o segredo de esplendora - ascensão (livro 02)

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Tatiana Mareto Silva / ASCENSÃO / 1 @2011 Tatiana Mareto Silva Todos os direitos reservados; nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por meio eletrônico, mecânico, fotocópia, ou de outra forma sem a prévia autorização do editor. 1ª Edição 1ª Impressão Printed in Brazil / Impresso no Brasil ISBN 9788580451078

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Sozinha no mundo inferior, Heather precisa enfrentar a difícil ascensão que a aguarda. Enquanto ela luta para controlar a luz e mostrar a todos que não é a causa do fim dos tempos, seus amigos se colocam em todo tipo de perigo para ajudá-la. E um novo segredo, ainda mais sombrio, revela-se quando Heather realiza mais uma de suas impossíveis façanhas.

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Tatiana Mareto Silva / ASCENSÃO / 1

@2011 Tatiana Mareto Silva

Todos os direitos reservados; nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por meio eletrônico, mecânico, fotocópia, ou de outra

forma sem a prévia autorização do editor.

1ª Edição1ª Impressão

Printed in Brazil / Impresso no Brasil

ISBN 9788580451078

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CAPÍTULO 1

Ascensão

O Grande Poço era muito fundo. Heather desceu escadas de pedra escaldante por tanto tempo que ela perdeu a conta de quanto. O calor a fazia sentir-se mal; seu corpo tremia e ela suava muito, as gotículas de fluído salgado incomodavam os olhos. Ela mal conseguia coordenar os movimentos. Tentou várias vezes passar as mãos nos cabelos para retirá-los da face, mas os dedos não lhe obedeciam. Tentou enxugar as lágrimas que escorriam pelas bochechas, mas quanto mais ela levava a mão à face mais sujeira se prendia à sua pele molhada. Havia um enorme cheiro de queimado, à medida que ela descia. Era escuro, muito escuro, e não havia nada em que ela pudesse se segurar.

Enquanto descia, Heather sentia mais dor e confusão. As imagens em sua frente eram borradas e ela mal conseguia distinguir o que era real do irreal. Espectros cinzentos e de aparência assustadora voavam ao seu redor, enquanto ela tropeçava em si mesma e caía por alguns degraus. Havia fuligem, como se um fogo intenso estivesse queimando abaixo de seus pés. O calor aumentava e sua pele muito frágil ardia, mas não esboçava nenhuma reação física compatível. Ela tinha que chegar o mais perto possível do Olho de Cerno, mas ela não sabia onde ficava aquele lugar. Ela não sabia e ela não queria saber. Seus músculos estavam fracos e ela parou por algumas vezes, mas conseguiu erguer-se e voltou a descer. Quando nada mais em seu corpo lhe obedecia, Heather precisou sucumbir à força maior do que sua vontade. Caída ao chão escorregadio e úmido, ela arrastou-se por alguns metros até encontrar uma parede de pedra, e um buraco que parecia um bueiro. Arrastou-se mais um pouco até deixar seu corpo deslizar pelo buraco adentro, sentindo sua carne bater em água quente.

Heather não tinha certeza de onde estava; ela não tinha muita ciência de nada mais ao seu redor. Estava ao chão, e ela sabia que havia muita água. Ela podia ouvir o enorme ventilador girando e batendo em razão de alguma imperfeição em sua mecânica; ela podia ouvir o ruído dos espectros que voavam um pouco mais distante dela; ela podia ouvir o som do ar quente e

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pesado sendo cortado por sua respiração ofegante. “Silêncio!” ela pedia a si mesma. “Preciso ficar em silêncio.” Heather pensava, tentando a todo custo não respirar. Ou respirar o mínimo. Enquanto sua audição estava maximizada, sua visão parecia distante e turva. Ela não conseguia enxergar no escuro breu daquele Poço, e manter os olhos abertos causava dor.

A dor. Heather não sabia que aquela dor poderia existir. Desde que caminhava pelas escadas do Grande Poço ela já sentia a dor excruciante que vinha de dentro para fora, que a impedia de concentrar-se em qualquer outra coisa. A dor, implacável, como se todo o calor do sol estivesse dentro de si, e pretendendo expandir-se. Seus órgãos queimavam, havia fogo dentro dela. Deitada na água escaldante, ela sentia seu coração bater em marteladas de ferro; ele parava ocasionalmente sempre que a dor ficava mais forte. A roupa que Heather vestia começou a ser consumida por aquele fogo invisível, e em menos de uma hora ela estava completamente nua. Ela não conseguiu envergonhar-se, nada faria diferença em comparação àquela dor.

Nada daquilo deveria fazer sentido. Heather era uma garota, apesar de não muito normal, e ela se sentia tanto como uma. Não deveria haver Anjos, Bruxos, Ogros, demônios, seres de contos de terror como aqueles tantos. Eram personagens de livros, de fábulas, de histórias para assustar crianças e fazê-las entretidas. Heather nunca gostou de livros de contos de fadas e nunca quis saber de princesas e sapos. Não era para nada daquilo existir na vida real, no mundo que ela conhecia como real. Então ela começou a considerar o que era o mundo real, o que era a realidade, o quanto de sentido sua vida inteira fez. Filosofar quando estava solitária e infeliz era tão Heather, todos já estavam acostumados com aquilo. Ela sempre esmiuçava sua vida patética na adolescência e promissora na fase adulta, e tentava achar um sentido para tudo.

Não havia sentido, então. Nada, a sua vida toda era uma mentira e ela estava jogada em um buraco quente e escuro e cercada por demônios e monstros. Ela estava em perigo e colocava todos que amava em perigo. Ela arriscava Mills, o Anjo bondoso que cuidou dela mesmo enquanto ela desdenhou de sua história. Ela arriscava o Ogro Belissarius e sua esposa, que a acolheram com tanta gentileza. Ela arriscava os Elfos que a ajudaram a esconder-se no Mundo Inferior, interferindo no que não era de sua responsabilidade. Ela arriscava Henry, a razão pela qual ela não se importava com nada que fizesse sentido. Não deveria ser daquela forma. Ela precisava resolver aquele problema, deixar de ser uma criatura inútil e mostrar-se aquilo que todos temiam. Heather, o Anjo poderoso que poderia significar o fim do mundo. Heather, que apesar de tudo não iria colocar fim em nada.

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Mas doía tanto e estava tão quente que ela pensou que não fosse conseguir. Seu corpo convulsionava e os espasmos eram fortes. Os dois braços envolviam os joelhos e ela balbuciava palavras ininteligíveis, tentando concentrar-se para não sucumbir à dor. Os olhos estavam fechados. Foram horas de tortura e sofrimento, e aquilo parecia que não ia acabar nunca. Às vezes ela se sentia esticar toda, como se estivesse se espreguiçando. Mas não era por sua vontade, tudo acontecia involuntariamente. Seu corpo não obedecia mais ao seu cérebro, os comandos eram dados por alguma outra coisa que ela não identificava. Estavam desconectados, cérebro e músculos. Outras vezes ela se enroscava como uma cobra acuada, encolhendo-se o máximo que seus ossos permitiam.

“Heather.” a voz ecoou em seus ouvidos. Ela abriu os olhos em reflexo, sem sequer ter certeza se podia fazê-lo. Olhou em volta, sentindo um torpor milagroso que a fez relaxar por alguns segundos. Seus dedos estavam iluminados e sua pele brilhava como um diamante sob a luz. Havia pequenos feixes de luz percorrendo sua pele inteira, e ela viu faíscas emanarem de seu corpo. “Heather, ouça-me.” a voz novamente. A garota teve medo, sentiu-se apavorada. Ela estava em um lugar horrível e medonho, nada que falasse com ela ali deveria ser bom ou querer o seu bem. “Quem é você?” ela pensou, porque sabia que devia ficar em silêncio. “Saia daqui, deixe-me em paz.” Heather tremeu novamente, e seus olhos se fecharam em um impulso. “Eu quero te ajudar, Heather. Concentre-se; você precisa se concentrar.” a voz era suave, e parecia a voz de Mills. Mas não era, porque Mills não precisava mais falar com ela daquela forma. As duas já eram próximas o suficiente.

“Eu estou com medo.” Heather disse, por fim. Ela não queria confiar na voz, mas algo dentro dela proibiu-a de temê-la. “Eu quero ir para casa, eu quero fazer parar essa dor.”

“A dor vai passar, Heather.” a voz ficou mais próxima, e os espasmos aumentaram. “A ascensão é assim, muito sofrida. Mas mais sofrida para você, que está fora de seu ambiente e atormentada por seus pensamentos. Heather, concentre-se... foque. Você precisa de foco, e assim a dor vai diminuir.”

“Em que eu devo focar?” ela estava confusa.“No poder. Na força que está dentro de você, expandindo-se e procurando

espaço para sair. A força é muito grande, ela precisa ser canalizada. Você precisa tomar ciência do poder, compreendê-lo. Deixar que ele aja por você, e não em você.” a voz estava musical e serena. Heather sentiu paz, no mesmo instante em que um sopro leve de vento fez o calor amainar. Houve mais um momento de relaxamento, seguido por uma onda de paralisia. Heather não

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conseguia sentir nada em seu corpo, como se ele não existisse.“Eu não sei como fazer isso.” Heather estava nervosa. “Mills disse que me

ajudaria; agora eu estou sozinha. Eu não sei fazer isso, eu não sei como.”“Deixe que o poder flua por você.” a voz pedagógica continuava bem

próxima. “Respire lentamente, conecte-se com o seu interior. Relaxe, você pode ter o controle de você mesma.”

Heather respirou fundo uma vez, e tentou visualizar o tal poder. Para ela, tudo se resumia naquela luz que ela vira em seu corpo. Um poder não tinha forma, não era possível vê-lo. Ela focou sua atenção nela, tentando compreender como ela agia em seu organismo. Havia muita luz, e ela percorria todos os seus órgãos e músculos em uma velocidade alucinante. A garota decidiu reduzir a velocidade da luz, concentrando-se ao máximo para dar a ela uma ordem. Ela não sentia seu corpo ainda, mas podia sentir a luz. Corria muito rápido, e ela precisou dar outra ordem. Irritada porque a luz não a obedecia, Heather emitiu um comando impositivo e silencioso que soaria como ameaça. Imediatamente suas sensações foram voltando, e a luz estava caminhando. Passou por seus braços, que se moveram até os olhos. Os dedos esfregaram as pálpebras dormentes e seus elas se abriram; a luz passando por ali também. Passou por suas pernas, que estavam doloridas. Não havia mais calor e ela deixou que seus braços repousassem na umidade sobre a qual estava deitada.

“Eu controlei a luz.” Heather pensou, tentando comunicar-se com a voz. “E agora? Há mais alguma coisa? Eu ainda não acho que consiga me mexer direito e eu não vejo muita coisa nessa escuridão.”

“Você se saiu muito bem.” a voz parecia estar feliz, Heather percebeu que ela estava feliz. “Mas falta ainda muita coisa. A luz precisa de constante monitoramento. Você precisa sair daqui, Heather; precisa sair. Esse lugar horrível não é adequado para você.”

“Não posso!” a lembrança de tudo que aconteceu até a sua entrada no Grande Poço voltou, e os espasmos percorriam seu corpo novamente. A luz acelerou e o controle se esvaia enquanto a ansiedade crescia. “Eu preciso me esconder, eu não posso deixar o Mundo Inferior até terminar de ascender.”

“Heather, concentre-se.” a voz ordenava. Nenhum deslize podia ser cometido pela garota, ela precisava focar em si o tempo todo. “Você está ascendendo. Mas você vai precisar sair. Você não está em perigo agora, você tem que ir até o Ogro.”

“Não!” uma pontada de dor fez Heather encolher-se. “Eu preciso cumprir a minha promessa.”

“Confie em mim. Vamos, olhe para mim.” Heather assustou-se com a

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última frase. Olhar para o que, ela pensou, mas precisou conferir aquilo. Seus olhos se abriram novamente, com muito sacrifício. Ela se esforçou para retomar o controle e manter a luz caminhando lentamente, para poder mover-se e tentar enxergar alguma coisa. Seus olhos rodaram por alguns instantes até capturarem outra luz, fraca, azulada, que vinha de algum lugar dentro do buraco no qual ela estava escondida. Não era como a luz de Mills, nem como a luz que estava dentro dela. Era diferente, e muito mais bonita. Heather estreitou os olhos para tentar vez algo além, mas apenas a claridade podia ser compreendida.

“Você é um Anjo.” Heather constatou, aturdida. Apesar da coloração não ser a mesma, ela teve certeza de que se tratava de um Anjo.

“Sim, eu sou.” a voz aproximou-se mais. “Heather, por favor, confie em mim como você confiou em Mills até agora. Você precisa levantar-se, e ir até Belissarius. Faz um dia que você está aqui, e o poder já está consolidado em você. Não há perigo, mas você não pode continuar tão perto do Cerno.”

Por alguma razão que ela não entendeu, Heather sentiu-se confortável em saber que a voz provinha de um Anjo. Um Anjo que estava ali, naquele buraco fedido, para ajudá-la naquele momento. Devia ser alguém bom, ou então ela estaria mesmo perdida. Mas ela se sentiu bem, e uma paz estranha lhe trazia conforto mesmo em meio a tanta dor e descontrole. Sem pensar muito e tentando a todo custo manter-se calma, Heather arrastou-se lentamente para fora do buraco onde estava. Ela pode ver que os espectros não se aproximavam dela, e que os uivos de agonia continuavam com bastante precisão. Heather levantou-se devagar, sentindo todos os seus ossos estalarem como se fossem feitos de vidro. Um ruído inconveniente, a imperfeição de seu próprio ser. As mãos retiraram o excesso de água suja da pele muito branca, e Heather pôs-se a subir as escadas para sair do Grande Poço.

Não parecia uma tarefa fácil, e era bastante penosa. As pernas não se moviam da maneira que ela esperava, e os pés resistiam em tocar o chão. Cada vez que ela dava um passo, uma onda de energia passava por baixo de seus pés pálidos, e ela sentia como se tivesse tomado um pequeno choque. Como quando uma criança coloca o dedo na tomada de casa. Era difícil manter-se equilibrada. Os músculos não estavam fortes e ela não acreditou que pudesse sustentar o peso de seu próprio corpo. Mas ela precisava sair dali, era o que dizia a voz. A voz estranha em que ela decidiu confiar subitamente, talvez porque não havia mais nada a fazer. Ela precisava acreditar em alguma coisa, porque tudo parecia tão fora de rumo naqueles últimos meses.

Ela iria cumprir sua promessa, de manter-se a salvo. Enquanto subia pelas escadas e vez ou outra precisava parar para retomar o fôlego, ela tentava se

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lembrar do que a levara a prometer aquilo. Ela tentava lembrar-se de tudo, porque suas memórias estavam tão borradas quanto a sua visão. Os olhos não conseguiam fixar-se em ponto algum, mas à medida que ela subia o calor diminuía. Era mais fácil respirar. Seu coração batia mais devagar. A luz que fazia toda a sua pele brilhar como uma lâmpada parecia estacionada, caminhando em uma velocidade bastante satisfatória. Mas era um esforço enorme manter tudo aquilo sob controle. Aos poucos os pés estavam mais afeitos ao chão e as pedras não machucavam mais a sola sensível. Heather passou a mão por seus braços e sentiu as bolhas que haviam crescido por causa do calor. Tudo reluzia, e ela olhava para cima imaginando quando aquela tortura ia acabar.

Henry; de repente ele veio à sua cabeça. Os músculos estremeceram e ela perdeu o equilíbrio. Seu corpo desabou por sobre as pedras escuras da escadaria, e ela sentiu uma pressão no peito. Seu coração parecia estar parado. Henry, ela não sabia o que tinha acontecido com ele, como ele estava, onde ele estava. “Ele deve estar com o Ogro,” ela pensou, quase como se aquele pensamento tivesse sido forçado. Ela queria acreditar que ele estava com o Ogro Belissarius esperando por ela. “Levante-se Heather, você precisa continuar.” A voz estava de volta, e Heather sentiu mais uma vez um sopro de brisa em seus cabelos. Era uma sensação agradável, considerando-se o calor insuportável. “Eu não posso, eu estou com sono, muito cansada.”

“Você precisa. Continue subindo, vá até Belissarius.” a voz insistiu. Heather colocou-se de pé, buscando forças onde elas não estavam. De qualquer forma ela tinha que ir até o Ogro, porque era lá que ela estaria a salvo. Retomou a subida, o cansaço a abatendo cada vez mais. As duas mãos agarraram a borda do Poço quando ela finalmente chegou à porta de entrada, e os braços fracos e esfolados suspenderam Heather para fora. O silêncio era cortante, ela quase podia ouvi-lo. Estava ainda muito escuro; e pesadas nuvens cobriam o céu. Alguns relâmpagos podiam ser vistos, mas nenhum som. Ou ela estava surda ou realmente não havia nenhum trovão, só os raios que cruzavam o céu ferozmente.

O gramado áspero do Mundo Inferior era melhor de se pisar do que as pedras pontudas do Poço. Os pés de Heather tocaram a grama com alguma satisfação, e os choques já não eram mais tão frequentes. Ela olhou para suas mãos e elas brilhavam, incandescentes. Muito mais do que brilharam antes, dentro do Grande Poço. Toda ela estava mais brilhante, como se a luz pudesse encontrar um caminho para o lado de fora. A luz, que caminhava bem devagar, quase sem caminhar. Os passos eram apressados, mas o corpo de Heather

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quase não mais conseguia se sustentar. Ela estava cansada, muito cansada. O esforço de subir o Poço foi demais para seu organismo debilitado. Ela sentia fome, e muito sono. Suas pernas fraquejaram e ela caiu algumas vezes. Mas a vontade, de obedecer a voz e de encontrar-se com Henry, estava direcionando seus passos.

Ao longe, uma figura sombria observava o progresso do Anjo. De pé, com braços cruzados, em uma posição mais de admiração do que de desconfiança, um homem com fartos cabelos ondulados e asas medonhas assistia Heather deixar o Grande Poço e caminhar descoordenadamente em direção a lugar algum. “Eu simplesmente não acredito que Esplendora esteja vivenciando isso”, foi o pensamento que escapou indiscretamente dos lábios severos do homem. Mas não havia ninguém ali que lhe prestasse atenção, não havia ninguém ali que lhe pudesse ouvir. Em um arrobo de insensatez, sabendo que ele não deveria interferir no que via, suas asas bateram freneticamente e ele alçou voo, alcançando o Anjo em ascensão em instantes. Jophiel tomou Heather nos braços, enquanto ela convulsionava em febre, e voou com ela para longe do Cerno.

Na casa do Ogro, a confusão já se havia encerrado. Bell não pretendeu continuar enfrentando as bestas depois que Seraphiel retornou de mãos vazias, carregando um ferido Israfil nos braços. Bruxas e Anjos retornaram a Esplendora sem conseguir o que pretendiam, e Belissarius ficou satisfeito porque conseguiram colocar Heather em segurança. Eles, no entanto, perderam-se de Henry. O vampiro saiu em perseguição dos Anjos e não mais retornou. O Ogro não sabia se ele havia retornado a Terra ou o que lhe tinha acontecido. Destacou alguns outros Ogros para buscá-lo pelo Mundo Inferior, mas ninguém havia visto um vampiro por lá. Os vampiros habitavam a Terra, e Belissarius não sabia o que pensar. Henry não tinha se alimentado por alguns dias, ele deveria estar fraco e cansado. Não poderia ter ido longe.

As buscas não pararam, mesmo durante a escuridão da longa noite do Mundo Inferior. Os Ogros a toda hora voltavam a Belissarius dizendo que o vampiro não estava em lugar algum, e ele já estava por perder as esperanças. Havia passado bastante tempo desde a investida de Esplendora, mais de um dia, e o dia no Mundo Inferior era tão longo e cansativo quanto poderia ser. O calor parecia mais forte, e Belissarius estava para desistir. Não poderia fazer mais nada por Henry. Mas pouco antes de efetivamente desistir e de retomar a sua vida normal, o Ogro Serena apontou para o horizonte rosado, que anunciava o dia raiando, e franziu a testa em assombro.

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— Belissarius! — O Ogro apontava para o céu, com uma das mãos cobrindo a bocarra. — Veja!

Belissarius franziu o cenho e seus olhos se perderam na imagem que capturavam. Ele não acreditava exatamente naquilo, mas ele estava vendo uma criatura alada carregando alguma coisa, que brilhava como um amontoado de pirilampos. Havia tanta luz ao redor da imagem que ela poderia ser irreal, uma projeção, algo que não pertencia ao Mundo Inferior. Nem poderia, pois aquele não era o lugar de Anjos.

— É o Senhor do Submundo. — O Ogro coçou o queixo. — Eu ainda não sei o que está acontecendo, Serena, mas esse Anjo, Heather, realmente é especial. Nada, nem ninguém, seria capaz de fazer o Anjo Negro voar deliberadamente para fora do Cerno.

— O que devemos fazer? — Perguntou a esposa.Belissarius não respondeu. Saiu da casa e caminhou em direção à criatura,

que já havia pousado e caminhava com firmeza, carregando Heather em seus braços. Havia um cuidado especial na forma como ele segurava a garota que permitia que se percebesse que ele se preocupava com ela. O Anjo Negro encontrou-se com o Ogro, que o cumprimentou com uma batida da clava no chão escaldante.

— Meu Senhor. — Belissarius reverenciou Jophiel.— Ogro, é você que está no encargo do Anjo? — Os olhos azuis e

brilhantes de Jophiel reluziam pela luz de Heather.— Sim, ela me foi confiada junto com um vampiro. Nós a escondemos no

Cerno, porque Esplendora tentou retomá-la e eles pretendiam feri-la. Não tínhamos a intenção de incomodá-lo.

— Você consegue enviar uma mensagem à tutora dela? — Jophiel continuava com Heather nos braços, como se o peso dela não fizesse diferença. — Posso deixá-la com você até que Mills venha buscá-la?

— Posso enviar a mensagem. Mas acha que isso vai acontecer, Senhor? Que virão ficar com ela?

— Sim, ela não pode continuar ascendendo sozinha. Ela precisa de orientação durante o processo, e tenho certeza que Mills fará isso. Posso deixá-la com você, Belissarius?

O Ogro bateu novamente a clava no chão, em resposta positiva ao pedido de Jophiel.

— Serena! — Ele chamou a esposa, que observava a conversa de longe. — Busque uma manta! Vá, busque agora.

Heather estava nua, seu corpo ardia como se ela estivesse em chamas.

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Jophiel podia sentir o contato com sua carne muito quente. Serena correu para dentro da casa e voltou com uma manta grossa, que ajeitou nos braços para receber a garota. O Anjo Negro permitiu-se olhar para ela por alguns instantes, seu semblante rígido, mas amável, e depois entregou-a para o Ogro.

— Onde está o vampiro? — Ele questionou. Belissarius demonstrou curiosidade; ele não imaginava que o Senhor do Submundo soubesse que tudo aquilo estava acontecendo. Mas ele não parecia irritado ou incomodado.

— Não sabemos. Ele desapareceu durante o confronto, e estamos tentando encontrá-lo. Mas eu acredito que ele não tenha sobrevivido, Senhor.

Jophiel endureceu sua expressão e fechou as duas mãos em punhos. Sem dizer mais nenhuma palavra, bateu suas asas e desapareceu no céu nublado do Mundo Inferior.

Dentro da casa, Heather delirava. A sua temperatura estava alta demais. Os Ogros a levaram imediatamente para dentro, colocando-a deitada no sofá da sala. Serena pegou água e tentou fazê-la beber, mas Heather não conseguia engolir direito. Sua pele estava coberta de bolhas e bastante machucada. O Ogro Serena colocou um pano embebido em água fresca em sua testa, tentando amenizar a temperatura. Não obteve muito sucesso.

— Heather, você está bem? — Belissarius perguntou, aproximando-se.— Eu estou com sono, muito sono. — Ela não conseguia mais abrir os

olhos. — Eu preciso dormir, eu não aguento mais.— Você pode dormir agora, Anjo. — Serena disse, ternamente. Os dedos

grossos e ásperos alisaram a face de Heather. — Aqui você está segura, durma.Não precisou que os Ogros insistissem. Em poucos instantes Heather já

estava imersa em um sono profundo, Serena a carregou para o quarto no porão, acreditando que lá ela estaria mais protegida, e considerando que ela já era familiarizada com o lugar. Deixou Heather adormecida por sobre a cama e retornou para deliberar com Belissarius o que seria feito. O Anjo foi entregue a eles, e parecia doente. Eles tinham que tomar as providências solicitadas por Jophiel, e com cuidado para não atrair a atenção do Anjo Onisciente. Decidiram entrar em contato com o Elfo Bellasiel. Havia aquela compreensão de que em Vanera o Onisciente não podia saber do que era falado, por causa de um secular acordo.

O Ogro então enviou um mensageiro a Vanera, com uma carta lacrada. Considerando a velocidade do mensageiro, ele deveria chegar à terra dos Elfos em meio dia contado da Terra, e provavelmente Heather ainda estaria dormindo. Qualquer cuidado era pouco, considerando o que eles enfrentaram quando Esplendora tentou levar o Anjo à força. Era preciso ser paciente, e

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esperar que Bellasiel conseguisse avisar ao Anjo protetor de Heather que ela estava ali, e precisando de auxílio.

A campainha na porta da estalagem tocou três vezes. Era final de tarde, e o sol já estava se escondendo no céu de Graceland. Aquilo não dizia exatamente que os vampiros estariam acordados, a não ser que estivessem famintos. Só com noite alta eles costumavam sair do covil, se não fosse para caçar. Não havia nada demais acontecendo, e Wesley e Stuart não pretendiam sair naquela noite. Mas a campainha insistente e estridente ecoava pelos quartos vazios da hospedaria, causando um zumbido inconveniente no lado de dentro. Rosnando como se fosse um animal pouco treinado, Stuart sentou-se em sua cama, passou as duas mãos pelos cabelos finos como palha, e respirou fundo.

O aroma que penetrava em suas narinas era bastante conhecido. Pés descalços e jeans escorregando pelos quadris, ele caminhou pela estalagem escura a fim de verificar sua primeira impressão – e descobrir quem era o convidado surpresa que ousava acordar seu sono. Quem estivesse ali certamente ignorava que eles eram vampiros, pois qualquer um sabia que não vampiros não eram para ser acordados. Ele acendeu a luz e abriu a porta.

Seus olhos se contraíram e arregalaram em um único instante, quando a figura esguia e elegante de Kristen surgiu em seu campo de visão. Ela segurava o telefone celular com uma capa cor-de-rosa, e usava vermelho. Kristen quase sempre usava alguma coisa que lhe chamasse bastante atenção, e vermelho era uma escolha segura. Seus longos cabelos escuros estavam meio presos em um coque frouxo no alto de sua cabeça, e ela sorriu involuntariamente quando viu Stuart abrir a porta. Seus olhos percorram-no de baixo para cima, e uma interjeição de deleite escapou de seus lábios.

— Boa noite. — Ela disse, ainda sorrindo. — Olha, foi muito difícil descobrir vocês aqui! Mas eu preciso mesmo falar com a Heather, e eu tenho certeza que ela está aqui, ou que está com o namorado dela.

— Você é amiga da Heather? — Stuart torceu os lábios, confuso.— Sim! Você não se lembra, nós jantamos juntos outro dia! Eu e ela

estamos abrindo um coffee shop e...— Kristen. — Ele moveu os lábios para cima, sorrindo parcialmente. —

Claro, como eu não me lembraria? Mas Heather não está aqui, nem Henry. Não posso ajudá-la.

Kristen fez um bico, desanimada.— Mas onde foi que esses dois se enfiaram, hem? Ela não atende ao

telefone! Eles saíram em lua de mel? Casaram e eu não sei?

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— Você ficou louca? — Stuart fez uma careta. — Escute, eu não estou muito disponível agora – eu não estou disponível nunca, então você poderia me dar licença, eu acabei de acordar.

— Percebi. — Kristen sorriu novamente. — Só não sabia que se podia atender à porta vestindo... ou não vestindo... Mas olha, se você pudesse dar um recado para Heather para mim, se você por acaso vê-la antes de mim, ou se ver o Henry, ou se falar com eles...

— Céus. — Stuart colocou as duas mãos na cabeça, e caminhou para dentro da hospedaria. — Você fala mais do que ela, ainda!

— Eu falo muito? –— A garota entrou, mesmo sem ter sido convidada. — Já me disseram isso, mas talvez seja porque sou muito sociável, você entende? Eu fiz parte de todos os grêmios estudantis de Graceland, e ganhei duas vezes para rainha do baile, então...

— Diga o que você quer. — Stuart sentiu os caninos pontiagudos desejando saltar para fora de sua boca. A irritação com o comportamento inadequado de Kristen o deixou em posição de ataque. Mas ele não podia atacar uma amiga de Heather, aquilo lhe causaria terríveis efeitos colaterais. Stuart acreditava que Henry voltaria, e aquilo significava que Heather voltaria, e ela detestaria saber – ou imaginar – que ele havia se alimentado de sua amiga, ou mesmo a eliminado. — Diga, e eu darei o seu recado.

— Você acha que fala com eles hoje ainda?— Eu não vou falar com eles hoje, nem amanhã; eu não sei quando eu vou

vê-los.Kristen fez outro bico, e olhou para seu telefone.— Então deixa, não vai adiantar. Eu terei que contratar alguém.— Diga. — Stuart insistiu, e arrependeu-se daquilo no mesmo instante em

que o fez.— É que chegaram os móveis, e eu preciso de ajuda para organizar tudo,

no coffee shop.— Organizar móveis? — Ele se contraiu, sem entender direito o que ela

queria.— Sim. Arrastar mesas, cadeiras, colocar balcões no lugar. Eu queria

discutir com Heather, como faríamos. Mas já vi que não tem jeito, eu terei que contratar alguém, porque eu não consigo fazer isso sozinha.

— É só isso que você quer? — Ele estreitou seus olhos, como se fossem duas navalhas. — Alguém para carregar móveis de um lado para o outro?

— Na verdade, sim. — Ela torceu os lábios, olhando para baixo. Seus olhos fixaram-se nos pés inquietos do vampiro. Ele tinha as duas mãos nos

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bolsos, e a observava com bastante calma. Stuart não conseguia ser tão controlado como Henry, mas sua irritação nunca durava mais do que segundos. Ele retornava facilmente ao seu estado de calma e indiferença.

— Eu vou com você. — Ele arrependeu-se novamente do que disse, no instante em que o fez. Talvez ele tivesse bebido sangue contaminado, ou ele não estaria se oferecendo para ajudar uma quase desconhecida – e humana, ainda por cima. O relacionamento de Stuart com os humanos era sempre sexual ou alimentar, e naquele momento ele não parecia que teria sucesso em nenhuma das duas opções. — Espere-me, vou vestir alguma coisa adequada.

Stuart deixou Kristen no saguão de entrada e, sutilmente, desceu as escadas que levavam aos quartos secretos dos vampiros, no porão. Acendeu a luz, abriu a porta do quarto de Wesley, fazendo um barulho bastante alto, e encarou-o.

— Novato, vamos dar um passeio. Vista-se.Da mesma forma abrupta que acordou Wesley, foi para seu quarto, calçou

seus tênis e vestiu uma camisa qualquer de malha. Estava tediosamente frio em Graceland, e ele considerou que aparecer daquela forma perante a garota seria uma temeridade. Tirou a malha, vestiu um suéter azul, e achou-se ridículo no espelho. Colocou novamente a blusa e uma jaqueta por cima, sentindo-se mais masculino – sem pertencer ao século XIX.

— O que está havendo, Stu? — Wesley apareceu, esfregando os olhos, na porta do quarto do vampiro loiro. Ele já estava vestido – sem Henry na casa, ele tinha que fazer tudo que Stuart lhe mandasse, e Stuart estava sempre dando ordens. — Fogo?

— Vamos dar uma volta. Pensei que você gostasse de passear.— Eu gosto, mas...— A amiga de Heather apareceu aqui, e ela precisa de ajuda. Vamos até o

tal café que elas vão abrir.— Eu devo estar sonhando. — Wesley colocou a mão na própria testa,

medindo a sua temperatura. — Ou muito, muito doente. Você; quem é você? — Ele encarou Stuart. — Devolva meu amigo, vamos.

— Cale a boca, novato. — Stuart saiu pela porta, batendo o tênis no tapete do pequeno saguão que conectava os três quartos dos vampiros. — Se você me irritar muito, eu penduro você no porão e deixo lá para secar, até seu criador voltar do passeio pelo Mundo Inferior.

Wesley fez uma careta, demonstrando sarcasmo, e seguiu Stuart até a casa, deixando o porão trancado. Ele surpreendeu-se que a garota estava realmente ali, e o amigo não estava brincando ou inventando desculpas para tirá-lo da cama. O céu rosado – já praticamente escurecido – de Graceland estava

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enfeitado de estrelas brilhantes quando os três deixaram a estalagem e o vampiro loiro balançou em suas mãos a chave brilhante, pendurada em um chaveiro prateado.

— Vamos de Mercedes.

Vanera estava calma e ensolarada, como deveria estar. Enquanto Esplendora sofria sob a tormenta das tempestades, na terra dos Elfos parecia primavera. O Ogro Lúcio passou a Ponte de Fogo e bateu ao grande portão de ferro que era o único acesso à cidade. Suas mãos enormes esmurraram a estrutura colossal até que ela se abriu, e um Elfo arqueiro apareceu para recebê-lo. Tão logo identificado como mensageiro de Belissarius, o Ogro entrou e foi levado à Árvore da Sabedoria, para uma breve reunião com Bellasiel.

— O que o traz tão longe de casa, Ogro? — O Elfo caminhou em sua direção, o vestido longo movendo-se com seu corpo. Ela sabia do que havia acontecido no Mundo Inferior, então imaginava que se tratasse de algo relacionado a Heather.

— Belissarius envia um comunicado urgente. Ele diz que não pode ser lido em Esplendora, nem na presença daquele que tudo vê. — O Ogro estendeu a mão e ofereceu a Bellasiel o envelope de papel pergaminho escurecido, fechado com o selo marrom já conhecido. Ela segurou a carta em suas mãos, ansiosa. Se Belissarius enviava um mensageiro, algo realmente importante precisava de atenção.

— E eu devo abrir em sua presença, para que você leve minha resposta?— Se possível, senhora.Bellasiel não tinha certeza se Seraphiel ainda mantinha o pacto com os

Elfos, mas sabia que ele não deveria estar prestando atenção nela. Era de conhecimento geral que o Conselho estava deliberando, e que os dois superiores de Esplendora estavam confinados no grande edifício principal da cidade enquanto esperavam pela decisão magnânima. Ele tinha mais com o que se ocupar do que em ouvir o que os Elfos pensavam e falavam, principalmente porque Mills estava em Esplendora. Enquanto Mills lá estivesse, eles sabiam que Heather não estaria disponível para eles. Eles tinham certeza de que o Anjo acompanharia todo o processo de Heather, e estaria presente quanto ela terminasse a ascensão.

O Elfo abriu a carta e leu o seu conteúdo. A apreensão tomou sua face serena, que tinha uma ruga no meio dos olhos. Depois, amassou o papel e o queimou instantaneamente, atirando-o na Fogueira da Virtude.

— Diga a Belissarius que tomarei as providências. Até à noite, enviaremos

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alguém ao Mundo Inferior.O mensageiro assentiu, e deixou Vanera para retomar o seu longo caminho

de volta. Bellasiel não sabia se devia envolver Raunien novamente naquela confusão, mas ela não podia tomar decisões sem alertá-lo das consequências. De qualquer forma, não havia tempo para se pensar em estratégias. Heather estava ascendendo, rápido demais e antes do esperado. Pior, ela estava frágil e indefesa na casa do Ogro, sem a proteção de seu vampiro de guarda. Não havia muito que se fazer, Bellasiel precisava avisar Mills mesmo que aquilo significasse alertar Seraphiel. O Anjo Superior não podia ser tão petulante a ponto de desafiar o Conselho novamente só para interferir na ascensão, porque ele sabia que não podia fazer aquilo com a garota no Mundo Inferior. Ele precisava de Heather em Esplendora, e Bellasiel não considerou que ele fosse correr para resgatá-la antes que Mills a encontrasse.

Com a decisão tomada, o Elfo dirigiu-se até Esplendora, mandando um recado para que Mills a encontrasse nos Jardins Suspensos. Era o lugar mais afastado e que chamaria menos atenção de todos. Aguardou pelo Anjo debaixo do Carvalho da Fortuna, a árvore mais antiga do Jardim, e quiçá de toda Esplendora. Suas folhas caíam como braços a acariciar o solo elevado. Não demorou muito para que Mills aparecesse, flutuando, o semblante ansioso e tenso. As duas se olharam por instantes, até que Bellasiel decidiu iniciar o diálogo.

— Mills, é seguro falarmos? — O Elfo queria confirmar.— Não, mas nem em Vanera seria. Seraphiel considera que os Elfos

descumpriram o pacto e, portanto não há mais confiança mútua. Porém ele está confinado à espera do Conselho, e eles podem deliberar por dias. Ele tem coisas mais importantes com o que se preocupar. O que houve?

— Heather. — Bellasiel disse em voz baixa. — Ela está na casa de Belissarius, e ele chama por sua ajuda.

— Ela retornou para o Ogro? — Mills passou o dedo indicador reluzente no queixo, assimilando as informações. — Quando isso se deu? Como você foi envolvida nisso?

— Há algumas muitas horas. Um mensageiro veio me contar a notícia; Belissarius não sabe o que fazer, ele diz que a garota está sofrendo, muito machucada e precisando de suporte.

— Sim, faz sentido. — Mills torceu os lábios. — Mas estou mesmo surpresa por ela ter conseguido encontrar a saída do Poço antes de terminar a ascensão. O vampiro, ele está com ela?

— Não havia nada sobre ele, na mensagem.

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— Bem, eu preciso ir até ela. Não acredito que esses dois hipócritas terão coragem de deixar Esplendora para me impedir; o Conselho determinaria o banimento dos dois se agissem contrários às determinações de uma Comissão Extraordinária de Julgamento.

— Então faça uma boa viagem.Bellasiel cumprimentou Mills com uma reverência de cabeça, e o Anjo

orbitou imediatamente para o Mundo Inferior. Mills já estava enfraquecida com tanta utilização de poder, mas ela não podia evitar. Enquanto Heather não ascendesse, ela era a única criatura que podia ajudá-la naquela transição. Era necessário que fosse até a casa do Ogro e que analisasse em que estágio Heather estava, e como vinha sendo a sua evolução. Mesmo que estar no Mundo Inferior fosse a coisa mais desagradável que ela pudesse fazer em toda a sua existência, Heather precisava que ela estivesse lá. E, provavelmente, Mills chegou antes do mensageiro, porque Bellasiel foi bastante rápida em avisá-la. Havia toda uma preocupação geral a respeito do bem estar de Heather, e que influência isso teria em sua ascensão e no risco que ela representava.

O Anjo caminhou dois passos até a porta do Ogro e bateu. Ela não compreendia por que tinha condições de entrar na casa de Belissarius e não na de Henry. Ela considerava que os Ogros fossem criaturas das trevas tanto quanto os vampiros, mas ela não teve problemas para entrar na casa de Belissarius. Conjecturando sobre as proibições esquisitas dos seres míticos, Mills aguardou apenas alguns instantes até que a porta se abrisse e uma claridade fraca iluminasse a figura monstruosa do Ogro.

— Seja bem vinda, Anjo Mills. — Serena afastou-se para que o Anjo flutuasse para dentro da morada. — Nós esperávamos exatamente que você viesse.

— Sim, eu imagino. — O Anjo emanava luz, mas tentava cobrir o excesso com o manto roxo. O mesmo que ela costumava usar para mostrar-se para Heather. — Eu considerei se deveria, mas não havia mais ninguém que pudesse fazer isso. Diga-me, onde está Heather? Henry?

— É seguro a sua presença aqui? — Belissarius entrou na sala, segurando um enorme osso de animal nas mãos. Era hora do jantar, e ele não se interrompia por causa da chegada de Anjos ou outras criaturas. Para os Ogros, comer entre outros não era nada demais. — Ou teremos que lidar com outro levante de Esplendora?

— Agora é seguro. — Mills baixou o olhar, sem muita certeza do que dizia.

— Então, o Anjo está no quarto do porão. — Serena apontou para a porta

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pela qual Mills já havia se aventurado, alguns dois dias antes. — Ela está dormindo há quase um dia, sem mover-se, sem alimentar-se. Confirmamos se está viva, e ela respira. Mas está tão machucada que me comove.

— Irei vê-la. Mas antes, onde está o vampiro? Está com ela?Os Ogros se entreolharam, sem ter certeza do que dizer. Era uma pergunta

cuja resposta eles não tinham, porque até pouco tempo estavam em buscas por ele.

— Não sabemos. — Belissarius confessou. — Acreditamos que ele tenha morrido, porque não o encontramos depois do confronto, e já buscamos em todo lugar pelo Mundo Inferior.

— Só se ele foi para a Terra. — Serena quis pensar positivamente.— Não acharam nenhum vestígio dele? — Mills ergueu uma sobrancelha.— Havia sangue, no meio do gramado. Mas era muito sangue, e cremos

que ele atacou o Anjo que acompanhava Seraphiel; não sabemos se era sangue dele, do vampiro.

Mills fez um movimento com a cabeça e flutuou pela casa, passando pela porta até alcançar o quarto onde estava Heather. Ela não podia lidar com aquilo, naquele momento. A ascensão era sua preocupação. Não era necessário que o lampião estivesse aceso ao lado da cama, bastou Mills tirar o manto grosso que a cobria para que o quarto se iluminasse imediatamente. Heather não abriu os olhos, mas mexeu-se na cama, sentindo a presença de alguém. Ela estava enrolada na manta conforme Serena a havia deixado, apesar do calor. A garota suava muito, e seus cabelos estavam úmidos. Mills sentou-se ao lado de Heather na cama e afastou a manta para observá-la. Seus dedos longos e brilhantes tocaram a pele de Heather, fazendo com que pequenos feixes de luz os seguissem. Ela pressionava a pele, e a luz se concentrava como se deixasse um hematoma incandescente no lugar do toque. Os lábios do Anjo se franziram e ela passou então os dedos pelas bolhas e queimaduras que estavam na pele antes imaculada da garota. Havia muitas feridas e ela parecia que tinha passado muito tempo sob o sol escaldante.

— Heather. — A voz de Mills era baixa e cadenciada. Ela não queria manifestar-se em volume alto. — Quem ajudou você?

A garota moveu-se novamente, mas não acordou. Mills então passou os dedos por seu cabelo loiro, retirando-o da face. Ela piscou algumas vezes, os olhos feridos pela luz intensa.

— Henry... — ela balbuciou.— Foi o vampiro? — Mills não acreditou.— Onde está Henry? — Heather consertou a sua frase.

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— Heather, olhe para mim. — Mills colocou a mão na face da garota e a fez virar-se. Os olhos mal conseguiam se abrir. — Você ainda tem muito sono? Como você saiu do buraco? Quem estava lá com você?

— O Anjo Azul. — Ela disse, e seus lábios se entreabriram em um sorriso involuntário. — Ela me disse que eu tinha que vir para cá, mas eu estou tão cansada, eu não consigo...

E Heather entrou em colapso. Seus sentidos se perderam na escuridão, e ela não conseguiu mais conversar, ou concentrar-se. A luz passava por seu corpo, escapando de sua pele, iluminando o porão. Mills voltou para cima, a fim de ter a resposta dos Ogros. Ela precisava saber quem tinha interferido na ascensão, mais por curiosidade do que por qualquer outra razão.

— Ogro, quem trouxe Heather aqui? — Ela interpelou Belissarius.— Nosso Senhor do Submundo. Ele veio com o Anjo nos braços e nos

pediu para avisá-la.— Jophiel? — Mills arregalou os olhos. Ela pronunciou o nome dele em

voz baixa, muito baixa, como se aquilo pudesse ser ouvido a distância. O sabor que ele deixou era amargo. — Foi Jophiel que trouxe Heather?

O Ogro confirmou com a cabeça. Mills agradeceu.— Estou deixando o Mundo Inferior com Heather. — Ela disse, virando-se

em direção ao porão. — Agradeço tudo que fizeram por nós. Muito obrigada.Ela segurou Heather nos braços, mantendo-a envolvida com a manta, e

orbitou até Esplendora. Não havia lugar seguro para estarem, mas enquanto o Conselho deliberasse – e aquilo podia levar muito tempo, Heather não parecia ameaçada. Mills tinha certeza que nem Seraphiel, nem Bell, teriam coragem de fazer nada contra Heather enquanto ela estivesse em ascensão, porque eles tinham perdido a chance que tiveram. Era tarde demais, era como o Anjo preferia pensar.

Fazia muito sol quando as duas chegaram à cidade dos Anjos, mais precisamente na casa que Mills ocupava. Heather foi colocada em um quarto branco, com mobília também branca. Havia uma única janela no meio da parede, que dava visão para um enorme campo de tulipas de várias cores. Os vidros eram transparentes, e a luminosidade do sol era reduzida por uma cortina de seda. Além da cama em que Heather foi colocada também havia uma cômoda de seis gavetas, e um armário com duas portas. Um sofá de tecido bege claro – uma cor cremosa, como se pudesse ser comida, compunha o cenário. As paredes brancas não tinham quadros ou decoração.

Mas Heather não viu nada daquilo. Ela estava em um delírio profundo, e sua febre estava mais alta do que Mills esperava. O Anjo buscou uma bacia

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com água fresca e um pedaço de pano limpo, para tentar refrescá-la e baixar a temperatura.

— Você precisa focar na luz. — Mills disse, afastando a manta de Heather e observando como o seu corpo se comportava. — A luz que você sente correr dentro de você. Você precisa controlá-la e submetê-la à sua vontade. O cansaço vai parar; assim que você dominar a luz, ela vai parar de sugar as suas forças.

Era uma ascensão difícil, Mills considerou. Heather precisava de tempo, e tempo era algo que os Anjos tinham de sobra.

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CAPÍTULO 2

Magia negra

O calor no Grande Poço era insuportável. O Bruxo Malaquias desceu as escadas que levaram ao pequeno espaço entre duas paredes de pedras escaldantes, úmidas, permeadas de lodo e crostas de sujeira. O cheiro era de enxofre. Ele encontrou o Anjo Negro de pé, olhando fixamente para uma parede que continha um quadro pendurado. Parecia uma fotografia, mas estava borrada e meio queimada pelo tempo em contato com o clima do Cerno.

— Meu Senhor, você pediu que me chamassem?— Sim. — Jophiel virou-se para o Bruxo, e o olhou por alguns instantes.

Malaquias era um homem de cabelos brancos, ralos, sem expressão definida. O olho direito era apenas uma bola branca, cega e inútil. Suas mãos eram enrugadas e suas unhas enormes. — Eu preciso que faça algo, servo de Fletcher.

— Basta pedir. — Malaquias fez um movimento de cabeça, indicando uma reverência. — Em que o Senhor do Submundo necessita dos préstimos de um simples Feiticeiro velho?

— Você precisa encontrar alguém para mim. Um vampiro, na verdade.— Mas vampiros não vivem no Mundo Inferior, Senhor.— Eu sei, velho. — Jophiel coçou o queixo. — Ele deve estar na Terra, mas

eu não consegui encontrá-lo, ainda. Faz mais de um dia, e ele deve estar ferido.— E como poderia encontrá-lo, meu Senhor? — O Bruxo tinha o olhar

baixo. Não era costume encarar o Anjo Negro.— Leve consigo essa caixa. — Ele estendeu um objeto para Malaquias, que

o segurou entre as mãos calejadas. — Ela contém alguns pertences do vampiro. Veja bem, Bruxo, você não deve falhar. Você vai encontrá-lo, e vai curá-lo. Seja o que for que ele tenha, seja onde ele estiver; você não vai falhar. Se falhar, eu vou persegui-lo e matá-lo com minhas mãos. Você entende o que digo?

— Meu Senhor, Malaquias não falha. — O Bruxo ergueu o olhar. Seu olho esquerdo era negro como a noite, e não tinha brilho. Ele absorvia luz, toda luz que estivesse no ambiente. Contrastava severamente com o azul radiante do olhar do Anjo Negro. — Quando curar o vampiro, eu devo trazê-lo?

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— Não, deve deixá-lo ir. Ele não pertence a esse mundo. Só preciso garantir a sua segurança.

— E o que faço se ele me fizer perguntas, Senhor? Se ele quiser saber quem eu sou, e por que o estou ajudando?

— Diga que você é um amigo de Heather. Apenas isso.Malaquias balançou novamente a cabeça, assentindo. Colocou um capuz

preto, segurou a caixa que lhe foi entregue com bastante cuidado, e deixou a sala que era ocupada pelo Senhor do Submundo.

Heather piscou algumas vezes. Ela se sentia tão mal e enjoada que parecia ter acabado de descer de uma péssima volta em uma montanha russa. Seu corpo ardia em fogo, mas ela tremia como se estivesse muito frio. E fazia muito frio, ela pensava. Seu corpo estava mole, e ela mal conseguia executar comandos simples, como piscar, ou rolar na cama, ou mover a cabeça. Ela tinha certeza que estava em uma cama, e lembrava-se de ter sido resgatada por Mills. Mas ela não sabia muito mais sobre onde estava, nem por quanto tempo ela estava naquelas condições. Ela moveu-se na cama, e ouviu um barulho forte de coisa se quebrando, ao seu lado. O som estridente a fez encolher-se, porque pareceu que Heather tinha colocado os ouvidos em um alto-falante.

Ela sentiu a claridade por sob suas pálpebras fechadas, mas tudo que ela conseguia era piscar. Manter os olhos abertos era impossível – ou um esforço que ela não considerava necessário. Sua respiração tinha um ritmo irregular e inconstante.

— Heather. — A voz de Mills ecoou no vazio, novamente alta demais. A garota moveu-se outra vez. — Como você está?

“Horrível”, ela quis dizer, mas a sua boca não se abriu. “Eu estou com fome, sede, e sinto como se tivessem me colocado em um moedor de carne.” Mas não conseguiu. Sentiu um frescor em suas têmporas; um frescor momentâneo e repentino, mas que lhe fez sentir melhor. O cheiro de flores, misturado com terra molhada, ou algo similar a terra molhada, invadiu suas narinas. Ela tentou mover-se novamente, mas as mãos de Mills a seguraram. Não havia suavidade no toque, era como se Mills precisasse usar força para mantê-la quieta. Logo suas têmporas estavam queimando novamente. O mal estar não passava.

O Anjo Superior estava sentado na cama, ao lado do corpo doente de Heather. Ela já tinha tentado de tudo para fazer a febre ir embora, mas não obteve sucesso. Aquela era definitivamente a ascensão mais difícil que ela já tinha presenciado. Ciente de que a garota não despertaria naquele momento, e

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que talvez demorasse mais do que era esperado para ascender, Mills deixou-a na casa e vagou, por caminhos de pedras brancas e campos floridos, até o grande Salão do Conselho, onde estava acontecendo a reunião extraordinária que deliberava a possível punição de Bell e Seraphiel. Ela sabia que não se interrompia o Conselho durante as decisões, mas aquele era um caso excepcional.

A porta estava guardada por um Anjo Guardião, e Mills decidiu não entrar pelos meios naturais. Eles não orbitavam em Esplendora, mas havia outras formas de entrar no Salão – havia outras portas. O objetivo de Mills era contatar Anael, o Anjo sábio, e levá-la até sua protegida. Ela não sabia se podia confiar em ninguém do Conselho, mas ela tinha que tentar. Sem deixar rastros, Mills vagou pelos corredores do edifício até chegar à porta do Salão, que estava fechada. Ninguém vigiava por dentro, e ela abriu a porta lentamente.

O Salão estava bastante iluminado pelo sol que penetrava os vitrais claros e desenhados da enorme abóboda que adornava o teto. Os Bruxos não estavam, e apenas Anael e Hamael conversavam em seus púlpitos. O Salão vazio era deprimente e um tanto assustador, apesar de tanta luz. O Anjo flutuou até Anael e fez uma reverência, mostrando-se timidamente.

— Anjo Mills. O que faz aqui? O Conselho está em deliberação.Hamael foi quem a interpelou.— Preciso orientar-me com Anael. — Ela confessou. — E é urgente.— Mas isso é tão inadequado, Mills. — Anael coçou o queixo. — Os

Bruxos não vão gostar de termos um encontro privado durante o concílio.— Garanto que será breve. Eles retornam em quanto tempo?— Provavelmente, em um dia.— É tempo suficiente. Se não fosse extremamente grave, Anael, sabe que

não te chamaria.Anael fez um gesto de cabeça para Hamael, que assentiu. Ela estendeu a

mão luminosa para Mills, e caminhou em direção à porta lateral do edifício, exatamente por onde o Anjo tinha entrado. As duas permaneceram em silêncio até estarem distantes o suficiente para não serem vistas nem ouvidas. Os caminhos de pedras brilhantes estavam sempre iluminados pela luz do sol, mas daquela vez havia algumas nuvens pairando sobre Esplendora. O vento atormentava a copa das árvores muito altas, e a vegetação rasteira dançava, mesmo sem música.

— Preciso que veja Heather. — Mills decidiu iniciar o diálogo.— Imaginei que fosse algo relacionado a ela, por isso deixei o concílio.

Você a trouxe quando, do Mundo Inferior?

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— Ontem. Mas ela ainda está fraca, com febre, sem controle sobre a luz. Eu não sei como ela conseguiu iniciar a ascensão sozinha, mas eu acreditava que ela fosse conseguir. Porém está sendo mais complicado do que eu imaginei que fosse.

Anael torceu os lábios. Ninguém em Esplendora tinha a menor ideia de como Heather reagiria ao processo da ascensão, nem como os poderes dela se desenvolveriam. Os dois Anjos caminharam ate a residência de Mills, e foram até o quarto da garota. Ela estava exatamente da forma como tinha sido deixada; encolhida por sobre a cama, suando, emitindo ruídos ininteligíveis. Os seus cabelos estavam grudados pelo pescoço e pelas têmporas, e a sua pele tinha uma cor vermelha esfuziante. A luz se desprendia de sua pele e emitia raios de brilho que formavam um caleidoscópio no teto branco.

— Ela já comeu ou bebeu alguma coisa, desde que chegou? — Anael perguntou, aproximando-se do corpo delirante da garota.

— Bebeu água fresca, mas eu precisei forçá-la. Eu me preocupo se ela tem condições físicas de resistir à ascensão. Talvez eu devesse tê-la deixado no Mundo Inferior.

— O poder nunca é maior do que o corpo pode suportar. — Anael virou Heather de barriga para baixo e colocou as duas mãos espalmadas por sobre as suas costas. Energia branca fluiu por sob a pele, enquanto o Anjo se concentrava, de olhos fechados. — Fez a coisa certa, Mills. Heather precisa estar aqui, e precisa dos seus conhecimentos para ascender.

— Preciso lhe falar sobre outra coisa. Quando estive no Mundo Inferior para resgatá-la, ela estava na casa do Ogro. Mas ela estava tão debilitada que não acreditei que tivesse conseguido sair do Cerno sozinha, e feito toda a travessia até a morada da besta.

— Ela teve ajuda? — Anael continuava com as duas mãos sobre Heather, que estava mais calma. Ela já não convulsionava, nem emitia nenhum ruído. Estava semiconsciente, adormecida.

— Sim. O Ogro me disse que ela foi levada até ele pelo Anjo Negro. — Mills novamente disse aquilo com a voz muito baixa, quase como que temendo ser ouvida por alguém. Anael a olhou com total e absoluta surpresa.

— Você acha que ele sabe quem ela é?— Ela é idêntica a Abdiel. Acho difícil que ele não saiba – a não ser que

ele não tenha prestado atenção. Além do mais, por que um Anjo qualquer estaria ascendendo no Cerno? Ele sabe.

— Bem, eu gostaria de levar Heather até o Conselho. — Anael considerou. — Eu sei que ela ainda ascende, mas amanhã, se ela estiver melhor, quando

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retornarem os Bruxos, você deve levá-la à presença do Conselho. Pode fazer isso, Mills?

— Sim, Anjo Anael. Eu a levarei ao Salão tão logo retornem os Bruxos e ela pare de delirar.

Os coffee shop estava muito bagunçado. Havia caixas por todos os lados, e móveis desmontados. Mesas empilhadas e cadeiras amontoadas em um canto. O chão estava sujo e cheio de marcas das pegadas das pessoas que entregaram as encomendas. Kristen abriu a porta principal de entrada e acendeu as luzes que já estavam funcionando. Havia também muita poeira e as janelas não tinham sido todas colocadas. A reforma estava indo muito bem, mas não na velocidade que ela desejava.

— O que há para fazer, aqui? — Stuart franziu a sobrancelha, enquanto suas narinas captavam um cheiro muito forte de produtos de limpeza.

— Tudo. — Kristen sorriu. — Eu quero organizar essa bagunça, e quanto mais rápido, melhor.

— Isso é fantástico. — Wesley olhou para as caixas, coçando a cabeça. — Viramos operários da construção civil, agora.

— Bem, quanto antes começarmos, antes acabaremos.Stuart retirou a jaqueta e segurou a barra de sua camiseta, arrancando-a

com um puxão apenas. Kristen arregalou os olhos, encarando a cena com alguma incredulidade. Estava frio, e ela não imaginava que ele fosse suar o suficiente para precisar tirar a camisa. Ela observou os jeans frouxos que sucumbiam à gravidade e exibiam mais do corpo do vampiro do que ela estaria interessada em ver, naquele momento. Não que ela já não tivesse visto antes. Seu corpo respondeu violentamente com um calafrio, que a fez estremecer por completo. A garota franziu as sobrancelhas e sacudiu a cabeça, desejando prestar atenção em alguma outra coisa.

— Precisamos tirar a roupa? — Foi Wesley que fez a pergunta, enquanto os dois começavam a abrir as caixas.

— Eu não vou sujar a minha. — Stuart moveu os ombros. — Tomar um banho me dá menos trabalho do que lavar roupa.

O vampiro novato não estava interessado em discutir com o mais velho. Stuart estava insuportavelmente irritante desde a partida de Henry, como se ele sentisse que alguma coisa estava errada, mas não quisesse falar. Wesley sentia; ele tinha aquela premonição de que eles perderiam o amigo para sempre. Mas ele sequer se atrevia a falar com Stuart, considerando o estado emocionalmente frágil em que ele se encontrava. Era mais fácil guardar seus pensamentos não

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agradáveis para si, e não piorar o que já estava ruim.Os dois rapazes tinham muito o que fazer, naquela noite. Entre mesas e

cadeiras, e móveis que precisavam ser montados, eles teriam um entretenimento diferente daquele que estavam acostumados. Sem sangue, sem encantamentos, sem submeter os humanos. Kristen participaria da arrumação com eles, ajudando naquilo que ela era capaz. Depois de várias horas, quando todas as mesas já estavam limpas e em seus lugares, e quase todos os balcões já estavam montados, ela resolveu ir até a cozinha servir uma bebida para seus ajudantes, que deveriam estar exaustos.

A garota serviu um copo de refrigerante para cada um deles, colocou em uma bandeja, e voltou para o salão. Ela precisava acostumar-se a ser a anfitriã, e a servir. Era como seria, quando o coffee shop estivesse inaugurado. Enquanto caminhava, seu o telefone vibrou em seu bolso, e ela quis atendê-lo. Segurou a bandeja com apenas uma das mãos, mas aquilo não foi suficiente. Enquanto pegava o aparelho, os copos de refrigerante balançaram e caíram da bandeja, diretamente no chão. Ela pisou sobre o piso liso e molhado e escorregou, prestes a cair como uma fruta madura do pé.

Porém seu corpo nunca encontrou o chão. Um par de mãos frias e firmes a segurou. Kristen olhou para cima, e viu-se por instantes presa no olhar seguro e sombrio de Stuart. Ele tinha os olhos mais azuis que ela já vira, mas eles pareciam sem vida, sem qualquer humanidade. Eram como espelhos, ela podia ver-se refletida neles, mas não conseguia ver nada através deles. Ele tinha a expressão rígida, e a garota não conseguia olhar para mais nada. Stuart a ergueu por completo, confirmando que ela estava equilibrada nos dois pés. E então deu uma risada alta, os lábios abertos, os dentes perfeitos à mostra.

— Ainda bem que o bar ainda não está aberto. — Ele pegou um balde e um pano, que estavam sendo usados para a limpeza dos móveis, e entregou a ela. — Você sujou, você limpa.

— Obrigada. — Ela disse, ainda atordoada pela visão daquele homem tão esquisito.

— Eu não ia querer que você se machucasse. — Ele virou de costas para ela. — Acredite, eu fiz isso por mim mesmo.

— Agora entendo o que Heather sente quando está perto de Henry. — Ela balbuciou, em baixa voz, sem querer que ninguém ouvisse. Stuart parou sua caminhada, e esticou os lábios em um sorriso torto. Mas não se virou para ela. — O que vocês têm, é o que eu queria saber.

— Você não quer saber. — Ele disse, olhando para ela por cima do ombro. — Você realmente não quer.

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Uma pequena fresta na parede de madeira permitia que a luz do sol penetrasse na parte interior da estrutura. O antigo depósito de utensílios rurais estava abandonado há algum tempo, mas ainda se podiam ver foices, enxadas e pás penduradas, além de alguns sacos com entulho, adubo, sementes inutilizadas. Era um lindo dia, e a claridade mostrava a poeira suspensa no ar. O raio de luz tocou a massa disforme e pálida que jazia no chão imundo, que se moveu imediatamente. Contorcendo-se de dor e praticamente sem forças, um par de mãos tocou o chão e arrastou a carcaça fria de Henry Austin para longe do sol.

Ele já não sentia mais nada, além da dor. Estava dormente, como se seus sentidos estivessem falhando. Ele precisava tirar aquela madeira de si, mas ele não conseguia. Seus dedos não se fechavam ao redor da enorme estaca; ele não tinha forças para realizar a tarefa, sozinho. Deitado de lado, na mesma posição há dias, sobre uma poça de seu próprio sangue, ele já tinha passado do sofrimento ao desamparo total. Ninguém iria encontrá-lo, ninguém iria sequer procurá-lo. Foi ele próprio quem ordenou que não fossem procurá-lo. Henry não sabia se acreditava que Heather estivesse bem. Talvez a sua existência estivesse no fim. Ele não se importaria com o fim antes, mas ele não queria morrer sem estar nos braços daquela que ele amava. Ele não se importaria, se ele pudesse vê-la ao menos mais uma vez.

O enorme portão de madeira que fechava o celeiro abandonado abriu-se, despejando dentro dele uma grande quantidade de luz solar. A figura esguia e alerta de Malaquias entrou na construção de madeira, os olhos, que pouco enxergavam o mundo real, capturando tudo que poderia estar ali. Segurando um objeto em sua mão direita, o Bruxo caminhou pelo celeiro até parar exatamente na frente do esconderijo de Henry. Ajoelhou-se e encontrou o vampiro encolhido debaixo de uma enorme bancada de madeira podre, embebido no próprio sangue já coagulado. Ele não parecia estar vivo, mas Malaquias teria sabido se ele estivesse morto.

O Bruxo colocou a sua mão por sobre o corpo inerte do vampiro, e fechou os olhos. Permaneceu em silêncio por alguns instantes, depois os abriu novamente e respirou fundo, considerando o que seria preciso para tirar aquela besta dali.

Quando Henry recuperou os sentidos, parcialmente, ele pode perceber que não estava no mesmo lugar. Não havia claridade alguma que fizesse sua pele arder. E ele estava anestesiado. Não havia mais dor, não havia mais a agonia de ter uma estaca de madeira enfiada em seu peito. Ele não podia nem

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mesmo sentir o cheiro do seu sangue. Henry abriu os olhos, com dificuldade, e um telhado de madeira e palha surgiu em seu campo de visão. Havia uma lâmpada incandescente acesa, que balançava e fazia um ruído metálico inconveniente. Ele pensou em mover-se, mas não sabia se podia. Alguma coisa tinha mudado, desde o momento em que ele se considerou morto, até aquele. Ele talvez estivesse mesmo morto, e estivesse no Paraíso. Se ele acreditasse em Paraíso.

— Você não deve se mover. — Uma voz chamou a sua atenção, e Henry instintivamente virou a cabeça para o lado. Seus olhos estavam meio borrados, mas ele pode visualizar um homem vestindo preto. Um homem velho. — Exatamente, você não deve fazer isso.

— Quem é você? E onde estou? — O vampiro perguntou. Sua voz saiu fraca, vacilante, como se fosse apenas um eco de seu pensamento. Ele não conseguia sentir nada, mas havia algo errado, ele tinha certeza.

O homem aproximou-se dele, e o tocou. Henry acreditou que fora tocado, porque ele também não sentiu aquilo.

— Isso está muito pior do que eu pensava. — Malaquias disse, com uma expressão rígida. — Você está ferido, vampiro. Muito ferido, devo dizer. Eu estou tentando curá-lo, mas será um trabalho difícil.

— Eu não estou sentindo dor, isso é normal?— Não é normal, você está sedado por magia. Eu sedei você, porque a sua

agonia me deixava muito nervoso. Eu não conseguia me concentrar.— Quem é você? — Henry insistiu. A voz estava ainda muito fraca.— Malaquias. Sou um Bruxo; eu sou um amigo de Heather.A simples menção do nome do Anjo fez Henry fechar os olhos. Ele não

conseguia sentir seu corpo, mas podia sentir a ansiedade lhe consumir. Não tinha passado ainda um minuto sem que ele pensasse nela; sem que ele desejasse estar ao lado dela. Ele a imaginava ascendendo naquele buraco cheio de demônios e sentia um mal estar terrível.

— Você sabe como ela está? Você tem notícias de Heather?— Ela está bem. — Malaquias disse, retornando para o campo de visão de

Henry. Ele carregava unguentos e emplastros, que colocava cuidadosamente sobre o ferimento enorme que havia no peito do vampiro. A carne ainda estava dilacerada, e a cicatrização seria quase impossível se Henry não se alimentasse. Mas havia ainda algo pior. — Heather está em Esplendora, com seu Anjo protetor. Ela está ascendendo, tudo que podemos fazer é esperar.

— Como você pode conhecê-la? — Henry continuava curioso.— Vampiro, você precisa descansar. — Malaquias afastou-se. — Fazer

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perguntas tempo todo não ajuda a sua recuperação. Se você pensar bem, você descobrirá por que eu conheço sua Heather.

Henry fechou novamente os olhos, tentando concentrar-se em algo que não o deixasse mais ansioso. Ele sentia-se péssimo, apesar de não sentir exatamente nada. Seu organismo estava falhando, e ele parecia estar em suspensão, como se o corpo que ele utilizasse não lhe pertencesse mais. Eram claros os motivos pelos quais um Bruxo conheceria Heather, afinal o pai dela era um Bruxo. Um poderoso Feiticeiro, traído pelo governo de Esplendora, morto por seus sentimentos proibidos pelo Anjo Abdiel. Era essa a história que Henry conhecia; essa a história que Heather lhe havia contado. Mas a questão não era conhecer o Anjo do Apocalipse, e sim intervir daquela forma em seu favor.

O que o vampiro não compreendia eram os motivos que levaram aquele Bruxo a resgatá-lo; por que ele fazia aquilo por Heather.

— Eu posso fazer uma ligação? — Henry perguntou, sem ter certeza se havia alguém ali, ainda. — Eu preciso avisar meus amigos que estou bem. Vivo.

— Está vivo por enquanto. — Malaquias aproximou-se novamente. — Você está enfeitiçado, vampiro. Colocaram uma magia muito poderosa em você, magia negra. Eu não sei quem você irritou, em Esplendora, mas o que fizeram com você está realmente difícil de desfazer.

— Mas você pode desfazer? — Henry engoliu um bolo de saliva.— Eu estou tentando. É melhor que eu possa, ou não sei que

consequências eu terei que suportar. Mas não há como você fazer uma ligação, não temos telefone aqui. E você não pode mover-se. Lamento.

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CAPÍTULO 3

O conselho

Heather ainda sentia-se muito mal. A única certeza que ela tinha era Mills ao seu lado o tempo todo. Até mesmo quando ela estava completamente sem sentidos, ela sabia que o Anjo estava cuidando dela. Enquanto seu cérebro se perdia entre a dor e a loucura, e tudo parecia dissolver-se em luz, um pensamento que a mantinha razoavelmente sã era a ideia de que em breve, quanto o tormento acabasse, ela estaria novamente com Henry. Ela precisava acreditar em alguma coisa, precisava acreditar que aquela ascensão tinha algum propósito e que, depois que tudo terminasse, ela teria sua vida de volta.

Mas ela não conseguia ver o fim. Seu corpo não respondia aos seus comandos, e ela não conseguia se controlar devidamente. A febre cedia, mas não desaparecia. E já fazia tanto tempo. Ela sentia que aquela tortura não acabaria.

— Mills. — Ela chamou pelo Anjo, em um de seus devaneios, quando ela não tinha certeza se estava delirando ou consciente. — Mills. Onde você está?

— Estou aqui. — O Anjo sentou-se na cama, ao lado de Heather. A garota olhou para o lado e viu o semblante concentrado da sua protetora. Era a primeira vez que ela via Mills em Esplendora, e ali ela parecia muito humana. A história de que Anjos na Terra eram muito poderosos fazia sentido.

— Eu quero Henry. — Ela realmente queria dizer aquilo. Não era culpa da febre, ou do seu estado de espírito perturbado. – Onde ele está; eu preciso vê-lo.

— Heather. — Mills colocou uma compressa fria sobre a testa da garota. — Estamos em Esplendora, nunca o seu vampiro poderia vir até aqui. Como pretende vê-lo?

— Então me leve até a Terra. Leve-me para casa. Eu não quero mais ficar aqui, eu não estou melhorando.

— Você não pode, agora. — Mills continuou tentando abaixar a febre da garota. — Eu estou tentando ajudar você a passar por essa ascensão horrível, mas não ajuda se você ficar o tempo todo se torturando porque quer ver esse

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vampiro.— E vocês já consideraram que talvez ele seja a chave da minha ascensão?

— Heather disparou, as palavras saindo de sua boca sem muito controle. — Você mesmo disse que ele me mantinha controlada, e...

Enquanto ela tentava argumentos para convencer Mills de que Henry era uma necessidade, e não somente uma vontade, as duas ouviram o barulho da porta da casa abrir-se. Ninguém nunca trancava portas em Esplendora; não havia sequer fechaduras nas portas. Todos se respeitavam e não havia criminalidade, ou justificativa para trancas. Mills levantou-se subitamente, e foi verificar quem poderia ser, apesar de ela já saber a resposta. Antes que ela pudesse chegar até a sala principal, o vulto iluminado de Anael pode ser visto.

— Anjo Mills. — Anael sorriu e ergueu a mão direita. Mills fez o mesmo, cumprimentando-a. — Como está o Anjo em ascensão?

— Incoerente. Mas eu acredito que ela esteja melhor, superando a dor e controlando a luz com um pouco mais de habilidade.

— Posso vê-la? Os Bruxos retornaram, e o Conselho a aguarda.Mills moveu-se para o lado, indicando, com um gesto de corpo e braços,

que Anael deveria passar. Apesar de Mills ser também um Anjo Superior, Anael era parte do Conselho. Havia uma hierarquia a ser respeitada, e ela sempre soube fazê-lo muito bem.

— Porém há um problema. — Mills flutuava atrás de Anael. — Ela resolveu insistir em ver o vampiro.

— Aqui, em Esplendora? — Anael surpreendeu-se.— Ela é Heather. Você acaba se acostumando com ela.Anael sorriu, imaginando que o Anjo deveria ser exatamente como era sua

mãe. Autêntica, emotiva, altruísta e absurdamente excêntrica. E ela parecia realmente melhor, à vista do Anjo Superior; daquela vez, Heather estava consciente. Ela tinha os olhos abertos, e eles brilhavam como se a energia escapasse pela íris. Ela não se virou para ver quem estava chegando, ela sabia que era algum Anjo para vê-la. Era tudo que vinha acontecendo, naqueles dias em Esplendora; os Anjos iam e vinham, para ver a aberração que ela era.

— Heather, como você está se sentindo hoje? — Anael perguntou.— Eu quero ver Henry. — Ela disse, sem pensar duas vezes. — Mills diz

que ele não pode vir, então eu quero ir até ele.— Você entende que não pode? Não enquanto a ascensão não terminar?— Não. — Heather quis mover-se, mas ela ainda não tinha plena

coordenação motora. — Eu não entendo. Mas eu aceito, e vou aceitar porque não aguento mais.

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Anael aproximou-se, e virou Heather de bruços. Ela puxou para cima a blusa dela, e tocou suas costas com as duas mãos espalmadas. Ela sentiu subitamente uma calma; seus músculos pararam de tremer e ela relaxou. Tudo que ela queria era que aquilo acabasse, que ela pudesse ficar livre.

— Vamos levá-la até o Conselho. — Anael disse, levantando-se novamente. — Ela já tem condições de ir até o Salão. Anjo Mills, dê a ela um manto para vestir e encontre-me na entrada.

Mills assentiu com a cabeça, e dirigiu-se até a cômoda que estava no quarto onde Heather ficava. Ela abriu uma das gavetas e pegou um manto bege com barras douradas e o levou até a garota, que tremia ainda por sobre a cama.

— Preciso que você sente-se, Heather. Tenho que vesti-la, vamos apresentá-la ao Conselho.

— Eu não quero. Eu não posso. — Ela disse, sentindo o controle se esvair.— Você pode, e você vai. — Mills segurou-a pelas duas mãos, e a fez

sentar-se. A garota mal conseguia manter-se firme. O Anjo começou a retirar-lhe as roupas humanas e vestiu-lhe o manto, que lhe coube perfeitamente. Depois, pegou uma escova para pentear-lhe os cabelos. — Esse manto era de sua mãe. — Mills sorriu. — Abdiel ficava linda vestida com ele; era o seu favorito. Mas ela o deixou aqui quando fugiu, talvez porque não fosse caber nela, depois. Ou talvez porque ela queria que você o usasse, um dia.

— Eu não sei nada da minha mãe. — Heather torceu os lábios. — Eu acho que deveria saber, não deveria? Conhecê-la melhor. Poder dizer quem foi minha mãe. O que ela fez.

— Você vai conhecê-la. — O Anjo puxou Heather para cima, colocando-a de pé. Ela tentava ajudar, mas seus músculos não respondiam devidamente aos estímulos. — Agora, vamos ao Conselho.

As duas se encontraram com Anael, e os três Anjos caminharam pela trilha de pedras brancas que levava ao prédio do Conselho. Heather mal conseguia caminhar propriamente; ela precisou ser amparada por Mills durante o trajeto. O céu de Esplendora não estava tão azul, ou tão claro como sempre era. Havia nuvens no horizonte, e algumas já faziam sombra nas flores que dançavam no ritmo do vento suave. Anael caminhava com a mão apoiando o queixo, em uma clara expressão de concentração. As outras duas vinham mais atrás. A caminhada era longa demais para um Anjo debilitado como Heather, e sua febre voltou. Suas pernas não queriam obedecê-la, e a dificuldade em andar estava dolorosa.

O Conselho aguardava, ansioso, a chegada do Anjo do Apocalipse. Nenhum Anjo comum jamais teve uma sessão com o Conselho, apenas para ser

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julgado. Nem mesmo durante a guerra, quando o Conselho era formado apenas de Anjos, não eram permitidas sessões privadas. Mas aquela era uma ocasião especial. A Profecia da Sétima Pedra era um tabu em Esplendora, e o que Heather poderia ser também. Vê-la em ascensão era o desejo de todo Anjo vivo.

Anael abriu os portões, e logo as três estavam no Salão. Os Bruxos se moveram em seus pedestais para ver Heather entrar, desequilibrada, com a aparência de uma pessoa muito doente. Seus cabelos pálidos, apesar de terem sido penteados, já estavam bastante emaranhados por causa do vento. Seus olhos brilhavam intensamente e ela tinha olheiras enormes, apesar de ter passado a maior parte do tempo inconsciente, desde o início da ascensão.

— O Anjo Mills se apresenta oficialmente perante o Conselho de Esplendora com Heather, filha de Abdiel e Fletcher. — Mills anunciou-se, enquanto Anael caminhou para o seu pedestal.

— Bem vinda, Mills. — Jerônimo, o Bruxo que sucedia Bell na ordem de poder, manifestou-se. Ele era uma figura singular, com cabelos alaranjados como o fogo e pele muito branca. Havia sardas em toda a sua face, e ele não parecia muito mais velho do que Heather. Usava um manto preto como a noite, enfeitado com raios iluminados. – Fomos informados de que o Anjo em ascensão vem passando por dificuldades. E, acredito que não seja novidade, desejamos muito conhecê-la.

— Apresente-se para o Conselho, Heather. — A Bruxa Zoraide ergueu-se. Mills empurrou Heather para frente, mas ela estava muito zonza para compreender exatamente o que acontecia. Ela respirou fundo, e olhou para cima, tentando focar nos Anjos e Bruxos que a observavam. Seus joelhos tremiam.

— Você sabe onde está, Heather? — Anael interferiu. – Você sabe quem nós somos?

— Estou em Esplendora e vocês são o... governo. Eu acho.— Heather, você sabe por que está aqui? — Hamael, o terceiro Anjo no

comando, perguntou.— Porque vocês estão morrendo de medo de mim, e acham que eu vou

explodir coisas depois que terminar de ascender. Eu estou aqui porque vocês não sabem quem eu sou.

Houve um súbito silêncio, seguido de um burburinho inquieto que durou vários minutos. Mills fechou as duas mãos em punhos; ela tinha certeza absoluta que Heather falaria alguma coisa que desagradaria o Conselho, ou ela não seria a filha de Abdiel. Mas ela esperava que aquilo não a prejudicasse.

— Não sabemos. — Jerônimo manifestou-se. — E talvez você queira nos

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mostrar quem é?— Eu não tenho nada para mostrar. — Heather caminhou dois passos para

frente, seu corpo pendendo como se ela fosse cair. Ela parou e abriu os dois braços, jogando o pescoço para trás. — Eu sou o que vocês veem.

— Você entende que é um Anjo? Entende o que isso representa?— Não. — Ela manteve-se na mesma posição, porém voltou a encarar o

Conselho. — Eu sei que sou um Anjo, mas não entendo.— E você acha que poderá lidar com seus poderes sem sequer

compreender o que é, Heather? — Hamael questionou. — Acha que devemos confiar que um Anjo inexperiente e desequilibrado como você será capaz de controlar tudo que você tem?

— Sim, eu acho. — Heather sorriu, e olhou para Mills. — Eu sei que posso me controlar porque eu sou uma boa pessoa. — Ela enrijeceu novamente o semblante, e encarou mais uma vez o Conselho. — E eu sei que vocês não acreditam em mim, porque uma pedra estúpida disse o contrário. Mas não há nada que eu possa dizer para mostrar que vocês estão errados, eu preciso provar que eu estou certa.

Os membros do Conselho se entreolharam. Hamael saiu de seu pedestal e flutuou até a garota, que já tinha os braços estendidos ao lado de seu corpo. Ela sentia muito frio, como se Esplendora fosse o lugar mais gelado de todos os mundos. O Anjo parou em frente a Heather, estendeu a mão direita e a tocou no ombro. Heather sentiu um incômodo repentino, mas não se moveu. Ele então segurou a face dela entre as duas mãos, e elevou seu olhar até o dele.

— É impressionante como você é exatamente igual Abdiel. — Ele tinha o olhar fixo em Heather. — Eu acredito que devamos esperar. Você me parece, sim, uma boa pessoa.

Ela olhou para o Anjo, sua face atormentada e confusa. Um sorriso vacilante formou-se em seus lábios, enquanto ela percebia como ele se parecia com ela. Ou vice-versa. Hamael voltou para seu pedestal, e o Conselho parecia satisfeito.

— Mills. — Zoraide estendeu a mão e indicou que ela deveria juntar-se a Heather. — Leve o Anjo em ascensão de volta, e cuide para que o processo termine. Você tem nossa autorização para orbitar com ela; o Anjo está muito fraco para caminhar ao sol. Continuaremos nossa reunião.

O Anjo assentiu, e conduziu Heather para fora do Salão. Ela considerou que o breve encontro foi satisfatório, ao final, pois o Conselho pareceu aceitar as dificuldades e contradições da filha de Abdiel. O simples fato de elas parecerem-se tanto já era um fato positivo, que poderia ser contado a favor de

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Heather. Mills aproveitou a permissão e orbitou até sua casa, não desejando impor a Heather mais sofrimento. No Salão, no entanto, o Conselho ainda comentava sobre ela.

— Eu gostaria de tê-la questionado sobre sua capacidade de fazer magia. — Jerônimo considerou, andando em círculos. — Afinal, ela é a filha de Fletcher.

— É melhor que ela fique na ignorância sobre isso. — Zoraide interferiu. — Ela mal consegue lidar com a luz.

— Concordo. — Anael disse. — Heather é instável demais para um Anjo, não é necessário que ela lide com mais poderes do que já possui. É melhor que ela ignore a hipótese de fazer feitiçaria, e que seja apenas aquilo que não pode evitar.

— Ah, excelente dia sem sol. — Stuart colocou meio corpo para fora da estalagem, garantindo que o dia estava nublado e que as nuvens eram pesadas o suficiente para serem seguras. — Abra as janelas, novato.

Wesley apareceu na sala da hospedaria, os cabelos ainda despenteados. Era início da tarde, e ele queria ter ficado dormindo mais um pouco. Mas o vampiro mais antigo não permitiu, acordou fazendo barulho e bastante estardalhaço.

— Eu não estou acostumado com esse Stuart. Bom humor? Isso não te pertence, o que está acontecendo? — Wesley questionou, jogando-se no sofá e ligando a televisão. — Céus, estou faminto.

— Vá comer. — Stuart moveu os ombros e tomou o controle remoto do amigo. — Você pode sair, tenho certeza. Basta usar um agasalho.

— Não quero caçar um cervo, ou um coelho. — Wesley fez um bico. — Quero algo mais substancial, e acho que vai ser difícil convencer um humano a se interessar por mim se eu sair vestido como um assassino em série.

— Ah, novato. — Stuart sentou-se, as pernas estendidas por sobre a mesa de centro, e pegou seu telefone celular. Ele queria conferir se Henry não havia entrado em contato; se não havia nenhuma notícia que fizesse seu dia ser ainda melhor. — Não seja ridículo, afinal, nosso vampiro escrupuloso não está em casa. Vá comer.

Wesley manteve-se sentado, assistindo a programação da televisão, lutando contra a fome que lhe fazia arder a garganta. Ele queria ter saído para caçar duas noites atrás, mas o amigo o impediu, arrastando-o para um passeio nada convencional. E na noite anterior ele acabou ficando em casa, porque chovia demais, e tanto Graceland quanto Point Hill deveriam estar desertas. Ele

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já estava pensando que morreria de inanição, e que precisaria mesmo sair, arriscando matar alguém, quando o barulho estridente do celular de Stuart o assustou e quase o fez cair do sofá. O próprio vampiro loiro não esperava por uma ligação, e pareceu desapontado quando não identificou Henry no número que chamava.

— Boa tarde. — A voz feminina disse, do outro lado da linha. — Como vai o meu carregador de peso favorito?

— Kristen? — Stuart franziu o cenho, e encarou o telefone por alguns instantes. — Por que você está me ligando? Como você está me ligando?

— Eu tenho mania de anotar o telefone de todo mundo. — Ela confessou. — Mas, por que suspeito que você não esteja feliz que fiz isso?

— O que você quer? — Stuart tinha por hábito não responder às tolas perguntas dos humanos. Deveria parecer óbvio que ele não estava feliz com ela, de forma alguma.

— Eu ia te convidar para comer alguma coisa. — A voz de Kristen era total frustração. Ela esperava que o amigo de Henry fosse esquisito, mas não exatamente grosseiro. — Mas, pelo visto, perdi meu tempo.

— O que ela quer? — Wesley mostrou-se curioso, debruçando por sobre o sofá.

— Espere. — Stuart colocou a mão por sobre o telefone, a fim de conversar com o amigo. — Ela quer sair para comer. Isso definitivamente não é da sua conta.

— Você deveria ir. — Wesley deu uma risada. — Ela está claramente interessada em você; você nem precisou enfeitiçá-la.

— Ela é amiga de Heather, eu vou estar em sérios apuros se fizer isso. — Stuart ergueu uma sobrancelha, considerando como Henry o mataria, se descobrisse que ele tinha feito algum mal à garota humana.

— Ah, você a enfeitiça depois, ela jamais lembrará. Não foi você mesmo que me ensinou assim, Stu? Se eu fosse você, e com a fome que estou, já tinha levado a menina para um passeio na Mercedes e...

Stuart tinha a expressão confusa, mas o que Wesley dizia era bastante racional, para um vampiro. Ele não pretendia matar a garota, mas ela poderia perfeitamente servi-lhe de alimento, naquele dia. E ele também acreditava que ela estava interessada nele, ou não teria ligado para convidá-lo para o convívio social.

— A que horas? — Ele voltou a falar com Kristen.— Sério? — Ela estava, então, mais animada. — Eu estava pensando em

sairmos agora; eu não almocei ainda.

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— Tudo bem. Eu pego você... onde você mora?Kristen ditou para Stuart seu endereço, que ele anotou em um papel

qualquer que estava por sobre a mesinha. Aquela poderia ser a primeira vez que ele se relacionava mais do que um dia com a refeição – Stuart nunca se envolvia com a comida. Ele utilizava as garotas humanas para sexo e alimentação, quando sexo parecia uma boa ideia. Na maioria das vezes, era apenas o sangue que o interessava. Mas ele não podia negar para si mesmo que queria encontrar-se com Kristen, e que havia uma pequena parte de si que estava ansiosa pelo que poderia acontecer.

Ele deixou Wesley em casa, com recomendações para que se alimentasse também, pegou as chaves da Mercedes e dirigiu até Graceland. Apesar de Stuart ter certeza absoluta de que Henry retornaria para casa, a salvo, ele não conseguia resistir à tentação do carro Alemão, que reluzia brilhante sob a luz do dia. Vestindo um casaco grosso, com capuz, o vampiro chegou até a casa de Kristen, que já o esperava na calçada. Ele abriu a porta para que ela entrasse, e gastou meio minuto observando seus movimentos. Aquele era um tempo enorme; Stuart nunca prestava atenção demais em humano algum.

Mas lá estava ela. Kristen sentou-se, graciosa demais, no banco do carona; a sua pele contrastando diretamente com o couro bege da Mercedes. Seu cabelo escuro estava arrumado em tranças, e ela vestia um pulôver azul claro, com jeans escuros. Stuart franziu a testa novamente, e torceu os lábios em claro desgosto com sua reação.

— Aonde vamos? — Ela colocou o cinto de segurança e Stuart arrancou com o carro.

— Eu raramente como fora de casa. Escolha o lugar. — Era uma mentira válida, ele considerou. Era mentira porque ele nunca comia em casa. Mas era verdade que ele não sabia onde os humanos comiam. E ele não pretendia começar assustando a garota – ele tentaria ser discreto e sensível com ela.

— Então, vamos ao Lorenzo. — Ela disse, agitada. — Estou com muita vontade de tomar um frappuccino!

Stuart respirou fundo, e guiou até o local indicado por Kristen. Ela era agitada, sempre em movimento, falava rápido e muito alto. Era o tipo oposto de garota que ele costumava buscar como alimento. O trajeto até o Lorenzo foi torturante, porque ela simplesmente não conseguia ficar quieta.

— É isso que você vai almoçar? — O vampiro ergueu uma sobrancelha quando ela pediu rosquinhas de canela, um sanduíche de queijo e frappuccino de coco. Eles estavam em uma mesa reservada, Stuart rígido como se fosse feito de borracha firme.

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— Ah, eu adoro comer essas coisas. — Ela disse, sorrindo. — E você? Posso pedir um café, pelo menos?

Stuart concentrou-se, e considerou que um café não era de todo ruim. Ele precisava de sangue, mas seu organismo estava satisfatoriamente funcional. Ele moveu os ombros, como que autorizando Kristen a fazer um pedido. Os dois aguardaram a comida de uma forma peculiar – ela sem parar de falar um minuto, e ele em completo silêncio. Quando os pedidos chegaram, ela atacou a comida com voracidade, enquanto ele simplesmente cheirou o copo que lhe foi oferecido.

— Que café é esse? — Stuart fez uma careta.— Cappuccino com creme. Você vai adorar!Ele levou o copo até os lábios e sorveu lentamente o líquido quente. Seu

corpo estremeceu com o choque térmico, mas logo se acostumou. Era doce, e tinha aroma de canela. Stuart podia apostar que nunca tinha tomado um cappuccino, mas era saboroso. Nada comparado ao sangue, nada comparado àquilo que ele precisava para sobreviver. Mas saboroso.

Ela deu uma risada quando olhou para ele novamente.— Tem creme aqui. — Kristen estendeu a mão para tocar Stuart. Ele

pensou em recuar, mas não o fez. Ela passou o polegar em seu lábio superior, por toda a sua extensão, e depois recolheu a mão novamente, limpando os dedos em um guardanapo. Stuart enrijeceu a face e voltou a beber o cappuccino, enquanto Kristen pareceu constrangida. — Tudo bem. Só eu estou achando isso bastante esquisito?

— O que é esquisito?— Tudo. Você é esquisito. — Ela terminou de comer uma rosquinha e

colocou os dedos na boca, para tirar o açúcar. — Você quase não fala, e quando fala parece um robô. E você tem todo esse jeito inumano... eu entendo realmente o que atrai Heather, você e Henry são exatamente iguais, apesar de totalmente diferentes.

— Existe uma coisa que você não sabe, Kristen. — Stuart disse, terminando seu café. — Aliás, existem várias coisas. Talvez envolver-se comigo, de qualquer forma, seja uma péssima ideia.

A garota abaixou o olhar, e encarou seu prato vazio por alguns instantes. Stuart levantou-se, caminhou até o balcão, falou alguma coisa com a moça que atendia no caixa, e puxou sua carteira do bolso traseiro. A atendente deu uma risada, enquanto ele retornava em direção à mesa com um sorriso maroto nos lábios. Sem mudar de expressão, ele pegou Kristen pela mão.

— Vamos, eu vou te levar para casa.

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Stuart arrastou a garota para fora do Lorenzo. Kristen não ofereceu muita resistência, o que frustrou o vampiro um pouco. Ele destravou a Mercedes e a levou até a porta do carona, fazendo-a entrar. Depois, arrancou com o carro e deu meia volta, mantendo-se no caminho em direção a Point Hill. O rádio tocava uma canção romântica qualquer, e ele teve certeza que aquilo era coisa de Henry. Ele não via Heather como uma romântica, e ela definitivamente não ouviria uma música como aquela. Era o vampiro mais velho que costumava perder-se em canções antigas e cheias de amores perdidos e reencontrados. Nada que ele, Stuart, prezasse.

— Pensei que me levaria para casa. — Kristen disse, vendo que a Mercedes tinha acabado de passar a entrada da sua rua.

— Eu vou. Só não disse para qual casa. — Stuart sorriu, parcialmente, sem tirar os olhos da estrada. A garota arregalou os olhos, surpresa e confusa, e sentiu uma onda de adrenalina fluir em suas veias. Ela gostava de perigo, e por algum motivo Stuart parecia perigoso.

— A sua, então? — Ela arriscou.— Se eu der sorte e Wesley estiver fora, sim.O silêncio predominou até o momento em que os pneus da Mercedes

chiaram, e ela parou sobre o cascalho do pátio da hospedaria. O sol ainda estava escondido por sobre as nuvens, mas havia uma claridade inconveniente que não era saudável para vampiros. Stuart colocou o capuz do casaco na cabeça e correu até a varanda, desejando sair o mais rápido possível da influência do sol. Kristen o seguiu, achando tudo muito esquisito, mas sem ter a menor intenção de perguntar algo. Tão logo ela pisou na varanda, ele a puxou para si, fazendo-a quase cair por cima dele. Ela assustou-se quando ele subitamente afundou a face em seus cabelos, sorvendo o ar com força.

— Que perfume você usa? — Ele perguntou, sem qualquer constrangimento. Kristen, sempre muito descontraída, estava um pouco confusa, naquele instante.

— CK One. — Ela respondeu, os braços travados do lado de seu corpo.— Por que você me convidou para sair, Kristen? — Ele afastou-a de si e a

encarou, os olhos de vidro reluzindo toda a luz exterior. Ela nunca tinha visto olhos tão transparentes, nem mesmo os de Heather.

— Eu gostei de você. — Ela disse, os lábios esticados, tentando compreender as suas próprias razões. Talvez nem mesmo Kristen fosse capaz de racionalizar os motivos que a fizeram ligar para Stuart. Poderia ter sido porque ele foi legal com ela, e ela quis retribuir. Ou porque ele estava lindo demais com os jeans caindo pelos quadris, sem camisa, exibindo sua forma física

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impecável, enquanto arrastava móveis e abria caixas. Poderia ter sido porque ele parecia rabugento e indisciplinado, e era exatamente aquele o tipo de homem que ela gostava.

E ser indisciplinado era a maior característica de Stuart. Ele não esperou para confirmar se Wesley tinha mesmo deixado a casa; ele aproveitou Kristen de guarda baixa e segurou-a com as duas mãos, uma em sua cintura, outra em sua nuca, forçando seus lábios contra os dela. Ele costumava beijar as garotas antes que elas virassem simplesmente comida, e ele sabia que fazia aquilo direito. Nenhuma tinha reclamado, e aquela não seria a primeira. Kristen não resistiu ao beijo, passou seus braços ao redor do pescoço de Stuart e correspondeu a ele.

O que ele não poderia controlar era a reação de seu corpo com a proximidade da humana. Ele sabia que, inevitavelmente, desejaria beber o seu sangue. Mas ele não pretendia fazer aquilo naquele instante; ele queria aproveitar o momento um pouco. Com uma das mãos, abriu a porta da estalagem e arrastou Kristen para dentro, caindo com ela por sobre o enorme sofá do salão. A casa estava vazia, para sua sorte. Ela estava por sobre ele, e seu corpo tão quente contrastava com a pele fria, de temperatura duvidosa, do vampiro.

Ele sentiu os caninos se expandirem, dolorosamente, e perfurarem a pele fina dos lábios de Kristen. Ela estremeceu por sobre si, mas não parou de beijá-lo. Stuart enrijeceu os músculos quando o sabor ácido do sangue entrando em contato com sua língua, e ele sabia que era tarde demais.

— O que houve? — Kristen afastou-se centímetros de sua face, levando os dedos ao lábio ferido. Por um momento, ela olhou, assombrada, para a face transformada de Stuart. Seu cenho enrugado, seus olhos enegrecidos e com enormes veias saltando ao redor; as presas que escapavam dos lábios semiabertos. A expressão da garota mudou de sublime excitação para completo horror, mas ela não conseguiu verbalizar seu pavor.

— Eu sinto muito. — Ele disse, segurando-a com as duas mãos e olhando diretamente em seus olhos. — Mas você não vai lidar com isso, agora. Isso que você está vendo é normal. Não há nada errado ou diferente em mim; você mordeu seu lábio, por isso ele está ferido. E você quer me beijar; ah, você quer muito me beijar.

Ele soltou Kristen, que tinha o olhar fixo em lugar algum. Era como se ela visse através de qualquer coisa. Sucumbindo ao encantamento, ela levou sua face até a do vampiro e o beijou bem devagar, como se ela realmente não tivesse visto nada que a assustasse.

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CAPÍTULO 4

A busca

Malaquias retornou para sua cabana depois de um dia na cidade. Ele não costumava sair muito, mas ele precisava de suprimentos. O vampiro estava se recuperando, e ainda sedado por magia. Não havia nada que ele pudesse fazer para prejudicar a sua condição, então não havia nada que prendesse Malaquias ao seu lado. O dia já tinha findado, e a pouca luz que ainda clareava o horizonte indicava que a noite teria luar e estrelas.

— Boa noite, vampiro. — O Bruxo entrou no quarto onde abrigava Henry, um cubículo com uma pequena janela que estava selada por um pesado tecido escuro, impedindo a entrada do sol; uma cama e uma mesinha de madeira. Além da cadeira na qual Malaquias costumava sentar-se, não havia outro móvel no quarto. O Bruxo percebeu o vampiro acordado, de olhos abertos. Mas ele não respondeu. — Como está se sentindo?

— A pergunta mais correta seria ‘como eu não estou me sentindo’. — Henry disse, a voz ainda muito fraca. — Se eu não morrer desse encantamento, talvez eu morra de tédio.

— Pensei que o tempo não significasse muito para vocês, criaturas eternas.— Tempo ocioso significa muito para qualquer um. — Henry abriu os

lábios em um sorriso.— Talvez eu tenha algo que te anime. — O Bruxo retirou de seu bolso um

pequeno objeto prateado, e o colocou na direção dos olhos de Henry. O vampiro franziu a testa, reconhecendo seu aparelho celular.

— Ele deve estar sem bateria. – Foi a constatação infeliz.— Sim, ele estava. Mas eu o levei até a cidade e pedi que o recarregassem.

— Malaquias parecia orgulhoso de sua proeza. — Posso ser um velho Bruxo desatualizado, mas não é porque vivo sem a tecnologia que não a conheça. Vamos, ligue para seus amigos.

— Eu não posso me mexer.— Ah, claro! — O Bruxo deu uma risada. — Bem, vampiro, eu vou retirar

o feitiço que te mantém aprisionado em seu próprio corpo. Você está

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preparado? A dor pode ser insuportável.Henry piscou uma vez, indicando que aceitaria a dor. Ele já estava

cansado daquela condição impotente; há mais de cinco séculos que Henry não era incapaz de executar tarefas simples, há mais de cinco séculos que Henry não sabia o que era ferir-se, ou sofrer. Ele poderia suportar a dor, qualquer dor. Ele ficou mais de um dia jogado em um celeiro velho e empoeirado, afogando-se em seu próprio sangue, sentindo a essência vital esvair de dentro de si. Ele poderia suportar a dor.

Malaquias colocou as mãos por sobre Henry e pronunciou palavras em latim, pouco compreensíveis para quem não era um Feiticeiro. Quod sensus carnis reverti, ele dizia, enquanto o vampiro, aos poucos, sentiu-se preenchido por uma onda de calor. Henry conseguiu mover os dedos, e virar o pescoço de um lado para o outro. Junto com a fantástica sensação de ter novamente o controle de seu próprio corpo, veio a agonia da carne dilacerada. Ele agarrou os lençóis da cama na qual estava com toda força, tentando acostumar-se com o sofrimento. Sua garganta fechou-se, e ele percebeu que sentia muita fome. Seus olhos encararam Malaquias, que continuava falando em Latim, e ele sentiu as presas se expandindo e perfurando a carne de seus lábios.

— Bruxo. — Henry disse, concentrando-se em seus movimentos. — É melhor que você saia daqui. Eu não sei por quanto tempo consigo manter o controle.

— Está tudo bem, vampiro. — Malaquias sorriu. — Você não conseguirá me atacar, porque você nem mesmo conseguirá levantar-se da cama se eu não quiser. Mas eu imaginei que isso pudesse acontecer; espere-me.

O Bruxo recolheu as mãos para dentro das mangas compridas do seu manto preto e saiu do quarto, retornando instantes depois, carregando um recipiente metálico, do tamanho de uma leiteira. Henry moveu-se na cama, sentindo ao mesmo tempo a agonia da sede pelo sangue e a dor pelo ferimento em seu peito. Ele não se lembrava de ter sentido tanta fome, antes. Malaquias estendeu o recipiente para ele, que o segurou com as duas mãos, as narinas sorvendo o aroma azedo e ferruginoso do conteúdo vermelho escuro. Sem pensar; sem sequer considerar que sangue era aquele, Henry despejou o líquido em sua boca, sem a classe e a elegância que lhe eram peculiares. Uma mistura avermelhada de sangue e saliva escorreu de seus lábios, por seu pescoço, tingindo o lençol que o cobria. Não era suficiente. Mas ele poderia, ao menos, controlar-se até conseguir mais.

O Bruxo entregou-lhe uma toalha pequena, e apontou para uma bacia de ágata branca, já bastante usada, que estava cheia de água fresca, ao lado da

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cama, sobre uma mesa retangular de madeira. Henry baixou o olhar, envergonhado. O sangue fez com que a dor diminuísse consideravelmente, apesar de ainda ser muito forte.

— Desculpe-me. — Henry disse, embebendo a toalha em água, para limpar o sangue de sua pele. — Eu geralmente não ajo assim.

— Não seja tão duro com você mesmo, vampiro. Termine de limpar-se e ligue para seus amigos. E não se preocupe com o sangue, o animal que morreu hoje será meu jantar. Assim é a natureza.

A porta do quarto fechou-se, e Henry ficou sozinho. Recostou-se na cama, respirando com dificuldade, e pegou o aparelho celular que estava ali. Ele estava ansioso; precisava falar com Stuart, precisava falar com Wesley, precisava saber como estava Heather. Seus dedos pressionaram as teclas até ouvir o ruído da ligação chamando, e a voz confusa da sua criatura, do outro lado.

— Henry? — Wesley estava incrédulo. — É você?— Quantos Henrys você tem em seus contatos, Wesley Mason? — O

vampiro sorriu, mesmo que ninguém fosse vê-lo sorrir, naquele instante. — Ah, como é bom falar com você! Como estão as coisas em Graceland? Como está você?

— Céus! Henry! — Wesley segurava o telefone nas mãos e girava em círculos, agitado. — Eu estava tão preocupado com você! Algo me dizia que você estava em perigo, mas eu não sabia o que era.

— Seu sentido em relação ao seu criador está bem apurado. — Henry deu uma risada. — Eu estou ferido, mas estou bem. Estou me recuperando. Stuart, ele está bem? Eu só queria que vocês soubessem isso, eu logo estarei em casa, com vocês.

— Stuart está ótimo, mas eu quase não o vi, hoje. Estou em Point Hill, aproveitando o fim de um dia sem sol. Mas me conte o que houve, como você pode estar ferido?

— Point Hill sem Stu? — Henry ficou curioso.— Conte-me, Henry. — Wesley estava ansioso. Henry decidiu explicar o

que houve durante o confronto no Mundo Inferior, até o momento em que ele foi resgatado por um Bruxo que se dizia amigo de Heather. E insistiu em saber por que Stuart não tinha saído com Wesley. — Ele... ele... ele tinha um encontro. — A criatura não conseguiu mentir. Ele sabia que mentir para Henry não ajudaria em nada, e ainda o colocaria em apuros.

— Você tem notícias de Heather? — O vampiro não conseguiu resistir. — Ela contatou vocês, retornou a Graceland?

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— Não. Nós achávamos que ela estava com você.— Nós nos separamos. — Henry sentiu a dor mais forte, mas ele tinha

certeza que não era por causa do ferimento. — O Bruxo que cuida de mim disse que ela está em Esplendora, mas eu não sei quanto tempo dura essa ascensão. Estou preocupado com ela.

— Se ela está com os Anjos, ela está bem. — Wesley tentou acalmar seu criador. — Você precisa se recuperar, se não por você, por ela, também.

Henry despediu-se de Wesley e desligou o telefone. O novato tinha razão, ele precisava curar-se e sair daquele lugar. Certamente, se o Bruxo tinha conseguido quebrar o feitiço que o submetia, ele só precisaria de sangue para fechar a ferida. Respirando lentamente e tentando não focar na dor, Henry deitou-se novamente na cama e tentou dormir, acreditando que o dia seguinte seria um dia melhor.

Wesley estava ansioso com a ligação de seu criador. Tão logo desligou o celular, pagou sua conta e voltou correndo para casa, querendo contar a Stuart a novidade. Ele precisava dizer que Henry estava bem, apesar de ferido; que ele voltaria em breve. Já alimentado e bastante agitado, o vampiro jovem chegou em instantes à estalagem, falando alto e entrando porta adentro sem qualquer cuidado. Parou subitamente ao ver Stuart sentado no sofá, a televisão ligada em volume inaudível, com a garota humana adormecida em seu colo.

— O que... — Wesley franziu as sobrancelhas e encarou o amigo. — Mas o que...

— Aconteceu algo, novato? — Stuart colocou a televisão no mudo, como se precisasse de mais silêncio. — Da forma como você chegou aqui, pensei que o mundo estava acabando.

— É que eu falei com Henry, mas... Stuart! — Wesley pressionou os lábios. — O que ela faz aqui?

— Dorme. Você precisa de óculos novamente?— Eu sinto cheiro de sangue.— Eu ainda não troquei o forro do sofá.— Você se alimentou dela e a deixou dormindo aqui, como se nada tivesse

acontecido?— Nada aconteceu. — Stuart virou-se novamente para a televisão. —

Nada que ela saiba. Ela bebeu meu sangue, não tem nem um arranhão em seu pescoço. Mas diga, falou com Henry?

Wesley colocou as duas mãos na face, pressentindo o problema que Stuart estava criando. Mas não havia nada que ele pudesse fazer para evitar, ou que ele quisesse fazer. O novato sentou-se em outro sofá e contou a breve conversa

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que teve com Henry, desde o início.

Heather não sabia quanto tempo tinha se passado desde que fora apresentada ao Conselho de Esplendora. Dia e noite se confundiam na cidade em que o sol nunca se punha, e ela ainda se encontrava em um estado de semiconsciência. Naquele momento, ela sentia muito calor, e seus pensamentos estavam todos voltados para uma pessoa apenas: Henry Austin. Ela já tinha insistido para vê-lo, mas Mills apenas afirmava que ela precisava ascender. Por mais que Heather se irritasse com a mesma resposta, ela sabia precisava mesmo resolver aquela questão de ascensão antes de pensar em qualquer outra coisa.

Era por causa da ascensão e por causa de toda a loucura que aquele momento representava que tanta coisa ruim havia acontecido. A ascensão; ela tinha que provar que era capaz de manter seus poderes sob controle, ou Mills estaria errada, e todos que acreditavam nela poderiam sofrer. “Eu preciso controlar a luz”, ela disse para si mesma. Seu corpo estava cansado, e ela não sabia como fazê-lo, mas ela precisava assumir o controle. Heather respirou fundo, e concentrou-se no movimento da luz. Ele havia ficado mais lento, bem lento, mas não cessado. Ele parecia ainda querer sair de dentro dela, mas não havia espaço. Nem para sair, nem para ficar. Mas a luz precisava entender que quem mandava naquele espaço era Heather.

Ela moveu os braços e encontrou forças para erguer seu corpo. Sentou-se na cama com os olhos ainda fechados. A luz queria sair; ela pretendia mantê-la dentro. A dor havia cessado, e ela percebeu que seus músculos obedeciam aos seus comandos. Heather abriu os olhos, e olhou o espaço em seu redor. Seus pés tocaram o chão, e ela sentiu energia fluir por seu corpo. Com alguma dificuldade, colocou-se de pé e deu um passo para frente, depois outro, e outro, até alcançar a porta fechada. Suas mãos ainda trêmulas agarraram a maçaneta, girando-a. O corredor que surgiu em sua frente era tão branco quanto tudo que ela já tinha visto naquela casa, mas não era longo. Caminhando passo a passo, bem lentamente, Heather encontrou Mills, sentada em um sofá bege pálido, lendo uma escritura que parecia muito antiga.

O Anjo ficou chocado com o que viu. Heather estava deslumbrante, no manto branco acinzentado que também era de sua mãe. Do azul inexpressivo e sem vida, que ela estava acostumada a ver em seus olhos, saíam feixes de luz brilhante, que logo cessaram quando ela a encarou. Os olhos eram como dois diamantes azuis, que reluziam. Eles tinham luz própria, e o movimento podia ser visto dentro de Heather. Ela Franziu o cenho, não gostando do que via em si. Havia feridas em sua pele, muitas queimaduras; ela se parecia com os Ogros.

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Os dedos lesionados e inchados, a pele ressequida. Era uma imagem horrível, pensou. Mas a luz não mais corria por sua pele como antes, ela agora estava estacionada. Era como a luz que Mills emanava.

— Henry. — Heather disse, olhando para o Anjo. Ela não queria, ela exigia saber dele. A demora em obter informações, e o fato de não saber como ele estava, aumentavam a sua preocupação. Ela se recordava com toda precisão de que o havia mandado voltar para a Terra, porque era o mais lógico e menos perigoso a se fazer. Mas ela sabia que ele não poderia estar ali com ela, e aquilo era o suficiente para fazê-la sofrer.

— Você está no controle da luz, Heather? — Mills levantou-se, aproximando-se da garota com cuidado.

— Eu não sei. Eu estou tentando, e parece que está mais possível agora. Mas não mude de assunto. Henry. — A garota insistiu. — Eu quero saber como ele está; eu quero vê-lo.

Mills respirou fundo e afastou-se, flutuando pela sala.— Nós não sabemos onde ele está. — O Anjo tentou ser cauteloso, falando

em voz baixa e suave. — Houve um confronto, e Belissarius ficou muito ocupado com Bell e Phillis para perceber onde Henry se escondeu. Mas nós acreditamos que ele deve estar na Terra.

— Ele deve estar. — Heather olhou em volta, seus olhos faiscaram novamente. — Essa resposta é ridícula. Vocês me colocaram aqui, para me proteger, e esqueceram-se de protegê-lo?

— Heather, não abandone o controle. — Mills tocou seu ombro com a mão iluminada. — Você está se saindo muito bem.

— Eu vou voltar a Terra. — A garota disse, dando meia volta e preparando-se para voltar ao quarto. — Leve-me para a Terra, eu quero ir agora. Vou atrás de Henry.

— Você não deve, a ascensão lá será muito mais difícil. Façamos assim, eu vou até a Terra e encontro o vampiro. Isso te satisfaz?

— Parcialmente. — Heather respirou fundo, acalmando-se. — Eu ainda quero vê-lo, mas saber que ele está bem já é suficiente, por enquanto.

Ela tinha certeza que a ascensão ainda não tinha acabado. Afinal, se estivesse tudo bem, ela não estaria tão descontrolada e Mills não estaria preocupada com a sua ida a Terra. Mas ela ainda queria Henry consigo, e ela acreditava que Mills fosse encontrá-lo e que, ao final daquilo tudo, ela estaria em seus braços novamente.

O Anjo deixou Heather em sua casa, pedindo que ela ficasse em seu quarto, esperando, enquanto resolveria algumas questões. Mais uma vez, ela

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interromperia o concílio e pediria o auxílio de Anael. Mas ela não sabia mais a quem recorrer; nenhum Anjo em Esplendora queria chegar perto do apocalipse. E, para sair da cidade dos Anjos, Mills precisaria deixar Heather com alguém.

— Anjo Mills. — Anael encontrou-a do lado de fora do Salão, no Jardim das Pedras. — Fiquei surpresa com sua solicitação; aconteceu algo que justifique essa reunião?

— Sim. Eu preciso de orientação, e talvez da sua ajuda. Eu preciso ir a Terra, e preciso ir com certa urgência. Heather já detém o controle sobre a luz, e ela está absurdamente ansiosa. Porém eu não posso deixá-la sozinha em Esplendora; considerei se ela não podia ficar com você.

Anael coçou o queixo com os dedos longos, e pensou por alguns instantes.— Eu não poderia monitorá-la; eu não posso deixar o concílio. Já

considerou a hipótese de deixá-la em Vanera, com os Elfos?— Acha que Bellasiel aceitaria o encargo? — Mills ergueu uma

sobrancelha.— Sim, os Elfos são nossos aliados há muito tempo. E ela não é sua amiga?Mills assentiu, e agradeceu com um aceno de cabeça pelo conselho. Ela

detestaria empurrar a responsabilidade sobre Heather para qualquer um de seus amigos, mas se alguém tivesse que ajudá-la, certamente seria Bellasiel. Ela ainda não havia pensado nos Elfos porque imaginava que o Conselho não se interessaria por tirar Heather de Esplendora; mas então ela tinha o aval de um Anjo Superior que estava no comando. Ela retornou à sua casa e pediu a Heather para preparar-se, pois elas fariam uma caminhada até a cidade dos Elfos. Mills não queria abusar da permissão de orbitar, nem queria ser rastreada por nenhum Guardião.

Enquanto os dois Anjos faziam o trajeto até Vanera, o céu começou a escurecer. Nuvens surgiram no horizonte, um vento vindo do norte pode ser sentido. O sol se escondeu, tímido, por trás de uma pesada nuvem acinzentada. Mills sabia quem estava causando aquele transtorno no clima. Os poderes de Heather não eram estáveis e ela não sabia controlá-los. Ela nem deveria saber o que estava fazendo. As duas bateram nos portões de Vanera, e foram conduzidas até Bellasiel por Elfos guerreiros. Por mais que tudo estivesse calmo, Heather ainda era o perigo que rondava a Sétima Pedra e o Anjo que destruiria todo o mundo. Aquela Profecia era conhecida de todos os seres míticos, e o medo daquilo que não se podia ter certeza prevalecia à razão.

Bellasiel as aguardava na Árvore da Sabedoria.— O que houve com ela? — O Elfo assustou-se ao ver o estado físico de

Heather. Vinha amparada por Mills, e parecia esgotada.

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— A ascensão está sendo difícil. — O Anjo moveu a cabeça como se dissesse que nada poderia ser feito.

— E o que as traz a Vanera? — A pergunta era legítima.— Preciso pedir-lhe um favor. Nada que colocará o pacto entre Elfos e

Esplendora em risco; eu tenho a autorização de Anael. Mas eu preciso que alguém abrigue Heather por um ou dois dias – eu terei que ir a Terra.

Bellasiel franziu o cenho, confusa.— O que pretende fazer, na Terra?— Busco informações sobre o vampiro. Ele desapareceu depois do

confronto no Mundo Inferior, e Heather está quase à beira de perder o controle. Se eu não retornar com algumas boas memórias sobre ele, acredito que terei problemas com isso.

— Mas ele deve ter morrido no combate, pelo que diz. — O Elfo disse aquilo como hipótese, sem a intenção de que despertasse qualquer reação exagerada em Heather. Mas ela não podia perder a calma. Qualquer alteração no seu humor poderia ser explosiva, e foi. Na simples menção de que Henry pudesse ter morrido, ela afastou-se alguns passos, sentindo o corpo convulsionar como no Grande Poço. A luz de seus olhos brilhava como se fosse fogo, e dos seus poros saíam um clarão inesperado.

— Ele não morreu. — Ela disse, sentindo que seu corpo não tocava o chão. Heather estava suspensa, mas não como se flutuasse. O seu corpo estava sustentado pela luz que dele saía, fora de seu controle habitual. — Mills vai encontrá-lo, Henry está bem.

— Heather! Olhe para mim. — Mills aproximou-se, sem ter certeza se já havia visto um Anjo em ascensão comportar-se daquela forma. — Eu vou encontrar Henry, mas preciso que você mantenha a calma. Veja como você age, quer que tenham certeza que você é o perigo que pensam?

— Eu não me importo! — A luz ficou mais forte, e a grande Árvore da Sabedoria começou a chacoalhar seus ramos. O solo tremia como se um pequeno terremoto estivesse se aproximando. O céu de Vanera sentiu a aproximação de uma das negras nuvens de Esplendora. O vento mudou de direção. — Só Henry é importante agora!

Dizer o nome dele era como um comando, uma ordem. Heather esperava que Mills fosse encontrá-lo; ela esperava que ao menos o seu Anjo protetor lhe cumprisse as promessas. Henry não cumpriu a dele, quando se colocou em combate com Anjos e Bruxos poderosos. Ele havia prometido que não faria aquilo, mas fez. E ela precisava achá-lo, como ele estivesse. Ela precisava achá-lo porque ela queria que tudo aquilo tivesse fim, e porque queria voltar para os

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braços dele. Ela já estava cansada de ascensões e brigas, ela só queria que tudo acabasse.

— Entende meu dilema, Bellasiel? — Mills fez um gesto, indicando o comportamento inadequado de Heather. — Eu tenho que fazer algo a respeito.

— Está tudo bem, Mills. Você pode deixar o Anjo comigo, tenho certeza que ela se controlará se souber que o vampiro está sendo procurado.

Mills moveu os ombros, olhando para Bellasiel como se não houvesse muito que fazer. Heather era muito teimosa e raramente fazia algo que não queria. E não seria uma boa ideia contrariá-la naquele momento de extrema instabilidade emocional. Mills esperava que a busca pelo vampiro a mantivesse estável, que a ajudasse a controlar seu ímpeto. Ela pretendia inclusive proporcionar um encontro entre eles, porque ele parecia bastante eficiente em manter Heather calma. Talvez aquela fosse a melhor ideia, e que ela acontecesse logo.

Apesar da boa vontade do Elfo, Mills estava detestando a ideia de deixar Heather em Vanera. Afinal, ela teve que deixá-la aos cuidados de Henry, depois exigia esse esforço da amiga Elfo. Mas, depois da demonstração de completa falta de controle da garota, ela não podia arriscar que Heather tivesse uma síncope e decidisse ela mesma sair pela Terra para buscar o vampiro. Um Anjo em ascensão na Terra seria tudo que o apocalipse previa. A melhor coisa a fazer era ela mesma ir atrás da besta que ela tanto repudiou, mas que já estava aprendendo a respeitar. Mesmo que aquilo fosse um ultraje.

Não parecia uma tarefa simples, achar um vampiro perdido na Terra. Mills orbitou até o casarão de Henry, para conferir se ele estaria ali ou para falar com sua família. Mas estava tudo devidamente trancado, considerando que era dia e o sol brilhava no alto do céu em Graceland. Nenhum vampiro estaria disponível, ela precisaria esperar a noite chegar. E ela precisaria esperar que eles saíssem de casa, porque ela não conseguia entrar no covil deles. Não era boa sorte, pensou consigo mesma. Ela teria que esperar, mas esperar não era uma virtude de Heather.

“Vá procurar Kristen.” uma voz foi ouvida. Mills estava parada no meio do pátio da casa dos vampiros, pensando no que fazer, quando o som familiar foi capturado por seus ouvidos. Ela recusou-se a acreditar que Heather tivesse descumprido o acordo entre elas, e olhou em volta já procurando a garota. Mas não viu nada. Na verdade, Mills não captou nada. A garota não deveria estar na Terra, porque a sua presença seria sentida. E ela duvidava mesmo que ela estivesse capaz de orbitar sozinha; não estando tão fraca. “Heather, o que está

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havendo?” Mills comunicou-se da mesma forma. “Onde você está, por que está falando comigo?”

“Eu estou pressentindo você.” a voz foi seguida de uma gargalhada. Mills torceu os lábios, insatisfeita com aquela resposta. Mais uma vez, ela se recusou a acreditar que Heather estava sendo tão irresponsável. “Isso é fantástico! Eu posso sentir tudo, perceber tudo entre nós, Anjos. É assim mesmo?”

“Costuma ser.” O Anjo disse, com amargura. “Mas você está ascendendo agora, não deveria usar seus poderes levianamente para monitorar sua tutora. Seus poderes nem são conhecidos ainda, e estão instáveis. Aliás, você nem deveria poder me monitorar dessa forma.”

“Mills, procure Kristen.” Heather disse, o tom de voz mais severo. “Ela é minha melhor amiga, e ela conhece Henry. Não me importa se ela terá que enfrentar anjos e demônios, eu passei por isso e sobrevivi. Procure Kristen e diga a ela a verdade, peça a sua ajuda.”

Então Heather pedia a Mills que procurasse a humana e a envolvesse na fábula das bestas e entidades abençoadas. A garota deveria ser sugada para aquela realidade singular e inaceitável para os seres humanos, somente para satisfazer a sua ânsia de encontrar um vampiro perdido. E, mais grave ainda, Heather estava usando os poderes sem deter o controle deles. O que impressionava Mills, porque conseguir comunicar-se daquela forma era uma atribuição de Anjos de nível médio, e novatos como Heather nunca conseguiriam. O Anjo poderoso que todos temiam estava se mostrando, exibindo-se como se fosse uma adolescente.

“Heather, você consegue perceber outras entidades?” era a pergunta que Mills não devia ter feito. “Você conseguiria encontrar Henry, se quisesse?”

“Eu não sei.” o tom de voz era embargado. “Eu não sei como fiz isso, como falei com você. Só sei que eu penso em você, penso no que você está fazendo, e é como se tudo se passasse na minha frente.”

“Você consegue saber o que estou pensando?”“Não!” Heather deu outra risada. “Eu deveria?”Mills sentiu certo alívio. Heather não parecia ter desenvolvido a

Onisciência, e um Onisciente já era o suficiente. Um Anjo capaz de entrar na mente dos outros e ouvir tudo que ali se passava já era mais do que suficiente. E aquele era Seraphiel, o Supremo. Melhor que Heather pudesse pressentir, mas nunca ser Onisciente. O Anjo sabia o que deveria fazer, então. Havia deixado Heather com a dúvida, a possibilidade de concentrar-se em Henry e encontrá-lo. A possibilidade de manter-se ocupada por tempo suficiente, tentando achar o monstro perdido. Mas ela considerou que devia mesmo ir atrás da garota

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humana, porque logo Heather descobriria que não era capaz de encontrar o vampiro e voltaria a importuná-la.

O Anjo orbitou até o local onde seria construída a cafeteria de Heather, e onde Kristen estava. Mills não sabia que a encontraria, foi uma tentativa válida. Ela havia acabado de dispensar o engenheiro e tinha o aparelho celular em suas mãos, pronta para ligar para Heather. Mais uma série de ligações inúteis e perdidas. Kristen já havia quase enlouquecido, porque ela não estava em lugar algum e não atendia ao telefone. A Universidade não sabia dela, mas aquilo não surpreendeu ninguém. Nunca se sabia dos astrônomos e pesquisadores, eles estavam sempre em trabalhos de campo e sempre fazendo coisas inesperadas. Ela já estava pronta para entrar em colapso, mas precisava estar com a saúde mental apta a suportar alguns golpes que se seguiriam.

— Onde ela está não há recepção de celular. — O Anjo disse, a voz musical penetrando os ouvidos de Kristen. A garota virou para trás e deparou-se com a imagem de Mills. Por mais que ela tentasse impedir, havia muita luz saindo de seu corpo. A figura magra do Anjo era sempre chocante, para olhos humanos ou não.

— Quem é você? — A reação típica esperada. — Como entrou aqui?— A porta estava aberta, mas eu não preciso dela. Eu sou uma amiga de

Heather, como você. Foi ela quem me mandou procurá-la.— Você é amiga de Heath? — Kristen ergueu uma sobrancelha. — Bem,

ela tem mesmo uns amigos estranhos. Diga-me, essa luz toda é porque você caiu em uma bacia de tinta fosforescente?

— Não, Kristen. Na verdade, eu sou um Anjo. Você está recebendo a minha visita hoje porque preciso de sua ajuda, e preciso com urgência.

Outra reação típica e esperada se sucedeu à revelação: Kristen deu uma gargalhada bem alta, colocando o telefone celular dentro da bolsa. O Anjo não estava acostumado a revelar-se para humanos, e já o tinha feito duas vezes em pouco tempo. Mas ela suspeitou que tivesse que lidar com muitos sustos e gargalhadas, porque os humanos não estavam aptos a lidar com as criaturas mitológicas.

— Sim, tudo bem, você é um Anjo. Eu sou uma fada, prazer em conhecê-la. — A garota fez uma reverência com o corpo. — Sério, o que está havendo? — Kristen disse, depois de conseguir recuperar-se da crise de riso.

— Acredite ou não em mim, como preferir. Tenha-me como uma amiga de Heather, isso já é suficiente. Ela me pediu para procurá-la porque Henry Austin está desaparecido, e você conhece os amigos dele.

— Desaparecido como assim? — Kristen interessou-se. — Igual nos

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programas de televisão, quando a pessoa some e a polícia...— Sem polícia. — Mills interrompeu. — Não vamos envolver mais

humanos, ou a situação pode perder o controle. Eu preciso achá-lo, e você poderia ajudar-me?

Kristen franziu o cenho e encarou Mills. Ela via exatamente o que ela era, mas não admitia considerar que fosse mesmo um Anjo. O corpo brilhoso, as faíscas que os olhos emanavam, o cabelo quase branco de tão loiro, o manto roxo que a cobria e os pés que não pareciam tocar o chão. A amiga precisava considerar que se tratava de uma proposta urgente. Heather, a sumida, havia enviado outra amiga para pedir-lhe ajuda para encontrar o namorado perdido. Parecia uma história de novelas, pensou Kristen. E uma história que ela não compreendia, pois o que ela sabia era que os dois estavam juntos. Aquilo não fazia sentido, mas ela sentiu-se na obrigação de ajudar. Mesmo que Heather não atendesse ao telefone e agisse como uma completa desmiolada, elas eram melhores amigas e aquilo Kristen não podia negar.

— Posso falar com a Heath? — pergunta também óbvia.— Não, ela está incomunicável no momento.— Por que Henry desapareceu? Aconteceu alguma coisa? Eu estive ontem

com...— Acreditamos que ele esteja em perigo, ou ferido em algum lugar. —

Mills interrompeu, não interessada nas histórias da garota.— Ferido? — Kristen arregalou os olhos, agitada. — Mas se ele está ferido

precisamos mesmo falar com a polícia e...— Kristen, o seu aparato investigativo humano não é útil nesse momento.

— Mills interrompeu novamente, erguendo a mão iluminada. — Henry precisa de nós, e eu tenho um dia para encontrá-lo. Estou perdendo tempo precioso com essa conversa. Você vai me ajudar? Se sim, venha comigo. Precisamos entrar no covil onde eles moram, e você terá que falar com eles.

— Está bem, eu acho. — A garota não entendeu muito da conversa. — Mas, veja bem, eu não acho que tenha havido nada com Henry porque eu estive ontem com...

Enquanto Kristen discursava, Mills aproximou-se dela, flutuando. Sua mão tocou a pele morena da garota e imediatamente a energia se transferiu para Kristen. Em instantes, o Anjo orbitou para o pátio em frente ao casarão da antiga pensão. A garota interrompeu-se, atônita, olhos fixos e aturdidos com tudo ao seu redor. Não havia mais as paredes acolchoadas da cafeteria, nem as luzes fracas do ambiente interno. Ela estava no meio de uma floresta, com árvores e samambaias a cercá-la, de frente para a construção antiga, com o sol sob sua

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cabeça. Kristen sentiu as pernas bambas e encarou Mills, dando alguns passos vacilantes para trás.

— Agora, você precisa entrar. — Mills disse, apontando para a porta fechada.

— O que acabou de acontecer? — A garota conseguiu formar uma frase. A boca aberta de susto lhe conferia uma expressão patética. Mills teve vontade de rir, mas não era adequado senso de humor naquela situação. — Como chegamos aqui tão rápido?

— Eu te trouxe. Como eu disse, você não precisa acreditar em mim, mas você vai acreditar quando acharmos Henry. Tudo isso é fantástico demais, e você poderá enxergar a realidade, como aconteceu com Heather. Agora vamos, lá dentro deve ter algum tipo de esconderijo para as bestas não se prejudicarem com o sol.

— Do que você está falando? Que bestas?— Kristen, eu preciso que você se concentre e entre na casa. Consegue

fazer isso? Eu não posso entrar.— Por que não? — A garota continuava parada, afastando-se de Mills.— Foco. — O Anjo apontou novamente para a porta. — Entre na casa,

ache o esconderijo. Deve ser um porão, algo assim.Correr para dentro da casa pareceu uma tentadora opção para Kristen,

afinal ela estava começando a temer aquela pessoa estranha que se identificou como amiga de Heather. Ela não sabia o que a tinha feito aceitar conversar com aquela criatura esquisita, mas ela parecia saber coisas o suficiente para ser ao menos alguém conhecido. Com o cenho franzido e caminhando de costas, a ponta do salto do sapato vez ou outra penetrando no terreno irregular e arenoso do pátio, Kristen aproximou-se da grande varanda da hospedaria e, tentando não perder Mills de vista, bateu à porta. Nenhuma resposta a fez bater novamente, e mais uma vez. Não parecia ter ninguém na casa.

— Ninguém responde. — A garota disse, considerando se com aquela situação ela não seria liberada da incumbência de ajudar fosse quem fosse. — Eles devem ter saído.

— Você deve entrar, e não bater. Preciso que entre.“Ah, claro, vou arrombar uma porta agora!” foi o pensamento de Kristen

enquanto ela girava a maçaneta com força, tentando fazê-la abrir. Ao contrário da amiga Heather, ela não tinha habilidades nem técnicas de invasão de propriedade alheia. Ela não sabia como fazer para abrir uma porta trancada sem usar uma chave. Viu várias vezes em filmes as pessoas se atirando contra portas e paredes e colocando-as ao chão, mas ela também não se considerava apta

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àquela tarefa. Kristen era pequena, magra, fraca. Ela não acreditava que conseguisse derrubar uma porta bem simples, quiçá aquela estrutura de madeira maciça.

Ela ainda não sabia, mas os deuses conspiravam contra si. Enquanto se esforçava para abrir uma porta trancada, e enquanto Mills a observava, já arrependida de ter envolvido uma humana tão pouco habilidosa em uma empreitada tão arriscada, passos puderam ser ouvidos dentro da casa. O Anjo aproximou-se o máximo que pode, mas Kristen nem mesmo prestou atenção no movimento. Com as bochechas vermelhas de tanto fazer força, ela desistiu de girar e empurrar quando um barulho foi ouvido. O 'clique' de uma fechadura rompeu o silêncio que se havia estabelecido e a porta quase que milagrosamente abriu-se nas mãos de Kristen. Ela olhou para Mills com alguma satisfação, e colocou os pés dentro da casa, que estava totalmente escura. Seus olhos se estreitaram para que ela conseguisse enxergar o interior da estalagem, quando o brilho azul dos olhos de Stuart a fizeram assustar.

Kristen deu um pulo para trás e gritou. O Anjo ficou apreensivo do lado de fora, e flutuou em direção à varanda. Stuart aproximou-se da garota e a segurou com as duas mãos, uma sobrancelha erguida e um sorriso curioso nos lábios, puxando-a para dentro.

— Kristen? — Ele disse, confuso. — O que você está fazendo aqui, invadindo a minha casa?

Tão logo a garota percebeu tratar-se de alguém conhecido, ela imediatamente avançou por sobre Stuart, envolvendo-o em um abraço nervoso e afundando seu nariz em seu peito nu. Ele passou os braços ao seu redor, acariciando seus cabelos gentilmente, sem entender absolutamente nada.

— Desculpe, eu não queria invadir, é que a mulher esquisita que brilha disse que eu precisava porque Heather... — Como lhe era de costume, Kristen atropelou as palavras. Falou a frase inteira sem nenhuma pausa, sem respirar, com a face colada na pele do vampiro.

— Mulher que brilha? — Stuart franziu a testa. — Onde ela está?— Ela está lá fora. — A garota apontou para o pátio, mas Mills já estava na

varanda do covil. A luz de Mills facilmente se confundia com a luz do sol, então Stuart não teve certeza se a tinha enxergado. — Olha, foi ela que me mandou entrar então...

— Está tudo bem, Kristen! — O vampiro loiro disse. — Você não precisa se justificar. E não precisa ter medo, está tudo bem.

Stuart soltou Kristen e caminhou até a porta. Até o limite que lhe era permitido, considerando que era dia. Seus pés o guiaram até onde o sol

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começava a penetrar, criando formas geométricas no assoalho de madeira escurecida da grande pensão. Suas pupilas se fecharam e ele pode então ver Mills, o Anjo reluzente. Eles estavam bem próximos, mas aquele Anjo ele já conhecia bem.

— Vampiro, precisamos conversar. — Mills disse, ao ver Stuart na porta.— Vampiro? — Kristen arregalou os olhos assustada, e encarou Stuart. Ele

puxou-a para si, sem oferecer resposta ao questionamento.— Temos um pequeno impasse. Eu não posso sair, então você precisa dar

um jeito de entrar. — Ele deu uma risada. — Diga o que quer.— Eu não posso entrar. — Mills protestou.— Você já tentou? — Stuart ergueu uma sobrancelha. — Eu sei que morro

se sair ao sol, mas você morre se entrar aqui?Mills torceu os lábios e decidiu enfrentar. Ela não morria, apenas não

conseguia prosseguir. Mas, para sua surpresa, ela não sentiu as barreiras que usualmente a impediam de adentrar os recintos das bestas. Seus pés continuaram avançando, até que ela viu-se completamente dentro da sala dos vampiros. Kristen agarrou-se ainda mais a Stuart, enquanto Mills olhava para seus próprios braços e mãos, confusa com aquela possibilidade.

— Venho em busca de notícias sobre o vampiro Henry. — O Anjo tentou organizar as palavras. — Prometi a Heather que o encontraria.

— Ah, claro! — Stuart deu uma risada. — Vocês o perderam! Eu sempre soube que esse Anjo híbrido ia ser a perdição de Henry! — Ele fechou a expressão.

— Do que vocês estão falando? — Kristen sussurrou, as mãos pressionando com força a carne de Stuart. Ela estava agarrada a ele, como uma forma de proteção. Ele era conhecido, e a mulher que emanava luz era assustadora.

— Muito bem, Anjo. Além de perder meu amigo e aparecer do nada, você ainda precisa contar para ela o que somos? Precisa mesmo falar “vampiros” e “anjos” o tempo todo?

— A humana não sabe o que você é? — Mills ergueu uma sobrancelha, em surpresa. — Oras, mas vocês me parecem tão íntimos.

Stuart cerrou os olhos em uma linha fina. O barulho acordou Wesley, que apareceu em segundos na sala, curioso com o que poderia estar acontecendo.

— O que está havendo? — Ele perguntou, encarando Kristen. A garota estava atônita, atenta à conversa incrível que estava presenciando. Sua expressão era condizente com a de quem estava assistindo um filme de terror ainda no seu início, mas já sabendo que coisas assustadoras estariam por vir. — Ah, é a garota humana na casa! Aliás, eu acho que não deveria ter dito isso.

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— Parece que agora ela sabe. — Stuart considerou. — Certo?— Eu não sei nada. — Kristen balançou a cabeça negativamente.— Eu ouvi falar de Henry? Aconteceu alguma coisa com ele?— Nada que já não saibamos. — Stuart coçou o queixo. — Eles o

perderam, e agora querem saber onde ele está. — Mills franzia os lábios, insatisfeita com a gama de acusações. Ninguém havia perdido Henry, a situação apenas havia fugido do controle. — Mas, como hoje é seu dia de sorte, Anjo, nós sabemos que ele está bem. Vivo, pelo menos.

— Graças aos céus. — Mills sentiu o alívio preenchê-la. Era menos uma preocupação que ela teria. — Por favor, ajudem-me a encontrá-lo. Eu preciso vê-lo.

— Não basta dizer ao Anjo que o encontrou?— Heather vai querer as minhas memórias. Ela vai querer vê-lo. Eu preciso

compartilhar com ela as experiências que tiver; vocês não têm ideia de quanto perturbada ela está.

— Nós não sabemos exatamente onde ele está. — Wesley disse, pensativo. — Mas eu vou ligar para ele, e perguntar se ele está bem o suficiente para nos receber. Ele disse que estava com um tal de Malaquias.

— Malaquias, o Bruxo? — Mills arregalou os olhos, assustada. — Você tem certeza, criatura das trevas, que o vampiro está com Malaquias?

— Foi o que Henry me disse. Então eu tenho certeza. — Wesley discou os números de Henry no celular. — Isso é relevante, por acaso?

Mills franziu o cenho, fazendo pequenas rugas surgirem em sua pele perfeita. Aquela informação tinha que ser relevante, mas ela não sabia como. A intervenção de Jophiel na ascensão de Heather e a intervenção de Malaquias na recuperação do vampiro não podiam ser coincidência. Mas ela preferiu calar-se e não espalhar suas conjecturas para as demais bestas; ela preferia ter certeza do que aquilo representava antes de expor seu pensamento.

Henry atendeu ao telefone depois de alguns toques, a voz fraca, mas ansiosa.

— Wes. Está tudo bem?— Sim, está. Desculpe ligar, mas o Anjo de Heather está aqui na

estalagem, querendo falar com você. Na verdade, ela quer encontrar-se com você.

— Mills está aí? — Henry mostrou-se mais ansioso. — Deixe-me falar com ela.

O novato ofereceu o aparelho para o Anjo, que o olhou com curiosidade. Ele insistiu, com um gesto de que ela deveria pegar o celular para conversar

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com Henry, mas Mills estendeu a mão direita e recusou.— Eu não posso segurar isso. — Ela explicou. — Um telefone comum sim,

mas o celular não. A minha energia não permite. E, acreditem, eu já testei.Stuart deu uma risada, enquanto Wesley segurou a sua. Parecia engraçado

que alguém não fosse apto a segurar um celular, mas deveria ser compreensível. O vampiro mais jovem pressionou o botão de viva voz e explicou o problema a Henry.

— Diga o que você quer, Mills. Como está Heather? Ela está com você? Posso falar com ela?

— Acalme-se, vampiro. — Mills franziu a sobrancelha. — Ela está em Esplendora, e eu vim para vê-lo. Preciso informar a ela que você está vivo.

— Está bem. Eu vou perguntar ao Bruxo que me hospeda onde estamos, e vocês podem vir aqui. Stu... eu sei que você está ouvindo, então, preste atenção: não venha na Mercedes.

Daquela vez, foi Wesley quem deu uma gargalhada. O vampiro loiro fez um bico, movendo os braços para demonstrar que não sabia do que Henry estava falando. O Bruxo Malaquias assumiu a conversa, explicando para os vampiros onde ficava a sua cabana, mas esclarecendo que Henry ainda estava fraco e precisando de cuidados. Apesar dos avisos, era o vampiro que queria falar com Mills; era ele mesmo que precisava ver os amigos e socializar-se com aqueles que conhecia. A reclusão na cabana do Bruxo era tão agonizante quanto o ferimento em seu peito.

Enquanto na Terra uma excursão era organizada para resgatar o vampiro ferido, a cidade de Vanera sentia as agruras de ter Heather como hóspede. Desde a chegada do Anjo temido, os céus se fecharam em nuvens espessas e a tempestade não mais parou. A demonstração absurda de poder sob a Árvore da Sabedoria tinha desencadeado uma alteração climática severa. Chovia ininterruptamente e as rajadas de vento faziam as árvores dançarem nos pomares e bosques. Não havia nenhum Elfo pelos caminhos alagados, e todas as janelas de vidro estavam fechadas. Aquela situação deixava Raunien confuso. Talvez a Profecia que a supersticiosa Bell tanto cuidava fosse mesmo verdadeira. Talvez aquela garota gentil e com aparência doce fosse mesmo o Anjo do apocalipse, e talvez ela devesse ser detida. Mas ele não sabia o que fazer, nem que atitude tomar. A garota estava confinada no alto da torre oeste, em um quarto que nunca era utilizado. Ela havia se alimentado, e eles a guardaram lá a fim de esperar Mills ou uma posição do Conselho. Porque se o Conselho decidisse que Heather deveria ficar sob a custódia de Esplendora,

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ninguém os impediria de tomá-la.O Elfo encontrou-se com a irmã Bellasiel e decidiram reunir-se

rapidamente, para conversar se deveriam tomar alguma atitude até que Mills retornasse. Ele não pretendia fazer nada, porém gostava de discutir questões controvertidas e problemáticas com a irmã, que considerava sábia. Ele era o justo, ela era a sábia. O que ele tinha certeza, naquele momento, era que Heather mexia com o tempo. Ele não sabia o que mais ela podia fazer. Ele não sabia se podia confiar no julgamento de Anjos que, provavelmente, não tinham controle sobre si mesmos, ou os de sua espécie. Ele nem sabia se o Conselho de Esplendora seria capaz de tomar uma atitude, caso ela fosse necessária.

Heather, no entanto, estava pouco preocupada com aquilo, no momento. Ela queria que aquela ascensão terminasse a todo custo, desde que ficou ciente dos perigos que ela corria. Os perigos que aqueles que ela amava corriam. Tudo que ela queria era ser poderosa, o suficiente para que os Bruxos tivessem real motivo para temê-la. Não que ela pretendesse usar os poderes para nada negativo ou destrutivo; o que Heather queria era o respeito daquele mundo mágico que a tratava como uma indefesa e frágil bomba atômica. Seu corpo já estava mais estabilizado, e ela não sentia mais tanto sono. Ela conseguia perceber tudo com mais clareza, e sentia a presença de Anjos a muitos metros e metros de distância. Ela sentia Mills, caminhando pela Terra, e queria estar em seu lugar. Ela sentia a energia poderosa do Conselho e tudo que aquilo representava. Seu coração estava batendo fora de ritmo e ela girava pelo quarto de pouca mobília, impaciente.

Mills havia cogitado a possibilidade de que toda aquela percepção a fizesse chegar até Henry. Parecia uma tolice, porque ela não conseguia sentir a presença de mais ninguém além dos Anjos. Nem Elfos, nem Bruxos, nem nada mais que habitasse aquele lugar esquisito. Então, como ela seria capaz de pressentir Henry, ela se perguntava. Afinal, Henry era um vampiro, uma criatura das trevas. Ela não deveria mesmo poder encontrá-lo. Heather aproximou-se do parapeito da janela, a única do quarto redondo, e apoiou a face sobre as mãos, observando Vanera. A cidade parecia pertencer a um conto de fadas, literalmente. O céu estava pesado e chovia bastante, mas ele era tingido de um cor-de-rosa incomum, como se por baixo de toda aquela tempestade estivesse uma matiz desconhecida. As árvores que chacoalhavam com o vento forte eram muito verdes e permeadas de frutos esquisitos, que ela desconhecia. As construções tinham a forma das cabanas de épocas remotas, muitas cobertas com elementos naturais. E, naquele momento, muitas já desprovidas de sua cobertura em razão da força da chuva. Ela acreditava que estava causando tudo

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aquilo. Mas ela não sabia como fazer parar.Seus olhos se perderam em uma nuvem fofa que mais parecia feita de

algodão. Se não fosse o fato de estar negra e ameaçadora, seria uma linda nuvem a cobrir o céu durante o dia e esconder o sol. Mas naquele instante era apenas a demonstração de que o mundo mágico estava infeliz porque Heather estava ali. Seu coração bateu mais devagar e um vazio imensurável se estendeu por seu corpo. Ela estava oca, como se nada houvesse por dentro. Sentiu uma pontada de dor e a respiração estava difícil. Os sentimentos estavam se restabelecendo aos poucos, e toda a angústia da ausência de Henry a atormentava. Não a simples ausência, mas o fato de que ela não sabia onde ele estava. Tudo que ela tinha naquele momento era Mills, sua amiga Kristen e os dois vampiros que formavam a família de Henry. Ela colocava em suas mãos toda a sua esperança de rever aquele que ela amava.