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Medicina Universidades Professores Escolas Camões Educação Literatura Demografia OPINIÃO O regresso da literatura: em nome dos alunos e dos professores ANTÓNIO CARLOS CORTEZ 02/08/2014 - 00:50 Defender o regresso da literatura e da poesia ao ensino é já um primeiro passo para não transigir com a mediocridade. Seja devido a políticas educativas que menoscabam a nossa identidade, seja porque estamos no “auge da suprema prova” a que Pessoa se refere na Mensagem, debater o ensino do Português dá sempre azo a discussões acaloradas. Importa, neste âmbito, ser claro: não há um ensino digno da língua materna sem a presença da poesia nacional, seja ela a medieval, a quinhentista, a barroca, a de oitocentos ou a contemporânea. Em rigor, a arte em que a nossa cultura tem alcançado expressão universal é a poesia, não outra. É um facto. Não se discute. Discutível é haver quem, sendo professor de Português e presidente de uma Associação de Professores de Português (APP), incorra frequentemente em contradições e inverdades, perpassando sempre no seu discurso uma desconfiança quanto à pertinência da leccionação do texto literário / poético nas aulas de Português. Vêm estas linhas iniciais a propósito dos artigos de 9, 17 e 22 de Julho. No dia 9 de Julho, Helena Buescu procurava repôr a veracidade dos factos quanto ao que, nas palavras de Edviges Ferreira, APP, era a clamorosa ausência da obra de Sophia no ensino. Segundo o seu artigo de 17 de Julho, em resposta ao de dia 9, a poesia desaparecerá dos 10º e 11º anos, com a implementação das Metas e do Novo Programa!... Atravessamos, de facto, tempos de indigência... Perante a indigência tinha de haver resposta explícita. Não irei repetir o que nesse artigo de dia 9 foi, oportunamente, escrito por Helena Buescu. Remeto os leitores para a resposta de dia 22 de Julho, texto esclarecedor da equipa coordenadora das Metas Curriculares e do Novo Programa de Português, o qual devia ser saudado por quantos, querendo resgatar a disciplina de Português da padronização, condenavam há anos o desaparecimento da poesia trovadoresca (que regressa, no 10º ano), de Antero (constante, a partir de 2015, no 11º), ou de outros poetas do século XX. Bastará comparar alguns manuais escolares dos anos 80 e 90 com os que foram redigidos ao longo dos últimos quinze anos para chegarmos a uma conclusão simples: houve um tempo em que se leu criticamente e se aprendeu a pensar a literariedade dos textos. O que aconteceu de 2001 até hoje apenas beneficiou quem não tem qualquer noção da responsabilidade do acto de ensinar a língua de Camões. Sem dúvida que é de Educação Literária que se trata quando falamos de um Novo Programa que procura resgatar esta disciplina da superficialidade dos conteúdos que minimizavam, nomeadamente, o texto poético. A partir de 2015/016 podem ser leccionados, conforme a escolha e o saber de quem ensina, Jorge de Sena, António Ramos Rosa, Herberto, Luiza Neto Jorge e Ruy Belo. A poesia destes autores comparecia – residualmente – na unidade “Poesia Contemporânea” no 10º ano (a autora de O Ciclópico Acto não comparecia). Serão aprofundados, ainda no 12º ano e conforme a liberdade de escolha, Torga, Eugénio, Manuel Alegre, Vasco Graça Moura, Nuno Júdice e Ana Luísa Amaral. Podem os professores facultar aos seus alunos uma consciência mais sensível relativamente às realizações estéticas que ocorreram ao longo do nosso “século de oiro”. E que não se diga que esta lista obriga os professores a fazer uma escolha exclusivista. De entre as sugestões e conforme o corpus seleccionado, há espaço para conhecer outros textos destes poetas (e exige-se aos professores que os conheçam, sem mais). Nada impede a intertextualidade nas aulas de Português e é até desejável ensinar a ler texto complexo conforme os métodos analítico e comparativo. Ler Ruy Belo em intertexto com Herberto e estes em cruzamento com Nuno Júdice pode ser exercício hermenêutico extremamente aliciante para os alunos. E o mesmo pode ser feito – atendendo a que se fará um Exame Nacional que contemplará conteúdos do 10º ao 12º anos – quanto à revisão de poesia de outros períodos literários. Com benefício do aluno, pode o professor voltar ao Camões lírico (matéria de 10º ano) e relê-lo, no 12º ano, à luz do diálogo que Sena estabelece com o autor das Rythmas. Noutra vertente, caso o professor aceite o repto, pode – lendo Cesário no 11º ano – ver de que modo à epopeia clássica sucedem formas épicas modernas, de que “O Sentimento dum Ocidental” é exemplo maior. Logo, as Metas e o Novo Programa são de saudar. Quando, em 2001, o Português se transformou em experimentação linguística, em pragmática esterilizante, lugar do desconhecimento absoluto da nossa poesia, que comentários ouvimos de Edviges Ferreira e de outros responsáveis? Que críticas teceu TÓPICOS

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Medicina

Universidades

Professores

Escolas

Camões

Educação

Literatura

Demografia

OPINIÃO

O regresso da literatura: em nome dosalunos e dos professoresANTÓNIO CARLOS CORTEZ 02/08/2014 - 00:50

Defender o regresso da literatura e da poesia ao ensino é já um primeiro passo para

não transigir com a mediocridade.

Seja devido a políticas educativas que menoscabam a nossa identidade, seja porque

estamos no “auge da suprema prova” a que Pessoa se refere na Mensagem, debater o

ensino do Português dá sempre azo a discussões acaloradas. Importa, neste âmbito, ser

claro: não há um ensino digno da língua materna sem a presença da poesia nacional, seja

ela a medieval, a quinhentista, a barroca, a de oitocentos ou a contemporânea.

Em rigor, a arte em que a nossa cultura tem alcançado expressão universal é a poesia,

não outra. É um facto. Não se discute. Discutível é haver quem, sendo professor de

Português e presidente de uma Associação de Professores de Português (APP), incorra

frequentemente em contradições e inverdades, perpassando sempre no seu discurso

uma desconfiança quanto à pertinência da leccionação do texto literário / poético nas

aulas de Português.

Vêm estas linhas iniciais a propósito dos artigos de 9, 17 e 22 de Julho. No dia 9 de

Julho, Helena Buescu procurava repôr a veracidade dos factos quanto ao que, nas

palavras de Edviges Ferreira, APP, era a clamorosa ausência da obra de Sophia no

ensino. Segundo o seu artigo de 17 de Julho, em resposta ao de dia 9, a poesia

desaparecerá dos 10º e 11º anos, com a implementação das Metas e do Novo

Programa!... Atravessamos, de facto, tempos de indigência... Perante a indigência tinha

de haver resposta explícita. Não irei repetir o que nesse artigo de dia 9 foi,

oportunamente, escrito por Helena Buescu. Remeto os leitores para a resposta de dia

22 de Julho, texto esclarecedor da equipa coordenadora das Metas Curriculares e do

Novo Programa de Português, o qual devia ser saudado por quantos, querendo resgatar

a disciplina de Português da padronização, condenavam há anos o desaparecimento da

poesia trovadoresca (que regressa, no 10º ano), de Antero (constante, a partir de 2015,

no 11º), ou de outros poetas do século XX. Bastará comparar alguns manuais escolares

dos anos 80 e 90 com os que foram redigidos ao longo dos últimos quinze anos para

chegarmos a uma conclusão simples: houve um tempo em que se leu criticamente e se

aprendeu a pensar a literariedade dos textos. O que aconteceu de 2001 até hoje apenas

beneficiou quem não tem qualquer noção da responsabilidade do acto de ensinar a

língua de Camões. Sem dúvida que é de Educação Literária que se trata quando falamos

de um Novo Programa que procura resgatar esta disciplina da superficialidade dos

conteúdos que minimizavam, nomeadamente, o texto poético.

A partir de 2015/016 podem ser leccionados, conforme a escolha e o saber de quem

ensina, Jorge de Sena, António Ramos Rosa, Herberto, Luiza Neto Jorge e Ruy Belo. A

poesia destes autores comparecia – residualmente – na unidade “Poesia

Contemporânea” no 10º ano (a autora de O Ciclópico Acto não comparecia). Serão

aprofundados, ainda no 12º ano e conforme a liberdade de escolha, Torga, Eugénio,

Manuel Alegre, Vasco Graça Moura, Nuno Júdice e Ana Luísa Amaral. Podem os

professores facultar aos seus alunos uma consciência mais sensível relativamente às

realizações estéticas que ocorreram ao longo do nosso “século de oiro”. E que não se

diga que esta lista obriga os professores a fazer uma escolha exclusivista. De entre as

sugestões e conforme o corpus seleccionado, há espaço para conhecer outros textos

destes poetas (e exige-se aos professores que os conheçam, sem mais). Nada impede a

intertextualidade nas aulas de Português e é até desejável ensinar a ler texto complexo

conforme os métodos analítico e comparativo. Ler Ruy Belo em intertexto com

Herberto e estes em cruzamento com Nuno Júdice pode ser exercício hermenêutico

extremamente aliciante para os alunos. E o mesmo pode ser feito – atendendo a que se

fará um Exame Nacional que contemplará conteúdos do 10º ao 12º anos – quanto à

revisão de poesia de outros períodos literários. Com benefício do aluno, pode o professor

voltar ao Camões lírico (matéria de 10º ano) e relê-lo, no 12º ano, à luz do diálogo que

Sena estabelece com o autor das Rythmas. Noutra vertente, caso o professor

aceite o repto, pode – lendo Cesário no 11º ano – ver de que modo à epopeia clássica

sucedem formas épicas modernas, de que “O Sentimento dum Ocidental” é exemplo

maior. Logo, as Metas e o Novo Programa são de saudar.

Quando, em 2001, o Português se transformou em experimentação linguística, em

pragmática esterilizante, lugar do desconhecimento absoluto da nossa poesia, que

comentários ouvimos de Edviges Ferreira e de outros responsáveis? Que críticas teceu

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a presidente da APP a respeito de unidades como a de “Textos Transaccionais”, por

meio de cujo ensino os alunos nada mais tinham de saber senão como fazer declarações,

actas, redigir ofícios ou inventar regulamentos? Os manuais escolares, com

questionários infantis e pejados de fichas gramaticais alienantes nunca lhe mereceram a

mais leve crítica. Zurziu contra a diluição dos conteúdos literários nos programas de

Português e a eliminação de autores como Bocage, alguns neoclássicos, António Nobre

ou Camilo Pessanha? Se Edviges, como quer fazer parecer no seu artigo de 17 de Julho,

se preocupa tanto com o desaparecimento da poesia, por que razão não exige o retorno

da poesia desses mesmos autores em próximos programas?

Lembremos, para que conste, o que disse Edviges Ferreira, em Novembro de 2013,

quando as Metas e o Novo Programa estavam em discussão pública: "Fiz uma leitura

em perfeita diagonal, e só me centrei um bocadinho mais a nível do corpus literário.

Senti que tinha voltado à época em que havia um programa de Português A e um B. O

A com uma literatura para os alunos que seguiam Humanidades e o B virado para os

alunos que seguiam Economia, Medicina e cursos técnicos". Uma mentira, própria de

quem leu “em perfeita diagonal”... Com o Novo Programa declarava: "retrocede[mos]

20 anos", pois o "corpus literário [é] extremamente profundo". Extraordinário! Então,

mas ensinar Português não é trabalho sobre os textos; trabalho esse que deve ser

realizado profundamente? Que diria Antero?

Como defendeu Vítor Aguiar e Silva, só com aulas de Português onde seja evidente uma

lógica “textocêntrica” - primacialmente focada no ensino da linguagem poética – será

possível facultar aos alunos “a ontologia da obra literária” (Aguiar e Silva, Vítor M., “O

Texto Literário e o Ensino da Língua Materna” in As Humanidades, Os Estudos

Culturais, O Ensino da Literatura, Almedina, p.183). A literatura anima as ideias,

confere um quadro referencial mais alargado e leva à leitura do texto crítico,

precisamente o registo escrito que os nossos alunos não dominam porque lhes falta

contacto com o ensaísmo. Em Para que Serve a Literatura (Deriva, 2010), de Antoine

Compagnon, podemos ler: “A literatura, ao expressar a excepção, proporciona um

conhecimento diferente do conhecimento erudito. [...] O seu pensamento é heurístico

(nunca deixa de procurar), não algorítmico.” (p.48).

Sobretudo, que se fale a verdade. A presidente da APP, em tempos, chegou mesmo a

afirmar que este Novo Programa faria dos alunos “especialistas em literatura”... Quem

dera! Jorge de Sena, engenheiro de formação, ou Torga, um médico, comprovam à

saciedade que saber-se literatura é estar dentro da vida. Exige-se, assim, que em

futuras revisões dos Novos Programas haja essa vontade de inquirir o sentido dos

textos, dando aos alunos e professores a dignidade que merecem. Carlos de Oliveira,

Mário Cesariny, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, eis alguns poetas sem os quais

não podemos citar “Arte Poética II”, de Sophia – a intransigência sem lacuna é fruto

do contacto com a nossa cultura literária. Defender o regresso da literatura e da poesia

é já um primeiro passo para não transigir com a mediocridade.

Professor e crítico literário

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