o ritual da desmontagem no teatro

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    Universidade Federal do

    Rio Grande do Sul, Porto Alegre,

    Rio Grande do Sul, Brasil.

    palavras-chaveteatro; antropologia

    da arte; performance;

    criatividade; ritual.

    CALEB FARIA ALVES

    LETICIA VIRTUOSO

    NOS MEANDROSDO PROCESSO

    CRIATIVO: O RITUALDA DESMONTAGEMNO TEATRO

    RESUMO

    O presente artigo aborda o ritual de teatro

    conhecido como desmontagem. Acompanhamosa apresentao de Tnia Farias, integrante dogrupo i Nis Aqui Traveiz, de Porto Alegre, rea-lizado em 2014. Nesse ritual vemos a vinculaoque a artista estabeleceu, para realizar sua per-formance, entre sua histria pessoal, a histriado grupo e os desaos cnicos que enfrenta. Parapoder representar ela desenvolveum vocabulrioprprio de contedos expressivos. A desmonta-gem evidencia esses vnculos, abrindo ao pblicoos bastidores do processo criativo. Com base

    nesse material, fazemos uma discusso sobre aquesto da conscincia e do tcito nos rituais.

    115 So Paulo, v. 1, n. 1, p. 115 -134, junho (2016)

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    Roy Wagner inicia seu livroA inveno da cultura com a seguintefrase: A ideia de que o homem inventa suas prprias realidades no nova. (Wagner 1975, 11) No entanto, as culturas contm dinmicascriativas cotidianas que inventam, no geral, partes muito pequenasda sua realidade. Nenhuma cultura inventada enquanto tal. Elas seforjam em inmeras mudanas contnuas que as afetam desigual-mente. Essa efervescncia no necessariamente invisvel, incons-ciente ou casual. H situaes em que esse processo exposto: escan-caram-se as dinmicas que presidiram as vinculaes entre signoe signicado. Este artigo ir analisar um ritual de teatro chamadodesmontagem, no qual o pblico convidado a participar do vnculoestabelecido pelo ator entre sua vida pessoal e o papel que desempe-

    nha na apresentao; entre os recursos expressivos que usa e o modocomo foram concebidos para que zessem sentido para a plateia.

    A ateno da antropologia normalmente recai sobre o reconheci-mento da capacidade interpretativa de um determinado contedosimblico, sobre sua difuso e as consequncias sociais do dom-nio de conjuntos de sentidos que implica (como o conhecimento deuma lngua ou uma variao dela). A questo suscitada pela obrade arte, no entanto, no remete apenas relao social, mas aoprprio ensaio dela, ou seja, ao seu momento anterior. Essa prece-

    dncia no sinnimo de ausncia, podendo tambm ocupar espa-os especcos, ser atribuda a personagens sociais determinados eenvolver recursos mais ou menos denidos, explcitos ou no.

    Um dos primeiros e mais ricos estudos nesse campo continua sendoa noo de communitasde Victor Turner. A invocao de um estadode exceo, a exigncia, no tratamento de uma questo, da isonomia,quebra as hierarquias e, portanto, a ordem estabelecida, abrindoespao para a construo de outros arranjos sociais. Esse potencialfaz com que o ritual assuma, para alm de sua funo de reforo,tambm a de subverso da organizao social. A noo de cultura

    como um todo igualmente compartilhado foi paulatinamente ques-tionada e denitivamente abandonada j nos anos 1970. No entanto,a prtica da inveno, que gera dissensos, desvios, ou aquilo quedenominamos originalidade, permanece ainda pouco pesquisada.

    Sabemos hoje, por exemplo, que nenhuma imagem reproduz o modocomo o olho humano v. Para ser vista, uma pintura ou mesmo umafotograa depende de uma iluso no sentido que Gombrich atribuiao termo, ou seja, implica causar um efeito de viso que permitaidenticar, segundo cdigos culturais, aquilo que se deseja fazer ver.

    Talvez esse ponto seja mais evidente na dana: no porque umabailarina se move como se utuasse no espao que seu corpo perdeu

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    o peso. O mesmo vale para a msica ou qualquer atividade artstica.Essa habilidade faz com que os artistas sejam envoltos em certa aurade mistrio e magia. Normalmente no reetimos muito sobre o queinstaura essa iluso, no entanto, ela essencial para a vida em socie-dade e depende de testes de eccia. Todo comportamento espont-neo em algum momento foi ensaio de relao social, e a observaodos processos criativos permite acompanhar essa experimentao.

    George Marcus aponta algumas das origens da diculdade desse tipode pesquisa: para dar conta de novas concepes de cultura, preci-samos romper com a forma clssica da pesquisa de campo, que semostra inadequada aos novos temas de investigao na sociedade

    atual. Para ele, impossvel manter uma tradio comprometidacom uma funo documental e uma representao naturalista,impulsionadas pela participao e observao distanciadas e disci-plinadas nos e dos mundos vitais de outros tomados formalmentecomo objeto de pesquisa. (Marcus 2003, 134) Marcus chama atenoem seu texto para a forma colaborativa de pesquisa de campo utili-zada pelos artistas, com os quais a antropologia deveria aprender.

    O processo atravs do qual incorporamos a carga emocional e sig-nicativa de cada gesto, postura ou palavra pode ter alguma seme-

    lhana com aquilo que Patrice Pavis chama de arquivo vivodo ator:

    O ator arquiva em si seus antigos papis, faz sua manuteno,

    representa-os, consulta-os, compara-os, refere-os sua experi-

    ncia passada e presente. [] Por ocasio de demonstraes de

    trabalho, no raro que tais atores retomem alguns momen-

    tos de seus grandes papis e o disponibilizem uma viso sobre

    o arquivo vivo dos espetculos dos quais participaram, e dos

    quais oferecem fragmentos que parecem arrancados das pro-

    fundezas da memria teatral. Ora, essa memria viva do tea-

    tro que o bem mais precioso, o tesouro que escapa s mdias e

    que concerne lembrana vivaz do espectador (Pavis 2008, 39).

    A caracterstica especca da desmontagem que ela explicita essearquivo e o modo como foi construdo. Podemos comparar essasituao com aquela descrita por Lvi-Strauss em O feiticeiro e suamagia: o xam insere sorrateiramente um chumao de penas naboca, morde a lngua de modo a encharc-lo de sangue e o cospe foracomo sendo o mal sugado do corpo do paciente. Para o antroplogo,no h mentira nem faz sentido indagar sobre ela porque a cura efetiva. Acontece segundo um princpio semelhante ao da psican-

    lise, a sesso permite que o paciente readquira domnio simblicosobre seus atos ou sobre o que est acontecendo em sua vida.

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    No caso da desmontagem, como se esse chumao de penas ensan-guentadas fosse trazido discusso pblica. Os que compartilham acrena esmiam o mecanismo ilusrio produzido, entendem a suaefetividade e retomam a fruio em outros momentos com crditorenovado. Para este artigo foram observadas oito apresentaes damesma desmontagem protagonizada por Tnia Farias: a primeira,exibida para os demais atuadores do grupo de teatro ao qual ela per-tence, o i Nis Aqui Traveiz, e para os estudantes que faziam parteda Ocina de Formao de Atores ministrada pelo grupo, em suasede. Depois, no Teatro do SESC, no centro de Porto Alegre, na pro-gramao do Festival de Teatro Palco Giratrio;no intercmbio queocorreu entre o grupo Contadores de Mentiras e o i Nis Aqui Tra-

    veiz, tambm na Terreira; na programao Teatro e Memria 50anos do Golpe Militar na Casa das Artes Vila Mimosa, em Canoas,promovida pelo grupo; na mostra Conexes para uma Arte Pblica,tambm promovida pelo i Nis intercambiando com outros gru-pos: na casa do grupo T Na Rua, no Rio de Janeiro; na sede do grupoGalpo, em Belo Horizonte; no espao do grupo Contadores de Men-tiras, em Suzano (SP); e em Vacaria, no Projeto Teatro e Memria.Foi realizada tambm uma entrevista semiestruturada na casa deTnia Farias, e feitas anotaes durante todas as apresentaes dadesmontagem, bem como dos bate-papos que ocorreram ao m de

    cada uma delas

    1

    . Foram ouvidos, ainda, os udios com os depoi-mentos e impresses do pblico aps assistirem a desmontagemdurante o projeto Conexes para uma Arte Pblica2.

    A Tribo de Atuadores i Nis Aqui Traveiz o grupo de teatro maisantigo da cidade de Porto Alegre. Surgiu em 1978, fundado por PauloFlores e Rafael Baio, estudantes de Teatro no Departamento de ArtesDramticas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com aideia de pesquisar uma nova linguagem de interao entre atores eespectadores. Os integrantes do grupo se autodenominam atuado-res, juno do ator com o ativista poltico3.

    1. A maior parte dos dados de campo foi coletada por Leticia Virtuoso, que tambm realizou

    sozinha a entrevista. Caleb Alves acompanhou as peas citadas na desmontagem, alm de

    sua apresentao.

    2. Essas gravaes foram gentilmente cedidas por Pedro Lucas, responsvel pelos registros

    audiovisuais de vrios projetos do grupo.

    3. A Tribo possui um intenso trabalho no sentido de preservar sua memria por meio do

    selo i Nis na Memria, por meio do qual lanou diversas publicaes em livros e DVDs

    sobre a histria do grupo e registro de espetculos. Alm disso, a Tribo autora, organiza-

    dora e editora de uma importante revista de teatro, a Cavalo Louco, distribuda gratuita-mente duas vezes ao ano.

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    O conceito de desmontagem foi incorporado a partir da leitura dolivro DES/TEJIENDO ESCENAS Desmontajes: procesos de investigaciny creacin, organizado por Ileana Diguez a partir de diversos textosescritos por atores, performers, diretores e pesquisadores de teatroque realizaram desmontagensno ano de 2003, na cidade do Mxico,no Centro Nacional de Investigacin Teatral Rodolfo Usigli, no projetoDesmontajes, Procesos de Investigacin y Creacin. Segundo Ileana,desde o nal dos anos 1970 alguns atores e grupos de teatro passarama realizar mostras de seus processos criativos e a compartilhar como pblico o que havia por trs das personagens encenadas em seusespetculos (Diguez 2009,15). Para ela, a desmontagem a reexo,organizao e, por m, o compartilhamento que a atriz ou o ator rea-

    liza sobre fatores que intimamente compuseram seu processo cria-tivo e marcaram a construo de cada uma de suas personagens. um trabalho que apresenta as imerses, as descobertas, os pequenoserros e acertos, que, somados, representam as experincias criativasde um ator. (Diguez 2009).

    No caso de Evocando os Mortos, encenado em 2014, a atuadora TniaFarias destacou curtos fragmentos das peas teatrais nas quais estoinseridas as personagens Soa, Sasportas, Kassandra e Oflia. Aomesmo tempo que a atriz transita entre as personagens transfor-

    mando-se ora em uma, ora em outra, volta a si e nos conta o que estpor trs daquele fragmento: evidencia o contexto poltico da cidade, dogrupo, o momento de pesquisa cnica e do trabalho da atriz e expeas questes de gnero que se fundem a todos os contextos e etapasde criao. Uma desmontagem vai alm de uma exibio tcnica, uma demonstrao afetiva do trabalho da atriz/ator: est muito maisligada ao no racional, ao que est por trs da cena, ao que a artistaestava vivenciando na poca da concepo do papel que encenou.

    A desmontagem uma lupa que permite artista reetir sobre seuprprio trabalho, so os resultados e processos juntos, revelando a

    pesquisa. Para Tnia, deixar ver a mulher, a atriz, a cidad. Suahistria nos remete ao seu primeiro interesse pelo teatro, aindasecundarista. Naquela poca, para dar conta de suas atividades,precisava manter-se na rua o dia inteiro, com pouco dinheiro esempre sem almoo. Esperava e apanhava o nibus muito tarde danoite na volta para casa e, em uma dessas situaes, sofreu violn-cia sexual. Indagada sobre a relao entre ser mulher e integrar oi Nis, ela responde que fazer parte desse grupo possibilitou queela reetisse sobre sua condio de mulher e de artista.

    Ento se o [...] Heiner Mller fala que a mudana vai virdas margens. A mudana mesmo no vir dos intelectuais

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    marxistas, vir das margens, da periferia, das ilhas de desor-

    dem. E dentro desses processos eu pude entender um pouco

    do que tinha acontecido comigo, pude entender o meu lugar, o

    nosso lugar de mulher, pude entender porque que a gente no

    pode mais car quieta, porque a gente no pode mais deixar

    simplesmente que as coisas continuem sendo como sempre

    foram. [...] E que quero atravs do que eu fao, discutir e garan-

    tir que as mulheres possam gostar de ser mulheres. Porque

    ns somos fundamentais, fundamentais em tudo. [...] Nosso

    lugar de mulher no pode ser o lugar da violentada, o lugar da

    espancada, o lugar da subjugada. [...] A Paulina Salas que tinha

    sido violentada e torturada. Primeira baita mulher que eu vivi

    no i Nis, de espetculo que eu criei n4(Farias 2014).

    A descrio que se segue uma sntese das apresentaesregistradas:

    Vamos adentrando o espao cnico e comeamos a nos acomodar.Percebemos, num canto, Tnia Farias nos observando. Atrs delah uma cadeira de madeira clara com estofado marrom claro noacento. O encosto vazado, alto e detalhado. Tnia explicou, emoutro momento, que a ideia no realizar a desmontagem para

    um pblico numeroso, mas pequeno, de 30 a 50 pessoas, para quese estabelea uma relao intimista, prxima.

    SOFIA

    A atuadora est vestida com o gurino de Soa, criado e costuradopara a encenao Vivas Performance sobre a ausnciaencenadoem 2011 pela Tribo de Atuadores i Nis Aqui Traveiz na Ilha dasPedras Brancas, baseado no texto de Ariel Dorfman.A persona-gem vai at o centro do espao cnico e solta sua cadeira abai-xando-se lentamente. Pega um gro de milho do cho. Alterna o

    olhar entre o milho e a pessoa sentada sua frente. Soa est nocho, agachada. Comea a recitar um texto retirado do espetculoem que a personagem est inserida, evocando-a. Quando eu erajovem, com minhas irms, morvamos longe, l nas montanhas,e amos sempre ao povoado, com a mais linda roupa que pudessefazer a nossa av. Derruba um, dois milhos no cho, dizendo Eminhas irms que descansem em paz foram tragadas pelamultido..., como se cada milho cado fosse uma de suas irmsmortas que se junta terra. Outro milho guardado dentro de sua

    4.A Morte e a Donzelafoi o espetculo encenado pela Tribo de Atuadores i Nis Aqui Tra-veiz em 1997 e 1998, baseado no texto de Ariel Dorfman.

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    blusa, em seu peito, enquanto fala de Miguel, seu marido desapa-recido na ditadura militar. Seus olhos esto cheios de lgrimase sua voz est embargada. Segundo Lvi-Strauss, em A EfcciaSimblica:Cada esprito, quando aparece, torna-se objeto de umadescrio atenta, e o equipamento mgico que ele recebe do xam longamente detalhado (Lvi-Strauss 1975, p. 212). Dessa mesmaforma ocorre neste ritual.

    De repente, a atuao termina e a atuadora inicia um dilogo como pblico. Tnia fala sobre o processo de criao da personagem,contando que, para o i Nis, o protagonismo da mulher muitoimportante em seus espetculos, pois na Amrica Latina a mulher

    constantemente protagonista das lutas sociais (cita as madrese abuelasda Plaza De Mayo). Explica que foi escolhida pelo grupopara interpretar a personagem Soa depois que fez seu ritualda personagem: um exerccio artaudiano no qual cada atuadorescolhe uma cena ou uma personagem para interpretar (pode elemesmo faz-lo ou convidar colegas para executar suas ideias).Dependendo da escolha do atuador e do que pretende dizer com acena, ele pode trabalhar sozinho ou implicar todos os envolvidos.O grupo, por ocasio dessa pea, resolveu procurar um local paraa encenao que no fosse a sua sede. Queriam interagir com um

    espao real. Escolheram a Ilha das Pedras Brancas, mais conhe-cida como Ilha do Presdio. Essa experincia, para ela, foi a maisforte pela qual passou em quase 20 anos de i Nis, pois mesmoque o espetculo tratasse de ausncias, o que sentia todas as noi-tes em que estava na ilha era uma inundao de presenas: eeu estava que nem ela (Soa), cada vez mais pesada. Conta quehavia uma cena em que Soa adentrava celas reais, efetivamenteutilizadas para encarcerar presos polticos. Em todas elas haviauma mulher com um pilo esmagando milho. Em seguida, Soainiciava uma discusso com outra personagem, Alejandra5, suanora, que perguntava por que as mulheres no estavam espe-

    rando por seus homens desaparecidos: Onde est teu marido,Alejandra? Onde est Alonso, Yajina?. Tnia conta que a cadanoite de ensaio e apresentao passou a incluir o primeiro nomede um desaparecido poltico brasileiro. Conforme chamava, suasensao era de que eles encostassem em mim, como se fossem

    5. A personagem Alejandra era interpretada pela atuadora Marta Haas. Nesta cena as

    mulheres comeavam a pedir que Soa parasse de dizer os nomes dos homens desapa-

    recidos Os nomes no Soa, por favor, os nomes no! e repetiam cada uma, bem baixo,

    dentro de sua cela, at que Soa e as mulheres iam falando cada vez mais alto e a cena

    culminava no grito de Soa chamando por Miguel, seu marido, e uma chuva de milho caasobre a personagem e a derrubava no cho. Era uma saca de 60 quilos a cada noite.

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    dizendo presente! em meu ouvido. Tambm relata que, na pocaem que estavam construindo o espetculo, leram o livro Substan-tivo Feminino, que relatava a vivncia das mulheres sobreviventesde torturas durante a ditadura militar: Era impossvel ler o livronum flego s... Era uma leitura muito penosa.

    Na continuidade, fala do contato que a Terreira teve com Yuya-chkani, grupo peruano de teatro que veio a Porto Alegre convi-dado pelo i Nis para participar do Festival de Teatro PopularJogos de Aprendizagem. Com eles aprendeu canes em Qut-chua que foram utilizadas em algumas cenas. No queria utilizaras aes no cotidianas6 na construo da personagem Soa.

    Tambm no queria utilizar os mtodos de Stanislawsky e partirdo estudo psicolgico da personagem. Queria deixar ver a atrizmesmo quando, tendo 30 e poucos anos, se transformava em umasenhora de mais de 60.

    Tnia veste uma mascarita de Yukuko e comea a tocar umpequeno tambor7. Aproxima-se de uma pessoa da primeira leirade cadeiras e lambe sua testa. Toca Grande Poder, de ComadreFulozinha. Assim que termina, despe-se de parte do gurino deSoa e diz: Soa um personagem de 2011.

    Os espetculos teatrais tm algo de mgico, pois h em jogoa categoria inconsciente do entendimento, ou o mana ritual,prprio do evento social, o elemento mana nas relaes entreatuadora e pblico.

    [] A eccia da magia implica na crena da magia, e que

    esta se apresenta sobre trs aspectos complementares:

    existe inicialmente, a crena do feiticeiro na eccia de

    suas tcnicas; em seguida, a crena do doente que ele cura,

    ou da vitima que ele persegue, no poder do prprio feiti-

    ceiro; nalmente a conana e as exigncias da opiniocoletiva que formam cada instante uma espcie de campo

    de gravitao no seio do qual se denem e se situam as

    relaes entre o feiticeiro e aqueles que ele enfeitia (Lvi-

    -Strauss 1975, p. 185).

    6. Termo utilizado pelos atuadores a partir de estudos de Artaud. So aes que no repre-

    sentam as movimentaes convencionais do cotidiano das pessoas, e tambm no esto

    diretamente vinculadas ilustrao das palavras dos textos da personagem.7. O instrumento utilizado um tambor chamado Cultrun, que tem origem Mapuche.

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    SASPORTA

    Tnia anuncia a prxima personagem que compartilhar conosco. Sasportas, do espetculoA Misso Lembrana de uma Revoluo.Texto de Heiner Mller encenado nos anos de 2006 e 2007 na Ter-reira da Tribo, na sede da Rua Joo Incio, no bairro Navegantes.Ela mantm a cala colorida do gurino de Soa e uma blusinhabranca que vestia por baixo da roupa. Segundo Tnia, Mller seutiliza da Revoluo Francesa para contar a histria de um grupo derevolucionrios franceses que vai Jamaica fomentar uma revoltade escravos. Um burgus, um campons e um negro. O grupo pon-derou, na poca, que seria importante pesquisar a revoluo hai-

    tiana, que a revoluo negra exitosa de que se tm notcia. Tra-varam contato com uma pesquisadora de Porto Alegre especialistana cultura Haitiana atravs da qual conheceram debates sobre aocupao armada, msicas e fotograas do Vodun.

    Os atuadores decidiram que todos os escravos negros, persona-gens de Mller, seriam interpretados por atrizes, juntando a ques-to de gnero racial. O grupo havia retomado contato com umamsica de John Lennon que dizia A mulher o negro do mundo,a escrava dos escravos. Se ela livre, voc diz que ela no te ama.

    Se ela pensa, voc diz que ela quer ser um homem. Relembra queo gurino de sisal tingido deixava bem claro que eram atuadoras,pois deixava expostos os seios e o sexo das atrizes:

    [] os diversos movimentos dos corpos que se sacudiam

    com aquele som pulsante. E durante as improvisaes os

    atuadores passaram a utilizar aquelas msicas como plano

    de fundo. Tentavam deixar com que aquelas imagens vazas-

    sem de suas peles. Corpos esticados em muitas direes. E a

    msica passou a estar presente e embalar todos os ensaios,

    como elemento importante deste ritual (Farias 2014).

    Para Tnia, durante o aquecimento a msica que estimulava os cor-pos dos atores suscitou a proposta de que o grupo deveria aprender atocar tambores de rituais afro-brasileiros. Assim, um percursionistabaiano ensinou as trs atrizes que interpretariam os escravos. Tnianos mostra, com seu corpo, a postura sugerida (que permeou todasas imagens dos escravos): pernas bem abertas, joelhos exionadosapontando para fora. Elas precisavam tocar sentadas, pois eramtambores enormes. Diz que os tambores escolheram as mulheresque iam toc-los e que cada um era semelhante a elas.

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    Revela que fez diversos improvisos com vibraes constantes: ini-cia um movimento rpido com o quadril para frente e para trs,no ritmo da msica: Claro que isso no foi para a cena. Liga osom para que o pblico oua a msica que embalou os ensaios.Durante a pesquisa da personagem ela tambm entrou em con-tato com a entidade Elegu, que seria correspondente ao Exu nacultura afro-brasileira.

    Tnia comea a movimentar seu corpo inteiro com vigor e nosolha por entre os cabelos que caram no rosto: ela agora Sas-portas. A iluminao projeta sombras em sua face. Em um artigosobre sua desmontagem, explica:

    Eu queria dar msculos s palavras: Os meus cmplices

    sero os escravos de todas as raas, cujo nmero cresce...

    em cada instante em que tu passas na gamela dos senhores

    de escravos ou entre as coxas da tua puta branca (Muller,

    1987, p. 55), enquanto eu fazia uma contrao da coluna,

    jogando quadril, cabea e ombros para frente e depois

    para trs, criando uma ponte imaginria entre os chacras

    bsico e do corao. Estas palavras vinham acompanhadas

    de uma risada sarcstica que tinha como inspirao uma

    entidade do vodun, o Eleguque tem seu correspondente no

    candombl afro-brasileiro com o Exu (Farias 2014, 10).

    Sasportas se esvai: Esse um personagem de 2006.

    Os momentos de evocao ou incorporao nesse meta-ritual somultifacetados, densos e complexos. um exerccio muito difcilo de descrever a ponte energtica, o calor que se estabelece entreo pblico e o atuador, ou entre os prprios espectadores que com-partilham o ritual, o mana. Julia Varley explica:

    Na antropologia teatral a palavra subtexto foi substitudapor subpartitura, um termo mais apropriado s formas

    do teatro... a atriz constri sua presena cnica por meio

    de uma forma de comportamento vocal e fsico chamado

    partitura. O termo subpartitura deveria incluir todos os

    processos mentais e psquicos sob os quais uma atriz baseia

    seu trabalho. Nesse contexto misturam-se a tcnica, os

    pontos de partida para criar os materiais, aquilo que a atriz

    pensa antes e durante o espetculo, as motivaes do perso-

    nagem, o mundo interior, as emoes, a energia, as recor-

    daes, as imagens, as sensaes e tudo aquilo que no seconsegue expor em conceitos (Varley, 2010, p. 121).

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    KASSANDRA

    Este foi o meu processo mais longo e mais aprofundado.

    Naquele momento estvamos pesquisando as aes fsicas.

    A cada aquecimento eu tinha uma partitura nova. A gente

    cava horas no laboratrio. Pesquisando corpo, dissonn-

    cia... Eu queria criar uma personagem a partir das aes.

    Queria criar uma personagem que fosse complexa como o

    ser humano, cheia de contradies, mas queria criar atra-

    vs das aes fsicas (Farias 2014).

    Pergunta para o pblico se conhecem a historinha de Kassan-

    dra: conta que ela tinha o dom da persuaso, mas que o perdeu.Naquele momento o grupo enfrentava sua pior crise: estavamprestes a perder sua sede, um espao que, desde os anos nais daDitadura Militar, foi um lugar de liberdade e de discusses sobreteatro e artes.

    A atuadora arma que se tornou uma grande defensora da Ter-reira e do i Nis:

    Neste momento, a Tribo estava passando por um perodo

    de luta na cidade, um embate poltico pela preservao no

    nosso Centro de Experimentao e Pesquisa Cnica, um

    espao aberto que, alm de ser a sede do i Nis, ventre

    gerador dos processos de pesquisa do grupo tambm onde

    o i Nis desenvolve a sua Escola de Teatro Popular, com

    Ocinas abertas e gratuitas. [...] Eu participava das reunies

    pblicas pela preservao da sede, a Terreira da Tribo. No

    foram poucas as vezes que me deparei com um contexto

    muito machista, hostil e dissimulado, pelo fato de eu ser

    mulher e jovem (Farias, 2014).

    Guardadas as devidas propores, ela fazia o mesmo que Kassan-dra: entrava em conito com o Estado. Esse era meu grande sub-texto; sua vida real.

    A prxima questo compartilhada relativa ao espetculo Kassan-dra in Process: Havia uma cena chamada pelos atuadores de cenada gruta, na qual ocorria um ritual, como se fosse de uma religiosubterrnea, e Kassandra seria iniciada naquela religio. Todas asmulheres do grupo participavam desse ritual. Nenhuma delas,entretanto, tinha tidos lhos, e elas acreditavam que precisavam

    de substrato [sic] para a cena. Comearam a fazer aulas de dana doventre almejando um contato maior com o feminino, com o ven-

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    tre e com signicado da energia advinda dessa regio do quadril.Criaram uma cena cheia de movimentos da dana, mas quandoa mostraram para os guris, eles odiaram. Diminuram os movi-mentos da dana e criaram outra cena, mas eles continuaramodiando. A terceira tentativa no continha nenhum movimentoda dana. Foi esta a de que eles gostaram e que acabou inserida noespetculo. O que interessava no era a codicao da expressocorporal, mas sim a energia feminina que vinha do ventre, e elasdemoraram um pouco para perceber isto. As mulheres se tocavame se beijavam, era uma cena linda, cheia de afeto.

    Narra que na primeira cena de Kassandra a personagem comeava

    golpeando o ventre, e acho que isso deve querer dizer alguma coisa.Recomea uma incorporao. Temos novamente Kassandra. Seurosto e energia so de uma jovem mulher, mais frgil e doce. Suavoz suave. Mostra-nos a personagem, sua movimentao corporal,partitura vocal e texto, compondo-a em nossa frente. Kassandra gol-peia o ventre, conta uma histria com personagens mitolgicos, dum salto para o alto e cai com um dos joelhos exionado.

    Tnia volta a falar conosco: vai mostrar a prxima cena... Kas-sandra uma colcha de retalhos de textos. um dilogo entre

    Hitler e Stalin: Cada um destes homens coleciona uma srie deassassinatos, que no faz nenhuma diferena entre um se colocarcomo a esquerda e outro a direita. Cometeram assassinatos emmassa (Farias 2014).

    A cena se inicia com a personagem deitada no cho. Kassandrafala com o corpo inteiro tensionado, mas seus membros supe-riores e inferiores esto levantados no ar. Canta uma msica emlngua estrangeira. Venda os olhos com uma tira de tecido no evermelho que manipula com preciso na ponta dos dedos. Aindacantando, levanta-se e sobe em uma pequena caixinha com os

    dois ps. Bate nela com um deles ritmando a msica.

    Kassandra e o pblico cavam situados num espao chamadocampo de batalha. Kassandra tirava de baixo da saia vrioshomenzinhos azuis e os espalhava pelo campo. Assim, quando opblico se deslocava, tinha de tomar cuidado para no enterrar oshomenzinhos no piso forrado de mrmore triturado. Ela nos mostraos homenzinhos e espalha alguns deles no cho. Tnia descobriu,naquela poca, uma comunidade em uma rede social em que as pes-soas compartilhavam o que levavam para a casa aps assistirem ao

    espetculo. Encerra esta parte dizendo: Este um trabalho de 2002.

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    OFLIA

    O galpo em que a Terreira da Tribo estava localizada na CidadeBaixa teria que ser desocupado. Os esforos para manter a sedeforam em vo. O texto escolhido para ser o ltimo encenadonaquele espao foi Hamlet Machine, de Heiner Mller, porquese referia esquerda totalitria alem, traando um paralelo,uma crtica ao governo de esquerda na cidade de Porto Alegre. Aprefeitura, segundo ela, queria acabar com o coletivo e cooptoudiversos integrantes oferecendo empregos. O objetivo seria des-fazer o grupo para que no houvesse mais necessidade de man-ter o espao da Terreira da Tribo: Eu estou falando de dispn-

    dio de tempo, dispndio de energia, dispndio de dinheiro paradesestabilizar e acabar com o grupo. Considera que as pessoas,a populao, acreditava que era um momento de mudana, detransformao, mas que, quela altura, o projeto do governo era amanuteno do poder. Comea a falar de sua personagem, Oflia:

    Tem um texto da Oflia que diz assim eu rebento os ins-

    trumentos do meu cativeiro e rasgo as fotograas dos

    homens que eu amei e que se serviram de mim. [...] Eu

    tinha um subtexto pessoal, assim, ntimo, secreto, que no

    conseguia me abandonar quando eu fui criar a Oflia. Por-

    que a maneira com que Heiner Mller trabalha a Oflia no

    texto dele, essa voz de revolta que ao mesmo tempo fr-

    gil e forte, fazia com que esse subtexto casse buzinando

    o tempo inteiro pra mim. Eu tinha sofrido uma violncia

    sexual, eu tinha sofrido um estupro coletivo (Farias 2014).

    Oflia foi a primeira personagem que construiu a partir de umapartitura de aes:

    Por isso que l na Kassandra eu pensava assim: eu quero

    fazer uma personagem de verdade. Pensava que tinha queser de verdade (enfatiza). Porque eu no via Oflia como

    uma personagem. Pra mim ela era uma fora. Ela at

    hoje. O que eu consegui fazer naquele momento foi criar

    uma fora (Farias 2014).

    Avisa que mostrar as aes fsicas das quais se originou Oflia.Faz uma movimentao vigorosa com os braos, mexe os dedose o pescoo com muita preciso e tnus muscular. Volta a falar.

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    Diz que o grupo entrou em contato com fotograa de Jan Saudek8durante o processo de criao e que isso foi muito signicativopela forma peculiar que ele retrata a gura feminina:

    Tem um momento em que ela se coloca como represen-

    tante das mulheres suicidadas. Como Artaud sugere... As

    suicidadas da sociedade. Ento ela fala que a mulher na

    forca, a mulher com a cabea no fogo a gs...Ento ela foi

    ganhando um espao. Eu no sei se foi a maneira como

    Heiner Mller mostra a gura da Oflia e a funo dela no

    espetculo, como possibilidade, porque ela acaba sendo a

    instncia de possibilidade de mudana da pea, ou se foi

    a forma como eu propunha as cenas, as ideias, pra com-posio da Oflia e essas cenas de coro em funo do meu

    subtexto pessoal. Ou ainda se foram as fotos do Saudek que

    determinaram um tom para as cenas das mulheres que eu

    vou chamar de antipornograa (Farias, 2014).

    O texto das mulheres suicidadas mencionava romper com o cati-veiro em que se tornou seu prprio lar.... Nas aes que prepa-rara ela sentia que faltava algo. Conta que tinha 38 quilos (eu erabem magrinha, mas bem magrinha mesmo), e ser muito magra

    era bom para a personagem, pois acreditava que a fora de Of-lia devia vir justamente de sua fragilidade, e a atriz era muitofrgil. Comea a nos falar que Cieslak9, ator que trabalhou comGrotowsky, diz que a partitura de aes como um copo que con-tm uma chama dentro, a funo do copo a de proteger a chamapara que ela tenha oportunidade de oscilar e nunca apagar-se.

    A, um dia...me preparando para um ensaio descobri um

    ponto de vibrao da perna e achei que era uma coisa inte-

    ressante. [...] S que essa bobagem do ponto de vibrao

    da perna que no nada, pra mim ganhou uma dimen-

    so espetacular. Porque eu comecei a criar conexes e a tersubtextos que eu no tinha. Eu cava pensando na loucura

    da Oflia, essa violncia a que ela era submetida. [...] E da

    8. considerado um dos fotgrafos mais excntricos da atualidade. Tambm desenhista

    e pintor: a esttica de sua fotograa similar aos seus outros trabalhos. Embora pouco

    conhecido no Brasil, Jan Saudek o fotgrafo mais famoso da Repblica Tcheca. Seu estilo

    inclui pintar mo suas fotograas, deixando-as com tons spia e aparncia do sculo

    XIX. Seus modelos traam um comportamento teatral diante da cmera, tomando posi-

    es suaves e intensas, como se dialogassem uns com os outros ou com o cenrio pela

    linguagem corporal. (Farias, 2014, 5)9. Ryszard Cieslak, ator. Um dos maiores colaboradores de Grotowski (Farias 2014, 3)

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    comecei a criar uma ponte com minha experincia pessoal

    e comecei a pensar puxa, eu estou aqui, falando, e minha

    perninha t ali (tremendo), eu no preciso fazer muita

    coisa, ela pode car muito tempo ali e eu quei pensando

    que poderia ser uma parte do meu corpo se revoltando por

    mim. Porque eu cava pensando o que que eu tinha feito

    com a violncia a que eu tinha sido submetida?. Eu no

    tinha denunciado ningum, eu no tinha feito absoluta-

    mente nada. [...] Quantas coisas. E de certa forma esse tra-

    balho, essa perninha, me reconciliaram comigo mesma.

    (Farias, 2014)

    Tnia colou o seguinte texto partitura de aes:

    Sou a mulher na forca, a mulher com as veias cortadas. A

    mulher com excesso de dose (Ao vocal. Estica o som das

    slabas e sua voz trmula) sob os seus lbios neve. Eu a

    mulher com a cabea dentro do fogo a gs. Ontem. Ontem.

    Ontem eu parei de me matar. Estou sozinha. Com os meus

    seios. As minhas coxas. O meu ventre. Eu rebento os instru-

    mentos do meu cativeiro. A cadeira. A cama. A mesa. (Faz

    diversas pequenas aes vocais e realiza a partitura corpo-

    ral que nos mostrara anteriormente).Eu destruo. Eu des-

    truo o meu lar que era um campo de batalha. Eu escancaro

    as portas para que o vento, para que o vento possa entrar e

    os gritos... Eu despedao a janela com minhas mos san-

    grando. Eu rasgo as fotograas dos homens que eu amei

    e que se serviram de mim na cadeira, na cama, na mesa,

    no cho. Eu boto fogo na minha priso. Eu atiro as minhas

    roupas no fogo. Eu arranco do meu peito o relgio, o relgio

    em que se transformou meu corao. Eu vou pra rua. Eu

    vou pra rua. Vestindo o meu prprio sangue (Muller, Hamlet

    Machine apudFarias, 2014)

    A personagem vai embora. Muitas mulheres choram. Para ela, oobjetivo do teatro no o de exorcizar suas dores, mas sim com-partilh-las para que nos identiquemos com elas e, quem sabe,tomemos atitudes. Eu j vou acabar. Diz que ler um fragmentode uma carta de Rosa Luxemburgo que lhe mostrou o caminhopara Medeia, personagem que interpreta atualmente no maisrecente espetculo de vivncia do i Nis Aqui Traveiz:

    No ptio onde passeio chegam frequentemente carroas do

    exrcito, abarrotadas de sacos, de tnicas velhas e cami-sas de soldados, muitas vezes manchadas de sangue... [...]

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    Quanto ao soldado, metera as mos nos bolsos e passeando

    a grandes passos pelo ptio, ria e assobiava baixinho uma

    cano da moda. Diante de mim a guerra deslava em todo

    o seu esplendor.

    Sua Rosa

    Querida, que calma e alegre apesar de tudo. Assim a

    vida. preciso tom-la corajosamente, sem medo, sorrindo

    apesar de tudo. Feliz Natal!

    (Luxemburgo 2000, 77-78)10

    Conclui: Carta de Rosa Sonia no perodo em que esteve exilada,Breslau, 24 de dezembro de 1917. Obrigada.

    SAINDO DE CENA

    A desmontagem a viso, a reexo da artista sobre seu trabalho,um metadiscurso, um metarritual. Exatamente por isso ela mostraas costuras realizadas pela atuadora entre elementos da histriacomum (como as transformaes polticas pelas quais passava a

    cidade), a condio feminina, a histria pessoal da atuadora e a tra-jetria do grupo de teatro ao qual pertence. Esses elementos so asfontes nas quais ela bebe para tecer suas partituras. O pblico acre-dita que as explicaes de Tnia sobre seus subtextos ou subparti-turas so o que torna as personagens to verossmeis ou to fortes,ou ainda, o que as torna personagens. O problema fundamental, pois, o da relao entre um indivduo e o grupo, ou, mais exa-tamente, entre um certo tipo de indivduo e certas exigncias dogrupo. (Lvi-Strauss 1975, p. 198). As evocaes e a incorporao daspersonagens so parte importante para a eccia do ritual, a exe-cuo desses atos relaciona a xam com os espectadores.

    Segundo Peirano:

    Focalizar rituais tratar da ao social. Se esta ao se rea-

    liza no contexto de vises de mundo partilhadas, ento a

    comunicao entre indivduos deixa entrever classica-

    es implcitas entre seres humanos, humanos e natureza,

    humanos e deuses (ou demnios), por exemplo. Quer a

    comunicao se faa por intermdio de palavras ou de atos,

    10. Trata-se de uma anotao de uma fala, que faz a citao a partir de uma fonte da inter-net, que pode ser encontrada no endereo http://www.vermelho.org.br/noticia/38712-11

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    ela difere quanto ao meio, mas no minimiza o objetivo da

    ao nem sua eccia A linguagem parte da cultura, tam-

    bm possvel agir e fazer pelo uso de palavras. Em outros

    termos, a fala um ato de sociedade tanto quanto o ritual.

    H uma consequncia fundamental dessa constatao: a

    antropologia sempre incorpora de forma explcita ou impl-

    cita, uma teoria da linguagem (Peirano 2002, p. 9).

    Parte fundamental de qualquer teoria da linguagem a cargaemocional que as palavras ou frases ativam. Essa vinculao, noentanto, no xa. As mudanas sociais dependem da constru-o de signicados ou da ressignicao de termos antigos. H

    momentos em que esse processo evidenciado, em que a atenorecai na relao entre o termo ou o gesto e o tipo de disposio queele desperta. No se trata de uma disputa de ideias, de sentidos,de posicionamentos, de formas de compreenso. um momentoem que os elementos, a partir dos quais se constroem sentidos,seus agentes e suas dinmicas so colocados no centro do debate.

    A personagem Oflia, por exemplo, entendida a partir da reexoque Tnia realiza sobre sua criao, possibilita uma cura. Nossaxam narra como um mito a histria da concepo desta gura

    dramtica e ressalta como esse processo foi fundamental para sereconciliar consigo. Segundo Lvi-Strauss:

    A cura consistiria, pois em tornar pensvel uma situao

    dada inicialmente em termos afetivos, e aceitveis para o

    esprito as dores que o corpo se recusa a tolerar. Que mito-

    logia do xam no corresponda a uma realidade objetiva,

    no tem importncia; a doente acredita e ela membro

    de uma sociedade que acredita. [...] A doente os aceita, ou,

    mais exatamente, ela no os pe jamais em dvida. O que

    ela no aceita so as dores incoerentes e arbitrrias, que

    constituem um elemento estranho a seu sistema, mas quepor apelo ao mito, o xam vai reintegrar, num conjunto

    onde todos os elementos se apoiam mutuamente. [...] Mas

    a doente, tendo compreendido, no resigna apenas: ela sara

    (Lvi-Strauss 1975, 217).

    Essa cura no se resume recuperao de um bem estar. Trata-sede propor plateia uma conexo entre conjuntos de movimen-tos e dispositivos emocionais. a organizao do lxico indivi-dual sendo exibida na forma de convite a uma plateia que passa a

    dispor de uma referncia para lidar com esses mesmos sentidos.Os atores, para comporem seus papis, tratam acontecimentos e

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    eventos cotidianos enquanto performances. o modo como cons-troem seus subtextos. A desmontagem evidencia esse trajeto. Aprincipal contribuio que pode advir desse tipo de estudo mos-trar que a diferena entre crena e fazer crer, presente nos textosde Schechener, talvez precise ser revisada. Para ele o teatro produzum faz de conta, no necessariamente uma crena. J o ritualestaria ligado a uma crena. A distino recai, entre outros ele-mentos, no carter temporrio do fazer crer, que permite ao ator,ou a quem o assiste, sair do transe da fantasia.

    A desmontagem, ao transformar em ritual a performance elabo-rada pelo artista, nos convida a um tipo diferente de crena, no

    propriamente direcionada ao resultado obtido na encenao, masao percurso e aos objetivos almejados com a pea. Nesse sentido, o retorno ao cotidiano que passa a ser o elemento principal darepresentao. O propsito da desmontagem de Tnia, especi-camente, mostrar como ela tencionava com seu teatro instigardisposies a mudanas relativas aos papis sexuais.

    Para Schechner a diferena entre teatro e ritual est no subtexto(Schechner 2009, 784-785): no teatro, o subtexto comanda o espet-culo, enquanto que no ritual o texto governa. Ele exemplica sub-

    texto com o seguinte exemplo: pedir, como quem faz uma decla-rao de amor, que lhe passem a vasilha de manteiga. O subtextoseria o verdadeiro sentimento por trs da ao. No processo de des-montagem, o subtexto no pode ser aleatrio, ele depende de umacomunho de sentidos, de nos indignarmos juntamente com a atu-adora com a violncia que ela sofreu e de entendermos porque elaassociou tais sentimentos quela encenao. Essa ligao reduz adistncia entre subtexto e texto. A possibilidade dessa aproximaosugere que a distino entre teatro e ritual pode estar menos noevento em si e mais no que ativa de modo diverso nos participantes.

    O ator conta com a capacidade da plateia de distinguir um efeito defantasia (uma diverso momentnea ou uma sensibilizao paraelementos antes desconsiderados) de um efeito de reexo diretasobre acontecimentos e posturas vividas. Ao exibir as similaridadesentre a personagem representada e sua prpria experincia, Tnia,ao mesmo tempo que refora essa distino, convida-nos a rompercom ela. Conseguimos ver a atuadora fundida no papel encenadoao entender a carga simblica pessoal que evoca quando atua.

    O ritual nunca se encerra em si mesmo. A fora e a eccia do pro -

    cesso dependem do participante conseguir, tanto no teatro quantona desmontagem, nos convencer de que a carga emocional ativada

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    no individual e pode ser corporicada na forma especca quenos apresentada. Dizer que um ritual sempre se renova signicadizer que a relao entre a crena e o vivido esto em negociaodurante a sua realizao e depois dela (a multiplicidade de signi-cados citada por Turner). O estudo dos processos criativos nas artespossibilita entender melhor as dinmicas entre esses elementos;entre conscincia e crena; entre acordos sociais e seu empregotcito. Fornece tambm a possibilidade de exame do processo degerao de novas posturas e ideias no momento em que ocorrem.

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