o reencontro com sua identidade - marcelo ikeda

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O reencontro com sua identidade Marcelo Ikeda* A 47a. edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro foi uma edição histórica! O mais tradicional e importante festival de cinema no país estava passando por um período de crise. Com o surgimento de outros festivais de cinema, como o Festival do Rio e Paulínia, o Festival de Brasília estava buscando reencontrar sua identidade na cena brasileira. E um festival com a tradição de Brasília precisava resgatar seu espírito crítico e provocativo. Sob a coordenação de Sara Rocha, neta de Glauber Rocha, esta edição de 2014 apostou numa curadoria que privilegiou filmes que buscavam a ousadia, a inquietude e o espírito crítico. Todos os seis filmes exibidos na Mostra Competitiva proporcionaram enormes debates sobre as possibilidades no cinema brasileiro de hoje. Os filmes apresentaram modos de produção que fogem do convencional, com formatos híbridos entre a ficção e o documentário. Sem pena, de Eugenio Puppo, e Brasil S/A, de Marcelo Pedroso, dialogaram com a tradição política do Festival. Outros filmes já optaram por um olhar intimista, como Pingo d´água, de Taciano Valério, Ventos de agosto, de Gabriel Mascaro e Ela volta na quinta, de André Novais. O vencedor do prêmio de melhor filme - Branco sai, preto fica, de Adirley Queirós - parte da situação de opressão dos moradores da Ceilândia para compor uma fábula política futurista. A periferia explode em toda a sua potência criativa. Ou seja, os filmes foram da macro à micropolítica. Ao final, um gesto político coroou o espírito do festival. Os realizadores decidiram dividir entre si o principal prêmio do festival, de R$250mil. Com esse gesto, percebe-se que mais do que uma competição, o espírito dos filmes exibidos é o da troca, é o do compartilhamento de olhares. Mais do que a disputa por um prêmio em dinheiro, o que estava em jogo é a pluralidade da convivência de olhares, o respeito à diferença, a possibilidade de todos esses

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Texto para o site R7 sobre o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro - 2014

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Page 1: O Reencontro Com Sua Identidade - Marcelo Ikeda

O reencontro com sua identidade

Marcelo Ikeda*

A 47a. edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro foi uma edição histórica! O mais tradicional e importante festival de cinema no país estava passando por um período de crise. Com o surgimento de outros festivais de cinema, como o Festival do Rio e Paulínia, o Festival de Brasília estava buscando reencontrar sua identidade na cena brasileira. E um festival com a tradição de Brasília precisava resgatar seu espírito crítico e provocativo. Sob a coordenação de Sara Rocha, neta de Glauber Rocha, esta edição de 2014 apostou numa curadoria que privilegiou filmes que buscavam a ousadia, a inquietude e o espírito crítico.

Todos os seis filmes exibidos na Mostra Competitiva proporcionaram enormes debates sobre as possibilidades no cinema brasileiro de hoje. Os filmes apresentaram modos de produção que fogem do convencional, com formatos híbridos entre a ficção e o documentário. Sem pena, de Eugenio Puppo, e Brasil S/A, de Marcelo Pedroso, dialogaram com a tradição política do Festival. Outros filmes já optaram por um olhar intimista, como Pingo d´água, de Taciano Valério, Ventos de agosto, de Gabriel Mascaro e Ela volta na quinta, de André Novais. O vencedor do prêmio de melhor filme - Branco sai, preto fica, de Adirley Queirós - parte da situação de opressão dos moradores da Ceilândia para compor uma fábula política futurista. A periferia explode em toda a sua potência criativa. Ou seja, os filmes foram da macro à micropolítica.

Ao final, um gesto político coroou o espírito do festival. Os realizadores decidiram dividir entre si o principal prêmio do festival, de R$250mil. Com esse gesto, percebe-se que mais do que uma competição, o espírito dos filmes exibidos é o da troca, é o do compartilhamento de olhares. Mais do que a disputa por um prêmio em dinheiro, o que estava em jogo é a pluralidade da convivência de olhares, o respeito à diferença, a possibilidade de todos esses olhares diferentes conviverem ali, sem que se precise dizer que um olhar é "melhor" do que o outro. Esse lindo gesto coroou o encerramento dessa já histórica edição do Festival de Brasília.

*Marcelo Ikeda é professor do Curso de Cinema da Universidade Federal do Ceará. Organizador da Mostra Cinema de Garagem. Escreve nos sites www.marceloikeda.com e www.cinecasulofilia.blogspot.com