livro - digo e não peço segredo
DESCRIPTION
Editorial em homenagem ao Centenário do poeta popular Antônio Gonçalves da Silva, conhecido como Patativa do Assaré. O projeto apresenta uma nova proposta gráfica para o livro “Digo e não peço segredo”. As ilustrações foram feitas em xilogravura. O livro é acompanhado por um CD, “Canto Nordestino”, que contém as poesias narradas pelo próprio autor. Uma caixa guarda as peças do projeto, além de dar um charme a mais no conjunto.TRANSCRIPT
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Edição em comemoração ao Centenário PatativanoOrganização e prefácio Tadeu Feitosa
© by Patativa do Assaré
Coordenação editorial – Raimundo GadelhaPesquisa e texto final – Tadeu FeitosaCapa e projeto gráfico – Daniela Abrão
Patativa do Assaré, 1909-2002 Digo e não peço segredo/Patativa do Assaré. Belo Horizonte, 2009
ISBN:85-7531-022-4
1.Literatura de cordel – Ceará 2. Patativa do Assaré, 1909-2002 3. Poesia popular brasileira
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Quando, no ano de 1951, o jovem Edson de Queiroz se lançou no mundo dos empreendimentos não imaginava que aquele seria o início de um longo percurso de trabalho, de luta e de sucesso reconhecido. Seu conjunto de atividades empresariais mudaria radicalmente o cenário industrial e econômico do Ceará.
Nesses cinqüenta anos de existência, o Grupo Edson Queiroz passou a fazer parte do cotidiano dos brasileiros como um dos mais atuantes conglomerados do país. Construiu sua trajetória com a força de 16 empresas nas áreas de distribuição de gás, água mineral, metalúrgica, agropecuária, agroindústria, imóveis, comunicações e educação, gerando amplos benefícios sociais em vários Estados do Brasil.
Sua representação junto à cultura como instituição que promove o desenvolvimento das artes, compõe, também, o cenário de suas atuações. Nesse processo, o Grupo Edson Queiroz, mantendo a sua tradição, incentiva a edição desta obra: “Patativa do Assaré: Digo e não peço segredo...”.
Este livro presta uma merecida homenagem a Patativa do Assaré, um dos mais importantes ícones nordestinos, levando aos brasileiros um pouco de sua marcante trajetória. Nele associam-se claramente as preocupações da maioria dos cearenses com sua cultura e suas mais legítimas tradições. É ainda um símbolo da força e pujança de um povo que, não obstante as dificuldades, sabe construir os caminhos do sucesso.
Apresentação
Yolanda Queiroz
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PREFÁCIODigo e não peço segredo não é apenas uma das vinhetas que costumam mediar as conversas com o poeta Patativa do Assaré, espécie de abertura de muitas de suas revelações, mas, neste livro, é também a sínteses de uma vida que se fez obra e que é contada aqui de modo solto e leve, majoritariamente em prosa, coisa difícil de se obter de Patativa, que é todo poesia. Esta funciona como outras vinhetas ilustrativas de sua trajetória e dos caminhos de sua poética.
Aqui temos revelações surpreendentes sobre o maior poeta brasileiro ainda vivo e o título não apenas sugere que é ele que nos fala diretamente, mas mostra um Patativa entregue ao diálogo. Adentrarmos esta obra é como se entrássemos na sala de jantar do poeta, em Assaré, onde diariamente ele recebe uma verdadeira romaria de admiradores, pesquisadores e jornalistas e de onde se podem ver fotografias, trechos de seus poemas, imagens do seu sertão; de onde se escuta o canto mavioso do pássaro, canto e plumagem que vão mudando conforme as situações e o estado de espírito do poeta-pássaro.
Para dizer e não pedir segredo é preciso estar certo do que será dito. Mas não apenas isso. É necessário estar numa posição confortável, amparado por uma maturidade e por uma visão de mundo que levou tempo para ser construída. É da sua condição de mito que Patativa do Assaré fala do homem e do poeta. Condição privilegiada porque consolidada pela notoriedade e reconhecimento de um Brasil inteiro, podendo se encontrar indícios de seu canto em ninhos internacionais.
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Nascido pobre e em condições adversas na longíngua Serra de Santana de 1909, cedo Antônio teve que se dedicar à roca, espaço síntese de labor e criação onde natureza e cultura dialogavam e se ofereciam como laboratório para o menino. Observador atento, o pequeno Patativa ia criando plumagens e tino para vôos maiores. A idade adulta ainda lhe oferecia o mesmo cenário e a mesma missão, agora meticulosamente cumprida pela poesia difundida em livros, em discos em filmes e objeto de análise em universidades, em bancas literárias, uma obra aceita e difundida pela mídia e por uma legião cada vez maior de admiradores e fãs.
Digo e não peço segredo que foi pra mim um dos maiores prazeres conviver com Patativa do Assaré por quatro anos seguidos e ter levado quatro meses initerruptos para obter preciosas informações, as quais empresto a esta obra como fragmentos das muitas entrevistas feitas. Privar da sua amizade, viver do seu cotidiano, subir e descer a Serra de Santana em sua companhia, presenciar inúmeras declamações perfomáticas, vê-lo em desafio com Geraldo Alencar e ler para o poeta toda a sua obra e ele comentar foi uma experiência que agora o poeta partilha com todos os seus leitores.
As sessões de leituras – seguidas ou não de entrevistas estruturadas – e os bate-papos sobre sua vida e sua obra são apresentados aqui pelo poeta, que acaba contribuindo para que seus admiradores conheçam os bastidores da sua vida e do seu processo criativo. Este livro é a síntese do dia-a-dia de um mito que nunca perdeu sua simplicidade e que subverte todas as previsões sobre a memória dos idosos. Sempre atua e atento às coisas do Brasil e do mundo, o mito Patativa, às vésperas dos seus 93 anos, mostrará neste livro que o tempo apenas lapidou uma consciência que já existia nele em estado latente.
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A memória em Patativa do Assaré é um processo e não algo acabado como os álbuns de fotografias ou este livro. Sua memória é feita e refeita diariamente. Ela interage com o passado apenas para ser mais dinâmica no presente, projetando-se para o futuro, porque Patativa também é profeta. Nada do que ele cantou deixou de acontecer, porque sua obra é feita com os mesmos materiais da natureza, obedecendo à mesma circularidade da vida. A vida e a obra de Patativa são como um rio perene, ao mesmo tempo permanência e novidade.
Patativa de Assaré nos mostra neste livro que há muito ele deixou de ser do Assaré para ser do mundo. Sua obra é como uma grife, espécie de fala que existe como suporte para traduzir o universal. A dicção “matuta” nem de longe significa que ele não compreenda ou não saiba produzir poemas eruditos. Como se verá aqui, sua linguagem “matuta” é apenas uma opção porque o pássaro que se nos apresenta aqui é liberto. Leu Camões, Castro Alves, Olavo Bilac, José de Alencar, Machado de Assis e outros apenas para saber e provar que “poderia fazer e ser igual a eles todos”. “E eu sou”, diz Patativa.
Os leitores deste livro terão um rápido exemplo de como Patativa do Assaré não precisa do aval da erudição para ser tão imortal quanto os eruditos. Também não precisa estar atrelado à sua linguagem “matuta” para ser fiel as suas origens. Patativa está além dessas separações arbitrárias entre a cultura erudita e a cultura popular. Ele é simplesmente universal. É um mito, detentor de uma obra magistral, de uma lucidez extraordinária e é, sem dúvida, o “cearense do milênio”.
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Resta a você, leitor, aproveitar a oportunidade que este livro lhe dá e adentrar o ninho desse pássaro mágico-mítico. O canto patativano poderá ser ouvido nas páginas desta obra. Por elas podemos todos viajar de carona no vôo deste pássaro e vislumbrarmos os caminhos, as situações, as pessoas, as imagens, os cenários que constituíram os seus ninhos e as suas muitas faces e dicções.
O menino Antônio..................................................16Patativa por ele mesmo..........................................18Estudo..................................................................18Inspiração.............................................................21Timidez................................................................24Sertão..................................................................25Serra de Santana...................................................32Lembranças..........................................................34Vaidade................................................................37A morte................................................................38A vida...................................................................41PA
RTE 1
o homem o pássaroe
Dom da poesia......................................................44A voz e a letra.......................................................44Erudito e popular..................................................45Memória..............................................................46Ideologia patativana..............................................47Fonte patativana...................................................51Canto nordestino...................................................52Emoções...............................................................55Zelo pela criação...................................................60Tempo..................................................................62Vôos de Patativa....................................................63Participação política..............................................65“Eu quero e todos querem”.....................................68
PARTE 2
o PÁssaro o CANTO e
Sertão festivo.........................................................72A cerca..................................................................73Velhice..................................................................76Cigarro..................................................................77Infidelidade..........................................................80Tradição e modernidade.........................................81Saudade...............................................................82Poeta batizado......................................................83Contradições........................................................84Crime imperdoável................................................85O Diabo................................................................86Dinheiro...............................................................87Rimando o cotidiano.............................................88Em favor dos ouvintes da rádio...............................92Espirituosidade.....................................................94Lampião...............................................................98Vaqueiro musicado................................................99Linguagem dos olhos............................................100A Ditadura...........................................................103Visão do Brasil.....................................................104Viva o povo brasileiro............................................106
o canto a vida
e
PARTE 3
O Sucesso.............................................................110Patativa e os fãs...................................................110Patativa e os intelectuais........................................111Patativa e os prêmios.............................................111Indústria cultural...................................................111Patativa na tevê....................................................112Patativa no cinema...............................................113Patativa animado..................................................115Patativa no rádio...................................................116Homenagens........................................................116Doutor Honoris Causa...........................................116Ceraense do século................................................117Sereia de Ouro......................................................117Memorial Patativa do Assaré.................................118O mito da música..................................................119Outros mitos.......................................................120Mitos da literatura...............................................122O Mito pelas causas.............................................122O Mito e as tradições...........................................126O Mito e a musa..................................................129Mensagens do mito.............................................131Futuro................................................................132
a vida o mito
e
PARTE 4
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o HOmem o pássarO E
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A minha infância foi uma infância boa e os garotos são inocentes e de tudo eles gostam, não é? E assim, passei minha infância com a lembrança que eu ainda tenho, aquelas brincadeiras, aquela vida de ingenuidade, a inocência da criança, de que no mundo só há coisa boa. Boa, pura e bela, que é o mundo da criança. Porque ali, tudo é lindo. Tudo é belo. A criança não peca. Aquilo que o adulto faz e peca, a criança fazendo não é.
Minha infância foi lá na Serra de Santana. O relato da minha infância é uma coisa um pouco penosa, porque a minha infância foi uma infância de trabalho e quanta coisa tem. Eu comecei a trabalhar, pequeno mesmo, O
meninO AN
TÔNIO
Nas horas vagas eu brincava de um instrumento que chamam bodoque, você sabe? Que atirava assim. E também de carrapeta, que é um troço que a gente solta assim e ele fica rodando acolá, viu? E também a brincadeira que quase todo garoto camponês também usa, que é cavalo de pau. É uma hastezinha de madeira, que o camarada põe assim entre as pernas, pega aqui num cordãozinho amarrado e ele sai correndo. Ele chama cavalo. Cavalo de pau, viu? E assim eram minhas brincadeiras nas horas vagas. Tive uma infância como os outros garotos também têm, com essas brincadeiras de criança. E foi assim.
trabalhando de roça. Meu pai, Pedro Gonçalves da Silva, ele vivia em extrema pobreza e, quando morreu, nos deixou com esse diminuto terreno lá no sítio Serra de Santana, onde eu fiquei com os meus irmãos e a minha mãe, trabalhando de roça, desde a minha infância.
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No verdô da minha idade
mode acalentá meu choro
minha vovó de bondade
falava em grandes tesôro
era históra de reinado
prencesa, prinspe incantado
com feiticêra e condão
essas históra ingraçada
ta selada e carimbada
dentro do meu coração. (...)Mas porém eu sinto e vejo
que a grande sodade minha
não é só de históra e bejo
da querida vovozinha
demenhanzinha bem cedo
sodade dos meus brinquedo
meu bodoque e meu bornó
o meu cavalo de pau
meu pinhão, meu berimbau
e a minha carça cotó.
O mundo da criança é um mundo puro, belo, lindo, viu? Porque aquilo ali a criança, quando está estudando e lendo aquilo com prazer, ta acreditando em tudo, viu? Não sabe se aquilo é uma criação, ela acha que ela está apresentando uma coisa real.
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Eu sou um poeta que tenho criatividade e fui um agricultor a vida toda, vivendo de roça, fazendo a minha poesia lá, sem precisar escrever, fazendo verso retido na memória pra depois passar para o papel... eu sempre falo com rima.
Eu sou poeta, mas tem muitos versejadores. Tudo meu, eu faço é criar. Eu crio aquele quadro, aí vou reproduzir em versos, viu? Porque o poeta... a vantagem da poesia não é a sua beleza, a sua medida, as suas rimas, as suas sílabas predominante não. É a verdade, é contar uma coisa toda filosófica, pois é, justamente, minha poesia é dentro desse tema, dentro desse quadro. Eu fiz um poema, eu recitei um bocado de poema, num certo ponto que eu não me lembro nem mais onde foi, aí todos se admiraram. Eu digo: bem, isso se causa admiração, mas tudo quanto eu disse aqui, esse grande auditório ouviu e sabe tudo quanto eu disse. Agora, a diferença é que eles não sabem dizer. Foi um trovão de risadas,
viu?
Patativa por ELE mesmo
Eu estudei só seis meses. Agora eu fui me valer do livro. Que não era o livro didático não. Eu não queria saber de categorias gramaticais não. Queria saber de outras coisas Eu lia era revista, era livro, jornais. Eu queria era satisfazer minha curiosidade, não era ler gramaticalmente como vocês por aí não.
EstUDO
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Neste globo terrestre
apresento os versos meus
porém eu só tive um mestre
e esse mestre é Deus
Foi a natureza mesmo. Muito curioso saber das coisas, tudo o que eu lia eu gravava na mente. Eu queria saber de livro de concordância e isso e aquilo. Agora, com essa prática de ler eu pude obter tudo, viu? Eu aprendi lendo. Com a prática de ler a gente vai descobrindo e sabe que nem pode dizer: tu sois e nós é. Eu aprendi com a prática.
Corria notícia aí por esse Cariri que tinha um cabloco na Serra de Santana, que era inteligente, não sei o quê, que era eu. E aí me fizeram presente de um livro que tinha o título de “Português Prático”. Com esse eu aproveitei muita coisa, viu?
Meus primeiros estudos foi nos dois livros do Felisberto de Carvalho. Os dois livros eu tinha que estudar em dois anos, não era? Agora eu estudei só seis meses e dentro desses seis meses eu li os dois livros, sem ser em ordem de colégio. Se fosse na escola púlica, como nós temos por aqui, eu tinha que passar dois anos.
Eu aprendi com a natureza que é caprichosa. É como eu digo nos meus versinhos:
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Quando canta o sabiá
sem nunxa ter tido estudo
eu vejo que Deus está
por dentro daquilo tudo
aquele pássaro amado
no seu gorjeio sagrado
nunca uma nota falhou
na sua canção amena
só canta o que Deus ordena
só diz o que Deus mandou.
Eu nasci ouvindo os cantos
das aves da minha terra
e vendo os belos encantos
que a mata bonita encerra
foi ali que eu fui crescendo
fui vendo e fui aprendendo
no livro da natureza
onde Deus é mais visível
o coração mais sensível
e a vida tem mais pureza.
Sem poder fazer escolhas
de livro artificial
estudei nas lindas folhas
do meu livro natural
e, assim, longe da cidade
lendo nessa faculdade
que tem todas os sinais
com esses estudos meus
aprendi amar a Deus
na vida dos animais.
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InspiraçãoCastro Alves
Castro Alves não morrerá nunca, viu? Foi um monumento de poesia. Vinte e quatro anos. Se um homem daquele vivesse cinqüenta anos, o que era que ele não teria deixado aqui neste mundo? É. Foi um gênio. Aquilo é que eu chama de gênio. Você leu alguma coisa dele? Leu “Navio Negreiro”?
Casto Alves da Bahia
com muita filosofia
disse em sua poesia
esta verdade exemplar
– agora é dele, viu? –
o livro caindo n’alma
é verbo que faz a palma
é chuva que faz o mar.
Ele cantou, morreu e deixou aí e vai aturar e continuar vigorando, não é? E eu também tenho cantado pra ver se os sem terra se libertam e não se libertam nunca não.
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Graciliano Ramos
Li algumas coisinhas de Graciliano Ramos. A cachorra de cócoras na beira do fogo. Aí a primeira pessoa que eu vi dizer que um animal pensava isso e aquilo, foi ele, né? Em Vidas Secas. Não tem aquela cachorra? Cachorra de cócoras, pensando. Esse povo inventa cada uma!
Drummond
Carlos Drummond de Andrade, poeta da poesia em prosa. Aquilo lá é poesia? Eu chamo aquilo é prosa. Porque ele não tem medida, não tem sílaba predominante, não tem tônica e além disso não tem a rima, que é a beleza da poesia é a rima, entrelaçada uma com as outras, viu?
Machado de Assis
Machado de Assis sofreu humilhação e foi muito. Eu já li. Os professores tinham um ciúme danado dele. Porque ele começou sendo um tipógrafo, e dali já tinha uma inteligência grande e os professores tinham um ciúme danado. Isso é que é ser uma ignorância, não é? Em vez de se orgulhar de ter um aluno inteligente de uma visão importante. O mundo tem dessas coisas, viu? É o egoísmo. Pois eu li. Eu li Machado de Assis. “Helena” é um grande romance dele e mais outros,
viu?
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Camões
Eu li Camões, eu sou atrevido, falei até sobre Camões,
digo:
Aqui de longínqua serra
de Camões o que direi?
Quer na paz ou quer na guerra
que ele foi grande eu bem sei
exaltou a sua terra mais do que seu próprio rei
e por isso é sempre novo no coração do seu povo
e eu, que das coisas terrestres tenho bem poucas noções
porque não tive dos mestres as preciosas lições
só tenho flores silvestres pra coroa de Camões
veja a minha pequenez ante bardo português.
Livro de poesia
O único livro didático sobre poesia que eu li foi o Versificação de Olavo Bilac e Guimarães Passos”.
Olhe, eu sou assim tímido e sem vaidade. A natureza é caprichosa e me deu assim um privilégio, eu quando vejo uma vitória muito grande, uma grande assistência que eu vou declamar, vou apresentar como já fui várias vezes, uma infinidade de vezes, viu? Eu fico totalmente trêmulo. Agora, quando eu me aproximo do aparelho, pra falar, pronto, aquilo some tudo. Parece que vem outra coisa e diz: “é por aqui, viu?” Pois bem, isso me dá um grande prazer, mas ser tímido? Antes de chegar o momento, eu sou é um quase vencido. Agora, quando chega o momento, não. Some tudo. Chega tudo o que eu quero. Tudo me vem à mente. Logo, eu tenho a felicidade do povo gostar e isso ajuda. Às vezes, o povo não sabe nem o que é, mas pelo palavreado, acha bom e bate palmas. Não sabe interpretar, mas quer também. Só em saber que quem está ali está disposto a lhe aplaudir, já é uma coisa boa. Agora, hoje, eu não to mais valendo nada não. Não sei pra que diabo é que ainda estão mexendo com isso? Já chega! Eu não quero isso e nem sou vaidoso e nem nada.
Timidez
Some tudo. Chega tudo o que eu quero. Tudo me vem à mente.
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Ah!. O sertão é... O sertão é a riqueza natural que nós temos, não é? É o ponto melhor da vida, para quem sabe ver é o sertão, pois ali está tudo o que é belo, que é bom, que é puro, nós temos pro sertão, não é? Principalmente a passarada cantando, não é? É, justamente. Quer ver,
leia aí o sertão:
Sertão, arguém te cantô
Eu sempre tenho cantado
E ainda cantando to
Pruquê, meu torrão amado
Munto te prezo, te quero
E vejo qui os teus mistéro
Ninguém sabe decifrá
A tua beleza é tanta
Que o poeta canta, canta
E inda fica o que cantá (...)
Deste jeito é que te quero
Munto te estimo e venero
Vivendo assim afastado
Da vaidade, do orgúio
Guerra, questão e barúio
Do mundo civilizado.
seRTÃO
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(...) Depois que o podê celeste
Manda chuva no Nordeste
De verde a terra se veste
E corre água em brobutão
A mata com o seu verdume
E as fulo com o seu perfume
Se enfeita de vaga-lume
Nas noite de iscuridão.1
(...) Meu sertão das vaquejadas
Das festas de apartação
Das alegres luaradas
Das debulhas de feijão
Das danças de São Gonçalo
Das corridas de cavalo
Das caçadas de tatu
Onde o cabloco desperta
Conhecendo a hora certa
Pelo canto do nambu 2
(...) Sertão, minha terra amada
De bom e sadio crima
Que me deu de mão bejada
Um mundo cheio de rima
O teu só é tão ardente
Que treme a vista da gente
Nas parede de reboco
Mas tem milagre e virtude
Que dá corage, saúde
E alegria aos teus cabôco.
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1 A Festa da Natureza | 2
O Retrato do Sertão | 3 O
Retrato do Sertão | 4 Idem, na
sequência da estrofe anterior.
Que bela e doce emoção
Ouvir o canto saudoso
Do galo do meu sertão
Na risonha madrugada
De uma noite enluarada!
A gente sente um desejo
Um desejo de rezar
E nesta prece jurar
Que Jesus foi sertanejo.
(...) Desta gente eu vivo perto
Sou sertanejo da gema.
O sertão é o livro aberto
Onde lemos o poema
Da mais rica inspiração
Vivo dentro do sertão
E o sertão dentro de mim
Adoro as suas belezas
Que valem mais que as riqueza
Dos reinados de Aladin . 3
(...) Porém, se ele é um portento
de riso, graça e primor
Tem também seu sofrimento
Sua mágoa e sua dor
Esta gleba hospitaleira
Onde a fada feiticeira
Depositou seu condão
É também um grande abismo
Do triste analfabetismo
Por falta de proteção. 4
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Isso aí tudo é o sertão.No rompê de tua orora
meu sertão do Ciará,
quando escuto as voz sonora
do sodoso sabiá
do canaro e do campina
sinto das graça divina
o seu imenso pudê
e com munta razão vejo
que a gente sê sertanejo
é um dos maió prazê.
olha aí!
Tu é belo e é importante tudo teu é natura
ingualmente o diamanteante de argúem lapidá.
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O diamante antes de ser lapidado, não é? Porque o diamante só é alguma coisa depois dele ser lapidado. Aí é que ele vai brilhar, não é? Mas o sertão é puro, tão puro quanto o diamante antes de seu trabalho,
não é?Eu mandei publicar “Dois quadros”, mostrando o que é tristeza, porque é o que mais o nordeste tem é tristeza, mas tem também seu prazer, sua alegria, sua estação invernosa e tudo bom, não é?
Na seca inclemente do nosso Nordeste
o sol é mais quente e o céu mais azul
e o povo se achando sem pão e sem veste
viaja à procura das terra do Sul
(...) Porém, quando chove, tudo é riso e festa
O campo e a floresta prometem fartura
Escutam-se as notas agudas e graves
do canto das aves louvando a natura.
Não tem aí as duas partes, pois é. Isso é bonito. Isso para quem é apaixonado pela roça e pelo que planta, mas não são todos não. Tem deles que trabalha porque é o jeito, mas o que é apaixonado mesmo pelo plantio, como eu fui um deles, a gente anda dentro duma roça, quando o milho ta todo apenduado, o feijão nascido, vocêtem uma impressão que aquilo tudo, eles sabem [o milho e o feijão] que a gente ta por ali.
é coisa viva.
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É o meu lugar.serra de santana
Minha Serra de Santana
meu pedacinho de chãolá ficou minha choupana
e o meu pé de framboão
ficou também no terrrêro
meu galo madrugadêro
que canta inriba da hora
Minha serra! Minha serra!
o destino me faz guerra
e a sodade me devora.
Lá foram meus filhos, viu? Lá moram dois filhos e duas filhas, Miriam e Inês. E esta miudinha aqui é a caçula, é Lúcia. Eu tenho até esse meu poema:
“Minhas filhas” (...)
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Minhas filhas eu vejo que são três
e cada qual é da beleza irmã
se eu quero Lúcia, muito quero Inês
da mesma forma quero Miriam
Vendo a meiguice da primeira filha
vejo a segunda que me prende e encanta
a mesma estrela que reluz e brilha
se olho a terceira, vejo a mesma santa.
Se a cada uma com fervor venero
fico confuso sem saber das três
qual a mais linda e qual eu mais quero
se é a Miriam, se é a Lúcia ou se é a Inês.
E, já velho, a pensar de quando em quando
eu brevemente voltarei ao pó
eu sou feliz e morrerei pensando
que as três filhas que eu tenho é uma só
Quando vou à Serra de Santana passo lá uns dois dias, porque lá é muito frio, lá é frio que é danado. Vive sempre soprando em vento e eu não me dou muito bem com a serra... Quando eu vou, vou palestrar com os meus, mandar minha filha Inês ler pra mim aquilo que eu quero... Inês, minha filha é minha leitora principal. Eu tenho muito livro lá, ela é quem guarda meus livros.
Zezé era meu irmão mais velho. Era muito meu amigo. Viveu até setenta e dois anos, viu? Era carpinteiro. Hoje, o Aloísio é filho dele, que mora lá no Cachoeirão. Muita gente chamava ele de Cazuzinha, mas era José. Era Zezé, Zezé. Ele era carpinteiro e agricultor. Ele era um trabalhador muito danado, mas tinha as mãos abertas. Todo mundo que ia comprar madeira lá na mata, ele fazia era dar. Fazia era dar de presente. De dia trabalhava na roça. De noite, enquanto não desse o sono, ia trabalhar. Sitiar madeira, serrar, essas coisas, viu? Foi um grande trabalhador. E ali, a pinga tava perto. A pinga não empatava ele de trabalhar não. É, se acostumou, né?
Vicente Gonçalves era meu primo legítimo. Ele era poeta, mas não divulgou muito as coisas não. Mas ele era espirituoso, fazia as poesias. Ele diz: “depois da segunda guerra”, ele fazendo crítica,
viu?
lem
branças
Depois da segunda guerra
sabe um portuga o que fez?
Querendo aprender inglês
viajou para a Inglaterra
chegando naquela terra
bastante civilizada
teve uma escola adiantada
mas não aprendeu inglês
se esqueceu do português
voltou sem saber de nada.
Os brasileiros não atacam os portugueses? Mas eu perguntei ao Dr. Arrais Alencar o que era que os portugueses diziam dessas piadas e tantas sátiras que os brasileiros atacavam eles. Ele disse: nada, Patativa, isso aí é elas por elas. Eles lá faziam a mesma coisa com os brasileiros (risos). Piada contra os portugueses: o português estava no Rio de Janeiro, tudo legal, aí conversando lá, ele diz: eu me casei agora mesmo e vim passar a lua de mel aqui. Aí perguntaram: cadê a esposa? Ele diz: a esposa ficou (gargalhada). A esposa ficou.
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Nunca ninguém teve o prazer ou a infelicidade de fazer foto do Patativa sem o chapéu. Muitos têm vontade, peleja, eu dou é cotoco: taqui! Faça foto do Patativa sem chapéu!!! Eu consinto não. O cabra que se meter a isso meto um PO-E-MA no rabo, que ele nunca mais se esquece. (...) Eu digo é você chegar e dizer (com raiva): “Tire aí o seu chapéu pra eu bater uma foto!” Não, isso nunca aconteceu e nunca acontecerá, porque eu não tiro e nem dou licença. Porque aqui é o SÍM-BO-LO do matuto, viu, e eu desde pequeno que uso chapéu e nunca deixei.
vAidAde
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“Morrer sem morrer de veras”.
Isso é eu, na minha maluquice, inventando coisas, viu? Tudo coisa fictícia.
Do meu fúnebre caixão
sem soluços nem gemidos
eu subi para a mansão
da pátria dos escolhidos
alegre me receberam
e uma festa promoveram
eu fiquei muito feliz
vivo a recordar ainda
foi a viagem mais linda
que durante a vida eu fiz.
Disseram, vendo o troféu
que a natureza me deu:
Vai haver festa no céu.
O Patativa morreu!
São Pedro, muito sapeca
foi trazer sua rabeca
e no arco passando breu
cantou com voz compassiva:
Viva, viva o Patativaele é um colega meu.
a morte
[Aqui Patativa explica] Mas, Castro Alves, lá no seu apartamento ouviu e não gostou, porque São Pedro, sendo pescador, dizendo que era meu colega? Ele diz: quem pode ser seu colega é algum pescador. Colega do Patativa sou eu. Aí veio:
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Na recepção imensa
de rabeca e cantoria
chegou em nossa presença,
Castro Alves da Bahia
com muita satisfação,
apertou a minha mão
e me disse com amor:
sei tudo o que aconteceu
lá na terra onde viveu
foi poeta e professor
Lá na terra de Iracema,
com a sua poesia
abordou o mesmo tema
que eu abordei na Bahia
foi grande amigo do povo
preto, branco, velho e novo
com sextilhas e sonetos
e um esforço varonil
foi defensor no Brasil
de pobres, brancos e pretos.
Com este mesmo ideal
eu cantei, cantei, cantei
lá na terra de Cabral
o maior exemplo dei
porém, hoje eu vejo tudo
quer tenha ou não estudo
ou de maneira qualquer
naquele país distante
por mais que o poeta cante
não alcança o que ele quer
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Com esta declaração
a qual eu já conhecia
dei um aperto de mão
no poeta da Bahia
mas logo vi que aquilo era
o que chamamos quimera
ou ilusão dos sentido
no sonho fui bem ditoso,
mas despertei desgostoso,
porque não tinha morrido.
“Morrer sem morrer de veras”, viu? Porque a morte melhor que tem é essa que eu vou dizer, que eu peço à morte, assim:
Morte, você é valente
o seu poder é profundo
quando eu cheguei neste mundo
você já matava gente
eu guardei na minha mente
sua força e seu vigor
porém lhe peço um favor
para ir ao campo santo
não me faça sofrer tanto
morte, me mate sem dor!
Dessas que fazem assim: currulapo!!! (risos)
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Tem gente que vê o título do meu livro “Ispinho e Fulô” e não sabe o que é. Aí logo na entrada eu digo porque Ispinho e Fulô. É porque a vida de cada um, meu filho, tem dores e prazeres, viu? Não há quem tenha uma vida só de sofrimentos e nem uma vida só de prazeres. É espinho e fulo. Eu saio descrevendo. Começo aqui, lá da criancinha até...
A Vida
... se às vez aquele anjo lindo
passa umas horas sorrindo
e outros minutos chorando
é que aquela criatura
tem em sua inocência pura
ispinho lhe cutucando.
Se a criancinha chora, é porque ela não está gostando. Alguma coisa, que nós não sabemos o que é, mas ela não está gostando. Pois bem, é o espinho. É o espinho da vida. (...) Agora tem uma partezinha aí, um trecho, que é muito belo. Não tem nenhum espinho. Sabe quando é? É no namoro, no namoro puro para um casamento... tem um espaço aí que eu digo, tudo fulo, não tem espinho. Aí eu digo:
depois vem o casamento
depois a lua de me
o maior contentamento
goza o homem e a muié
o pÁssarO o canto E
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Quando eu ouvi alguém ler um folheto de cordel pela primeira vez, aí eu fiquei admirado com aquilo, mas no mesmo instante, eu pude saber que eu também poderia dizer em versos qualquer coisa que eu quisesse, que eu visse, que eu sentisse, não é? Comecei a fazer versinhos desde aquele tempo. Sim, a partir do cordel. Porque eu vi o que era mesmo poesia. Aí, dali comecei a fazer versos. Em todos os sentidos. Com diferença dos outros poetas, porque os outros poetas fazem é escrever. E eu não. Eu faço é pensar e deixo aqui na minha memória. Tudo o que eu tenho, fazia métrica de ouvido. Só de ouvido, mas era bonita. Ah! Era! Era bonito mesmo. A base era a rima e a medida. A medida do verso, com a rima, tudo direitinho. Aí, quando eu peguei o livro de versificação de Olavo Bilac e Guimarães Passos, aí eu melhorei muito mais. Eu já tinha de ouvido, porque já nasci com o dom,
não é?
DOM DA POESIA
A VOZ E A LETRAEscrever eu escrevia muito pouco. Só escrevia quando eu fazia um poema, aí eu queria passar ele pro papel e passava. Mas “Inspiração Nordestina” foi escrita de mim para o doutor Moacir Mota, era eu dizendo e ele batendo à máquina, lá no Crato. Eu tinha tudo na mente!!!
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ERUD
ITO E POPULAR
A minha dificuldade é a mesma, ou a minha facilidade. É porque eu sou um poeta popular, porque nunca estudei literatura. A poesia em forma literária, a poesia erudita, é pra aqueles grandes, é para os literatos, esses poetas grandes, que estudaram, não sei o quê, bababá, e eu, pra provar que, mesmo sem o estudo, eu faço o que eu quero, porque Deus é quem quer, não sou eu, aí eu faço verso também assim em forma erudita:
Tendo por berço o lago cristalino
folga o peixe, a nadar todo inocente
medo ou receio do porvir não sente
pois vive incauto do fatal destino.
Se na ponta de um fio, longo e fino
a isca avista, ferra-a inconsciente
ficando o pobre peixe, de repente
preso ao anzol do pescador ladino.
O camponês também do nosso estado
ante a campanha eleitoral , coitado!
daquele peixe tem a mesma sorte.
Antes do pleito, festa, riso e gosto
depois do pleito, imposto e mais imposto
pobre ma tu to do sertão do norte.
Também é em forma literária. É o cabra vaidoso.
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Aí, olha, como eu relembro tudo aquilo que eu fiz. Aí nesse meu poema, eu tô requerendo a aposentadoria com 60 anos e naquele tempo, era com 65 e depois voltou mesmo pra 60. Aí eu fiz o seguinte poema,
olha:Seu doutor, não lhe aborreço
venho fazer um pedido
e como sei que mereço
espero ser atendido ....
Eu sou um homem espirituoso, viu? No meu tempo que eu tinha tudo, porque na minha idade, todo mundo tá vendo lá que eu não sou mais como e eu era na minha adolescência, no meu tempo de homem moço, né? Porque, justamente, a memória gastou, sumiu um pouco. Eu ainda faço, o povo se admira, mas eu sou quem sei o que é que está faltando na minha mente, porque sou o dono.
Eu tenho uma farta bagagem retida na minha mente. Olha, dos sis livros que eu publiquei, se eu começar a recitar agora, Ah! Entra na noite, viu? Agora, eu já estou ficando diferente com aquilo que eu faço agora. Com poucos dias, eu quero esquecer, porque a idade permite, não é? Mas tudo que está para trás, não, não fugiu não. Eu tenho na minha mente. Porque eu fazia não era escrevendo. Todo meu poema eu só fiz foi assim, retido na memória, como eu lhe disse, viu?
MEMÓRIA
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IDEOLOG
IA PATAT
IVANA Eu escrevi “Nordestino sim, nordestinado, não?” Aí sou
eu tirando a supertição do cabloco, viu?
Nunca diga nordestino
que Deus lhe deu o destino
causador do padecer
nunca diga que é o pecado
que lhe deixa fracassado
sem condição de viver.
Não guarde no pensamento
que estamos no sofrimento
é pagando o que devemos
A Providência Divina
não nos deu a triste sina
de sofrer o que sofremos.
Deus, o autor da criação
nos dotou com a razão
bem livres de preconceitos
mas os ingratos da terra
com opressão e com guerra
negam os nossos direitos.
Não é Deus que nos castiga
nem é a seca que obriga
sofrermos dura sentença
não somos nordestinados
nós somos injustiçados
tratados com indiferença.
Sofremos em nossa vida
uma batalha renhida
do irmão contra o irmão
nós somos injustiçados
nordestinos explorados
nordestinados, não.
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E é mesmo, não é?O operário e o camponês. São os dois desvalidos. Agora tem uma coisa: pra haver essa união, ainda há uma dificuldade, por causa de morar na cidade, o operário se sente além do camponês, do agregado. Eles são iguais, mas eles se sentem diferentes. Só por morar no meio urbano, viu, pensa que é, que está além do agregado. Eu procuro unir os dois, mas vendo que há sempre uma dificuldade. O pobre do agregado, humilde, se sente mesmo que é menor do que o operário.
Pois bem, agora tem o meu poema, “O Agregado e o Operário”. Até me disseram: ‘Patativa, você está revolucionando’. Eu não sei se eu estou revolucionando, sei que estou falando a verdade. Veja aí:
Sou matuto do Nordeste
criado dentro da mata
caboclo cabra da peste
poeta cabeça chata
por ser poeta roceiro
eu sempre fui companheiro
da dor, da mágoa e do pranto
por isto, por minha vez
vou falar para vocês
o que é que eu sou e o que canto.
Sou poeta agricultor
do interior do Ceará
a desdita, o pranto e a dor
canto aqui e canto acolá
sou amigo do operário
que ganha um pobre salário
e do mendigo indigente
e canto com emoção
o meu querido sertão
e a vida de sua gente.
Procurando resolver
um espinhoso problema
eu procuro defender
no meu modesto poema
que a santa verdade encerra
os camponeses sem terra
que o céu deste Brasil cobre
e as famílias da cidade
que sofrem necessidade
morando no bairro pobre.
Vão no mesmo itinerário
sofrendo a mesma opressão
nas cidades, o operário
e o camponês no sertão
embora um do outro ausente
o que um sente o outro sente
se queimam na mesma brasa
e vivem na mesma guerra
os agregados sem terra
e os operários sem casa.
Operário da cidade
a mesma necessidade
sofre o seu irmão distante
levando vida grosseira
sem direito de carteira
seu fracasso continua
é grande martírio aquele
a sua sorte é a dele
e a sorte dele é a sua.
Disto eu já vivo ciente
se na cidade o operário
trabalha constantemente
por um pequeno salário
lá nos campos o agregado
se encontra subordinado
sob o jugo do patrão
padecendo vida amarga
tal qual burro de carga
debaixo da sujeição.
Camponeses meus irmãos
e operários da cidade
é preciso dar as mãos
cheio de fraternidade
em favor de cada um
formar um corpo comum
praciano e camponês
pois só com esta aliança
a estrela da bonança
brilhará para vocês.
Uns com os outros se entendendo
esclarecendo as razões
e todos juntos fazendo
suas reivindicações
por uma democracia
de direito e garantia
lutando de mais a mais
são estes os belos planos
pois nos direitos humanos
nós todos somos iguais.
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FON
TE PATAT
IVANA Antes só existia eu de poeta. Depois, na Serra
de Santana, surgiram muitos ¬poetas, inclusive Geraldo Alencar, meu sobrinho. Aí eu escrevi “O Nadador”.
Desde novo, gostou de ver as águas
do oceano, tão verdes e tão belas
e ele pensava que vagando nelas
poderia aplacar suas mágoas.
Conduzido por este pensamento
aprendeu a nadar em tempo breve
como se fosse canoa leve
singrando as ondas no soprar do vento.
Seus amigos, lhe vendo sobre o mar
tranqüilamente, sem temer as brumas
transportando as vagas, sacudindo espumas.
sentiram ânsia de também nadar.
( .. .) E assim, tangidos por vontade louca
alguns deles até fazendo apostas
uns nadando de frente outros de costas
vendo as águas lhe entrando pela boca.
O mar, raivoso, nunca fez carinho
os teimosos e ousados aprendizes
foram todos, coitados, infelizes
deixando o bravo nadador sozinho.
Foram todos das águas se afastando
receosos da forte maresia
e, daqueles, no mar da poesia
só Geraldo Alencar ficou nadando.
isso aí.
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Eu tocava só uma coisinha, pouquinha, na viola, só pra dar uma entoação e tal e os outros cantadores também, decerto que “A Triste Partida” se tornou conhecida na voz de todos os cantadores. Eles ganhavam dinheiro com aquilo. Chegavam numa reunião, era só o que mais pedia era “A Triste Partida”. Luís Gonzaga foi à Paraíba e ligou o rádio dele no carro, que tava na Borburema [rádio Borborema], Zé Gonçalves, um grande cantador, cantando “A Triste Partida”. Aí Luís disse que ficou maravilhado. Ficou mesmo encantado com aquele poema, com a retirada de nordestino pra São Paulo. Assim que chegou lá, foi atrás dele. “Sim, é a “A Triste Partida”. Todos nós cantadores cantamos ela, mas ela é do Patativa do Assaré”. Aí foi que ele veio à minha procura. Queria até comprar e eu disse a ele que meu mundo era a minha poesia, minha família e eu não vendia direito autoral por preço nenhum. Ele disse: “Então vamos fazer um outro negócio: assim você não tá vendendo. É uma parceria. No disco consta você como autor e eu como cantor”. Foi em 64 que ele gravou. E deu muito sucesso.
CANTO
NOR
DESTINO
É ... quem melhor cantou o Nordeste foi Luiz Gonzaga. Ele cantou. Luiz Gonzaga não era compositor, mas era cantor famoso, duma voz boa. Você veja bem, Luiz Gonzaga cantando aquela “A Triste Partida”, que eu fiz. Qual é o coração que não sente? Qual é aquele camarada que não se torna sensível ouvindo Luiz Gonzaga cantar “A Triste Partida”? principalmente quando os meninos reclamam porque ficou [trechos da música]. Pois olhe, aquilo ali, eu não vi ninguém não. Eu criei na minha mente, porque na década de 50, a vida era aquela. O próprio motorista não sabia que dia chegaria em São
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Setembro passou, com outubro e novembro
Já tamo em dezembro
Meu Deus, que é de nós?
Assim fala o pobre do seco Nordeste
Com medo da peste
Da fome feroz.
A treze do mês ele fez a esperiença
Perdeu sua crença
Nas pedra de Sá
Mas nota experiença, com gosto se agarra
Pensando na barra
Do alegre NATÁ.
(...) Agora pensando segui ôtra tria
chamando a famia
começa a dizê: eu vendo meu burro,
meu jegue e o cavalo
nós vamo a São Paulo
vivê ou morrê.
Paulo, nem sequer haviam boas estradas daqui pra São Paulo, viu? Então, aqueles flagelados, procurava a vida lá pelo sul. Aí eu criei “A Triste Partida”, retratei na minha mente aquela família fazendo as experiências do SERTANEJO e dando tudo negativo, negativo. Eu já fiz de propósito pra poder fazer a viagem ...
Pois você veja bem: uma mandiocazinha plantada lá, na minha roça, na Serra de Santana, ela tava aqui assim (mostra a altura com a mão, cerca de 60cm) no inverno e eu limpando: capinando, tirando o mato e pensando neste poema “A Triste Partida”. Passei o dia trabalhando e pensando e deixando retido na memória. No outro dia, quando eu voltei à roça, eu terminei. Comecei como hoje, terminei como amanhã. viu? São 19 estrofes...
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Distante da terra tão seca, mas boa
exposto à garoa
à lama e ao paú
faz pena o nortista, tão forte, tão bravo
vivê como escravo
nas terra do Sul .
É como que um hino nordestino viu? E no fim, para satisfazer aos sulinos, o Luiz Gonzaga mudou: “viver como escravo, no norte e no sul” (ele ri muito e diz) eu fiquei danado, viu? Agora, tem uma mudançazinha também que para comércio, eu dei razão a ele, que ele queria vender o disco e tal:
o carro já corre no topo da serra
oiando pra terra, seu berço, seu lar
aquele nortista, partindo de pena
de longe ainda acena, adeus Ceará.
E Luiz Gonzaga botou: “de longe acena: adeus, meu lugar”.
faz pena o nor tis ta, tão for te, tão bravovivê como escravo nas terra do Sul.
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EMOÇÕES Eu fiz o seguinte poema em homenagem ao Rei do Bailão:
Eu sou poeta sensível
falar do rei do baião
é custoso, é impossível
eu não sentir emoção
foi um artista colosso
o nordeste em carne e osso
triste coisa aconteceu
meu coração abalou
quando o rádio anunciou
‘Luiz Gonzaga morreu!’
Nasceu esse sanfoneiro
lá na serra de Nabuco
glória do país inteiro
inda mais de Pernambuco
foi artista preferido
em toda parte querido
do patrão e do operário
a jóia pernambucana
prazer de dona Santana
e orgulho de Januário.
Sua sanfona saudosa
com quem vivia abraçado
era santa milagrosa
ressuscitando o passado
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63
64
até mesmo a criatura
sisuda e de cara dura
e de cruel coração
ficava alegre e ditosa
ouvindo a voz milagrosa
do grande rei do baião.
Artista do gênio forte
com proteção soberana
era do sul e do norte
do palácio e da choupana
vivia trovando a raça
desde o campo até a praça
na vida de sanfoneiro
era forte, firme e humano
artista pernambucano
que soube ser brasileiro.
Mas, no dia dois de agosto
o dia de sua morte
transformou gosto em desgosto
com seu eterno transporte
querido rei do baião
é triste a separação
e enquanto, na eternidade
tu vives entre os primores
aqui seus compositores
sofrem a dor da saudade.
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Te deu sucesso e deu vida
e com amor divulgaste
a letra “A Triste Partida”
que eu compus e tu gravaste
e hoje, só resta a saudade
do campo até a cidade
agora ninguém te assiste
cantando ‘’A Triste Partida”
porque para a outra vida
fizeste a partida triste.
Porém, com saudade mil
qual farol que não se apaga
enquanto existir Brasil
existe o Luiz Gonzaga
no coração do Nordeste
e, aí, na Corte Celeste
de Jesus de Nazaré
gozando de paz completa
roga a Deus por teu poeta
Patativa do Assaré.
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Eu me dano com aquele erro que a editora cometeu no meu poema “O Inferno, o Purgatório e o Paraíso”. Aquilo é um erro imperdoável, viu? Onde diabo já se viu ventura no inferno? Lá não é venturoso. Foi um erro gráfico.
Este inferno, que temos bem visível
e repleto de cenas de ventura
que diabo de ventura.
e repleto de cenas de tortura.
Pois é, eu fiquei com muito desgosto porque aquilo foi publicado com história de “ventura”.
ZELO PELA CRIAÇÃO
67
Pela estrada da vida nós seguimos
cada qual procurando melhorar tudo
aquilo que vemos e ouvimos
desejamos, na mente, interpretar
pois nós todos na terra possuímos
o sagrado direito de pensar
neste mundo de Deus, olho e diviso
o Purgatório, o Inferno e o Paraíso.
Este inferno que temos bem visível
e repleto de cenas de tortura
onde nota-se o drama triste e horrível
de lamentos e gritos de loucura
e onde muitos estão no mesmo nível
de indigência, desgraça e desventura
é onde vive sofrendo a classe pobre
sem conforto, sem pão, sem lar, sem cobre.
É o abismo do povo sofredor
onde nunca tem certo o dormitório
é sujeito e explorado com rigor
pela feia trapaça do finório
é o inferno, em plano inferior
mas acima é que fica o Purgatório
que apresenta também sua comédia
e é ali onde vive a classe média.
Este ponto também tem padecer
porém seu habitantes é preciso
simularem semblantes de prazer
transformando a desdita num sorriso
e agora, meu leitor, nós vamos ver
mais além, o bonito Paraíso
que progride, floresce e frutifica
onde vive gozando a classe rica.
68
Eu recebi um elogio danado duma mulher lá de São Paulo. Ela é até francesa, mas vive lá em São Paulo. O poema que ela elogiou é feito todo matuto, viu? Mas ele vai conduzindo uma beleza enquanto é, até quando chega o uso de razão, aí tudo vai ficar ruim como o diabo, até a morte. “O Maió Ladrão” é o tempo. Ele é o mais velho de todos. O maior e o mais velho. Eu tê dizendo é o tempo. Quem é que é mais velho do que o tempo? Ele é o mais velho de todos.
O tempo se manifesta no ventre materno, ele já ta ali, porque é o tempo, não é? O tempo é o condutor da pessoa.
TEMPO
69
Certa vez eu cheguei em Mossoró, no Rio Grande do Norte e aí tinha um rapaz que foi me mostrar a cidade e, aí, era eu viajando com ele, mas criando um poema na minha mente, viu? Pra eu recitar na véspera da minha volta, viu? Pode ler.
VÔO
S D
E PATAT
IVA
Curiosidade e vontade
de ver mossoró eu tinha
hoje vi e sei que a cidade
é diferente da minha
porém isso é natural
esse mundo desigual
tem o rico e o pobre Jô
no meu estilo singelo
faço aqui um paralelo
entre Assaré e Mossoró
é diferente do assaré
um com a tônica no “o”
o outro com a tônica no “e”
Assaré, modesto e pobre
Mossoró no rio grande
Assaré não é lembrado
por entre as folhas da história
Mossoró, no seu Estado
é grande patrão de glória
não me convém que eu afaste
a prova deste contraste
com evolução completa
Mossoró desenvolvido
e Assaré só conhecido
através do seu poeta
70
Nos meus versos justifico
cada qual tem clima ameno
mas Mossoró grande e rico
e Assaré pobre e pequeno
para que ele se destaque
vou rogar ao Deus de Isac
de Abraão e de Jacó
talvez assim ele um dia
tem a mesma fantasia
que agora tem Mossoró.
Nesta singela linguagem
e neste estilo popular
ofereço essa mensagem
ao povo potiguar
onde fui bem recebido
e ao meu Assaré querido
minha terra e meu xodó
voltarei bem satisfeito
levando dentro do peito
saudade de Mossoró.
Foi bom pra eles, hein? Aí era na “Semana de Filosofia de Mossoró”. Paulo Freire estava lá...
71
Eu também participei da Campanha das Diretas, mas nem deu certo. Aí eu fiz isso:
PARTICIPAÇÃ
O POLÍTICA
Bom camponês e operaro
a vida ta de amargá
o nosso estado precaro
Não há quem possa agüenta
nesse espaço dos vinte ano
que agente entrou pelo cano
a confusão é compreta
mode a coisa miorá
nós vamo bradar e gritar
pelas inleição direta.
Camponês, meu bom irmão
e operaro da cidade
Vamo uni as nossas mão
e gritá por liberdade
Levando na mesma pista
os estudante, os artista
e meus colega poeta
vamo todos reunido
fazer o maió alarido
pela inleição direta
Vamo cada companheiro
com nosso protesto forte
por este país intero
leste, oeste, sul e norte
com as inleição direta
nós vamo por outra meta
de uma forma deferente
esta marcha ta puxada
e esta canga ta pesada
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não há cangote que agüente.
Senhora dona de casa
lavadêra, cozinhêra
é preciso mandá brasa
ingrossá nossa filêra
vamo abalá toda massa
derne o campo até a praça
agora ninguém se aqueta
vamo lutá fortemente
e elegê um presidente
com as inleição direta.
Se o povo veve sujeito
sem ter a quem se queixá
é preciso havê um jeito
pois desse jeito não dá.
Cadê a democracia
que o pudê tanto irradia
nas terra nacioná?
Tudo isso é demagogia
Quem já viu democracia
sem direito de votá?
Democracia é justiça
em favor do bem comum
sem trapaça e sem maliça
defendendo cada um
o povo tá sem sossego
com a fome e o desemprego
arrochando o brabicacho
será que o Brasi de cima
não tá vendo o triste crima
que tem no Brasi de baxo?
73
(risos). Não tá bom?
Seu dotô, seu deputado
seu ministro e senador
repare que o nosso estado
é mesmo um drama de horrô
se vossimicê baixasse
e uns dez ano aqui passasse
ferido da mesma seta
fazia assim como nós
gritando na mesma voz
queremo inleição direta.
Isto que eu digo, é exato
é uma verdade certa
pois só o que carça o sapato
sabe onde é que o mesmo aperta
nosso país invejado
tá todo dismantelado
o que observa descobre
e com certeza tá vendo
a crasse pobre morrendo
e a média ficando pobre.
Nestes versos que rimei
disse apenas a verdade
eu aqui não afrontei
a nenhuma oturidade
quem fala assim desse jeito
defendendo os seus dereito
todos já sabem quem é
é um poeta do povo
velho de’ coração novo
Patativa do Assaré
74
Eu sou um poeta que quer a verdade, um poeta que diz:
“EU QUERO E TODOS QUEREM”
Quero um chefe brasileiro
fiel , firme e justiceiro
capaz de nos proteger
que do campo até a rua
povo todo possua
direito de viver.
Quero paz e liberdade
sossego e fraternidade
na nossa pátria natal
desde a cidade ao deserto
quero o operário liberto
da exploração patronal .
Quero ver do sul ao norte
o nosso caboclo forte
trocar a casa de palha
por confortável guarida
quero a terra dividida
para quem nela trabalha.
75
Eu quero o agregado
isento do terrível sofrimento
do maldito cativeiro
quero ver o meu país
rico ditoso e feliz
livre do jugo estrangeiro.
A bem do nosso progresso
quero o apoio do Congresso
sobre uma reforma agrária
que venha, por sua vez
libertar o camponês
da situação precária.
Finalmente, meus senhores
quero ouvir entre os primores
debaixo do céu de anil
as mais sonorosas notas
dos cantos dos patriotas
cantando a paz do Brasil .
o pÁssarO o canto E
3.
o cantO a vida E
78
SERTÃO FESTIVOJá hoje não tem mais o que eu digo aí, mas já houve, aí eu retrato. Lá na Serra de Santana tinha muita festa de São João, Em toda parte, em toda parte.
... o véio Girome Guéde
que sacrifiço não mede
toca o que o povo lhe pede
numa armonca de oito baxo.
É o tocador. Mas ele existiu não, eu que criei. Eu pra batizar um não demora não.
A cinza santa e sagrada
de sua foguêra amada
com fé no peito guardada
quem tira um pouquinho dela
depois que se apaga a brasa
bota em roda da casa
na vida nunca se atrasa
se defende das mazela.
Você não conhece isso não? Essa superstição? Ô, homem, já hoje não há mais isso não. Pois era, no São João, depois que tudo se apagava, ficava só a cinza da fogueira, o povo, principalmente as mulheres, tiravam aquela cinza e arrodiava a casa todinha, botava uma cinzinha assim, na casa toda, pra não entrar mazela naquela casa. Superstição, viu? Pois perdurava isso. Já hoje não perdura. Não duvido que não tenha algum recanto aí que ainda faça, não é?
79
Olhe, eu tinha minha cerca lá perto da minha casa na Serra de Santana. Começaram a roubar as varas da cerca para cozinhar em panela, viu? Aí eu perguntava e todo mundo dizia: não, eu não fui, eu não fui. E eu, sabendo que o matuto tem muito medo de praga, e achando que rogando praga pega, aí eu perdoei a todos quanto tivesse tirado até aquele dia e roguei praga a quem tirasse daquele dia em diante, botei num papel e botei lá na cerca. Aquele que sabia ler, era aquela roda, um lendo e aí melhorou, não buliram mais não. Você vai ler. Hum hum! ê tá caçoando!!!
“Rogando Pragas”Dizia o velho Agostinho
que este mundo é cheio de arte
e se encontra em toda parte
pedaço de mau caminho
um pessoal meu vizinho
sem amor e sem moral
atrás de fazer o mal
para feijão cozinhar
começaram a roubar
as varas do meu quintal .
Toda noite e todo dia
iam as varas roubando
e eu já não suportando
aquela grande anarquia
pois quem era eu não sabia
pra poder denunciar
com aquele grande azar
vivia de saco cheio
até que inventei um meio
pra do roubo me livrar.
a CERCA
80
Eu dei a cada freguês
com humilde, o perdão
e lancei a maldição
em quem roubasse outra vez
e com muita altivez
na minha pena peguei
umas estrofes rimei
sobre as linhas de uns papéis
rogando pragas cruéis
e lá na cerca botei.
Deus permita que o safado
sem vergonha, ignorante
que roubar de agora em diante
madeira do meu cercado
se veja um dia atacado
com um cancro no toitiço
toda espécie de feitiço
em cima do mesmo caia
e em cada dedo saia
um olho de panariço.
O santo Deus de Móises
lhe manda bexiga roxa
saia carbúnculo na coxa
cravo nas solas dos pés
entre os incômodos cruéis
da doença hidrofobia
icterícia e anemia
tuberculose e diarréia
e a lepra da morféia
seja a sua companhia.
81
Deus lhe dê o reumatismo
com a sinusite crônica
a sesão, o impaludismo
e os ataques da bubônica
além de quatro picadas
de quatro cobras danadas
cada qual a mais cruel
e de veneno fatal
a urutu, a coral ,
jararaca e cascavel .
Eu já perdoei bastante
os que puderam roubar
para ninguém censurar
que sou muito extravagante
mas de agora em diante
ninguém será perdoado
Deus queira que um cão danado
um dia morda na cara
de quem roubar uma vara
na cerca do meu cercado
E oque não ouvir o rogo
que faço neste momento
tomara que tenha aumento
como correia no fogo
dinheiro em mesa de jogo
e cana no tabuleiro
e no dia derradeiro
a vela pra sua mão
seja um pequeno tição
de vara de marmeleiro.
82
Tudo meu eu crio, qualquer coisa mesmo. Veja bem aqui esse versinho, são poucas estrofes. É uma coisa bem simples, mas, no fim, tem um fundo de verdade. É Réplica de um Cabelo Branco. É o título, viu?
vELHICE
A um cabelo branco de vergonha
lhe disseram os pretos
não se oponha
você nos causa um sofrimento atroz
se retire, saindo da cabeça
e o mais breve daqui desapareça
não queremos você perto de nós.
O bom cabelo, muito inteligente
tendo tudo gravado em sua mente
julgando a vida do começo ao fim
falando sério contra a rebeldia
com a verdade da filosofia
para os pretos cabelos disse assim:
Ia natureza é protetora e franca
e quando ela me deu essa cor branca
um grande insulto cada qual me fez
mas cada um será bem castigado!
pois mereço ser muito respeitado!
sou o começo da estrada de vocês!’
Mas eles ficaram danados quando viram aquele cabelo branco perto deles.
Os pretos, viu?
83
Ah!. Essa miséria aqui é o que vai me lascar. Eu fiz aquele poema e no fim o poema não adiantou nada.
CIGARRO
Certa vez um cigarro astucioso
me falou com disfarce de ladrão:
para seres poeta primoroso
eu te ajudo na tua inspiração.
Quando a mente cansada permanece
de sentidos e de rimas bem vazia
com algumas tragadas te aparece
o que queres dizer em poesia.
Incentiva a falar dos indigentes
e da vida que encerra dias breves
te forneço as imagens excelentes
do perfil da mulher que tu descreves.
Dessa minha fumaça o conteúdo
alimenta o prazer de uma ilusão
tu me fumas, poeta, que eu te ajudo
para nunca faltar-te inspiração.
Risque o fósforo e me queime,
por favor tu precisas compor a tua rima
e eu, também, procurando outro setor
subirei bem feliz de mundo acima.
Quando ouvir do cigarro os seus pedidos
escutei um conselho para mim
eu senti penetrar nos meus ouvidos
uma voz a falar dizendo assim:
O cigarro procura te enganar
te iludir e fazer a tua ruína
vai fazer os teus versos sem fumar
não aumente no corpo a nicotina.
Quando ouvi esta voz suave e pura
do meu eu transformado me encontrei
e falei ao cigarro, com censura
tenhas calma, amanhã te fumarei.
E no dia terceiro imprudente
me falou: seu fumante vagabundo!
descobri o teu truque e estou ciente
só se acaba a manhã no fim do mundo.
Dando graças a Deus eu conheci
Que alcancei uma graça, uma virtude
Foi com este milagre que venci
O maior inimigo da saúde.
85
Pois é, o cigarro é assim uma distração vagabunda que eu tenho e, se eu não fumasse, eu não era assim tão enrouquecido do jeito que sou. Mas ainda tenho vontade de deixar. Não sei se ainda recupero alguma coisa. É mais de um maço, é mais de uma carteira por dia. Isso é demais, rapaz, é uma derrota. Quanto mais eu penso naquilo que eu não to gostando, mais cigarro eu fumo. Sem eu estar fumando não faço poesia com prazer. Posso fazer bem feito porque tenho cuidado, com amor e tal e tal, mas não dá prazer. É, agora eu estando fumando, não? Pois é, o cigarro é assim uma distração vagabunda que eu tenho e, se eu não fumasse, eu não era assim tão enrouquecido do jeito que sou. Mas ainda tenho vontade de deixar. Não sei se ainda recupero alguma coisa. É mais de um maço, é mais de uma carteira por dia. Isso é demais, rapaz, é uma derrota. Quanto mais eu penso naquilo que eu não to gostando, mais cigarro eu fumo. Sem eu estar fumando não faço poesia com prazer. Posso fazer bem feito porque tenho cuidado, com amor e tal e tal, mas não dá prazer. É, agora eu estando fumando,
não?
86
Pois bem, pra eu mostrar que esse nome da mulher pra o marido é muito ruim, eu primeiro criei esse poema. Pegando de onde? Lá dos infernos da pedra, não é? Tudo meu eu faço é criar e crio é na hora mesmo.
Eu lembrei de um dia que a mulher chamar o marido de chifrudo é coisa muito ruim e desonesta. Você veja aqui o que foi que eu fiz pra poder chegar lá. Eu vou dizer, viu? O título é: “Proquê dexei Zabé”. Uma poesia matuta.
infidelidade
Seu moço, eu nunca menti
nem nunca gostei de manha
se do meu sertão saí
pra vivê na terra istranha
é só porque sou casado
mas porém, sou separado
parece mesmo um castigo
sofro o maió aperreio
por causa de um nome feio
que a muié dixe comigo.
( .. .] Certa vez ela teimava
me dizendo desaforo
parece que Zabé tava
com o capeta no côro
como a cobra venenosa
tava inchada e rancorosa
já no ponto de brigá
e me chamou de chifrudo
com isto, ela dixe tudo
e eu vim me imbora de lá..
87
TRADIÇÃO E A MODERNIDADENo meu tempo de jovem, só havia passamento, viu? “Olha, fulano deu um passamento e entortou a boca!” Outro: “ora, beltrano deu um passamento e ficou com uma banda morta”. E outro: “mas, fulano deu um passamento, fez foi morrer”. Aí a ciência pegou a desenvolver e o rádio entrando pelo sertão etelevisão e aí hoje ninguém fala mais em passamento. É trombose, é enfarte, é derrame (risos). Aí o “passamento” ficou com uma raiva danada, aí eu escrevi “A Revolta do Passamento”. Aqui é “passamento” que fala,
viu?Entre os males já fui um grande mal
quando eu dava um arrocho em um sujeito
quem o visse, dizia: ‘está sem jeito’
e a família comprava o funeral .
Até mesmo o caboclo do roçado
eu tratava sem dó e sem carinho
muitas vezes ficava o coitadinho
sobre o chão lá na roça desmaiado.
Aplicando o meu choque perigoso
já pintei de amarelo a cor vermelha
de malandro, bonito e vaidoso
fiz a boca ficar no pé da orelha.
Da mais baixa à mais alta posição
neste mundo eu fui muito respeitado
fui o grande perverso no passado
nos ataques, eu era o campeão.
Porém, minha façanha já passou
hoje vivo isolado e sem prazer
a ciência, que em tudo quer mexer
com a sua imprudência me cassou.
Me cassou com o seu atrevimento
eu não sei por que tal metamorfose
com enfarte, derrame e com trombose
ninguém quer mais falar de passamento.
(risos). O passamento danado de raiva, viu?
Saudade dentro do peito é qual fogo de munturo
por fora tudo perfeito
por dentro fazendo furo .
... fica tal qual a frieira
quanto mais coça mais quer.
Você sabe o que é frieira? Quanto mais você coça, mais quer coçar. É como a saudade da mulher, viu? A saudade da mulher é pior do que a do homem.
saudade
É como a saudade da mulher, viu? A saudade da mulher é pi or do que a do homem.
89
Quando eu era jovem mesmo, um parente de minha mãe me levou para o Pará, onde eu cantei em muitos lugares. Lá eu inventei essa quadrinha:
Quando eu entrei no Pará
achei a terra maió
vivo debaixo de chuva
mas molhado de suó.
Lá eu conheci muita gente, visitei muitos cearenses que moravam lá, mas voltei logo. Depois que eu voltei de minha viagem ao Pará, fui à Fortaleza, me apresentar à filha do grande poeta Juvenal Galeno. Levei uma carta de apresentação de José Carvalho de Brito, aquele que me deu o nome de Patativa. Lá eu cantei um pouco. Depois eu queria um livro dele. Foi aí que eu criei a “Carta à Doutora Henriqueta Galeno”. Eu conheci ela pessoalmente. Filha do grande Juvenal Galeno. Aí eu queria o livro do Juvenal Galeno, fiz essa carta e ela me ofereceu um presente do livro dele, com o título “Folhetim de Silvano”. A carta que escrevI era assim:
POETA
BAT
IZADO
lncelentíssima dotôra
peço perdão à senhora
desta carta lhe enviá
mas leia os versos rastêro
de um cabôco violêro
do sertão do Ceará.
Sou o cantadô Patativa
que trôxe aquela missiva
aquele papé escrito
e cantou no seu salão
com a recomendação
do Zé Carvaio de Brito.
Aí ela mandou o livro.
90
Querendo um dia ver algum mistério
das coisas tristes que esse mundo tem
impressionado fui ao cemitério
onde podemos mais pensar no além.
No campo santo, no sombrio império
de olhar piedoso a recordar alguém
entre soluços entre um tom funério
muitos choravam e eu chorei também.
Mas nesta vida sempre há um sujeito
que da miséria tira o seu proveito
vi no semblante do senhor coveiro.
A indiferença a doloroso assunto
interessado a receber defunto
fazendo cova pra ganhar dinheiro.
contradições
(risos) Quem quisesse que chorasse, mas ele ia era fazer cova para ganhar dinheiro. A desgraça de uns é a felicidade de outros, viu?
91
Eu crio uma historiazinha pra mostrar como o grande desarmoniza a terra,a casa de um pobre e fica por isso mesmo. Leia aí que você ver uma poesia muito bem feita
crim
e im
perdoável
Com sua filha de bondade infinda
Maria Rita, encantadora e bela
morava a viúva dona Carolina
junto ao engenho do morador Favela.
Paciente e boa e cheia de carinho
passava os dias sem pensar na dor
reinava ali, naquele tosco ninho
um grande exemplo do mais puro amor.
A linda jovem, flor da simpatia,
de olhos brilhantes e cabelo louro
além de arrimo e doce companhia
era da mãe o virginal tesouro.
( .. .) Maurício, um filho do senhor do engenho
um estudante, bacharel futuro
apaixonou-se, com o maior empenho
de saciar o coração impuro.
E com promessa de um porvir brilhante
fazendo juras de casar com ele
tanto insistiu o traidor pedante
que conquistou a infeliz donzela.
Tornou-se em pranto da menina o riso
anuviou-se o doce amor materno
aquele rancho, que era um paraíso
foi transformado em verdadeiro inferno.
( ... ) Vive hoje o monstro a prosseguirno estudo
enquanto o manto da miséria as cobre
porque só o rico tem direito a tudo
não há justiça para quem é pobre.
É isso aí!
Existe uma quadra que eu não quero bem nem um pouco. É sobre o diabo. Quem é o diabo? Quem fez o diabo, hein? Você sabe dizer, hein? Aí eu fiz essa quadra:
Era muito inteligente aquele que fez o diabo
para fazer medo a gente pôs chifre, esporão e rabo.
O DIABO
93
A “Escrava do Dinheiro”, sei dela decorada todinha. Isso aqui é pra eu mostrar que dinheiro é um vagabundo. Dinheiro, pra quem sabe possuir, é grande coisa, mas pra quem não sabe não é nada. Leia aí “A Escrava do Dinheiro!” Veja como o quanto essa mulher foi danada por causa do dinheiro. Era minha noiva,
viu?
DINHEIRO
Dinhêro trensforma tudo
dinhêro é quem leva e traz
eu nem quero nem dizê
tudo o que o dinhêro faz
apenas aqui eu conto
que ele pra tudo tá pronto
ele é cabrêro e treidô
é carras e é vingativo
só presta pra sê cativo
não presta pra ser senhô.
(...) Dinhêro é um Jogo ardente
que faz munto coração
se derretê como cera
na quintura do tição
dinhêro trensforma tudo
faz de um alegre um sisudo
dá nó e desmancha nó
e finarmente o dinhêro
é o maió Jeiticêro
é o Rei do Catimbó.
94
“As proezas do padre Nonato”. Foi meu grande amigo, o maior vigário que eu conhecia. Não tinha horário pra ele não, o povo era quem marcava. E eu queria um bem danado a esse padre. Tenho dois poemas com ele. Nossa viagem a São José de Lavras e esse daí. Esse aí, porque, você vai ver. Esse aí é uma extravagância do diabo! Eu aumentei. Foi ele que pediu. Ele disse: “homem, faça um verso”. Eu disse: padre, isso aí eu tô quase é debochando sua pessoa de padre. Ele disse: “olhe, que debochando que nada, rapaz, você podebotar minhas proezas que eu fui andar de moto e não acertei, que eu ajudo a você vender o livro, quando ele sair”. Aí eu botei. “Você pode botar coisas do arco da velha, que eu não tenho vaidade”. Aí eu fiz. Quer ver,
reparê.
RIMANDO O COTIDIANO
95
Quando o vigaro Nonato
comprou seu motocicreta
quage o padre desaqueta
toda a cidade do Crato
O mais doido espaiafato
aconteceu por ali
cena iguá eu nunca vi
ô carrerão da muzenga!
foi a maió estrovenga
passada no Cariri.
Esse grande padre aí. O padre Vieira. Ele achou bom como diabo esse negócio,
viu?Foi a mió brincadêra
que o padre Antônio Viêra
Na sua vida encrontou.
O padre Nonato aprendendo
a andar de moto.
98
EM FAVOR DOS OUVINTES DA RÁDIO
Eu fiz um poema danado conversando com o meu amigo da Rádio Educadora do Crato. Fiz o poema “Inlustrismo Sr. Elóia Tele”. Mas o nome dele é Elói Teles, viu? Isso é um matuto do Piauí falando. Era quando o Zé Sarney tomava o programa dele na sexta-feira, aí eu, com medo de botar o meu nome, inventei que era um poeta do Piauí, aí mandei pra ele, viu? Quer ver, leia! Tinha aquele cara que é Zé Sarney, na sexta-feira tinha um programa também. Tomava uma parte do programa do Elói e eu fiquei com raiva, rapaz, aí inventei que era um poeta do Piauí e mandei esse versinho pra ele.
Era sacanagem.Seu Elóia, o locutô
precisa tê conciença
por isto eu faço ao Sinhô
uma boa adivertença
nesta carta populá
que segue pelo correio
lhe dando um grande conseio
e o Sinhô deve tomá.
Eu vejo que o seu programa
é o mió do Cariri
tem audiença e tem fama
como iguá eu nunca vi
lhe digo e tô quage certo
pra lhe conhecê de perto
qualquer dia eu chego aí.
99
(...) Aqui do meu Pioí
escuto a semana intêra
mas tem uma coisa aí
que me dá grande cansêra
eu não fico satisfeito
quando iscuto este sujeito
que fala na sexta-fêra.
(...) Isto assim não fica bem
repare que este tingó
toda sexta-fira vem
dizê uma coisa só
mesmo que lhe pague caro
não aceite esse salaro
dispache este Brosogó.
Esta sua falação
protesto teimo e resingo
ouvindo a repetição
toda sexta-fêra eu xingo
porque será que este besta
em vez de falá na sexta
não fala sabo ou dumingo?
( .. .) Pelo bem que o Sinhô qué
a todo o seu Cariri
e o bem de sua muié
faça o que eu lhe peço aqui
por Cristo, nosso Sinhô
pelo leite que mamou
tire este doido daí
e disponha de João Zumba
poeta do Pioí.
100
Lá, perto do carnaval, deu azar um dia, lá no hospital São Francisco de Assis, onde eu estava hospitalizado. É um hospital de arquitetura antiga, daquele tempo passado, viu? Hospital São Francisco de Assis. Aí faltou manteiga no pão, na hora. Nós merendando, mas não tinha manteiga não. Na hora do almoço, eu acho que aquilo era por causa do carnaval, sei lá? Na hora do
chefão de lá, viu? Aí eu disse: “meninos, eu vou falar pra São Francisco o caso que aconteceu. Eu vou falar”. Eles disseram: “mas as irmãs estão aqui na outra sala”. Eu digo: “não, eu não tenho nada a ver com as irmãs, vou falar é pra São Francisco, vou falar é pra São Francisco, vocês não entendem a minha poesia não?” Aí eu disse bem alto:
Na hora do almoço, veio foi um pouco de farofa diferente da nossa farofa aqui do nordeste, viu? Farofa muito diferente da nossa. Pra cada um dos pacientes, um pouco de farofa.Lá pelas outras salas, com certeza aconteceu a mesma coisa. E à tarde, a nossa janta, não foi mais a comida costumeira que a gente recebia todos os dias, que eu ainda hoje não sei o que era aquilo viu? E eu, pra fazer, aí, no outro dia à tarde, pra fazer os meninos rirem, eu era o animador dos acidentados, eu era o
EsPIR
ITUO
sIDADe
Meu São Francisco de Assis
meu santo! Meu bom amigo!
qual foi o mal que eu lhe fiz
pra me dar tanto castigo
seu amor nunca se apaga
é venerado o seu nome
se tiver comida, traga
que tô danado de fome
o senhor foi penitente
padeceu tanta amargura
e hoje trata seu doente
com farofa sem gordura?
Depois nos manda uma janta
de coisa desconhecida
meu santo! Isso não adianta
tenha dó de nossa vida
e, achando que ainda não chega
a nossa grande aflição
tirou também a manteiga
que tinha no nosso pão.
Eu preciso ser feliz
e o senhor
de mim se esquece?
Meu São Francisco de Assis
tenha dó de quem padece.
102
E os meninos tudo rindo, viu? Aí, irmã Natália, que era uma enferemeira, irmã Natália chegou e disse: “seu Antônio Gonçalves está atacando o hospital? Eu disse: “Irmã Natália, pelo amor de Deus, eu não sou homem para tanto - a senhora é que não sabe o que é a minha poesia. Minha poesia é uma coisa sagrada, eu falo para com Deus, eu falo para os para os santos, falo até para os anjos e eu aqui estou falando pra São Francisco”. A senhora viu eu mencionar nome de pecador? Hein? Eu não mencionei nome de pecador. É de mim pra São Francisco. Ela ficou com tanta raiva, não deu nenhuma palavra, voltou pisando duro e foi embora. Aí foi que os meninos gostaram. Certas coisinhas,
viu?
E outra vez, fiz lá também uma outra brincadeira. Todos os dias, irmã Joaninha vinha nos trazer suco, eu e os meus companheiros de infortúnio, os os acidentados como eu, lá numa sala. Aí, o suco não estava doce. Eu tomando o suco, mas vendo que não estava doce. Aí, eu tomando o suco bem devagarinho e pensando uns versos de ironia pra recitar pra ela, viu? Eu disse:
103
Este Rio de Janeiro
é uma terra encantada
até pelo estrangeiro
é terra bem visitada
mas dentro desses encantos
eu vejo uma coisa errada.
O Rio a gente admira ninguém pode reprovar
porém, eu sou um matuto
que sei tudo observar
e aqui tem uma mentira
que eu não posso perdoar.
Por exemplo, o pão de açúcar
que bastante encanta a mim
nunca houve neste mundo
quem fizesse um pão assim
e se ele fosse de açúcar
já tinha levado fim.
Descobri isso no suco
que essa enfermeira me trouxe
vi que a grande fartura
do pão de açúcar acabou-se
tanto açúcar nesse pão
e eu tomo suco sem doce.
(risos). lronizei e ela riu como todo e disse: “mas, Patativa”. Eu disse: “não tá doce não, viu?”
104
Lampião, é como eu disse a Verinha, a neta dele. Eu conversei muito com ela, ela perguntou: “Patativa já fez algum trabalho sobre meu avô? Eu digo: “Verinha, eu não fiz não, porque se eu fizer, eu vou contradizer muita coisa, eu não tenho o seu avô como um bandido, um bandoleiro, ele foi um guerrilheiro, porque ele foi injustiçado. Não quiseram dar direito a ele, então ele ficou revoltado, coitado! Se tornou aquilo, podendo ter sido um homem de bem, seguindo outro caminho, seguiu aquele”. Eu nunca fiz nada sobre Lampião.
LAMPIãO
105
VAQU
EIR
O MUS
ICADO
Eu estava hospitalizado lá no Rio de Janeiro, quando um amigo meu foi me visitar, levando uma radiola. Ouvi o “Vaqueiro” (poema) com o título mudado para “Sina”. Eu digo: e quem é. Ele diz. Esse aqui é Raimundo Fagner. Eu disse: pois bem, quando eu voltar ao Ceará, eu vou dar reportagem contra isso aí, porque essa letra é minha. Quando eu voltei, dei a reportagem em todos os jornais, até na Gazeta de Notícias. Não afrontando a ele, só dizendo que aquela letra era de minha autoria. Eu não tava visando o comércio, os cantores poderiam ganhar dinheiro, fazer o que pudesse, mas contando que não obscurecesse o autor da letra que era Patativa do Assaré e tal. Sempre onde eles iam cantar, chegavam com o retrato no jornal e diziam: Mas Fagner, olha aqui, patativa é muito famoso, muito querido e tal ái o advogado dele mandou que ele viesse me procurar. Nem eu conhecia ele e nem ele me conhecia. Eu tava lá na pensão de Suzana, no Crato, quando ele soube que eu estava naquela pensão, tava sentado lá na sala, quando entrou aquela camarada, com uma cabeleira bonita, toda elegante, naquele tempo ele era novo, aí olhou para mim e disse: “Me diga uma coisa o senhor é que é Patativa do Assaré? Sim eu sou, quero saber com quem eu tenho o prazer de estar me entendendo agora. Ele disse: “ Eu sou o cantor Raimundo Fagner.” Aí eu ri e disse: Ah! É você Fagner? Muito bem, você conhecia o meu nome e eu conhecia o seu, mas não tivemos ainda a felicidade de termos uma entrevista como nós estamos aqui. Mas você não venha pensando que eu tenho raiva de você não. Olha, aqui tem um coração, mas nunca germinou tal semente, viu? Eu tava só defendendo minha letra. Ele disse: não, e com muita razão. Tô aqui emocionado com essa sua maneira de tratar não sei o quê mas
106
eu lhe trago os papéis para que você assine e de hoje em diante quando nós formos cantar, será declarado que a letra é sua. Eu quero até fazer uma amizade com você.” Eu disse: “Olha Fagner, eu sou muito exigente com amizade. Amizade para mim só serve se for pura e decidida e sem sentido de exploração. Ele disse, não, mas eu garanto e quero até gravar um disco com uma coisa sua. Fomos lá para o meu quarto e ele com um gravador: eu tive cantando algumas de minhas toadas, mas quando eu disse: “Seu doto me dê licença” ele chega se arrupiou: “ É essa aí que eu vou gravar. Essa letra, isso aí vai dar um sucesso”. E, de fato, gravou e, mas quem quiser saber que o Fagner tinha apenas a voz, leia lá para o fim do meu livro Cante lá que eu Canto Cá, que está a explicação: letra musicada pelo próprio autor. E deu sucesso. Era um poema que fiz, exaltando o vaqueiro. Pois bem, foi assim o nosso encontro. Mas isso já passou e nós fizemos uma amizade.
É engraçado como os nossos olhos falam. Os olhos falam, não é? É, justamente, e eu sei ver as coisas. Aí eu digo aí nesses meus verso. Agora, no fim, tem uma coisa engraçada.
LINGUAGEM DOS OLHOS
“Linguage dos Óio”
Quem repara o corpo humano
e com coitado nalisa
vê que o Autô Soberano
lhe deu tudo o que precisa
os orgo que a gente tem
tudo serve munto bem
mas ninguém pode negá
que o Autô da Criação
fez com maió prefeição
os orgo visioná.
(. . .) Os óio consigo tem
incomparave segredo
tem o oiá querendo bem
e o oiá s.entindo medo
a pessoa apaixonada
não precisa dizê nada
não precisa utilizá
a língua que tem na boca
o oiá de uma caboca
diz quando qué namorá.
(. . .) Mesmo sem nada falá
mesmo assim calado e mudo
os orgo visioná
sabe dá siná de tudo
quando fica o namorado
pela moça desprezado
não precisa conversá
logo ele tá entendendo
os óio dela dizendo
viva lá que eu vivo cá.
( .. .) Nem mesmo os grande oculista
os dotô que munto estuda
os mais maió cientista
conhece a linguage muda
dos orgo visioná
e os mais ruim de decifrá
de todos que eu tô falando
é quando o oiá é zanôio
ninguém sabe cada ôio
pra onde tá reparando.
(risos). Aí o cabra não decifra não. No sertão a gente chama zanôio. Você olha assim, ela só olhando pra você, ela mesmo sabe que lhe ver, mas você acha que ela não tá olhando pra você. Acha num sei pra onde, viu? Mas no fim eu boto isso aí que é engraçado. Eu já tenho ouvido dizer isso. Eles dizem: “É um olho pro inferno e o outro por purgatório”, nunca diz pro céu. É interessante, né rapaz? Não é bonito? Pois é.
Isso aí é eu que invento.
109
Eu quase fui preso por causa do meu poema Caboclo Roceiro. Foi em 1966 e aí, depois, passou tudo e ninguém falou mais em nada.
A DITADURA
Caboclo roceiro das plagas do norte
que vives sem sorte, sem terras e sem lar
a tua desdita é tristonho que canto
se escuto o teu pranto, me ponho a chorar.
Ninguém te oferece um feliz lenitivo
és rude, cativo, não tens liberdade
a roça é teu mundo e também tua escola
teu braço é a mola que move a cidade.
De noite, tu vives na tua palhoça
de dia, na roça, de enxada na mão
julgando que Deus é um pai vingativo
não vês o motivo da tua opressão.
E o poema foi isso. Só por isso eles queriam me prender. Só por causa dessa estrofe, que diz:
Porém, os ingratos, com ódio e com guerra
tomaram-te a terra que Deus te entregou.
Com certeza foi essa a estrofe que doeu na sensibilidade deles. Besteira!
“Injustiça” foi um poema muito bem feito que eu fiz pra retratar a injustiça que os descobridores fizeram quando chegaram no Brasil.
VISÃO DO BRASIL
O nosso selvático vivia contente
quando estranha gente na taba chegou
E o índio liberto foi subordinado,
foi escravizado sem terra ficou
Se é grande injustiça tomar o que é alheio
se é um ato feio, se é crime de horror,
na culpa medonha os brancos caíram
porque transgrediram a lei do Senhor.
Faz pena sabermos que muitas aldeias
outrora bem cheias já tiveram fim
é triste sabermos que os índios, coitados
sem serem culpados sofrem tanto assim.
Em nome daqueles que vivem sem terra
e não querem guerra procuram a paz,
a Igreja reclama amor e piedade
e a fraternidade que o gozo nos traz.
Queremos a paz que tanto ensinava
que tanto pregava Jesus nosso Rei
direitos humanos, o grau de igualdade
e a voz da verdade em nome da lei.
Os índios precisam de um ponto seguro
um belo futuro para os filhos seus
eles não merecem tamanhos castigos
são nossos amigos são filhos de Deus.
Não é? Pois é, justamente. Isso retrata bem o flagelo da descoberta do Brasil. É, justamente. Fizeram a maior chacina com aquele povo.
112
Uma vez me pediram para fazer uns versos dando vivas ao povo brasileiro. Era para mostrar como nós vivemos, os nossos trabalhadores, a nossa vida. Mas não deu não, só dava se fosse assim: Quando passar a chacina... viva o povo brasileiro”. Assim nós podemos dizer “viva o povo brasileiro”, não é? Acontecendo isso que eu digo aqui, não é? É um poema muito atual. Mas tá muito longe de se dizer isso. É por isso que eu pensei cá, na minha filosofia de matuto, como era que eu poderia fazer um poema capaz de dizer “viva o povo brasileiro’: Aí pensei essa parte. Quando deixar de haver toda essa miséria que eu mencionei aqui, aí nós podemos dizer “viva o povo brasileiro”,
não é?
VIVA O POVO BRASilEIRO
“Quando passar a chacina... viva o povo brasileiro”.
o pÁssarO o canto Ea vida o mito E
116
Eu não tenho vaidade nenhuma, nem prepotência, nem nada, nem preconceito, mas, quando a pessoa sabe ver o que eu fiz, o que eu faço e o que estou fazendo ainda, aí a gente não fica vaidoso, mas fica satisfeito,
não é?
O SUCESSO
Tudo aquilo que vocês querem é porque eu quero também. Porque eu me sinto muito feliz com a divulgação daquilo que eu faço, a apreciação, a interpretação de qualquer um, porque eu não tô perdendo nada com isso, tô ganhando. Eu nunca visei comércio dessas coisas minha. Eu sempre digo que a minha riqueza, disso que eu faço é a divulgação, é a apresentação, não é fazer comércio, não é isso coisa nenhuma, não. E, justamente, até agora eu tenho sido muito feliz, porque quero todos e todos me querem, como você vê, não é?
PATATIVA E OS FÃS
Eu me sinto feliz, sabe como?
É. Justamente.
117
Eu sempre fui procurado pelos pesquisadores da cultura e também sobre a minha vida. Como é que eu faço tudo isso sem estudar, como é que eu crio aqueles quadros e vou reproduzir em versos, tudo dentro da verdade? Eu digo é, eu posso dizer que eu sou o poeta da justiça e da verdade. Eu gosto da verdade.
PATATIVA E OS INTELECTUAIS
PATATIVA E OS PRÊMIOSHomem, pra mim e pra minha família é uma coisa muito honrosa, porque tudo muito bonito, muito bom e pra mim eu agradeço porque está dando prazer aos meus amigos e principalmente à minha família: netos, bisnetos, filhas, genros, noras.
INDÚSTRIA CULTURALOs meus livros publicados muito me agrada porque eu deixo minha criatividade para as pessoas, mas eu nunca fiz comércio da minha poesia não. Eu não gosto. Gosto é que as pessoas apreciem e divulguem, porque é minha mesmo e eu quero.
118
Eu fui àquele programa do Chacrinha. Aí tinha aquelas besteiras dele, interrogando, pápápá e pápápá. Aí ele tinha me convidado, naquele escritório e tudo e eu disse: _Sim, mas eu não vou fazer aquilo tudo não. Ele disse: “Aquilo é um programa de calouros. Seu convite é especial.” Aí eu fui e fiz muitos versos. Era um programa bem assistido. Chacrinha, pernambucano. Não sei se ele era de Caruaru.
Já agora, depois de velho eu fui àquele Domingão, não é? Mas assim: quem me via pensava que eu estava lá, mas não foi, vieram filmar aqui, aí na praça. Aquilo é uma ciência danada, viu? O camarada faz aquela filmagem, vai apresentar lá aonde ele bem quer e o sujeito assim pensa que o elemento ta ali,
não é?
PATATIVA NA TEVÊ
119
Naquele cinema do Rosemberg (cineasta cearense), eu to na fita falando sobre o Beato Lourenço. Ora, Beato Lourenço eu sei quem foi ele:
PATATIVA NO CINEMA
Sempre digo, julgo e penso
que o Beato Zé Lourenço
foi um líder brasileiro
que fez os mesmos estudos
do grande herói de Canudos
Nosso Antônio Conselheiro
Tiveram o mesmo sonho
de um horizonte risonho
dentro da mesma intenção
criando um sistema novo
para defender o povo
da maldita escuridão.
Em cadeirão trabalhava
e boa assistência dava
a todos os operários
com a sua boa gente
lutava pacificamente
contra os latifundiários.
Naquele tempo passado
Canudos foi derrotado
sem dó e sem compaixão
com a mesma atrocidade
e maior felicidade
destruíram o Caldeirão.
120
Porque a luta do povo não passará nunca, não é? Esses aí, esses sem terra, esse aí é como um Antônio Conselheiro ou um Beato Zé Lourenço. É a mesma luta do povo, pelejando, lutando pelos seus direitos, viu? Isso aí sempre veio, desde o começo do mundo e continuará. Continua a mesma luta do povo, procurando seus direitos.
Por ordem dos militares
avião cruzou os ares
com ódio, raiva e com guerra
contra a justiça divina
na grande carnificina
o sangue molhou a terra
Porém, por vários caminhos
seguindo o mesmo roteiro
sempre haverá Conselheiro
e Beato Zé Lourenço.
121
Esse povo mexe é com tudo. Tem aí um menino que é um desenhista danado, ele veio aqui pra mim filmar e fazer um desenho animado sobre o Patativa, mas durou muito tempo, até um microfone dependuraram em mim. Quando eles foram gravar e tirar as fotos eu agüentei firme, mas eu passei mais de uma hora sentado num batente duro que só miolo de baraúna, aí quando terminou eu disse assim:
PATATIVA A
NIM
ADO
A maçada foi completa
paradeiro agora eu faço
porque bunda de poeta
não é de ferro nem de aço
Foi isso aí.
122
Constantemente eu vivia mandando poema para Éloi Teles. Elogiando o programa dele, que só tinha coisa do sertão, coisa do folclore e aqueles passarinhos cantando. Eu sei lá quantos eu mandei pra lá, homem. Eu fui várias vezes recitar lá. Éloi foi um grande, ele foi poeta também.
PATATIVA NO RÁDIO
homenagensEu não queria não, mas tão danados aí querendo fazer uma festa. Eu não posso mais com nada, viu? Nem enxergo e nem escuto.
Vocês são doutores do meio urbano e eu sou do doutor do mato, lá da chapada.
DOUTOR honoris CAUSA
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CEARENSE DO SÉCULOBem, isso aí fica à vontade dos meus apreciadores, não é? E eu, fico cá no meu cantinho recebendo o que eles me entregam e diz e tudo e eu acredito. Mas só sei que sou um poeta da justiça e da verdade. Ah! Isso aí eu sempre fui e hei de ser até o fim. Mas o que o povo diz aí, tá tudo certo.
SEREIA DE OUROEu sou muito modesto, sou muito simples, o prazer que eu tenho é o prazer que eles têm também. Mas, eu não vou dizer que fiquei entusiasmado e isso e aquilo não, estou com eles, né? Estou com cada um que deu valor e achou que eu mereço e pronto. É só isso. O prêmio vem em boa hora?
Não, cada coisa tem seu tempo, homem.
Cada coisa tem seu tempo, sua hora, seu minuto
E só se vê um exemplo
quem lhe diz é um matuto.
Cada coisa tem seu tempo, sua hora, seu minuto.
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MEMOR
IAL PATATIVA D
O AssARÉ Eu pra mim, até agora ainda não sei. Sei apenas uma
coisa que diz aqui nessa quadrinha:
Conheço que estou no fim
e sei que a terra me come mas fica vivo o meu nome para os que gostam de mim.
Somente isso aqui, mais nada, é? Mas é uma organização muito bem feita como estão dizendo, viu? Mas, eu, eu não tenho vaidade com nada, viu? Mas pelejaram com isso e não sei o quê e aí vai ficar ai o Memorial, viu? Fica aí o meu nome, como eu digo nessa quadrinha.
Assaré dos meus amores
onde andei de beco em beco .
caíram folhas e flores
só ficou o tronco seco.
ASSARÉ (do Patativa)
Assaré se tornou conhecida por minha causa, viu? Assaré hoje é conhecida, quase no mundo todo. Você não vê aí neste “Brasil bom de Bola” eles botando em francês e em inglês todas as coisas que eu disse? E isso aí é tudo Assaré e Assaré. Patativa do Assaré. Quando eu morrer fica a Assaré do Patativa. “Homem, pra onde vai?” “Vou pra Assaré do Patativa”. Agora não, que eu tô vivo é o Patativa do Assaré. Quando eu morrer ficará a Assaré do Patativa. Não é não? Tudo isso eu vejo na minha mente.
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O MITO DA MÚSICALuiz Gonzaga foi um grande artista, rapaz Inteligente e nunca mudou, o rei nunca mudou a sua linguagem cabocla. Viveu naquele meio, entrosado naquela gente alta do diabo, mas ele não criou vaidade. Nunca mudou o “prumode”, o “quinem”, e outras coisas, viu? Ele soube ser brasileiro. Ele era amigo, viu? Acolhedor do povo. Ele dizia que eu e ele era do mesmo jeito. Eu na poesia e ele na sanfona cantando. Tem que ser é nós dois. Ele disse: “Bem, se fosse pra eu ficar cantando somente três músicas, eu queria cantar apenas “Respeita Januário”, “Asa Branca” e “ A Triste Partida”, do Patativa do Assaré. “Era a preferência minha, pra eu ficar cantando por toda a vida”. Ele era inteligente. Tão simples!!!
Simples mesmo!
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oUTROs M
ITOs
No dia do movimento da Anistia, lá na Praça do Ferreira, eu apresentei com Darci Ribeiro, que é de saudosa memória. Pois bem, eu estava na livraria “Ciência e Cultura”, auto¬grafando um livro. No outro dia era [seria] o movimento lá, da anistia, né? Naquele tempo que os desgraçados voltaram desse fim de mundo. E chegou um cidadão e disse: “Olha, Patativa amanhã à tardinha, eu passarei aqui pra você ir comigo lá para a Praça do Ferreira, onde vai ser a reunião grande em benefício da anistia. Eu digo: “Pois não”. E aí, você vai também dizer alguma coisa dentro do mesmo tema. Aí eu fiquei logo encabulado, passei a noite quase acordado, procurando o que era que eu ia dizer. Aí me veio a lembrança que o pinto sai do ovo porque trabalha e não porque a natureza faça aquele ovo se abrir para que o pinto saia de dentro. Não, não é assim. Ele belisca o ovo até poder sair de dentro. Aí eu me apoiei nesse negócio e fiz o poema, viu? Quando esse cidadão, Darci Ribeiro, chegou e disse: “Pronto Patativa, entre aqui no meu carro e vamos lá pra Praça do Ferreira”. Ele disse: “Olha, você é famoso não é só aqui, nessa parte do nordeste, aqui no Ceará não. É em toda a parte. Lá no Rio de Janeiro, quando se trata de cultura, cultura popular dentro da
verdade que precisam, seu nome é logo mencionado e nós somos colegas de imprensa. Eu já publiquei três livros na Editora Vozes, onde está o seu livro “Cante lá que eu Canto Cá”. Aí eu disse: “Com quem é que eu estou tento o prazer de estar me entendendo? “Ele disse: “Eu sou Darci Ribeiro”. Aí, rapaz, em vez de eu me entusiasmar, fiquei foi amofinado. Fiquei tão besta, que falei com ele outra vez. E ele: “Mas Patativa, o que é isso?”.”É Porque eu conheço o seu nome, sei quem é o senhor e a sua capacidade”. Ele disse: “Não, nós somos iguais”. Aí ele me apresentou ao Teotônio Vilela. Quando chegou na hora, ele me chamou lá para o microfone, eu já tinha feito os versinhos.
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Vamos minha gente
vamos para a frente
arrastando a cruz
atrás da verdade
da fraternidade
que pregou Jesus.
O pinto presioneiro
pra sair do cativeiro
veve bastante a lutar
bate o bico, bate o bico
bate o bico, tico, tico
pra poder se libertar.
Se direito temos
todos nós queremos
liberdade e paz
no direito humano
não existe engano
todos são iguais.
O pinto dentro do ovo
aspirando um mundo novo
não deixa de biliscar
bate o bico, bate o bico
bate o bico, tico, tico
pra poder se libertar.
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MITOS DA LITERATURAUma vez eu estava em Quixadá, para um encontro e a Raquel de Queiroz, que também era convidada, não foi. Aí ela mandou me apanhar para eu ir lá para a fazenda dela, fazendo de nome “Não me deixes”. Agora lá, é como uma coisa antiga, daqueles coronéis, daquele tempo, viu? Aquela fachada bonita, antiguidade. Lá na cozinha, cheia de prego nas paredes e as caçarolas assim como faziam de primeiro. Tudo é coisa antiga. Ela conservou. Ela me olhou e mandou chamar fotógrafos, fotografou comigo e disse: “Eu não lhe conhecia pessoalmente, mas você vive no meu coração. Você é um poeta sonoro. Aí você vai recitar pra mim coisas que falem do sertão”. Ora, eu tenho um poema muito legal que é “O Retrato do Sertão”, bateu mesmo em cheio. A primeira mulher que entrou ali [Academia Brasileira de Letras] foi ela mesmo,
né?
O MITO PELAs CAUsAsEu já participei de muita coisa por aí. Olhe, o Nordeste às vezes, ou é seca ou muita chuva. Quando houve aí uma inundação danada, os artistas se reuniram para ajudar os flagelados. Aí eu fiz o poema e eles lá musicaram. Foi cantado por muitos bons: Fagner, Chico, Buarque, Milton Nascimento e tanta gente que eu nem sei. Foi “Seca D´água” [Musicada e cantada pelos artistas do Nordeste Já – 1985]
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É triste para o Nordeste
o que a Natureza fez
mandou 5 anos de seca
uma chuva em cada mês
e agora, em 85
mandou tudo de uma vez
A sorte do nordestino
é mesmo de fazer dó
seca sem chuva é ruim
mas seca d´água é pior
Quando chove brandamente
depressa nasce o capim
dá milho, arroz e feijão
mandioca e amendoim
mas como em 85
até o sapo achou ruim
Maranhão e Piauí
estão sofrendo por lá
mas o maior sofrimento
é nestas bandas de cá
Pernambuco, Rio Grande
Paraíba e Ceará
O Jaguaribe inundou
a cidade do Iguatu
e Sobral foi alagado
pelo rio Acaraú
o mesmo estrago fizeram
Salgado e Banabuiú.
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Ceará martirizado
eu tenho pena de ti
Limoeiro, Itaiçaba
Quixeré, Aracati
faz pena ouvir o lamento
dos flagelados dali.
Meus senhores governantes
da nossa grande Nação
o flagelo das enchentes
é de cortar coração
muitas famílias vivendo
sem lar, sem roupa e sem pão.
O MITO E AS TRADIÇÕESAs coisas mudaram muito. Muita coisa ficou melhor, mas eu tenho saudade das coisas antigas, daquela tradição toda, de muita coisa boa. Eu tenho até duas coisas. Uma é sobre as moagens de cana, muita alegria quando as moagens eram feitas com bois, dois bois puxando a moenda. Eu fiz “Ingêm de Ferro”.
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Ingêm de ferro, você
com seu amigo motô
sabe bem desenvorvê
é munto trabaiadô
arguém já me disse até
e afirmô que você é
progressista em alto grau;
tem força e tem energia
mas não tem a poesia
que tem um ingêm de pau.
( .. .) Ingém de pau! Coitadinho!
Ficou no triste abandono
E você, você sozinho
Hoje é quem tá sendo dono
Das cana do meu país
Derne o momento infeliz
Que o ingém de pau levou fim
Eu sinto sem piedade
Três moendas de sodade
Ringindo dentro de mim.
Outro poema que eu fiz foi sobre as farinhadas antigas. Aquilo era uma animação. Aqui na Serra de Santana tinha muita farinhada, mas agora não é mais daquele jeito não. Aí eu fiz isso aqui:
“O Puxador de Roda”:
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Pois bem, um aviamento
Quando pega a trabaiá
É o miá divertimento
que se pode maginá
É a miá distração
Tudo ali é união
Prazê, alegria e paz
Sá se conversa em amô
Pois todos trabaiadô
É sempre moça e rapaz ..
(...) Hoje a serra tá mudada
Uma desmancha não presta
De premêro, a farinhada
Pra mim era a miá festa
Mas perdi todo o prazê
Quando vi aparecê
Esta horrive novidade
Fazendo um doido baruio
Cheio de impero e de orguio
Fedendo à civilidade.
(...) Motô, tu é um castigo!
Bicho feio, sem futuro
Sou sempre o teu inimigo
Te dou figa e desconjuro
Do mestre que te inventou
Mode este teu pôpôpô
Que aborrece e que incomoda
Ninguém vê mais os cabôco
Que gritava, dando soco
Puxando os veio da roda.
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O MITO E A MUSABelinha foi minha companheira. Tão paciente, meu Deus! Só se zangou uma vez, quando um cassaco quase acabava com as galinhas dela. Aí eu fiz
“Mulher Valente”Era um cassaco que pegava pinto
passava noite remexendo a casa
o galinheiro já se achava tinto
com a sujeira deste espalha brasa.
Belinha vendo nossa casa imunda
aborrecida me falou assim:
com baladeira, com bodoque ou funda
deste cassaco quero ver o fim.
(...) Eu quero apenas o cachorro e o gato
muitos pintinhos e perus perdi
este malandro só pertence ao mato
não é doméstico pra viver aqui.
Matou o cassaco e acabou a agonia. Ela era muito boa, tadinha!
Quem é esta mulher, de média altura
que mesmo tendo seu cabelos brancos
andando firme com os passos francos
tudo na casa resolver procura?
Quem é essa mulher sempre a cismar
silenciosa, simples e modesta
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É, mas não deu certo não. Ela foi sozinha.
que não indo da igreja para a festa
vive constante no seu pobre lar?
(...) Esta dona mostrando na feição
que deseja dizer alguma cousa
é a mãe de meus filhos, minha esposa
é dona Belarmina Paes Cidrão.
É minha esposa, minha sempre minha
inseparável , doce companhia
por questão de beleza e simpatia
eu troquei Belarmina por Belinha.
(...) se ela reza, contrita, é quase pia
e na igreja comunga e se confessa
vou pedir-lhe que faça uma promessa
para a gente morrer no mesmo dia.
Quem é es ta mulher, de média altura que mesmo tendo seu cabelos brancosandando firme com os passos francos tudo na casa resolver procura?
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MENSAGENS DO MITOA minha mensagem será sempre sobre a justiça e a verdade. Olhe, eu nunca ofendi a ninguém, nunca ataquei a seu ninguém, mas ninguém pode reclamar as verdades que eu digo, porque o povo mesmo sabe ver, como isso que eu fiz aqui:
O que mais dói não é sofrer saudade
do amor querido que se encontra ausente
nem a lembrança que o coração sente
dos belos sonhos da primeira idade.
Não é também a dura crueldade
do falso amigo, quando engana a gente
nem os martírios de uma dor latente
quando a moléstia o nosso corpo invade.
O que mais dói e o peito nos oprime
e nos revolta mais que o próprio crime
não é perder da posição o grau.
É ver os votos de um país inteiro
desde o praciano ao camponês roceiro
pra eleger um presidente mau.
Agora, isso aí é uma tristeza, não é? Pois bem, eu não ataco, apenas vejo, entendo e faço.
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FUTUROO futuro a Deus pertence. Eu acho que já fiz algumas coisas, se chegar a hora, eu to pronto porque também não tem jeito. Fica aí o Memorial Patativa do Assaré e meus versos e a Fonte Patativana, que é uma brincadeira que eu digo com meus companheiros de poesia.
Aos poetas do nordeste
Ofereço meus louvores
Aos que são meus seguidores
E já passaram no teste
Com a proteção celeste
E inspiração soberana
Cantando da raça humana
Prazeres, dores e mágoas
Porque beberam das águas
Das fontes Patativanas
Eu digo em nome de Cristo
Com a verdade completa
Ao meu amigo poeta
Com muita atenção assisto
Temos o Manuel Calixto
Que gosta da carrascana
Porém, com cana ou sem cana
Verseja em qualquer negócio
Porque é um grande sócio
Da Fonte Patativana
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Cícero Batista se sai
Com roça e com poesia
Com as farsas que ele guia
O seu prestígio não cai
De quando em vez ele vai
Pra feira vender banana
Outras vezes vender cana
Além de versejador
Da Fonte Patativana
Além da grande fileira
Dizer agora é preciso
O campeão do improviso
É o Miceno Pereira
Com sua voz altaneira
Cantando toda semana
Como pássaro Viana
Ele é muito sonoroso
E vive muito ditoso
Na Fonte Patativana
O meu colega Maurício
Segue este mesmo caminho
Cantando a flor, o espinho
O prazer e o sacrifício
Meu parente, meu patrício
Nesta Serra de Santana
A poesia bacana
Apresenta muito bem
Porque faz parte também
Da Fonte Patativana
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O Geraldo e o João Bandeira
Cada qual é bom poeta
Que segue a mesma reta
Com expressão verdadeira
Na poesia brejeira
Uns se alegra, outros se ufana
O que já leu não se engana
São poemas irmanados
Porque foram inspirados
Na Fonte Patativana
O Pedro verseja um pouco
É o caçula, meu irmão
Dono de uma produção
Chamada “Ladrão de Coco”
Sua casa de reboco
Velha e modesta choupana
Maria era nossa mana
Mas nossa mana, Maria.
Um só verso não fazia
Na Fonte Patativana
Finalmente, meus leitores
Nesta preciosa arte
Apresentei, grande parte
Dos que são meus seguidores
Cantei prazeres e dores
Nessa Serra de Santana
Para a nação soberana
Eu partirei brevemente
Dando adeus a boa gente
Da Fonte Patativana.
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