente, pôs as mãos no rosto,

baixou a cabeça e chorou profundamente. Queria consolá-la,

mas Juanita precisava daquele desabafo. Depois, olhou-me nos

olhos e disse:

– Não tem ideia, senhorita Anna, do que é perder um

amigo, um amor, uma pessoa que a compreendia e, só de olhar

para você, já sabia o seu estado interior. Tiraram-me tudo,

senhorita... Aqui é só o túnel escuro para um caminho sem volta.

Na verdade, sei que sou uma pessoa esquecida pelos meus

parentes. A única que vinha aqui me ver era a minha avó

Teodórcia, mas faleceu há alguns anos. A senhorita vai acabar

se acostumando à solidão e ao silêncio. Tudo na vida é uma

questão de costume.

Ela sorriu tristemente. Prosseguiu:

– O ser humano tem a capacidade de se adequar a várias

situações. A senhorita vai acabar se esquecendo de que tem um

passado, uma história...

– Nunca vou esquecer-me de quem sou. Nunca vou

esquecer-me das pessoas ou das coisas que fizeram parte do meu

passado, por pior que tenha sido. Quero sempre lembrar-me da

minha história. Não quero perder a minha essência no vácuo do

esquecimento, fazendo que, assim, morra a minha alma. Mesmo

que sejam histórias tristes, elas fazem parte da nossa memória. –

Adriana Matheus

- 565 -

respondi, agoniada só de pensar que poderia virar um vegetal

sem memória e estático.

– Viver do passado, senhorita Anna, não é bom. O

passado pertence aos mortos. Deixe que eles fiquem incumbidos

de levarem para o túmulo esta história triste.

– Não vivo do meu passado, irmã. Apenas acho que a

memória não deve ser apagada. Não sou um vegetal. Sou um ser

humano. Quero que meus vestígios fiquem aqui, gravados e

escritos, para que meus descendentes, ou até estudiosos, possam

ver o outro lado da moeda. Nunca cometi tais crimes, irmã, e sei

que minhas outras irmãs também nunca cometeram. A verdade

não pode ser calada. Temos que dar um basta a esse silêncio e

ao medo de ser livre.

Juanita colocou uma caneca de água para mim e saiu,

sem nenhuma palavra dizer. Mas pude ver em seus olhos que

havia uma semente plantada naquele coração. Fiquei olhando os

raios de luar que entravam no quarto. Pareciam formar figuras

como uma sacristia. Sabia que podia ser um sinal: tudo nos fala

na magia, mesmo que silenciosamente. O sono veio e adormeci

quase que de imediato.

Quando o dia amanheceu, dei uma espreguiçada ainda de

olhos fechados. Meu corpo estava bem descansado. Mas, de

repente, abri os olhos e dei um pulo na cama quando me lembrei

de onde estava. Já estava colocando os pés no chão quando senti

uma mão tocar meus ombros... Imaginei que já era a irmã

Manuelita a me chamar para o trabalho. Então, quando olhei

para trás, tive uma grande surpresa.

– Olá, senhorita Anna! Como passou a noite?

Sorri espontaneamente. Era Wallejo, que estava atrás de

mim, olhando-me com os olhos que mais pareciam duas pedras

preciosas de tão brilhantes que estavam.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 566 -

– Dormi muitíssimo bem, padre Ângelo. E o senhor,

como passou a noite?

– Não tão bem como a senhorita.

– Sério? Por quê? Houve algo de inesperado no decorrer

da noite que o fez ficar assim, tão apreensivo e com insônia?

– Não, nada disso. Não dormi bem porque a senhorita

não me saiu do pensamento a noite toda. Passei a noite pensando

nas coisas que me contou. Não sabia qual decisão tomar. Não

posso sequer lhe dizer que passei a noite a rolar na cama, porque

nem mesmo sobre ela deitei-me.

– Como assim? Está pensando em me denunciar? Saiba

que nunca neguei que sou uma bruxa. E tão pouco vou deixar de

sê-lo.

Levantei-me da cama e fui para frente dele. Seus olhos

estavam grudados nos meus e brilhavam. Apontei o dedo bem

em seu nariz e prossegui:

– Acha que por que o senhor é um padre pode me

intimidar? Sou uma mulher forte. Nem que me cozinhe viva vou

negar quem sou. Escolhi este caminho, padre Ângelo, e nem o

senhor e nenhum outro ser humano sobre esta terra vai mudar o

meu jeito de ser e a religião que escolhi só porque pensam

diferente de mim. Saiba que isso não quer dizer que esteja

errada.

Ele me olhou com um ar surpreso e respondeu:

– Não é nada disso, senhorita Anna. Não tenho a

intenção de mudar a sua maneira de ser. Não estou aqui para

questionar a sua crença. Mas, se a senhorita me der um minuto

para eu poder falar, poderei explicar-me melhor.

Fiquei curiosa e sem graça. Nunca procedi daquela

maneira com ninguém. Principalmente sendo Wallejo um padre,

eu poderia pôr tudo a perder. Ele poderia considerar uma ofensa

insubordinável. Tentei retratar-me, respondendo:

Adriana Matheus

- 567 -

– Desculpe-me, padre Ângelo. Não sei porque procedi

desta maneira. Mas, agora que me deixou curiosa, poderia me

dizer o porquê de não ter conseguido dormir à noite?

Ele enrolou as mãos umas nas outras, respirou e, por fim,

pareceu que ia sair um som daquela boca. Wallejo estava

tremendo. Disse-me:

– Eu... Não sei o que está acontecendo comigo, senhorita

Anna. Não quero levar para o lado da fé, pois vou achar que a

senhorita me enfeitiçou. Estou me sentindo perdido.

– Acha realmente isso de mim, padre Ângelo? Saiba que

não estou entendendo aonde o senhor quer chegar. Nunca faria

um sortilégio, mesmo porque não teria como fazê-lo neste lugar,

sendo que nem tempo para as refeições me sobra.

– Senhorita Anna, por favor, deixe-me terminar... Já me

está sendo difícil demais prosseguir. Nunca em toda a minha

vida senti algo assim por alguém. Até anteontem, quando foi ao

confessionário, ainda achava que o amor era apenas uma ilusão

na cabeça dos tolos e dos poetas. Mas, depois que me confessou

toda a sua história, fiquei com uma espécie de ódio e tristeza no

peito... Ódio porque sigo severamente os passos de Cristo e sei

que uma bruxa, como você diz ser, não amaria Cristo com

sinceridade.

– Quem disse tal absurdo ao senhor?

– Por favor, senhorita, deixe-me prosseguir... E também

tristeza porque sei que os nossos caminhos nunca poderiam ter

sido cruzados, principalmente aqui, em um convento, onde as

normas são totalmente rígidas. Tentei lutar contra mim mesmo e

contra todos os meus princípios. Depois, quando a senhorita saiu

pisando duro, quis matá-la, mas caí foi na gargalhada. Nunca

havia conhecido uma pessoa tão impetuosa e corajosa ao mesmo

tempo. E quando voltou ontem, pela manhã, ao confessionário,

tinha tanto a lhe dizer... Mas meu coração morreu quando a vi

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 568 -

cair ao chão. Pensei tê-la perdido para sempre. Por isso, fiquei

como um cão, sentado ali, do lado de fora, esperando que

acordasse para falar-lhe dos meus sentimentos.

Gelei. Estava prestes a ouvir a maior confissão da minha

vida, e só queria desmaiar de novo. Ele prosseguiu:

– A cada minuto, minha agonia aumentava. Tenho a

necessidade de falar-lhe do meu sentimento. Caso não o faça,

morrerei a cada instante de minha vida.

– Padre... Não prossiga, não faça isso. Conheço os seus

sentimentos e acredite: os meus são de igual tamanho. Mas

temos caminhos diferentes a seguir. Não quero prejudicá-lo de

forma alguma. O risco para um sentimento como o nosso é

perigoso demais, mesmo porque não vamos conseguir ficar sem

nos tocar.

– Senhorita...

Ele se aproximou e segurou-me pelos ombros, puxando-

me para junto de si. Olhando fixamente nos olhos, disse-me:

– Eu... Não sou quem pensa... Eu... Sou um cavaleiro e...

Ele ia me beijar antes de prosseguir, mas... Naquele

momento, que parecia único, Juanita entrou e, aos nos ver tão

próximos, disse:

– Espero não estar interrompendo nada!

Wallejo levou um susto! Com isso, empurrou-me

abruptamente e, em seguida, saiu sem se despedir de ninguém.

A irmã Juanita arregalou os olhos, sem entender aquela atitude,

e perguntou:

– O que aconteceu neste quarto? Espero que a senhorita

não tenha extrapolado ao ponto no qual estou a pensar.

– Não aconteceu absolutamente nada, irmã. Mesmo

porque a senhora irmã entrou no exato momento.

Contei-lhe tudo nos mínimos detalhes. Ela respirou

profundamente e sacudiu a cabeça. Disse-me:

Adriana Matheus

- 569 -

– Não sei quem dos dois é o mais louco: a senhorita ou

ele. E o que é pior: sei que sobrará para mim. Sou cúmplice de

um romance proibido entre uma bruxa e um monge. Deus tenha

misericórdia de minha alma.

– Desculpe-me, irmã. Não queria envolvê-la nessa

situação.

– Terão que ter mais cuidado com as outras irmãs. Aqui

dentro, as paredes têm olhos e ouvidos. Desculpe minha

indiscrição, senhorita, mas quando entrei pude ouvir o que o

padre Ângelo dizia. Estou me referindo a quando ele lhe disse

que era um cavaleiro. Isso ressalta a minha desconfiança sobre o

que conversamos ontem.

– O quê? Como assim?

– Estou falando sobre o padre Ângelo estar envolvido em

alguma coisa ilícita. Ele mesmo disse à senhorita Não sou quem

a senhorita pensa... Sou um cavaleiro. Se ele não é um monge,

então é um usurpador e está aqui disfarçado. Santo Deus, será

que ele é um criminoso? Isso aguça ainda mais as minhas

suspeitas.

– Como assim? Ainda não a compreendi.

– Ora, mulher, está muito claro: ele acabou de dizer-lhe

que não é quem você estava pensando. E se este homem for um

criminoso?

– É verdade... Definitivamente, irmã, há algo muito

estranho acontecendo neste convento. E por que será que a

madre superiora tem sido conivente com esses fatos?

Sinceramente, não consigo pensar que o padre Ângelo possa ser

um criminoso. Deus não iria me colocar em uma situação tão

difícil como essa. Mas prometo que vou investigar isso

minuciosamente.

– Também eu. Imagina! Se tem algo acontecendo neste

convento, quero saber o que é. Definitivamente, senhorita Anna,

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 570 -

depois que a senhorita veio para este convento, minha vida ficou

muito mais emocionante. E a senhorita só está aqui há alguns

dias. Minha nossa! A vida ao seu lado é definitivamente muito

intensa.

– Isso quer dizer que a senhora aceita a minha amizade?

– Não sei, mas confesso que nunca tive em minha vida

tantas emoções intensas assim. Definitivamente, a senhorita

sabe transformar as rotinas em algo muito excitante.

Não falamos mais sobre o assunto. Juanita levou-me para

a sala de coser. Passei toda a tarde ali, e até gostei de fazer os

bordados. Mas minha cabeça não parava de pensar em Wallejo.

A cada instante, mais intrigada eu ficava. O que poderia aquele

homem estar escondendo? Conhecia-me muito bem e sabia que,

enquanto não descobrisse, minha vida seria um inferno. Fui para

o refeitório às duas da tarde. Não me colocaram para lavar a

louça, porque minha mão ainda estava enfaixada. Eu estava

tomando minha sopa de legumes quando aquela voz perguntou-

me, em um tom que mais parecia um sussurro:

– Posso sentar-me aqui?

Levantei meus olhos e senti minhas pernas tremerem.

Dava para ouvir os barulhos que faziam meus joelhos batendo

um no outro.

– Hã? Sim, claro, padre Ângelo.

Fiquei ali, parada, com a colher de sopa que não entrava

nem saía da boca. Por fim, resolvi falar para quebrar aquele

clima de constrangimento.

– Diga-me, padre Ângelo, o que o traz aqui?

– Precisamos terminar a nossa conversa desta manhã.

– Quando o senhor quiser, estarei disponível.

– Então, amanhã a espero no confessionário.

– Acho que pode ser arriscado, padre. Afinal, sabemos

qual será o rumo que esta conversa tomará.

Adriana Matheus

- 571 -

– Acha que não consigo controlar meus impulsos?

– Não quis ofendê-lo. Só acho que o senhor, por ser um

padre, não deveria querer falar com uma mulher a sós. E logo

eu, que sou uma... O senhor sabe bem o que quero dizer.

– Quero falar-lhe também sobre isso.

Ele estava quase debruçado em cima da mesa. A irmã

Imaculada estava prestando atenção a tudo, embora não pudesse

ouvir-nos. Por fim, tive que dizer-lhe:

– Padre, por favor, controle-se! O senhor está fora de si?

Ele sorriu e respondeu:

– A senhorita enfeitiça-me. Está enlouquecendo minha

alma! Estou a perder a razão por você.

Senti meu rosto corar e queimar como brasas de fogo.

Como é complicado ser uma bruxa e ainda estar apaixonada

por um padre!, pensei comigo. Estava me vendo sem saída

mediante aquela atitude inesperada. O amor havia se aliado ao

destino, e ambos estavam caçoando de mim - só poderia ser

isso! Precisava ter muito autocontrole por nós dois, pois Wallejo

estava totalmente guiado pelos impulsos carnais. Estava como

um lobo na época de acasalamento. Os homens são assim: não

agem racionalmente, mas por impulsos. Isso serve em qualquer

situação, tanto emocional quanto financeira. Eles tomam a

primeira decisão que lhes vem à mente. E são orgulhosos

demais para admitirem quando erram. Poderia dizer que estava

muito feliz, não precisava de mais nada. Mas não era bem assim.

Se alguém percebesse quais eram as intenções de Wallejo,

poderíamos ser acusados de fornicação. Por fim, Wallejo

percebeu que a irmã Imaculada estava atenta a tudo o que

conversávamos. Então, retirou-se da cozinha, afirmando que

estaria me esperando na sacristia, no dia seguinte.

O restante da tarde passou rapidamente. O amor havia

invadido o meu ser. Era como se eu pudesse voar sem sair do

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 572 -

chão. Minha alma estava comungando com o universo. Se o

mundo acabasse, morreria feliz. Meu eu estava amando, e sabia

que era correspondida. Daria a vida por ele. O ar que eu

respirava vinha dele. Queria gritar para todos saberem como

estava o meu coração.

Fui para a minha cela sozinha. Desta vez, ninguém me

acompanhou. Também pude observar que não trancaram minha

porta pelo lado de fora, como de costume. Parecia que as freiras

estavam confiando um pouco mais em mim. A primeira coisa

que notei de diferente quando entrei foi que havia um pedaço de

pão de milho e um girassol sobre a mesinha. Quando peguei o

pão para comer, notei que dentro dele tinha um bilhete. De

imediato, peguei-o e um delicioso cheiro de sândalo invadiu o

ar. Fez-me lembrar de Edward, trazendo o meu passado todo à

tona, como uma realidade presente. Incrível como um simples

aroma podia trazer lembranças tão remotas à tona! A mente é

fantástica, capaz de criar imagens e lembranças através de um

simples aroma... Isso é o poder da magia. Ela está em tudo. É só

prestar atenção aos pequeninos detalhes.

Abri aquele bilhete. Foi como se o mundo estivesse aos

meus pés. Senti-me tão feliz, tão forte... tão grande! Meu peito

parecia que iria explodir de tanta felicidade. Senti meu coração

bater dentro do peito de maneira descompensada. Esse era o

mais puro sentimento de felicidade que alguém poderia sentir. O

bilhete estava escrito em papel amarelo. A caligrafia era

perfeita, parecia ter sido desenhada nos mínimos detalhes. As

palavras contidas eram:

Espanha, vinte e dois de julho de 1819.

Senhorita Anna,

Adriana Matheus

- 573 -

Acredito que deva estar confusa, tanto como eu. Sinto como se meu coração fosse explodir se não lhe falasse tudo isso que está dentro de mim antes de amanhã - sendo que amanhã poderemos não ter muito tempo para falarmos, pois sempre estamos sob a mira de olhos que vivem a nos vigiar... Estou em prantos e não é de tristeza, mas de pura felicidade: estou me sentindo como um menino tolo e irracional. Tolo porque acabei de ganhar um presente há tanto esperado pelo meu coração. Irracional porque não sei mais como proceder mediante tal situação, que me impulsiona a cada momento para os seus braços.

Hoje estava no campo de girassóis e o cheiro deles lembrou-me o cheiro dos seus cabelos no primeiro dia em que a vi sentada, cabisbaixa, no banco frente à sala da madre superiora. A senhorita parecia uma miragem no deserto. Quase pensei que estivesse sonhando ao vê-la. De imediato quis tocá-la, senti-la. Mas, naquele momento, só pude me contentar com a sua doce presença. Depois disso, venho lutando contra os meus princípios e contra tudo o que aprendi neste convento. Mas, infelizmente, não pude mais me conter: esse sentimento, aqui dentro do meu peito, gritou muito mais forte do que pude resistir. Perdoe-me pela ousadia das palavras em lhe falar dos meus sentimentos assim, tão inesperadamente...! Durante toda minha vida, busquei um caminho através da religiosidade. Mas só encontrei minha luz e esperança agora, no brilho dos seus olhos.

Anna, minha doce Anna! Meu peito grita, minha alma grita! Sinto que posso voar sem asas... Sinto-me menino, inconsequente, inexperiente. É como se eu tivesse que voltar a aprender a andar. É tudo muito novo. Nunca senti

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 574 -

nada assim antes. Juro. Mas estou tão feliz que poderia perder o ar! Não quero saber das consequências. Enfrentaria o mundo pela senhorita. Acredite.

Quando olhar este girassol, lembre-se de mim, mesmo que um dia o destino venha a nos separar... Esta flor sempre será o elo entre mim e a senhorita.

Amo-a loucamente, desesperadamente. É a minha vida, o ar que respiro. Desde o primeiro instante em que a vi, senti que não mais poderia viver sem a senhorita. Não sei se o que sente por mim é o mesmo... Mas sei que, se não confessasse este sentimento, não poderia mais ter um dia de sossego. Aguardo-a amanhã na sacristia, minha flor.

Amo-a, amo-a, amo-a...

A.W.M.

Não sabia o que pensar. Fiquei surpresa, apreensiva e

maravilhada ao mesmo tempo. Todos os sentimentos do mundo

estavam dentro de mim. Um nó formava-se dentro do meu

estômago. Temia por ele. Sabia que, se fôssemos pegos, seria

duro o castigo que nos seria imposto. Mas ele, como um

sacerdote, poderia sofrer ainda mais. Meu amor... Tudo o que eu

queria era ser feliz ao lado dele, mas os nossos universos eram

completamente diferentes. Oh! Destino cruel... Era como se uma

espada transpassasse minha alma. Estava feliz como nunca, mas

também estava insegura - não pelo seu sentimento em relação a

mim, mas pelo futuro que nos esperava. Sabia que, quando

estamos apaixonados, comportamo-nos inconsequentemente.

Caí por terra, de joelhos. Naquela noite, orei como nunca havia

feito em toda a minha vida. Pedi a Deus que me desse

discernimento e sensatez para tomar uma decisão sábia e

Adriana Matheus

- 575 -

correta. Nem me dei conta que, de tanto orar, acabei

adormecendo em um cantinho da parede, debaixo da janela.

Quando acordei no dia seguinte, estava com o corpo em

frangalhos e cheia de dores. Arrumei-me rapidamente, pois

precisava estar na sacristia antes que o galo cantasse. Ainda era

alta madrugada, mas queria estar na sacristia o quanto antes.

Embora ansiosa e apreensiva com toda aquela situação, saí da

cela calmamente, caminhando pelo corredor, que parecia não ter

fim. Das outras vezes, saíra tão apressada que nem me dei conta

do quanto brilhava aquele chão. E ao pensar que no sábado teria

que lavá-lo novamente... Mãe de Deus! Estava sendo irracional.

Estava tentando tirar da minha mente o que estava para

acontecer... Ia encontrar com o meu amor e comecei a pensar

no chão, para ver se parava de tremer tanto! Às vezes, quando

uma mulher está ansiosa demais, sua cabeça fica confusa e cheia

de pensamentos desconexos.

Desci as escadas apressadamente. Atravessei o patíbulo,

alcançando rapidamente o trajeto que dava para a igreja. Subi

aqueles degraus tão rapidamente! A igreja estava vazia, para

meu espanto. Fiquei imaginando que ele tinha desistido.

Engraçado: quando estamos amando, damos visão a detalhes

que nunca pensaríamos em observar. Até o meu respirar estava

diferente: era profundo e, ao mesmo tempo, leve. Minha boca

estava cheia d’água. Era a sensação mais estranha que já havia

sentido em toda a minha vida terrena. Havia uma espécie de

vazio no meu estômago, e não era de fome. Era bom e

estranho... Uma mistura do real e do imaginário. Uma sensação

de tonteira invadia meu corpo.

Fiquei ali, de pé, no meio daquela igreja, olhando o teto

minuciosamente. Era tão simples e harmonioso em detalhes que

mais parecia sonho... Seus anjos pareciam dançar e sorrir para

mim. Estranho ele não estar ali. Será que houve alguma coisa?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 576 -

Comecei a ficar preocupada. Fui até a sacristia e abri a cortina.

Não vi ninguém. Quando virei para trás, dei um grito!

– Padre! Quer me matar? – disse eu, com a mão ao

coração.

– Não desta forma! – sorriu, maliciosamente.

Senti-me corar. Um calor percorreu meu corpo como um

raio. No entanto, ele prosseguiu:

– Entremos no confessionário, por favor! Não é

conveniente que nos vejam a falar aqui fora.

Fiz o que ele sugeriu. Fiquei dentro do confessionário.

Ele foi para a parte onde ficam os padres. Só podíamos nos ver

por entre a tela que nos separava.

– A senhorita leu?

– Sim, li. - falei com voz quase trêmula. A presença dele

entorpecia-me os sentidos.

– Não dormi muito bem esta noite. A senhorita não me

saía do pensamento.

– Sabe que não deveria falar destas coisas comigo, padre

Ângelo.

– Desculpe-me, senhorita Anna, mas hoje sou eu quem

vai confessar os pecados aqui. Por isso, peço-lhe que apenas me

ouça, por favor! Se depois do que eu lhe contar ainda nada

quiser comigo, prometo sair de vez da sua vida.

– Compreendo.

Baixei a cabeça pesarosamente, pois não sabia o que

poderia sair daqueles lábios que, naquele momento, eu só queria

tocar com os meus. Mas, se ele dissesse fuja comigo, não

pensaria duas vezes. Meu coração parecia que ia saltar pela

boca. Ele começou a falar e gaguejava tanto que eu mal podia

entendê-lo. Deus, pensei, não deixe que ele seja um inquisidor.

Não de novo! Wallejo, depois de muito pensar na maneira

correta com que iria me contar o seu segredo, prosseguiu:

Adriana Matheus

- 577 -

– Escolhi o caminho da fé pela espada, e a Igreja traiu-

me pela ambição de seus superiores. Éramos muitos, mas fomos

traídos. São poucos os que nos dão abrigo. Estamos espalhados

pelo mundo. Refugiados, por assim dizer.

– Então, você é um cavaleiro da ordem, é isso o que está

tentando me dizer?

– Sim. Sou sim.

– Então, o que eu vi pela minha janela na noite em que

cheguei aqui faz sentido. Vocês estão refugiados neste convento

por qual motivo?

– Sim, mas não deveria ter visto nada. Os homens que

observou eram soldados da fé, estavam muito feridos.

Diariamente, trazemo-los aqui para curarem as feridas. Quando

se restabelecem, trocamo-los por outros que precisam de igual

tratamento. É assim que voltam para a batalha. Temos um

acordo com a madre superiora. Protegemos o convento dos

invasores. Em troca, elas cuidam de nós, dão-nos abrigo e

alimento, e também curam as feridas dos nossos soldados.

– Mas sobre que tipo de batalha o senhor está falando, se

acabou de me dizer que são desertores?

– A batalha silenciosa contra a Santa Madre Igreja,

senhorita. Descobrimos que estávamos matando muitos

inocentes em nome de Deus.

– Desculpe-me. Não queria parecer uma bisbilhoteira,

mas estava à janela naquela noite.

– Evite, senhorita. Quanto menos souber da ordem e do

que se passa aqui dentro, melhor será para a senhorita.

– Não sei muito sobre a sua ordem. Apenas o que ouço.

– Então, quanto menos souber, melhor.

– E quem são os cavaleiros, afinal? O que fazem de tão

secreto?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 578 -

– Posso apenas resumir a história, mas nunca confiá-la a

você, entende? Somos uma ordem secreta e devemos sigilo e

fidelidade uns aos outros. Fizemos um juramento de lealdade e

silêncio. Prometa-me que nunca irá me trair, mesmo que eu lhe

fale muito pouco sobre a ordem! Prometa-me que esse assunto

será esquecido pela senhorita para todo o sempre assim que eu

lhe contar o que acho necessário para que me conheça melhor.

– Sim, prometo, lógico que prometo.

– Então, escute com atenção: a Ordem dos Pobres

Cavaleiros de Cristo do Templo de Salomão é também

conhecida como Ordem dos Cavaleiros Templários. Existimos

já há 200 anos. Tudo começou quando um grupo de nove

cavaleiros decidiu defender a Terra Santa dos Sarracenos e

transformou-se, mais tarde, na maior e mais poderosa

organização secreta da nossa história. Estes monges guerreiros

que a senhorita viu possuem muitos tesouros religiosos,

incluindo, assim por dizer, a coroa de espinhos de Jesus Cristo.

Há um pensamento errôneo sobre nós, o de que somos também

os guardiões daquele que, para a maioria, seria a maior relíquia

Cristã: o Santo Graal.

– E vocês não são?

– Não, nem nunca o vimos. Deixe-me continuar, por

favor! Os Templários possuem uma riqueza incomensurável. Os

reis da Europa vivem negociando-nos empréstimos, pois

criamos muitos aspectos fundamentais do sistema financeiro.

Contudo, por sermos fiéis, fizemos votos solenes jurando

pobreza. Os membros individuais desta sociedade secreta são

paupérrimos, acredite-me. Andam a tentar destituir-nos e há um

boato sobre as reais intenções de Filipe, rei da França, o Belo.

Por isso, refugiamo-nos em conventos. Assim, ainda não

desconfiaram de nada. Filipe tem uma enorme frota atracada em

La Rochelle. E há alguns anos, os membros da ordem

Adriana Matheus

- 579 -

simplesmente vêm desaparecendo. Creio que, enquanto não for

declarada uma guerra real contra nós, também não nos

manifestaremos em nossas reais intenções. Mas estamos sob

alerta, caso haja uma traição ou emboscada repentina. Nunca

sequer vimos o Santo Graal, mas isso é o que nos protege e

mantém a ordem viva, por enquanto. Nossos inimigos não

sabem disso. Há boatos de que existimos secretamente, mas isso

não está fundamentado pelos poderosos, pois eles acham que

somos uma lenda e nada mais. O fim da nossa ordem Templária

foi anunciada com a execução do nosso último Grão mestre,

Jacques de Molay, que foi queimado vivo em Paris, em 1314.

Esse fato fez com que muitos acreditassem na nossa extinção.

Mas, pessoalmente, acredito que seja apenas um boato

infundável. Acredito que ele mudou simplesmente seu nome e

continuou vivo anonimamente. Possivelmente, ainda existem

herdeiros dele espalhados pelo mundo afora.

– Acha mesmo que ele pode estar vivo, então?

– É quase uma certeza, senhorita, assim como estou aqui,

contando-lhe tudo isso. Há citada evidência que liga figuras

famosas da história mais recente com a Ordem centenas de anos

após ela ter cessado oficialmente. Embora todos pensem que

somos uma lenda e já não existimos mais, há provas - como o

senhor Isaac Newton, que foi nomeado como sendo um de nós.

O grande explorador português Vasco da Gama viajou com as

insígnias transversais dos Templários nas suas velas, como

Cristóvão Colombo também. Há evidência de que nós, os

Templários, descobrimos a América oitenta anos antes de

Cristóvão Colombo. Mas, como Cristóvão Colombo foi quem

fincou a bandeira naquelas terras – confirmando, assim, seu

descobrimento-, conseguiu ser, então, com isso, o intitulado

descobridor. Mas, senhorita, houve tantos outros... Deveria

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 580 -

saber essas coisas, pois percebo que é uma mulher muito

instruída. Basta que observe pelo menos os sinais.

– Sim. Agora, ouvindo o senhor contar, percebo com

clareza que, na verdade, nunca deixaram de existir.

– Estaremos sempre no mundo. Nunca nos exterminarão.

Talvez, com o passar dos anos, até tenhamos que mudar o nome

da ordem. A senhorita não sabe a honra que é para nós ser um

Templário.

Percebi, pelo tom de voz, o quanto Wallejo falava com

real sentimento pela ordem que ele seguia não só com destreza,

mas também com o coração.

– Quando a notícia do nosso sucesso por parte das

cruzadas chegava à Europa, houve uma grande exaltação. Dos

locais mais remotos do continente, peregrinos punham-se em

marcha rumo à Terra Santa, esperando ver a cidade onde tantos

episódios da vida de Jesus Cristo haviam desenrolado. Mas estas

peregrinações começavam a criar consideráveis problemas para

os governadores de Outremer, o nome francês para terras do

ultramar ou além-mar. Um reino cristão foi rapidamente

estabelecido para delinear os territórios conquistados durante a

nossa primeira Cruzada. Mas não nos trouxe paz para a região.

Os cristãos continuavam cercados por estados islâmicos hostis.

Os turcos e os muçulmanos, que perderam muitas das suas terras

para os cristãos, não estavam dispostos a simplesmente desistir.

Em cinquenta anos, os turcos sarracenos tinham feito severas

investidas no Novo Reino. Havia ataques contínuos e assaltos às

habitações cristãs. Os descontraídos peregrinos, viajando por

terra desde a costa até Jerusalém, eram particularmente alvos

fáceis. Em um único incidente em 1119, por exemplo, um grupo

de peregrinos foi cercado por bandidos sarracenos e foram

mortos cerca de 300 homens. Em 1120, guerras entre sarracenos

podiam ser observadas na parte exterior das muralhas de

Adriana Matheus

- 581 -

Jerusalém. Mas, nesse tempo, muitos dos cruzados originais

tinham regressado com as suas riquezas saqueadas para a

Europa. A missão do Santo Papa para recapturar a Cidade Santa

estava completada. O nosso trabalho estava feito. Com isso, não

tínhamos mais nenhuma valia. Aí, começaram a nos explorar e

usurpar nossas riquezas. Somos pobres cavaleiros porque

também somos monges. Fizemos os votos usuais de pobreza,

castidade e obediência para com os nossos superiores. Durante

as cruzadas, éramos frequentemente ilustrados em pares,

cavalgando em um único cavalo. A noção heroica dos nove

destemidos monges guerreiros, valentemente defendendo os

peregrinos em viagem contra as investidas muçulmanas, não

deixou de apreender a imaginação das pessoas. Mas, nesse

tempo, houve uma selvagem campanha dos cruzados para

capturar a Terra Santa, que foi perfeitamente aceitável. A

terrível carnificina infringida aos muçulmanos durante a própria

cruzada tinha sido abençoada pelo Papa em nome de Deus.

Muitos de nós, como eu, não concordávamos com isso, mas

tínhamos que obedecer os nossos superiores. O povo passou a

ter uma ideia errada de nós. Alguns começaram a imaginar os

Templários com uma reverência romântica e ofereciam-se como

novos recrutas. A Ordem crescia lentamente no início. Depois,

mais célere. Para cada cavaleiro no terreno, havia ao lado dele

dois ou três sargentos. Estes eram homens que ainda não tinham

um compromisso definitivamente firmado com os templários.

Poderiam ser guerreiros sargentos-de-armas, ou podiam servir

de uma maneira mais pacífica em certas casas ou Conventos dos

Templários. Mantendo sempre o compromisso de pobreza, os

cavaleiros usavam roupa simples, que contrastava com o

ornamento. Usávamos uma cobertura lisa de cor branca que,

posteriormente, adornamos com a famosa cruz vermelha, que

significa a nossa pureza e dedicação. Em campanha, nós, os

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 582 -

templários, em nossos cavalos de guerra, usamos armaduras de

malha metálica. Nossos sargentos usam armadura mais leve.

Podemos combater em terra, se necessário for. De regresso à

casa, os Cavaleiros Templários receberam o apoio do mais

poderoso professor de moral da Europa. Esse homem era

Bernardo de Clairvaux. E o apoio e evangelização de Bernardo

levaram-nos à que se constitui como uma ordem com benção do

Papa, em 1129. Começaram a nos ver na Europa como novos

heróis em consequência dessa medida. Com a benção oficial do

Papa, nós, Cavaleiros do Templo, podíamos ativamente começar

a recrutar novos membros. Foi assim que a nossa ordem cresceu

em tal proporção. O mais importante: ainda podíamos começar a

ganhar dinheiro. Confesso que isso não foi nada mal. Os

representantes da ordem foram enviados através da Europa

numa campanha para angariar donativos para a causa. Poucos de

nós perceberam o quão fácil isso iria se tornar. A tarefa dos

Templários tornou-se famosa através da Europa. Éramos vistos

como nobres guerreiros, defensores da Terra Santa, contra os

odiosos sarracenos. Estes indivíduos eram ainda humildes e

verdadeiros devotos a Deus. Assim, como outros, usaram as

cruzadas como uma oportunidade para encherem os bolsos. Mas

os outros Cavaleiros peculiares juravam votos de pobreza e

castidade. Era injusto e, por certo, foram esses ambiciosos

homens que traíram a nossa ordem. A nossa lendária bravura era

tipificada num outro voto. Eram expressamente proibidos de se

retirarem do campo de batalha, a não ser que a inferioridade

numérica fosse de três para um. Donzelas jogavam-se a nossos

pés. Muitos de nossos homens traíram pelo desejo de estarem

com uma mulher. Esses foram poucos. Uns foram executados,

outros fugiram com suas amadas pelo mundo afora. Juntamos

fortunas, tanto em ouro como em propriedades. Poucos foram

tão generosos com o rei Afonso I de Aragão, que à sua morte,

Adriana Matheus

- 583 -

em 1134, testamentou que nos fosse concedido um terço de todo

o seu reino no Nordeste da Espanha. As pessoas mais pobres

davam tudo o quanto pudessem. Tomando um exemplo, entre

centenas, em 1141, Conan, duque da Bretanha, deu à Ordem

uma pequena ilha da costa Bretã, e também uma renda anual de

boa parte das suas propriedades na parte Norte da França.

– Por que as pessoas estariam preparadas para dar seu

dinheiro e propriedades em favor da Ordem? – perguntei,

curiosa.

– Sei que lhe passou isso à cabeça. Sem dúvida, ofertas

de caridade com intuitos religiosos eram vistos como uma via

para ganhar a salvação depois da morte. Efetivamente, as

pessoas achavam que estariam comprando o seu lugar no céu.

Mas, também, sob a influência de padres poderosos, como é o

caso de Bernardo, os objetivos limitados da Ordem no Oriente

eram exagerados até que o seu papel foi visto como os

defensores da cristandade num todo. As pessoas colocavam as

mãos bem no fundo dos seus bolsos. No fim do décimo segundo

século, William de Tyre escreveu: não existe, neste momento,

uma região no mundo cristão que não tenha transferido uma

parte das suas riquezas para estes irmãos. Tudo isto contribuiu

para aumentar consideravelmente o número dos Templários.

Não somente precisavam de cavaleiros e de irmãos para tomar

conta das suas casas na Europa, como 300 novos Cavaleiros

tinham partido para o Médio Oriente nos finais de 1120.

Posteriormente, continuou a haver um fluxo contínuo, assim

como a sua posição era vastamente fortalecida em 1139, quando

o Papa Inocêncio os libertou de qualquer superior real. Daí em

diante, éramos apenas questionados pelo próprio Papa. Ninguém

queria proteger o Papa como o seu Mestre. Como muitos

esperavam, com tamanha acumulação de riqueza e poder, a nova

Ordem tinha os seus críticos. Não tendo que prestar contas a

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 584 -

ninguém, era frequentemente acusada de arrogância. E os seus

negócios, conduzidos em segredo, fizeram transpirar profundas

suspeitas acerca das suas atividades. Muitas figuras religiosas

reprovavam o seu desempenho de guerreiros de Cristo. O que

poderia ser menos cristão do que massacrar seres humanos

numa batalha, ou saquear cidades? Rumores persistentes

também se espalharam, dizendo que a nossa atividade principal

era secreta e esotérica. Como Guigo, um famoso monge

europeu, escreveu para a nova Ordem em 1129: é inútil para nós

atacarmos os inimigos exteriores sem que, primeiro, tenhamos

conquistado aqueles que estão no interior. Nós, Templários,

obtivemos uma reputação de sincretismo. Mas os que nos

apoiavam em muito superavam os detratores, tanto em número

como em autoridade. Assim, a ordem prosperou no oriente e no

ocidente. Entretanto, foi somente com a segunda cruzada de

1147 que nós, Cavaleiros Templários, tornamo-nos realmente

proeminentes. Em meados do século XII, o controle cristão na

Terra Santa encontrava-se fragilizado. Em 1147, o rei alemão

Conrad III e Luis VII, da França, apelavam a uma segunda

cruzada para fortalecer o reino cristão no oriente. O Papa

Eugenius III deu a esta campanha a sua benção, e Bernardo de

Clairvaux clamava apoios em seus sermões. Na altura da

segunda cruzada, os Templários da Europa estavam em situação

de enviar várias centenas de cavaleiros para Outremer. A

experiência adquirida a proteger peregrinos ser-lhe-ia de total

importância para proteger a missiva armada europeia na sua

movimentação através da Terra Santa. Os Templários ganharam

a confiança dos líderes reais das cruzadas, com o apoio

financeiro e militar. Mas esta segunda cruzada tornou-se um

desastre. Os franceses e alemães sofreram graves perdas nas

suas batalhas com os turcos. Em fins de janeiro de 1148, os

cruzados estavam severamente enfraquecidos e praticamente

Adriana Matheus

- 585 -

sem cavalos. Luis VII regressou à sua casa, assumindo a grande

responsabilidade pela campanha dos Templários. Mas, depois

dos desastres que ocorreram durante a segunda cruzada, os

europeus sobreviveram intactos. E, é claro, os Templários

estavam ali para ficar. Estes eram ricos em propriedades, e

ganharam grande parte de território pela conquista. Nos terrenos

desertos do Médio Oriente, estabeleceram uma cadeia de

fortificações. Por volta de 1180, nós, Cavaleiros do Templo,

tínhamos uma rede de castelos para nos defender contra

invasões e podíamos agir como depósitos de mercadorias e

pontos de passagem. Estes castelos eram construídos de maneira

pessoal, e eram os mais fortes do mundo. Novos recrutas

chegavam da Europa para orientar essas fortificações. Eram,

também, a armada mais disciplinada e organizada daquele

tempo. Não tínhamos dificuldade em recrutar novos homens,

que vinham até do calibre superior para a Ordem. Era mais que

uma guerra: era como se o nosso sangue fervesse. Era excitante,

confesso. Éramos guerreiros dedicados, conduzidos pela mais

severa disciplina monástica. Não tínhamos qualquer medo de

morrer. Amamos ser o que somos. É um prazer ser um soldado

da ordem. É uma honra ser um guerreiro de Cristo. Mas a guerra

estava mudando. No ano de 1170, o grande líder sarraceno

Saladino conseguiu unir os setores rivais do islã numa só força.

À volta do reino cristão de Jerusalém, Saladino governava as

terras do Egito para o sul e efetivamente conduzíamos, também,

a Síria na parte norte. Os anos de tolerância entre os cristãos e

muçulmanos no Médio Oriente tinham chegado ao fim. Agora,

teríamos a guerra aberta. E era uma guerra que Saladino estava

progressivamente a ganhar. A ajuda do ocidente mostrava-se

muito vagarosa na sua chegada. Os habitantes de Outremer

estavam por conta própria. Os próprios muçulmanos

desenvolveram a sua própria seita de monges guerreiros. Os

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 586 -

Assassinos eram o equivalente muçulmano dos Templários ou

os Hospitalários. Mas os Assassinos eram ainda mais fanáticos.

Assim como tomando lugar em todas as operações militares,

eram especialistas treinados para atingirem pessoas singulares.

A palavra assassino é a forma inglesa de Hashishyun, que quer

dizer comedores de hashish. Era relatado que seu primeiro líder,

conhecido como o Velho das Montanhas, tinha por hábito usar

ervas entorpecentes para escolher objetivos e descrever visões

do paraíso. Isso acontecia antes de enviar os seus homens em

missões sinistras. Os Assassinos eram fanaticamente leais ao seu

mestre. O sobrinho de Ricardo Coração de Leão, Henrique de

Champagne, visitou uma vez uma fortaleza Assassina na Síria,

na tentativa de negociar um tratado de paz com os muçulmanos.

Para impressionar o visitante com a absoluta obediência dos

seus homens, este ordenou a vários assassinos, um por um, a se

atirarem para a morte das muralhas do castelo. Henrique ficou

visivelmente perturbado com esta cena suicida que havia

presenciado. Estas fortificações assassinas estavam implantadas

através das montanhas do atual Líbano e Síria, e constituíam

uma constante ameaça para as fronteiras nordestes do reino

cristão. Mas os assassinos também não eram amigos de setores

rivais islâmicos, os quais eram atacados pelo menos tantas vezes

quantas os cristãos. Em 1173, o rei Amalric I de Jerusalém

recebeu uma mensagem do próprio Velho das Montanhas,

propondo-lhe a paz. Amalric entendeu que tal proposta não só

deixava mais seguras as fronteiras, como também abria fissuras

no próprio Islão, cada vez mais espalhado. Aceitou fazer a paz

com os Assassinos. Os Templários tinham, neste tempo,

assumido papéis adicionais. A sua honestidade e integridade

eram, contudo, inquestionáveis. Éramos os melhores guerreiros

no reino. Tínhamos ambos as qualidades para transportarmos o

dinheiro dentro e fora do reino. Éramos, também, os coletores

Adriana Matheus

- 587 -

de impostos perfeitos. Ninguém se atrevia a nos enfrentar.

Amalric, no seu tratado com os assassinos, apressadamente disse

aos Templários para pararem de receber seus impostos. Mas os

Templários não gostavam que ninguém fizesse promessas em

seu nome, mesmo sendo o rei. Abdullah, o agente assassino, foi

emboscado no caminho, quando regressava das negociações

com Amalric. Foi morto por um Templário que tinha um só

olho, cujo nome era Walter de Mesnil. Amalric estava furioso.

O seu bem traçado plano de paz com os assassinos tinha sido

sabotado. A desconfiança começou a partir daí e atingiu a

impecável reputação dos Templários. Podíamos agir

independentemente do rei - isto diziam algumas pessoas! Fomos

chamados de arrogantes. Jogaram-nos vagas acusações de

subornos. A inveja cresceu desmedidamente sobre nós.

Passamos a ser altamente suspeitos. Todos queriam saber

exatamente o que os Templários tinham debaixo da sua manta

de sincretismo. Mas Amalric e outros oponentes tinham que

engolir a sua ira e tolerar-nos. Éramos, ainda, sem dúvida

alguma, a força de combate suprema em Outremer. Uma nova

fase começou para os Cavaleiros Templários: o que era para ser

uma sociedade com o objetivo de proteger a Terra Santa acabou

por virar uma desordem. O grande segredo estava despertando a

curiosidade de todos. Por isso, acabamos por nos tornar mal

falados em todos os lugares por onde passávamos. A ilusão de

sermos os guardiões do Graal estava no fim. Começaram a

lançar boatos de que tínhamos o envolvimento com forças

ocultas. Éramos a guerra, e a ordem estava se desmoronando.

Durante os dois dias da batalha, Saladino usou o terreno e o

clima brilhantemente em sua vantagem. Atacamos as forças

cristãs em deserto aberto, no calor flamejante, em terreno sem

água. Ajustamos o ataque a favor do vento, de modo que o fumo

denso, adicionado à sua miséria, serviu de tampa para suas

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 588 -

tropas. As setas choveram severamente para debaixo dos

Europeus prostrados. Duzentos e trinta cavaleiros morreram

nessa batalha, ou foram executados imediatamente após. Estas

execuções eram uma medida do respeito de Saladino para com

os cavaleiros. Indubitavelmente, trariam ricas recompensas ou

mesmo preços elevados nos mercados de escravos por onde

passassem. Saladino, por onde passou, apagou todos os traços

dos Templários, demolindo todos os seus edifícios. Logo, o

único posto cristão principal era o porto de Tyre. A terceira

cruzada 1189-1192 trouxe Ricardo Coração de Leão à Terra

Santa. Mas, quando Saladino morreu, em 1193, as seitas

islâmicas rivais recomeçaram as suas querelas. Os cristãos

lutavam para reconquistar território, e suas fortunas

desvaneceram-se. Havia algumas vitórias, mas havia também

derrotas terríveis. Muitos Templários caíram na batalha de La

Forbie, perto de Ghaza, em 1244. Somente 33 cavaleiros foram

deixados em todo Outremer. O fim estava perto. A moeda

nesses dias era ouro ou prata, e valia simplesmente o seu próprio

peso, quer fossem dinars árabes ou solidi italianos. Os

Templários tinham uma enorme responsabilidade, pois todo o

dinheiro estava em suas mãos. Com isso, a cada dia crescia a

ambição dos monarcas e da igreja - o que acarretou

perseguições.

– Com isso tudo, padre Ângelo, o senhor quer me dizer

que é um fugitivo?

– Sim. Também a maioria aqui dentro deste convento

encontra-se na mesma posição que eu. A Igreja quer nos tirar

tudo o que conquistamos. Não mais nos reconhecem como

heróis. Somos seus inimigos.

– Entendo-o. Deve ser duro ter que viver foragido desta

forma.

Adriana Matheus

- 589 -

– Sim, é um pesar. Não tentamos nos esconder e, por

causa disso, vários milhares foram feitos prisioneiros.

Juridicamente falando, essas prisões eram ilegais. Os

Templários respondiam unicamente ao Papa. Mas o atual Papa,

Clemente V, devolveu essa condição para Filipe, o rei francês

que transferiu o assento papal de Roma para Avignon, na

França. Filipe esteve, também, por trás da morte suspeita do

precedente papa - deixando, assim, o trono papal livre para

Clemente. Inevitavelmente, o atual papa toma o partido de

Filipe. E, com apoio papal, ataques similares foram feitos aos

Templários através da Europa. Foram levados a julgamento

aqueles que não acatavam as acusações levantadas contra eles. E

eram abandonados com uma mísera pensão, deixados na miséria

ou, ainda, como pedintes. Qualquer um que recusasse era

encarcerado para toda a vida. Mais de cento e vinte Templários

foram queimados na fogueira. Após as torturas, confissões e

execuções, Clemente V aboliu oficialmente a Ordem dos

Cavaleiros Templários, a vinte dois de Março de 1312. O

Grande Mestre patriarca, Jacques de Molay, foi um dos que

confessou. Mas a quatorze de março de 1314, enquanto ele era

exibido no exterior da catedral de Notre Dame, em Paris, para

ouvir a sua sentença de prisão perpétua, De Molay discursou

uma dramática declaração: penso verdadeiramente que neste

solene momento eu deva proferir toda a verdade. Ante o céu e a

terra, e com todos vocês aqui como minhas testemunhas, admito

ser culpado da mais grotesca das iniquidades. Mas essas

iniquidades foram eu ter mentido ao ter admitido as grotescas

acusações emitidas contra a Ordem. Declaro que a Ordem é

inocente. A sua pureza e santidade estão acima de qualquer

suspeita. Admiti, de fato, que a Ordem não era culpada. Mas

unicamente assim agi para evitar contra mim as terríveis

torturas. A vida foi-me oferecida, mas pelo preço da infâmia.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 590 -

Por este preço, a vida não vale a pena ser vivida. Depois de ter

retratado publicamente a sua confissão, Jacques de Molay, o

último dos vinte dois grandes mestres da Ordem dos Pobres

Cavaleiros de Cristo e Templo de Salomão, foi queimado vivo,

em Paris. Enquanto expirava, amaldiçoou o rei Francês e o

Papa. Disse que no prazo de um ano seriam chamados a prestar

contas pela perseguição aos Templários. Apenas um mês depois,

o Papa Clemente V faleceu, aparentemente de causas naturais. A

vinte e nove de novembro do mesmo ano, Filipe IV morreu

também num acidente a cavalo, enquanto caçava. Com isso,

associaram as mortes à praga de Molay. Com mais este fato,

passamos a ser temidos e acusados de mais um crime que não

cometemos: o de ocultismo e bruxaria. Como pode ver, não é só

a senhorita que sofreu acusações levianas da Santa Madre Igreja.

Também sofremos tais acusações. Como pode ter percebido,

fomos cavaleiros defensores desta que nos traiu por ambição e

covardia. Acredite: ninguém está livre das punições desta mãe

tão cruel.

– Mas por que tudo isso aconteceu? E o que fizeram os

Templários?

– Não fizemos nada. Mas, nos julgamentos, éramos

acusados de heresia por participar de práticas obscenas, de

cuspir na imagem de Cristo e adorar ídolos, especialmente uma

cabeça chamada Baphomet. Fomos acusados de bruxaria.

Fomos, ainda, acusados de sodomismo. Fomos acusados de

avareza, entre outras tantas coisas que, nem que ficasse aqui lhe

contando por toda a eternidade, chegaria ao fim dessas barbáries

e acusações. Fundamos uma nobre causa, e por ela fomos

traídos, defendendo a Terra Santa. A mesma Igreja que

defendemos jogou o povo contra nós. Não devemos assumir que

muitos ou nenhum Templário era, na realidade, culpado das

muitas acusações contra ele: idolatria, sodomismo, e por aí em

Adriana Matheus

- 591 -

diante. Estas eram as acusações principais que se faziam contra

os heréticos. E eles foram contra elementos específicos nas

regras da Ordem. Mas é possível que muitos dos Templários não

fossem realmente cristãos ortodoxos, embora nunca fora

encontrado nenhum testemunho em relação a este fato. Isso é

uma história contínua e incerta. É dito, frequentemente, que

destruímos os registros para que nunca pudessem ser usados

contra nós. De qualquer modo, não posso afirmar-lhe que é ou

não uma mentira. Mas é possível que estes fatos se tenham

simplesmente perdido, provavelmente em Chipre, alguns anos

mais tarde. Há, ainda, livros e papeis que sejam fáceis de

destruir. O fato é que o nosso tesouro está desaparecendo. Não

sabemos ao certo para onde ele está indo. Temos muitos

informantes por toda a parte, mas está ficando cada vez mais

difícil controlar os espiões entre nós. Estes se vendem para não

morrerem, ou suas famílias são ameaçadas. Há uma teoria de

que nosso tesouro está secretamente sendo transportado pelos

esgotos de Paris. Mas não é um fato consumado.

A complexidade de catacumbas e esgotos que se

encontram por baixo da capital francesa nunca foi mapeada.

Temos mapas detalhados dessas passagens subterrâneas. Mas é

infinitamente complexo afirmar tal hipótese. Uma vez em

segurança, podem ter transportado o tesouro para um destino

desconhecido por uma frota Templária, e posteriormente nunca

mais foi visto.

Wallejo terminou de contar-me sua história e disse:

– Essa é a minha história, senhorita Anna. Como pode

ver, não somos tão diferentes assim. Também sou perseguido

por bruxaria. Tudo por causa da ignorância de um povo - do

mesmo povo que nos colocou no topo de um mundo de

maravilhas e batalhas.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 592 -

– Mas ainda não o entendo. Como e por que o senhor

veio parar aqui?

– Estou sendo acusado de ter matado um homem cujo

assassino está aqui, neste condado. Vim para cá com o pretexto

de que sou um padre. Estou aqui sigilosamente. Ninguém sabe

disso, a não ser a madre superiora. Agora, confesso-lhe que sua

partida para Roma preocupa-me, porque sei que estão para

substituí-la. Espero que acredite em mim. Não estou mentindo

em uma só vírgula. Este homem do qual lhe falo está escondido

e usurpa o lugar de um homem inocente e desaparecido. Ele

assassinou ambos. É um impostor e espião dos mulçumanos.

Sabe Deus o que anda aprontando entre o povo inocente e de

fácil engambelação. Há pouco tempo, obtive informações

precisas de que este mesmo cidadão esteve em Salamanca, a

cidade de onde a senhorita veio. Soube que ele andou a tentar

firmar um compromisso com certa senhorita. Mas, graças a

Deus, parece que seus planos foram frustrados. Ele está tentando

se infiltrar na sociedade a todo custo. É o assassino de uma

família inteira. Sabe Deus de quantos mais! Este homem,

definitivamente, não pode continuar impune assim. Tenho que

fazer alguma coisa.

– Como isso tudo ocorreu? Como ele pode ter tomado o

lugar de uma pessoa? Seus súditos e criados não reconheceram

este herdeiro?

– O duque de certa província, que não vem ao caso

agora, enviuvou cedo demais. Quis viver a vida sob a liberdade

de sua juventude. Como não queria casar-se novamente, enviou

seu filho com somente três anos de idade para um internato, na

Inglaterra. Esta criança, pelo que sei, nunca saiu do internato,

nem mesmo para as festas comemorativas.

– Pobre menino... Que vida solitária e sem amor!

Ninguém merece viver desta forma. Para mim, este tal duque

Adriana Matheus

- 593 -

nada mais era do que um carrasco cruel e sem sentimentos para

com sua própria prole. Imagine, o pobre menino já havia

perdido a mãe e ainda tivera que viver sem o aconchego do seu

lar e o afeto do pai. Que cruel! Que monstruoso este senhor - em

minha opinião, nem merece ser chamado assim. Já o detesto,

mesmo sem conhecê-lo, por esta atitude tão sem crédito.

– Sim, concordo com a senhorita. Tal atitude gerou

muita revolta no jovem conde, que passou a se rebelar dentro do

internato, agindo da pior maneira possível, juntando-se a maus

elementos que usufruíam do dinheiro que o duque lhe enviava

para suas despesas extras. O jovem conde, segundo fui

informado, passou até a fazer uso constante de ópio. Ele tinha

um amigo, um informante meu, e este me escrevia, contando

quais seriam os planos e expectativas do conde ao sair do

internato. Ele queria gastar toda a fortuna de seu pai e viajar

para curtir a juventude supostamente perdida. Esses tais planos

também foram ouvidos por outro jovem de muito mau caráter e

muito ambicioso. Nele, aflorou a inveja. Este jovem havia

conseguido ir para o internato custeado pelos nossos maiores

inimigos, os sarracenos. Estes, mesmo depois de terem perdido

várias guerras, infiltraram espiões em toda a parte da Europa.

Um dia, já em idade muito avançada, o duque resolveu ter a

consciência de manda chamar o rapaz de volta à casa paterna. E

ele trouxe na bagagem este amigo. Este amigo, em meio ao

caminho de Valencia, tramou a morte do jovem conde. Em uma

hospedaria que ele mesmo havia escolhido, juntou-se com mais

dois capangas e deram cabo do jovem monarca. Esconderam o

corpo. Nunca o encontramos. Este jovem de aparência doce é

um gatuno e assassino, um homem capaz de qualquer coisa para

alcançar seus objetivos. Este homem tem uma mente diabólica e

cruel. Ao chegar à casa do duque, tranquilamente se passou

como filho do mesmo, pois sua aparência física era muito

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 594 -

semelhante à do jovem conde assassinado. Isso passaria

despercebido se eu não começasse a desconfiar do

comportamento deste jovem.

– Então, o senhor estava lá? E o que fazia no meio desta

trama toda? Qual era o seu papel?

– Como lhe contei, éramos incumbidos de cuidar dos

bens e da segurança destes fidalgos. Mas, entre mim e o duque,

havia uma amizade fraternal. Ele e eu tornamo-nos muito

amigos. Éramos confidentes, embora eu fosse bem mais jovem

do que ele.

– E o que fez o suposto conde para que chegasse a tal

desconfiança?

– Tínhamos um relatório semanal de tudo o que o

verdadeiro conde fazia dentro do internato. Embora nunca o

tivéssemos visto e nem o próprio pai soubesse como era a

verdadeira face do filho, tínhamos também um informante lá

dentro que nos passava tudo o que ele fazia, inclusive suas

conversas. Por isso, sabíamos qual seria o seu interesse ao sair

do internato. Estávamos preparados para enfrentar um jovem

revoltado e rebelde. Mas ele estava demasiadamente meigo e

submisso. Comecei a observá-lo a fio. Embora ele não desse

motivos aparentes para que ninguém leigo no assunto levantasse

uma suspeita, comecei a controlar cada ato aparentemente

correto dele. Esse usurpador passou a levar o desjejum para o

pai todas as manhãs. Como o duque estava muito debilitado

devido à idade e já não enxergava muito bem, foi fácil para esse

crápula engambelá-lo. Mas, com esse falso carinho e atenção

súbita pelo pai, fez com que o duque começasse a ter sérios

problemas de estômago. Nada parecia parar em seu organismo.

Era visível a sua palidez repentina. A doença começou a se

agravar dia após dia. Os médicos nada encontravam. Então,

comecei a investigar e descobri que o larápio estava colocando

Adriana Matheus

- 595 -

certo veneno dentro do açúcar. Assim, ficou difícil de se

diagnosticar. Só que já era tarde demais: o duque estava muito

debilitado e, nos seus últimos dias de vida, já havia passado toda

a sua fortuna e bens às mãos do falso conde. Mediante esse triste

episódio e com a morte do duque, tentei, ainda, recuperar o

testamento e provar a falcatrua do usurpador. Mas ele foi mais

esperto e já tinha fortes aliados a seu lado. Quando percebeu

nossa intenção de desmascará-lo, logo expulsou meus soldados

da mansão. Ele sabia que eu poderia fazer muito mais contra ele.

Então, maquinou uma nova trama. Acusou-me de envenenar o

duque e colocou toda a corte atrás de mim. Nada pude fazer,

porque não tinha como provar que este rapaz era um usurpador.

Afinal, nada tinha em minhas mãos, nenhum documento,

nenhuma testemunha. Entende?

– Sim, entendo. Mas que fim levou a única testemunha

que estava também dentro do internato com o verdadeiro conde?

Pois, afinal, ele pode ser uma testemunha. Também deve

considerar a freira que tomava conta do internato. Ela é uma

testemunha. O que fez quanto a isso?

– Quando o falso conde acusou-me levianamente de

assassinato, viajei imediatamente para o internato à procura de

provas, mas a madre tinha sido transferida de seu posto. O

jovem que era nosso espião desapareceu misteriosamente, sem

deixar vestígios. Com isso, supus que ele também tinha sido

assassinado.

– Santo Deus! Para onde foi transferida a madre, então?

– Para este convento, senhorita Anna.

– Quer dizer que a nossa madre superiora é a sua

testemunha? Ela é a sua prova-chave?

– Sim. Mas suponho que não a deixarão voltar de Roma.

– Por que diz isso?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 596 -

– Porque, como citei para a senhorita, o usurpador fez

aliados em muitos lugares. Já interferiu para que ela fosse

transferida.

– Santo Deus misericordioso! Padre Ângelo, temos que

fazer alguma coisa.

– Nós? Nunca a deixarei envolver-se nisso. É perigoso

demais. Essas pessoas são assassinas. Não medirão esforços

para alcançarem seus objetivos.

– Acha que o abandonarei? Já estou envolvida nessa

história até os cabelos. Quando me contou tudo, tornou-me sua

cúmplice. Amo-o e sempre o amarei. Esperei-o por muito

tempo, amor da minha vida, para ter que o abandonar assim, no

meio de uma tempestade. Não vou entrar em detalhes com você

agora, mas quero que acredite apenas em uma coisa: esperei-o

por muitas vidas e estou aqui, nesta, para viver e morrer contigo.

Wallejo saiu da sacristia, abrindo a minha cortina. Então,

saí. Fitando-o nos olhos, percebi que naquela hora sua áurea

iluminou todo o ambiente ao nosso redor. Ele não precisou de

palavras para me dizer o quanto estava feliz. Nossas mãos se

tocaram e nossos lábios se juntaram pela primeira vez. O chão

não estava mais debaixo de nós. Parecíamos ter levitado uma luz

muito superior, e um cheiro de rosas tomou-nos por completo.

Quando duas almas encontram-se, a magia toma sua forma e o

universo se agita. Ele se afastou lentamente e olhou-me nos

olhos. Seus olhos tinham toda a constelação dentro deles.

– É linda. Não só sua aparência física, mas é linda em

todo o seu interior. Agora sei que nunca poderia amar outra

além da senhorita.

Ele chorou e ficamos abraçados por mais alguns

segundos.

Adriana Matheus

- 597 -

– Não podemos nos arriscar, amor. Temos que ter

cuidado de agora em diante. Se formos descobertos, as

consequências serão graves.

– Só não consigo entender uma coisa: como esse tal

conde conseguiu envolver e, ao mesmo tempo, trazer tanta gente

para junto de si?

– Ele mentiu, amor... Disse a todos que eu e os

cavaleiros fizemos tudo de caso pensado, para roubar a fortuna

do duque. Ainda aumentou a maledicência, pois disse que todos

os cavaleiros só queriam roubar os monarcas. Isso gerou muitas

desconfianças e até a Igreja, que já andava ambicionando nossos

tesouros, aproveitou a oportunidade para arquitetar contra nós.

Na verdade, a Igreja pouco se importa com o usurpador. Só quer

é nos tirar de nosso posto. Assim, toma conta de toda a

população e passa, também, a controlar a fortuna dos monarcas

e das cortes.

Olhei para Wallejo e interrompi antes que ele começasse

com o discurso sobre os Templários novamente.

– Desculpe, meu amor. Não quero interromper, mas

temos que ir, antes que dêem falta de mim e comecem a

desconfiar que essa confissão está longa demais.

– Sim. Precisamos ir antes que desconfiem de nós.

Beijou-me na testa e olhava-me como se não quisesse

deixar-me ir. Por fim, despedimo-nos com um beijo longo e saí

da igreja, tentando não ser vista. Nem sabia por quê. Afinal,

todos os dias tinha que me confessar. Engraçado o quanto as

coisas mudam quando estamos com a consciência pesada por

algum motivo... Naquele momento, eu estava pensando no meu

pecadinho: no beijo de Wallejo! Isso, para as freiras, seria um

ato de fornicação! Sorri, sem conseguir controlar-me.

Fiz minhas tarefas do dia rapidamente. Fui para a

lavanderia e até cantei com as freiras, que se admiraram ao ver-

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 598 -

me tão feliz. Quando estamos amando de verdade, vemos luz no

meio das trevas e sol em gotas de chuva. O orvalho das manhãs

são lágrimas de felicidade. A vida, pétalas de flores. Depois de

ter terminado minhas tarefas da tarde, procurei minha amiga

Juanita, que estava lendo um livro perto da fonte, no meio do

patíbulo, em um banquinho em meio a uma refrescante sombra.

Ao colocar a mão em seus ombros, a freira deu um pulo de

susto. Como ri daquela situação!

– Não tem juízo, criatura? O que anda pensando ao sair

por aí, assim, a assustar as pessoas?

– Não tive a intenção de assustá-la, juro! Mas bem que

foi divertido vê-la dar pulos.

Ela tentou segurar o riso, mas não conseguiu. Depois de

rirmos como duas tolas, contei-lhe tudo o que me acontecera

pela manhã.

– Jura? Santo Deus! Que história! - disse ela, com os

olhos que mais pareciam dois pires.

– Quem será este maldito conde?

– Isso é o que eu não sei. Ele não quis me dizer.

– Mas precisamos saber quem é o larápio. E se ele vier

aqui? Precisamos saber para nos defendermos deste peste.

Espere! Santo Deus, e se...

– Diga, irmã! O que está pensando agora? Não gosto

quando faz esta cara... Hum, aí vem coisa, viu!?

– Senhorita Anna, como era o nome do seu conde?

– Por quê? Acha que ele pode ser a mesma pessoa?

– Não acho, tenho certeza. Meu Deus, raciocine comigo:

a senhorita não quis casar-se com este famigerado. Certo?

– Certo.

– Então, seu pai a enviou de imediato para este convento,

certo?

Adriana Matheus

- 599 -

– Certo. Mas ele sempre me ameaçava porque minha

madrasta colocava em sua cabeça estas ideias estapafúrdias. Não

consigo ver em que o conde tem ligação com Wallejo.

– Sim, entendo seu modo de pensar... Mas pare um

minuto só e pense mais um pouco. O senhor seu pai poderia ter

lhe mandado para qualquer convento. Existiam conventos mais

próximos a Salamanca e outros mais longe, se o caso realmente

fosse bani-la da presença familiar… Entende agora, senhorita

Anna? As peças deste jogo estão se encaixando. Seu amigo

Ramon tinha razão: uma dívida era muito pouco para seu pai

entregá-la nas mãos da Inquisição. Ele, com a influência que

tem, por certo poderia ter revertido toda a história. Afinal, não é

uma pessoa qualquer, tem sangue nobre. Essas coisas acontecem

com alguns nobres que não seguem a fio os mandamentos da

Santa Madre Igreja. Mas me desculpe a sinceridade. Sem

ofendê-la, a senhorita é muito modesta, com uma historinha sem

significância para estar incomodado tanto a pessoas tão

importantes. Entende-me agora?

– Sim. Começo a perceber coisas que não percebia antes.

Mas por que meu pai se vendeu desta forma?

– Senhorita Anna, se o seu conde for mesmo que

pensamos, ele por certo é muito poderoso e persuasivo. Com

certeza, a senhorita está correndo risco de vida. Porque este

homem não lhe dará mais sossego em lugar nenhum. Sua

presença aqui é apenas a ponte para que ele se aproxime e

consiga assassinar o padre Ângelo. Sua presença neste convento

nada mais foi que um pretexto para alcançarem o objetivo de

pegarem o padre Ângelo. Mais nada, senhorita Anna. A

senhorita não passa de uma isca. Só que eles não sabem de uma

coisa.

– Do quê?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 600 -

– Que juntariam dois amores de vidas passadas. Deus

que me perdoe por pensar desta forma... Mas o destino tem suas

artimanhas também. Pregou uma peça em todos vocês.

Meu coração deu um nó. Estava feliz, mas também

muito pesarosa. Se o conde fosse a mesma pessoa de quem

falávamos, Wallejo seria capturado assim que o conde fosse me

fazer uma visita - o que já era de se esperar.

– Amanhã bem cedo falarei com padre Ângelo. Tenho

certeza de que chegaremos a um consenso juntos. Vamos

conseguir achar uma solução. Que Deus me ajude! Agora,

perdoe-me. Preciso ir para minha cela. Tenho que refletir um

instante. Tenho que rezar a Deus e pedir forças. Agradeço-a por

me dar esta luz.

Beije-lhe as mãos e saí, sem nada a dizer, porque senti

minhas forças esvaírem-se de dentro de mim. Chegando à minha

cela, só queria chorar sem parar, porque estava sem saber como

ajudar Wallejo. Mas minhas lágrimas secaram-se de imediato ao

ver outro bilhete e outro girassol em cima da mesinha. O bilhete

dizia assim:

Espanha, vinte e três de julho de 1819

Meu amor, meu único amor... Espero que esteja bem.

Quero que saiba que seu sorriso ilumina a escuridão da minha

alma. Que sua presença é a força que me faz seguir, e é só pela

senhorita que entrarei nesta batalha sem medo de perder. Amo-

a, amo-a, amo-a... Seu sempre...

A.W.M.

Depois de tais palavras, não pude mais chorar. Tinha que

tirar forças de dentro do útero, se assim fosse necessário. Meu

amor precisava de mim. Não era hora de bancar a menina tola,

chorona e fraca. Ergui a cabeça e fui à janela observar o luar,

Adriana Matheus

- 601 -

que não estava mais tão cheio. As crianças da noite rondavam à

procura de alimento noturno. Seus apetites eram vorazes.

Chacais famintos procurando alguma presa para devorar.

Engraçado como a vida não para, nem de noite, nem de dia e

nem em lugares secos. Mediante tais observações, percebi que a

natureza estava me dando mais uma lição. Ela estava me

dizendo... Se eles não paravam e tinham que esperar que a noite

caísse para poderem sobreviver, por que eu tinha que me deixar

ser vencida no primeiro obstáculo? Esbocei um sorriso e

agradeci pela lição que tivera naquela noite. Fui me deitar

bastante tarde. Nem vi o sono chegar. Já eram altas horas da

noite quando uma voz torturante chamou-me:

– Senhorita Anna, por favor, acorde! Sou eu, Juanita...

A voz parecia estar vindo de muito longe... Abri apenas

um dos olhos, lentamente, e deparei-me com uma freira ainda de

roupa de dormir, com uma touca de abas largas que mais parecia

dois chifres de boi. Então, mediante aquela lastimável figura

exótica e aterrorizante cena, disse entre dentes:

– Morri, não foi? E agora Satã está me enviando sua

mensageira para me torturar! Não precisa tanto: confesso, fui eu.

– Eu o quê, santa criatura? Para de dizer blasfêmias! Sou

eu, Juanita. Tive um sonho. Quero que me traduza este, por

favor! - respondeu a irmã, parecendo não ter entendido minha

ironia.

– Já disse: confesso, fui eu quem colocou a coroa de

espinhos em Cristo! Agora arrede-se daqui, criatura torturante.

Dizendo isso, virei para o canto da cama e tapei a cabeça

com o travesseiro. Achava que, agindo daquela forma, ela iria

embora. Mas foi uma doce ilusão da minha parte, pois Juanita

puxou o travesseiro abruptamente, dizendo:

– Estou a falar sério. Tive mesmo um sonho ruim. Quero

que a senhorita ajude-me a traduzi-lo.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 602 -

Diante os fatos, só me restava uma coisa: ouvir o que a

aquela santa mulher tinha para me dizer de tão importante!

– Está bem. Já percebi que a senhora hoje não tem a

menor intenção de me deixar dormir. Deixe-me adivinhar:

sonhou que estava no céu e havia virado anjo! Aí, veio aqui

saber se é um bom presságio? Sim, digo sim: todas vocês,

freirinhas, vão virar anjos e vão direto para o céu. Agora posso

dormir? – disse, meio sem paciência.

– Não é nada disso, senhorita Anna! Sonhei que estava

no meio de uma floreta e enormes serpentes enrolavam-se no

meu corpo. Quando conseguia me livrar delas e fugir, deparava-

me com um urso enorme. Ele abraçava o padre Ângelo e, com

isso, tirava todo o ar dele. Mas o estranho é que o urso parecia

sorrir para ele, como se o conhecesse. Aí, corri para buscar

ajuda, mas acabava dentro de uma caverna, fria, suja e escura.

Lá, vi a senhorita, presa em uma teia de aranha gigantesca. E

dizia-me por favor, ajude Wallejo... Ele corre perigo de vida. O

traidor está chegando. Depois disso, acordei toda suada.

Se eu fosse uma pessoa comum, diria a ela que

simplesmente teria ficado impressionada com a nossa conversa

do dia anterior. Fiquei espantada com o sonho de Juanita! Ouvi-

a atentamente. Por fim, disse-lhe:

– As cobras negras é um sinal de traição. Como eram

cobras gigantescas, isso significa que é uma pessoa de muito

poder, que está ou estará bem perto de nós. O abraço do urso

sorridente significa traição de alguém que está muito perto do

padre Ângelo. A caverna escura é uma situação pela qual eu ou

a senhora passaremos. E será, por certo, um lugar frio, escuro e

muito úmido. As teias de aranha significam que não poderemos

nos livrar de tal situação. Quanto à parte de padre Ângelo... quer

dizer que sua morte será causada pelo seu próprio inimigo.

Adriana Matheus

- 603 -

– Nossa! Deus do céu... E não há nada que possamos

fazer para livrá-lo deste destino tão cruel?

Baixei a cabeça e as lágrimas rolaram.

– Não, infelizmente não podemos interferir no destino de

outra pessoa.

Juanita baixou a cabeça e disse:

– Perdoe-me, amiga! Sinto ter sido portadora de tão más

notícias. Não queria ser eu a dizer-lhe coisas tão abomináveis.

Tentei ironizar as coisas, sendo um pouco divertida.

Então, disse:

– Imagina... Agora virei tradutora de sonhos de irmãs

que cismaram em ser bruxas!

Eu ria e chorava, não conseguia me controlar.

– Mereço, viu, senhor!? - disse isso olhando para o teto

do quarto.

Ela começou a chorar e nos abraçamos. Ficamos o resto

da madrugada conversando. A conversa parecia não ter fim,

porque Juanita tinha muitas coisas a perguntar. Quando o galo

cantou a primeira vez, ela foi embora cumprir seus afazeres

cotidianos. Fiquei sentada na cama por uns minutos, sem saber o

que fazer. O galo cantou a segunda vez, o que me fez despertar

daquele transe. Vesti-me rapidamente e fui para a sacristia,

como de costume. Wallejo estava na soleira da igreja à minha

espera. Parecia inquieto.

– Não dormi nada. – disse, com voz rouca.

– Eu também não!

Ele nem me deixou contar-lhe o que havia se passado.

Puxou-me como um louco para dentro da igreja. Entramos na

sacristia e ele beijou-me com a fome de um lobo. E cada vez

mais ficavam quentes aqueles beijos. Quando percebi o seu

frenesi, tive que afastá-lo repentinamente.

– Desculpe, amor! Temos que nos controlar.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 604 -

– Não quero me controlar. Quero-a só minha. Preciso da

senhorita agora.

– Sim, sei. Sinto o seu desejo ao tocar meu corpo.

Acredite, é recíproco o que sinto por você. Mas precisamos ser

cautelosos. Tenho que lhe contar uma coisa que a irmã Juanita e

eu descobrimos ontem à noite. É um detalhe que poderá surtir

efeito em sua história e no seu destino.

Ele ficou estático e falou:

– Meu Deus, mulher. Tanto que lhe pedi que não

contasse minha história a ninguém, por que foi contar tudo que

lhe confiei a uma das irmãs?

– Por favor, perdoe-me, mas confio na irmã Juanita e

peço que me ouça com atenção. Conde Alfred Celso D’

Louchoa. É esse o nome do homem com quem meu pai queria

que eu me casasse. Filho do duque Albert Celso D’ Louchoa.

Na mesma hora, seus ternos olhos tornaram-se

fumegantes de ódio. O semblante daquele anjo transfigurou-se

em uma forma amargurada e com expressões faciais pesadas.

Por fim, meio que trêmulo, balbuciou algumas palavras:

– Sim, faz muito sentido o que acaba de me contar.

Prometa-me uma coisa: nunca mais verá este conde!

– Sim, prometo. Mas creio que ele não me incomodará

aqui neste convento.

– Não o conhece. Ele, por certo, é o único responsável

por estar aqui agora.

– Então crê que falamos da mesma pessoa?

– Sim.

Naquela hora, agarrou-me em seus braços e beijou-me

com loucura. Depois, afastou-me e disse-me com a voz

pesarosa:

– Não quero perdê-la.

Adriana Matheus

- 605 -

– Nunca isso irá acontecer. Estaremos juntos sempre,

enquanto eu tiver forças.

Embora eu soubesse que não poderia afirmar com

certeza aquelas palavras, precisava aquietar o meu próprio

coração que estava aflito e pesaroso. Ficamos juntos, dentro da

mesma sacristia, alguns minutos a mais. Depois, saímos às

pressas e meio tontos por causa do frenesi da nossa paixão.

Fomos cada qual para um local diferente para cumprirmos

nossas tarefas e evitarmos que os demais desconfiassem do

nosso sumiço. Aquele dia custou a passar, porque eu estava

apreensiva com os novos acontecimentos. Senti medo e sabia

que algo ruim estaria por vir.

Ao terminar meus afazeres, fui me refrescar perto do

poço que ficava no pátio. De repente, ouvi meu nome ser

chamado aos gritos! Ainda estava com as mãos sobre o rosto

molhado, mas reconheci aquela voz, que mais parecia uma

arara.

– Senhorita Anna!… Tenho algo para lhe falar.

Ela estava ofegante e parecia ter algo muito importante a

me dizer.

– Onde foi o incêndio? Diga-me, pois quero estar longe.

De problemas, estou até os cabelos!

– Nossa, como você é ingrata! E logo comigo? Pois saiba

que sou portadora de boas notícias.

– Sendo assim, fale logo. Já estou curiosa!

– Agora não, que estou cansada!

– Está a brincar comigo? Não posso ficar ansiosa, pois

sofro dos nervos.

– Então, falo. Mas com uma condição.

– Qual? Já está a me irritar.

– Se não se portar bem, não falo e pronto!

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 606 -

Ela realmente estava me irritando! Quase a joguei dentro

poço, mas a curiosidade foi mais forte. Juanita cruzou os braços

e disse, depois de fazer o maior drama:

– Tenho um bilhete.

– É do padre Ângelo? Se for, dê-me logo.

– Não. Há outras pessoas que também gostam da

senhorita.

– Não consigo imaginar. Quem poderia ser?

– Ah! Claro, não significo nada, não passo de uma pedra

em seu caminho. Por certo, estou em outra dimensão espiritual,

pois nem me enxerga mais. Agora, só o padre Ângelo tem

importância!

Ri muito de Juanita, pois estava com ciúmes de nossa

amizade e estava fazendo pirraça comigo.

– Está bem, é minha única e melhor amiga. Mas, por

favor, pode me dar o bilhete, antes que eu tenha uma síncope!?

– Dou-lho. Só que tenho uma condição!

– Ah, agora sim está abusando de minha paciência!

– Calma! Só quero que leia em voz alta.

– Nossa, que falta de privacidade! Uma pobre prisioneira

não pode sequer ler uma carta de amor a sós.

Logo nas primeiras linhas, soltei um grito de felicidade:

era de Maria. Depois de saltar de um lado para o outro,

perguntei ainda, eufórica:

– Como? Onde está ela? Oh, Deus! Quero vê-la! Que

saudades de Maria!

– Não sei se merece. Você foi muito ingrata comigo.

– Por favor, imploro-lhe: preciso vê-la! - disse isso

juntando as mãos e olhando para ela com olhar de súplica.

– Está bem. - disse ela, cruzando os braços novamente e

fazendo um bico com a boca.

Dei-lhe um sorriso. Ela prosseguiu:

Adriana Matheus

- 607 -

– Escute isso: Maria não pode ser vista por ninguém,

pois não podem saber que eles estão aqui!

– Eles?

– Sim, ela veio com o esposo, Joseph. A Inquisição e os

guardas estão atrás de ambos. Parece que o seu conde e seu pai

agiram juntos novamente. Desta vez, o conde usou todas as

armas para prejudicar todos que poderiam ter interferido em

seus planos diabólicos. Portanto, se Maria e Joseph forem

apanhados aqui, todos nós sairemos perdendo. Pois ele sabe que

Maria não ficará sem vir visitá-la.

Dizendo isso, Juanita saiu seguindo na minha frente,

para não chamar atenção. Encontramo-nos perto do campo de

girassóis. Seguimos dali por uma pequena estradinha de terra,

entrando, em seguida, em uma casinha feita de madeira, onde os

monges guardavam as sacas de sementes de girassóis. Ao

abrirmos a porta, não consegui falar nada: corri direto para os

braços da minha amiga, que estava com os olhos também a

escorrer. Ao me abraçar, ela foi logo dizendo:

– Não chore, minha pequena. Deixe as lágrimas para

mim. Ainda é muito moça. Logo tudo se resolverá. Sou velha e

não me fazem mal algumas rugas a mais.

– Não tem como, minha Maria. Dos meus olhos escorre

o mar da minha alma. Ando a trabalhar como louca e, quando

acabo minhas tarefas, coloco-me em outra. Mas, para mim, esta

é a forma que não me deixa pensar no meu triste e descabido

destino. Sei, Maria, que não vou sobreviver para contar minha

história. Por isso, peço-lhe: traga-me meu diário!

– Acaso achou que eu fosse uma pessoa sem noção? Pois

ele já está aqui! Quando soube da sua prisão, procurei por

Tereza e a pedi umas coisas suas. Escondi, é claro. Tudo o que

ela pode afanar, trouxe para mim.

– Sério? O que ela conseguiu?

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 608 -

– O caldeirão, sua varinha, suas poções, o diário de sua

mãe e outras miudezas. Mas não poderá usar tudo isso aqui.

Dizendo isso, pegou uma maleta de couro marrom e

puxou para fora um livro do qual parecia sair luz.

– Meu diário! Tenho tanto a dizer-lhe... Maria, quero que

fique com as outras coisas. Guarde todos os objetos e conte no

meio da irmandade a história de minha mãe.

– Não estou me despedindo de você! Virei muitas vezes

aqui vê-la. Acredite: não se livrará de mim assim, tão fácil.

– Prometa-me que não virá! É muito arriscado.

Contei-lhe toda a história verdadeira do conde.

– Madre de Diós! Que crápula! Nunca gostei deste

homem. Ele sempre me passou algo de muito ruim. Mas agora,

mais que nunca, não poderei abandoná-la à própria sorte.

Segurei-a pelos ombros e falei seriamente:

– Maria, tenho um destino a cumprir. Você tem o seu,

tem que zelar por seu esposo, seguir com a vida. Cuide para que

esta história seja contada entre muitos povos e muitas gerações.

Não deixe que se apague da terra o que escreverei neste diário.

Dizendo isso, mostrei-lhe meu diário. Abraçamo-nos por

um bom tempo. Deixei que Maria colocasse pra fora tudo o que

estava preso na garganta durante todo aquele tempo que ficamos

separadas. Foi quando, ao fundo, ouvi um pigarrear.

– E eu? Ninguém me enxerga? Sou mesmo

insignificante! Vou-me embora, já que ninguém me vê.

– Joseph!

Ainda com os olhos úmidos, fui à sua direção para

abraçá-lo.

–Onde estava? - segurei suas mãos.

– Escondendo a carroça. Ao entrar, vi uma linda cena.

Então, resolvi ficar bem quietinho em um canto.

Adriana Matheus

- 609 -

Pegou um lindo ramalhete de flores do campo, que havia

deixado perto da soleira da porta, para me entregar. Abracei-o e

beijei-lhe as mãos, em sinal de respeito.

– Sinto interromper uma cena familiar, mas temo por

todos. Devo dizer-lhes que já é bem tarde e é muito perigoso

seguir caminho à noite pelas estradas em momentos tão difíceis

como estes. - disse Juanita.

Despedi-me tristemente de meus amigos. Quase morri ao

ver Maria distanciando-se. Meu coração ficou pequeno…

Chorei como nunca naquele dia. Eu e Juanita voltamos para o

convento e tentamos não ser vistas por ninguém. Juanita

conhecia uma passagem secreta e fomos por ela. A passagem

era localizada debaixo da torre da igreja, perto da capela de

orações. Entrei em minha cela e lá estava outro bilhete. Não

sabia se sorria ou se chorava, pois meus sentimentos estavam

em desordem. Não li o bilhete naquele dia. O cansaço era muito

e não demorei a adormecer. Meu corpo caiu pesado sobre a

cama e nada mais vi.

O galo cantou e fingi não estar ouvindo. Assim foi até a

terceira vez. De repente, percebi que minha cabeça estava dando

ecos. O sino da igreja tocava incessantemente. Levantei-me aos

pulos, pois algo de errado estava acontecendo. Arrumei-me

como pude e desci as escadarias, voando. Ao chegar ao patíbulo,

todas as irmãs estavam reunidas. Entrei no meio de todas para

ver o que se passava. Foi quando vi uma carruagem muito

alinhada cercada de guardas e escravos. Desceu dela uma freira

de uns sessenta anos de idade, alta, com cara de demônio. Nunca

vi criatura mais sisuda e cheia de íncubos como aquela à minha

frente. Eram tantos os demônios ao seu redor que virei o meu

rosto. Meu corpo arrepiou-se dos pés à cabeça. Um gelo

sobrenatural tomou conta de mim. Ela era mensageira da morte,

com certeza. Um arauto ao lado da carruagem tocou uma

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 610 -

trombeta para que prestássemos atenção ao que seria dito.

Então, prosseguiu o homem com chapeuzinho engraçado:

Roma, 17 de julho de 1819.

É de vontade real e da Santa Madre Igreja que a

senhora madre superiora Edwiges Sollantes seja substituída

pela senhora madre superiora Madylene Cotas, cujo cargo

passa a exercer a partir da data de sua chegada ao convento de

San Francisco. Que fiquem todos cientes de que a minha

vontade é soberana e inquestionável. Dado e dito, consumo este

fato a partir da data citada.

Eu, o rei, revogo este caso sem mais a dizer. Que se

cumpra a minha vontade, em nome de Deus Nosso Senhor.

Assina: Don Marquez Castelani, Rei e Regente de Roma.

Vi Wallejo do outro lado do patíbulo. Seus olhos

pareciam preocupados. Com a notícia que recebemos naquele

dia, seria dada a definição para o meu destino e o de Wallejo.

– Santo Deus! O que faremos, senhorita Anna?

– Não sei, irmã Juanita! Fomos todos pegos de surpresa.

– O que acha desta nova madre?

Sorri antes de respondê-la.

– Digo-lhe apenas uma coisa: ela não precisa de

secretário, pois já é o próprio.

Ela se benzeu e arregalou os olhos para mim.

– O que quer dizer?

– Que esta mulher é o próprio demo encarnado.

Juanita quase caiu para trás.

– Por que está afirmando tal coisa?

– Porque posso ver o que mais ninguém neste lugar

pode.

– E o que vê?

– Melhor que nem saiba, para que não lhe tire o sono.

Adriana Matheus

- 611 -

Mudei de assunto para que Juanita não ficasse

impressionada. A madre passou por mim e olhou-me fumegante.

Ela sabia quem eu era. O demônio em seu corpo lhe disse.

Como pode as pessoas aceitarem tais criaturas em seu aparelho?

Alguns demônios passam-se por anjos ou mensageiros divinos.

E estas pessoas acreditam piamente que são iluminadas. Mas

aquela mulher sabia quem falava com ela. E o que era pior:

havia certa cumplicidade entre os dois.

–Quero esta mulher em minha sala imediatamente. Os

demais, voltem aos seus afazeres. Direi quando for a hora do

espetáculo. - disse a um dos guardas ao passar por mim.

O guarda pegou-me pelo braço e conduziu-me junto à

madre. Juanita parecia uma mariposa em volta da fogueira. Não

sabia qual rumo tomar. Todos os demais ficaram olhando

espantados, sem nada entender. Fui colocada do lado de fora da

sala da nova madre superiora. O guarda ficou em pé ao lado,

como se fosse uma estatueta. Fiquei parada, ali, por quase duas

horas, sem poder me mover. Ao término da conversa que teve

com as irmãs responsáveis pelo convento na ausência da madre

Edwiges, fui mandada entrar. E pelos rostos entristecidos das

duas irmãs ao saírem, pude sentir o que me estava esperando.

– Estou a postos, madre Madylene. Em que posso servi-

la?

Entrei e fiquei em pé, no meio da sala. Ela circulou todo

o cômodo com os braços para trás. Quando já estava para dar a

segunda volta em torno de mim, disse:

– Nunca mais mencione o meu nome, filha do demônio.

Sei muito bem quem é. O Senhor disse-me assim que entrei

neste lugar e coloquei os olhos em você. Saiba que a partir de

hoje não terá nenhuma regalia. E lhe será aplicado o castigo do

silício, para puni-la de seus pensamentos impuros. A dor fá-la-á

refletir sobre seus atos pecaminosos e mostrar-lhe-á a verdade.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 612 -

Eu estava de cabeça baixa para demonstrar humildade.

Sabia que não seria bom irritá-la ainda mais. Mas também não

podia me calar diante de tais acusações injustas.

– Senhora, apenas lhe perguntei em que poderia ser útil.

Que mal eu, uma pequena e insignificante criatura, posso vir a

lhe causar?

Ela deu uma risada que mais parecia estar vindo das

profundezas do inferno.

– Realmente, a mim nada pode fazer mesmo. Mas o anjo

de Deus avisou-me, assim que coloquei os pés neste convento

pecaminoso, que eu deveria ser a mão da justiça aqui dentro.

Você será a primeira que deverei punir.

Desta vez, olhei-a nos olhos fixamente e disse-lhe:

– Nós duas sabemos que não é o anjo de Deus quem lhe

fala essas coisas.

O seu rosto transfigurou-se na minha frente. O demônio

estava irado e sentindo-se desafiado. Não me deixei intimidar e

prossegui:

– Nunca, nem sob tortura, nem sob pena de morte, irá me

tirar a essência. Vou morrer porque escolhi este destino. Escolhi

aceitar a minha missão. Pode enganar seus superiores nesta

terra, com sua postura de santa, mas sabe bem que posso vê-lo.

Como mulher e como ser humano, nada posso fazer contra você.

Mas, como mística, posso - e sabe muito bem disso. Tem medo

de que eu possa libertar esta pobre mulher que vem sugando

toda a sua energia vital.

O demônio jogou o corpo da madre ao chão e veio diante

de mim. Era deforme e monstruoso. Sua voz era rouca e

abominável aos ouvidos terrenos. Apertei as mãos uma contra

outra, criando em volta de mim um círculo de proteção. No

mesmo instante, uma luz formou-se ao meu redor e o círculo

fechou-se. O demônio não podia entrar no círculo. O que está

Adriana Matheus

- 613 -

dentro não sai e o que está fora não entra. Esse é o significado

do círculo. O demônio urrava e debatia-se como um louco.

Falou comigo a língua que só Deus e ele poderiam entender.

Respondi-lhe sem demonstrar o menor medo. Ele se espantou ao

ver que eu podia entendê-lo. Apertei mais forte as mãos e, em

oração, chamei por Heixe, que me socorreu de imediato.

Wallejo entrou naquele momento e presenciou a cena.

Tentou entrar no círculo, mas foi impedido pelo campo de luz.

Heixe ordenou que o demônio se fosse e ele mesmo, a

contragosto, teve que se retirar. Na mesma hora, caí por terra.

Wallejo veio socorrer-me e, espantado, olhou para Heixe, que

desapareceu no ar.

– Anna, meu amor, o que houve? – disse, abraçando-me.

– Ela é o nosso destino… - disse, sem forças ainda.

Contei-lhe em pormenores tudo o que se sucedera. Ele

ficou perplexo, olhando a madre caída e desacordada ao chão.

– Sempre ouvi falar em demônios, mas nunca tinha visto

um. Esta foi minha primeira vez.

– E não será a última, meu amor. Ele se afastou por

alguns momentos, mas voltará muito mais irado sobre nós dois,

pois agora ele sabe que você também pode vê-lo.

– Não o temo. O verdadeiro Deus é conosco.

–Disso tenho certeza. Mas este tipo de demônio

influencia a mente das pessoas, principalmente as que têm

algum poder. É assim que ele age. Pode colocar alguém, como

esta pobre mulher, para nos prejudicar.

– Pobre? Ainda tem pena desta peste? Ela quase a matou

e ainda lhe impôs castigos.

– Ela não sabe o que está fazendo. Este tipo de demônio

toma a mente e o coração de suas vítimas, deixando-as

completamente dominadas.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 614 -

– Quero que fuja comigo. Diga que vai fugir, por favor!

Anna, não me importo comigo, mas não quero deixar nada

acontecer com você. A única solução que vejo, depois do que

presenciei há pouco, é a fuga.

– Não deixarei minha amiga Juanita para trás. Ela tem

sido muito boa comigo nas últimas semanas. Não posso fugir

sem ela.

– Apenas diga que irá comigo. Não me importo com

quem queira levar conosco, desde que diga que aceita fugir.

– Sim, meu amor, irei contigo aonde quer que você vá.

Ele beijou-me com doçura e ajudou-me a levantar do

chão, pois nem havíamos percebido quanto tempo ficamos ali,

naquela posição, abraçados. Em seguida, fomos em direção à

madre. Colocamo-la à sua mesa, sentada na cadeira. Wallejo

tentou reanimá-la. Quando a mulher despertou, sem saber de

nada que me aconteceu, demos um caneco d’água a ela. Sua voz

era outra, doce. Seu semblante era sereno, completamente

diferente de quando o demônio estava nela. Era muito provável

que ela teria pouco tempo de vida. Por algum motivo, aquele

demônio não a deixaria nunca mais.

– A senhora está bem, madre? - perguntou Wallejo.

– O que aconteceu? Onde estou?

– Está em sua sala. Parece ter tido uma indisposição.

Pode ter sido causada pela viagem muito longa.

– Entendo. Preciso ficar a sós. Depois falamos

novamente.

Wallejo e eu saímos imediatamente, sem mais nada a

dizer. Avisamos ao guarda que a madre queria ficar sozinha e

que não queria ser incomodada por ninguém, como ela nos

havia ordenado. Seguimos em silêncio pelos corredores, para

não levantar suspeitas. Ao chegar próximo à igreja, ele disse:

Adriana Matheus

- 615 -

– Encontre-me hoje com a irmã Juanita perto do celeiro.

Temos que combinar nossa fuga.

– Sim, falarei com ela imediatamente.

Fui para o refeitório e vi a irmã Imaculada chorando.

Percebi que a madre já havia aprontado das suas! Tomei a tigela

de mingau de aveia, meio a contragosto. Lavei todas as louças

que estavam por lavar. Corri para a lavanderia, dobrei a pilha de

roupas que estava por cima de um móvel. Corri com a costura

do dia, não queria levantar nenhuma suspeita. Havia em todo o

convento um clima de medo e tristeza. Aquela mulher mal havia

chegado e já trouxera na bagagem o terror àquele lugar

harmônico. A paz havia sido quebrada e, com certeza, aquele

lugar nunca mais seria o mesmo.

Quando encontrei Juanita perto do poço, contei-lhe sobre

os planos de Wallejo. Só que ela disse que não iria conosco, pois

estava acima do peso e só iria nos atrapalhar em nossa jornada.

Disse que, ficando por ali, não levantaria suspeitas caso

precisássemos dela futuramente. Concordei com ela. À noite,

logo após todos estarem dormindo, eu e Juanita fomos nos

encontrar com Wallejo. Passamos para ele a decisão de Juanita e

ouvimos, nos mínimos detalhes, os planos para a fuga. Não

demoramos a conversa desta vez, porque o convento estava

repleto de guardas por todos os lados. Iríamos esperar o

momento certo para a fuga.

No dia seguinte, fui acordada aos safanões por várias

pessoas, acompanhadas da madre superiora. Com ela, estavam

duas irmãs de sua confiança, que pediram aos guardas para

saírem da cela e colocaram em minha perna o silício. A dor era

tamanha que as lágrimas escorreram dos meus olhos, sem que

eu fizesse o menor esforço. Em volta do silício, foi colocado um

pequeno cadeado que prendia as partes para que eu não pudesse

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 616 -

soltá-lo. À medida que ela o apertava, o sangue escorria. Ela

disse, por fim:

– Isso é só começo. A cada dia, quero que um nó seja

apertado. O sofrimento ensina aos pecadores a grandiosidade da

fé.

Saiu em seguida, com suas apóstolas seguidoras. Fui

para a sacristia encontrar Wallejo. Tentei disfarçar a dor que

sentia, mas ele percebeu que eu estava estranha com ele.

– O que houve?

– Nada, meu amor. Só acordei indisposta esta manhã.

Ele tentou abraçar-me, mas me afastei, dizendo que não

podíamos arriscar. Minha perna estava latejando. Dei-lhe um

beijo na testa e disse para confiar em mim. Fui saindo, em

seguida. Quando eu estava já perto da porta, ele me puxou pelo

braço.

– Espere. Por que está puxando a perna?

– Acho que torci o pé, não lembro onde!

Ele sacudiu a cabeça negativamente.

– Por que está mentindo para mim? Deixou um rastro de

sangue por toda a igreja.

Ao perceber o sangue escorrendo, desabei em prantos.

– A madre mandou que colocassem silício em minha

perna direita esta manhã. Deve ter perfurado minha carne. Está

doendo demais.

– Então, vamos tirar agora! Não tema, serei cauteloso.

– Você não entende?

– Não fique com vergonha de mim! Casar-nos-emos ao

chegarmos a Londres. Não há mal que eu veja suas pernas. -

dizendo isso, ajoelhou-se e levantou o meu hábito.

– Desgraçada, maldita! Ela colocou cadeado. Temos que

procurar um ferreiro imediatamente para ver o que

conseguiremos fazer.

Adriana Matheus

- 617 -

– Não. Posso aguentar até a fuga. Mas, se tirar agora,

elas irão perceber. Porque a madre deixou bem claro que irá

apertar um nó a cada dia.

Ele desandou a chorar. Ajoelhei-me perto dele.

– Não quero que fique assim por mim. Vamos conseguir.

Mas não podemos fraquejar agora.

– E como quer que eu fique, sabendo que estão matando

você lentamente?

–Passaria por tudo de novo se soubesse que o encontraria

apenas por um segundo. Precisamos ter cuidado. Tenho que

voltar às minhas tarefas. Cuide-se.

Ele não quis me deixar sair. Tive que ser forte. O dia

custou a passar. A semana custou a passar… E, quando percebi,

já haviam se passado três meses. A dor, por causa dos

ferimentos causados pelo silício, estava ficando insuportável. Já

puxava a perna visivelmente. Ela estava ficando escurecida.

Quase não me dava fome, por causa das febres. Havia noites que

nem dormir eu conseguia. Minha perna já não sangrava, mas

tinha muitas infecções. A madre não deixava que ninguém me

ajudasse. Os únicos remédios eram o vinagre e o sal, mas já não

faziam efeitos. As próprias irmãs que acompanhavam a madre

comentavam que não poderiam mais fazer aquilo, porque eu

perderia a perna se continuassem. Ela simplesmente ignorou.

Certa manhã, Juanita veio acordar-me, dizendo que eu

tinha recebido visitas e estavam na sala da madre superiora,

esperando-me. Quando ela viu o meu estado, ficou apavorada.

Minha perna estava muito mal. Eu estava tendo calafrios. Fui

apoiada em Juanita até a sala da madre superiora. Na entrada,

antes de entrar, ela disse:

– Vou falar com o padre Ângelo. Não a abandonarei,

amiga. Acredite: ficarei com você até o fim.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 618 -

Sorri meio sem força e entrei. Fiquei sem palavras ao ver

quem eram as minhas visitas.

– Minha nossa, você está verde! O que anda comendo?

Muitas folhas, pelo que vejo! - disse a condessa, com um

sarcasmo ridículo.

– Madre, o que fizeram a ela? Sinto informar, minha

querida, mas está péssima.

– O que os dois estão fazendo aqui? Vieram ter certeza

de que eu havia morrido? Pois se é isso, perderam o tempo.

Estou muito bem.

– Não é o que vejo, queridinha! A propósito, viemos

aqui comunicá-la do falecimento de seu pai. Não que mereça.

Mas, por uma questão de ética, achamos melhor comunicá-la.

– Meu pai faleceu? Como isso aconteceu? Sei que estava

com a saúde debilitada, mas não era nada de tão grave. O que

foi que vocês fizeram, seus monstros?

– Ora, senhorita! Que acusações mais levianas! E logo

comigo? Sempre fui fiel ao seu pai! Feriu-me os sentimentos,

quero que saiba disso! - virou-se, fingindo enxugar uma lágrima.

– Senhorita, sei bem como deve estar se sentindo. Espero

poder fazer alguma coisa por você. Usarei todo o poder que

tenho para tirá-la daqui. Ainda a amo. Minha nobreza é tamanha

que me fez perdoá-la. - disse o falso conde.

– Que foi que aconteceu com o meu pai?

– Infelizmente, foi atacado por saltimbancos durante

uma de suas viagens de negócios. Eles assaltaram o pobre

homem, que não teve a menor chance contra os larápios. Sabe o

quanto eu gostava de seu pai! E ele de mim também. Tanto que

me passou a procuração de todos os bens dele em meu nome.

Disse, ainda em vida, que faria muito gosto de nossa união. É

claro que também receberei o seu dote quando nos casarmos.

– Nunca me casarei com o senhor. É um…

Adriana Matheus

- 619 -

Eu ia acusá-lo quando Wallejo entrou na sala, sem bater.

– Padre Ângelo, que insubordinação é essa? - disse a

madre superiora, espantada.

– Disseram-me que a senhora havia passado mal. Então,

vim correndo ao seu socorro. - ele falava com a madre, mas seu

olhar era fixo em mim.

– Como pode ter comprovado, estou muito bem. - disse a

madre, desconfiada a nos olhar atentamente.

Quando ele viu quem era a figura à sua frente, seus olhos

fumegaram. Ambos não mencionaram uma só palavra. Mas,

pelo duelo de olhares, pude perceber que não era boa a situação.

– Sim, madre! Pelo que pude perceber, está realmente

muito bem... Só sinto quanto à companhia.

– O que o senhor está insinuando, padre Ângelo? Tenho

aqui em minha sala pessoas nobres e que vieram aqui de muito

longe, preocupadas com o bem estar de uma interna. Tenho que

afirmar que o senhor interrompeu uma reunião familiar.

– Espero, realmente, que a senhora saiba o que está

fazendo. Prometo voltar aqui em outro momento mais oportuno

para falarmos sobre este assunto, que ficará pendente por hora.

Ele me olhou com piedade, mas não pôde demonstrar

nenhum sentimento. Quando ele saiu, todos se olharam com

cumplicidade. Pude perceber que algo estava sendo tramado

contra nós. À noite, quando encontrei com Wallejo no celeiro,

como já estava acostumada a fazer quase todas as noites, ele

tentou cerrar o silício. Mas foi inútil: a cada tentativa, cortava a

carne, que já estava muito debilitada.

– Vamos fugir hoje. – disse ele, sem pestanejar.

– Não posso, amor. Vá você. Só servirei para atrasá-lo.

Estou muito doente. Não conseguirei seguir viagem. Meu fim já

é este.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 620 -

– Não vou deixá-la nunca aqui, minha amada. Vai

comigo a qualquer preço. Ajudá-la-ei. Juntos, conseguiremos. É

a minha vida, o ar que respiro. Nunca a abandonarei. Ficaremos

juntos para sempre.

Imediatamente, coloquei a mão sobre sua boca, pois ele

acabara de fazer uma jura eterna.

– Não faça isso, meu amor! Já lhe disse tantas vezes

sobre perigo de uma jura... Poderemos ficar por séculos presos

um ao outro.

– Não me importo. Só quero ficar com você.

– Então, esperemos mais uma semana, por favor!

Prometo que depois irei com você aonde queira.

Juanita discordou da minha ideia. Mas, por fim, consegui

convencê-los. A semana passou tortuosa. Meu quadro clínico

piorava dia após dia. Eu e Wallejo éramos vigiados até durante

as refeições, mas ele não se importava com nada. Não queria

deixar-me nem um segundo. Mal fazia minhas tarefas. A irmã

que ficava na cozinha também havia sido substituída por uma

das irmãs de confiança da madre superiora. Guardas estavam

espalhados por toda a parte. Não parecia um convento, mas uma

prisão. Irmãs e noviças eram punidas diariamente. O medo

espalhou-se de tal forma que algumas enlouqueceram, sendo

levadas a manicômios. Até que, finalmente, aproximou-se o

sábado: o dia escolhido para a nossa fuga. Estávamos dentro da

sacristia, beijando-nos, e fomos flagrados pela madre superiora,

que gritou:

– Filhos de Satã estão maculando a casa de Deus!

Guardas! Levem estes devassos para a prisão imediatamente.

Logo os guardas vieram ao socorro da madre, como

cachorrinhos obedientes. Wallejo pulou à frente e disse:

– A senhora não pode encostar um dedo em nós! Tenho

uma carta do rei da França dando-me imunidade por serviços

Adriana Matheus

- 621 -

prestados e por ser um cavaleiro da ordem. Mereço um

julgamento justo. Exijo que a senhora comunique os fatos

ocorridos a meus superiores imediatamente, para que eles

possam julgar-me dentro das leis.

Os olhos da mulher pareciam ter brasas de fogo. Mas,

com isso, Wallejo estava ganhando tempo.

– Também quero que um médico seja chamado neste

local, pois há vários doentes aqui e acredite, irmã: seus crimes

serão avaliados também.

Fui levada à minha cela, onde permaneci sem poder sair

por duas semanas. Um médico veio olhar-me e tratou-me de

tirar o silício. As feridas estavam cheirando muito mal. Wallejo,

segundo Juanita, não estava sob prisão como eu, por causa da

imunidade dada pelo rei. Todos os dias, mandava-me um

girassol e um bilhete, confortando-me. Finalmente, os superiores

de Wallejo chegaram ao mosteiro. Eram eles: Dom Servano

Gusmano, ministro real; Lorde Jean Perrion, chefe da guarda

real; e Dom Renan Marcovilles, emissário do rei.

O julgamento de Wallejo durou quase um ano a fio. Ele

estava sendo absolvido quando, certa manhã, aconteceu algo de

inesperado. Wallejo entrou na igreja porque havia sido chamado

por um de seus superiores. Ao chegar lá, encontrou um homem

encapuzado apunhalando Dom Renan Marcovilles. Wallejo

ainda conseguiu lutar com o assassino e tomar-lhe o punhal.

Mas este foi mais ágil e conseguiu fugir. Wallejo abaixou-se

perto do amigo e ele ia lhe contar quem era o assassino. Mas, de

repente, viu-se rodeado de soldados e de todos os seus amigos!

Haviam preparado uma emboscada para ele. Ele tentou explicar,

mas ninguém o ouviu. Foi conduzido ao patíbulo e, em seguida,

seria levado à corte. Wallejo, então, correu e apanhou um

cavalo. Conseguiu fugir. Os guardas tentaram alcançá-lo, mas

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 622 -

ele era muito ágil em cima de um cavalo. Assim, não foi

apanhado. E eu, mais uma vez, fui abandonada pelo meu amor.

Mediante tais fatos, a madre novamente tomou posse de

seu cargo. Os cavaleiros e os demais seguiram em direção à

Roma para velar o corpo do companheiro assassinado e levar as

notícias ao papa. Wallejo seria excomungado pelo papa e

expulso da ordem. Ele era inocente, mas demonstrou covardia

em todos os sentidos. Fui trancada em um calabouço frio e,

novamente, colocaram o silício em minha perna. Meu diário foi

roubado e trancado a sete chaves na sala da madre superiora,

mas Juanita logo deu um jeito de afaná-lo para mim. Cavei um

buraco ao chão, onde pude escondê-lo. A madre fez vistoria em

minha cela várias vezes, mas nada achou. Minha cela era suja e

úmida, de chão de terra. Havia ratos por todo o lado. Devido ao

mau cheiro e ao estado de putrefação da minha perna, eles

começaram a roer-me à noite. Já não tinha permissão de ter

ninguém para me visitar, pois já estava nas últimas e havia

pedido um padre para a extrema unção. Juanita acompanhou o

padre até o calabouço, onde pude vê-la pela última vez. Juanita,

ao me ver, correu e veio abraçar-me. Porém, afastei-a de junto

de mim e disse, baixinho:

– Ele me abandonou! Jurou amor eterno, mas me deixou

aqui, ao relento. Nunca o teria abandonado. Quero que faça um

último desejo meu.

Ela estava chorando muito, mas não me negou.

– Pare com isso! Não vai morrer nada. Ainda vamos

juntas ouvir os cantos gregorianos na capela.

– Não os ouço mais. São tão bonitos, não são?

– Sim, são.

Ela levantou o lençol e, ao ver como estava minha perna,

imediatamente tapou o rosto com as mãos. Até mesmo o padre,

Adriana Matheus

- 623 -

presente com mais outras duas freiras, esquivaram. Vi quando

uma vomitou sem querer.

– Estou muito mal, não é? Não sinto mais a perna.

Ela havia granguenado. A carne estava se soltando dos

ossos. Juanita segurou em minhas mãos, tentando confortar-me.

– Não está nada. Está linda e saudável, como da primeira

vez em que a vi.

– Há quanto tempo estou aqui?

– Três anos.

– Fui muito ruim. Por isso mereci tal castigo, não foi?

– Não, amiga. Não foi nada. É a pessoa mais

maravilhosa que já conheci, de uma força e sabedoria sem igual.

Aprendi muito com você e passarei a sua história a todos que

cruzarem o meu caminho.

Queria sorrir, mas não tinha mais os meus dentes. Senti

vergonha.

– Quero que saiba de uma coisa: Wallejo mandou cartas

todos os dias em que esteve aqui nesta prisão. Mas perdoe-me,

amiga: achei que lhe escondendo isso, fá-la-ia suportar os dias.

Falando isso, tirou um monte de cartas de dentro do

hábito.

– Perdoe-me, por favor! Achei que estava a lhe fazer um

bem.

– Quem sou eu para perdoar alguém. Sei que pensou no

meu melhor. Só quero que as leia pra mim agora.

Ela começou a ler, uma a uma. Wallejo dizia que não me

esquecera um só dia. Em algumas cartas, ele reclamava da falta

de respostas. Mesmo sem resposta, ele me escrevia. A dor das

palavras, causada pela distância e pelo suposto desprezo que ele

achava que eu sentia por ele, fez-me chorar compulsivamente.

Ele passou por muitas coisas ruins. Dormiu em ruas escuras e

frias, fugindo da milícia, que estava sempre à sua busca. Viajou

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 624 -

clandestinamente em uma caravela, cuja tripulação foi quase

toda morta pela peste. Wallejo sofreu horrores. Naquele

momento, estava de volta à Espanha, refugiado em um farol

abandonado. Ele mencionava em uma de suas últimas cartas

que, às vezes, ia à beira de um precipício e tentava se jogar lá de

cima, mas o vento lhe dizia para não fazê-lo porque eu o amava.

A certeza era tão grande que ele não o fez na esperança de me

encontrar um dia novamente. Fiquei imaginando o lugar em

meus pensamentos. Vi-o em visões. Como era azul o mar da

Espanha! O mar que eu nunca realmente pude conhecer. Do alto

do precipício, viam-se as rochas lá embaixo. O vento trazia o

cheiro do mar. A relva que se formava na beira do precipício era

úmida e macia... Meus cabelos voavam e eu me sentia livre.

Juanita tentou me chamar para eu voltar a mim novamente, pois

estava partindo. Segurei em suas mãos e disse:

– Leve este diário a Wallejo. Deve-nos isso.

Ela concordou com a cabeça. Olhei e vi uma enorme luz

à minha frente: Heixe estava ali. Com mais seis outros que não

conhecia, pegou minha mão e senti paz. Meu corpo levitou e eu

não estava mais suja ou ferida. Eles me sorriram e Heixe disse:

– Seja bem-vinda, minha filha!

Olhei para trás e vi Juanita chorando, muito abraçada ao

meu corpo. Vi o padre jogando água benta em mim, rezando em

latim junto às freiras. Fui levada à enorme luz que surgiu à

minha frente. Chegando do outro lado do lugar - que chamei de

cidade dos anjos-, fui levada a um hospital, onde permaneci

adormecida por dias. Quando acordei, Heixe cumprimentou-me

com um largo sorriso e apresentou-me a um jovem que se

chamava Laionel. Laionel era um rapaz esguio, tranquilo, quase

não dava para ouvi-lo falar. Todos se trajavam de linho branco.

Aquela vestimenta era padrão. Laionel explicou-me várias

coisas, inclusive o fato por eu ter estado dormindo durante tanto

Adriana Matheus

- 625 -

tempo. Era para eu recuperar minhas forças, pois em minha vida

terrena eu havia tido muitas contrariedades. Por isso, precisei

pôr meu espírito em repouso para que, ao acordar, estivesse

mais serena e pudesse compreender a grandeza da minha

missão. Segundo ele, eu já havia falecido havia dois anos no

plano terreno. Laionel passou-me sua sabedoria. Logo depois,

conduziu-me à colônia onde eu ficaria. A colônia de La paz era

maravilhosa. Suas casas eram em estilo colonial, com enormes

jardins ao redor de todas elas. Tudo era tão limpo e organizado!

Conheci meus companheiros, eles dividiram a casa comigo. José

Manuel havia sido um carpinteiro e, em sua vida terrena, foi um

homem muito revoltado, pois não estava satisfeito com sua

condição humilde. Ele estava aguardando ser transferido de

colônia para ser preparado para uma nova encarnação, onde teria

que ser um homem rico, porém escravo de seus bens e da

sociedade à sua volta. Isso o faria valorizar a liberdade que teve

quando era um simples carpinteiro, que tinha uma bela família e

não soube dar valor a este bem tão precioso.

Havia, também, Maria Aparecida, uma mulher

lindíssima. Quando encarnada, foi uma cortesã e levou muitas

jovens a segui-la no caminho da prostituição. Maria tirou muitos

maridos de suas esposas e deixou muito rastro de sofrimento e

revolta por onde passou. Ainda não sabia qual seria seu destino

ao reencarnar, pois estava em estudos para aprender a lidar com

seu remorso. Laionel, por meses, conduziu-me a lugares

diversos, mostrando-me várias colônias e ensinando-me diversas

coisas. Por fim, quando eu estava preparada e já havia se

passado mais alguns anos, ele me disse:

– Tenho permissão de levá-la à Terra para ver sua amiga

Juanita e o padre Ângelo.

Fiquei muito feliz. Já havia aprendido a volitar e era a

primeira vez que eu ia poder passar pelo portal. Descemos à

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 626 -

Terra, como se fosse fração de segundos. A impressão que dava

é que caíamos. E dava para se ver vários planos terrenos ao

mesmo tempo, e várias épocas. Era como se fosse um túnel do

tempo. Chegamos ao plano terreno, por fim. Laionel mostrou-

me Juanita, que estava em uma taberna, escondida da milícia.

Ela havia fugido do convento e estava por anos à procura de

Wallejo, para entregar o diário que eu havia pedido a ela.

Emocionei-me ao ver sua fidelidade a mim. Minha missão

parecia não ter terminado ainda, pois tive que induzi-la

mentalmente ao local onde Wallejo se encontrava.

Juanita passou por várias etapas difíceis até chegar ali,

onde estava. Foi torturada e perdeu a visão de um dos olhos. Por

fim, conseguiu escapar e estava ajudando os pobres e

miseráveis. Mantinha-se escondida em tabernas e, às vezes, em

celeiros. Ela ensinava pessoas analfabetas a ler e a escrever. Elas

lhe pagavam como podiam. Em uma noite, materializei-me a

ela. Ensinei-lhe o caminho até onde Wallejo estava. Fi-la pensar

estar sonhando, pois não temos o direito de assustar ninguém. Se

um espírito faz isso, por certo não tem luz, é um obsessor. Ao

cantar do primeiro galo daquela manhã, ela se aprontou e saiu

para não ser vista por ninguém. Pagou um cocheiro para lhe

levar ao topo da montanha onde Wallejo se escondia. Ele estava

arando a terra. Ao avistar a pequena charrete, foi correndo ao

encontro para ver quem era. Quando viu de quem se tratava, foi

ao seu encontro, de braços abertos.

– Onde está Anna? Não veio com você?

Juanita abaixou a cabeça, tristemente, dizendo:

– Eis aqui tudo o que sobrou dela. - entregando a ele o

meu diário.

Ele, no entanto, ao vê-lo nas mãos de Juanita, prostrou-

se ao chão como uma ovelha caindo aos prantos. Depois disso,

convidou-a para dentro de sua casa, onde conversaram sobre

Adriana Matheus

- 627 -

tudo o que havia se passado comigo desde a sua fuga. Juanita

contou-lhe que a madre, ao ver-se destituída de seu cargo,

suicidou-se. E que ela e as irmãs que ficaram no convento iriam

ser transferidas para outro. Foi durante esta transferência que ela

fugiu, fingindo cair em um rio de correnteza forte. Deram-na

como morta. Mas ainda tinha medo de ser encontrada. Por isso,

vivia às escondidas.

– Não a abandonei. Sempre lhe mandei as cartas. Avisei

que, assim que tudo estivesse bem, buscá-la-ia e tirá-la-ia

daquele lugar. Mas ela nunca as respondeu.

– Se que fui culpada. Achei que, entregando suas cartas à

Anna, apenas estaria alimentando seus sonhos. - disse ela, com a

cabeça baixa

– Não podia ter feito isso conosco! Voltei ao convento,

mas ele estava todo incendiado. Não havia nenhum vestígio de

ninguém. Fiquei sem saber onde procurar. Imaginei que Anna

tivesse se casado com aquele crápula para não mais passar os

sofrimentos que a madre lhe impunha.

– Anna jamais faria isso. Ela o amou até o último

momento de sua vida.

– E como conseguiu guardar este diário?

– Fiz um pequeno canteiro de girassóis, próximo ao local

onde Anna foi enterrada. Enterrei-o. Assim, ficou fácil achá-lo

mais tarde. O engraçado é que os girassóis nunca morriam.

Várias vezes a madre superiora arrancou as flores. Mas, no dia

seguinte, lá estavam elas novamente, lindas como nunca.

Ele sorriu, emocionado.

– Obrigado por trazê-la para perto de mim novamente.

– Não faço isso pelo senhor. Faço isso por Anna. Devia

isso a ela. Além do mais, nós é que temos que agradecê-la. Pois

tenho certeza de que ela foi responsável por eu ter encontrado o

caminho até você.

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 628 -

Juanita, então, contou-lhe de seu sonho, e de como

sempre se desencontrava do caminho a seguir. Eles tomaram chá

juntos e, depois, despediram-se. Seria a última vez que os dois

se veriam. Juanita foi pega em uma emboscada. Depois de ter

sido torturada para dizer onde estava Wallejo, não resistiu e

faleceu. Fomos recebê-la como muito gosto. Estava em

recuperação, no hospital.

Seis semanas passaram-se e Wallejo recebeu uma carta

de Maria, dizendo que iria encontrá-lo e que gostaria de que ele

lhe entregasse o meu diário, para poder passar minha história a

todas as irmãs da irmandade. Imediatamente, ele a respondeu,

dizendo que seria um prazer lhe entregar em mãos tal tesouro.

Só que Wallejo estava sendo vigiado e não sabia. O mensageiro

que lhe levou a carta de Maria foi seguido e não retornou com a

resposta para ela. Certa manhã, Wallejo estava em pé, à beira do

precipício, como tinha o costume de fazer todas as manhãs.

Assim, ele orava e comungava com a natureza. Às vezes,

deixava-lhe sentir meu cheiro ao vento. Nunca abandonei o meu

amor. Sempre que podia, estava perto dele durante os seus

sonhos. Naquela manhã, uma pessoa misteriosa aproximou-se

de Wallejo.

– Então, finalmente o encontrei de novo. - disse o

homem, aproximando-se por trás.

Ele virou e reconheceu o encapuzado, dizendo:

– Ao menos retire esta capa e deixe-me olhar nos olhos

do assassino de meu amigo.

O homem retirou a capa e, para a surpresa de Wallejo,...

– Eu deveria ter suspeitado. Mas por que assassinou

Dom Renan Marcovilles? Ele nada lhe fez. Era um bom homem.

E em que ele poderia estar interferindo em seus planos?

– Sim, concordo com você. Ele era bom demais, e estava

interferindo, sim, em meus planos. Pois, antes de chegarem ao

Adriana Matheus

- 629 -

convento, procurei-os e tentei-lhes convencer dos benefícios que

poderiam ter se ficassem ao meu lado. Mas Dom Renan foi o

único que não quis sequer me ouvir. E o que é pior: ainda

convenceu os demais de, ao voltarem a Roma, fazerem uma

denúncia formal contra mim. Além do mais, o senhor conseguiu

conquistar o amor da única mulher que eu realmente amei nesta

vida.

– Amou? O senhor chama o que fez à Anna de amor?

Jogou-a naquele lugar ao descaso da miséria! Provavelmente foi

o culpado pelo assassinato do pai dela.

– O senhor não entende, não é? O sucesso tem seu preço.

Além do mais, Anna era muito orgulhosa e precisava de uma

lição. Mas… ela morreu e a vida continua.

– O senhor é um doente! Senhor, deixou que Anna

morresse por capricho e por orgulho ferido. Isso não era amor.

Jamais saberá o que é amar e ser amado. Não poderei deixá-lo

impune de seus crimes. Eu mesmo farei a denúncia contra você.

Aliás, adiei muito tempo isso.

– Sim, adiou. Foi um covarde como eu. O senhor a

deixou para salvar a própria pele. Creio não sermos tão

diferentes assim. Ela foi uma tola de tê-lo escolhido. Bastava um

sim e teria tido uma vida de rainha.

– Sabe muito bem que vivo esta culpa. Fui um covarde,

sim. Estava esperando o momento de resgatá-la. Mas esperei

tempo demais, sei disso! Ela era e sempre será o meu único

amor. Nunca a esquecerei. Se ela estava certa quanto a outras

vidas… procurá-la-ei pela eternidade se assim for preciso.

O falso conde deu uma sonora gargalhada.

– Acredita nestas sandices? Nunca a terá de novo

porque, se isso fosse verdade, eu nunca os deixaria em paz.

Quero que saiba de uma coisa: em breve os guardas e outros

estarão aqui. Eu lhes disse que encontrariam o assassino de Dom

O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin

- 630 -

Renan aqui, neste local, mas esqueci de dizê-los que o homem,

após confessar-me a culpa, suicidou-se.

Dizendo isso, investiu contra Wallejo e o jogou do

despenhadeiro. Em seguida, jogou o capuz para confirmar o

crime. Ele procurou o meu diário, mencionado na carta de

Wallejo à Maria, mas nada achou. Quando os soldados e os

demais chegaram, ele disse exatamente a versão que tinha já

arquitetado. Todos acreditaram que Wallejo era o assassino de

seu amigo e também do duque. Suicidou-se porque a culpa lhe

pesava os ombros. Alguns dias depois, Maria chegou ao local,

pois havia ficado sabendo da tragédia através dos boatos que se

espalharam no vilarejo próximo à floresta onde ela morava. Ela

tentou achar o diário, mas nunca recebera a carta de Wallejo que

dizia Onde jaz meu amor, deixarei minha alma.

Wallejo voltou ao mosteiro para ver onde eu havia sido

enterrada. Em cima do meu túmulo, plantou novamente

sementes de girassol, deixando enterrado debaixo dos girassóis,

novamente, o meu diário. Embora Maria tenha suspeitado que

Wallejo houvesse escondido o meu diário nas ruínas do

mosteiro, jamais ousou mexer no meu túmulo por achar que

seria um sacrilégio. Voltou, assim, triste e sem esperança para o

meio das irmãs, onde viveu o resto de seus dias. Os girassóis

bailavam com o vento, guardando para sempre o meu segredo.

Ainda hoje o vento silva no alto do despenhadeiro,

clamando por justiça e verdade. Por isso, conto-lhes esta

história. Meu amor precisava que soubessem que ele nunca

assassinou ninguém. E que também não era um suicida. Wallejo

ficou por anos vagando em desespero, sem querer confiar nos

irmãos. Era um espírito revoltado e sem luz. Aceitou reencarnar,

mas não nos encontramos em outra vida tão rapidamente.

Também reencarnei algumas vezes, mas nunca fui feliz no

amor, porque estava presa a uma jura.

Adriana Matheus

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Hoje, Wallejo é um espírito iluminado e ajuda as pessoas

a compreenderem suas divergências. Vocês devem estar se

perguntando E Wallejo e Anna? Encontraram-se? Houve, sim,

um encontro entre nós. Tivemos uma oportunidade de nos

encontrar e de resgatar nossas vidas. Mas isso é outra história...

“Às vezes, cometemos erros dos quais nunca nos

perdoaremos. Não existe uma forma de voltarmos atrás. O

melhor é pensar antes de seguir com as ideias e vontades. O ser

humano é frágil e fraco porque sucumbe às vontades do

aparelho. Não se preocupa com o mal que faz ao espírito. Essas

consequências podem levar a várias encarnações para que este

espírito aprenda a controlar as emoções e cresça - o que pode

atrasar a sua evolução. Pense nisso. Muita paz e muita luz”.

FIM.