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Faculdade de Letras - UFRJ O QUEM DA ASTÚCIA EM TUTAMEIA Ana Maria Bernardes de Andrade 2013

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Faculdade de Letras - UFRJ

O QUEM DA ASTÚCIA EM TUTAMEIA

Ana Maria Bernardes de Andrade

2013

2

O QUEM DA ASTÚCIA EM TUTAMEIA

Ana Maria Bernardes de Andrade

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura da Universidade Federal do

Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do

Título de Doutor em Ciência da Literatura (Poética)

Orientador: Prof. Doutor Manuel Antônio de Castro

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2013

3

O quem da astúcia em Tutameia

Ana Maria Bernardes de Andrade

Orientador: Professor Doutor Manuel Antônio de Castro

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da

Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte

dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência

da Literatura (Poética).

Examinado por:

______________________________________________________________________

Presidente, Prof. Doutor Manuel Antônio de Castro – UFRJ

______________________________________________________________________

Profa. Doutora Martha Alkimin – UFRJ

______________________________________________________________________

Prof. Doutor Igor Fagundes – UFRJ

______________________________________________________________________

Profa. Doutora Ângela Maria Guida – UFMT

______________________________________________________________________

Prof. Doutor Antônio Máximo Ferraz – UFPA

______________________________________________________________________

Profa. Doutora Angélica Maria Soares –UFRJ (Suplente)

______________________________________________________________________

Profa. Doutora Idalina Azevedo da Silva - UFRJ (Suplente)

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2013

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FICHA CATALOGRÁFICA

Andrade, Ana Maria Bernardes de.

O quem da astúcia em Tutameia/ Ana Maria Bernardes

de Andrade. - Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras, 2013.

203 p.; il.

Orientador: Manuel Antônio de Castro

Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/

Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, 2013.

Referências Bibliográficas: p. 198-203.

1. Literatura Brasileira – Séc. XX. 2. Rosa, João

Guimarães. 3. Tutameia : Terceiras estórias. 4. Poética. 5. Astúcia. 6.

Mitos gregos. I. Castro, Manuel Antônio de. II. Universidade

Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título.

5

Dedicado à memória de meu pai,

Francisco Tarcízio de Andrade,

o Tarcízio da Pantera.

6

Agradecimentos

Agradecer é reconhecer a importância do cuidado e do amor das pessoas,

que nos iluminam enquanto a gente atravessa de uma margem a outra.

Agradeço poder agradecer aos luminares que me favoreceram nesta jornada.

Aos deuses e poetas, de nomes muitos, inesquecíveis, inenarráveis.

À Cleusa Bernardes, melhor mãe de todas, que segura todas as minhas

ondas, artista, poeta, professora querida, e que ainda por cima revisou esta tese.

À minha filha, Bárbara, legal, divertida, antenada, me renasce a cada dia.

Leitora dos mitos da atualidade, nossos diálogos foram fundamentais para a

escrita da tese. Aos meus sobrinhos Luíza, Paulo e José Francisco, meus irmãos,

Débora e Ênio, Cleide e Luana, toda a família, pelo amor do berço. Ao Samuel,

parceiro do destino, pela presença.

Aos amigos que me receberam no Rio: Larissa, Rita, Cláudia, André, Jun,

Joana, Dau, Ieda, pela gentileza e portas abertas. À Aline, pela acolhida, ao

Josué, ao Castor, aos novos vizinhos, Maria, Pardal, Osmar, Chico, Roosivelt,

Guto, Clarissa, e aos de longe que me alegraram com suas visitas: Flaviene e

David, Ana Paula, Marcelo e Manuela, Sandrita, Amália, Jorge, os Porcas.

Ao sempre mestre, Manuel Antônio de Castro, tão sábio guia a abrir os

caminhos, Aristeu de Miguilim. A ele dedico as palavras que o Rosa escreveu a

seu tradutor italiano:

“Você é um MONSTRO. Você entrou em todas as células do

livro, arejando-o sem o amarrotar, trazendo-lhe vida. Chego a

ter medo para trás: imagine, se não tivesse sido Você...”

E ao Guimarães Rosa, sempre, por tudo. Ave!

7

Divino Pã, e vós deuses outros destas paragens!

Dai-me a beleza da alma, a beleza interior e fazei com que

o meu exterior se harmonize com essa beleza espiritual.

Que o sábio me pareça sempre rico; que eu tenha tanta

riqueza quanto um homem sensato possa suportar e

empregar!

Teremos mais alguma coisa a desejar?

Creio que pedi o suficiente.

Fedro, Platão (2007: 125).

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Lista de Figuras

Figura 1: Ilustrações do miolo de Tutameia : moeda caranguejo /coruja ........... 40

Figura 2: Moeda da Sicília Púnica, Magna Grécia: caranguejo (Hefesto) ........... 41

Figura 3: Dracma, antiga moeda de Atenas: coruja (Atena) ............................... 41

Figura 4: Nascimento de Atena, ânfora ateniense, circa 550 a.C. ........................... 59

Figura 5: Atena, relevo do Museu da Acrópole em Atenas, século V a.C. ........ 75

Figura 6: Retorno de Hefesto ao Olimpo, ânfora da Magna Grécia,

circa 600 a.C. .............................................................................................. 101

Figura 7: Hermes, vaso ático, 500-450 a.C. ............................................................. 117

Figura 8: Publicação original de “Aletria e hermenêutica”, com o título

“Risada e meia”, A Manhã, RJ, 4 maio 1954 ......................................... 128

Figura 9: Porções de aletria decoradas com letras ............................................... 138

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Sumário

Apresentação – Se eu seria personagem ................................................................ 13

Introdução – A astuta Tutameia .............................................................................. 18

Repercussão ..................................................................................................... 27

O figurar da obra ............................................................................................. 36

A estória de Romão e Nhemaria .................................................................. 45

As questões da astúcia ................................................................................... 47

Capítulo 1 – A barriga do rei ................................................................................... 58

Ouro de tolo .................................................................................................... 62

A medida do destino ...................................................................................... 68

Capítulo 2 – Olho de coruja .................................................................................... 71

O relevo de Atena ........................................................................................... 75

Casa da palavra ............................................................................................... 80

Armas de guerreiro, casa de bronze ............................................................. 87

Flor da boca, casa do ser ................................................................................ 89

Capítulo 3 – Infinito circular ................................................................................... 92

O caranguejo: seu corpo mascarado ............................................................. 94

A outra face .................................................................................................... 100

A rede de Hefesto ......................................................................................... 108

10

Capítulo 4 – A luz do verbo ................................................................................... 115

Iscas de palavras ........................................................................................... 118

Artes do fogo ................................................................................................. 121

A primeira nota ............................................................................................. 122

Bênção, padim ............................................................................................... 124

Oroboro .......................................................................................................... 126

O sentido da hermenêutica .......................................................................... 132

Aletria, doce palavra .................................................................................... 138

- Eu vim para confundir... ............................................................................... 142

A estória do gigante ...................................................................................... 148

E o autor não diz nada ..................................................................................... 150

- Sou, mas quem não é? ................................................................................... 154

O poder da criação ........................................................................................ 157

Capítulo 5 – Travessia ............................................................................................. 166

A dupla origem de Ulisses ......................................................................... 168

O destino de Ulisses ..................................................................................... 170

Mares de morros ........................................................................................... 176

No eco da Odisseia ......................................................................................... 179

Temulentus sumus ........................................................................................ 181

A odisseia de Chico, o herói ........................................................................ 189

Terceira margem ........................................................................................... 194

Conclusão .................................................................................................................. 197

Referências ................................................................................................................ 199

11

Resumo

Esta tese propõe uma leitura de Tutameia — Terceiras Estórias, último livro

publicado em vida por João Guimarães Rosa (1967). A hipótese inicial é que a

composição de Tutameia seja orientada pela astúcia poética. Nesse sentido,

propõe um diálogo entre as Terceiras Estórias e os mitos gregos da astúcia –

Métis, Atena, Hefesto, Hermes e Ulisses –, à luz do pensamento de Heidegger.

Trata-se de uma obra ainda pouco estudada pela crítica, que a considera

demasiadamente hermética. Neste livro, o autor se vale de todos os recursos

disponíveis, da retórica à tipografia, para capturar em suas malhas o leitor e

convocá-lo ao trabalho, árduo e prazeroso, de lê-lo, letra por letra. Tutameia

coloca questões fundamentais para Guimarães Rosa, cuja obra transita na

ambiguidade das regiões fronteiriças. Este estudo pretende vislumbrar na

leitura deste livro o sentido da astúcia na travessia humana: a valorização de

uma sabedoria que supere a megera cartesiana, que reaproxime a gente de uma

essência esquecida. Astúcia poética é saber que tudo é e não é. O exercício

hermenêutico de leitura do livro leva a uma nova leitura do mundo, sem

verdades acabadas nem soluções definitivas: a busca não tem fim, pois sempre

coloca uma nova questão. A astúcia deste livro está em justamente desvelar

velando, iluminar sombreando, explicar confundindo. A cada nova investida,

novos pontos são levantados, tornando mais complexa a visão que ele articula.

• Palavras-chave: João Guimarães Rosa, Tutameia – Terceiras Estórias, Astúcia,

Poética, Mitos gregos

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Abstract

This thesis proposes a reading of Tutameia – Terceiras Estórias, the last book

published by João Guimarães Rosa (1967) while he was still alive. The initial

hypothesis is that the writing of Tutameia was guided by poetic astuteness. In

this sense, the thesis proposes a dialogue between the Terceiras Estórias, the

Greek myths of astuteness – Metis, Athena, Hephaestus, Hermes and Odysseus

– and Heidegger’s ideas. Tutameia presents fundamental issues for Guimarães

Rosa, whose literary work lies on the border of ambiguity. This study aims to

discern in this book the meaning of astuteness in human life: the value of

wisdom that overcomes the Cartesian shrew – that reconnects us with an

essence that has been forgotten. Astuteness is the knowing that everything is

and it is not. A hermeneutic reading of the book leads to a new reading of the

world, without finished truths or definite solutions: the search is endless, for it

always brings up new issues. This book’s astuteness lies precisely in its

unveiling and hiding, in its enlightening and obscuring, in its explaining and

confounding. With each new trial, new points are raised, making more complex

the viewpoint it articulates. Consequently, Tutameia has been little studied by

critics, who consider it far too hermetic; however, its importance deserves to be

reflected upon more carefully by Rosa’s readers.

Keywords: João Guimarães Rosa (1908-1967), Tutameia – Terceiras Estórias,

Poetic, Astutenes, Greek myths

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Apresentação

Se eu seria personagem

Note-se e medite-se. Para mim mesmo, sou

anônimo; o mais fundo dos meus pensamentos não

entende minhas palavras; só sabemos de nós

mesmos com muita confusão.

(Rosa, 1967: 138).

Uma obra de arte nos lança questões. Uma questão que Tutameia –

Terceiras Estórias, de Guimarães Rosa, coloca de cara é o significado de seu

título. Por que terceiras, se as estórias anteriores eram as primeiras, e o que quer

dizer tutameia? Sobre o enigmático vazio entre as primeiras e as terceiras, as

aventadas segundas estórias, muito vem imaginando a crítica, em momento

oportuno talvez esta questão seja aqui retomada. Gostaria de trazer de início,

porém, uma reflexão sobre o termo tutameia.

Esta palavra me move a uma vereda difícil de desemaranhar de mim,

pois que remonta à minha origem. Tutameia quer dizer ninharia, preço baixo,

pechincha, pouco valor, coisa que não dá dinheiro. Sei da boca dos meus

parentes lá do Ibiá, da infância, de hoje e sempre. Trata-se de termo regional, de

Minas, do lugar de onde, de primeiro, eu em menina lia Sagarana e Primeiras

estórias, que parecia que estavam se passando ali, naquele cenário, diante dos

meus olhos, e me encantava. Com o Rosa, menina, eu vi: meu mundo era

mágico e rico, a fala de meu povo era de se escrever em livro.

Já estudante de Letras, soube que Tutameia era título de uma obra de

Guimarães Rosa. Pensei comigo: o danado do Rosa tinha então registrado

aquela palavra do povo da roça como título de uma de suas obras, legando

imortalidade e fama ao humilde vocábulo caipira? Ele era mesmo demais! O

professor disse que aquele era o livro mais difícil do Rosa, inclusive de

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encontrar para comprar, pois estava esgotado. Procurei em todos os sebos e

nada. Os da biblioteca estavam sempre indisponíveis: teriam sido surrupiados?

Enquanto isso, comecei um estágio na Editora UFMG, que me levou a

pesquisar a importância do aparato editorial na produção social do sentido. Ao

lado da empolgação em descobrir um novo campo de estudo, vivi a frustração

de perceber que aqueles elementos, tão significativos, eram pouco explorados

nos livros didáticos, objeto de estudo sugerido pelo orientador da pesquisa.

Depois do trabalho e das aulas noturnas, no campus da Pampulha, com o

Grande sertão: veredas na mochila, encontrava os amigos no Bar do Lulu, reduto

da contracultura, no bairro Santo Antônio, perto da antiga Fafich, esquina da

rua Cristina com a Carangola, onde se lia a placa: “Nesta casa viveu o escritor

Guimarães Rosa”. Em meio às esquetes dos alunos do vizinho Teatro

Universitário, ao som de Deep Pourple, bebendo cerveja, quiçá tequila, colados

da galera mais roquenrol de Belo Horizonte, a gente lia o Rosa na mesa, às vezes

em voz alta. Envoltos na festa dionisíaca, a gente tentava entender o vasto

mundo, o sentido da vida, numa temulice crônica que fazia andar em círculos,

tangendo pato. No fim, só o silêncio e o negror das pupilas diante do espelho

num banheiro imundo: eu via o demo? Se não me falha a memória, acho até que

algumas vezes eu cheguei a conversar com a tal placa. Vinte anos...

Como o alferes no espelho, porém, eu já não sabia quem eu era. Entre o

campo e a cidade, minha juventude ia se consumindo em satisfazer as

demandas, construir uma carreira lucrativa, passar num concurso público, até

entrar para a política era uma opção de futuro naquele momento. E no correr

dos anos, entre tarefas e celebrações, a vida ia, divagando, sufocada. Precisava

urgentemente dar um tempo em uma ilha deserta. Encontrar a mim mesma.

Como no sucesso daquela época: “Quero assistir ao sol nascer, ver as águas do

rio correr, ouvir os pássaros cantar, deixe-me ir, preciso andar...”

Sentia a proximidade das Veredas Mortas, dali a pouco seria inevitável o

pacto. Era preciso dar o salto para o ser, aprofundar as experiências, alçar-me

em voos delíricos, extravasar a linguagem, me perder de mim para alcançar o

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sou, apropriar-me do que me era próprio, sair daquele círculo de ruídos

viciosos. Voltar à origem, ir além. Ouvir o silêncio, atravessar o Liso. Carecia de

ter coragem. Precisava me preparar para enfrentar a batalha.

Fui parar em Caraíva, Porto Seguro, onde o Brasil começou. De frente

para o mar, mirar o horizonte amplo e sentir-se pulsando em vibração com o

universo. Professora pública, voto de pobreza, vida alternativa, contato com a

natureza, sem notícias da civilização, sem luz elétrica, telefone, correio, polícia,

médico. Lata d’água na cabeça. Aprendi melhor dançar forró e entender em

amor as pessoas, a natureza. Mas o fundo de mim, ainda, nada.

Eis que em mais um dia ensolarado e lindo, quando exercia alegremente

minha tarefa voluntária de estar com as crianças na biblioteca comunitária,

organizando a estante de literatura, encontrei: Tutameia doação de um turista.

Comecei a ler ali mesmo, na hora. E não parei mais, até hoje.

Conto como foi que começou.

Vi que o danado do livro era difícil mesmo. Eu me gabava de conhecer o

Rosa, ser sua conterrânea, parente em espírito, e aquilo para mim era grego. Era

desaforo, não podia. Ali fiz meu juramento: vou me dedicar a ler este livro, a

vida inteira se preciso for, mas um dia eu vou entender esse trem.

Para entender Tutameia eu quis sair do limbo paradisíaco em que me

escondia, assumir minha posição, encarnar meu destino: voltar para a

faculdade, concluir meu curso, fazer mestrado e doutorado sobre este livro.

Nem pensava em carreira docente, só em ter bolsa de estudo, para poder ficar

uns anos dedicada somente à leitura daquelas estórias.

Quando enfim retornei ao mundo civilizado, a família respirou aliviada.

Mas, quando anunciei meu plano de me dedicar a estudar um livrinho de

estórias, ainda por cima chamado Tutameia, meu pai, finório comerciante

ibiaense, disse, jocoso:

“ Tutameia? Não tinha ao menos um livro com nome melhor, não? Isso

não dá dinheiro!...” – o que era astuta piada, a confirmar meu destino.

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Já lá se vão muitos anos, muita coisa tem mudado, mas até hoje, graças a

Deus, o Rosa nunca me faltou. Eu posso até dizer que ele é o homem que me

banca. Graças ao legado dele, tive assunto para mestrado e doutorado, nas

melhores escolas, que eu escolhi, com bolsas de estudo e pesquisa financiadas

pelo governo, ainda por cima agora podendo contar com a orientação de um

profundo conhecedor e apreciador da obra rosiana, tão sábio e humano: Manuel

Antônio de Castro. O Rosa me trouxe até ele, tenho certeza. Soprou no meu

ouvido: doutorado no Rio de Janeiro, na UFRJ. Ouvi, vim, estou aqui. Amém.

Isso porque o Rosa salva, garante. Mas ele exige muito. Faz para mais de quinze

anos desde aquele dia na biblioteca de Caraíva, e só agora a tese está saindo.

Tem que ser uma bagaceira para valer tanto tempo. Preciso honrar o empenho.

Aquela escolha, aquele compromisso levaram-me a vivenciar a maior

parte dos acontecimentos que me constituem, que fizeram e fazem eu ser quem

sou e serei. Nessas andanças e mudanças, buscando realizar minha pesquisa,

acabei por conhecer amigos, amores, gerar minha filha, desenvolver projetos,

trabalhar, aprender a cultivar uma ideia até ela brotar no real, sair para a luz.

A necessidade de realização da pesquisa levou-me a viver em diferentes

cidades: Belo Horizonte, onde me graduei na UFMG; Campinas, para onde me

mudei, para fazer o mestrado na Unicamp, de olho nas bolsas mais gordinhas

da Fapesp; Aracaju, onde fui morar logo após a defesa da dissertação, já

contratada pela Universidade Tiradentes (Unit) para ensinar Literatura no curso

de Letras. Tudo ia de vento em popa. Aí, meu pai fingiu que morreu.

Desesperada, voltei para Minas. Lá, fui professora substituta na Universidade

Federal de Uberlândia, onde me encontrava quando me mudei para o Rio, para

fazer o doutorado. E só Deus sabe o que me aguarda daqui em diante.

A dedicação, o empenho e o entusiasmo em me dedicar a este livro não

são mera vaidade bairrista, sequer vontade de gozo em exegese lúdica porém

fútil, gratuita. Acredito que Tutameia seja uma obra substancial, onde vigoram

potências de pensamento e linguagem, em palavras depuradas, sopros de som

vertidos em imagem e sentido que nos permitem dialogar.

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Palavras dispostas em livro, que é como em geral se apresentam as obras

literárias, com os recursos de edição vigentes. Sem luxo, sem pompa, apenas

tutameias. Mas o Rosa não era bobo. Queria que em cada canto do livro que o

leitor batesse o olho, se produzisse o operar da obra. Por isso nele tanto me

esmero, na busca do que me é próprio, verdade que se revela no operar da obra.

Hoje, na janela do meu quarto, no bairro histórico de Santa Teresa, sou a

mesma menina da janela do bairro Rosa Maria, em Ibiá? Vejamos: onde era

morro, é morro. Onde era o trem, é o bonde. Onde era o pé de abacate, é o

abacateiro. Onde dormiam os pais, hoje dorme a filha. Acato. Sou eu e outra.

Mas sinto que ainda preciso viver muito, ser estrangeira e velha para

saber melhor certas passagens de Tutameia. Abro as picadas que posso, com os

meios de que disponho. Vou lançar para fora, com a ajuda do mestre parteiro,

isso que em mim vigora, e que caia no mundo, e que engrosse o caldo da arte, o

coro das Musas, filhas da Memória, e o canto de Hermes, mensageiro dos

deuses, a guiar os homens na travessia do destino, entre vida e morte.

Viver é uma obra de arte. Se na espiral do destino, do que me é dado,

encontro-me em um novo início, rezo a Deus e aos deuses que me auxiliem a

cada passo, pois tenho consciência de que não é à toa que me vem esta

oportunidade. Que a recordação de tudo que vivi se junte a tudo que estudei, e

que meus olhos e ouvidos se abram sempre para o concertar inédito do mundo.

Que eu saiba realizar o que este livro quer de mim. Não vai fazer nem sombra

com o vulto da obra do Rosa, mas espero que sirva para alguma coisa.

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Introdução

A astuta Tutameia

Proponho uma leitura de Tutameia — Terceiras Estórias, último livro

publicado em vida por João Guimarães Rosa (1967), em continuidade à

pesquisa de mestrado, “A velhacaria nos paratextos de Tutameia – Terceiras

estórias, de Guimarães Rosa” (IEL-Unicamp, 2004).

Alguns pontos trabalhados no mestrado são fundamentais para o

entendimento da tese. Por isso, sempre que necessário, trarei fragmentos da

dissertação, em itálico, para que o estudo que venho realizando se apresente de

forma completa. Optei por este recurso que dialoga com os itálicos de Tutameia,

poupa-me da reescrita e, ao leitor, da necessidade de consultar a dissertação

para melhor compreender alguma passagem. Além disso, permite assinalar

mudanças e permanências na minha abordagem, nesses dois momentos de

escrita, entremeados por um intervalo de nove anos de vivências.

O título da tese, “O quem da astúcia em Tutameia”, retoma o da

dissertação, modificando-o, para ficar mais preciso e enxuto. Troquei

“velhacaria” por “astúcia”, pois a recepção do texto anterior revelou-me que o

primeiro termo tem um peso altamente pejorativo, que não me interessava

trazer para a cena logo de cara. Além disso, “astúcia” relaciona-se claramente

com os mitos gregos, que já desde a dissertação eu percebera presente na obra

em foco e que acabaram por se configurar como a espinha dorsal da tese, que

dedica um capítulo a cada um dos deuses astucioso: Métis, Atena, Hefesto,

Hermes e, por último, o humano Ulisses, num diálogo com Tutameia.

“O quem” remete ao “Cara-de-Bronze”, de Corpo de Baile, em que o

protagonista manda o vaqueiro Grivo viajar pelo sertão a procurar “o quem das

coisas”, e depois voltar e contar para ele, que já estava doente e nunca mais

poria os olhos em sua terra distante. Quis dizer essência presentificada. O quem

da astúcia apresenta-se em Tutameia, está no DNA de cada conto-célula que

compõe este corpo-livro, obra viva que vivifica.

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Omiti o outro título do livro e o nome do autor, além do gennettiano

“paratextos”, os primeiros por mera economia vocabular, o último por não

coadunar com a proposta da Poética, que se coloca diante da obra e a escuta. E

por falar em escuta, a repetição da sílaba “tu” nos dois nomes que compõem

assim o título deram-lhe uma sonoridade melódica. E ficou havendo esta, que

ora se vos apresenta: “O quem da astúcia em Tutameia”.

É importante ressaltar que trato apenas das cinco primeiras edições do

livro, lançadas pela Livraria José Olympio Editora, e que tiveram a participação

do autor em sua configuração, como adiante se verá. As edições atuais não

apresentam o mesmo projeto gráfico, sequer as ilustrações, fundamentais para a

interpretação da obra que aqui proponho. As atuais edições da obra rosiana,

publicadas pela Nova Fronteira, não levam em conta o trabalho editorial realizado pelo

próprio autor, lamenta Covizzi (2003), que traz como exemplo deste cuidado uma lista,

manuscrita pelo autor, de motivos para a capa de Tutameia, sugeridos a Luís Jardim,

responsável pelas ilustrações do volume.

A sisífica tarefa de buscar o projeto estético de Guimarães Rosa nas cifras dos

paratextos de Tutameia, pretendida nesta dissertação, parte do princípio de que existe

aí uma intensa elaboração teórico-criativa do autor acerca de si mesmo, de sua obra, de

suas intenções como escritor, de sua relação com a literatura. Em alguns momentos,

esses sinais parecem servir apenas para despistar. Mas talvez a informação adquirida

naquela volta inútil risque um fósforo em uma outra parte do texto.

Tais elementos remetem-nos a questões caras a Guimarães Rosa, que explorava

em suas obras os limites entre realidade e ficção, autoria e citação, inspiração e trabalho,

início e fim, consciência e inconsciência, eu e outro, destino e livre arbítrio etc. Na

delimitação desses conceitos, opostos e complementares, é sempre enfatizada pelo autor a

ambiguidade das regiões fronteiriças, onde tudo é e não é (cf. Candido, 1983; Sperber,

1976, 1982; Galvão, 1972, Novis, 1989, Arrigucci, 1995, Duarte, 2001, Castro, 1976.)

O diálogo com os mitos gregos da astúcia – Métis, Atena, Hefesto,

Hermes e Ulisses –, e com o pensamento de Heidegger, que aqui proponho,

busca expandir a leitura realizada no mestrado, lançando nova luz às questões

colocadas por esta obra literária.

20

Tutameia é uma coletânea de contos, compilados da revista médica semanal

Pulso (onde, entre 1965 e 1967, o autor alternava-se na seção de literatura com Carlos

Drummond de Andrade, amigo, conterrâneo e colega farmacêutico), reordenados,

acrescida de dois d’O Globo (1961) e antecedida de um prefácio inédito, ou quase.

A necessidade de contribuição quinzenal para o periódico obrigou o

Rosa a levá-las a lume, e o número exíguo de laudas de que dispunha forçou os

cortes, que acabaram por compactar ainda mais a já intensa prosa poética que

brota das estórias rosianas. Sobre esta tarefa hebdomadária, confidencia o

escritor a Manuel Bandeira (apud Costa, 2006: 11):

Começo a escrever, um mundo de coisas, ideias, imagens,

reminiscências, me acodem. Escrevo cinco, dez, quinze páginas. É

preciso reduzir a três. Começo a cortar, começo a corrigir. Aí tomo

gosto. Nunca se acaba de corrigir. O meu desejo é então continuar a

corrigir até o fim da minha vida. Mas há que entregar os originais. E

no dia seguinte recomeçar coisa nova.

Até hoje este título é um dos menos conhecidos do autor, conforme pudemos

observar em nossa pesquisa bibliográfica. Além das análises presentes nas orelhas e

apêndice do próprio volume, encontramos apenas alguns artigos, livros e estudos

dedicados às Terceiras estórias. Esta pequena bibliografia específica fica ainda menor se

comparada à de estudos sobre Grande sertão: veredas, hoje clássico nacional.

Uma das explicações para essa aceitabilidade relativamente baixa pode ser o

excesso de paratextos deste livro, o que por outro lado tem sido ponto de partida para as

análises da obra por hora realizadas, que refletem sobre seus títulos, índices, prefácios,

inter e intratextualidades. Em Terceiras estórias, encontramos nada menos que 2

índices (sendo um de releitura, ao final do livro), 4 prefácios (distribuídos entre os 40

contos), 24 epígrafes, 4 “hipógrafes” (neologismo que designa epígrafe ao final do texto),

um “glossário”, uma “glosação em apostilas”, inúmeras citações, diretas e indiretas, de

outros textos, seus e de outros autores, além da recorrência de lugares, personagens e

acontecimentos em diversos contos do livro — fora a estranheza do próprio título: o que

significa tutameia, e por que terceiras, se as estórias anteriores eram as primeiras?

21

Recorrendo à metáfora borgiana, podemos dizer que Tutameia é um livro-

labirinto, com várias entradas e passagens secretas; dentro dele, mora um homem-touro,

boivaqueiro, figura ambígua e enigmática; o fio de Ariadne é a própria trama do texto,

seus paratextos, que o leitor-herói-Teseu deve seguir, no caminho de volta (a ida se dá às

cegas), para não se perder/prender nesse livro de areia. Tal fio, porém, não é inteiro,

linear, havendo sempre o perigo de se andar em círculos, se não forem feitas as corretas

amarrações, que são várias. Montagens e justaposições, técnicas usadas no cinema, no

cubismo e nos haikais, são muitas vezes necessárias para se produzir o sentido desse

texto, considerado hermético, apesar de (ou graças a) seus tantos paratextos. As bordas

bordadas de Tutameia revelam a preocupação do autor com sua imagem construída,

com a impressão de sua marca na história da literatura brasileira.

No texto que viria a compor o Apêndice de Tutameia, Rónai (1969) transcreve

parte de um diálogo que mantivera com Rosa que, “feliz por ter levado o amigo a uma

cilada” (p. 194), lhe indicara o “macete” do índice do livro, dando a entender que, para

testar a argúcia da crítica, ele havia plantado charadas naquele volume, transformando

sua leitura em uma corrida de obstáculos. O mesmo crítico, já no ensaio sobre

Primeiras estórias, comenta (2001, p. 16):

De [minhas] conversações com o autor, nas quais vislumbrou numerosos

subentendidos que lhe tinham escapado durante a leitura, ficou-[me] a

convicção de que mesmo ao olhar mais agudo seria impossível abranger a

totalidade intrincada das intenções do mais consciente dos nossos escritores.

Acreditamos que a composição de Terceiras estórias seja orientada por um

projeto estético que prima pela velhacaria, a astúcia do sertanejo, mestre em pregar

peças, quer seja no jogo do truque, nos negócios ou na política. Velhacaria da raposa,

que “avança, mas nuns passos de quem se retira” (Rosa, 1978, p. 95). O texto lança

mão da astúcia, da velhacaria, para burlar as leis tácitas dos tradicionais contratos

literários, que exigem, por exemplo, que o conto seja fechado sobre si mesmo, um todo

absoluto — aqui, as intratextualidades os colocam em constante comunicação; que os

prefácios sejam verdadeiros, críticos e que antecedam a obra — aqui, surgem travestidos

em fábulas e espalhados ao longo do livro; que se citem as fontes das citações — aqui,

elas podem ser forjadas ou apócrifas.

22

Os contos, devidamente corrigidos pelo autor (cf. Costa, 2006), foram

coligidos no livro, segundo a ordem alfabética das iniciais de seus títulos, exceto

dois, que formam com o anterior a marca autoral JGR (cf. Sperber, 1982).

No índice de releitura, ao final do volume, estão à frente das demais

estórias quatro textos designados como prefácios, cujas iniciais dos títulos

formam o prenome HANS. Estes textos são grafados em itálico, diferentemente

dos outros, em tipos redondos. As iniciais dos títulos das três estórias de

ciganos presentes na obra formam a palavra FOZ. Essas e outras peculiaridades

do livro estão elencadas em minha pesquisa de mestrado (Andrade, 2004).

Muitas dessas marcas são seguidas pela crítica, que com base nesses

achados forma ainda outros subgrupos de estórias, como veremos a seguir. É

preciso lembrar, porém, que não podemos ingenuamente ir seguindo as pistas

plantadas pela raposa do Rosa. A linguagem poética não se dá assim

marcadinha, se assim o fosse seria fácil e insosso.

Em toda a obra rosiana há o cuidado e empenho para que a verdade se

manifeste, desvelando o sentido do ser. Os subgrupos formados pela crítica

podem funcionar num contexto classificatório, mas não resistem a uma leitura

poética, que busque o diálogo com a obra literária, pois que são arranjados

pelas astúcias da lógica. Quem nisto se fia, se perde.

A astúcia poética se apreende na leitura e releitura de cada palavra, de

cada estória, onde acompanhamos o consumar-se do destino do homem

humano: sua hora e vez no duelo entre sertão e veredas, o amor e a morte, deus

e o demo, na travessia a caminho da linguagem, a casa do ser.

O leitor viciado em apostilas e roteiros de leitura pode ficar atordoado

com os letreiros das fachadas e perder o que no livro vigora. A trama e o texto

são emaranhados de modo que, se o leitor buscar explicações, ficará perdido. O

excesso de aparatos e regras de boa leitura, tantos espaços para saber o que o

autor quis dizer, soam como uma resposta irônica do escritor a tentativas de

valoração, análise e classificação de sua obra, que por vezes não alcançam a

23

profundidade de seu pensamento, perdendo-se em firulas e deixando escapar o

boi. Para saber o sabor da obra, é preciso percebê-la como obra de arte, que

opera a verdade do ser.

Antes de tudo, é preciso escutar a abertura da obra, seu nome, seu título.

O termo TUTAMEIA, como vimos, quer dizer pechincha, ninharia, coisa de

pouco valor, nonada. Trata-se de um regionalismo mineiro, originado de uma

palavra africana e uma portuguesa, aglutinadas. Figurou-se de uma corruptela

de mucuta e meia, sendo mucuta o nome da moeda africana com que se

comercializavam os seres humanos escravizados, que cavaram as minas gerais.

Dizem que alguns africanos trouxeram moedas de mucutas emaranhadas nas

carapinhas, mas que por aqui de nada valiam, dinheiro de preto, mucuta e

meia, nonada. Tutameia não valia era nada.

Antecipando-se à provável dúvida quanto ao significado do termo que dá título

ao livro, Rosa o incluiu no “glossário” de Terceiras estórias (p. 166):

tutameia: nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, quiquiriqui,

tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica, quase-nada; mea omnia.

Conforme observa Galvão (1972, p. 73), a primeira parte desta definição, que

antecede o ponto-e-vírgula, é uma cópia quase fiel do verbete “ninharia” da décima

edição do Pequeno dicionário Aurélio da língua portuguesa, de 1963, a qual

inclusive traz agradecimento a nosso autor pela colaboração.

Tomamos conhecimento da origem deste termo em Nascentes (1952, p. 797):

TUTA-E-MEIA: Quem primeiro explicou esta expressão foi Júlio Moreira,

em “A Revista”, do Porto, de novembro de 1905. “Uma tuta e meia ou

simplesmente tuta e meia deve resultar de uma macuta e meia. Macuta é

o nome de uma moeda de cobre, que tem curso na África Ocidental

Portuguesa com o valor de 50 réis. Há também meia macuta. Assim, dar ou

comprar uma coisa por uma macuta e meia seria uma frase equivalente a

outra em que também entram designações de moeda, como: é um ovo por um

real; dar uma coisa por dez réis de mel coado, não dar por uma coisa um

chavo galego. De macuta proveio matuta por assimilação do c ao t seguinte.

24

Depois, uma matuta transformou-se em uma tuta, por hapologia” (Júlio

Moreira, Estudos, I, 226, II, 80). G. Viana aceitou esta explicação (RL, XI,

240, Apost., II, 514). João Ribeiro, Frases Feitas, I, 207-9, explica que tuta

e mea é a espórtula sempre menor do sacristão e é um latinismo

macarroneado das primeiras palavras do sacrista no ofício da missa.

Efetivamente, o padre diz ao subir os degraus do altar: Introibo ad altere

Dei. Ao que responde o sacristão engrolando e só dizendo claras como de

costume as últimas sílabas: Ad Deum qui laetificat juventutem meam. A

letra única que se percebe do rosnar do acólito é o tutem meam. Também é o

que lhe pagam. Custa uma tutem meam ou uma tuta e mea. Rejeita a

explicação de Júlio Moreira e acha inexplicável que se diga macuta e meia,

porque a fração na gramática popular dá mais intensidade a todos os valores.

Em Curiosidades Verbais, 151-2, voltando ao assunto, diz que a suposta

origem macuta e meia tem contra si o nome de moeda quase desconhecida

na Europa, a supressão da sílaba ma e a transformação da gutural c em t,

coisas essas que considera inverossímeis, senão absurdas e até anti-fonéticas.

Júlio Moreira deu as explicações necessárias quanto a essas transformações;

parece aceitável a sua suposição.

Recentemente lançado pela Edusp, o Léxico de Guimarães Rosa, de Nilce

Sant’Anna Martins (2001), define literariamente o termo (p. 509):

TUTAMEIA. Nome de obra. / (V. TIL). por conta de tropeiros do Urucuia-

a-fora não terem auxiliado de abrir a tutameia de um saquinho de sal, nem de

vender para os dali... (MM—I, 27/42). / Pequena porção, bagatela. // No

final do prefácio “Sobre a Escova e a Dúvida”, o A. acrescenta um pequeno

glossário no qual arrola para o título do livro os seguintes sinôns: nonada,

baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, quiquiriqui, tuta-e-meia,

mexinflório, chorumela, nica, quase-nada; mea omnia. A f. dic. é tuta-e-

meia, para a qual J. P. Machado dá a seguinte explicação: “É provável que

venha da expressão uma macuta e meia, que, por muito corriqueira, se

reduziu, por hapologia, a uma cuta e meia e, com ou sem a supressão do

num. uma e por assimilação de c a t, (uma) tuta e meia. Macuta era a

moeda de cobre, que tinha curso na África Ocidental port., com o valor de 50

25

réis. Tal hipótese deve-se a Júlio Moreira (Estudos I, p. 226; II, p. 80)”. [Cf.

H. C. Borges: acabei ajustando-me, por tutameia, no cartório do

registro civil (ap. B. Ortêncio, DBC)�V. Silveira: fechou-se logo o

negócio, e as dez cabeças foram largadas por um conto e duzentos: —

Uma tuta-e-meia — disse o Tomás (O Mundo Caboclo de Valdomiro

Silveira, p. 131)�A. Azevedo: Arrecadei a fazenda da viúva por uma

tuta e meia e hoje está produzindo, que é aquilo que você pode ver!

(O Mulato, p. 176)].

No Pequeno Dicionário da Canastra1, encontramos o seguinte verbete:

Tutameia: pouca coisa, ninharia, corruptela de tuta e meia, por sua vez

derivada do quimbundo — “mu’kuta”, moeda africana. Linda palavra, em

franco desuso, que virou até título de um livro de Guimarães Rosa.

A origem do termo que dá título a este livro é o nome de uma moeda. Tal artifício

explicita a função publicitária dos paratextos e desvela o caráter de mercadoria do objet

livro: seu destino é a prateleira das livrarias, onde será consumido, ou seja, trocado por

uma determinada quantia em dinheiro, por uma tutameia.

Podemos relacionar a acepção “monetária” de tutameia a um dos significados da

palavra conto, em expressões como “um conto de réis”. O termo em questão, que a

princípio designava “número, cômputo, quantidade” (Moisés, 1985, p. 15), passou, com

o uso, a significar, metonimicamente, “moeda”. Assim, no título deste livro, encontram-

se aproximados os nomes de duas antigas moedas, macuta e réis, o que transforma

Tutameia em uma espécie de porta-níqueis, ou seja, um lugar onde coexistem um

punhado de pequenos contos, de pouco valor comercial, que tratam de quase nada, mas

que são, ao mesmo tempo, toda a riqueza do autor. Vale lembrar que as ilustrações do

miolo do volume têm a forma de uma moeda, que traz numa face um caranguejo e na

outra uma coruja – símbolos de nascimento e morte, verso e reverso da vida.

No nada de Tutameia, apresenta-se a riqueza disfarçada em ninharia,

fingidamente humildezinha, a matéria miúda que contém o infinito. É, pois, com muita

astúcia e ambiguidade que este título nos propõe a barganha da leitura.

1 Internet: página da Pousada São Francisco: http://serradacanastra.com.br/jornal/dialetos/html, 1999.

26

Costa (2006, p. 11-12) transcreve uma carta do Rosa, “Rogo e aceno”,

publicada na revista médica Pulso em 29 de agosto 1967, em que ele se despede

e anuncia aos leitores que os contos que ali publicados seriam lançados em uma

coletânea, a ser intitulada Tutameia, aproveitando para fazer um pedido acerca

da palavra do título:

Fazendo outro pedido ainda: que é quanto ao título do livro, a

palavra mesma “TUTAMEIA”. Se bem os dicionários dêem apenas

“tuta-e-meia”, sempre e desde menino em Minas ouvi só falar

“tutameia” – correndo por ninharia, nonada, um quase-nada,

bagatela. Mas, como vale a pena conhecer a ocorrência e forma do

termo, nas diversas áreas do país, e os colegas e assinantes de Pulso

situam-se felizmente em todos os pontos do território nacional,

pergunto se quer alguém cordialmente a esse respeito informar-me.

Como já disse, também ouço falar sempre e desde menina em Minas esta

palavra, som de língua materna, com este mesmo sentido. Na procura do

estudar, soube que este título fora almejado por Rosa desde o início, pois que

transcreve Sperber (1982, p. 100), extraído dos originais de Sezão (1937):

Também, ara!, isto já é falar de outro livro, o qual, se Deus der à gente

vida e saúde, vai prestar mais, chamar-se-á “TUTAMEIA” e virá logo

depois deste, queira Deus!...”

Sabendo disso, pode-se afirmar, com base em depoimento do autor, que

o projeto deste livro foi chocado pelo Rosa durante toda sua vida. E vejo que hei

de ficar erada e ainda terei muita coisa pra ouvir e calar no silêncio e som do

ecoar desta palavra. A cada dia, uma nova descoberta abre novos caminhos na

densa mata.

Descobri recentemente, por exemplo, através de Costa (2006), uma

informação muito importante, que será aprofundada em momento oportuno: o

prefácio “Aletria e hermenêutica”, ao invés de inédito, como supunha, calcada

na fortuna crítica, fora publicado anteriormente, em 1954, no suplemento

27

literário do jornal A Manhã, apenas menor e com outro título: “Risada e meia”.

O título original do texto muito se assemelha a tuta e meia, expressão que viria a

ser consagrada treze anos depois, em 1967, como o título de um livro, do qual

aquele texto, renomeado, seria prefácio. Estes registros, apontados por Sperber

(1982) e por Costa (2006), comprovam a presença de Tutameia como projeto de

livro ao longo de toda a carreira do Rosa.

A seguir, trarei um breve apanhado do que a crítica já disse sobre

Tutameia, para compor o diálogo com esta obra literária tão importante para a

literatura brasileira, para então introduzir a abordagem poética das Terceiras

Estórias, a partir da retomada dos mitos gregos da astúcia e do pensamento de

Heidegger, proposta desta tese.

Repercussão

Dito: meio se escuta, dobro se entende.

(Rosa, 1967: 46).

Assim que é lançado ao público, o título do livro passa a designar uma obra

existente na literatura, sendo possível ao leitor buscar na biblioteca ou livraria o volume

por ele nomeado. O título torna-se, então, um verbete na historiografia literária de

determinado país, contribuindo para registrar, produzir e divulgar sua cultura.

Após o lançamento do título, começam a surgir nas estantes textos sobre o livro.

Em alguns casos, esses textos tornam-se imprescindíveis para uma melhor compreensão

da obra intitulada. Tendo em vista a extensa bibliografia existente acerca de seu autor,

são ainda escassas as páginas dedicadas às Terceiras estórias. Afora os textos incluídos

no próprio corpo de Tutameia, nas orelhas e no apêndice, o livro recebeu algumas

leituras, relatadas a seguir.

Nos números correspondentes aos primeiros seis meses de 1968, Assis Brasil

publicou, no Jornal de Letras (RJ), um estudo sobre Tutameia (“A chave da obra de

Guimarães Rosa”), o qual viria a compor a segunda parte de seu livro consagrado ao

autor, publicado no ano seguinte (Guimarães Rosa, 1969). Trata-se da primeira

28

abordagem mais demorada sobre o livro, a qual pretende decifrar a mensagem de seus

esdrúxulos prefácios, numa leitura que nortearia futuros estudos, como o de Daniel

(1968) e o de Simões (1988).

Brasil (1969) considera que Guimarães Rosa, talvez intuindo a proximidade da

morte, teria “tomado para si a tarefa de dar um roteiro mais claro e seguro para os

estudiosos de sua obra” (1969: 59), através da inclusão de quatro prefácios neste livro.

Para o crítico, desde 1961, quando Rosa iniciara no Globo a publicação de contos

curtos, que viriam a compor no ano seguinte as Primeiras estórias, o “gigantismo” da

primeira fase do autor – Sagarana, Corpo de baile e Grande sertão: veredas –, cujo

peso documental explicitava-se nas listas de nomes e descrições sertanejas, teria dado

lugar à brevidade de suas estórias, que buscavam criar uma realidade “desligada e fora

do alcance da percepção imediata das coisas, dos objetos” (Brasil, 1969: 62).

Nas Terceiras estórias, também uma coletânea de contos curtos, agora

publicados na Pulso, estaria, para o crítico, a “síntese criativa” da prosa rosiana (Brasil,

1969: 60), que teria atingido seu máximo grau de compacidade, continuando o processo

de ruptura formal iniciado por sua obra anterior:

Tutameia se completa, do ponto de vista formal, com as Primeiras estórias,

formam um todo poético, e revelam o microcosmo criativo do escritor, a

minúcia sintática, a fotografia do processo sintático no momento mesmo de

sua eclosão, uma verdadeira anatomia nas raízes da língua, para atingir o

macrocosmo criativo, o mundo habitado e humanizado (Brasil, 1969: 59).

Brasil (1969) ressalta, porém, que a importância da linguagem encontra-se

presente em toda a obra rosiana, notadamente em “Meu tio, o Iauaretê”, onde ela

manifesta a realidade da personagem-onça através da desarticulação e tupinização do

português (H. Campos, 1983), e em “Famigerado”, onde a palavra adquire ares de

personagem. Este estudo aponta para o forte impacto que causara a inclusão de quatro

prefácios no livro, o que o tornava diferente dos anteriores. Entretanto, ressalta o sentido

de continuidade da obra rosiana, ao receber Tutameia como a conclusão do processo de

amadurecimento estilístico do autor.

29

Ainda em 1968, Mary-Lou Daniel publica seu extenso estudo sobre a linguagem

de Guimarães Rosa, no qual insere um post scriptum de cinco páginas dedicado a

Tutameia, considerado pela autora “a afirmação definitiva da prosa rosiana” (Daniel,

1968: 178), corroborando a leitura de Brasil (1969), comentada acima. Daniel (1968)

também ressalta a semelhança entre as Primeiras e as Terceiras estórias, ambas

caracterizando-se pela concisão linguística e temática introspectiva. Além disso,

Tutameia viria a confirmar as principais tendências estilísticas do autor, que criara

“um estilo forte, viril, oral” (Daniel, 1968: 178), em sua busca por “achados” originais

em padrões reconhecidos, sua sintaxe telegráfica, sua flexibilidade verbal e suas

sinestesias, responsáveis pelo clima de simultaneidade e dinamismo que caracterizaria o

universo rosiano, o qual apresentaria, assim, coerência interna e cronológica, evoluindo

desde Sagarana. A autora chama a atenção para a “franqueza” (Daniel, 1968: 180) dos

prefácios de Tutameia, e compara o conjunto das Terceiras estórias a uma galeria de

retratos impressionistas de tipos sertanejos, que “povoam as páginas do livro com

representantes dos numerosos e anônimos sertanejos mineiros cuja voz e cujo drama

reclamam a atenção do leitor através de toda a obra do autor “(Daniel, 1968: 182).

Ao final do texto, há uma referência explícita ao estudo de Brasil (1969):

“Podemos dizer que este seu último volume de ficção contém a chave de toda a obra de

Guimarães Rosa e que vem muito a propósito como ‘última palavra’ do grande mineiro”

(Daniel, 1968: 182).

Também em 1969, Benedito Nunes dedica um capítulo de um livro de crítica

literária a Tutameia. Esta análise, suscinta porém profunda, de certa forma

fundamenta, junto com a de Brasil (1969), toda a posterior crítica à obra.

Nunes (1969) caracteriza as Terceiras estórias como casos exemplares ou

mitos, narrativas que personalizam verdades incompreensíveis, cuja intenção

parabolizante seria a de demonstrar a relatividade entre o erro e o acerto: “quem perde

ganha, quem se perde acaba por encontrar-se” (Nunes, 1969: 205). Os motivos das

estórias seriam tutameias, “a matéria contingente e vária” (Nunes, 1969: 204) do

cotidiano. O tom de comédia embeberia as Terceiras estórias, onde os personagens

passam da carência à plenitude, “refazendo-se, por obra de espontâneo devir, a

continuidade da existência” (Nunes, 1969: 204).

30

O autor chama a atenção também para a existência no livro de quatro prefácios,

aos quais dedica alguns parágrafos. Ainda segundo o crítico, o jogo de palavras, típico

da prosa rosiana, tenderia, neste livro, ao extremo do paradoxo, num processo que

levaria o leitor da dúvida à revelação do indizível:

Cada estória manteve em suspensão o conhecimento objetivo, o valor

utilitário e prático das palavras da língua, para permitir a apreensão em

profundidade do mundo, renovado e novamente percebido através de nova

linguagem (Nunes, 1969: 209).

Covizzi (1978), cujo apêndice de seu estudo rosiano trata dos prefácios de

Tutameia, destoa das críticas anteriores, pois não vê com bons olhos a prolixidade dos

prefácios do livro. A autora considera que, se o autor sentiu a necessidade de acrescentar

quatro prefácios ao livro, é porque tinha dúvidas quanto à existência autônoma das

estórias. A excessiva carga explicativa destes textos seria o resultado da repercussão

crítica sobre a obra rosiana, e dificultaria a fluência da leitura, conferindo ao volume um

aspecto de livro didático. O insólito, presente na trama das obras anteriores, teria se

estendido neste livro aos prefácios e índices, os quais apontariam para a existência de

um significado sotoposto ao texto, intencionalmente introduzido e mascarado pelo autor

— é o que chamei no mestrado de “velhacaria dos paratextos de Tutameia”.

Já para Sperber (1976; 1982), que demonstra em seus estudos uma evolução na

obra rosiana, Tutameia seria a radicalização do estilo e da visão de mundo de

Guimarães Rosa, que teria concentrado neste seu último livro a busca da poesia que é a

sua linguagem forjada, empenhada na desintegração do sintagma como “elemento de

desarticulação das virtualidades de sentido” (Sperber, 1982: 7), criando zonas de

silêncio, cujos saltos levariam à transcendência: “A programática negação do visível

pede o salto para o invisível” (Sperber, 1982: 100). A diminuição do tamanho dos textos

contribuiria para a indefinição do sentido, a ser vislumbrado pelo leitor:

31

Guimarães Rosa partiu de uma imitação do real para transcendê-lo. O real

existiu na ação, pelas palavras, e foi transcendido na ação, pelas palavras.

[...] A busca da palavra pela palavra só foi possível graças a uma concentrada

atenção ao relato como justaposição, articulação da palavra. A busca, como

tal, é intelectual, racional, lógica e voluntária. Só as soluções é que não o são.

Caos e cosmos na estruturação da narrativa (Sperber, 1976: 155).

Sperber (1982) chama a atenção para a sutileza do índice de Tutameia, cuja

ordem alfabética dos títulos é subvertida para formar as iniciais do autor: JGR (Sperber,

1982: 49). Outro dado importante divulgado pela autora é uma referência a Tutameia

nos originais de Sezão, de 1937, manuscrita pelo autor, o que atesta a antiga predileção

de Rosa por esta palavra, desde o início selecionada para ser um seu título de livro,

guardado trinta anos na gaveta:

[...] melhor rende deixar quieto o mato velho, e ir plantar roça noutra grota.

Também, ara!, isto já é falar de outro livro, o qual, se Deus der à gente vida e

saúde, vai prestar mais, chamar-se-á “TUTAMEIA” e virá logo depois

deste, queira Deus!... (Rosa apud Sperber, 1982: 100).

A autora analisa alguns contos do livro, comparando-os a estórias anteriores do

autor, o que demonstraria a presença de temas recorrentes em sua obra. Assim,

“Estoriinha” relaciona-se a “Sarapalha” e “Droenha” a “Duelo”, o que ligaria

Tutameia a Sagarana, e “Ripuária” remeteria a “A terceira margem do rio”, de

Primeiras estórias. Entretanto, em Tutameia a realidade é niilizada, servindo de

trampolim para o irreal. Neste livro, a elipse e a incompletude dos sintagmas

radicalizam-se, estimulando a inteligência do leitor, que deve dar o salto “em busca de

uma significação que os transcenda” (Sperber, 1982: 109).

Até o início da década de 1980, cerca de quinze anos, portanto, após sua

publicação, Tutameia merecera da crítica não mais que os poucos artigos de jornais e/ou

capítulos de livros referendados acima. O primeiro livro sobre este título viria a ser

lançado apenas em 1988, e traria o resultado da tese de doutoramento em Letras

defendida na USP, seis anos antes, por Irene Gilberto Simões. No ano seguinte,

publicar-se-ia a tese de Vera Novis sobre o livro, também defendida na USP, em 1987.

32

Nestes trabalhos, as autoras perseguem marcas textuais que apontem para a

totalidade de Tutameia, quiçá da obra e da vida do autor. Simões (1988) orienta sua

leitura pelos prefácios do livro, enquanto Novis (1989) desvenda suas

intratextualidades. Ora, tanto os prefácios quanto as intratextualidades constituem o

que Genette chama de transtextualidade do texto, tipologia que inclui também os

paratextos, objeto de minha leitura do mestrado. Podemos dizer, portanto, que este

trabalho parte de uma visada semelhante.

Novis (1989) identifica intratextualidades entre os contos do livro, a partir das

quais reúne as terceiras estórias em subgrupos com características semelhantes: “Assim,

temos as estórias de amor, as estórias de ciganos, as estórias do vaqueiro Ladislau [alter

ego do autor], as estórias de cunho metalinguístico, as estórias sobre a aprendizagem”

(Novis, 1989: 25). Este último grupo abrangeria todos os contos do livro, por tratarem

de um momento de transformação da personagem, que sofre uma mudança qualitativa

de estado, passando por provações, como num ritual iniciático, até atingir o

“completamento” ou iluminação. A difícil leitura deste livro encenaria também um

processo de iniciação, sendo a linguagem cifrada do “mestre Rosa” o “batismo de fogo”

do leitor-aprendiz (Novis, 1989: 27).

O estudo de Simões (1988) pauta-se nos prefácios de Tutameia como chaves

para a obra de Guimarães Rosa. Foi o encontro com esta análise, que trazia

sistematizadas muitas de minhas primeiras impressões acerca das Terceiras Estórias,

que possibilitou a elaboração do projeto de mestrado sobre a leitura dos paratextos de

Tutameia. Resumirei, a seguir, algumas características do livro apontadas pela autora.

Simões (1988) considera que Tutameia traz “elementos regionalistas ligados a

uma temática universal” (Simões, 1988: 57), elaborando o autor neste livro uma

“transfiguração da realidade” (Simões, 1988: 103). A autora analisa contos em que

mitos como o do eterno retorno, da origem, do renascimento, da palavra mágica, da

serpente, do boi e do rio, além de alegorias como a da primavera e a da viagem, e mesmo

estórias de fantasmas e assombrações, seriam transpostos em Tutameia para o sertão,

onde, como em todo lugar, a vida do homem se constitui em luta contra a natureza,

externa e interna. Entretanto, “no mundo do faz-de-conta, a natureza surge

33

transformada e a linguagem acompanha esse movimento, a ponto de ‘desrealizar-se’ na

busca de expressões adequadas para representar esse novo mundo” (Simões, 1988: 81).

Outro aspecto importante da prosa rosiana como um todo, ressaltado pela

autora, é o caráter polifônico da instância narrativa. Enquanto a voz do narrador trata

de efetivamente contar a estória, uma outra voz, que chega a ser diferenciada

graficamente através de tipos itálicos (em “A estória do homem do pinguelo”, de Estas

estórias, de e nos prefácios de Tutameia) ou deslocadas para notas de rodapé (em

“Cara-de-Bronze”, de Corpo de baile), e que a autora atribui ao comentarista,

organiza a narrativa, “reconstituindo o texto enquanto enunciado e enquanto

espetáculo” (Simões, 1988: 144). A voz do autor se deixaria entrever nesse comentários,

responsáveis pela organização do discurso, caracterizando o que Genette denomina de

função ideológica do narrador:

Representando um segundo tom dentro da estória, a voz do comentarista

deixa entrever novas perspectivas para a estória. Entre o cenário visível que

se vai desenrolando para o leitor, impõe-se, como mediador, a voz do

comentarista que ora atua como crítico, ora propõe uma perspectiva cômica,

ora tece comentários filosóficos, num estilo bem próximo ao dos prefácios. [...]

O comentário representa o momento do “corte”, trazendo o leitor para o

plano da enunciação (Simões, 1988: 181-182).

Estes comentários funcionariam como as marcações e legendas dos textos

dramáticos, o que acentuaria o caráter cênico das estórias rosianas, radicalizado em

“Cara-de-Bronze”. Além disso, promoveriam um distanciamento em relação ao narrado,

chamando a atenção do leitor para o caráter ficcional da estória, bem como para a

parcialidade de seu narrador.

Para analisar esta estrutura textual, Simões (1988) lança mão das considerações

de Eisenstein acerca da montagem, em que a ideia do autor não é expressa através de

elementos que se sucedem linearmente, mas pela justaposição de elementos

aparentemente isolados, a serem relacionados pelo espectador. A importância do trabalho

interpretativo do espectador é ressaltada pelo cineasta, que por outro lado reafirma o

caráter autoral da obra:

34

Cada espectador recria, efetivamente, a imagem, segundo a orientação exata

que lhe é fornecida pela indicação do autor e que o conduz infalivelmente ao

conhecimento e à percepção afetiva do tema. É a imagem que o autor quis e

criou, mas, ao mesmo tempo, recriada pela própria criação do espectador

(Einsestein apud Simões, 1988: 159).

Acreditamos que Tutameia – Terceiras estórias tenha sido organizado segundo

esta estrutura de montagem, sendo seus paratextos as mais visíveis indicações do autor

para o leitor que buscasse a “imagem integral” (Simões, 1988: 158) do livro. Nesse

sentido, cabe retomarmos as epígrafes dos índices, que cobram uma segunda leitura do

livro. A própria existência de um índice de releitura sinaliza a necessidade de se

relacionarem partes aparentemente desconexas, como bem o fez Novis (1989), ao

investigar suas intratextualidades, e os críticos que se detiveram na análise de seus

prefácios (Rónai, 1969; Nunes, 1969; Brasil, 1969; Daniel, 1968; Covizzi, 1978; Simões,

1988; Araujo, 2001).

Simões (1988) ressalta ainda, nos contos de Tutameia, a presença de fórmulas

que indicam o início e o final de uma narrativa, num processo que lembra as narrativas

folclóricas e, ao mesmo tempo, demarca a ficcionalidade do relato. Em algumas ocasiões,

o final de um conto liga-se, por meio dessas expressões, ao início do seguinte, num

artifício que atribui certa unidade ao volume. Algumas das terceiras estórias, por sua

vez, são iniciadas com frases interrogativas e/ou interpelações, o que lhes confere um

caráter cênico, visto chamarem a atenção do leitor, levando-o a “visualizar a cena

externa” (Simões, 1988: 185). Na ausência dessas fórmulas introdutórias, cabe aos

comentários do narrador a marcação da passagem para o ponto de vista externo. Enfim,

sobre a estruturação de Tutameia, a autora conclui:

Interrogações, interferências, inversões de ditos populares provocam, no

texto, o choque de entoações do qual o leitor participa, o que remete de volta

aos prefácios que, no fundo, são também análises, indagações, propostas. “A

leitura linear é substituída por uma leitura em travessias e correlações”, no

dizer de André Topia [1979], e o espaço do texto amplia-se, possibilitando ao

leitor vários percursos em vários sentidos.

35

A citação feita pela autora refere-se a uma crítica sobre a obra de Joyce,

caracterizada pela plurissignificação, proposta que acreditamos ser também a de Rosa,

notadamente em Tutameia, onde o autor se esmera em romper a todo tempo o fluxo

contínuo da leitura, provocando estranhamento no leitor, que se vê obrigado a retornar e

retornar ao texto, buscando “a construção orgânica e não emendada do conjunto”,

prometida na epígrafe do índice do próprio livro.

Após o lançamento quase simultâneo dos estudos vistos acima, Tutameia voltou

para o limbo de nossa crítica literária, tornando-se novamente objeto de estudo apenas

em 1995, com o estudo linguístico de Spera, sobre os neologismos rosianos, e voltou a

receber uma leitura literária apenas em 2001, no livro de Araujo.

A crítica de Araujo (2001), embasada na filosofia cristã, tem o mérito de realizar,

pela primeira vez, a leitura de cada um dos textos de Tutameia, tanto os quatro

prefácios como os quarenta contos, ressaltando as intratextualidades existentes entre

eles e qualificando de “emblemáticos” (Araujo, 2001: 105) os três contos cujas iniciais

dos títulos formam no índice as iniciais do autor (“João Porém, o criador de perus”,

“Grande Gedeão” e “Reminisção”), os quais trariam a visão de mundo de João

Guimarães Rosa. A disseminação do nome do autor pelas páginas deste livro é

assinalada pela autora, que lembra a recorrência deste recurso na obra rosiana, como o

Moimeichego de “Cara-de-Bronze” (Bizzarri, 1981).

A autora resgata a fonte das epígrafes eruditas do livro, tais como Schopenhauer,

Tolstoi e Sextus Empiricus. De nossa parte, optamos por não trilhar este interessante

roteiro, que demandaria um tempo de estudo maior que o disponível, se não quisermos

simplesmente parafrasear as análises da obra desses escritores propostas nesse estudo.

Quanto aos trabalhos acadêmicos dedicados a Tutameia, também são os

mais escassos na fortuna crítica do autor. No programa de Poética da UFRJ, foi

defendida em 2005 a tese de Faria, sobre as Primeiras e as Terceiras estórias,

também, como esta, orientada pelo mestre Manuel Antônio de Castro. O estudo

de Faria (2005) mostra a organicidade entre essas duas obras de Rosa,

procedendo à leitura de cada uma das estórias, numa abordagem filosófica e

poética das obras. Suas palavras sempre estarão sendo invocadas nesta tese.

36

Também inédita em livro está ainda a importante pesquisa de Costa

(2006), que compara os contos de Tutameia com suas versões originais,

publicadas na Pulso, elencando as alterações de texto realizadas pelo autor ao

passar as estórias do periódico para o livro. Tais informações são valiosíssimas

para a recepção crítica da obra, trazendo novos elementos para a interpretação

dos textos, que muito ajudaram na elaboração desta tese.

Levantamos, nesta seção, o que se publicou até hoje na crítica literária

acerca de Tutameia. Notamos, nessas leituras, a presença de alguns

denominadores comuns, como a aproximação dos contos aos mitos, a

importância dos prefácios e a existência de cifras, a serem desveladas na leitura.

A partir do diálogo constante com a obra, e com base nas leituras

realizadas pela crítica especializada, a presença da astúcia em Tutameia parece-

me um importante aspecto a ser abordado na interpretação deste livro. A

astúcia se manifesta no título, nas ilustrações e, nos chamados “paratextos”,

como demonstrei em minha dissertação de mestrado.

O figurar da obra

Em uma obra literária, a apresentação do livro deve consumar o

pensamento expresso no manuscrito. Nisto consiste a arte do editor: trazer a

lume as obras. A elaboração arrojada de Tutameia percebemos no primeiro

contato, ao manusear o pequeno volume e atentar para os detalhes de seu

projeto gráfico. Além da ambiguidade do título, Tutameia se apresenta de modo

peculiar. É preciso atravessar paredes e lutar com tentáculos, numa aventura de

ler que não cessa de vigorar. Neste livro, notadamente, o “design ocorre em um

contexto de astúcias e fraudes. O designer é, portanto, um conspirador malicioso

que se dedica a engendrar armadilhas” (Flusser, 2010: 182).

37

Sobre o papel desses elementos na interpretação de obras literárias, escreveu um

dos críticos mais influentes na cena literária brasileira do século XX, Alceu Amoroso

Lima, ou Tristão de Athayde, cujo rodapé a Tutameia viria a compor as orelhas do

livro. Lima (1945) considera que a crítica literária começa a ser preparada a partir das

primeiras informações que recebemos sobre o livro, por escrito ou oralmente. Num

segundo momento, tomamos o volume em nossas mãos, perscrutando sua concretude

(p.23-24):

[o livro] Passa agora a ser uma coisa concreta em nossas mãos. Tem uma cor,

um aspecto, por vezes um desenho sedutor ou ridículo na capa. É desta ou

daquela editora. Tem este ou aquele formato. Tudo isso passa, por sua vez, a

constituir um conjunto de impressões que não podem ser dissociadas da

posição do crítico em face da obra. Um livro não é apenas um conjunto de

ideias, de acontecimentos, de imagens e de personagens. É um objeto de arte

que temos em nossas mãos, como uma escultura. Seu aspecto físico

desempenha um papel importante na crítica literária. Os livros são

tipograficamente simpáticos ou antipáticos, belos ou feios, indiferentes ou

marcantes. A crítica literária faz do livro o objeto central, a razão de ser de

sua existência. Nada, portanto, do que diz respeito ao livro é indiferente. Um

tipo pequeno ou grande de mais, uma ausência de margem, uma revisão mal

feita, um índice insuficiente ou incompleto, o mau gosto ou o bom gosto na

disposição geral da obra, em sua apresentação física, tudo contribui para que

o primeiro contato do crítico com a obra venha a desempenhar um papel

favorável ou desfavorável na crítica a ser futuramente elaborada.

Assim, antes mesmo de conhecer o conteúdo do livro, o leitor já se predispõe,

positiva ou negativamente, em relação a ele, influenciado por seus paratextos. E essa

predisposição conduzirá a leitura da obra, como o rótulo de um produto pode definir seu

consumo, ou o cartaz na bilheteria do cinema nos faz optar por este ou aquele filme. Nas

palavras de Lima (1945, p.36), “o hábito exterior da obra é de importância para nosso

contato imediato com a mesma.” Se o grande público influencia-se mais facilmente por

essas artimanhas, os críticos literários também não passam incólumes por elas (p. 39):

38

Não somos melhores do que o público. Somos apenas um público ranzinza...

E as nossas reações são diferentes, mas igualmente ligadas a essa misteriosa

alquimia das impressões e das sugestões inexplicáveis, que estão na base de

tanta aceitação entusiástica ou de tanta repulsa rigorosa.

A indicação da relevância do aspecto físico do livro em um texto anterior às

Terceiras estórias, escrito por um crítico considerado mestre por seus contemporâneos,

corrobora nossa hipótese de que, talvez sob a influência deste crítico, talvez por sua

própria experiência como leitor, Guimarães Rosa esmerava-se no aparato editorial de sua

obra, como veremos.

O uso criativo do espaço paratextual por parte de Guimarães Rosa não se

restringe a Tutameia, mas pode ser percebido em toda a sua obra, publicada com esmero

pela Livraria José Olympio. A exigência do autor no que diz respeito à edição de seus

livros é comprovada pelo volume-epitáfio Em memória de João Guimarães Rosa

(1968), originariamente destinado a comemorar a posse do autor na Academia Brasileira

de Letras, e de cuja Nota da Editora extraímos o trecho a seguir:

Guimarães Rosa logo começou a participar da preparação editorial do

opúsculo, como acontecia sempre que preparávamos edição ou reedição de

qualquer livro seu – “intervenções gráficas” que acatávamos: ele sugeria o

feitio das capas (em 1956 ficou sete horas ao telefone, trocando ideias com

Poty sobre o desenho de capa de Corpo de baile), rabiscava vinhetas ou

ornatos (foram de sua escolha os cul-de-lamps de Tutameia feitos por Luís

Jardim: um deles, desenho de um caranguejo, é o símbolo do signo zodiacal

do escritor), apresentava curiosos originais por ele mesmo rascunhados,

desenvolvidos definitivamente, e com satisfação, pelos artistas que ele

também escolhia e que fizeram capas e ilustrações para seus livros. Trouxe

sempre as “orelhas” para seus livros (p. 8).

A referida edição estampa ainda, à p. 119, fac-símile da primeira versão das

orelhas de Grande sertão: veredas, com desenhos de Poty, que acabaram não sendo

aproveitadas, como explica a legenda da ilustração:

39

Acaso será fácil adivinhar o que são esses desenhos cabalísticos? Por certo

que não: pois são desenhos que Poty executou – a pedido de Rosa e tudo por

ele sugerido ou esboçado – para as orelhas da 2ª edição de Grande sertão. E

por sinal que Rosa desistiu deles, encomendando outros que saíram naquela e

nas subsequentes edições. Observamos nos títulos a omissão de todas as

vogais. Procuramos com Poty identificar os símbolos que ele desenhara há

anos. Em vão: nada sabia. Rosa sugeria-lhe os motivos mas nada explicava.

A indicação de 1ª e 2ª orelha, nos desenhos, é do próprio Rosa.

Encontramos também, neste precioso volume, fac-símile da nota sobre

Sagarana, redigida pelo autor para compor a 1ª orelha da 1ª edição de GS:V (p. 136), e

sobre Corpo de baile, que deveria compor a 2ª orelha da referida 1ª edição (p. 200), e

ainda sobre o próprio Grande sertão (p. 202), que comporia as orelhas de suas edições

posteriores. Outra evidência do trabalho editorial do autor são os fac-símiles dos

originais de seus livros, que ilustram as edições de suas obras. Provas da dedicação de

Rosa aos detalhes da publicação de seus livros podem também ser encontradas na

correspondência com seu tradutor italiano (Bizzarri, 1980), onde o autor, além de

esclarecer pontos obscuros do texto, acerta detalhes da edição do livro, como epígrafes,

orelhas, glossário e notas de pé de página. No trecho reproduzido abaixo, ele anuncia a

divisão de Corpo de baile em três volumes (p. 79-80):

Sairá, agora, no decurso de 1964, uma nova edição do “CORPO DE BAILE”

– a 3ª. A novidade é que ele vai ficar sendo em 3 volumes. Três livros,

autônomos. A ideia já me viera, há tempos. Comecei por “vendê-la” aos

editores na França e em Portugal, que se convenceram depressa das

vantagens, e concordaram. E, por fim, consegui, facilmente, aliás, que o José

Olympio também a esposasse. De fato, o “Corpo de Baile” vinha sendo

prejudicado pelo “gigantismo” físico. A 1ª edição, em 2 volumes, unidos,

pesava, já. Arranjamos então a 2ª num volume só, mas que teve de ser de

tipo minúsculo demais, composição cerrada. E o preço caro, além de não ficar

o livro convidativo. Agora, pois, ele se tri-faz. (...) Se bem que os livros se

ofereçam como independentes mantém-se, de certo modo, a unidade entre

eles, mediante as seguintes manhas: 1) o título ab-original, “Corpo de Baile”,

é dado, entre parênteses, em letra discreta, no frontispício interno (mesmo

porque garante e permite a menção de “3ª edição”, coisa que muito importa);

40

2) a capa (a mesma da 2ª edição) será igual para os 3 volumes, variando

apenas as cores (grená-arroxeado ou bourdeaux, para um; azul para outro;

encarnado ou escarlate para o 3º); na relação das obras (“DO AUTOR”),

explica-se que: “A partir da 3ª edição, desdobra-se em três livros

autônomos:” e segue-se a indicação dos mesmos. Em consequência,

distribuir-se-ão também, pelos três, as epígrafes de Plotino e Ruysbroek: cada

um fica com uma, de cada; isto é, o “Noites do Sertão” pegará 2 de Plotino.

(Porque eram 4.) O livro ficará sendo em três livros distintos e um só

verdadeiro...

O Rosa não descuidava. As ilustrações de seus livros compõem um

concerto com o texto. O próprio autor traçava os esboços. São famosas as capas

de seus livros, as orelhas herméticas do Grande sertão: veredas, de Poty, e o índice

ilustrado de Primeiras estórias, de Luís Jardim, mesmo artista que ilustrou

Tutameia, com clichês ao final de alguns contos:

Figura 1: Ilustrações do miolo de Tutameia: moeda caranguejo / coruja.

Ora, a efígie de uma coruja pode ser vista em uma das faces do dracma,

antiga moeda de Atenas; e a imagem do caranguejo aparece em moedas de

cidades da vulcânica Sicília, na Magna Grécia:

41

Figura 2: Moeda da Sicília Púnica, Magna Grécia: Figura 3: Dracma, antiga moeda

caranguejo (Hefesto). de Atenas: coruja (Atena).

Disponível em: http://www.wildwinds.com. Disponível em: http://1.bp.blogspot.com.

Acesso em: 2 set. 2012. Acesso em: 13 mar. 2012.

Sendo ainda tutameia, como vimos, palavra originada do nome de uma

moeda, acho viável a interpretação desta ilustração, salpicada ao final de alguns

contos do livro, como os lados de uma moeda, que se alternam, num cara e

coroa, ora a trazer a imagem da coruja, ora a figura de um caranguejo.

As questões provocadas por essas imagens em sua referência com os

mitos gregos da astúcia serão aprofundadas nesta tese, num diálogo poético

com Tutameia – Terceiras estórias.

Araujo (2001) vê essas figuras como símbolos de nascimento e morte. O

caranguejo simbolizaria o nascimento, por se tratar do signo zodiacal do Rosa,

nascido em junho, três dias depois do dedicado ao santo que lhe dá nome, João,

que significa graça de Deus. Seria então a primeira das três graças, a gratis data,

recebida no batismo: A coruja simbolizaria a Sabedoria, Palas Atena, a

beatitude, a graça santificante, só recebida ao final, quando se completa o todo

terminado do percurso. E nos contos que não se encerram com nenhuma das

figuras, a autora vê o hiato, a graça recebida no dia a dia, onde ocorre o

encontro com o desconhecido, sempre a renovar a vida. As Terceiras estórias

descreveriam

uma caminhada do espírito de João Guimarães Rosa a Deus, por

intermédio do recebimento da graça na vida ativa, interior e

contemplativa. Essa caminhada é pontuada, assim, por influxos da

42

graça: da graça gratis data, que é recebida no começo da vida, com o

batismo (figurada na imagem do caranguejo, de Câncer), da graça

santificante, que redime, justifica, recebida no final (figurada na

imagem da coruja, Sapientia) e da graça recebida nos hiatos

introduzidos na vida diária, no clinamen imperceptível que termina

um mundo e inicia outro. As imagens da coruja, do caranguejo e a

página em branco são pontuações da graça na vida de João

Guimarães Rosa. O encontro final com Deus se faz no silêncio ao final

do texto de Tutameia, do enredo de Tutameia (Araujo, 2001: 304).

Já para Faria (2005), “o contínuo ir-e-vir é ritmado, no livro, pela

alternância dos símbolos do caranguejo e da coruja, que assinalam,

respectivamente, um voltar e um transcender, um vir aquém e um divisar o

além” (Faria, 2005: 201). O olhar para o além da coruja convidaria para as

possibilidades do futuro ainda encobertas. O retroceder do caranguejo seria o

chamamento da ancestralidade, “resguardado pelo sigilo ritual das coisas

sagradas” (Faria, 2005: 339).

Num conjunto e simultâneo avançar e recuar, a ânsia de se

ultrapassar é contrabalançada pela recorrente antiperipleia, de modo

que o presente urdido por estes dois movimentos contrários se

converte no tempo abissal que não cessa de mergulhar à própria foz

para lançar-se adiante sempre mais inédito e mais antigo, dotado do

frescor do que ainda não é, mas imbuído do louvor do que sempre

será (Faria, 2005: 339).

De acordo com essas leituras, o caranguejo apontaria para o passado,

como nascimento ou arché, e a coruja para o futuro, como télos ou morte. A

origem e a consumação seriam os dois lados da moeda, em cujo lançar acontece

a existência humana na terra. Mas por isso mesmo, por serem dois lados da

mesma moeda, creio que as duas ilustrações condizem com todas e qualquer

uma das terceiras estórias.

43

Concordo com as autoras no que se refere à interpretação das ilustrações

de Tutameia como elemento importante na leitura poética de suas estórias. Não

acho conveniente, porém, procurar semelhanças entre as estórias carimbadas ou

não, com caranguejo ou com coruja. Soa-me como mais uma tentativa de

classificação que deixa passar entre as malhas a essência da obra.

Depois de muita observação, e também de alguma prática editorial,

concluí que essas ilustrações, prenhes de significados, são vinhetas de remate,

criadas para finalizar contos cujos textos terminam no alto da página.

Quanto à distribuição das ilustrações entre os contos, percebi o seguinte:

a) os contos sem ilustrações terminam no final da página;

b) os contos ilustrados terminam no topo da página;

c) todos os contos que terminam no topo da página são ilustrados;

d) a alternância entre uma e outra ilustração não se quebra, começando

pela coruja, seguida pelo caranguejo, e assim sucessivamente.

Sabendo-se, ainda, que a disposição dos contos no livro segue a ordem

alfabética (exceto dois, como vimos), seria muita coincidência que um critério

tão pragmático, como a existência ou não de espaço em branco na página após o

final do conto, resultasse em uma marca que identificasse a peculiaridade deste

ou daquele conto específico, e que essa marca ainda resultasse em uma ordem

em que os símbolos se alternassem regularmente.

É mais provável que, dos contos com espaço em branco, um recebeu a

coruja, outro o caranguejo, e assim até acabarem todos, resultando em 26 contos

ilustrados, 13 com cada uma das figuras, alternadamente, e 18 sem nenhuma

ilustração, por pura falta de espaço na página.

Acredito que não se pode pensar na coruja sem o caranguejo, nem no

caranguejo sem a coruja, pois ambos são o mesmo, figurações da astúcia poética

de Tutameia, que ecoa em todas as terceiras estórias, independentemente da

imagem que ela porte ao termo de suas palavras. É como se, a cada página, a

coruja e o caranguejo fossem astuciosamente a marca d’água, a chancela, a

rubrica, o selo da poética rosiana.

44

Ao longo de Tutameia, piscam-nos as moedinhas: cara e coroa, coruja e

caranguejo. A leitura do livro e da vida requer olhar mais a fundo, andar de

banda, a ginga exata, a medida do destino. Para alçar-se ao que lhe é destinado,

para encarar a travessia, carece de ter coragem, e se armar com as astúcias.

A vida e a morte são dois lados da mesma moeda. Uma de cada lado,

sobre o globo ocular do morto, hão de serem colocadas, as tutameias moedas, os

óbolos para o barqueiro. No círculo do vil metal estampam-se o fim e o começo,

verso e anverso da página. A coruja e o caranguejo são os lados da moeda

chamada tutameia, e cada estória é um conto desta moeda. Por isso para o autor

tutameia é mea omnia:

tutameia: nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta,

quiquiriqui, tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica, quase-nada;

mea omnia (Rosa, 1067: 166).

Cada conto de Tutameia narra a vida de uma pessoa que se depara com o

próprio destino, às vezes senta e chora, mas sempre encontra um jeito de se

confrontar com o real e amorosamente instaurar mundo. Tutameia é a

moedazinha que entregarás ao barqueiro, quando atravessar o rio do

esquecimento, sua obra: a moedinha de si, cunhada em ferro em brasa: o

caranguejo e a coruja, os olhos a te olhar do livro: decifrarás o enigma?

A leitura de Tutameia traz para a luz a presença da astúcia sábia, que se

manifesta nas tramas de suas estórias, em suas ilustrações e mesmo na sua

composição gráfica, evocando a voz que canta os mitos da astúcia, como vigorar

de uma questão essencial que se apresenta para o leitor, para o homem.

Os personagentes das Terceiras estórias provocam o questionamento sobre

o sentido do ser, suas aventuras são travessias no mar da realidade, singrando

barcos ou nadando soltos. A astúcia poética atua na resolução dos conflitos, não

pela imposição deste ou daquele, mas para que fique bom o negócio para

ambos os lados, na busca do que lhes é próprio. Vejamos como isto se opera na

leitura de um conto de Tutameia.

45

A estória de Romão e Nhemaria

A astúcia poética encontramos na estória de Romão e Nhemaria, cuja

travessia de vida, amor e morte nos é narrada no conto “Reminisção”, um dos

que formam a marca autoral do índice, JGR, correspondente então ao nome do

Rosa, que evoca ao soar o barroco motivo da beleza que fenece, Rosa cujas

pétalas são as delicadas páginas que se curtem com o tempo, sem perder a cor,

o aroma nem o toque de cetim. Poeta já desde o nome, nascido em Cordisburgo,

cidade do coração, do coração finou-se, após colocar no mundo esta obra

colossal, pela intensidade de sua linguagem poética, capaz de desvelar velando

a essência da verdade, o sentido do ser, convocando o leitor para a

possibilidade de um novo olhar, que se revela como o olhar primeiro, a nos

lançar na travessia de viver, pensar, ser, amar, morrer.

Assim é o olhar de Romão a olhar Nhemaria, sua amada esposa. Ela era

feia, chata, grossa, uma draga de fêmea. Chamavam-lhe a Drá, a Pintaxa,

motivo de escárnio e zombaria. Saber dela ninguém queria, só aquele moço, o

escolhido. Todos diziam que ele coisa melhor merecia. Mas amar não é merecer,

é doação de Eros, do destino. “Não podemos jamais esquecer que ser é amar e o

amar jamais pode ser reduzido a qualquer explicação causal ou genética, muito

menos ser objeto de conhecimento científico” (Castro, 2011: 300).

O olhar de Romão cintilava esta sabedoria, só dele, cavaleiro

amantíssimo, que levava a sério os “súbitos, encobertos acontecimentos, dentro

da gente” (Rosa, 1967: 81). E os dois, ninguém sabe como, namoraram,

noivaram, casaram, juntos viviam a vida. “Comparem-se: o vagalume, sua

luzinha química; fatos misteriosos – a garça e o ninho por ela feito” (Rosa, 1967:

81-82). Realizavam o mistério.

O amar é a mais completa realização do mistério que, fundando toda

proximidade, sempre se retrai, jogando-nos na distância, o entre ser e

estar. No e pelo amar o mistério acontece naqueles que amam e se

amam no e a partir do mistério (Castro, 2011: 292).

46

Mas a feiúra de nascença baixava da mulher a autoestima, e ela se

revoltava com essa triste sina, e descontava no marido, que por amá-la decerto

ela achava que pouco valia. Espantava-o com a língua afiada e as garras em

riste. O sábio sapateiro, porém, seguia batendo sola, enchia a monstra de

mimos, em delírio lhe percebia a beleza. “Romão punha-lhe devoção, com

pelejos de poeta, ou coisa ou outra, um gostar sentido e aprendido, preciso,

sincero como o alecrim” (Rosa, 1967: 82).

Chegou a fugir com outro, a diaba, piorando ainda mais a fatura: feia,

chata e sem-vergonha – como é que ele aceitava, não via? Mas só quem via era

ele, que aceitou-a de volta, ignorando a matemática, que para esse tipo de

acerto ele viu que não servia. “Sapateiro sempre sabe” (Rosa, 1967: 82). E foi o

que todos viram, quando sem mais nem menos quedou-se Romão na cama,

moribundo. A esposa do seu lado não saía, chorosa, amorosa, cuidava,

desesperava-se em vê-lo partindo para o outro lado da curva, deixando-a para

trás, só somente. No instante de sua passagem, com os olhos emprestados,

todos puderam ver a luminosidade que emanava da alma de Nhemaria.

Romão por derradeiro se soergueu, olhou e viu e sorriu, o sorriso

mais verossímil. Os outros, otusos, imaginânimes, com olhos

emprestados viam também, pedacinho de instante: o esboçoso,

vislumbrança ou transparecência, o aflato! Da Drá, num estalar de

claridade, nessa se assumia toda a luminosidade, alva, belíssima,

futuramente... o rosto de Nhemaria (Rosa, 1967: 83).

É isso que almeja quem se deixa tomar pela astúcia poética: a

consumação do destino, a completude da vida, que na morte se realiza, os olhos

de ver o amor, que logram sobrepujar os valores instituídos e alcançar a beleza

da verdade, que se desvela num átimo e a tudo ilumina, não com a luz da

razão, mas com a luz do amor, vaga-lume que do nada brilha e desaparece.

47

Todo amar é sem finalidade, pois tem em si mesmo o seu fim, isto é,

sua própria realização e consumação. Mistério. É a renúncia mais

radical, proveniente de um saber radical, estranho. Mas foi uma

renúncia que nada lhe tirou, renunciou ao mundo dos entes porque

um “outro” saber o projetou no vigorar do ser: a terceira margem do

rio (Castro, 2011: 304).

As questões da astúcia

O ser humano é ambíguo, é Entre-ser. O real é

ambíguo: muda e permanece. A linguagem é ambígua,

tanto mais fala quanto mais silencia. A palavra é

ambígua, pois lavra sempre no vigor do “entre”.

Ambíguo é o conhecimento, pois, como muito bem diz

Platão, é dianoia, onde temos: diá-noia, o conhecimento

que nos vem através de, em dois, entre.

(Castro, 2005: 54).

Depois de nos encantarmos com a narrativa rosiana, onde se manifesta a

astúcia poética, o saber ser, amar, morrer feliz, proponho pensar as questões

que a astúcia nos coloca, em nossos enfrentamentos com o real.

Na sociedade em que vivemos hoje, dominada pela ciência e tecnologia,

à astúcia é atribuído um juízo negativo, associado à desonestidade, mas

sabendo todos nós que para além da letra o que vale mesmo é a lábia e o lucro.

Aliada à corrupção das altas rodas está a racionalidade científica, a

comprometer o caráter da astúcia, pois que esta opera justamente onde não há

regras nem medidas capazes de mensurar objetivamente seu alcance, suas

causas e efeitos. E, de acordo com Heidegger:

[Hoje] Só vale como verdadeiramente real aquilo que é

cientificamente demonstrado, isto é, calculável. Graças à

calculabilidade, o mundo se tornou, sempre por todos os lugares,

submetido ao domínio do homem (Heidegger, 1983: 5).

48

Mas, por mais que se tenha tentado tornar o tempo linear e a vida uma

progressão para frente, a Terra ainda roda todo dia, sempre de um modo novo,

original, fazendo girar os mares e os ventos, as ilhas e os continentes, onde

vivem e migram os animais da água, da terra e do céu. Todo dia nasce e morre

planta, bicho, gente. E azul é o céu. E o mato cresce, e o sujeito capina de novo,

até ave-marias. Nessa barulheira toda, o artista compõe uma moda de viola,

falando da brabuleta marelinha que poisou na rosa do seu quintal. É a vida

vigorando na arte. Não tem explicação científica para que em uns esta

sensibilidade brote mais, e em outros, menos. Como pode um peixe vivo?

A natureza não segue as regras dos homens, os homens é que tentam

compreender o modo como opera a natureza. Os arredondamentos que a

ciência efetuou para facilitar as contas não alteraram o curso dos fenômenos.

Depois de tantas interpretações científicas, o homem acha que dominou o

mundo. Mas o homem não dominou nada. Reconhecer isso é o primeiro passo

da astúcia sábia. Uma coisa é a astúcia da razão, pela qual o homem busca

dominar a natureza como recurso utilizável, e outra é a astúcia do pensar, que

ouve o concerto da physis, o silêncio da origem, e toca o que lhe é destinado, soa

o sentido do Ser. O sábio astucioso está sempre a ver navios, mesmo quando

ainda não há mar. Soa conforme o concerto do corpo de baile. E percebe:

A astúcia em sua essência não é boa nem má, é ambígua, pois sendo

astuciosa, só aparece conforme esteja dissimulada, não se dá a cálculos e

pareceres. Ela anda pela sombra, come quieto, dorme com um olho fechado e

um aberto. Pode ser a possibilidade que o fraco tem de ganhar do forte. Quem

tem a boca maior, afinal, nem sempre engole o outro. É como diz o Rosa:

O diabo é às brutas, mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de

traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o

medo pavor. Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do

mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se

economiza (Rosa, 1986: 15).

49

No jogo da vida, sabemos que cada lance é decisivo para o final da

partida. Por isso é importante contar com uma boa equipe, bons craques e um

bom técnico. A estratégia, o esforço, a mira e o lance, a velocidade dos pés e o

senso de oportunidade fazem um grande artilheiro, sempre provido de astúcia.

Porque não basta chutar, tem que ter a manha da aranha. A astúcia dos viventes

provê aqueles que dela dispõem de recursos, como habilidade manual e

capacidade de planejamento, e também aguça o senso de oportunidade, que

possibilita ao astucioso agir rapidamente, no sentido da plena realização de seu

destino. É o manejo do remo. A astúcia permite que, na disputas que disputar, o

homem tenha sempre uma saída, que lhe permita obter o êxito desejado. Mas

vencer não é destruir o adversário, é apropriar-se do próprio. Em situações

agônicas, a intensidade do tempo condensa passado, presente e futuro, e o

instante se abre da melhor forma para quem sabe aproveitar as possibilidades a

ele destinadas, consumar o nadar na água brotejante.

O que a maioria das pessoas não percebe, porém, é que a lida do dia a

dia se faz em cima de uma corda bamba, que ninguém tem garantia de nada,

que enquanto vivemos, morremos, a cada instante, e nossa origem, assim como

nossa finitude, consuma-se no entre-ser do aqui-agora, que condensa todas as

possibilidades que nos doa nosso destino, o qual nos cumpre realizar: ser, feliz,

amar, morrer. “A morte é o permanente horizonte no qual o homem tende e se

lança, e só e tão-somente por isso ele é mortal. Ser mortal é querer ser o que

não-é: feliz” (Castro, 2011: 205-206).

A vizinhança constante da Morte, míseros mortais que somos, se afigura

poeticamente no Sétimo selo de Bergman (1956). A ceifadora lusófona é

feminina, mas pros nórdicos é um homem, a quem constrangida preciso tratar

por “ela”. A estória se passa na Idade Média, tendo como pano de fundo as

Cruzadas, a Inquisição e a Peste Negra, conjuntura em que a Morte saltava aos

olhos de tal forma que se pensava em fim dos tempos – daí o título da obra de

Bergman, numa referência ao livro do Apocalipse, citado inclusive na estória,

no início do filme, e ao final, quando o cavaleiro senta-se à mesa de casa, depois

de tantas pelejas.

50

O protagonista é um nobre cruzado, como se vê pela cruz estampada em

sua veste e no punhal da espada que carrega. Acompanhamos o regresso deste

cavaleiro, numa travessia pontuada por encontros inesperados. Ao vislumbrar a

Morte a alguns metros, a mirá-lo, o cavaleiro propõe uma partida de xadrez,

valendo a vida dele. Ela concorda, dizendo porém que não poderia adiar. E

começam o jogo, que irá durar toda a viagem, a travessia de volta, quando o

destino se consuma. Ele não queria jogar com seu subordinado, o escudeiro,

mas sim com a Morte, adversário digno de honra e fama.

Na Idade Média, época da ação do filme, o xadrez recém chegava à

Europa, com os muçulmanos. Naquela época, era controversa a aceitação desse

jogo pela poderosa Igreja Católica, que chegou a proibi-lo. Mas sua presença é

comprovada por imagens que retratam jogadores diante do tabuleiro, como a

do painel medieval da igreja sueca que inspirou Bergman, e que aparece no

filme: um cavaleiro jogando xadrez com a Morte. Jogar xadrez significa para

nosso herói cavaleiro não só a assimilação de um costume do povo a quem

tinha como inimigo, os muçulmanos, ma também a independência de sua

individualidade quanto às prescrições da Lei da Igreja. Seu julgamento estava

acima do que reza esta ou aquela doutrina, sua consciência o deixava livre para

jogar xadrez ou não, conforme queira ou não queira. A subjetividade moderna

estava tomando forma, assim como se consolidavam naquela época as regras do

xadrez moderno, com a inclusão do bispo e da rainha, os poderosos da Europa

medieva. Como quem joga o jogo novo se posta o homem diante da Morte

jogando xadrez, sobre os rochedos de uma praia deserta, a caminho de casa, de

volta da guerra. Ele não só joga xadrez sendo um cruzado, como ao ver a Morte

não a segue, e sim a desafia, convidando-a para este jogo de astúcias.

O homem poderia simplesmente ter ido com a Morte, mas acha que é tão

bom estratego que seria capaz de enganá-la. Ele queria mais prazo, porque

ainda não tinha entendido o sentido da vida. Ansiava por respostas às suas

perguntas mais íntimas, não ouvia o retorno de suas preces. Agarrando-se às

procuras da vida, não se doava à renúncia de apenas ser no entre, e morrer.

51

O jogo então passa a ter características curiosas. Não é mais o próprio

jogo que se joga digo, o jogo de xadrez , mas o jogo de esquiva do

jogo. Só que o cavaleiro não sabe que a morte perscruta suas

confissões mais íntimas. E qualquer tentativa de lance que passe por

sua mente, e que, para ele, faria parte de um jogo secreto de sua

mente para ludibriar a morte, é rapidamente percebido pela morte.

Ou seja, ele não sabe que suas esquivas e suas esperanças de ludibriar

a morte são completamente vãs. O jogo é um passatempo; pior, um

passatempo angustiante e desesperador. E isso ele só sabe porque não

escolheu morrer no exato instante em que a morte lhe apareceu

(Silva, 2011).

Achando que tudo pode, o homem julga poder lograr a morte. Ledo

engano, no qual se perdem os homens, com a soberba dos assoberbados. Pensar

em enganar a morte: pense! Querer ver a face de Deus: olhe! Mas, quando!

Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.

Estar a caminho é a condição humana. O encontro com a morte será

sempre inusitado, pois o homem tem essa gana de querer ter mais, dominar,

possuir, de gozar na cara do outro. A Morte ri da empáfia do gajo.

A travessia entre vida e morte é a difícil caminhada de renunciarmos

à nossa vontade e ao nosso poder aparente para nos deixarmos tomar

pelo único e necessário em todas as procuras: a renúncia ao ter para

vivermos e experienciarmos a liberdade de ser [...] por inteiro,

integralmente, em plenitude, dimensionados e cuidados pelo que nos

foi destinado: sermos no ser, para sermos o que somos, o que nos foi

dado: nosso destino (Castro, 2011: 233).

Na ambição de querer ter mais poder, de ser um star, o homem se

esquece de si, só enxerga seu espelho. Querer ter mais é em si o demo, que vige

nos crespos do homem.

52

A ambição humana de dominar céus e terra, animais e vegetais, já se

encontra no Coro de Antígona, de Sófocles (apud Leão, 2010a: 178-9):

Muitas são as coisas extraordinárias, mas nada

é mais extraordinário do que o homem!

Caminha por sobre as espumas da preia-mar

no meio da tempestade sulina do inverno,

atravessando montanhas de ondas abismadas de raiva.

Extenua a inesgotabilidade indestrutível

da mais sublime das deusas, a Terra,

revolvendo-a ano após ano,

puxando com cavalos pra lá e pra cá os arados.

Sempre astucioso, o homem enreda o bando

dos pássaros em revoada e caça os animais da selva e os

agitados moradores do mar.

Com engodo domina o animal que pernoita e anda nos montes,

subjuga o dorso de crinas silvestres do corcel e

põe o jugo das cangas de madeira no touro selvagem.

A si mesmo encontrou tanto no soar da palavra e na

compreensão, que, com a rapidez do vento, tudo abarca,

como na coragem com que domina as cidades.

Também pensou como escapar aos dardos do clima

bem como às inclemências da frieza.

Pondo-se a caminho por toda parte, desprovido de experiência

e em aporia, chega ele ao Nada.

A morte é o único ataque, de que não se pode defender

por nenhuma fuga, embora consiga esquivar-se

com habilidade às indigências da enfermidade.

Engenhoso muito embora, porque domina, além da

expectativa, a lentidão da habilidade, cai algumas

vezes até na perversão,

outras saem-lhe bem nobres empresas.

Por entre os estatutos da terra e a conjuntura

53

exconjurada dos deuses caminha ele.

Ao sobrepujar o lugar, o perde, a audácia o leva a favorecer

o não-ser contra o ser.

Aquele que põe tais coisas em obra,

não se torne familiar na minha lareira

nem meu saber compartilhe comigo seu desvairar-se!

Preocupado em sobreviver e buscar ter domínio sobre o real, o bicho

homem faz ouvidos moucos, se esquece do sentido do ser. Entretido na faina

diária, empenha se em fabricar muros, armas, utensílios e máquinas que

supostamente lhe permitam domesticar a natureza. Por isso estão todos tão

tristes. Desplugaram-se da essência. Mas a vida é a maria-sem-vergonha que

brota na trinca do concreto. A luz é o destino do ser. O que há são mistérios.

Aquilo que se manifesta na travessia entre o aqui e o lá é o que se

percebe na astúcia de se deixar levar pelas ondas, como o Burrinho Pedrês de

Sagarana, que dançando com a correnteza soube chegar do outro lado em meio

a uma tromba-d’água, trazendo ainda uns viventes a salvo com ele. De acordo

com Détienne e Vernant (2008), nos mitos gregos, a astúcia (métis) não é

privilégio dos homens. Ela é sim de extrema importância na estruturação da

teia alimentar, que hierarquiza os viventes. Em rio que tem piranha, jacaré nada

de costas. A luta pela sobrevivência, tanto no sentido de se safar dos predadores

como de abater a presa e garantir o alimento aos filhotes, leva os animais,

dentre eles o homem, a desenvolverem estratégias de ataque e defesa,

produzindo abrigos, estocando comida, defendendo território.

Entre todos os animais distinguidos pela métis, há dois que se

impõem de maneira particular: a raposa e o polvo. Para o

pensamento grego, eles têm valor de modelo; eles são como a

encarnação da astúcia no mundo animal. Cada um representa um

aspecto essencial da métis. A raposa tem muitos trunfos em seu bolso,

54

mas sua astúcia culmina no que se pode chamar de conduta da

revirada. De seu lado, o polvo simboliza, na infinita leveza de seus

tentáculos, a inapreensibilidade pelo polimorfismo (Détienne e

Vernant, 2008: 39).

Machado, no “Conto alexandrino” (2012), reparava na semelhança entre

o caráter de certas pessoas e o de alguns animais. Tudo começa quando o

filósofo Strobius convence seu colega Pítias a testarem sua nova filosofia: “os

deuses puseram nos bichos da terra, da água e do ar a essência de todos os

sentimentos e capacidades humanas. Os animais são as letras soltas do alfabeto;

o homem é a sintaxe”. Os personagens empenham-se então em saber se essas

características nos animais poderiam ser inoculadas, bebendo-se o sangue

daquele animal cujas características gostaríamos de adquirir, como a astúcia da

raposa ou a bravura do leão.

Visando comprovar a tese, passaram a ingerir sangue de rato, para ver se

se tornavam gatunos. Nisso se esmeraram em sádicos algozes, judiando e

tirando sangue dos bichinhos, aos montes. O avanço do método, que erradicava

ainda por cima os maléficos roedores, inspirou a que se usassem também os

humanos malfeitores como cobaias em experiências em prol do progresso da

medicina. E os filósofos, enfim cleptomaníacos e plagiadores, acabaram presos,

tornando-se cobaias de um novo experimento científico: de que o pendor para o

roubo estaria nas mãos dos larápios. Antes de serem executados, tiveram as

mãos destrinchadas, e também lhes arrancaram os olhos e o estômago, para

estudos. Herófilo, o anatomista, dissera-lhes ainda por cima que lhes seria uma

honra colaborar com a ciência. A isso brindaram os ratos, mas os outros animais

não acharam graça, temendo serem os próximos. “Ao que retorquiu um rato:

‘Mas até lá, riamos!’”

55

A funcionalidade torna os animais objetos de pesquisas científicas. A

penicilina proporcionou o surto demográfico. O plástico, que não existia, hoje se

acumula nos solos e águas. Mas não se sujuga Mama Gaia impunemente. Hão

de cair raios e trovoadas, até todo mundo acordar para o desconcerto do

mundo. Ouçamos o singelo apelo das tutameias no nada, obras de arte, poesia.

Entre-ser. Travessia. Nonada. Tutameia: coisica de nada: ser tomado pela astúcia

de Métis, a arteira, dar ouvidos a seus bons conselhos, consumar o destino de

ser feliz. Como disse o Dito, ser alegre de teimoso. A astúcia poética é o soar

consoante o logos, é a astúcia de querer ser, consumar o destino.

A astúcia da razão compreende o plano da lógica, acessível aos mortais,

muito útil por sinal, responsável pelo atual avanço tecnológico da humanidade.

É a astúcia do querer ter, do poder, do dominar, de querer tirar proveito sempre

que neguinho der bobeira: vacilou, perdeu – vai que cola?

Mas a razão não explica a vida e a morte, o sentido do ser. Disso quase

não fala. E acaba se iludindo de que isso não existe, e crê-se acima dos deuses,

que podem lograr a Morte, desafiar o destino. Reles humanos, míseros mortais

que somos, ousamos desafiar os deuses. O que pode o homem? Nonada. No

aqui e agora ele é um sendo, a realizar um destino – ou é apenas marionete de

sistemas e ideologias que se colocam como a verdade? A astúcia poética atua na

consumação do destino, tanto no sentir do sentente, como no elaborar do

pensamento do artista, no produzir e apresentar ao real aquele sentimento,

aquele olhar, aquela percepção, de modo a fazer funcionar o comboio de cordas,

que se chama coração, cujo tuntum harmoniza o tom dos humanos. Às vezes

um acorde acorda um homem, o olhar apruma e ele olha os lírios do campo.

O que nos aparece como natural é provavelmente apenas o habitual

de um longo hábito que esqueceu o in-habitual do qual aquele se

originou. Um dia, contudo, aquele in-habitual tomou de assalto,

como um estranho, o homem e levou o pensar para a eclosão do

admirar (Heidegger, 2010: 22).

56

É isso que encontro na obra do Rosa. O boi que me viu e que agora tenho

que agarrar com a unha se chama Tutameia, e seu João Rosa criou esse boi com

tanto capricho que dá é trabalho para cuidar. É um boi cheio de astúcias. Para

encarar com mais recursos esta tarefa, aproximei-me do pensamento de

Heidegger, buscando situar as questões da astúcia na sua referência com o ser

humano, o ser, a linguagem, a arte, num diálogo com a obra do pensador e a do

escritor mineiro, atravessadas pela presença dos mitos gregos da astúcia. No

empenho de ser, não ser e vir a ser, carece de ter coragem, e as astúcias, para

deixar acontecer o realizar-se poético, que do nada criativo recebe tudo que

tem. O que soa na escuta do logos é o destinar-se do ser no tempo: travessia de

nonada a tutameia. A astúcia poética é a coragem de saber ser, por isso faz

acontecer, traz para a luz, deixa viger. A astúcia poética sabe o tempo de plantar

e de colher, de dar e de receber, de amar e de morrer. A questão da astúcia em

Tutameia, que ecoa desde seu título, afigura-se nas ilustrações e orienta as

tramas das estórias, aponta para várias outras questões, a ela relacionadas.

Como fica a astúcia em relação ao destino, à morte, à arte, à ciência, à

linguagem? Que pensamento vigora nas páginas deste livro?

No encalço dessas indagações, proponho debruçar-me sobre os mitos

gregos da astúcia – Métis, Atena, Hefesto, Hermes e Ulisses – tomados como

imagens-questões, para pensar a posição da astúcia diante da Moira, do Logos,

do Tempo, da Linguagem, do Mistério, da travessia do entre-ser, procurando

apropriar-se do que lhe é próprio. A cada um desses mitos será dedicado um

capítulo desta tese, dialogando sempre com as Terceiras estórias. Procuro atentar

para as imagens-questões que se manifestam nos mitos da astúcia, escutando a

fala e o silêncio da linguagem poética. Estará sempre no horizonte desta

abordagem a renúncia a qualquer explicação científica ou metodológica deste

ou daquele aspecto demonstrado pela narrativa dos mitos ou pelas estórias

rosianas. Buscarei escutar o insondável mistério em que estamos mergulhados,

e que nos leva a levantarmos as questões essenciais, diante das quais a arte e os

mitos nos colocam com seus enigmas.

57

Recorrer à leitura dos mitos da astúcia constituiu-se, na tarefa imposta

pela escuta de Tutameia, exercício de leitura de suas estórias, no sentido de

operar a verdade da obra. O constante perigo é o de racionalização desses

mitos, numa tentativa de utilizá-los para esclarecer o hermetismo das Terceiras

estórias. Mas qualquer aplicabilidade do mito neste sentido estaria traindo seu

próprio vigor originário, de ao invés de explicar, colocar ao homem sempre e a

cada vez novas questões. Os mitos da astúcia serão aqui pensados não como

alegorias que representem ou expliquem algo, mas como imagens-questões, que

“concretizam o real se realizando em realizações incessantes”, na “tensão

permanente entre o ditar da língua e a ausculta da linguagem” (Castro, 2005:

19-20).

A leitura metafísica dos mitos irá buscar sua lógica, explicar sua

simbologia, calcular sua significação a partir de elementos antepostos a priori,

com a bitola da causalidade e da finalidade. Ou seja, buscará no mito a

explicação da realidade, ignorando o vigorar do mistério insondável com que

nos defrontamos quando pensamos as questões que os mitos colocam.

As imagens-questões nos mitos concretizam o real se realizando em

realizações incessantes. Nas imagens-questões há uma tensão

permanente entre o ditar da língua e a ausculta da linguagem. No

trânsito desse transe, transam o saber e o sabor de toda sabedoria da

poiesis como imagens sonoro-visuais que manifestam o real em

caminhos que não conduzem a lugar nenhum, porque o caminho é o

próprio real se dando em desvelo velado de realizações. Nesta escuta

erótico-amorosa, a linguagem poética do silêncio se tece e entretece

mergulhando tanto mais nas profundezas, como raiz, quanto mais

eclode no livre aberto de toda abertura e clareira apropriante e

manifestante das questões. A imagem-questão não é nem pode ser

reduzida a uma figura de linguagem, seja retórica, seja gramatical.

Nela vige e vigora uma ambiguidade poético-ontológica, fonte

inaugural e originária de tempo e mundo, possibilitando sempre

novas leituras e interpretações (Castro, 2005: 19-20).

58

Capítulo 1

A barriga do rei

E Métis permaneceu dissimulada nas entranhas de Zeus.

Détienne & Vernant

A palavra métis quer dizer medida: “Provém de uma raiz verbal que

significa ’medir’, o que pressupõe ‘cálculo, conhecimento exato’. Este sentido se

conservou em métron, ‘medida’” (Brandão, 2008, v. 2: 121).

Na mitologia grega, a astúcia é personificada pela deusa Métis, Astúcia

ou Sabedoria, primeira esposa de Zeus. Filha de Oceano e Tétis, “símbolo do

poder e da fecundidade feminina do mar” (Brandão, 2008, V. 2: 181), provém

das águas, potência fluida que se adapta às circunstâncias, maleável, cuja

profundidade não se deixa entrever na superfície. Métis traz uma Sabedoria

oracular, é capaz de prever as possibilidades possíveis e, a partir desta previsão,

saber a medida do que deve ou não deve ser feito para se obter êxito naquilo

que se almeja realizar. Explicam os estudiosos:

Métis diz respeito ao futuro considerado no sentido aleatório; sua

palavra tem valor hipotético ou problemático; ela aconselha o que

convém fazer para que as coisas tenham chance de chegar de um jeito

mais do que de outro; ela diz o futuro, não como o que já está fixo,

mas como desdita ou sorte possíveis, entregando os meios de que

dispõe seu astucioso saber para fazê-lo virar para o melhor mais do

que para o pior (Détienne e Vernant, 2008: 98).

Na estória do mito de Métis, conta-se que ela deu de beber a Crono uma

erva que o fez desengolir os filhos, dentre eles Zeus, que pôde assim tomar o

poder do pai. Entronado, Zeus se casou com Métis, e num jogo de amor engoliu

a companheira, que passou a vigorar dentro dele.

59

Tendo Métis em si mesmo, Zeus dispõe da astúcia necessária para

enfrentar os desafios inesperados que a existência oferece, vencer os adversários

e reger o seu domínio.

Engolindo-a, Zeus fecha sobre Métis o liame que a retém para sempre

prisioneira; ele a fecha definitivamente dentro de si para que,

incorporada à sua própria substância, ela lhe entregue a todo instante

este conhecimento dos azares do futuro que vai dar-lhe o domínio

sobre o curso móvel e incerto dos acontecimentos. (Détienne e

Vernant, 2008: 103).

Figura 4: Nascimento de Atena. Ânfora ateniense, circa 550 a. C. Louvre, Paris. Disponível em:

http://images.wikia.com/fantasia/pt/images/7/70/Metis_greek.jpg. Acesso em: 15 jul. 2012.

Na origem do domínio de Zeus, vigorando em seu reinado, encontra-se

Métis dissimulada, que gera Atena. O senhor dos deuses, aquele que detém os

raios que a tudo clareiam, encontra-se sentado no trono que traz em sua base a

sabedoria fluida de Métis, que o orienta na lida com o inesperado. A abertura

para o desvelamento da verdade vigora na latência deste saber velado, a

potência de Zeus assenta-se sobre o retraimento de sua esposa, Métis, que

60

sabiamente e na encolha aconselha o monarca sobre as possibilidades de ser o

senhor e ter o domínio do reinado. A astúcia de Métis, na sua latência

escondida, incorpora-se no poder de Zeus. Métis é, pois, a prudência, a astúcia

que medita, engendrada no ventre de Zeus e fulgurante nos olhos de Palas

Atena. Na barriga do deus ela vigora, e nos olhos da deusa, cujo raio vislumbra

a medida do brotamento das coisas.

Dissimulada nas entranhas de Zeus, Métis confere ao soberano a medida

do improvável, tornando-o capaz de reger sobre céus e terra, deuses e homens,

articulando seus poderes de forma harmoniosa, para que os conflitos sejam

resolvidos com justiça. Estando em seu âmago provido de astúcia, Zeus pode

enfim reinar sobre o imprevisível. “Métis é uma faculdade do espírito de Zeus e

Zeus tem incorporada a seu espírito essa faculdade nomeada Métis tanto quanto

Métis é Métis com uma existência e uma história outras que não são nem a

existência nem a história de Zeus” (Torrano, 1992: 76, apud Castro, 2011: 165).

Diz a estória do mito que, após se casar com Métis e a engolir, Zeus

tomou como segunda esposa a Têmis, uma das Titânidas, filha de Urano e Gaia.

Ao contrário de Métis, cuja atuação se dava nos terrenos da incerteza, Têmis

personifica a Lei Eterna, a imutabilidade das coisas, o inexorável. Vinda da

essência das águas, Métis é fluida, polimórfica, vai seguindo seu curso

conforme a caída do solo. Vinda da essência da Terra, Têmis é fixa, categórica,

“ela anuncia o futuro como se ele estivesse já escrito; exprimindo o que será no

modo do que é, ela não formula conselhos, ela pronuncia as sentenças; ela

ordena ou ela proíbe” (Détienne e Vernant, 2008: 98).

Estes dois casamentos complementam-se para assegurar a

supremacia do novo rei dos deuses, como se respondesse as duas

divindades associadas em um casal de potências solidárias e opostas.

Uma e outra são divindades oraculares cujo saber abrange todo o

ciclo do tempo; uma e outra, por sua relação com as realidades

cósmicas primordiais que são a água e a terra, dispõem de poderes

anteriores ao reino de Zeus e mesmo ao nascimento do jovem filho de

Crono (Détienne e Vernant, 2008: 97).

61

Têmis e Zeus geraram as Horas, que regem as estações do ano, e as

Moiras, que regem o destino. As Horas e as Moiras são, portanto, providas de

astúcia, pois todos os filhos de Zeus são providos da astúcia nele incorporada.

Mas o mito não fala de um passado remoto, e sim do que a cada instante

irrompe na travessia humana entre vida e morte, no combate originário e

incessante entre dia e noite, luz e trevas. O combate originário, o pólemos de

clareira e floresta não cessa nunca de vigorar, e nele o ser humano é lançado e

se lança na procura de realizar-se.

Também Zeus, o deus diurno do raio, não é um vitorioso definitivo.

Seu domínio se funda na força dos Titãs que sustentam o Olimpo. É

que a luz recebe a luminosidade de seus raios de um combate com as

trevas. Uma claridade sem sombras é uma onipotência impotente.

Não ilumina, cega. Luz e trevas, espírito e matéria, história e

natureza, céu e terra, o racional e o irracional, ordem e caos, eros e

penia recebem a potência de seus poderes de ser de um combate sem

tréguas. Neste combate originário toda vitória é aparente. Trata-se

apenas de fenômeno de superfície (Leão, 2010b: 114).

O domínio de Zeus se funda também nos conselhos de Métis, que dentro

dele vigora e vige sob seu trono. Métis vigorando encolhida, entranhada em

Zeus, como uma imagem-questão, diz do retraimento do que não sendo, somos.

“Retrair-se não é um nada puramente negativo. Retraimento pertence à

dinâmica do próprio pensamento. O que se retrai, até nos afeta e nos reivindica

mais do que qualquer objeto” (Leão, 2010b: 115). O pensamento só se dá

enquanto se retrai como mistério.

O mito de Métis, como imagem-questão do que, ao se dar, se retrai,

convoca-nos a pensar o sentido da verdade, como desvelar do velado. O

encobrir-se não é fenecer, é permanecer na latência, como possibilidade de vir a

ser. O que permanece encoberto é o que não se ilumina, mantém-se na sombra,

para manter-se a luz. “É no encobrir-se que predomina a tendência para

descobrir-se” (Heidegger, 2008: 239).

62

Através das sábias ações dos seres sobrevém a métis, da qual cada um

recebe um quinhão, como um dote. A filha de Oceano e Tétis, Métis, dispunha

desta essência. Deixou-se engolir para que não lhe nascesse o filho, que

destronaria seu marido, entronizado por ela. Engolida, no entanto vigora.

Pensemos um pouco mais no mito de Métis, como imagem-questão do que vige

e vigora no retraimento, concedendo potências de ser e ter ao senhor dos deuses

e homens. Como este mito ecoa nas estórias rosianas?

Ouro de tolo

A imagem da mulher enclausurada sob o trono do monarca lembra

Flausina, do conto “Esses Lopes”, encurralada no canto do catre pelo marido.

As astúcias da Métis deglutida manifestam-se na estória dessa mulher-menina,

assimilada a seus opressores. Sua afirmação de felicidade contrasta com os

infortúnios que ela vai narrando, e a cada nova revelação refaz-se o espanto

diante de tamanha violência. Ouvimos dela mesma a própria estória.

Nascida linda e pobre, passou por muitos trabalhos nas mãos daqueles,

mas agora forra e desforrada, querendo gozar a vida. É ela quem diz: “Mas,

primeiro, os outros obram a estória da gente” (Rosa, 1967: 45). Levada à força

pelo Zé Lopes, ainda menina, virgem e sonhadora, tudo o que depois obrou ela

vê como vingança de quem colheu o que plantou. Continuamente vitimada pela

violência, incorporou do agressor o desejo de poder e a falta de escrúpulos.

Diante do poderio dos valentões, ela percebera: “A gente tem é de ser miúda,

mansa, feito botão de flor” (Rosa, 1967: 45). Caladinha no seu canto, ela estava

“abrindo e medindo” (Rosa, 1967: 45). Caçava um jeito de virar o jogo.

Ninguém põe ideia nesses casos: de se estar noite inteira em canto de

catre, com o volume do outro cercando a gente, rombudo, o cheiro, o

ressonar, qualquer um é alheios abusos. A gente, eu, delicada moça,

cativa assim, com o abafo daquele, sempre rente, no escuro.

Daninhagem, o homem parindo os ocultos pensamentos, como um

63

dia come o outro, sei as perversidades que roncava? Aquilo tange as

canduras da noiva, pega feito doença, para a gente em espírito se

traspassa. Eu ficava espremida mais pequena, na parede minha unha

riscava rezas, o querer outras larguras (Rosa, 1967: 46).

O marido contratou uma mulher para vigiá-la, mas Flausina engabelou a

ambos: “Regi de alisar por fora a vida. Deitada é que eu achava o somenos do

mundo, camisolas do demônio” (Rosa, 1967: 46). Pariu do marido um filho,

também Lopes, e com isso ganhou-lhe a confiança. Com mentiras e engodos

livrou-se da carcereira e ainda levou o marido a matar um parente, outro Lopes.

Em seguida levou o próprio marido à morte, misturando ervas venenosas em

seu de beber. Assim como Métis fez a Cronos, Flausina fez a Zé Lopes,

envenenando-o com potentes drogas, para seu desgoverno.

Na cachaça, botava sementes de cabaceira-preta, dosezinhas; no café,

cipó timbó e saia-branca. Só para arrefecer aquela desatada vontade,

nem confirmo que seja crime. Com o tingui-capeta, um homem se

esmera, abranda. Estava já amarelinho, feito ovo que ema acabou de

pôr. Sem muito custo, morreu. Minha vida foi muito fatal. Varri casa,

joguei o cisco para a rua, depois do enterro (Rosa, 1967: 46-47).

Em breve os herdeiros vieram. Um primo e um irmão do defunto, mais

dois Lopes, pleiteavam a viúva. Levou-a o mais esperto. “Padeci com jeito. E o

governo da vida? Anos, que me foram, de sutil sujeição, custoso que nem

guardar chuva em cabaça, picar fininho a couve” (Rosa, 1967: 46). Deu-lhe

talvez dois filhos. Mas, embebedando-os com doçuras, ela pôs um contra o

outro e, em duelo, mataram-se, deixando-a coberta de posses. Restou o Lopes

mais velho, que levou-a para casa. Ela, com malinas lábias, com ele casou no

papel e, enchendo o raposo de excessos, cama e mesa de delícias, levou-o ao

falecimento (com este são cinco assassinatos, friamente calculados e

arquitetados, sem sujar as mãos de sangue: primeiro o Zé Lopes mata o parente,

depois o próprio é envenenado, depois o irmão e o primo em duelo se

64

despacham, depois enfarta o velhote). “Tudo o que é bom faz mal e bem”

(ibidem: 47). Os filhos, Lopes também, arrenegados, ela os manda para longe.

Agora Flausina restava rica, namorando um moço lindo, sonhando em

ter outros filhos. As tantas mortes nas costas tornaram-na poderosa e rica, a rata

venceu os gatos, e agora um gatinho mimava. Mas ainda assim, ela indaga: “De

que me adianta estar remediada e entendida, se não dou conta da questão da

saudade?” (Rosa, 1967: 48).

A trajetória de Flausina lembra a trajetória de Charles Foster Kane, o

Cidadão Kane do filme de Orson Welles (1941). Também de origem humilde, do

campo, Kane torna-se rico, funda um império midiático, sua riqueza é tanta que

ele passa a querer adquirir tudo que o dinheiro pode e não pode comprar,

inclusive o amor das pessoas. Constrói um suntuoso palacete, Xanadu, que

enche de obras de arte e animais exóticos. Mas, como Michael Jackson em

Neverland, quanto mais poder ele alcança, mais fica amargurado e solitário. Ao

fim da vida, profere uma palavra enigmática: Rosebud.

Atrás do significado desta palavra um jornalista percorre o passado de

Kane, pintando-nos seu fragmentado retrato. Os personagens não descobrem a

resposta, apenas o público atento vê nas últimas cenas a palavra dissolvendo-se

no fogo onde queimavam a tralha, gravada no trenozinho com que ele brincava.

Rosebud é tutameia, um brinquedinho de nada, a memória da infância perdida,

que na morte ele encontrava.

Kane e Flausina são vencedores do ponto de vista dos valores

dominantes. Mas ambos ressentem-se de não terem conseguido o que sempre

buscavam: a felicidade. Porque se aliaram à astúcia do capital, do poder, do

desmando dos opressores, por mais que acumulem, sempre sentem que algo

está faltando. É que no fundo eles percebem que se esqueceram do sentido do

ser, pois quando pareciam estar construindo um novo destino, de si mesmos

cada vez mais se afastavam. Porque a medida de seu agir era o querer ter, não o

querer ser. Seu agir não tinha como medida o ético. E “ser feliz é procurar e

deixar vigorar o ético” (Castro, 2011: 186).

65

Ser feliz é ser vida, e não mero vivente. O horizonte da vida é a morte.

Caminhar para a plenitude é experienciar a dobra de estar sendo até alcançá-la.

“De tanto olhar para o longe, não vê o que passa perto. Subo monte, desço

monte, minha vida é só deserto” (Meireles, 1958: 30). A travessia da vida se dá

sempre no entre do riachinho barrento. A vida é destino dado, a morte é a

certeza do incerto. No destinar-se, o homem se doa como sentido, na medida do

que lhe foi destinado: ser feliz – morrer. O não ser de cada sendo vigora no

nada acontecendo. Quando nada acontece, há um milagre que não estamos

vendo. Viver é pender para a banda do ser, que vigora no tempo, a caminho da

linguagem, sua casa. Felicidade é a renúncia ao ter para viver a liberdade de ser,

experienciar a aprendizagem, amar para que surja a figura.

No combate de vida e morte, pensar a medida da Cura é a astúcia

poética, que atua na manifestação do ser e na escuta de seu sentido, a caminho

de consumar o que lhe é destinado: morrer – ser feliz. Como pode o peixe vivo

viver fora da água fria? Como permanecer encoberto face ao que nunca declina?

Flausina vive a ilusão de Midas, esquece o sentido do ser, e é triste. Quem sabe

um beijo de amor verdadeiro poderia desencantá-la, feliz para sempre?

Em que pesem as palavras, o que vale mesmo neste conto são os

silêncios: “Dito: meio se escuta, dobro se entende” (Rosa, 1967: 46). Flausina

desde o princípio de sua fala se gaba se ser sacudida e de ter talentos, fita no

cabelo e dinheiro na caixinha. “Meu gosto agora é ser feliz, em uso, no sofrer e

no regalo” (Rosa, 1967: 45). Ao narrar sua estória vai removendo véus, se

descortinando, e o que se vê afinal é a dança sinuosa de uma engolidora de

homens. Métis, Sereia, Diaba, Mãe D’Água? O discurso de Flausina escorre

entre os dedos. Trataremos das astúcias da linguagem quando abordarmos o

mito de Hermes, no quarto capítulo. Por ora, atentemos para a fala da moça.

Ela, com malinas lábias, tenta levar o leitor a inocentá-la da culpa de exterminar

uma numerosa família de valentões, os “Irmãos Dagobés” (Rosa, 1981: 22) do

pedaço. Flausina é o demo de saia. Ela apostou no ter, se pensa por cima da

carne seca, embora já desde sempre dance a dança da morte. Iludida, ainda não

ouviu o grito de Sileno, cantado no mito de Midas:

66

O rei Midas se embrenha na floresta em busca de Sileno, o sábio preceptor de

Dioniso. Uma angústia o move: É que nem o viver, nem o poder, nem o ter

asseguram a felicidade dos homens. Por isso Midas vai à floresta em busca de

Sileno, com uma pergunta angustiante: O que então o homem tem de fazer

para ser feliz? Sileno responde: (Átlios brotós) Mísero mortal, por que

queres sabê-lo? O que o homem pode fazer para ser feliz é não ter nascido,

mas, uma vez que já nasceu, só lhe resta morrer (apud Castro, 2011: 188).

A lábia envenenada de Flausina levou ao destino fatal um clã odiado, e o

doce sabor da vingança estala de suas palavras, que não demonstram nenhum

arrependimento, antes orgulho e preconceito. Se acha dona do seu destino. Será

mesmo? Falta o que ela não conta, quer esquecer, o que de mal houve e resta em

sua memória. “Para trás, o que passei, foi arremendando e esquecendo” (Rosa,

1967: 45). Os abusos, violências e covardias que a viúva negra possa ou não ter

sofrido na fala de Flausina não se encontram. Sua vaidade e brio não lhe

permitem narrar o borrado da vida, esquecer as malas cosas é o corretivo dos

olhos, o ruge na face é o querer ser feliz.

A presença da lembrança é tão [...] abrangente que nos esquecemos

da memória como velamento-silêncio-esquecimento. Esquecer não

significa deixar de ser, mas ser a memória só no âmbito do lembrar,

isto é, do ente, do desvelado, da luz da clareira do desvelado.

Ficamos tão empolgados pela luz da razão que esquecemos a clareira

e o que nela se ausenta: o velado, o ser (Castro, 2011: 201).

Com a narrativa, busca absolver-se? Lançada no seio da violência, mais

que o instinto de sobrevivência, impulsionou-a o ódio. Pensando em obrar a

morte, deixou escapar a vida. A estória de Flausina fala dos descaminhos que

nos levam a ser o que não somos, sem nunca deixarmos de ser o que já fomos,

no consumar-se de nosso destino histórico. O trono manchado de sangue para

sempre será marcado. O que vale mesmo é a inocência de já nunca ter sido,

virgindade de menina, rosebud, tutameia.

67

O ente que irrompe na clareira e é iluminado pela luz de Apolo não

pode nem se opõe ao ente pensado no âmbito da clareira e o que nela

se ausenta. O ente é ambíguo também. Se não fosse nem poderia ser,

ser o ente do ser. Vigendo no vigor do ser, ele é também ambíguo: se

articula como o que se descobre no desencobrimento da clareira da

floresta (Castro, 2011: 201).

A fala ambígua de Flausina mostra e encobre a complexidade da

realidade realizando-se em realizações de vida e morte, no seu empenho e

procura de querer ser feliz, realizar-se. Para sair da clausura, quis manipular

seu destino, com frieza, racionalidade, cálculo. Sua frivolidade compara-se à

dos pesquisadores do “Conto alexandrino”, de Machado. Com seus caçadores

aprendeu os ardis da caçada, como os ratos da anedota chinesa sobre o sentido

grego de caos, contada por Leão (2010b: 42-47). Mas, para o inimigo que não

tem método, não há recurso. De vítima a justiceira, Flausina saiu do espeto e

caiu na brasa. Iludida pelo brilho do ouro, trocou o ser pelo ter. Danou-se.

O olho da coruja finaliza esta estória, o olhar que perscruta o velar e o

desvelar da verdade, que sabe as ambiguidades dos entes, da realidade, do ser,

manifestando-se no eclodir para o aberto da luz e no que se esconde na clareira.

Do saber de Atena nos vêm as artes, a técnica, a sabedoria gerada na união de

Métis com Zeus. Mas também poderia estar aí o caranguejo, com seu andar

tortuoso e sua maestria em tecer armadilhas invisíveis.

68

A medida do destino

Em última instância trata-se de na questão da medida, em que

já sempre nos movemos e nos move, pensar a moira, o que como

medida é a medida do que nos é próprio (Castro, 2009).

Mirem a estória de Flausina. Mirem as estórias do Rosa. Mirem e vejam:

em um momento da vida que seja, a gente encara o próprio destino. A pauta

que tem que seguir para se apropriar do próprio. Porque não adianta o destino

se não houver consumação. Às vezes o bolo encroa. Para o pulo do gato, carece

de ter coragem – e dom. Cada quinhão recebido é aquilo de que se dispõe para

que cada destino se realize. É como diz Riobaldo:

Sempre sei, realmente. Só o que eu quis, o tempo todo, o que eu

pelejei para achar, era uma coisa só – a inteira – cujo significado e

vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma

receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa

viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum,

não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder

encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a

vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E

que: para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que

consegue ser a certa. Aquilo está no encoberto; mas, fora dessa

consequência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o

beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica

sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e

vivível mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa,

sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para

cada representador – sua parte, que antes já foi inventada, num

papel... (Rosa, 1986: 427).

69

Para realizar o destino, o homem precisa, ao agir, pesar a medida de suas

ações, no sentido de se apropriar do que lhe é próprio. Para a plena realização

do destino, é preciso pesar a medida da moira, da dor e delícia de ser o que é.

Cabe ao homem deixar-se tomar por esta medida, o limite de seu destino, para

livre e amorosamente agir. Origem e fim encontram-se quando o homem se

deixa arrebatar pelo extraordinário e enfim percebe a claridade da luz que

alumia e permite enxergar. “Moira nunca é uma questão de escolha da vontade,

mas uma questão de ser tomado pelo extraordinário e é neste ser possuído que

se dá o acontecer poético” (Castro, 2008a).

A tradução tradicional de moira é destino. Mas o que compreender

como destino enquanto a medida da dobra de ser humano e Ser? A

moira não diz apenas um destino pessoal, aquele quinhão que cada

sendo recebe. Toda moira provém originária e concretamente de um

genos. E este, como Gênesis, diz do nascer em que se dá toda a physis.

Porém, não podemos esquecer que a physis ama velar-se. A própria

physis se dá uma medida: o amar. O amar é o a-ser-pensado: o

critério, a medida (Castro, 2009).

A physis ama velar-se, e o pensamento leva o homem a se encantar com o

descobrimento, e a verdade quer se manifestar, e pensamento quer muito

percebê-la, e na nossa cabecinha eles dançam um tango: a vida e a arte: o amor.

O brotejar incessante da physis, que ama velar-se, que é e não é, vigora assim

como Métis, que permanece dissimulada nas entranhas de Zeus e se manifesta

em suas ações realizadoras. Este amor antropofágico instaura Mundo, define o

destino e o orienta o percurso do tempo. Tudo na physis é e não é.

Ninguém pode escapar do próprio destino, mas para que ele se realize

cada um deve fazer a sua parte. O esquecimento do ser leva o homem a alhear-

se de si, descomprometer-se de sua existência. Bate ponto, cumpre regras, caga,

trepa e dorme. Desliga-se do pensamento. Zumbiza. A arte sacode os homens e

espanta esta letargia, ao operar a verdade da obra, que instaura seu vigorar

originário, o amor como medida.

70

É o que ocorre na Odisseia, quando Ulisses astuciosamente encara os

maiores desafios já vividos por um mortal. É isto o que ocorre em Tutameia,

quando a gente se liberta do círculo-de-giz-de-prender-peru, astuciosamente se

apropria da existência, e sabe que nada sabe de si. Assim reflete o eu-

personagem, diante da amada:

De dom, viera, vinha, veio-me, até mim. Da vida sem ideia nem

começo, esmaltes de um mosaico, do mundo – obra anônima? Fique o

escrito por não dito. Sós, estampilhamo-nos. Tem-se de a algum

general render continência. Ei-la, alisa a tira da sandália, olha-se terna

ao espelho, eis-nos. Conclua-se. Somos. Sou – ou transpareço-me?

(Rosa, 1967: 141).

71

Capítulo 2

Olho de coruja

A coruja – confusa e convexa – belisco que se interroga: cujo, o bico, central.

(Rosa, 1985: 67).

A coruja que ilustra Tutameia, como vimos na Introdução, assemelha-se

muito à imagem deste animal impressa em uma das faces do dracma, antiga

moeda de Atenas, consagrada à deusa de olhos glaucos. A referência de Atena a

esta ave é assim explicitada por Heidegger (1985: 2):

O olho de Atena é o olho que aclara e resplandece. É porque lhe

pertence, como um signo do que ela é, a coruja [...]. Seu olho não tem

somente o ardor da brasa, ele atravessa também a noite e deixa

visível o que seria, de outra forma, o invisível.

Os esmartes olhos de Atena vislumbram a claridade. Seu olhar

flamejante traz o brilho do fogo, que incandesce a liga do bronze de que são

feitas suas armas. “Quando o calor do fogo esquenta a chaleira, meu Mocinho,

tudo vai virando bolha...”, diz Rosalina, em Corpo de baile (Rosa, 1994: 787). O

fogo de Atena que alumeia seu olhar vigora em seu pensamento, que como um

raio ilumina o fim do túnel. Mas, o que nos diz mesmo o mito de Atena? Que

questões a deusa nos coloca? O que ela torna pressente?

Atena é antes do mais nada a deusa da inteligência, da razão, do

equilíbrio apolíneo, do espírito criativo e, como tal, preside às artes, à

literatura e à filosofia de modo particular, à música e a toda e

qualquer atividade do espírito [...]. É também no domínio das

atividades práticas a guia das artes e da vida especulativa. E é como

deusa dessas atividades, com o título de Ergáne, “Obreira”, que ela

preside aos trabalhos femininos da fiação, tecelagem e bordado

(Brandão, 2008, V. 1: 138).

72

Conta o mito que, certo dia, sentindo uma terrível dor de cabeça, Zeus

pediu a Hefesto que com o machado lhe rachasse a nuca. De lá despontou

Atena, cintilante, em armas de bronze, soltando um grito de guerra,

reverenciada pelos imortais. Era a filha de Métis, engolida grávida, que nas

entranhas do deus engendrara sua filha armada. Nascida diretamente da cabeça

de Zeus, não tem marido nem filhos. Ela é a nascida em armas, encouraçada. O

bronze do machado de Hefesto quebrou na cabeça do soberano a abertura por

onde saiu a deusa, de bronze armada. Filha de Métis, viera em auxílio do pai e

dos homens.

Nascida da cabeça de Zeus, a força atuante da deusa não desvia do alvo

por qualquer canto da sereia. O bem-suceder da empresa é seu horizonte. Sua

armadura, seu escudo, seu elmo protegem a essência do que nela vigora, assim

como a carapaça protege a carne mole do caranguejo, como o osso envolve o

tutano. Mas a armadura de Atena é inquebrantável. Pertence a ela o que cobre

sua carne. A essência de Palas Atena extravasa no brilho de seu olhar, no gume

de sua espada, na habilidade de seus dedos, que figuram obras, utensílios e

armadilhas. No horizonte da dobra do vir-a-ser, ao olhar de Atena se apresenta

a ideia, que ela captura e traz para a luz de sua manifestação, dirigindo as ações

dos homens no sentido de apropriar-se da verdade do ser. A proveniência da

cultura, da humanidade do homem, é o envio sábio de Atena. Tudo que é

mecanismo, o que o homem inventa e funciona, é doação de Atena, a deusa que

doa a techné, a arte de produzir coisas que não existem na natureza sem o

trabalho do homem. Traz da mãe a capacidade de divulgar as distâncias, do pai

guarda o raio, que clareia o encoberto.

Donzela guerreira, sempre armada, sempre virgem, fiel ao pai, como

Diadorim, de Grande sertão: veredas. Filha e mãe, jovem e velha, sábia

conselheira, como Rosalina, de Corpo de baile. “O que as palavras de dona

Rosalina abriam era só uma claridade em seu espírito – uma claridade forte,

mas no vazio: coisa nenhuma para se avistar” (Rosa, 1994: 779).

73

Do vazio que o olhar de Atena clareia, desvela-se o que ainda não se vê,

mas já se pressente em seu manifestar. Atena sabe a medida do limite que reúne

o que há na permanência do que lhe é próprio. Sob seu olhar as coisas vêm à

presença, mostrando-se em sua plenitude, divulgam-se seus contornos, que as

identificam e diferenciam. O saber de Atena direciona a produção do homem

no sentido da plena realização do seu destino.

Quem constrói uma casa ou um navio, quem funde um cálice

sacrificial des-encobre o a ser produzido [...]. Este des-encobrir

recolhe antecipadamente numa unidade o perfil e a matéria do navio

e da casa numa coisa pronta e acabada e determina daí o modo de

elaboração. O decisivo da techné não reside, pois, no fazer e

manusear, nem na aplicação de meios, mas no desencobrimento

mencionado. É neste desencobrimento e não na elaboração que a

techné se constitui e cumpre em uma pro-dução. [...] A técnica vige e

vigora no âmbito onde se dá descobrimento e des-encobrimento,

onde acontece aletheia, a verdade (Heidegger, 2008: 18).

A ação da deusa doa ao homem o instrumento, a técnica e a magia para

montar a fera e conduzir o carro, aproveitando sempre as melhores

oportunidades. Dizem que foi Atena Hippia quem forjou o freio com que

Belerofonte domou Pégaso, o que lhe possibilitou derrotar a Quimera e as

Amazonas. O freio divino, forjado no fogo, detentor de poderes mágicos, traz

em si esta força escondida, que o torna capaz de domar o cavalo alado.

O freio que Atena dá a Belerofonte [...] permite dominar um animal

de reações imprevisíveis. É no modelo mítico deste instrumento que

reside o segredo do modo de intervenção próprio de Atena: ela é a

potência que confere aos homens, sob a forma de um instrumento,

um poder ao mesmo tempo técnico e mágico sobre o animal de

Posídon (Détienne e Vernant, 2008: 179).

74

Não é à toa, porém, que Atena instruiu Belerofonte a apresentar o cavalo

arreado e com o freio a Posídon, e em sua honra sacrificar um touro. Atena

respeita a força incontida da physis, em cujo limite de velar e desvelar elabora

astúcias para que o homem supere os obstáculos e realize o que lhe é destinado,

amanse o cavalo, fique mesmo amigo dele. É como diz o Rosa:

As vacas e os cavalos são seres maravilhosos. Minha casa é um

museu de quadros de vacas e cavalos. Quem lida com eles aprende

muito para sua vida e a vida dos outros. Isto pode surpreendê-lo, mas

sou meio vaqueiro, e como você também é algo parecido com isto,

compreenderá certamente o que quero dizer. Quando alguém me

narra algum acontecimento trágico, digo-lhe apenas isto: “Se olhares

nos olhos de um cavalo, verás muito da tristeza do mundo!” Eu

queria que o mundo fosse habitado apenas por vaqueiros. Então tudo

andaria melhor (Rosa, 1994: 32).

Como os vaqueiros, os navegantes precisam galgar o ímpeto de Posídon,

e assim é que Palas Atena doou aos homens também a primeira embarcação, o

Argos, ensinando-os a construí-lo e conduzi-lo.

A inteligência navegadora sabe conduzir reto o navio, sem jamais se

desviar da rota que ela de antemão meditou seguir. Todas as

intervenções de Atena se situam do lado do piloto, de sua parte ativa

na navegação, de sua inteligência astuta e técnica, na qual a filha de

Zeus pode legitimamente reconhecer um reflexo de sua própria métis

(Détienne e Vernant, 2008: 204).

Esta dupla competência da deusa guerreira, de construir e conduzir, são

manifestações de sua métis, de sua inteligência sagaz em conceber (médesthai)

projetos e os instrumentos para realizá-los, “por força de uma operação de

inteligência ao mesmo tempo em que por uma atividade de caráter técnico”

(Détienne e Vernant, 2008: 217). Diante do gigante Adamastor, da pedra no

meio do caminho, eis que surge Atena e inventa a alavanca, servindo-se de um

pedaço de pau. Quebrar o galho é a especialidade de Atena, a do jeitinho.

75

O relevo de Atena

O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão

mestre – o senhor solte em minha frente uma ideia ligeira,

e eu rastreio essa por fundo de todos os matos.

(Rosa, 1986: 8).

A imagem da coruja no miolo de Tutameia presentifica Atena, ao

reproduzir a figura de um artefato da Grécia Antiga consagrado à deusa. Há

ainda uma outra famosa antiga imagem da filha de Métis, um relevo que retrata

a deusa, presente no Museu da Acrópole, em Atenas:

Figura 5: Atena, relevo do Museu da Acrópole em Atenas, século V a.C.

Disponível em: http://palavrasinconjuntas.blogspot.com. Acesso em: 14 mar. 2012.

76

Nas palavras de Détienne e Vernant (2008), o relevo de Atena na

Acrópole, acima figurado, representa a deusa meditando sobre as futuras

batalhas, mirando o limite e buscando em seu espírito os recursos para lograr o

êxito almejado nas disputas de que participar.

É porque a vitória é incerta e porque os jogos se desenrolam num

espaço aberto que Atena “medita”, mas, desta vez, no sentido grego

de médesthai, que participa estritamente da atividade intelectual da

métis. Apoiada sobre a lança, a cabeça inclinada para o limite que

marca a linha de partida, a Atena da Acrópole é a imagem, não da

Razão, mas da Prudência, da phrónesis, procurando prever as

peripécias do percurso e ocupada em pensar na corrida que vai

disputar. Com seus pontos perigosos, com seus tempos críticos, o

espaço agonístico é o lugar onde todas as reviravoltas são possíveis,

onde o caminho fixado pelas regras do jogo se dobra em todas as vias

que a métis saberá traçar e abrir. Espaço móvel e polimórfico, onde a

intervenção de Atena toma necessariamente a forma que lhe dá, na

navegação, o jogo da métis, nas lutas, com os movimentos do mar e o

sopro dos ventos (p. 209).

Já para Heidegger, o olhar da deusa se volta para o limite, seus ouvidos

atentam para a escuta verdadeira. Esta deve ser a postura do artista, para que

de suas mãos surja o operar da obra, em consonância com o concerto da physis.

Em direção a que o olhar meditativo da deusa se vira? Em direção à

borda, ao limite. O limite não é somente o contorno e o

enquadramento, não é somente o lugar onde alguma coisa está presa.

Meditando sobre o limite, Atena já tem em vista aquilo em direção a

que a ação humana deve de antemão olhar para trazer o que há na

visibilidade de uma obra (Heidegger, 1983: 2).

Dirigindo seu olhar para o limite, Atena vislumbra a physis, para antever

“aquilo pelo que alguma coisa é reunida no que ela tem de próprio, para

aparecer em toda sua plenitude, para vir à presença” (idem).

77

O limite liberta para o desvelado. Através de seu contorno, à luz da

visão grega, a montanha põe-se em seu erguer-se e repousar. O limite

que fixa é o que repousa – a saber, na plenitude da mobilidade – e

tudo isto vale para a obra no sentido grego do ergon [obra], cujo “ser”

é a energeia, que reúne infinitamente em si mais movimento do que as

modernas “energias” (Heidegger, 2010: 199).

É na direção do olhar de Palas Atena que deve se voltar o homem que

busca a realização plena de seu destino histórico. O olhar de Palas Atena

concede ao homem o envio da techné, modo de saber que antevê a obra, ainda

velada, a ser produzida pelo artista.

A palavra techné nomeia, muito mais, um modo de saber. Chama-se

saber: o ter visto, no sentido amplo de ver, o qual significa: perceber o

que se presentifica como um tal. A essência do saber repousa, para o

pensar grego, na aletheia, isto é, na revelação do sendo. Ela porta e

guia toda relação para com o sendo. Como saber experienciado pelos

gregos, a techné é um pro-duzir do sendo, na medida em que ela o

traz para diante, isto é, ao desvelamento do aspecto que lhe é próprio,

como o que se presentifica enquanto tal, a partir do velamento. Techné

nunca significa a atividade de um fazer. [...] O artista não é um

technités pelo fato de ser também um artesão, mas, sim, pelo fato de

tanto o elaborar obras como também o elaborar utensílios acontece

naquele pro-duzir que, de antemão, deixa vir para diante o sendo,

para sua presença a partir do seu aspecto. Contudo, tudo isso

acontece em meio do próprio auto-nascer do sendo da physis

(Heidegger, 2010: 126-127).

Arte e astúcia, portanto, encontram-se na techné, mais que a habilidade

do artesão, orador ou engenheiro, mais que as regras de gramática, de

navegação ou de trânsito; mas: o arrebatamento a que se doa o artista para a

eclosão da verdade, aletheia, na medida em que, para agir consoante o que soa, é

preciso saber ouvir e saber calar, mas também saber fazer e saber falar.

78

O raio que emana do olhar da filha de Zeus clareia o que se deixa clarear

e reúne a tudo em uma direção que norteia, um sentido que governa as ações

dos homens. Atena doa a techné, em seu pertencimento misterioso com a physis.

Aquilo que se revela e desvela na luz do pensamento deixa sempre ainda no

limite o a ser desvelado, que se dissimula e se retrai, como o que não se deixa

calcular, o obscuro, o silêncio do que não se disponibiliza ao homem. Apesar

de, na sociedade de hoje, o que não é calculável não ser levado em conta, ainda

assim, vigora a cada instante o mistério, de onde o artista arranca brotos de

quase nada, ossos de borboleta, quiquiriqui, tutameia, nonada, o lavrar da ideia

em obra de arte. Aquilo que já é se dá a ver ao homem quando ele pensa,

quando ele joga a luz do fogo do pensamento no aberto da clareira, trazendo

para a claridade aquilo que demorava no recolhimento. Atento ao envio sábio, o

homem que escuta não a si, mais ao logos, é o homem que pensa, e pensando é.

No pensar advém a ideia, o envio sábio, desvela-se a verdade do ser, e então ele

traz para a presença do aberto aquilo que surge no pensamento.

O pensador, tomado pela essência da ação, deixa-se envolver pelas

provocações da realidade, do ser, e toda vez que surge uma

oportunidade para que, tomado por uma posição, operem-se as

possibilidades que ela oferece, sem se importar com os perigos,

decide agir. Ainda que, como já disse o pensador-poeta Guimarães

Rosa, “Viver é muito perigoso” (Rosa, 1968: 16) (Castro, 2011: 19).

Para que a ação humana aconteça no sentido da realização de seu

destino, é preciso que ele sempre e a princípio perceba o a que ele está

destinado, que ele medite sobre a sua ação, vislumbrando no horizonte do

limite de sua finitude o incessante vigorar da physis, que traz para a luz o que

sempre esteve encoberto e que, entretanto, nunca se despe de todo. O olhar

preliminar constitui já o fazer do artista, que mira naquilo que “mostra a forma

e dá a medida, mas que é ainda invisível, e que deve ser preliminarmente

engendrado na visibilidade e perceptibilidade da obra” (Heidegger, 1985: 6).

79

Meditar é deixar-se ser possuído pelo mistério, pelas questões, é

abandonar-se ativamente à invasão e à posse das e pelas questões.

Elas, se meditarmos, se aproximarão silenciosas e sub-reptícias

tomando posse de nós no silêncio e repouso pleno de fala e sentido. É

o agir ético-poético do silêncio. Sua etimologia é a raiz indo-

europeia med-, com o sentido de pausar, refletir, medir, pesar, julgar e

cuidar de, a mesma que originou a palavra médico. (Castro,

Meditação, 1. In: Castro, Dicionário de poética e pensamento.)

A meditação, a pre-meditação já constitui o agir poético, que co-responde

ao apelo da physis, que ama velar-se. Por isso os grandes poetas são grandes

pensadores, mais que técnicos da linguagem. O que vigora na obra de arte

produzida por Guimarães Rosa toca a todo homem humano, porque em sua

obra ele medita sobre as questões que nos movem em nossa travessia.

Nós sertanejos somos [...] tipos especulativos, a quem o simples fato

de meditar causa prazer. Gostaríamos de tornar a explicar

diariamente todos os segredos do mundo. Chocamos tudo que

falamos ou fazemos antes de falar ou fazer. É por isso que

normalmente não costumo conversar se antes não posso pensar

tranquilamente e até o final. [...] E também choco meus livros. Uma

palavra, uma única palavra ou frase podem me manter ocupado

durante horas ou dias. [...] Temos de aprender outra vez a dedicar

muito tempo a um pensamento; daí seriam escritos livros melhores.

Os livros nascem, quando a pessoa pensa; o ato de escrever já é a

técnica e a alegria do jogo com as palavras. (Rosa, 1994: 44.)

De acordo com Platão, as ideias brotam do hyperouranious topos,

expressão que nomeia não o supraceleste, como geralmente se interpreta, mas

sim, o lugar superfértil, o nada criativo, o ser. O envio sábio de Atena doa aos

homens a techné, modo de saber que co-responde ao mistério da physis. Tomado

por este saber, o homem pro-duz a obra poética, promove o desvelamento

(aletheia) daquilo que se resguarda.

80

Dessa forma, “a obra não se refere em primeiro lugar à coisa elaborada,

mas ao que brota e se apresenta numa presença provocante. A obra é antes de

tudo uma pro-dução. Manifesta o que surge, eclode e se mostra como tal”

(Leão, 2010: 150). Nesse sentido, pode-se compreender a relação entre aletheia,

techné, mímese e poiesis, na medida em que a produção poética acontece quando

na obra vigora o sentido da verdade do ser que, velando, se desvela. Pois, como

afirma Heidegger (1983: 24), “só pode ser con-sumado o que já é”.

Pensando no mito de Atena, encontramos as paragens de onde provêm o

pensamento, a arte, a ciência, a habilidade, a sabedoria. Seu olhar clareante

ilumina o que se dá a ver ao homem, que desse modo produz sua cultura,

governado pelo raio da deusa, que doa o sentido, a techné, o saber por já ter

visto. As questões evocadas por este mito iluminam um pouco mais a efígie da

coruja, que marca as terceiras estórias.

O projetar a obra na abertura do extraordinário encontra-se manifesto em

um conto de Tutameia, que narra a construção de uma casa extravagante,

intitulado “Curtamão”, o qual abordarei a seguir.

Casa da palavra

Em três, reparto quina pontuda, no errado narrar,

no engraçar trapos e ornatos? Sem custoso, um

explica é as lérias ocas e comuns, e que não são

nunca. Assim, tudo num dia, nada, não começa.

Faço quando foi que fez que começou.

(Rosa, 1967: 34).

Em “Curtamão”, o narrador, que se encontra defronte a uma estranha

casa, conta a um interlocutor e a nós leitores a estória da origem daquela obra

ali erguida. Paralelamente ao narrar dos fatos, encontra-se uma meditação em

que se delineia, como bem apontou a crítica, a base da poética rosiana:

81

O conto em questão representa texto de ars poetica, dotado de alcance

universal e do especialíssimo alcance referente à escrita de Guimarães

Rosa lui-même, sem prejuízo da narratividade: antes, enriquecendo-a.

Uma poética de texto que se reveste da narração de um

desacerto/rearranjo amoroso, de uma intriga de ações ferozes. Em

meio aos acontecidos e ao que está acontecendo e por acontecer, um

depoimento que se insinua e vai marcando os caminhos do poietes,

útil ao próprio texto em que se instaura e aos demais da obra rosiana

(Wanderley: 1996, 20, apud Faria: 2004, 298-299).

O narrador da estória é um pedreiro, que de Atena herdou, portanto, o

dom de conceber e produzir a partir daquilo que lhe é dado, no caso, a pedra,

de acordo com o modo de saber da arte, techné. Como pedreiro, vivia

trabalhando segundo as ordens dos outros, alheios projetos, nos quais se

empenhava para seu sustento. Construir não para si, mas para os outros, era

este o seu ofício. Produzia utensílios, objetos de troca. Contudo, consigo

mesmo, ele sonhava mais era em construir a casa, que lhe aparecera em ideia

por sobre o planalto ensolarado, no terreno propício, de propriedade de

Armininho, confrontada com o horizonte, querendo acordar da pedra e erguer-

se rumo ao firmamento.

Oficial pedreiro, forro, eu era, nem ordinário nem superior; de chegar

a mais, me impedia esse contra mim de todos, descrer, desprezo.

Minha mulher mesma não me concedia razão, questionava o eu

querer: o faltado, corçoos do vir a ser, o possível. Todos toleram da

gente só os dissabores do diário e pouco sal no feijão. Armininho

possuía o terreno – alto – espaço de capim, sol e arredor... (Rosa, 1967:

34).

Os olhos da deusa voltados para o limite percebem e definem os

contornos das coisas, trazem para a luz aquilo que estava encoberto: “o faltado,

corçoos do vir a ser, o possível”. Os corçoos do vir a ser é o que Atena vislumbra,

meditando diante do limite, des-encobrindo o encoberto.

82

O impulso subjacente ao seu arroubo de construção foi um apelo do

Ser, atendido em forma de poesia. Seja tratando com pedra e cal, seja

trabalhando com palavras, edificando ou narrando, é a vocação do

poético que inspira os atos de quem autenticamente constrói (Faria,

2005: 300).

A casa como obra o artista a recebera como envio do Ser a manifestar-se

no vazio do terreno propício. Coube a ele executá-la, na medida de seu destino.

No tocante à obra defronte, conta-nos o artista que tudo fez que começou

quando ele, incompreendido e ensimesmado, topou justo com o Armininho,

também desacorçoado, porque sua amada noiva havia sido tomada pelo

valentão Requincão. Em já temulenta confidência, o coitado contou choroso ao

“copoanheiro” que tinha até guardado o dinheiro para construir a casinha de

amor lá deles. Levantando-se num pulo, propôs então o pedreiro, dedo em

riste, que eles levantassem a casa. Ele via no possível o impossível. E houve.

Diante do desânimo do outro, impôs sua vontade de artista:

Mas ele recedia, ao triste gosto, como um homem vê de frente e

anda de costas. Teso em mente forcejei – por de mim arredar

desânimo pegador. Enquanto o que, eu percebia: a sina e azo e

hora, de cem uma vez: da vida com capacidade. – “A casa levada

da breca, confrontando com o Brasil” – e parti copo, também o

dele, me pondo em pé, o pé em chão, o chão de cristão.

Armininho, só então. Só riu ou entendeu, comigo se adotou. De

lá a gente saiu, arrastando eu aquele peso alheio, paixão, de um

coração desrespeitado (Rosa, 1967: 35).

E eis que de fato surgiu a obra, trazida para o des-encoberto graças a

uma estória de amor, o fogo que tudo nutre. “O autêntico princípio é sempre

como salto um salto-prévio, no qual tudo que está por vir, ainda que velado, já

se acha traspassado. O princípio já contém velado o fim” (Heidegger, 2010: 176).

83

Aquela casa surgiu de uma disputa amorosa. Seu fim, almejado desde o

começo, seria abrigar a Helena do Sertão. “Tomara, o extrato desse amor, para

ingerir no projeto exato” (Rosa, 1967: 36). O encontro de dois delirantes

trouxera para o mundo aquela aparição: a casa. Disse, fez-se.

Deserto do mais, tranquei minha presença, com lápis, régua e papel,

rodei a cabeça. Minha mulher a me supor: desrespondi a quem me

ilude. Tantas quantas vezes hei-de, tracei planta – só um solfejo, um

modulejo – a minha construção, desconforme a reles usos. Assim

amanheci (Rosa, 1967: 35).

Mostra-se o herói aqui a projetar, não uma casa funcional, mas uma obra

de arte arquitetônica, que corresponda ao apelo do Ser, de onde ela se origina e

que sempre pressentia. “O que a poiesis, como projeto iluminante, desdobra no

desvelamento e pré-lança no traçar da figura é o aberto que a deixa acontecer e,

certamente, de jeito que o aberto, somente no meio do sendo, traga agora este

para o iluminar e o ressoar” (Heidegger, 2010: 163).

De alvenel a mestre-de-obras, apareci frente ao Armininho.

Tresnoitado, espinhoso, eu, ardente; ele, sonhado com felizes idos.

Porque, quem sabe. Confirmou, o caso era fato. Tudo a favor e

seguro: escritura, carta-branca, tempo bom, nem chuvas. Dinheiro – o

que serve principalmente, mesmo ao sofrido amargurado (Rosa, 1967:

35).

Enquanto construíam a casa, o malvado Requincão, ladrão de noiva

alheia, rondava, mas isso servia somente para atiçar ainda mais a gana do

construtor, que se colocava também como estrategista, chefe guerreiro:

Vinham avispar, os do Requincão; logo aborrecidos do que olhado. A

cova – sete palmos – que antes de tudo ali cavei, a de qualquer afoito

defunto, estreamento, para enxotar iras e orgulho. Primeiro o

sotaque, depois a signifa – eu redizendo; com meu Tio o Borba,

ajudador, e nosso um Lamenha dando serventia. Nhãpá e o Dés

84

cavavam os aprofundamentos: o risco eu mudamente caprichava. Um

alvo ali em árvore preguei, e tiros de aviso-de-amigo atirávamos. Eu,

que a mais valentes não temo, não haviam de me pôr grosa (Rosa,

1967: 36).

Além do bando inimigo, o povo também se metia, estranhava tamanha

ousadia. Ao que, o mestre mandou: - “Boto edifício ao contrário!”, e definiu um

novo traçado para a famigerada construção: “de costas para o rual, respeitando

frente a horizonte e várzeas” (Rosa, 1967: 36). Quanto mais as pessoas

estranhavam, mais ele extravagava: ”sem açamouco, diferençado, vistoso, o pé-

direito da moda”, e depois, mais: - “Redobrar tudo, mais alto! sobrado!”, e ainda:

“a casa sem janelas nem portas – era o que eu ambicionava” (Rosa, 1967: 37).

Surgida de tão intensa disputa, a casa se superava, revirava e endoidecia,

empinava, entesava, perdia o rumo, transcendia o habitual e rescendia ao

afrodisíaco extrato do amor. E amar é perder-se para encontrar-se, é a escuta do

destino, a liberdade de ser, em que se des-vela a verdade e o mistério. Mas aí o

próprio sócio, Armininho, deu para trás. Disse que faltava dinheiro, desfez a

sociedade, fiado vendeu sua parte ao pedreiro, que se enchia de dívidas, era

tido como louco, mas não arredou pé, havia de concluir sua obra-prima.

Me culpavam desta à-sozinha casa, infinito movimento, sem a festa

da cumeeira. Seja agora a simplicidade, pintada de amarelo-flor em

branco, o alinhamento, desconstrução de sofrimento, singela

fortificada. Sem parar – e todo ovo é uma caixinha? Segui o

desamparo, conforme. Só me valendo o extraordinário (Rosa, 1967:

37).

Enfim, a peripécia: Armininho foge com a noiva, no caminhão das telhas.

Restou nosso herói com a casa, a qual defendeu com bravura da vendeta dos

requincães. O povo agora o louvava, como o que trouxera o progresso para o

arraial. A dita casa, que lhe rendeu fama e respeito, ele a dedica a Deus, mestre

arquiteto dos projetos todos, a quem copia, e conclui a narrativa com o silêncio,

a medida da palavra: “E o que não dito” (ibidem: 37).

85

As vicissitudes do real na travessia do destino histórico não impediram a

realização do sonho do poeta-arquiteto. Agora, através de sua narrativa,

projetam-se nas paredes altas ali erguidas as imagens de batalhas de uma

estória de amor e arte. É a verdade do ser que se manifesta naquela casa,

elevando de todos os olhos e pensamentos, destinada enfim a abrigar uma

escola, farol da luz do esclarecimento. Sua firmeza de ideia fixa, contrária ao

fluxo do hábito corrente, foi o que tornou possível a existência da casa.

O traçar precisa retirar-se no peso atrativo a pedra, na dureza muda

da madeira, no fulgor sombrio das cores. No que a Terra retoma em

si o traçar, este é então elaborado no aberto e assim situado neste, ou

seja, posto naquilo que se ergue no aberto como aquilo que se fecha e

que abriga (Heidegger, 2010: 138).

Ao construírem a casa, artista e amante duelam com a esfinge do real, a

lhes impor desafios. A história se escreve em carne viva, e o pedreiro cava as

oportunidades com suas curtas mãos, para cortar o laço e findar a obra:

consumar a verdade do ser, desvelar-se, dispor da casa a quem chega, vê e

ouve: a festa da cumeeira. Erguida ali a obra, diante dela o herói se encontra,

narrador da estória daquela casa e das pelejas de Armininho e sua amada, mote

de toda a glosa. Ao amigo as alegrias das bodas, a ele, “de repletos ganhos,

essas frias sopas e glória” (Rosa, 1967: 37). O povo agora aplaudia a casa

iluminante, comprada pelo governo, seria uma escola. Abria-se um novo

horizonte para o arraial, “o progresso”, ali a luz das letras iria difundir mais

saber aos meninos. “Mas o mundo não é remexer de Deus? – com perdão, que

comparo?” (Rosa, 1967: 34).

Nosso herói tinha, portanto, uma vidinha de rame-rame, mas visionava

alguma coisa além, que nem ele mesmo divulgava muito bem o que viria a ser.

Só sentia mesmo era um buraco de uma fundura, como se a alma não tivesse

almoçado nem jantado por três dias. Sua Festa de Babette foi construir aquela

casa. Vamos pensar um pouco nesta obra de arte do cinema, para compreender

melhor a grandiosidade da realização daquela obra para o artista pedreiro.

86

No filme do diretor dinamarquês Gabriel Axel (1987), inspirado em um

conto da escritora sua conterrânea Karen Blixen, Babette é uma parisiense que

vive em um isolado vilarejo da gelada Dinamarca, trabalhando como doméstica

para a família de um pastor puritano. Ela foi parar naquelas distâncias fugindo

da perseguição política em repressão à Comuna de Paris, cidade onde antes

morava e trabalhava, como chef do famoso Café Anglais. Muitos anos ela passa

servindo àquela família, para quem prazer corporal era coisa do demo.

Um dia, porém, ela recebe um prêmio da loteria – e gasta todo o

dinheiro na produção de um sofisticado jantar, que ela oferece à comunidade

que a acolhera. Na realização daquele banquete, consuma-se o destino da

cozinheira, sua arte se revela, e eleva pelo paladar a experienciação dos sabores

da vida, para aqueles que até então se negavam o prazer e a alegria da doação

de um excesso de beleza.

Como, pois, a famosa chef francesa, condenada a cozinhar insossas sopas

de pedra, e tendo na mão o dinheiro tratou de preparar um despropositado

banquete de regalias, assim o pedreiro da vilazinha sertaneja assombrou a todos

com seu arrojado projeto. “Num solfejo, num modulejo” (Rosa, 1967: 35), sua

alma de arquiteto flanava livre e armava ninhos. O artista de pedra e cal ouviu

o clamor da casa, que insistia em brotar, para além das conveniências

comumente consagradas. A casa viraria escola, por ela teria fama. As letras nas

mãos de todos, quem sabe veriam Helena no lugar da mocinha roubada das

estórias dos velhos parentes. A casa, cavalo de Troia, ali enfim legendada. Em

todo canto que há, no fundo é miolo de pote, vazio onde tudo pulula.

87

Armas de guerreiro, casa de bronze

Palas Atena salva-cidade começo a cantar

Deusa terrível, a ela com Ares concerne trabalhos de guerra

cidades arrasadas, o reboar da guerra, os combates;

Também salva a tropa que parte e retorna;

Salve, Deusa, dá-nos sorte e felicidade.

Hino homérico XI

Pensando no mito de Atena, a conselheira de múltiplos recursos,

encontramos as paragens de onde provêm o pensamento, a arte, a ciência, a

habilidade, a sabedoria. Seu olhar clareante de coruja, voltado para o limite,

ilumina o que se dá a ver ao homem, que desse modo produz sua cultura,

através do agir poético apropriante, governado pelo raio da deusa, que doa o

sentido, a techné, o saber pro-duzir, con-sumar o destino.

Atena orienta as ações, clareia o caminho, dá os toques. Seu olhar é luz, é

raio que permite divulgar o contorno do que está presente e do que se anuncia,

se vislumbra no horizonte, a ser realizado sob seus conselhos pela ação do

homem, provocado pelo manifestar-se da clareira, convocado a trazer para a luz

o que ainda não há. O que não havia, acontecia. O olhar fulgurante de Atena

divulga o limite, de onde brota o que permanece velado.

Esparta, cidade guerreira, louvava Atena chamando-a Khalkíoikos [da

casa de bronze], e o santuário da deusa grega lá era revestido do metal rosado,

símbolo daquela raça de homens, “cuja vocação à guerra é tão absoluta que

suas casas (oikoi) são feitas do mesmo metal que as armas por que eles morrem,

como eles viveram” (Détienne e Vernant, 2008: 162).

A arte astuciosa eclode em tempos de guerra. Vermelha, da cor do

sangue e do bronze, é a capa de Tutameia. A época de Guimarães Rosa, o bélico

século XX, e sua posição histórica como soldado, diplomata e renomado autor

brasileiro requeriam os auxílios de Atena, para voltar a salvo das batalhas.

88

Como diplomata brasileiro, Rosa acabou indo morar justamente na

Alemanha na época do nazismo. Hoje se sabe que ele e sua esposa, Araci, à

época também funcionária do Consulado Brasileiro em Hamburgo, facilitaram

a concessão judeus alemães, para que eles fugissem para o Brasil, contrariando

as restrições do governo brasileiro. Sobre essa arriscada burla diplomática,

comentou o escritor na famosa entrevista concedida a Günter Lorenz, em 1967:

O diplomata acredita que pode remediar o que os políticos

arruinaram. Por isso agi daquela forma e não de outra. E também por

isso mesmo gosto muito de ser diplomata. [...] Eu, o homem do

sertão, não posso presenciar injustiças. No sertão, num caso desses

imediatamente a gente saca o revólver, e lá isso não era possível.

Precisamente por isso idealizei um estratagema diplomático, e não foi

assim tão perigoso (Rosa, 1994: 42).

Mas esta contingência bélica só salienta a situação agônica que vige

sempre na relação do homem com o mundo. Nos conflitos em que nos vemos

lançados, a filha de Zeus divulga os limites e age a partir deles, para alcançar

superá-los. Percebe as possibilidades do existir onde ainda não há.

Na travessia da vida, do sertão das veredas, do mar de Ulisses, é mister,

no tempo de um raio, perceber o instante oportuno: sabedoria é o abrir-se à

adveniência do Ser. Saber-se destinado a ser o que nem se sabe, sendo a seta

rumo ao alvo do Ser. Na brancura do nada, flechar-se na trajetória precisa.

Estamos lançados na brancura do alvo do Ser. Nosso destino está traçado no

arremesso que nos antecede rumo ao alvo branco do nada.

Trazendo para o clareado aquilo que estava encoberto, a medida e o

limite escondidos na natureza, a arte vigora na obra de Guimarães Rosa

enquanto nela se manifesta a verdade, da qual o artista se apropria, apenas e na

medida em que por ela se deixa apropriar. Meditando, percebe e recebe o apelo

do ser e se deixa atravessar pela linguagem, para que através dele possa a

verdade se manifestar como obra de arte literária, soando no som das palavras.

89

Flor da boca, casa do ser

As estórias de Guimarães Rosa se passam no sertão, origem do autor,

referência de todo seu existir. O vaqueiro e o jagunço, seus principais

personagens, não habitam grandes cidades, mas sim fazendas e vilas, entre

árvores e campinas. O sertanejo acorda com os galos, dorme com as galinhas,

anda a cavalo, conversa com bois. Aprende a sobreviver observando a physis, os

modos de ser dos animais e das nuvens.

Minhas personagens, que são sempre um pouco de mim mesmo, um

pouco muito, não devem ser, não podem ser intelectuais, pois isso

diminuiria sua humanidade. [...] Um gênio é um homem que não

sabe pensar com lógica, mas apenas com a prudência. A lógica é a

prudência convertida em ciência; por isso não serve para nada. Deixa

de lado componentes importantes, pois, quer se queira quer não, o

homem não é composto apenas de cérebro. [...] A lógica, meu caro

amigo, é a força com a qual o homem, algum dia, haverá de se matar.

Apenas superando a lógica é que se pode pensar com justiça. Pense

nisto: o amor é sempre ilógico, mas cada crime é cometido segundo

as leis da lógica (Rosa, 1994: 57-58).

A obra rosiana traz para a luz este modo originário de se relacionar com

o mundo, através da narrativa de alguém que é ao mesmo tempo de dentro e de

fora, do campo e da cidade, espaços e temporalidades distintos que coexistem

no universo migrante do sertanejo que habita as grandes metrópoles. Na

saudade da minha terra existe um dia em que eu volto para lá, passado,

presente e futuro coexistem na lembrança e no esquecimento do sertão, que se

presentifica e se esconde na leitura da obra rosiana.

De acordo com Leão (2010a), nossas cidades estão cheias desses

desenraizados, que vivem à margem da sociedade industrial, arrancados que

foram da sociedade agrária e não integrados nessa nova ordem, “que vai se

construindo por eles, mas não se edifica para eles” (p. 255). A sabedoria dos

90

antepassados parece que já não serve mais, e o proletário paraíba se vê

analfabeto diante do saber da ciência, marginalizado pelo seu domínio.

Mas a língua é a pátria dos desterrados. “A língua é cada ser humano

desabrochando temporal e espacialmente naquilo que é, e não numa estrutura

formal expressiva. Por isso ela é o núcleo da resistência essencial da identidade”

(Castro, 1994: 205). Guimarães Rosa, sertanejo letrado, soa em sua obra o som

de sua língua materna, misturado a tudo mais que ele ouve pelo mundo. A

musicalidade daquela fala natalina goteja de suas palavras como leite em teta

de vaca. A pátria-língua embebeda a fala de suas narrativas. A marca de sua

identidade é a sua língua, lugar de sua diferença cultural. O sertanejo da obra

rosiana manifesta a identidade brasileira em um universal humano, concreto,

tensionado entre identidade e diferença. Assim como nas obras de Machado,

“os leitores conhecem a contribuição da identidade e cultura brasileira, à

cultura humana” (Castro, 1994: 204).

Um navio no mar não deixa rastros. Navega, conforme a rota ou ao sabor

das marés, aportando em novas terras, ou na terceira margem. Erguer uma obra

talvez seja uma forma de jogar com o silêncio do nada, mas que obra não será

finalmente esquecida? Sentir-se integrante de um tempo poético, memória,

experienciação e oportunidade, em que nas ações se realiza o destinar-se do ser

em linguagem: “aquilo que não havia, acontecia” (Rosa, 1981: 28).

O artista nonada cria, ele lida com o que encontra, o que já existe muito

antes dele e vai perdurar após sua passagem. “Toda produção se funda no Ser e

se dirige ao ente. O pensamento, ao contrário, se deixa requisitar pelo Ser a fim

de proferir-lhe a Verdade. O pensamento con-suma esse deixar-se” (Heidegger,

1967: 25). Juntando pedras num todo arreunido, o homem compõe vazios

habitáveis. Ao erguer-se como monumento, eclode a obra do artista. Mas que

não é dele, e sim doação dos deuses, invenção de Cura, disposta a ficcionar no

barro a ideia projetada em seu pensar vaguejante. Pois, conforme profere

Heidegger (1967: 24-25):

91

Só pode ser con-sumado o que já é. O que é, antes de tudo, é o Ser. O

pensamento con-suma a referência do Ser à Essência do homem. Não

a produz nem a efetua. O pensamento apenas a restitui ao Ser, como

algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser. Essa restituição consiste

em que, no pensamento, o Ser se torna linguagem. A linguagem é a

casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os pensadores e

poetas lhe servem de vigias. Sua vigília é um con-sumar a

manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e

a conservam na linguagem.

A responsabilidade poética e existencial de buscar ser o que se é, como

luta e jogo com o vigorar da physis, é fundamental para o surgimento do que é e

do que ainda não é mas pode vir a ser, através da ação do homem, a partir do

que lhe é dado. O limite da ação poética é a ética de saber o limite que se

manifesta no velar e desvelar da physis, é a eterna procura pelo conhecimento,

que move o homem em busca de sua ascese de ser feliz. Como diz o Rosa:

Cada homem tem seu lugar no mundo e no tempo que lhe é

concedido. Sua tarefa nunca é maior que sua capacidade para poder

cumpri-la. Ela consiste em preencher seu lugar, em servir à verdade e

aos homens. Conheço meu lugar e minha tarefa; muitos homens não

conhecem, ou chegam a fazê-lo quando é demasiado tarde. Por isso,

tudo é muito simples para mim, e só espero fazer justiça a esse lugar

e a essa tarefa. Veja como o meu credo é simples. Mas quero ainda

ressaltar que credo e poética são uma mesma coisa. Não deve haver

nenhuma diferença entre homens e escritores; esta é apenas uma

maldita invenção dos cientistas, que querem fazer deles duas pessoas

totalmente distintas. Acho isso ridículo. A vida deve fazer justiça à

obra, e a obra à vida. Um escritor que não se atém a essa regra não

vale nada, nem como homem nem como escritor. Ele está face a face

com o infinito e é responsável perante o homem e perante si mesmo.

Para ele não existe uma instância superior (Rosa, 1994: 38).

92

Capítulo 3

Infinito circular

Como já foi dito na Introdução, os dois lados da moeda, a coruja e o

caranguejo, manifestam-se no jogo da leitura de Tutameia, a apontar para o quê?

Para a téchne, a astúcia, a sabedoria, e a origem, a proveniência de tudo isto, que

é o nada criativo, o ser, a physis, que ama ocultar-se. O olho de rapina da coruja

conjuga-se com as patas tortas do caranguejo e, na doação do fogo, elaboram

obras da cultura humana. Ver além e andar de banda, assim se manifesta a

astúcia da poética rosiana, nas parcas páginas cinzeladas pelo artista, a elaborar

no magma sua obra encouraçada.

Assim disse o Rosa, no seu discurso em agradecimento à Academia

Brasileira de Letras pelo prêmio que obtivera com sua obra poética Magma,

primeiro livro escrito (1937), só postumamente publicado (1997):

A satisfação proporcionada pela obra de arte àquele que a revela é

dolorosamente efêmera: relampeja fugaz, nos momentos de febre

inspiradora, quando ele tateia formas novas para a exteriorização do

seu magma íntimo, do seu mundo interior. Uma tortura crescente, o

intervalo de um rapto e um quase arrependimento (Rev. ABL, Anais

1937, ano 29, v. 53, p. 261-263, apud Rosa, 1997: 8-9).

Já neste livro primeiro, revela-se a imagem do caranguejo, pincelada

num poema meio parnasiano, de escritor iniciante, a tatear o barro das palavras.

A leitura do poema de início de carreira permite-nos saber alguns elementos

relacionados pelo autor à figura do caranguejo, o que pode lançar luz sobre o

significado da presença desta imagem ao longo das páginas de Tutameia.

Vamos, pois, observar as características deste animal apontadas pelo poema,

lembrando sempre que se trata de uma obra antiga, e que outras referências

podem ter sido posteriormente construídas pelo autor, no decorrer de suas

leituras e vivências.

93

Caranguejo

Caranguejo feiíssimo, monstruoso, que te arrasta na areia como a miniatura de um tanque de guerra... Gosto de ti, caranguejo, Câncer meu padrinho nas folhinhas, pois nasci sob as bênçãos do teu signo zodiacal... Teu par de puãs cirúrgicas oscila à frente do escudo lamacento do velho hoplita. E mais oito patas, peludas, serrilhadas, de crustáceo nobre, retombam no mole desengonço de pés e braços muito usados, desarticulados, de um bebê de celuloide. Caranguejo sujo, desconforme, como um atarracado Buda roxo ou um ídolo asteca... És forte, e ao menor risco te escondes na carapaça bronca, como fazem os seres evoluídos, misantropos, retraídos: o filósofo, o asceta, o cágado, o ouriço, o caracol... Caranguejo hediondo, de armadura espessa, prudente desertor... Para as lutas de amor, quero aprender contigo, quero fazer como fazes, animalejo frio, que, tão calcariamente encouraçado, só sabes recuar...

(Rosa, 1997: 42-44.)

94

O caranguejo: seu corpo mascarado

Para um jovem mineiro, como um dia foi João Guimarães Rosa, o

caranguejo é um animal exótico, um ET do mangue, feio, assustador, medonho.

Percebemos este estranhamento na adjetivação pejorativa concedida ao

crustáceo: “feiíssimo”, “monstruoso”. O arrastar-se na areia, o modo de andar

do caranguejo, chama a atenção logo de cara. A evocação da imagem do tanque

de guerra, por sua vez, empresta uma feição futurista ao poema, condizente ao

espírito bélico da época.

Contrapondo-se a esta visão que nega, contudo, o autor ensaia uma

proximidade, ao tomar o caranguejo não como o bicho vero, mas como símbolo

de seu signo zodiacal, Câncer, já que Rosa é nascido em junho, 27. Na Folhinha

Mariana fixada na parede lá da venda de seu pai, em Cordisburgo, o menino

Rosa via aquela estranha imagem, a selar as previsões a ele dirigidas pela

Astrologia. Nesse sentido, o poeta se assume aqui como afilhado do caranguejo.

A crítica já assinalou, como vimos no início, a relação da imagem do

caranguejo, a ilustrar Tutameia, com o signo zodiacal do escritor mineiro, e sem

dúvida encontraram dados que comprovassem sua teoria (Araujo, 2001; Faria,

2005). Desconfio, porém desse biografismo, pois na obra quem fala não é o

artista, é a linguagem, o ser se manifestando, neste caso, em tutameias nonadas.

A partir da ligação do caranguejo com o signo zodiacal do autor, Faria

(2005) infere que a imagem do animal a ilustrar Tutameia se refere ao

nascimento, à vida, à origem, arché, em oposição à coruja, que representaria a

morte, o fim, télos, já que é sabido por todos que o pio da coruja é presságio

maus agouros. Mas, como vimos no capítulo anterior, e que pode ser expresso

nas palavras de Rosa: “A coruja não agoura: o que ela faz é saber os segredos da

noite” (Rosa, 1985: 194). O que se consuma no fim está dado desde o início, e

desde o início o final já está destinado. No limite tensional entre arché e telos o

homem realiza sua travessia, a coruja e o caranguejo são as duas faces de sua

sorte lançada.

95

Voltemos ao poema. Rosa descreve na segunda estrofe as características

físicas do caranguejo – puãs, carapaça, patas – emprestando-lhe adjetivos

retumbantes, a confirmar a monstruosidade anunciada no início. Sai o zodíaco,

volta o zoológico. Note-se outra possível similitude do crustáceo com o escritor:

as puãs, as pinças do caranguejo são qualificadas de “cirúrgicas”, numa alusão

à semelhança desta parte do corpo do animal com as ferramentas utilizadas no

ofício dos cirurgiões – como se sabe, Guimarães Rosa é médico formado na

UFMG, e exerceu a profissão no interior de Minas Gerais, antes de ingressar no

Itamaraty, onde faria carreira diplomática, paralelamente à sua produção

artística. À imagem impressa na folhinha o escritor acrescenta outra, das salas

de cirurgia, pela feição da pinça do caranguejo.

A carapaça lamacenta do animal leva Rosa a se lembrar de sua condição

de soldado, ao compará-lo a um “hoplita” (cf. Houaiss Eletrônico: “na Grécia

antiga, soldado da infantaria duramente armado” [capacete, escudo, couraça,

cnêmides, lança e espada]). Esta imagem reforça a comparação ao tanque de

guerra da primeira estrofe. Mas agora não se trata mais da guerra moderna,

com tanques motorizados, e sim da Grécia Antiga, tornando-se o animal um

hoplita, personagem de sangrentas e legendárias batalhas. Na figura do

caranguejo a natureza aparece vestida para a guerra.

As patas cabeludas e serrilhadas do caranguejo são desengonçadas,

contrastam com a concretude de seu escudo e completam a imagem do animal

esdrúxulo: puãs cirúrgicas, carapaça hoplita, patas “desarticuladas de um bebê

de celuloide”. O celuloide é uma substância plástica, maleável ao calor,

utilizada desde o final do século XIX. Bebês de celuloide devem ser bonecos de

plástico, com pernas e braços molengas, como as patas do caranguejo.

A concretude empresta peso ao caranguejo, que se resguarda em sua

forma compacta. Seu aspecto “sujo, desconforme”, confere-lhe um ar grotesco,

que no entanto se associa à imagem do totem sagrado, ídolo asteca ou Buda

roxo, cujo peso concentra a força do sagrado. O estranhamento leva ao fascínio,

à admiração. O poeta parece ter se deixado hipnotizar pelo feioso animal.

96

Na próxima estrofe, já encantado, o poeta percebe a força escondida na

“carapaça bronca”, que se retrai ao menor sinal de perigo. O ser disforme e

desconjuntado esconde-se sob a dura carapaça, que o mantém protegido, no

retraído velar-se. O poeta passa a descrever não mais a aparência, mas o

comportamento do crustáceo, caracterizando-o com a personalidade

circunspecta daqueles que se fecham em si mesmos, recolhendo-se no abrigado

de si. Os seres assim animados, considerados evoluídos, são os misantropos,

filósofos e ascetas, cada qual em seu píncaro gelado, a retrair-se e mostrar-se na

vizinhança do ser, da linguagem. Pois, como já indagava Heráclito (fragmento

16): “Como alguém pode permanecer velado ante o que nunca declina?” É no

seu velar-se que a physis se manifesta, o brilho do mistério trespassa a carapaça

espessa, ao mesmo tempo em que nela se resguarda. A mera existência de um

ente como um caranguejo, se a gente parar para pensar, pasma: como pode?

Mas ele vigora lá, na dele, parado, na espreita, esquisito, feio, hediondo.

Nas disputas para se manter, tanto ataca, com suas ferozes tenazes, quanto se

defende, com seu escudo lamacento. Seu andar claudicante, aparentemente

prejudicial ao seu desempenho em se locomover, acaba se mostrando como

mais uma estratégia a lhe garantir a sobrevivência. Sua carapaça dura e seu

esgueirar-se o protegem nos confrontos com o real, os “jogos de amor” que

ainda tanto assustam o jovem poeta, a ponto de ele invejar do caranguejo a

maestria em desertar. Quem sabe um andar oscilante e uma carapaça dura

impeçam a dor de uma saudade?

Andando de banda é que o caranguejo viaja, debaixo de sua couraça

rescende o fogo do ser. A lama, o húmus, o magma, é a origem, arché desse

bicho desconforme. Se neste poema encontramos um Rosa ainda novato,

contudo, de sua leitura pudemos depreender o exercício especulativo do poeta

em tentar encontrar semelhanças entre seu modo de ser e o do caranguejo,

numa tensão entre estranhamento e reconhecimento, identidade e diferença.

Ora ressaltando aspectos positivos, ora negativos, a descrição do “animalejo

frio” é construída num ir-e-vir, tal como a marcha do crustáceo. Já era o Rosa,

mas verde.

97

O jovem Rosa, poeta-amante, quer aprender com o caranguejo, seu

padrinho do zodíaco, a se proteger nos jogos de amor, se encouraçar, recuar.

Mas a gente sabe que o amor vem, não tem jeito. Uma hora o caranguejo sai da

toca, e quem tem a boca maior engole o outro.

A imagem deste animal nas páginas de Tutameia pode, a partir da leitura

do poema de Magma, ser associada ao gosto pelo retraimento, comum ao

caranguejo e também à physis que, nos dizeres de Heráclito, ama velar-se. Nesse

sentido, a tendência para o velamento do caranguejo tensiona com a tendência

para o iluminar-se da coruja. A sombra do animal rastejante destaca a luz do

olhar da ave, e na disputa entre estas duas potências opera-se a verdade da

obra. Na poética de Guimarães Rosa, onde tudo “se finge primeiro, germina

autêntico é depois” (Rosa, 1967: 149), vêm a lume as estórias, a narrar percursos

do homem humano, discursos acerca do ser, que se doa no seu velar-se, “no

cujo caber do caramujo” (Rosa, 1967: 108).

Leonel (2000), em pesquisa que buscou mapear a recorrência de

elementos dos poemas de Magma na posterior produção de Guimarães Rosa,

indica-nos outra aparição deste animal nas páginas rosianas, desta vez na

também publicação póstuma Ave, palavra (lançado em 1970), onde o caranguejo

ressurge nas anotações do escritor sobre o Aquário de Berlim, das quais

pinçamos as seguintes (Rosa, 1985: 38; 40):

Os caranguejos atenazam-se.

O caranguejo: seu corpo mascarado.

Em casa de caranguejo, pele fina é maldição.

*

O caranguejo a encalacrar-se, tão intelectualmente construído.

O caranguejo carrascasco: comexe-se nele uma ideia, curva, doida e

não cega.

98

A leitura dessas anotações permite perceber que a imagem do caranguejo

desenhada por Rosa configura-se pela presença de alguns elementos

recorrentes: uma carapaça dura, a esconder uma substância volúvel, seu corpo

mole, desarticulado, que se move não de forma linear, porém seguindo um

traçado próprio, de vai-não-vai; suas pinças, puãs, tenazes, com precisão

cirúrgica, garras torturantes, armas de ataque, instrumentos, ferramentas. A

máscara que envolve o corpo do caranguejo compõe-se de um escudo-couraça,

pinças cortantes e pernas tortas, que lhe conferem um andar cambaio. Tanques

de guerra a atenazarem-se, os caranguejos, porém, trazem por debaixo daquela

máscara mortífera a essência que anima todo ente: “comexe-se nele uma ideia,

curva, doida e não cega”.

Pode parecer cega a rota do caranguejo para quem segue o traçado reto

da racionalidade técnica. Seu andar cambaio e seu retrair-se, contudo, nas

malhas da poética, do caos à lama, pode vir a ser a melhor distância entre dois

pontos. Convida para uma caminhada pelas veredas tortas, pelos caminhos de

floresta, caminhos silvestres, trilhas abertas para o livre da descoberta.

Caminhos silvestres são aqueles que, nos passos ordinários de cada

dia, nos abrem silenciosamente passagens extraordinárias para a

selva selvagem do pensamento, por onde o mistério de ser sempre

nos faz passar [...] Como caminhos silvestres, elas nos convidam a

caminhá-las de coração leve, isto é, livre, sem a carga da

funcionalidade de sujeito e objeto. É a caminhada pela essência do

caminho! (Leão, 2010a: 175-176).

O andar vacilante do caranguejo espelha o itinerário de re-leitura de

Tutameia, que convida a um percurso de idas e vindas, voltas e retas, sinuosas

rotas, como os caminhos de floresta, que às vezes simplesmente chegam no

nada, levando ao assombro diante do mistério impenetrado da floresta em ser

verdor verdejante.

99

O coxear do caranguejo se faz presente também na caracterização de

alguns personagens das terceiras estórias. Em “Como ataca a sucuri”, Pajão

“caranguejava”, “em roda tornava a coxear torto, estragando muito espaço”

(Rosa, 1967: 31). Vivendo à margem das águas, o caboclo assemelha-se ao

caranguejo de pernas tortas, seu facão faz as vezes das tenazes do crustáceo.

Hospeda em sua casa, nas brenhas, um moço de fora, estranho, que viera ali

disposto a caçar a sucuri do poço e inquiria dicas do “aleijado hospedeiro”

(Rosa, 1967: 32). Quando, porém, o forasteiro esquisito consegue enfim matar a

cobra-grande, que restou boiando no poço fundo, Pajão demonstra sua

habilidade em lhe tirar o couro: “Ladino, avançou, quase quadrumanamente,

desembaiando o facão, feio, tão antigo, que parecia uma arma de bronze” (Rosa,

1967: 33).

O conto se constrói no confronto e estranhamento entre os dois

personagens, o nativo e o de fora, este cheio de parafernálias tecnológicas,

aquele integrado ao ambiente silvestre. Em um parágrafo temos o ponto de

vista do sertanejo, a descrever o viajante, no outro, o contrário. É necessária

uma leitura repetida, para perceber esta diferença, identificar cada parágrafo,

ler cada ponto de vista separadamente, depois juntar tudo de novo, e outra vez

de trás para frente... Enfim, não se trata de uma narrativa linear, e sim de um

trançado de caranguejo, que para ir adiante precisa andar de esgueio.

“No prosseguir” é outra estória que conta com um personagem coxo,

desta vez o visitante jovem na casa de um vizinho mais velho. Eram, ao final do

conto se descobre, pai e filho, e viviam do ofício de caçar onça. A danada fizera

um baita estrago no mais novo. Por isso, ao caminhar pela mata, o rapaz

“coxeava, o tanto, pela clareira, no devagar da ligeirez, macio” (Rosa, 1967: 97).

O velho se casara de novo, com uma moça mais jovem, e tencionava deixar

como herança a mulher para o filho. Porém, a própria condição física do rapaz

torna presente o tempo todo o fato de que ele, apesar de moço, já vira a vó pela

greta, que na vida não vale a certa matemática. “As coisas, mesmas, por si,

escolhem de suceder ou não, no prosseguir” (Rosa, 1967: 99).

100

Diante do inesperado, na volta pra casa, ao atravessar novamente a mata,

o filho se vira como pode: “Mas, tinha o rifle! E o saber – pelo desassombrar,

abarbar, com ela igualar-se à mão-tente – fugir o perigo” (Rosa, 1967: 99). O

jovem e coxo onceiro, para sobreviver, faz como o caranguejo do poema de

Magma, que “ao menor risco se esconde na carapaça bronca” (Rosa, 1997: 44).

Mas da indesejada das gentes ninguém escapa. É o que percebe Mechéu,

protagonista do conto homônimo, que “marchava com desajeito, bamba

bailava-lhe a perna direita, puxada pela esquerda” (Rosa, 1967: 90). Aqui

também se dá o confronto entre diversos pontos de vista, a compor um mosaico

que deve ser montado e desmontado pelo leitor, a buscar novos prismas para

formar a imagem deste personagem tão ensimesmado que leva ao silêncio.

Já em “Nós, os temulentos”, o herói bêbado Chico oscila na sarjeta entre

a rua e a calçada, até que “o bom transeunte lhe estendeu a mão, acertando-lhe a

posição. – Graças a Deus! – deu. – Não é que eu pensei que estava coxo?” (Rosa,

1967: 103). O andar sinuoso condiz melhor com as tortas linhas?

Na floresta de Tutameia, o que há são veredazinhas de nada – e as

picadas, abertas pelo facão do pensamento, ao caminhar. A beleza de suas

trilhas é não ter lugar pra chegar, é caminhar só pra ver a brabuleta poisar na

fulô, saída do bolso da paisagem. A perdição leva à luz da clareira.

A outra face

Ao longo de Tutameia, piscam as moedinhas: cara e coroa, coruja e

caranguejo. Como vimos no capítulo anterior, a coruja é imagem-questão da

deusa da Sabedoria, Atena. E o caranguejo, além do signo zodiacal, há alguma

referência a este animal na mitologia? Ora, como já adiantamos no início, o

caranguejo, na iconografia grega, está justamente relacionado ao deus da

metalurgia, Hefesto, “o fogo nascido das águas celestes” (Brandão, 2008: 489).

De acordo com Détienne e Vernant (2008: 239-240):

101

Este animal que se caracteriza simultaneamente pela estranheza de

seus membros e por sua cumplicidade com o metalúrgico é o

caranguejo, karkínos, o monstro marinho que é associado aos Cabiros

ao mesmo tempo em que a Hefesto. [...] Karkínos, que é o nome do

caranguejo em grego, significa igualmente a tenaz do ferreiro. A

imagem do crustáceo marinho aparece assim, para os gregos,

indissociável da representação do instrumento que prolonga as mãos

do ferreiro e permite-lhe manipular o metal incandescente.

Conhecido por sua habilidade em forjar objetos de metal, como armas e

joias, o instrumento de trabalho de Hefesto é a tenaz, instrumento que prolonga

as mãos do ferreiro, permitindo-lhe manipular o metal incandescente.

“Kyllopodíon, Hefesto é um deus de pés curvos, de membros tortos. [...] Kyllós

designa tanto o coxo quanto a mão recurvada, a mão cavada e pontiaguda, cuja

forma evoca também para os gregos a pinça do caranguejo” (Détienne e

Vernant, 2008: 241).

Figura 6: Retorno de Hefesto ao Olimpo.

Ânfora da Magna Grécia, circa 600 a.C.

Disponível em:

http://web.uvic.ca/grs/department_files/classical_myth/gods/hephaistos_i.html

Acesso em: 5 set. 2012.

102

Mas, se suas mãos de pinça lhe conferem habilidade manual, suas patas

retorcidas, entretanto, tornam seu andar enviesado, oblíquo. “Que ele seja

provido de dupla orientação ou que seja dotado de pernas curtas, o ferreiro

mítico é sempre um ser de andar ambíguo e de extremidades singulares”

(Détienne e Vernant, 2008: 242).

A cumplicidade de Atena e Hefesto, presentes, respectivamente, nas

imagens-questão da coruja e do caranguejo, cara e coroa das moedas de

Tutameia, já se entoa no hino homérico ao deus metalúrgico, que agradece pelos

engenhos que possibilitaram o desenvolvimento da civilização. Assim ele soa:

Hino homérico XX: A Hefesto

Hefesto de ínclito engenho canta, Musa de voz límpida,

que com Atena Glaucópida dons esplêndidos

aos homens ensinou sobre a terra, que antes mesmo

em antros montanhosos viviam como feras.

Hoje por Hefesto de ínclita arte obras aprenderam

e facilmente a vida até o fim do ano

livres de cuidado passam em seus lares.

Sê propício, Hefesto, dá-me virtude e felicidade! 2

Se, como vimos no capítulo dedicado a Atena, o Hino homérico XI canta o

conluio da deusa com Ares, o deus da guerra, aqui ela se une ao deus das forjas,

Hefesto, para doar aos homens as possibilidades de sair das cavernas e se

diferenciar das feras, resguardados em suas moradas, com o auxílio das

ferramentas e das coisas criadas para o conforto dos homens.

A métis de Atena que participa do saber de Hefesto faz uso dos

valores do bronze, na qualidade de metal produzido e animado pelo

fogo do ferreiro, mas a aplicação que ela faz sentir se situa no nível da

guerra ativa, no desdobramento eficaz das armas carregadas e

brandidas pelos homens da guerra (Détienne e Vernant, 2008: 166).

2 Disponível em: http://primeiros-escritos.blogspot.com.br/2009/09/hino-homerico-xx-hefesto.html.

Acesso em: 15 ago. 2012.

103

O templo de Hefesto em Atenas abrigava uma estátua da deusa, e vice-

versa. Além disso, nas festas em homenagem a ambos os deuses era realizada a

Lampadedromía, “corrida com fachos acesos” (Brandão, 2008, V. II: 491).

Hefesto e Atena são responsáveis pelo conjunto das habilidades

técnicas representadas no mundo dos homens por um amplo leque

de habilidades, desde a metalurgia e a cerâmica até a tecelagem e o

trabalho de madeira, passando pela habilidade do cocheiro, a arte do

piloto e uma certa maneira de fazer uso das armas. [...] a competência

de um encontra-se delimitada estritamente pela do outro. [...] Atena

só poderá exercer [seu poder] com cumplicidade ativa de seu

compadre Hefesto. Pois se o instrumento de metal [freio] é tão vivo

para dominar a violência e o ímpeto do cavalo, é porque ele nasceu

da chama, porque ele é um produto do fogo metalúrgico (Détienne e

Vernant, 2008: 248).

Dizem inclusive que Hefesto e Atena teriam gerado um filho, Erictônio,

um dos primeiros reis da Ática, a quem se atribui a introdução do uso do

dinheiro. A união desses deuses estaria assim na origem da pólis grega e

também do uso do dinheiro, alçando-nos novamente à imagem da moeda,

presente nas ilustrações e no próprio título de Tutameia. Assim diz o mito:

Tendo a deusa [Atená] se dirigido à forja de Hefesto, para lhe

encomendar armas, o deus, que havia sido abandonado por Afrodite,

se inflamou de desejo pela deusa virgem e tentou prendê-la em seus

braços. Atená fugiu; o deus, todavia, embora coxo, a alcançou. A filha

de Zeus se defendeu, mas, na luta, o sêmen do senhor das forjas lhe

caiu numa das pernas. Atená retirou-o com um floco de lã, que foi

lançado na terra. Esta, fecundada, deu à luz um menino que, tendo

sido recolhido pela protetora de Atenas, recebeu o nome de Erictônio,

isto é, popularmente o “filho da terra” (Brandão, 2008, V. I: 349).

104

A vizinhança de Atena e Hefesto foi assinalada também por Platão, em

dois de seus diálogos: Protágoras (Platão, 1999) e Crítias (Platão, 2011). Neste

último, discorrendo sobre a distribuição dos lotes de terra entre os deuses,

assim narra o filósofo:

Em determinada altura, os deuses dividiram toda a terra em regiões

[...] e, havendo obtido a região que lhes agradava, de acordo com as

sortes da Justiça, povoaram esses lugares. [...] Enquanto que aos

outros deuses coube em sorte os restantes locais que ordenaram de

um modo diferente, Hefesto e Atena, por terem uma natureza

comum – por um lado, eram irmãos de um mesmo pai e, por outro,

em virtude do gosto pelo saber e pela arte, tinham a mesma

orientação –, a ambos assim coube em sorte uma única porção, que é

este lugar aqui, porque era, por natureza, afim e adequado à virtude e

à sabedoria. Então, colocaram aqui homens bons, os autóctones, e

introduziram-lhes a ordem política no intelecto (Platão, 2011: 109b-d).

De acordo com Platão, portanto, coube a Atena e Hefesto ocuparem o

terreno onde se situa Atena, porque aquele lugar seria “por natureza, afim e

adequado à virtude e à sabedoria”. Tal observação lembra a fala de Heidegger

na Academia de Ciências e Artes da capital grega (1967), na qual, em uma

passagem, o pensador ressalta a peculiaridade daquele sítio, em resposta ao

qual o homem desenvolveu as bases da civilização ocidental:

É só aqui, na Grécia, onde o tudo do mundo se endereça ao homem

na medida em que a physis lançou sobre o homem seu destino, que a

percepção e a ação humana podiam e deviam corresponder a um tal

destino: o homem era primacialmente forçado a trazer de si mesmo,

pelo seu próprio poder, à presença, o que devia como obra deixar

aparecer, um mundo até então não aparecido (Heidegger, 1983: 1).

Os raios de Zeus, lembra Heidegger, é Atena quem guarda. Seu olho

ilumina, traz para a luz o que antes velava encoberto. Mas Hefesto,

companheiro da deusa, também guarda a pólis grega. De sua fornalha saem as

105

armas forjadas no ferro, as cortantes espadas, os brilhantes escudos, as pesadas

armaduras, com as quais os guerreiros combatem. Voltando ao diálogo, Platão,

mais adiante, complementa a descrição da suposta Atenas originária:

A parte exterior, junto às suas próprias vertentes, era habitada por

artesãos e pelos agricultores que cultivavam as imediações. Quanto à

parte superior, habitava-a a classe dos guerreiros, de forma autônoma

e isolada, junto ao templo de Atena e Hefesto, que eles tinham

vedado com uma única cerca, como se fosse uma só casa (Platão,

2011: 112c).

Na parte baixa da cidade, ficavam os artesãos e agricultores, gente

trabalhadeira, e no alto ficavam os guerreiros, pegados no fogo de Hefesto e

Atena, reforçando o compartilhamento do espaço sagrado pelos dois deuses,

cujos templos ocupavam um mesmo lugar.

Também no Olimpo os deuses habilidosos dividiam o mesmo ateliê. É o

que afirma Platão, agora no Protágoras (Platão, 1999), que narra o modo como

Prometeu, vendo a penúria dos humanos, rouba as artes e o fogo de Atena e

Hefesto, para doá-los aos mortais:

Sem encontrar qualquer outra solução para assegurar a sobrevivência

do homem, Prometeu roubou a sabedoria artística de Hefesto e

Atena, juntamente com o fogo – porque sem o fogo era-lhe impossível

possuí-la ou torná-la útil – e, assim, ofereceu-a ao homem. [...]

Entrara, sem ser visto, na sala partilhada por Hefesto e Atena, na qual

ambos se dedicavam às suas artes, e roubara a arte do fogo a Hefesto

e as outras artes a Atena, para as dar ao homem, que delas retirou os

meios necessários à vida (Platão, 1999: 321-322).

O brilho de fogo resplandece no claro dos olhos de Atena, que lançam o

fulgor dos raios de Zeus, dando a ver o que permanecia encoberto. Assim como

a deusa, Hefesto possui a techné, a maestria para produzir inventos. Tudo,

portanto, para ser produzido, precisa da doação do fogo e ferro, e da techné,

106

dom partilhado por Atena e Hefesto. O fogo não só aquece os lares e cozinha os

alimentos, como também possibilita a fundição de metais, tecnologia essencial

para a civilização humana, de suas origens aos dias de hoje, como nos lembram

as palavras que caíram em meu colo, da História do mundo para crianças, do

escritor, editor e minerador brasileiro Monteiro Lobato (1933). Ensina D. Benta:

A descoberta do fogo foi o maior dos acontecimentos, porque

permitiu tudo mais. A descoberta do fogo trouxe logo a do ferro e foi

do ferro que saiu toda a nossa civilização de hoje. Nada existe que

não tenha por base o fogo e o ferro. [...] Um livro é feito de papel e

impresso em prelos. O papel faz-se com o machado de ferro que corta

a árvore, com a máquina de ferro que mói a madeira, com a máquina

de ferro que desdobra a pasta de madeira em camadinhas finas, com

as calandras de ferro que imprensa essas camadinhas, tudo isso

sempre ajudado pelo calor – isto é, pelo fogo. Esse papel, assim feito

graças à ajuda do fogo e do ferro, vai em seguida para as tipografias,

onde é impressa em prelos de ferro, é desdobrado em dobradeiras de

ferro, é grampeado em grampeadeiras de ferro e é remetido para as

livrarias em veículos de ferro – automóveis, carroças ou trens. 3

Além do elemento fogo propriamente dito, o fogo dos deuses, roubado

por Prometeu, é o fogo do pensamento, o intelecto, sem o qual os humanos

viveriam como bestas. “Pensar é articular o destino do ser” (Leão in Heidegger,

1967: 16). Consumar o destino, manifestar o Ser, é o que buscam os pensadores

e poetas, na sua vigília da linguagem, casa do Ser, morada do homem. A ação

poética, capaz de criar inventos, está impregnada do fogo do pensamento, dom

divino entregue aos homens, que assim puderam acender suas próprias

fogueiras e fornalhas, com também suas bombas atômicas e seus tanques de

guerra. O esquecimento do sentido do ser, vigente no império da racionalidade

técnica, ofusca a chama, mas não apaga a brasa deste fogo, pois sempre estão a

assoprar-lhe os artistas, inflamando a chama que humaniza o homem.

3 Extraído de apostila de Português da prof. Luciana Jablonski, Ceat- 2012. Cedido por minha filha, Bárbara de Andrade Campos.

107

Como o caranguejo de Rosa, “intelectualmente construído”, assim são as

ações humanas, que enviam o homem a operar o seu destino. Pela luz do

pensamento o homem, locanda do Ser, imprime sentido às suas ações, “abre

sulcos invisíveis na linguagem” (Heidegger, 1967: 100). Só se lançando na

abertura da clareira, na procura do sentido da Verdade do Ser, é que a ele é

dado o envio sábio, a ausculta da linguagem, à qual ele responde, figurando

formas poéticas.

Olhos claros, coragem, habilidade, andar tortuoso. A leitura e a escrita do

livro da vida requerem olhar à frente, passo atrás, a ginga exata, na medida do

destino, a malícia de ser o que é. O tilintar das moedas de Tutameia ecoa a

batida metálica dos tipos datilográficos, o pipoco dos tiros da Europa e dos

Tucanos. Literatura deve ser vida, e como viver é muito perigoso, é preciso ter

olhos de coruja, carcaça e patas de caranguejo. Premeditar as ações, saber

executá-las, a partir dos limites da physis. Para agir poeticamente, há que se

armar de astúcias, consoante o concerto do mundo.

A imagem do caranguejo, a pulular nas páginas de Tutameia, encontra

assim referência no mito de Hefesto, que conjuga com o de Atena, proposto

como imagem-questão pela coruja, a outra ilustração do miolo do livro.

Podemos supor que Guimarães Rosa, dada sua conhecida predileção pela

cultura grega, como atestam seus registros de leitura de Platão e Homero,

dentre outros, soubesse da intimidade desses dois deuses.

Independentemente da intencionalidade do autor, contudo, que não

pode ser confirmada por ele não estar mais entre os vivos, a relação construída

a partir da referência das ilustrações com esses dois mitos gregos sem dúvida

amarra perfeitamente a interpretação dessas imagens aqui proposta, e reforça a

hipótese, aqui levantada, de que a astúcia, como modo de saber diverso do da

racionalidade técnica, é ressaltada nesta obra rosiana, como doação dos deuses,

que possibilita aos mortais a produção mais do que de utensílios, mas de obras

de arte, da própria humanidade do homem.

108

A rede de Hefesto

O mito de Hefesto, como imagem-questão, além da referência à téchne e

ao fogo do pensamento, apresenta ainda outra faceta. A este deus, monstruoso e

coxo como o caranguejo, foi dado produzir a mais bela riqueza, e desposar

também da mais bela deusa, Afrodite, que, dizem, dava suas saidinhas com

Ares, o sarado deus da guerra.

Sabemos pela Odisseia de um babado olímpico, envolvendo este

triângulo amoroso. Pensar sobre esta estória nos ajuda a refletir sobre o modo

de ser deste deus, buscando encontrar relações entre sua potência e a poética de

Tutameia. A cena, cantada por Demódoco na corte dos feácios, diante de Ulisses,

narra o episódio em que Hefesto, ao saber da trairagem de Ares e Afrodite,

resolveu dar o troco. Teceu uma rede mágica, mais invisível que uma teia de

aranha, que só ele sabia desatar, e colocou a armadilha sobre a cama. Quando

os amantes estavam bem gozando a vida, o marido traído desarmou a rede, e os

dois se viram pendurados, diante de todos os deuses, que haviam sido

convidados por Hefesto, para a humilhação dos safados. De acordo com

Homero: “Os liames forjados pelo saber (tékhne) e a alta prudência (polyphron)

de Hefesto caem sobre eles” (apud Détienne e Vernant, 2008: 252). Por isso diz o

provérbio: “Eis que Hefesto, este vagaroso (bradýs), pegou Ares que é, no

entanto, o mais rápido (okýtatos) dos deuses que habitam o Olimpo. Por sua

habilidade (tékhne) técnica, é o aleijado (kholós) que vence” (Détienne e Vernant,

2008: 254).

Diante da cena bizarra, caçoa Hermes: “ Que três vezes mais liames

apeírones [circulares] me cerrem, de modo que eu durma ao lado de Afrodite”

(ibidem). A zombaria do deus caracteriza os liames de Hefesto como apeírones,

circulares. Assim é a rede de Hefesto, circular, sem limites, sem fim nem

começo, atadora e atada, conjunto de nós mágicos que prendem a presa e a

imobilizam, só seu autor sabendo como soltá-la. Assim também os anéis e

colares forjados por Hefesto, de extremidades retorcidas, sem fim nem começo.

De acordo com Détienne e Vernant (2008: 270):

109

As obras de arte de Hefesto assemelham-se a seu mestre pelo que nos

pareceu definir de maneira mais adequada a métis do ferreiro: a

circularidade do andar e a dupla orientação de extremidades tortas e

curvas, inscrevendo sobre o solo um traçado enigmático que, como

esses anéis “sem limite”, parecem não ter nem fim, nem princípio.

Assim também é a rede da trama das Terceiras estórias: “uma porção de

buracos, amarrados com barbante” (Rosa, 1967: 10). Assim também Tutameia,

ilustrado pelas circulares moedinhas, forjadas de metal, domínio de Hefesto.

Como as pinças do caranguejo, cujas extremidades se voltam para dentro, nesta

obra, um índice de releitura, ao final do volume, remete novamente para o

início, num jogo infinito capaz de prender para o resto da vida. O “caranguejo

encalacrado”, ‘intelectualmente construído”, é bem uma imagem do formato de

Tutameia, cuja essência resta hermeticamente fechada sob uma carapaça espessa.

Nesse sentido, revisitando a leitura feita no mestrado, resgatada na Introdução

desta tese, agora com um novo olhar, poético, vale a pena pensar na

apresentação deste livro, em seu formato, como integrante do operar da obra de

arte literária, que se realiza neste suporte, configurada num volume de páginas

enfeixadas por uma capa. Pois, como afirma Castro (1994: 145):

O texto-obra é constituído pelo discurso literário, perseguindo o todo

completo. Nele, discurso e conteúdo se fundem. E sua modalidade de

ser é a presença. Não a pseudo-presença de um número na multidão,

de um lombo de livro posto na estante. Mas a presença de um livro

aberto.

O desvelo do Rosa na edição de suas obras, como vimos, é tal que beira a

esquizofrenia. Tudo está cifrado, tudo é código, cada ponto é um nó, a levar o

leitor por infinitas veredas. Os “rosianos” não se cansam de se surpreender com

o inextrincável das malhas da obra do Rosa, a apontarem os nós de sua

elaborada rede, numa volúpia devoradora como a de Afrodite e Ares, amantes

das belas formas, capturados pela rede de Hefesto, flagrados na rede com o

livro-amante, naquela boa e velha felicidade clandestina.

110

Quando tive meu primeiro contato com Tutameia, já havia ingressado na

senda da edição de livros, vocação que ainda hoje garante meu sustento. De

dom, veio-me. Esmero-me em burilar um texto, poli-lo, para que não haja

nenhuma mancha sobre o espelho, e a dança da linguagem possa se manifestar

em seu esplendor, na alegria do jogo das palavras. Naquela obra enfim eu via

arte naquele espaço do livro, normalmente utilizado apenas dentro dos

princípios da funcionalidade. Em Tutameia, este também é um espaço de gozo,

de imaginação, do bater das asas amorosas da ideia. Ali eu nadei de braçada,

altos mergulhos em corais multicores.

Minha pesquisa de mestrado em Teoria Literária teve, como já foi dito, o

objetivo de analisar estes nós, encontrados na trama de Tutameia. Esforcei-me

em decifrar códigos, resolver enigmas, encontrar provas que demonstrassem as

amarrações descobertas. Mas, quando vi que nunca mais que a rede desatava,

que por mais que explicasse sempre haveria silêncio e mistério, percebi o que já

lá desde o início estava escrito: a questão não são os nós, mas os buracos que

eles amarram. Hoje estou a escutar os buracos, o que abre outra perspectiva

para a apreensão desses nós de marinheiro.

O texto não é composto apenas de linhas, mas também das

entrelinhas, dos seus vazios. É o que nos lembra Guimarães Rosa ao

dar a definição de rede: “Uma porção de buracos amarrados com

barbante (Rosa, 1967: 10). O discurso e a Linguagem aí estão

enredados e quem traz à luz este enleio é o texto poético, a obra

literária. Assim como as linhas da rede estão sempre imersas nos

vazios, da mesma maneira nos achamos imersos no retraimento da

Linguagem, diante da articulação das linhas em formas, em discurso.

Vivenciar a experiência do retraimento da Linguagem ou imaginário

é experienciar a impossibilidade de o texto ou a forma discursar o

imaginário. É uma impossibilidade positiva. No experienciá-la do

concreto literário nos apercebemos da Linguagem de todos os nossos

discursos (Castro, 1994: 151).

111

A realidade ficcional produzida por Guimarães Rosa em suas Terceiras

estórias extravasa os limites convencionais do texto literário e impregna cada

espaço da superfície do livro. O estranhamento do título provoca dúvida e

curiosidade, o espelhamento dos índices incita ao movimento da releitura, o

lançar das moedas imprime sentido ao texto, e a leitura do livro se realiza no

“pesar em passar a página”, nas palavras do poetamigo Danislau Também

(2005: 75), em homenagem ao mestre Rosa:

Todo esforço é vau

Guimarães Rosa, pétala por pétala

Pesar em passar a página

Não há formalismos gratuitos no hermetismo de Tutameia. O que no

artista se dá, ele incorpora e apresenta, em forma de obra de arte, a qual

somente opera aquilo que a ele se dá. O operar da obra desvela a verdade do

Ser. É a obra que nos desvenda, não somos nós a desvendá-la.

Quem tece por vezes observa as próprias mãos atuarem, trazendo para a

visibilidade aquilo que antes permanecia velado. Produzir é dar forma à ideia,

para que ela possa se manifestar em sua presença.

O pôr-em-obra da verdade faz irromper o extra-ordinário e revoga ao

mesmo tempo o habitual e o que assim se considera. A verdade que

se inaugura na obra jamais é para ser comprovada ou deduzida a

partir do até então existente. O até então existente é refutado em sua

realidade vigente exclusiva através da obra. Por isso, o que a arte

funda não pode nunca ser contrabalançado nem compensado através

do já existente e do disponível. A fundação é um exceder, uma

doação (Heidegger, 2010: 173).

112

A elaboração do livro como obra de arte acontece em editoras como a

José Olympio, que publicou não só Rosa como a maioria dos escritores

brasileiros mais importantes do século XX. Sua equipe se empenhava em trazer

a lume obras cuja editoração estivesse à altura do texto apresentado, para isso

contando com ilustradores, como demonstram documentos já publicados pela

crítica, apontados em minha dissertação de mestrado. Não podemos, pois,

deixar de considerar significativos esses elementos no conjunto da obra rosiana,

que pôde contar com a qualidade dos serviços de sua casa editora, para quem

formato, ilustração, texto e diagramação devem ser consoantes de tal

maneira que a união desses referentes faça surgir a harmonia: a

apresentação da obra. [...] Quando é atingida uma radical e

harmônica integração entre formato e forma, consegue-se uma

modalidade de presença concretizada na apresentação. A

apresentação surge como um esforço de integração das facetas do

formato e da forma (Castro, 1994: 144).

As vanguardas exploraram sobremaneira esta dimensão concreta da

literatura, o que levou a muitos experimentalismos vãos, como aponta Castro

(1994: 86):

O formato nas artes tem como uma das consequências tornar cada vez

mais necessário um aprofundamento do conceito de criatividade, um

conceito mágico que sagrava como artístico qualquer pequena

transformação formal, consagrando experimentalismos inócuos,

encobrindo repetições e desviando a atenção dos verdadeiros

processos de realização criativa.

Descontados os excessos dos modismos de época, o “formato” interfere

na criação literária, não só em termos de limitações quanto ao tamanho do texto

ou ao uso de cores, por exemplo, mas podem se constituir também em um

elemento coerente com a ideia que o autor expressa no texto.

113

Não podemos radicalmente descartar as possibilidades do formato,

mesmo no uso exclusivo do signo verbal. Lembraríamos os textos

medievais e suas iluminuras. O formato da letra não era só a forma

do conteúdo. Ele mesmo era significante. Esse aspecto, pouco usual

para nós, seres racionais e econômicos da modernidade, e, por isso,

insensíveis muitas vezes ao operar da obra, onde significado e

significante se empenham em deixar ser o que é, e não em ser isto ou

aquilo, inclusive significante e significado, nós, modernos,

precisamos deixar falar em nós o infante reprimido, o imaginário, a

liberdade de simplesmente ser (Castro, 1994: 88-89).

Pensar é significar o mistério. Na rede do pensamento, o pensador é o

tecelão da realidade, traz para a luz o que permanecia encoberto. O retraimento

do mistério é a mata virgem por onde o homem, ao caminhar, vai abrindo

caminho entre os cipoais espessos. Mão à frente, passo alto, boca fechada não

entra mosca. E o gume do facão a abrir as picadas.

As trilhas batidas das convenções sociais dispensam o pensamento.

Somos engrenagem nas malhas da funcionalidade, esquecidos do sentido do

ser. Mas a janela fechada não impede a luz que entra pela fresta e o sonoro

canto dos pássaros, indicando o vigorar da realidade. A obra de arte é o vento

que abre batendo tambor, convocando ao pensamento.

Todo pensamento é integrador: aglutina sempre o real com a

realização. E quando esta aglutinação restitui à realização do real sua

proveniência no mistério inesgotável da realidade, temos um

pensador originário. Heráclito é um deles: um tecelão da realidade

(Leão, 2010b: 124).

A leitura do habitual pode ser límpida e transparente, basta seguir as

convenções sociais. Para perceber o ser em sua presença, porém, é preciso que a

luz do pensamento enrede a ideia na teia do discurso.

114

Ficção são as linhas. As entrelinhas são o mundo aberto pela metáfora

para que o discurso se manifeste como não-discurso e a ficção como

imaginário. Por ser a sua força de articulação, ela é estranha. Pela

metáfora o discurso articula e expõe os buracos, os vazios da rede,

porque a rede não são as linhas, mas os vazios amarrados. Como é

isto possível? Pela metáfora, porque a metáfora é a mimesis se

expondo como um discurso (fingidor), que abre espaço para a

manifestação do imaginário (vivenciador): nisto se colhe o sentido do

real. A mimesis é o sentido do real se discursando (ficcionalmente)

(Castro, 1994: 156).

Olhar de luz, andar de banda, o animal que voa e vê longe e o que rasteja

e se retrai conjugam-se para formar esta obra de poesia e pensamento. Todas

estas questões nos evocam as imagens da coruja e do caranguejo, e outras mais,

pois que uma obra de arte nunca esgota as possibilidades de adentramento. A

leitura das Terceiras estórias se articula na tensão das moedas que se lançam ao

longo de suas páginas. A potência dos deuses tornados questões pelas imagens

impressas nas duas faces da moeda de Tutameia. Des-atando os nós dessa rede,

falaremos a seguir de outro deus mestre em atar e desatar: Hermes, o

mensageiro dos deuses, o deus da linguagem e das trapaças.

115

Capítulo 4

A luz do verbo

Mesmo que os cantores sejam falsos como eu

Serão bonitas, não importa

São bonitas as canções

Mesmo miseráveis os poetas

Os seus versos serão bons

Mesmo porque as notas eram surdas

Quando um deus sonso e ladrão

Fez das tripas a primeira lira

Que animou todos os sons

Chico Buarque (1986)

Hermes vem vagueando por este texto desde o início, e eis chegada a

hora de abordá-lo, pensando as questões que este mito levanta, a partir do

diálogo poético com Tutameia.

No capítulo anterior, encontramos o deus dos ladrões ao lado de Apolo,

a debicar do embaraço de Ares e Afrodite, presos nas malhas de Hefesto. Como

vimos, Hermes disse que adoraria estar atado à bela deusa. É que ele também

tem o dom de atar e desatar, como realça a tradição. Conta-se que, quando

nasceu o filho de Zeus e Maia, esta o enfaixou e o colocou no oco de um

salgueiro, para escondê-la do fatal ciúme de Hera. Mas, conta o mito:

No mesmo dia em que veio à luz, desligou-se das faixas, demonstração

clara de seu poder de ligar e desligar, viajou até a Tessália, onde

furtou uma parte do rebanho de Admeto, guardado por Apolo, que

cumpria grave punição (Brandão, 2008, V. I: 548 1).

116

Hermes e Hefesto avizinham-se na arte de atar e desatar, compor tramas,

desfazer nós, armar armadilhas. O ligar do logos manifesta-se no modo de

operar desses deuses, mestres em engodos e estratégias, artes compartilhadas

aliás também por Atena e sua mãe, Métis, a deusa da astúcia.

Tão logo se soltou, Hermes, asinha, tocou a roubar o gado do irmão mais

velho, Apolo, valendo-se para tanto de astutos estratagemas: tangeu o gado

roubado de fasto, de trás para diante, e amarrou ramos nos rabos das reses.

Usou ainda umas pernas de pau e também sandálias de arbustos trançados,

para despistar seus rastros, confundir quem quisesse segui-los. O deus dos

ladrões de gado, em sua “astúcia-audácia”, assemelha-se, assim, ao modo de ser

da velhaca irmã raposa, terror dos rebanhos, tal como retratada por Guimarães

Rosa, em suas anotações, postumamente publicadas, referentes a uma visita que

o autor fizera ao zoológico de Hamburgo, onde então residia:

A raposa, hereditária anciã: vid. seu andar, sua astúcia-audácia.

Avança, mas nuns passos de quem se retira (Rosa, 1985: 121).

A imagem do deus, reproduzida a seguir (Figura 7), mostra bem a divergência

entre o sentido de seu olhar e a direção de seus pés, como num passo de dança.

Note-se a marc(h)a sinuosa e dissimulada deste deus, que, como o

caranguejo, que ilustra as Terceiras estórias, não segue o paradigma dominante

da progressão linear. Qualquer semelhança não é mera coincidência. Nas

palavras dos mitógrafos Détienne e Vernant (2008: 271):

Hermes e suas vacas formam uma equipe de direção dupla e

divergente, cuja estranheza se localiza inteiramente na silhueta

desconcertante de uma personagem cujas partes alta e baixa se

dirigem a direções opostas, exatamente como Hefesto de duplo

sentido, chamado amphigyéeis.

117

Figura 7: Hermes.

Vaso ático, 500-450 a.C.. Metropolitan Museum de Nova York.

Disponível em: www.theoi,com.. Acesso em: 27 dez. 2012.

Se os liames de Hefesto, cambaio caranguejo, não tinham fim nem

começo, os rastros de Hermes, velhaca raposa, registram pistas falsas: as

famosas tortas linhas – ai de quem tentar atá-las. São caminhos de floresta,

veredazinhas de nada. Ainda segundo os mitógrafos:

O que se inscreve no entrelaçado de direções opostas, traçados no

chão pela métis de Hermes, é, no sentido próprio, um enigma, que os

gregos chamam ora aínigma, ora griphos, o mesmo nome que uma

rede de pesca de uma certa espécie. Pois um enigma se trança como

um cesto ou um covo (Détienne e Vernant, 2008: 272-273).

118

Como veremos adiante, “Aletria e hermenêutica”, primeiro prefácio de

Tutameia, apresenta a poética dos enigmas, cujo trançado se mostra nas linhas

de suas estórias, mas cujo sentido se encontra no vazio que os nós amarram, o

oco onde ecoa o som de Hermes.

Redes de pesca, armadilhas, são armas de caçadores, liames invisíveis,

como a rede de Hefesto, como as pegadas de Hermes, as estratégias de Atena,

que com trançados enigmas capturam suas presas. Estórias de caçada também

aparecem em Tutameia. Além de “Como ataca a sucuri”, já mencionada ao

falarmos do mito de Hefesto, Rosa nos presenteia com uma estória de caça a

uma anta, no conto “Tapiiraiauara”, que abordarei agora.

Iscas de palavras

O estranho termo que compõe o título deste conto, Tapiiraiauara, provém

do tupi, conforme explica o autor, em correspondência com seu tradutor

alemão, Curt Meyer-Clason (1966):

Trata-se de uma entidade em que os índios tupis acreditavam: um

espírito que protegia as antas (anta = tapiira) contra os caçadores; de

certo modo, confunde-se um pouco com o “diabo” dos Tupis =

anhangá, que também defendia a caça contra o caçador. Tinha a forma

de uma anta ou tapir, assim era que aparecia (Rosa, 2003: 364).

Numa manhã translúcida da nação sertaneja, um fazendeiro resolve se

distrair caçando uma anta parida. O narrador, seu hóspede e convidado, apesar

de contrariado, não faz a desfeita de recusar o convite, e de repente se vê num

caso de vida ou morte. A ação começa já na tocaia, os protagonistas escondidos

na vereda da aguada, com cães anteiros. O narrador comenta no texto seu

desagrado, mas na ação a princípio expressa alheamento, olhando para o alto,

em silêncio, culpando o outro de assassinato.

119

A satisfação de Iô Isnar em assassinar os animais causava osga no

narrador, que se compadeceu da anta. Haveria de salvá-la. “Doer-se de um

bicho, é graça” (Rosa, 1967: 172). Enquanto esperavam, Iô Isnar, que distraía

caçando uma anta indefesa e o filho dela, contou que tinha um filho soldado, e

que por isso temia que o Brasil enviasse tropas à guerra.

O narrador percebeu que Iô Isnar tolo não era, pois conhecia todos os

hábitos de sua caça e mostrava-se ladino na espreita da tocaia, punha todo seu

pensamento nisso. Viu então que precisava desviar o foco do atirador, para

evita o pior. A força do pensamento atuaria através da linguagem:

À mão de linguagem. A de meneá-lo, agi-lo, nesse propósito, em

farsamento, súbito estudo, por equivalência de afetos, no dói-lhe-dói,

no tintim da moeda! Iô Isnar, carrasco, jeito abjeto, temente ao diabo.

A pingo de palavra, com inculcações, em ordem de atordoá-lo,

emprestar-lhe minha comichão. Correr aposta.

Ponteiro menor, a anta. Ponteiro grande, os cães.

E dependi daquilo.

– “Sim, o Brasil mandará tropas...” – deixei-lhe; conforme à teoria. Sem

o fitar: mas ao raro azul entre folhagens de árvores (Rosa, 1967: 173).

Contra o diabo do carrasco, o narrador recorre ao Anhangá das antas,

que se manifesta em palavras aladas, capazes de reverter catástrofes. Por

equivalência, “no tintim da moeda”, aventa a possibilidade de que o filho do

sertanejo fosse mesmo enviado à guerra. E ressalta:

– “É grave...” Luta distante, contra malinos pagãos, cochinchins,

indochins: que martirizavam os prisioneiros, miudamente matavam.

Guerra de durar anos... (Rosa, 1967: 172).

O narrador abandona a neutralidade inicial e intervém do desfecho da

ação. Ele não se furta de sua responsabilidade e age, com as armas que tem, na

defesa de seus valores. Num jogo de vida e morte, atende seu coração.

120

Diante do vaticínio do visitante, o fazendeiro se benze. Em pânico,

trêmulo, mal consegue segurar a arma. Quando enfim chega a anta, está tão

atordoado que erra o tiro. O vento do pensamento varreu a violência.

Em alarido, disparados em fuga, o tapir e seu filhote caem n’água sãos e

salvos, num tchibum de alívio. Aliás, aliviava-se já ela desde a descida, coroando

com estrume a vitória sobre o velho, que restava impotente. A viril aventura do

fazendeiro transformara-se em drama cômico, descambando para o

escatológico das fezes do animal.

Diante de uma situação extrema, o narrador se viu impelido a agir. Sua

autonomia superou a presumida impotência. A astúcia de seu discurso rendeu-

lhe a vitória.

Talvez agora se possa perceber com alguma transparência porque um

derivado de - constitua a palavra grega para o leito, a cama, o

repouso, -, e outro derivado, -, que diz a tocaia e

emboscada, onde repousa uma armadilha (Leão, 2010b: 32-33).

Há ainda outra semelhança entre Hermes, Hefesto e Atena, além das

habilidades estratégicas, que deve ser mencionada: é a referência ao fogo, como

veremos a seguir.

Artes do fogo

De acordo com o Hino homérico IV, Hermes foi o primeiro a, friccionando

gravetos, produzir o fogo na terra:

Basta lenha reuniu, artes inventou de fogo:

Glório loureiro cortou a ferro, e o girou nas palmas

Sobre lenho de granada: sopro cálido exalou-se

[Hermes o primeiro foi que fez o fogo: achou os meios] [...]

Enquanto a força de Hefesto fazia aflorar o fogo,

Tirou Hermes do curral duas vacas sinuosas (Serra, 2006: 135).

121

O fogo do pensamento manifesta-se no deus dos ladrões, portador da

Mensagem. Esta faísca é o logos, pensamento e linguagem, brilho dos raios de

Zeus. Através do olhar de Hermes, assim como do de Atena, brilha a chama

que clareia. União recolhedora, logos, aletheia. Hermes, Atena e Hefesto são

deuses arteiros, doadores da arte e da artimanha.

Na travessia da vida, Hermes ilumina os caminhos da arché ao telos, o

acontecer do destino no tempo poético. “Mais do que qualquer outro, o

caminho que nos permite alcançar o lugar em que já estamos carece de um guia

que avance o alcance dessa estrada” (Heidegger, 2011: 156). Enquanto lugar de

manifestação da potência de Hermes, o homem escuta e profere as sábias

palavras, que guiam rumo ao que desde sempre fomos. A mensagem de

Hermes ecoa o sentido da verdade do ser, infelizmente hoje tão esquecido pelos

mortais. Ouvi-la é atender ao apelo do pensamento, consumar o destino,

apropriar-se do que é próprio, alcançar o que tanto se deseja: amar, ser, feliz.

E o que Hermes queria mesmo era sair da sombra, revelar-se filho do

soberano, ocupar seu lugar entre os deuses, gozar o dom que lhe cabia. Nesse

empenho ele se esmerava, urdindo tramas, fogos de artifício. “Eis aí o ético: a

obstinação de ser as possibilidades que já recebemos” (Castro, 2011: 35). Mas,

quando Apolo foi cobrar o irmão, encontrou-o dissimulado, no escuro, tapando

os olhos para manter escondido o fogo do pensamento:

Hermes finge estar mergulhado num doce sono, enquanto na

realidade está à espreita, bem acordado e tão ocupado combinando e

meditando astúcias, que ele deve frequentemente, com um gesto de

mão, coçar seus olhos, para atenuar o clarão e esconder o fogo cujo

brilho poderia descobri-lo até no fundo de seu esconderijo obscuro.

Como se este deus da noite, que sabe melhor que ninguém esconder e

ao mesmo tempo ser escondido, só pudesse ser traído pelo

resplandecer de sua própria métis (Détienne e Vernant, 2008: 251).

122

Interpelado pelo irmão sobre o roubo do gado, o jovem deus negou tudo,

inclusive perjurando em nome do pai. Só que a própria argumentação

elaborada do garoto desmentia sua inépcia, provocando riso e encanto no

irmão, que acabou por aclamá-lo “príncipe dos bandidos” (Serra, 2006: 151).

Hermes propôs levarem a questão ao julgamento de Zeus. Diante do pai celeste,

Apolo narrou o ocorrido. O acusado seguiu afirmando sua inocência, ao que

Zeus, reconhecendo no filho sua própria astúcia, reagiu com sonorosa

gargalhada, ordenando porém ao caçula que guiasse o mais velho até o gado

roubado, e também que não aprontasse mais daquele jeito.

Obrigado a prometer que nunca mais faltaria com a verdade, Hermes

concordou, acrescentando, porém, que não estaria obrigado a dizer a

verdade por inteiro (Brandão, 2008, V. II: 549).

Zeus fez de Hermes seu mensageiro, guia dos homens na travessia entre

vida e morte, portador da mensagem do destino. O astuto foi reconhecido em

sua divindade, tomou seu lugar no Olimpo.

Antes de dar seguimento ao enredo do mito, que tanto faz pensar, é

preciso introduzir outra imagem-questão evocada pelo mito de Hermes, até

agora não mencionada, apenas na epígrafe do capítulo: a invenção da lira.

A primeira nota

Diz a lenda que, logo ao sair do antro de Maia, Hermes topou uma

tartaruga. O barulho da topada no côncavo casco do animal acendeu em

Hermes a ideia da lira, tripas esticadas naquela concha acústica:

O deus funde imagens de um modo instantâneo: a da tartaruga que

ele depara e a da lira que ela será: uma, presente diante de seus olhos,

a outra, na sua ideia. [...] A seus olhos divinos, é logo tão real o

instrumento imaginado como o bicho encontrado. [...] Torna real sua

profecia: executa a passagem de tartaruga a lira, com gestos ágeis de

perito (Serra, 2006: 40).

123

Hermes diz a abertura dos ouvidos para o que ecoa nas possibilidades

doadas pela physis e, a partir dessa escuta, manifesta-se consoante o concerto do

mundo. Feita a lira, restava tirar o som do oco, acompanhá-lo com o corpo. Em

seu canto inaugural, Hermes entoou “a glória de sua origem” (Serra, 2006: 129),

em que estava inscrito seu destino, o qual cabia consumar. Esta lira viria a ser

crucial nesse sentido, para resolver a tensão gerada pelo roubo do gado de

Apolo, que agora podemos retomar.

Tendo guiado Apolo até o rebanho roubado, Hermes tomou de sua lira e

começou a tocar, para deleite do irmão, amante da música. Neste seu novo

cantar, Hermes cantou os deuses e deusas, “como eles se originaram, e o lote de

cada um”, iniciando por Mnemosíne, Mãe das Musas, a quem pediu bênção

(Serra, 2006: 163). Não é à toa que Hermes é o “mensageiro dos deuses, [que]

traz e transmite a mensagem do destino que trama as vicissitudes da história de

homens e deuses” (Leão, 2010b: 117).

O canto com que a divina criança abençoada por Mnemósine fascina

Apolo é uma teogonia. Tal qual o poema de Hesíodo, descreve o

cosmos, a ordem do mundo. Cinge a totalidade do ser às figuras dos

deuses, exprime o universo em imagens míticas. Os mitos que

despontam de Mnemósine figuram, pois, o cosmos manifesto aos

divinos músicos – Apolo e Hermes – que assim se descobrem (Serra,

2006: 112).

A referência entre Hermes e a linguagem poética será abordada ao longo

deste capítulo, quando tratarmos dos prefácios de Tutameia. Por ora, pensemos

na reação de Apolo diante da música do irmão. Ao ouvir a mensagem do

destino, acompanhada pelo toque do inédito instrumento, Apolo, encantado,

propôs a Hermes trocar o objeto sonoro pelo gado roubado, dizendo: – “Vale

bem cinquenta vacas a prenda de teu desvelo!” (Serra, 2006: 165). Realiza-se o

comércio, domínio de Hermes, que sabe oferecer ao freguês o irresistível objeto

de desejo.

124

Para resolver a questão com Apolo, no sentido de ressarcir o prejuízo e o

dano causado, bem como a honra do deus, que havia sido logrado, exposto ao

ridículo, Hermes lança mão de algo que para o irmão valia tanto quanto pesava

o objeto do furto – afinal, um negócio só é bom quando é bom para todo

mundo, diz a tradicional sabedoria do comércio, que aprendi com meu pai.

As trocas que precisamos realizar ao longo de nossa existência material e

finita levam-nos a valorizar isto ou aquilo, investir tempo e dinheiro, para

adquirirmos o que desejarmos. A inversão de valores e o esquecimento do

sentido do ser, porém, levam as pessoas a tomarem gato por lebre, ao escolher o

ter em lugar do ser. Neste contexto a balança nunca é justa, e quanto mais se

deseja menos se consuma. No consumismo alienante que move a sociedade

ocidental, quase nada restou da troca divina que foi a do gado de Apolo pela

lira de Hermes, com a qual se solucionou um conflito e se inaugurou a amizade

entre esses dois deuses, filhos de Zeus.

Bênção, padim

O comércio, presente no título e nas moedas que ilustram Tutameia, é

domínio de Hermes, que tem a ginga do caranguejo, o fogo do olhar da coruja,

e mais o ar da graça e o mel da linguagem. A presença do deus neste livro já foi

percebida por Faria (2005: 202), para quem Hermes é o patrono das Terceiras

estórias.

Hermes comparece em Tutameia, senão, sobretudo, na própria alma

do livro. A inextrincável conexão da vida e da morte, a proximidade

entre o além e o aquém, a convergência do tudo e do nada, a

oscilação do diurno e do noturno, que singularizam o universo de

Hermes, compõem o cosmos em que florescem as Terceiras estórias.

125

A autora aponta ainda, como manifestação de Hermes em Tutameia, a

presença constate de guieiros, personagentes destas estórias (o vaqueiro

Ladislau, por exemplo). Além disso, elenca as várias aparições dos ciganos,

povo conhecido pela astúcia, que para ela são “parentes” do deus manhoso.

Parentes próximos de Hermes são os ciganos, que percorrem o livro

todo. Não somente por serem comerciantes e ladrões, astutos e

velhacos, alegres e desordeiros, afeitos igualmente aos prazeres do

corpo e às sutilezas do espírito, mas, principalmente, por viverem

quase à boca dos ventos, na intensa mobilidade do devir (Faria, 2005:

202).

Ora, no âmbito do comércio é que se usa o termo tutameia e também

circula a moeda que ilustra as Terceiras estórias. Diante dos apelos da sociedade

de consumo, onde um livro é uma mercadoria do mercado editorial, mass media,

o que Rosa, autor de best sellers, oferece ao público ele mesmo avalia como uma

tutameia, do mesmo modo que um feirante de xepa liquida suas bananas. Mas

não se engane, leitor incauto, arrisca de tudo o que você oferecer ser pouco

perto do que ele irá exigir, pois, parafraseando o poema “Ulisses”, de Mensagem

(Pessoa, 1934), tutameia “é o nada que é tudo”. Como ressalta Faria (2005: 227),

a respeito da leitura das Terceiras estórias:

O alargamento da visão ocasiona uma ampliação do horizonte vital e

é a condição básica para a decifração das estórias. Sem uma decisão

existencial do novo, assumida com a força do espírito e com o calor

do sangue, o homem não é capaz de realizar a rotação estelar do seu

eixo vital, que lhe ganhará novas perspectivas para ver mais longe e

mais claro.

126

Não acredito na possibilidade de decifração das estórias, não no sentido

de tirar-lhes todo o sumo. A cada nova leitura, como venho ressaltando, abrem-

se novas clareiras de interpretações. A tese da autora citada, por exemplo,

revelou-me aspectos até então insuspeitados, muitos dos quais inclusive

questiono, como este, da possibilidade de decifração.

Acredito na possibilidade de um diálogo permanente com esta obra, que

irá sempre surpreender e nos fazer sacudir nossas pretensas soluções e

respostas, na busca de se afinar com o sentido da verdade do ser, que se

manifesta em linguagem no operar da obra de arte. Na busca deste diálogo,

deparamo-nos com um texto hermético, falseado, fingido, urdido por um autor

que entretanto não é leviano nem sem sentido. O alcance de sua mensagem

poética se dá na dobra de decifração e mistério. A leitura deste livro se dá aqui

na referência com os mitos gregos da astúcia e o que eles trazem como

possibilidade de interpretação da mensagem poética.

O esforço de interpretação que ora realizo busca lançar novas luzes em

tão enigmático livro, num diálogo com a obra de Heidegger e com os mitos

gregos da astúcia. Neste capítulo dedicado a Hermes, cuidarei de três dos

quatro prefácios de Tutameia: “Aletria e hermenêutica”, “Hipotrélico” e “Sobre

a escova e a dúvida”. Algumas estórias serão trazidas para a cena, na medida

em que apresentem em suas narrativas as questões levantadas nos ditos

prefácios, relacionadas, como veremos, ao deus da linguagem. O prefácio “Nós,

os temulentos” será interpretado no próximo e último capítulo desta tese,

dedicado ao mito de Ulisses, que encarna a travessia do homem humano.

127

Oroboro

O texto que abre o livro em estudo, “Aletria e hermenêutica”, vem sendo

tomado como inédito pelos leitores e pela crítica especializada. Eu mesma

acreditava que ele havia sido elaborado com o intuito de ser propriamente o

prefácio de Tutameia (cf. Andrade, 2004). Entretanto, a pesquisa de Costa (2006)

informa que, na verdade, trata-se de uma reedição, revista e ampliada, de um

pequeno texto já publicado, em 1954, no suplemento literário “Letras e Artes”

do jornal A Manhã, periódico oficial do Estado Novo, editado pelo poeta

nacionalista Cassiano Ricardo (Figura 8).

Naquela época, Rosa era ainda só mais um escritor mineiro, autor de um

único livro, Sagarana. A título de ilustração, reproduzimos a página em que o

texto foi publicado, para que se possa perceber a falta de pompa e o reduzido

espaço destinado ao autor então iniciante, ainda no nublado da neblina.

128

Figura 8: Publicação original de “Aletria e hermenêutica”, com o título “Risada e meia”,

Jornal A Manhã, Rio de Janeiro, 4 maio 1954.

Disponível em: www.bn.br. Acesso em: 20 dez. 2012.

129

Esta informação é importante, pois revela que: primeiro, o texto não foi

escrito para ser um prefácio; segundo, ele antecede em pelo menos dez anos a

publicação do livro, tendo sua publicação no referido periódico passado

despercebida do público. Aliás, apresentar o primeiro texto como se fora o mais

recente, quando na verdade era o mais antigo, é bem uma artimanha de

Hermes, andado de caranguejo: os últimos serão os primeiros.

É interessante pensarmos ainda que o Rosa publicou em um jornal sério,

A Manhã, um texto com a cara de jornal humorístico. Novato, dispondo de

pouco espaço na mídia, em vez de um douto ensinamento do que quer que seja,

ou mesmo uma estória colorida, pitoresca, trouxe uma defesa do chiste.

Aquele rol de piadas comporia melhor em outro periódico da época, que

parodiava este, o humorístico esquerdista A Manha, editado por Apporelly, o

Barão de Itaraté (Apparycio Torelly), citado inclusive no texto, “de memória”

(Rosa, 1967: 6):

“As minhas ceroulas novas,

ceroulas das mais modernas,

não têm cós, não têm cadarços,

não têm botões e não têm pernas.”

Já na leitura do livro, esta referência se configura em outra pista falsa,

caranguejeira, com as manhas de Hermes: o autor cita indiretamente a fonte do

texto, usando o seu duplo. O teor do prefácio poderia levar algum pesquisador

a suspeitar que o texto tivesse sido publicado no humorístico A Manha, quando

na verdade havia sido publicado no adversário, A Manhã.

O autor dá risada, e meia. Naquela conjuntura bélica, a posição de Rosa é

a astuta esquiva, para o bem da arte, para o bem da vida, para o bem do ser.

Pode ser até a história se repita, mas a estória, por mais que seja a mesma, será

sempre única e original, pois que leva ao pensamento, à inaugurabilidade da

arte, manifestação do ser.

130

Dez anos depois, sob nova ditadura, Rosa de novo repete a mesma piada

– que se esmera, como veremos, em chamar nossa atenção para as piadas

repetidas. Aquele texto de início passara despercebido. Agora, em vésperas de

posse na Academia Brasileira de Letras, consagração máxima, Rosa era pauta

de toda mídia. Relança então o texto, esperando melhores ouvidos.

Em sua carta de despedida da Pulso, Rosa afirma:

Digo, devo ao convite de PULSO a realização da obra. Para minha

especial sorte: porquanto os temas de alguns dos contos andavam-me

sem solução na cabeça, uns há cerca de vinte anos; até que, só nesta

forma curta, forçada pela limitação de espaço, encontraram como

compor-se (Apud Costa, 2006: 97).

Para abrir sua mais recente publicação, o Rosa tira da gaveta um

textículo que publicara lá no início e que passara despercebido. Afinal, naquele

tempo ele não era o monstro sagrado da literatura brasileira, odiado por uns,

amados por outros, sem dúvida reconhecido de todos os leitores lusófonos, ao

lado de Machado, Eça, Camões e Pessoa. Naquele tempo ele era só um novato.

E vejam que já era o Rosa.

Aliás, o título original do texto, “Risada e meia”, retirado do corpo do

texto, tem a mesma estrutura de “tuta e meia”, variante de tutameia, que viria a

ser o título do próximo livro que o autor pretendia lançar. Lembremos que, de

acordo com informação coletada por Sperber (1982), existe a menção de um

futuro livro, a se chamar Tutameia, já nos originais de Sagarana, ainda nos anos

1940. O título original do texto é mais uma prova cabal de que Tutameia é o

resultado de um projeto maturado durante toda a vida do autor.

“A escova e a dúvida”, por sua vez, foi o texto que inaugurou a

colaboração do autor na Pulso. A edição da revista, de 15 de maio de 1965, dá

destaque para a novidade, trazendo em primeira página matéria intitulada

“Guimarães Rosa em Pulso revezando com Drummond”, ilustrada por uma foto

do Rosa a cavalo, e em seguida o referido texto, à página 3 (Cf. Costa, 2006). É

131

um espaço bem mais nobre que aquele que o autor recebera uma década antes,

no A Manhã: o topo de uma página par (no verso, menos lido), no meio do

caderno. O Rosa já tinha mais valia quando começou a publicar Tutameia.

Este texto primeiro, introdutório, viria a ser aumentado e publicado

como o último prefácio das Terceiras estórias. Ora, como vimos, na compilação

dos textos para a edição em livro, o autor não se deteve na ordem cronológica

das publicações no periódico, e sim na ordem alfabética de seus títulos. Com o

acréscimo da palavra “sobre” anteposta ao título original, o texto passou da

letra A para a letra S.

Esta informação constitui-se em mais um argumento objetivo para não se

agruparem os contos do livro de acordo com a posição em relação aos prefácios,

conforme vêm insistindo alguns colegas rosianos. Seria muito fácil. Hermes,

patrono de Tutameia, dissimula suas marcas enquanto nos guia pelas Veredas

Tortas. Põe o que é da frente atrás, o que é de trás na frente, a gente não pode se

fiar em marcas posicionais, porque elas são móveis e arbitrárias. No infinito

circular do caranguejo, precisamos ver o que não está visível, nos abrirmos para

a escuta poética. Em vez de se preocupar em classificar, a gente podia era sorver

o sumo de suas palavras, manga madura caída na porta de casa, doce, sadia e

cheirosa, doação do Ser. É o que intento fazer nestas páginas.

A caminhada cheia de extravios que venho realizando na leitura desta

obra, eternamente revisitada, possibilita sempre um novo adentramento. O

cotejo com as publicações originais dos textos permitiu observar que foram

entremeadas novas tramas e enfeites, como se recompõe uma antiga fantasia de

carnaval. O texto ficou ainda mais sobrecarregado de adornos: itálicos, aspas,

recuos, rodapés, citações de textos estrangeiros e autores eruditos, uma

profusão de enguias a petrificar o leitor incauto. Cada fiozinho solto estupefaz

quem anima a seguir o seu riscado.

A fantasia do palhaço disfarça o oco dos olhos brilhantes. Enquanto os

leitores, vorazes, futucam o chão a catar cascalho, ouro de tolo, por entre eles,

sem ser notado, desfila o boi, o Ser, dançando na rua com suas ceroulas

132

modernas, que ninguém vê. A inaugurabilidade do instante, único, repleto de

possibilidades, impregnado de memória, no empenho da busca do

desvelamento da verdade do Ser, é o que nos apresentam as Terceiras estórias.

O sentido da hermenêutica

No título do texto que introduz Tutameia, “Aletria e hermenêutica”,

Hermes já se faz presente. É Heidegger (2011: 96) quem esclarece o sentido e a

origem do segundo termo do referido título:

A palavra hermenêutico vem do grego . Refere-se ao

substantivo que pode se articular com o nome do deus

Hermes, , num jogo de pensamento mais rigoroso do que a

exatidão filológica. Hermes é o mensageiro dos deuses. Traz a

mensagem do destino; é a exposição que dá notícia, à

medida que consegue escutar uma mensagem. Esta proposição se

transforma em interpretação da mensagem dos poetas que, nas

palavras de Sócrates, no diálogo Íon, “são mensageiros dos deuses”.

Hermes, deus da linguagem, convoca Rosa ao adentrar o corpo do texto.

Hermes, sabemos, é o portador da mensagem do destino, a qual se nos

apresenta, porém, cifrada em tortas linhas, em cujo entre ele trafega. A

comicidade da criança esperta anima o iniciar da leitura. A graça e a leveza do

deus menino enchem os olhos do público, ávido de novidades. A palavra, bola

de fogo, se joga no entre da travessia, nonada de faísca rara.

Hermenêutico não diz interpretar, mas trazer mensagem e dar

notícia. [...] Trata-se de fazer aparecer o ser dos entes [...] de maneira a

deixar aparecer o próprio ser. O próprio ser significa: o vigor vigente,

i. é., da duplicidade de ambos a partir da unicidade. É o que

reivindica o homem em seu vigor (Heidegger, 2011: 97).

133

Assim como o episódio da rede de Hefesto narrado na Odisseia, bem

como o Hino Homérico IV, ambos protagonizados por Hermes, este prefácio é

marcado pelo “jocoso, por uma juvenil irreverência, um humor muito rico”

(Serra, 2006: 28). Hermes anima a festa. Liberdade, sagacidade e graça eclodem

das palavras e ações deste deus menino. Abrir-se à escuta de sua mensagem

requer despojar-se de qualquer sapiência, entregar-se à potência viva do novo:

o soar das cordas da lira ecoa inaudito na palavra poética.

É por isso que “Aletria e hermenêutica”, como prefácio, desorienta o

leitor que busca um guia confiável, que o leve no colo durante a leitura. Neste

texto, como veremos, o autor não diz nada. Elenca referências múltiplas sobre o

que não há o que se diga. Atente para as entrelinhas, os vazios, os silêncios, os

cortes. “Tudo é e não é” (Rosa, 1986: 3).

Ligado ao deus mensageiro, o sentido da hermenêutica, como mediação

entre mortais e imortais, luz e trevas, é trazer para o clareado as manifestações

da realidade em suas realizações do real. Hermenêutica é trazer para a luz,

aletheia, velamento e desvelamento.

Pensar hermenêutica é pensar Hermes ou a Palavra como lugar, isto

é, a transcendência do ser humano enquanto abertura de mundo. [...]

Interpretar poeticamente é [...] interpretar-se a partir da medida de

todas as dimensões e medidas: o ser/ nada ou a realidade de toda

realização como real. Enquanto éthos e poíesis o ser advém sempre

como lógos. [...] O que vigora no diálogo poético-hermenêutico é a

escuta do lógos. Sem autoescuta do lógos não há diálogo poético.

Todas as obras de arte solicitam e aguardam o diálogo poético

(Castro, Dicionário de Poética).

Nenhuma interpretação dá conta da palavra poética. Nem por isso

deixaremos de dialogar com ela, não seguindo cânones, mas os apelos da obra.

Através da leitura, o verbo-linguagem desvela a mensagem, o leitor se abre à

escuta das Musas, no que elas têm de mistério e memória. Abre-se à escuta do

Logos, que lança luz no que vigora velado. No eco da hermenêutica, assomam as

134

questões da linguagem, as questões originárias. A leitura do livro nos lança na

leitura de nós mesmos. Aventurar-se além das trilhas conhecidas, adentrar as

veredas do sertão, correndo o risco de se perder, não é possível tal façanha sem

o consórcio de Hermes, deus das encruzilhadas, onde o demo vigora.

Hermes é verbo/ação e palavra/linguagem. Já caminho se diz em

grego: hodós. Poiesis, caminho, sentido, verbo e palavra se implicam

mutuamente. Eles constituem o real, pois o verbo de todos os verbos

é o ser. Por outro lado, Hermes é o deus das encruzilhadas. É que

estas mostram a ambiguidade dos caminhos, em seus encontros e

desencontros, em sua confluência e difluência. Por isso o real se

mostra na tripla dimensão ambígua de ser, não-ser e vir-a-ser

(aparecimento) (Parmênides). É o que o grego expressa com o prefixo

metá, em seu triplo significado: em direção a, junto a e entre. Método

diz essencialmente o caminho do entre. Embora o ser humano viva

sob a densidade de um destino (histórico e genético), saber o que

cada um é só advém da caminhada (Castro, 2005: 58).

Na medida em que o homem vigora como lugar de manifestação,

quando ele se lança na procura do que lhe é próprio, ouvindo a fala do Logos,

ocorre a aprendizagem, pois ele se deixa tomar pelo vigorar da physis, que nele

se manifesta no sentido de uma consumação do que está destinado.

Na arte, o caminho, enquanto linguagem, transfigura a vida vivida

em vida experienciada como vida narrada. Essencialmente, narrar é

fazer de Hermes o caminho (Castro, 2011: 58).

A leitura das estórias corresponde à leitura do mundo, mergulhar na

experiência humana, vivenciar a travessia entre o nonada e o infinito, projetar o

pensamento para fora dos padrões comumente aceitos. Tutameia exige um leitor

dedicado, cuidadoso, este livro muito pede e pouco dá, mas pouco com Deus é

muito. E a felicidade vigora no brilhar das estrelas. A consumação do destino é

o que busca a astúcia poética, que se manifesta sempre a favor do ser. Servir às

135

potências da astúcia poética é o que fazem os artistas do verbo, herdeiros de

Hermes, patrono dos que exercem os ofícios da palavra.

O poeta Hermes, sob os auspícios das Musas, filhas da Memória, canta o

seu destino, sua proveniência, na qual já situa aquilo a que está destinado.

Enquanto canta, confabula meios de consumá-lo. Toma posição, atua, inventa,

dá seu jeito. Com ele nasceram juntos a lira e o comércio, atravessados por um

roubo de gado. Aquilo que se dissimula no entrecruzar das mensagens é do

domínio de Hermes, Verbo, Linguagem, Logos.

Com os pensadores surgiu o Logos. Como tal, em sua etimologia, esta

palavra não significa em primeiro lugar dizer (embora tenha este

sentido). Ela ex-põe e reúne o real em seu sentido. Por isso, o seu

sentido principal é reunir com sentido, isto é, manifestar o real em

sua sintaxe poética. [...] A exposição do real como sintaxe poética é

como se entendeu a linguagem. É nesse sentido que Logos é linguagem

e diz. A diretriz fundamental é a “ordem”, o sentido de ordenamento

por oposição ao kaos. Nisto consiste a verdade do real, o se expor

como ordem poética, com sentido enquanto Logos (Castro, 2005: 47).

A linguagem, porém, é ambígua como as jogadas de Hermes, chegar ao

destino só é possível pelas vias tortuosas de seu caminhar dissimulado, a

estória é um fingir com as palavras. Hermes é um fingidor. A arte o constitui

como sentido, figura-o, pois ele só é quem é a partir do ser. “No fazer artístico

não só o ser se dá em seu sentido fundando os sentidos, mas, se dando,

constitui o ser humano em seu sentido” (Castro, 2005: 36).

Nas peripécias da criação ouvir é escutar a ação de legein, seguindo o

advento de sua força de reunião e poder de recolhimento no curso da

história (Leão, 2010b: 34).

136

A linguagem, Logos, Hermes, em seu desempenho de por, depor, dispor,

propor e compor, traz para a luz o que permanecia encoberto no velamento,

assim como leva para o velamento o que parecia aparente. Não podemos nos

esquecer de que Hermes sempre diz a verdade, mas não a verdade por inteiro.

A mensagem de Hermes dá-se aos mortais através de um envio sábio, a

palavra vem ao pensamento e, pronunciada, corresponde a esta mensagem. Só

chegaremos a ser quem realmente somos se nos abrirmos para esta mensagem,

a mensagem do destino; atendermos a seu apelo, correspondermos

poeticamente, na medida do que nos é dado.

Condizendo, o dizer dos mortais é uma resposta. Toda palavra já é

resposta: é um contra-dizer, um vir ao encontro, um dizer que escuta.

O ser e estar apropriado dos mortais para a saga do dizer libera o

vigor humano para a recomendação de que o homem se faz

necessário para trazer o sem som da saga do dizer para a verbalização

da linguagem (Heidegger, 2011: 209).

Hermes, Logos, Linguagem, é a “operação primordial nas línguas de

todos os códigos e nos discursos de toda realização deste de - inaugural

que instala ordem e desordem, coesão e dispersão no mundo” (Leão, 2010b: 35).

A vitalidade do poético é a força-luz que traz do não ser para o ser, na

tensão ordenadora da linguagem, geradora de posições e oposições, nas

peripécias de realização do real. O casamento de ser e linguagem é a morada

do homem.

A leitura de Tutameia exige que o leitor se desamarre das prescrições dos

especialistas, que ele entre neste mato sem cachorro. No estranhamento da

palavra poética, é preciso se sentir em casa, na casa da linguagem, onde habita o

homem – nos vãos, não emparedados.

137

Para se dar e acontecer mistério é indispensável morar nos vãos da

linguagem e descobrir-se no seio de Logos. A forma mais frequente de

se sentir e descobrir esta morada é a narrativa do extraordinário no

Mythos e a forma mais intensa de vigência da narrativa mítica é a

poesia, o Epos, pois todo desempenho de um real instala poesia, é

poético (Leão, 2010b: 29).

Concentrar-se no nada que vigora nas estórias, vislumbrar a faísca do Ser

no sendo de cada personagem, do Rosa, de nós mesmos, seguir o fio do

trançado da rede esburacada, conforme a imagem construída por Rosa (1967:

10), da rede como “uma porção de buracos amarrados com barbante”,

comentada por Castro (2005: 53-54):

A obra, enquanto todo orgânico (rede), tem o seu vigor no aórgico ou

não-orgânico (vazio ou silêncio da rede). Porém, o vazio ou silêncio

precisam dos fios e nós da rede, assim como a música precisa, na teia

do seu ritmo, dos sons e harmonia.

Este amarrar o nó é a ação do Logos, a luz do verbo, o ordenar ajuntado

que faz de uma casa mais que um amontoado de tijolos. São os nós que

delimitam os vazios, assim como são as paredes que delimitam os cômodos

vazios onde a gente se aloja. Os fios delimitam os buracos, trazem para a

visibilidade o trançado da rede, das estórias, dos mitos, em que Rosa vê

“malhas para captar o incognoscível” (Rosa, 1967: 5). Busco, pois, com as

astúcias, uma interpretação em que se manifeste a verdade da obra.

O exercício de interpretação que aqui se realiza procura o sentido poético

da mensagem cifrada nas herméticas Terceiras estórias. No diálogo com esta

riquíssima obra de arte literária, dissimuladamente intitulada Tutameia, abre-se

o lugar de manifestação da força reunidora do Logos, que ordena o mundo, dá

sentido às palavras. A presença Hermes neste texto de Guimarães Rosa vem

recordar que a mensagem do destino é aquela que nos guia ao que nos é

próprio. A consumação se consagra no agir poético, que corresponde ao apelo

desta mensagem.

138

Até agora, falamos de Hermes e de hermenêutica, palavra presente no

título do primeiro prefácio de Tutameia. Antes de abordarmos o conteúdo do

dito prefácio, é preciso pensar na outra palavra que forma seu título: aletria. O

que esta palavra tão saborosa vem acrescentar ao sentido da hermenêutica,

como experienciação da obra literária? Como conjugar aletria e hermenêutica?

Aletria, doce palavra

Aletria é o nome de um macarrão fininho, também conhecido como

cabelinho-de-anjo. Tem um doce português muito gostoso, comum na região

topônima do Rosa (Guimarães), feito com leite e esse macarrãozinho. Dizem

que em uma casa com muitas bocas, para não ter confusão, é costume a doceira

marcar a porção de cada um, salpicando com canela a letra inicial do nome da

pessoa. Dizem também que no campo, nas fazendas de gado, o doce oferecido

aos capatazes traz a marca do dono, gravada com o mesmo ferro em brasa

usado para marcar o rebanho.

Figura 9: Porções de aletria decoradas com letras.

Disponível em: http://komifala.com/2012/04/04/aletria-easy.

Acesso em: 10 nov. 2012.

139

Essas imagens emanam um cheiro doce e ancestral. Como a madeleine

proustiana, a lusófona aletria rosiana transporta-nos para tempos imemoriáveis.

É o cheiro da origem, do leite materno, a fonte e o limite do que nos é dado. A

obra se abre pela boca, cuja flor é a linguagem.

Ora, lembremos da iniciais do autor – JGR – incrustada no índice de

Tutameia, e das efígies da coruja e do caranguejo, a chancelarem as Terceiras

estórias, marcas do autor em seu rebanho de ideias, e vemos surgir no prisma

desta palavra não só a marca do autor, mas também o bom bocado que nos

cabe, a medida do que nos é destinado, no diálogo com a mensagem poética

impressa naquelas páginas, onde o Rosa deixou a marca de sua obra. A

assinatura do autor reforça a busca pelo sentido da verdade, a justa medida.

Pensei sobre a questão da autoria diante dessas visíveis marcas, mas hoje os

vejo como trilhas de Hermes. A leitura dos prefácios leva a entender que maior

que o controle do autor na criação poética é o mistério inaudito em que estamos

mergulhados, de onde emana o eclodir da physis, o soar da palavra.

Por sua posição-chave, como abertura, título do prefácio que inaugura a

leitura da obra, a crítica vem ensaiando leituras desta palavra. Para alguns, a-

letria indicaria a não-letra, tanto a fala do analfabeto quanto o ainda não dito, o

resguardado, que vigora no velamento (cf. Araujo, 2001; Faria, 2005). A-letria

seriam os buracos da rede com que se tenta apreender a realidade.

Essa interpretação é enriquecedora, ao mesmo tempo em que provoca

novas possibilidades de questionamento. O inusitado do encontro destas duas

palavras de ordem diversa, aletria e hermenêutica, evoca questões, leva a

pensar, e acaba encontrando o canto onde elas ecoam em concerto a música de

Hermes, doação das Musas, da Memória. Buscando outras possíveis

decifrações, vem ao ouvido a semelhança com: a-letheia, o desvelar da verdade

no operar da obra.

140

É neste movimento complexo de encobrimento, ocultação,

esquecimento e latência que se edifica a experiência originária e

radical que os gregos chamam, com toda propriedade, de aletheia:

desencobrimento, revelação, desocultação, patência [...] O verdadeiro

é o des-velado, o não mais encoberto; o que está sem ocultação, por se

ter arrancado à vendagem e extraído do velamento. O verdadeiro é,

portanto, o que já não traz consigo apenas o seu contrário: o

ocultamento, é o que se já livrou de uma total latência (Leão, 2010b:

51).

Nesse sentido, aletria conjuga-se a hermenêutica, já que interpretar é

trazer para a luz, juntar num todo arreunido o que se desoculta. A verdade do

ser se dá e se oculta na obra, onde se manifesta em linguagem. O trazer para a

luz de aletheia abre-se no topo da página, na altaneira cabeceira da obra, que dá

o tom inicial, que vem ao poeta do vigorar da linguagem, que nele se manifesta

como obra poética: o fingir do manifestar-se do mito.

Tentar capturar a essência da linguagem pelo código da escrita é tentar,

como Apolo, decifrar os rastros dissimulados do deus dos larápios. A escrita, o

código-língua não dá conta do vigorar da linguagem. Mas ao poeta a palavra

originária, Hermes, ecoa o impronunciável destino, canto das Musas. Não pode

se furtar a andar em círculos quem se propõe a seguir os rastros de Hermes.

A verdade vigora como ela própria, na medida em que o denegar

velante, como recusar, atribui antes de tudo a toda clareira a

constante proveniência. Todavia, como dissimular, atribui a toda

clareira a não negligenciável agudeza do equívoco. Junto com o

denegar velante deve, na essência da verdade, ser nomeada aquela

mútua oposição que há entre a clareira e o velamento na essência da

verdade. É o enfrentamento da disputa originária. A essência da

verdade é, em si mesma, a disputa originária, na qual é conquistado

aquele meio aberto, dentro do qual o sendo vem se situar e do qual o

sendo se retira para si mesmo (Heidegger, 2010: 110).

141

Na medida da astúcia, aletria e hermenêutica se conjugam na poética de

Guimarães Rosa. Sob o letreiro deste título, adentramos em seu território,

dispostos a atravessar as páginas, viajar pelas Veredas Tortas, orientados pelo

som que mostra o caminho, o marulhar da água que brota da fonte. Os

caminhos de florestas são feitos pelos animais a procurar as aguadas. Alguns

chegam, outros se perdem. A água, em si, brota. Tutameia é olho d’água.

A fonte é doação da physis. O homem é doação do Ser, lançado em meio a

tudo que é e não é, no livre e incessante manifestar-se e velar-se da realidade. O

modo como opera a obra de arte que se inicia, o nada (tutameia) que é tudo (mea

omnia) expressa-se nestas palavras poéticas: aletria e hermenêutica, mensagens

de Hermes, enigmática em sua revelação.

Aletheia, a-letria, é velamento e desvelamento, fogo iluminador, faísca

que ilumina a clareira mergulhada na floresta. Temos que abrir espaço para

deixar crescer o que em nós desde sempre fomos. Apropriar-se do próprio é

estar a caminho. Nosso guia é Hermes, o deus da linguagem, mensageiro do

destino. O sentido da verdade do ser só o apreendemos se nos abrirmos à

escuta de Hermes e Atena, Aletheia e Logos, aletria e hermenêutica, a luz do

verbo lançada no inesperado, no nada criativo, de onde tudo brota.

Na leitura de uma obra literária a verdade se põe em obra, logos e aletheia

a vigorarem no pólemos originário, disputa de terra e mundo, o confrontar-se do

homem com a realidade em que está lançado, buscando o sentido dos

fenômenos – sem porém arrancar de todo os véus do mistério, sua neblina.

Encontrar respostas prontas, na ciência, na religião ou em qualquer outra

forma de compreensão sistemática da realidade é o que estamos acostumados a

querer. E o Rosa finge que nos corresponde, demonstrando em textos

pretensamente explicativos, metacríticos, uma possível classificação. Mas o que

ele nos apresenta são anedotas, mitos, que dizem muito mais do que ele

consegue expressar em palavras. Em vez de explicações, Rosa propõe enigmas,

como iniciação hermenêutica. Como o médico de uma das anedotas do prefácio,

a este leitor viciado o doutor João Rosa receita a mais pura água da fonte:

142

E houve mesmo a áquica e eficaz receita que o médico deu a cliente neurótico:

“R. / Uso int.º / Aqua fontis, 30 c.c. / Illa repetita, 20 c.c. / Eadem

stillata, 100 c.c. / Nihil aliunde, q. s.” (E eliminou-se de propósito, nesta

versão, o “Hidrogeni protoxidis”, que figura noutras variantes.) (Rosa,

1967: 7).

As narrativas rosianas contam a irrupção do mistério em linguagem, luz

da verdade. Porque na arte não há respostas, sempre enigmas que nos colocam

novas questões. O que na estória se manifesta é muito mais do que a poética

rosiana, criação de um indivíduo: é a verdade do Ser. Por isso sua obra nos toca.

Os grandes pensadores sempre falam em paradoxos e contradições. E

não o fazem por escolha e sim por terem sido colhidos pela

simplicidade, com que a realidade se realiza nas peripécias e

vicissitudes do real. Para evitar o paradoxo e fugir à contradição,

tem-se de substituir o real, na simplicidade de sua realização, pelos

artifícios de um sistema de teorias e explicações (Leão, 2010b: 142).

- Eu vim para confundir...

O aparecer inaparente da clareira eflui do resguardado

salutar que abriga de modo duradouro o destino.

(Heidegger, 2008: 249).

Espera-se de um prefácio que ele lhe dê parâmetros para orientar a

leitura da obra em mãos. Rosa cumpre e não cumpre este contrato tácito, na

medida em que ele diz, sim, sobre sua poética, mas à moda do Chacrinha: “- Eu

vim para confundir, e não para explicar!” O velho palhaço bem poderia ornar o

elenco de anedotas que compõem este texto. Conforme comenta Faria (2005:

222):

O prefácio é aquele ponto médio onde poesia e pensamento se aliam,

onde a imaginação se urde com a razão, onde o engenho e o juízo

unem forças, e onde mais fecundantemente pode vicejar o diálogo

143

entre o autor e o leitor. No prefácio, o autor se “desesconde” do leitor,

e mesmo se, ao gosto de Rosa, ele continua a praticar um certo

brincar de esconde-esconde, nem por isso ele deixa de se revelar,

velando, ou de se velar, desvelando, como o próprio ser, que se

compraz num ritmo de máscara e ostentação.

A necessidade de explicação ante o público atônito corresponde ao

pressuposto de que o autor daria conta de explicar sua criação poética. Isso

diria um sujeito capaz de controlar a criação, quando sabemos que não sabemos

de nada. A busca do sentido da verdade do ser, esta se dá nas obras de arte e

pensamento, onde acontece o inesperado. Mistério, Mito, Memória, Musas,

tudo é doação do Caos, do Nada Criativo, do Ser.

Mas, vamos, com as armas de Hermes, finalmente adentrar o texto.

Assim se abre “Aletria e hermenêutica”, num parágrafo curto e enigmático,

aposto ao texto publicado originalmente havia mais de dez anos:

A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a

História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota (Rosa,

1967: 3).

Rosa parece classificar e situar suas estórias, no jargão da crítica,

construindo conceitos e categorias classificatórias com base nos atributos,

calcados numa bipartição (estória x história) em que se deve tomar partido de

um lado ou de outro, mas que acaba por se resolver num terceiro elemento

(anedota).

A diferença entre estória e história remonta a Aristóteles (1995), cuja Poética

reza que o poeta conta o que poderia acontecer, construindo a verossimilhança a partir

de verdades gerais, e narra uma única ação, ordenando organicamente as partes de sua

estória; o historiador, por sua vez, refere-se somente a fatos ocorridos (sendo portanto

menos sério e filosófico), e mostra várias ações ocorridas em um espaço de tempo, “ligado

cada fato aos demais por um laço apenas fortuito” (p. 45). Já na sociedade ocidental

iluminada, perseverou a ideia de que a arte deveria submeter-se à verdade histórica, não

mais valendo a máxima aristotélica segundo a qual “um impossível plausível é preferível

144

a um possível que não convença” [...] aponta para a existência de um discurso histórico

oficial, com H maiúsculo, responsável por registrar os fatos acontecidos na sociedade.

Porém, sabemos hoje que esse discurso é comprometido com o ponto de vista da classe

dominante, e que o resgate do passado a partir de ângulo diferente só é possível se o

historiador, consciente deste apagamento forçado, colocar a seu serviço “coisas finas e

espirituais [...], como confiança, como coragem, como humor, como astúcia, como

tenacidade” (Benjamin, s.d., p. 2).

Mas o mais curioso a se reparar é que neste pequeno parágrafo

introdutório não há a expressão de um conceito definidor do que seja a estória.

O autor não diz o que a estória é, mas o que ela quer ser. Ou melhor, o que ela

não quer ser. E notem que quem quer ou não quer ser não é o autor, e sim a

estória. O autor apenas explicita seu apelo, o apelo da linguagem em se

manifestar em riso, poesia e pensamento, como uma anedota.

O querer ser é o que move a estória, e não o que é. E nem isso, porque

mais à frente notamos que a estória nem quer mais ser, ela quer apenas às vezes

parecer um pouco. A referência entre os verbos ser, querer e parecer figuram a

estória como algo que configura a expressão do inusitado, como o homem

humano figurado por Cura na travessia de um riachinho barrento.

O que está em jogo no operar de Cura é sempre o destino de cada ser

humano, que é o acontecer de seu próprio. E este é absolutamente

original para cada um. Não dá para reduzi-lo a classificações. Na

regência de Cura se decide o destino do que cada um deve e

consegue realizar. Mas para isso, o ser humano, enquanto Cura, se

defronta com questões essenciais e originárias (Castro, 2011: 226).

A obra de arte não quer ser circunstancial, nesse sentido não quer ser

história. O mito não perde a validade, já as contingências históricas variam com

as épocas, e o discurso oficial assume o tom de quem momentaneamente ocupa

lugares de poder político. Mas a arte quer ser sempre atual e criativa.

145

As forças políticas conjunturais, circunstanciais nem sempre escutam

esta força de tempo e ser e se deixam tomar pelo jogo político das

forças conjunturais dominantes, que [...] com o tempo deixarão de ser

dominantes, já que a força de todo poder não é o poder dos

segmentos dominantes [...] mas as possibilidades de ser e chegar a

ser. O acontecer da história é bem mais enigmático do que julga e

deseja nossa frágil racionalidade (Castro, 2011: 27).

A história que se diferencia da estória diz os sistemas constituídos das

causalidades e regras. A História a que se opõe a estória diz o discurso

autoritário, que impõe a sua verdade como a única aceitável. A anedota que às

vezes a estória quer ser diz a surpresa do inesperado, o fósforo que ilumina o

cinzento e monótono cotidiano. Anedota e mito são o mesmo, o querer da

linguagem se manifesta no mistério insondável da realidade.

Sabendo disso, desconfiados, seguimos o texto, e eis que surge a luz:

A anedota, pela etimologia e para a finalidade, requer fechado ineditismo.

Uma anedota é como um fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia. Mas

sirva talvez ainda a outro emprego a já usada, qual mão de indução ou por

exemplo instrumento de análise, nos tratos da poesia e da transcendência

(Rosa, 1967: 3).

Aqui o Rosa parece que explica o que ele quer dizer com anedota,

usando o exemplo do fósforo – não por coincidência o fogo iluminador da

verdade, presente no vigorar dos mitos gregos da astúcia, aqui abordados. A

anedota, como o enigma, como o mito, narra, faz aparecer o inesperado,

surpreende, leva a pensar, questionar.

O pensamento do homem moderno está viciado em escadas rolantes e

em shopping centers, em livros de bolso, manuais de instrução. Os enigmas de

Tutameia querem dar o tombo, para ensinar o pensamento a andar de novo com

as próprias pernas, tornar a engatinhar, nadar na lama originária de Cura:

querer ser, escutar-se, morrer, feliz.

146

A obscuridade do Mito é sobretudo positiva no sentido de nos atrair e

pôr em condições de aceitar nos limites de que não sabemos, a doação

de novas possibilidades de ser e realizar-se. Os limites não apenas

nos retiram e recusam alguma coisa. Os limites, quando o fazem, só o

fazem para nos conceder e pôr nas possibilidades que somos e por

isso mesmo temos (Leão, 2010b: 47).

Para satisfazer a necessidade do leitor formatado, porém, Rosa segue

ensaiando uma classificação das anedotas, ressaltando aquelas com as quais a

estória quer parecer, aquelas que levam a pensar o inusitado:

E há que, numa separação mal debuxada, caberia desde logo série assaz

sugestiva – demais que já de si o drolático responde ao mental e ao abstrato –

a qual, a grosso, de cômodo e até que lhe venha nome apropriado, perdoe

talvez chamar-se de: anedotas de abstração.

Serão essas – as com alguma coisa excepta – as de pronta valia no que aqui se

quer tirar: seja, o leite que a vaca não prometeu. Talvez porque mais direto

colindem com o não-senso, a ele afins: e o não-senso, crê-se, reflete por um

triz a coerência do mistério geral, que nos envolve e cria. A vida também é

para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. Está-se a achar que

se ri. Veja-se Platão, que nos dá o “Mito da Caverna”(Rosa, 1967: 3-4).

A escuta poética das estórias rosianas, compreendidas como anedotas de

abstração, convoca ao pensamento originário, na medida em que abre os

ouvidos do leitor para a “escuta de um saber inaugural que tudo move, tudo

atravessa, tudo empurra para o abismo da realidade” (Leão, 2010b: 161).

Dá-se a aprendizagem, como experienciação das questões, na

interpretação das Terceiras estórias, quando a procura do sentido do texto é ao

mesmo tempo o apropriar-se do que nos é próprio, nossa destinação, deixar que

o ser se manifeste em sua verdade como o que ele propriamente é. Cada

narrativa de Tutameia conta o modo como esse inusitado acontecimento

apropriador se dá, ou não, na travessia da vida de cada personagem.

147

Só enquanto se a-propria a clareira do Ser, é que o Ser se entrega, no

que Ele é propriamente, ao homem. Que, porém, o Da (lugar), a

clareira, como Verdade do próprio Ser, se a-proprie, é destinação do

próprio Ser. É o destino da clareira (Heidegger, 1967: 60).

A irrupção da verdade pelo acontecimento apropriador que se manifesta

a partir da linguagem é o que narra a primeira anedota deste prefácio:

Siga-se, para ver, o conhecidíssimo figurante, que anda pela rua,

empurrando sua carrocinha de pão, quando alguém lhe grita: - “Manuel,

corre a Niterói, tua mulher está feito louca, tua casa está pegando

fogo!...” Larga o herói a carrocinha, corre, voa, vai, toma a barca, atravessa a

Baía quase... e exclama: - “Que diabo! eu não me chamo Manuel, não

moro em Niterói, não sou casado e não tenho casa...” (Rosa, 1967: 4).

Novamente irrompe o fogo clareante, inesperado: como um fósforo,

faísca o raio do pensamento, logos, aletheia. Precisou um fogo fátuo de um

suposto incêndio para fazer o infeliz padeiro acordar do sono do esquecimento

do sentido da verdade do ser, no qual ele seguia autômato, resignado, a puxar

carroça. Ao fim da anedota, talvez ele ainda não saiba quem ele seja, mas pelo

menos já sabe quem ele não é, o que já é um começo para a escuta de si, antes

de sair seguindo sem pensar qualquer vã palavra propalada ao vento.

O despertar pela escuta da palavra encontramos no conto “Grande

Gedeão”, cuja inicial do título refere-se no índice à letra G, do JGR, que agora

trago para esta leitura.

148

A estória do gigante

Como o português da anedota de “Aletria e hermenêutica”, Gedeão

Gouveia cumpria sua tarefa, mourejando feito burro de carga, alheio de si.

Pequeno sitiante, labutava de sol a sol, no Afundado, para arrancar da terra o

sustento dos seus. Só folgava nos domingos e dias santos, quando ia à missa.

Um dia vieram uns padres de fora, a santa missão, e no cochilo da

homilia, Gedeão escutou as ditas palavras:

– “Os passarinhos – não colhem, nem empaiolam, nem plantam, pois é... –

Deus cuida deles.” Em fato, estrangeiro, marretou: – “Vocês sendo não

sendo mais valente que os pássaros?!” (Rosa, 1967: 77).

O protagonista caiu de maduro, se deu conta da palavra e decidiu

experienciá-la: parou de trabalhar. Dali em diante para ele seria sempre

domingo, doação do Altíssimo. A escuta da palavra propiciou o acontecimento

apropriador, pelo qual Gedeão pôde vir a ser o que sempre fôra, mas não era

ainda. Seguiu, com a melhor roupa, fiando na venda, largou a enxada,

“desagachou-se” (Rosa, 1967: 78).

Vagava-lhe tempo e o repouso mandava-o meditar – renovado o

carretel de ideias – de preguiçoso infatigável. Vigiava. Atento, a-

cercas, ao em volta: ao que não se passava. Nisso o admiravam (Rosa,

1967: 79).

Alguns o tomaram por louco. Outros achavam que ele tinha encontrado

um tesouro, panela de dinheiro enterrada, supunham explicações plausíveis

onde havia só a ousadia de sair da linha. Olhar de coruja, andar de caranguejo,

ouvidos atentos para o ecoar do verbo, a mensagem do destino.

A partir da escuta da palavra, a mostrar que tudo é doação da physis, do

Ser, aconteceu o inesperado. A escuta levou à ação poética, à não ação, ao nada

criativo. Parado, pôde “assuntar a assunteza do mundo”, nas palavras de meu

149

amigo Tazinho, índio visionário que vigia a barra do rio Caraíva. Pôde perceber

o rame-rame dos viventes, ocupados em extrair da physis os recursos para o

sustento, filmando as astúcias do mundo:

De pura verdade, recuidasse em que os pássaros não voam de-todo

no faz-nada-não, indústria nenhuma, praxe que se remexem, pelos

ninhos, de alt’arte; pela moradia – o joão-de-barro? Decidiu uns

outros movimentos (Rosa, 1967: 79).

Quis vender o Afundado. A mulher tocou-o de casa. Ao que então os

vizinhos lhe propuseram negócios, como administrar a reforma da casa de uma

fazenda, por exemplo. Não mais cessaram as novas oportunidades de ganho.

E – tome realidade! Vindo-lhe, com pouco, cifrão e caduceu, quantias

que tantas: seu dinheiro estava já em aritméticas. Reavultava,

prezado ante filhos e mulher – avoado – apotestado, sócio da sábia

vida (Rosa, 1967: 79).

Herdeiro de Hermes, portador do caduceu, Gedeão em seus novos

negócios tirava muito mais do que conseguia agarrado no cabo da enxada.

Aprumou-se, consumou-se, este é um que morreu feliz, pois se arriscou a ser o

que quis, e foi. A mensagem de Hermes pode ser esquisita, mas não tem erro, é

a verdade velada. Bem-sucedido é o que se deixa arrebatar pela palavra poética,

mensagem do destino.

Voltemos, agora, ao prefácio em estudo, “Aletria e hermenêutica”, onde

paramos ainda na primeira piada.

150

E o autor não diz nada...

No quinto parágrafo de “Aletria e hermenêutica”, entramos na seção que

denominamos “anedotário”. Estendendo-se até a penúltima página do texto (p. 11), esta

seção é composta de anedotas populares (de português, bêbado, crianças, loucos e

capiaus), entremeadas a diversas referências ao cânone e articuladas através de

comentários do autor, que as relaciona a temáticas recorrentes em sua obra, como o mito,

o nada, o erro, o zen, a “posição-limite da irrealidade existencial” (p. 4). Através deste

extenso rol de anedotas e ditos chistosos, Rosa reafirma insistentemente o exercício de

releitura proposto em Tutameia.

A saída do Rosa, diante dos apelos do público por explicações,

facilitações, foi falsear num aparente sistema uma explanação do mistério. Mas,

em vez de dar a lume uma teoria sobre seu fazer poético, após breve introdução

a exaltar o cômico, elenca um rol de anedotas, pequenas narrativas em que a

verdade se manifesta de forma velada.

Isso porque o velar-se da verdade não pode ser exposto em proposições

declarativas. O que nos prefácios de Rosa se dá não é a explanação sobre seu

fazer poético, mas já é a própria obra acontecendo, estórias narradas, a

proporem enigmas, que promovem a ação questionadora do pensamento.

E o assunto de todas aquelas anedotas é simplesmente o nada, origem de

tudo. Neste ponto Rosa emparelha-se com Heráclito, o obscuro, a propor

enigmas nadificantes. Ao público, lança, palhaço, mais ou menos isso:

“O cano é um buraco com um pouquinho de chumbo em volta.”

“A rede é uma porção de buracos amarrados com barbante.”

“A vitrola é como uma máquina de costura, só que muito diferente.”

Quando foi impresso no periódico, este texto passou batido pelo público.

Mas em livro, já consagrado o autor, os críticos iriam esmiuçar cada uma

daquelas anedotas como se fossem sentenças oraculares. E são mesmo, desde

151

sempre foram. Eles é que não tinham ainda aberto os ouvidos para o envio

sábio, que emana das narrativas, que soa em suas palavras.

No sopro da palavra poética ecoa o vigorar da physis, em seu desvelar

velante. As estórias, os mitos, narram a irrupção do inesperado, que se dá ao

homem, do nada, como alface fresca coberta de oruvaio.

As anedotas de abstração volteiam em redor do nada, que é o grande

assunto do primeiro prefácio, justamente porque constitui o substrato

abissal do livro. O nada é o princípio de toda criação. No nada,

suspende-se o homem, no nada, precisa edificar o seu existir. A

operação poética segundo a qual o nada vem a ser tudo é a matéria

do livro, e ela se assume já em seu título, no qual “tuta e meia” chega a

ser “mea omnia”. Mas o nada [...] é impossível de se apreender, mais

ainda de se compreender (Faria, 2005: 227).

Rosa convida a pensar o nada, o não ser, ouvir o silêncio, confrontar-se

com o absurdo, nadar no “mistério geral, que nos envolve e cria” (Rosa, 1967:

4). A “niilificação enfática” (Rosa, 1967: 9) que se manifesta no operar de

Tutameia vem mostrar que não há esquema totalizante que dê conta do

inusitado voo da brabuleta. A Terra não para de rodar, embora pareçamos

parados.

Dá para imaginar o estupor dos leitores diante daquele circo de

cavalinhos, banca de ninharias, bugigangas baratas, entremeadas de citações

livrescas, eruditas, avalizadas pelo escol do cânone.

No livro ele se explica melhor que no periódico. Em nota de rodapé, num

adjutório, aproxima as anedotas de abstração aos koan do zen, enigmas sem

solução, propostos para se alcançar a luz através do absurdo:

152

_____________________

* Ainda uma adivinha “abstrata”, de Minas: “O trem chega às 6 da

manhã, e anda sem parar, para sair às 6 da tarde. Por que é que não

tem foguista?” (Porque é o sol.). Anedótica meramente.

Outra, porém, fornece vários dados sobre o trem: velocidade horária, pontos

de partida e de chegada, distância a ser percorrida; e termina: - “Qual é o

nome do maquinista?” Sem resposta, só ardilosa, lembra célebre koan:

“Atravessa a moça a rua; ela é a irmã mais velha, ou a caçula?”

Apondo a mente a problemas sem saída, desses, o que o zenista pretende é

atingir o satori, iluminação, estado aberto às intuições e reais percepções.

(Rosa, 1967: 7-8, rodapé).

Diante dos enigmas do destino, não há uma resposta lógica, única. O

desenredo da vida é o mundo à revelia. Sendo, o homem avança, nuns passos

de quem se retira. Ninguém escolhe nascer, nem escapa da morte certa, nem

soluciona o enigma. O nada criativo, insondável, é a origem de tudo que é e não

é. Nada é Ser, já diziam os pensadores originários. Nesse sentido, comenta

Leão, a propósito dos enigmas de Heráclito:

Pensar o nada é a maior provocação para o pensamento. Pensar o

nada não é pensar nada. É pensar em nada mas pensar, pensar no

nada e por isso é tão difícil como pensar o ser. [...] Não se trata de

duas tarefas mas de uma tarefa só que constitui a única tarefa do

pensamento. [...] É o nada que sustenta a radicalidade de todo

porquê! Nenhum real [...] pode oferecer amparo ou dar proteção

contra a radicalidade do nada (Leão, 2010b: 162).

O leitor que espera uma estória amena, confortável, que lhe reforce os

conceitos, que trilhe o já sabido, que estiver à procura de um método analítico,

aqui ficará com cara de tacho, pois não há respostas, não há um método,

sistema que, após mapeado, possa ser dominado e utilizado para exploração.

Diante um texto que só diz o nada, o leitor formatado se sente como os ratos e o

153

príncipe ambicioso, acuados diante do velho gato caçador, na anedota zen com

que Leão (2010b) explica o sentido grego do caos. O gato não tinha método,

dormia o tempo todo, era imprevisível, incontrolável, enigma invencível:

Os ratos se recolheram para observar qual seria a técnica e o método

do novo caçador. Passou o dia e o gato dormia. Passou a noite e o

gato dormia. Veio a manhã e o gato dormia. Os ratos começaram a

tremer. Não tem método, não tem modelo, não tem técnica, não tem

ferramenta: o caçador perfeito. Nele tudo é o silêncio de uma

realização perfeita. E contra isso não há o que fazer. Junto com o

príncipe, os ratos abandonaram a região do Sung e deixaram o

império da dinastia Chou. É o sentido grego do Cáos! (Leão, 2010b:

41).

O pulo do cômico ao excelso, que Rosa menciona na conclusão do texto,

é o próprio pulo do gato, que não se ensina, só se aprende, na experienciação da

vida, jogando com a manha do inesperado. Para tornar a ser livre, no percurso

da travessia, o pensamento humano precisa desatar os nós das armadilhas que

o prendem em convenções alienantes, porque distanciadoras do próprio.

O autor acrescenta no texto publicado em livro uma última página, uma

lista de aforismos, muitos constituídos de provérbios adulterados. Na pesquisa

de mestrado, destrinchei alguns desses ditos, com as ferramentas da análise do

discurso. Mas o sentido de todos é o mesmo do restante do texto: um apelo para

que o leitor, ao pensar o nada, ao ouvir o silêncio, desperte da inércia teleguiada

e acorde para os próprios pensamentos, permita que uma luz nova clareie o que

parecia por demais oculto ou desocultado. Diante do hermetismo do texto,

atender seus apelos, deixar-se levar pela graça das palavras, lançadas no abismo

do nada, sementes dançando ao vento.

O que não pesa é o que vale no nada de Tutameia.

Abrir-se à escuta da mensagem do destino, renunciar às respostas

prontas, questionar o visível e o invisível, obedecer à voz do sagrado, que

convoca o homem a apropriar-se do que lhe é próprio, habitar a linguagem,

154

existir, ser: eis o apelo que nos lança toda obra de arte. Do mistério da realidade

brotam o poeta e a palavra. Tudo é doação do Ser, do nada criativo. O vigorar

da physis explode na palavra poética, resposta ao apelo do Ser.

Toda palavra (do grego pará-ballein, jogar no entre) origina-se do

vazio, do silêncio, do nada criativo. [...] Sempre já estamos, como

sendos existentes, jogados nessa experienciação como provocação do

pensamento, proveniente do nada criativo (Castro, 2011: 22).

“Aletria e hermenêutica” apresenta o desenredo da anedota de

abstração, que narra a irrupção do inesperado. Mostra como a ausculta da

mensagem do destino promove o acontecimento apropriador, trazendo o

homem a habitar novamente os vãos da linguagem.

Já “Hipotrélico”, que abordarei a seguir, mostra que, a despeito de

quaisquer teorias científicas, linguísticas, biológicas, antropológicas, filosóficas,

as palavras saem da boca do povo, desocultam-se, lançadas no entre do diálogo.

- Sou, mas quem não é?...

Nunca se deve dizer da palavra que ela é. Deve-se dizer

que ela se dá – não no sentido de que as palavras “estão”

dadas, mas de que a palavra ela mesma dá e concede.

A palavra: a doadora. Mas o que dá a palavra? Segundo a

experiência poética e de acordo com a tradição mais

antiga do pensamento, a palavra dá: o ser

(Heidegger, 2011: 151).

A origem da palavra é o tema de “Hipotrélico”, que apresenta a questão

de modo anedótico. O termo que compõe o título deste prefácio é um

neologismo que designa aquele que não tolera neologismos. Assim como

“Aletria e hermenêutica”, este texto ironiza o cientificismo classificatório do

discurso lógico, com que supostamente conceitua e classifica suas estórias.

155

Aqui o alvo da ironia são os gramáticos, puristas, que implicavam muito

com as ousadias verbais que o Rosa realizava com a língua. O autor elenca e

desconstrói os abomináveis argumentos com que os conservadores da paróquia

buscavam desmerecer sua criatividade no trato com o idioma materno.

Em minha dissertação de mestrado, tive a oportunidade de me debruçar

sobre este texto, por tanto tempo que nem consegui chegar aos outros prefácios

(Andrade, 2004). A investigação ali empreendida me deu meios para a

abordagem poética que ora apresento, no entretecer dos nós e buracos da rede.

“Hipotrélico”, posso hoje dizer, é a própria palavra narrante. O texto,

após muito digredir, narra a origem do vocábulo que o intitula:

Já outro, contudo, respeitável, é o caso – enfim – de “hipotrélico”, motivo e

base desta fábula diversa, e que vem do bom português. O bom português,

homem-de-bem e muitíssimo inteligente, mas que, quando ou quando,

neologizava, segundo suas necessidades íntimas.

Ora, pois, numa roda, dizia ele, de algum sicrano, terceiro, ausente:

– E ele é muito hiputrélico...

Ao que, o indesejável maçante, não se contendo, emitiu o veto:

– Olhe, meu amigo, esta palavra não existe.

Parou o bom português, a olhá-lo, seu tanto perplexo:

– Como?!... Ora... Pois se eu a estou a dizer?

– É. Mas não existe.

Aí, o bom português, ainda meio enfigadado, mas no tom já feliz da

descoberta, e apontando para o outro, peremptório:

– O senhor também é hiputrélico...

E ficou havendo (Rosa, 1967: 66-67).

Rosa é conhecido cunhador de palavras, moedas suas acrescentadas ao

tesouro da língua. Mas o que ele nos mostra com esta anedota é que a palavra

nasce do inesperado, do instante imprevisto em que o homem se depara com o

que ainda não foi nomeado. O poeta se deixa tomar por esses nomes, quando

escuta e deixa falar a linguagem, a mensagem do destino.

156

No que a linguagem nomeia o sendo pela primeira vez, tal nomear

traz então o sendo para a palavra e para a manifestação. Este nomear

nomeia o sendo para seu ser a partir deste. Tal narrativa inaugural é

um projetar do iluminar em que é anunciado como o sendo, no que

ele é, advém ao aberto (Heidegger, 2010: 167).

Da fonte-borda originária broteja a palavra poética, doadora de ser

(Heidegger, 2011: 173). Para ser capaz de pronunciá-la o poeta precisa aprender

a renunciar a si mesmo, seu julgamento e vontade de poder, para deixar a

palavra vir a ser o que ela é. Deixar-se tomar pela palavra é se embebedar de

ser, agir sem sentido lógico, abrir-se ao acontecer da natividade e do

encobrimento, e neste entre-acontecer tornar-se o portador da mensagem.

Para alcançar os nomes, o poeta deve em sua travessia chegar ao

lugar em que sua reivindicação encontra a satisfação procurada. Isso

acontece à margem de sua terra [onde] encontra-se a fonte-borda, o

poço em que a norna cinzenta, a antiga deusa do destino, busca os

nomes. Com os nomes, ela concede ao poeta aquelas palavras que ele,

com toda confiança e segurança, aguarda como a representação

daquilo que ele toma por existente (Heidegger, 2011: 178).

O cabedal de palavras que forma um vocabulário de um idioma está

sempre a receber novas moedas, tutameias cunhadas por artimanhosos

poieteiros. A manifestação do sentido do ser se dá no narrar da palavra poética,

doadora de ser, que traz para a luz, nomeando, o que permanecia velado, no

inominado. A experienciação do viver nos cobra novas palavras, para nomear a

originalidade incessante da physis. Nós, míseros mortais, temos que dar conta

do riscado. Navegar é preciso, enfrentar os monstros, contar a estória.

157

O poder da criação

Não, ninguém faz samba só porque prefere

Força nenhuma no mundo interfere

Sobre o poder da criação

Não, não precisa se estar nem feliz nem aflito

Nem se refugiar em lugar mais bonito

Em busca da inspiração

Não, ela é uma luz que chega de repente

Com a rapidez de uma estrela cadente

E acende a mente e o coração

É, faz pensar

Que existe uma força maior que nos guia

Que está no ar

Bem no meio da noite ou no claro do dia

Chega a nos angustiar

E o poeta se deixa levar por essa magia

E um verso vem vindo e vem vindo uma melodia

E o povo começa a cantar: laraiá...

Lá, laraiá, laiá, laraiá!

João Nogueira e Paulo César Pinheiro4

O questionar nos encaminha para “Sobre a escova e a dúvida”, em que a

angústia da insatisfação diante da obra acabada mistura-se ao espanto diante do

mistério da criação poética.

Não é o poeta que põe o é, ele apenas finge, que é o fazer eclodir,

enquanto posição, o que já é. Em vista disso só pode ser poeta

fingindo a partir do ser. É no vigorar do ser que o poeta se torna

poeta e o agir inerente ao poeta pode fazer surgir o que finge, figura,

o poema. O que reúne o poeta e o finge é o ser (Castro, 2011: 229).

4 Disponível em: www.cifras.com.br. Acesso em: 17 dez. 2012.

158

“Sobre a escova e a dúvida” aborda o mistério em que estamos lançados,

de onde proveem as estórias, mito e memória. São episódios isolados, que

dizem o espanto diante do mistério da criação artística, que acontece quando o

autor se deixa arrebatar pelo vigorar da linguagem. Como texto inaugural que,

como vimos, a princípio abriu os trabalhos na Pulso, tem originalmente vocação

para prefácio, assemelhando-se mais a este gênero textual, pelo seu teor

autorreflexivo e confessional, sem abandonar o humor.

Costa (2006) informa que, das sete partes que compõem este texto, os

itens de número II, III e VII foram publicados isoladamente, com títulos

próprios, em edições da Pulso de 1967, já entre as últimas colaborações do autor

ao referido periódico. Faria (2005) fez uma pormenorizada e atenta leitura deste

prefácio, longo, fragmentado, esquisito, cheio de epígrafes, citações, rodapés,

ainda mais pesado de marcas gráficas do que “Aletria e hermenêutica”. Araujo

(2001) procedeu a uma exaustiva leitura a partir das fontes eruditas

relacionadas no texto, como Sêneca e Sextus Empíricus, que fornecem ao leitor

menos versado em antiguidades informações muito úteis na interpretação das

estórias.

Neste pasto a tarefa é grande, carece de mutirão para terminar no prazo.

Um só, sozinho, não consegue. Compondo com as companheiras, nesta leitura

pretendo navegar, porém sem perder meu rumo: o sentido da astúcia rosiana.

O que me proponho a fazer aqui, dadas as limitações impostas, é passar

rapidamente por suas páginas, buscando em sua unidade o sentido da astúcia

rosiana, num diálogo poético com o mito de Hermes.

No sincretismo que tudo mistura, Hermes é associado ao deus egípcio

Thoth, inventor da escrita. No Fedro, Platão narra esta passagem, quando Thoth

oferecia seus inventos ao rei, gabando-lhes a utilidade. Cito a cena narrada:

159

Quando chegaram à escrita, disse Thoth:

“Essa arte, caro rei, tornará os egípcios mais sábios e lhes fornecerá a

memória; portanto, com a escrita inventei um grande auxiliar para a

memória e a sabedoria.”

Responde Tamuz:

“Grande artista Thoth! Não é a mesma coisa inventar uma arte e

julgar a utilidade ou prejuízo que advirá aos que a exercerem. Tu,

como pai da escrita, esperas dela com o teu entusiasmo precisamente

o contrário do que ela pode fazer. Tal coisa tornará os homens

esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória; confiando apenas

nos livros escritos, só se lembrarão de um assunto exteriormente e

por meio de sinais, e não em si mesmos. Logo, tu não inventaste um

auxiliar para a memória, mas apenas para a recordação. Transmites

aos teus alunos uma aparência de sabedoria, e não a verdade, pois

eles recebem muitas informações sem instrução e se consideram

homens de grande saber, embora sejam ignorantes na maior parte

dos assuntos. Em consequência, serão desagradáveis companheiros,

tornar-se-ão sábios imaginários ao invés de verdadeiros sábios”

(Platão, 2007: 118-119).

O pensador ressalva que há uma espécie superior de discurso:

“conscienciosamente escrito com a ciência da alma, [...] o discurso vivo e

animado do homem sábio” (Platão, 2007: 120). São os diálogos, que, ao

semearem palavras, espalham sementes de felicidade. Esses discursos, que

instruem e reavivam a memória, apesar de escritos, se gravam na alma, geram

descendentes nas almas de outras pessoas.

A comparação entre palavras e sementes reportou-me ao item II do texto

(originalmente publicado em 1967, sob o título “Inteireza / Incessância”), em

que, diante da infinita natividade de uma mangueira, Rosa manifesta sua

dúvida em relação à capacidade de seus escritos manifestarem a vivacidade do

real. Apresenta seu mestre urucuiano, Tio Cândido, devoto possuidor da

supradita árvore, à qual contemplava com devoção:

160

Diz o que dizia, apontava a árvore: - Quantas mangas perfaz uma

mangueira, enquanto vive? – isto, apenas. Mais, qualquer manga traz, em

caroço, o maquinismo de outra mangueira igualzinha, do obrigado tamanho e

formato. Milhões, bis, tris, lá sei, haja números para o Infinito. E a cada

mangueira dessas, por diante, as corações-de-boi, sempre total ovo e cálculo,

semente, polpas, sua carne de prosseguir, terebentinas. Tio Cândido olhava-a

valentemente, visse Deus a nu, vulto. Via os peitos da Esfinge.

Daí, um dia, deu-me incumbência:

– Tem-se de redigir um abreviado de tudo.

Ando a ver. O caracol sai ao arrebol. A cobra se concebe curva. O mar

barulha de ira e de noite. Temo igualmente angústias e delícias. Nunca

entendi o bocejo e o pôr-do-sol. Por absurdo que pareça, a gente nasce, vive,

morre. Tudo se finge, primeiro; germina autêntico é depois. Um escrito, será

que basta? Meu duvidar é uma petição de mais certeza (Rosa, 1967: 149).

O chamado de Hermes para o ofício do verbo o autor conta escutar em

todos os lugares, quer seja em Paris ou no Sertão mineiro, em conversas alheias

ou ouvindo a si mesmo, em átimos de felicidade e mistério. O que vem até ele

assim, do nada, ele sente que precisa agarrar, dar forma, fingir, figurar.

A abertura para as manifestações da realidade realizando-se no real

possibilita a percepção da pauta a ser seguida, seguir as tortuosas trilhas de

Hermes, inalcançáveis pela lógica calculista, apenas pela palavra poética.

A suspensão do tempo cronológico, o tênue limite entre a razão e a

loucura, os inexplicáveis lapsos de completude, a incessante inaugurabilidade

da vida são enigmas diante dos quais o autor se coloca, não no intuito de

explicá-los, mas no sentido de experienciar na linguagem o vigorar do mistério.

O item VI é de especial interesse para a crítica rosiana, por constituir um

dos raros momentos em que o autor comenta expressamente a sua obra. O texto

é adornado por uma epígrafe de Sêneca (apud Rosa, 1967: 156-157):

161

Problemas há, Liberális excelente, cuja pesquisa vale só pelo intelectual

exercício, e que ficam sempre fora da vida; outros investigam-se com prazer e

com proveito se resolvem. De todos te ofereço, cabendo-te à vontade decidir se

a indagação deve perseguir-se até ao fim, ou simplesmente limitar-se a uma

encenação para ilustrar o rol dos divertimentos.

O leitor fica com a pulga atrás da orelha. Haverá naquele texto pistas

falsas misturadas a verdadeiras? Sim, hoje claro vejo, visto que o falseado da

linguagem é o manifestar-se do mistério, através da palavra poética. Bola de

fogo figurada pela fala humana, cada nova palavra lançada ao vento tilinta na

fonte dos desejos de Cura, de onde brotara.

Rosa compartilha com o público a sua renúncia à pretensão de dizer que

é propriamente o autor de suas estórias narradas, pois são elas que vêm até ele,

intimando-o a narrá-las. Ele diz que as recebe, como o público, vindas não se

sabe de onde. É como se ele tivesse poderes mânticos, recebesse avisos (de

Hermes?). Em nota, explica que este fenômeno, que acontece com algumas

pessoas, é conhecido como serendiptismo, numa alusão ao conto de fadas dos

Três Príncipes de Serendipt, que tinham a faculdade de “estar sempre obrando

achados, por acidente ou sagacidade, de coisas que não procuravam”(Rosa,

1967: 157). Em tom confessional, conta como as estórias é que misteriosamente

veem até ele:

Talvez seja correto eu confessar como tem sido que as estórias que apanho

diferem entre si no modo de surgir. À Buriti (NOITES DO SERTÃO), por

exemplo, quase inteira, “assisti” em 1948, num sonho duas noites repetido.

Conversa de bois (SAGARANA), recebi-a, em amanhecer de sábado,

substituindo-se a penosa versão diversa, apenas também sobre viagem de

carro-de-bois e que eu considerara como definitiva ao ir dormir na sexta. A

Terceira Margem do Rio (PRIMEIRAS ESTÓRIAS) veio-me, na rua, em

inspiração pronta e brusca, tão “de fora”, que instintivamente levantei as

mãos para “pegá-la”, como se fosse uma bola vindo ao gol e eu o goleiro.

Campo Geral (MANUELZÃO E MIGUILIM) foi caindo já feita no papel,

quando eu brincava com a máquina, por preguiça e receio de começar de fato

162

um conto, para o qual só soubesse um menino morando à borda da mata e

duas ou três caçadas de tamanduás e tatus: entretanto, logo me moveu e

apertou, e, chegada ao fim, espantou-me a simetria e ligação de suas partes.

O tema de O Recado do Morro (NO URUBUQUAQUÁ, NO PINHÉM)

se formou aos poucos, em 1950, no estrangeiro, avançando somente quando a

saudade me obrigava, e talvez também sob razoável ação do vinho ou do

conhaque. Quanto ao GRANDE SERTÃO: VEREDAS, forte coisa e

comprida demais seria tentar fazer crer como foi ditado, sustentado e

protegido – por forças ou correntes muito estranhas (Rosa, 1967: 157-158).

Um leitor mais cético poderia pensar que se trata de jogada de marketing.

Mas, mesmo se o fosse, a nós só comprovaria a presença de Hermes, se não pela

inspiração poética, por ser o deus do comércio. O que entrevemos neste

entrecho, porém, é uma outra faceta do deus: a de condutor de almas.

É que o autor dá notícia de um romance inacabado (que de fato existe),

intitulado A fazedora de velas, que foi parar na gaveta depois de coincidências

mórbidas entre o triste enredo e a vida do autor. Porém, não tinha mais jeito.

Quando a danada quer, é quando ela chega. Dali a pouco o escritor estava com

a doença do personagem, figurada fatal. O medo da morte o impediu de

concluir o livro. E o Rosa não sobreviveu mesmo à Fazedora de velas: Tutameia

ficaria órfão dali a quatro meses, na ressaca da festa de posse na Academia

Brasileira de Letras, doadora de imortalidade.5

O motivo da escova é esclarecido no item V, quando o autor explica que

o título do prefácio se refere a uma de suas primeiras dúvidas quanto à

validade das regras convencionadas: por que se escovam os dentes antes do

café-da-manhã, e não depois? É um questionamento típico da infância, tempo

5 O curioso é que, acreditem, há comigo aqui também coincidências, das brabas. Quando garota, lá no Ibiá, eu fazia velas decoradas para vender, e em Caraíva, onde conheci este texto, reciclava velas, para iluminar a casa. Quando li este trecho, à luz de uma vela feita por mim, olhei-me no espelho e, pela primeira vez na vida, aos vinte e dois anos, me vi finita e limitada. Ouvi a risada chiada da Morte. Que aquela era a mensagem do destino, minha presença aqui hoje confirma. Veio até mim Tutameia. Talvez seja o medo da morte que faça com que, quanto mais eu ande, mais eu me distancie do termo das palavras. Acabam os prazos, as laudas, os cursos; fica a obra, mel de mistério.

163

em que a gente não sabe de nada, por isso mesmo faz as mais sábias perguntas.

Ainda não fomos totalmente tragados pelas regras, não fomos formatados pelas

instituições.

A dúvida quanto à escova é a tomada de consciência da possibilidade de

escolha que o homem tem de obedecer ou não às regras convencionadas. Os

outros, comenta Rosa, “cumprem o inexplicável”(Rosa, 1967: 156): escovam os

dentes antes de comer. O autor resolve escovar os dentes só depois do café.

Neste ato de liberdade, tão pequeno e prosaico, ele se posiciona

independentemente do senso comum. Questiona o automatismo com que as

pessoas simplesmente seguem as regras, cumprem ordens, como o português

da carrocinha de “Aletria e hermenêutica”. “Até que a luz nasceu do absurdo”

(Rosa, 1967: 156). A liberdade se manifesta no modo de lidar com as regras,

inclusive da língua, para o bem da verdade que se manifesta na obra,

subvertendo a sintaxe ou re-criando nomes, como os listados no glossário que

encerra o prefácio.

A libertação estará sempre na tensão de verdade e não-verdade. [...]

Ela, como poiesis, busca em cada ato, em cada ação o seu sentido e

essência. Então acontece a libertação. A leitura dos textos poéticos nos

lança na libertação poético-ontológica: sermos como caminhada de

ascensão e descensão o que já desde sempre somos. É a procura do

ser (Castro, 2005: 57).

”Mais Essencial para o homem do que todo e qualquer estabelecimento

de regras é encontrar um caminho para a morada na Verdade do Ser”

(Heidegger, 1967: 95). O que a estória quer é conduzir o pensamento na procura

do sentido da verdade, pela abordagem das questões originárias, que levam o

homem ao encontro do próprio, à consumação do destino, pela ação poética, a

qual corresponde ao envio sábio, mensagem do sagrado, aletheia, revelação do

vigorar do inesperado. Por isso,

164

Não é ao poeta, ao compositor, ao cantor, enfim, ao homem que

devemos escutar, mas ao logos. Este é a irrupção, em nossa vida

ordinária, do extraordinário, da Linguagem poética, do mito, enfim,

do sagrado. Só então somos tomados pelo saber e sabor da sabedoria.

Sabedoria nunca é modelo de vida, mas a diuturna aprendizagem do

próprio irrepetível e único. Eis porque não há modelo de sabedoria.

Esta é muito mais o silencioso sabor da inaugurabilidade (Castro,

2011: 152).

Na procura da verdade, o homem é lugar de manifestação do Ser, da

linguagem. Sua obra, porém, limita-se pelas configurações dos códigos das

línguas e das convenções canônicas. A disputa entre luz e mistério se realiza na

obra poética, travessia onde se opera o sentido da verdade, no vigorar da

Memória, das Musas, da lira de Hermes.

Em Hermes encontramos o vigor do verbo, da palavra, do pensamento,

força de reunião, fogo iluminador, que permite ao homem, empilhando tijolos,

erguer uma obra, uma casa, e habitar seus vazios. O homem se vê lançado na

realidade misteriosa, da qual faz parte e na qual atua, no manifestar-se da

linguagem, em palavras e ações poéticas.

A unidade entre os episódios de “Sobre a escova e a dúvida” se constrói

no diálogo entre suas partes, manifestações da língua de fogo de Hermes. O

sentido da astúcia, como potência que vigora no confrontar-se do homem com a

physis e com a linguagem, dirige-se para o lugar onde o homem numa abertura

se doa ao eclodir da verdade do ser, que se manifesta e se esconde, na busca do

que lhe é próprio. A astúcia poética consiste em perceber que tudo é e não é, na

travessia de ser, não ser e vir a ser.

Para se ler Tutameia, deve-se ouvir o silêncio, concentradíssimo, o velado

além e em torno da clareira. É de lá do escuro do oco que brota tudo que vigora

na claridade da luz. As tutameiazinhas veredas picadas cortadas no dorso da

terra são trilhazinhas de nada, caminhos de floresta, casos de caipira. De cada

uma daquelas estórias viceja o broto e jorro da palavra poética, enchendo

165

nossos olhos e ouvidos de espanto. Ali vigora a poesia, de trás para diante, como

os rastros de Hermes: “- Aí, Zé, opa!” (Rosa, 1969: 26).

No diálogo com Tutameia, transportamo-nos para o limite que miram os

claros olhos de Atena. À sabedoria da deusa conjuga-se a artimanha do fogo de

Hefesto. A eles vem juntar-se Hermes, o jocoso deus guia, formando a intrépida

trupe que ilumina esta leitura.

O olho de Atena enxerga as distâncias, o de Hermes na tartaruga

vislumbra a lira, suas mãos hábeis trazem para a luz o que se doa ao ser: obras,

objetos, palavras, ações, poiesis. Astúcia e criatividade encontram-se nesses

deuses poieteiros, sempre a inventarem moda neste mundão sem fim.

A imponderável medida de viver e morrer apresenta-se nas ardilosas

palavras aladas de Hermes, mensageiro das Moiras, inventor da lira e do

comércio, patrono das artes, o deus da linguagem.

O homem, lugar de manifestação do Ser, da potência dos deuses, encarna

o mito de Ulisses, que escuta e atende as palavras de Hermes. A travessia deste

herói em sua volta para casa será abordada no próximo e último capítulo.

166

Capítulo 5

Travessia Nesta longa estrada da vida

vou correndo e não posso parar

na esperança de ser campeão

alcançando o primeiro lugar.

Mas o tempo cercou minha estrada

e o cansaço me dominou

minhas vistas se escureceram

e o final da corrida chegou.

Este é o exemplo da vida

para quem não quer compreender:

Nós devemos ser o que somos,

ter aquilo que bem merecer.

Milionário e José Rico6

A escuta da astúcia não pode deixar de abordar o mito de Ulisses, o herói

astucioso, cujas aventuras nos canta a Odisseia de Homero. O motivo que me

levou a deixar Ulisses por último não foi parodiar o famigerado gigante

Polifemo, que, ao devorar os gregos, isso prometeu ao nosso herói: comê-lo por

último. Não foi intencional, mas pôde a coincidência gerar uma anedota,

motivo para abrir este diálogo num tom antropofagicamente bem-humorado.

No presente estudo, venho tratando dos mitos gregos da astúcia, em sua ordem

de antiguidade: Métis, Atena, Hefesto, Hermes, e eis que é chegado o momento

de falarmos do mítico Ulisses, rei de Ítaca, que lutou na Guerra de Troia e,

depois de muito sofrimento, pôde retornar a casa. Este é o princípio da ordem.

6 Famosa canção sertaneja (1978). Disponível em: letras.mus.br. Acesso em: 3 jan. 2013.

167

Depois de trazer para a presença os dons dos imortais, é que podemos

acolher a presença de Ulisses, mortal e limitado, lugar de manifestação das

potências do Ser, abrindo caminho no mar, no rasgo da nau capitânia, no

empenho de consumar seu destino, ocupar seu lugar, existir, ampliando os

horizontes do mundo pelo percurso de sua travessia.

Ulisses é o homem humano em travessia, enfrentando a morte, matando

um leão por dia, no empenho de vir a ser o que é, consumar o destino, ouvir o

inaudito, experienciar o inenarrável.

[Ulisses] nos aparece poeticamente como o nobre, ou como deus, o

exemplo da astúcia sábia e rara. Ulisses realiza poeticamente o que

nós aspiramos a fazer vivencial e existencialmente, é para cada um de

nós a possibilidade de realizar a travessia enquanto enfrentamento da

morte, através da astúcia sábia (Castro, 2011: 175).

Mas, quem, afinal, é Ulisses? E mais: onde podemos encontrar Ulisses em

Tutameia? No encalço destes questionamentos, desenvolvo o presente capítulo.

A princípio, será abordado o mito, na sua referência com os demais mitos

gregos da astúcia vistos anteriormente. A seguir, com base no estudo de Castro

(1976), apresentarei um diálogo entre a Odisseia, que narra a travessia do mar

por Ulisses, e Grande sertão: veredas, que narra a travessia do sertão por

Riobaldo, numa aproximação entre a épica homérica e a poética rosiana.

Finalmente, abordarei algumas estórias de Tutameia em que se manifesta o mito

de Ulisses, ao narrarem as aventuras do homem humano em travessia, no

empenho da consumação do destino, através da astúcia sábia.

168

A dupla origem de Ulisses

Para sabermos a essência de alguém, precisamos conhecer seu génos, sua

origem, pois é sua linhagem que constitui sua natureza:

Génos deriva de gignomai (nascer, devir). O génos comum a um grupo

de indivíduos marca a comunhão de uma natureza por nascimento.

Essa natureza é que os constitui mais do que outro fator qualquer. O

indivíduo vale e se define por seu génos (Castro, 2011: 166).

E qual é a origem de Ulisses? Ao aprofundar a pesquisa sobre este mito,

soube que a versão da Odisseia não era a única, havia outras variantes da

estória, que trouxeram uma nova luz no estudo da linhagem deste herói.

Vejamos os diferentes registros do mito:

Como todo herói, o rei de Ítaca teve um nascimento meio complicado.

Desde a Odisseia a genealogia de Odisseu é mais ou menos constante:

é filho de Laerte e de Anticleia, mas as variantes alteram-lhe

sobremodo os antepassados mais distantes. É assim que, do lado

paterno, seu avô, desde a Odisseia, chamava-se Arcísio, que era filho

de Zeus e de Euriodia. Do lado materno o herói tinha por avô

Autólico, donde seu bisavô era nada mais nada menos que Hermes.

Se bem que desconhecida dos poemas homéricos, existe uma tradição

segundo a qual Anticleia já estava grávida de Sísifo, quando se casou

com Laerte (Brandão, 2008, V. II: 468).

Sobre a mãe não há dúvida: Ulisses é filho de Anticleia, que por sua vez é

filha de Autólico, que é filho de ninguém menos que o deus Hermes, de quem o

herói é portanto bisneto pelo lado materno. Autólico teria aprendido com

Hermes as manhas do roubo de gado, tornando-se também famoso larápio.

Autólico também é avô de Jasão, dos Argonautas, mas esta é outra estória.

Já sobre o pai, há controvérsias. A versão oficial diz que Ulisses é filho de

Laerte, marido de Anticleia. E como Laerte era filho de Arcísio, que era filho de

Zeus, que aliás povoou muitas terras, Ulisses seria descendente do Soberano.

169

Há quem diga, porém, que ao se casar a moça já estava grávida de Sísifo,

rei de Corinto, tão manhoso que chegou a engambelar a própria Morte, como

diz a lenda. Quando Zeus raptou Egina, filha do rio Asopo, passou por Corinto

e foi visto por Sísifo, que o delatou. Como castigo, Zeus mandou-lhe Tânatos,

mas o astuto rei de Corinto enleou a Morte de tal maneira que

conseguiu encadeá-la. Como não morresse mais ninguém e o rico e

sombrio reino do Hades estivesse empobrecendo, a uma queixa de

Plutão, Zeus interveio e libertou Tânatos, cuja primeira vítima foi

exatamente Sísifo (Brandão, 2008,V. II: 390).

Desta feita ele armou outro estratagema: pediu à mulher que não fizesse

seu cortejo. Chegando ao Hades sem os ritos funéreos, pediu para voltar para

castigar a mulher e providenciar as honrarias. Assim retornou do reino dos

mortos. Mas jacaré cumpriu a promessa? Nem ele... Depois de alguns anos,

veio-lhe Tânatos, indeclinável. Foi condenado ao Tártaro, obrigado a levar

morro acima uma pedra, que despenca de novo, num trabalho sem fim.

Como teria se dado o encontro entre Sísifo e a filha de Autólico, para que

o astucioso Ulisses pudesse ter como pai o Engana-Morte? Diz a lenda que,

numa disputa entre espertos, Autólico certa vez roubou um gado de Sísifo. Este

foi à casa de Autólico reclamar o gado roubado. Nesta ocasião, o anfitrião teria

arranjado o encontro da filha com o notório safado, para que eles gerassem o

maior dos velhacos: Ulisses.

Filho de Sísifo, o mais astuto e atrevido dos mortais, neto de Autólico,

o maior e mais sabido dos ladrões, e ainda bisneto de Hermes, o deus

também dos ardis e trapaças, o trickster por excelência, Ulisses só

poderia ser mesmo, ao lado da inteligência exuberante, da coragem e

da determinação, um herói polymetis, cheio de malícia e habilidade, e

um polytropos, um solerte e manhoso em grau superlativo (Brandão,

2008, V. II: 469).

170

Com base nesta outra linhagem, acentua-se o caráter ardiloso do herói,

confirmado pela ascendência materna, que o liga indiretamente a Hermes (que

seria seu bisavô) e diretamente a Sísifo (seu pai).

Ulisses era rei, era líder, cabia a ele a solução dos problemas. Diante das

ameaças terríveis com as quais se defrontou em sua conturbada existência, nele

se manifesta o génos da astúcia. Buscando lograr a morte, age astuciosamente,

apropriando-se do que lhe é próprio, consumando seu destino.

O destino de Ulisses

Ulisses realiza sua travessia como destino no mar.

Nele se entretece o que estando será. Deste estar lhe

advém a experienciação do que será, do seu destino,

do seu próprio.

(Castro, 2011: 164).

Conforme conta Homero, o astuto rei de Ítaca teve uma participação

fundamental na vitória dos gregos na Guerra de Troia e, finda a demanda,

protagonizou inúmeras aventuras no mar e em terras distantes, onde enfrentou

monstros sinistros, como os Ciclopes e as Sereias, enleou-se nos braços da maga

Circe e da ninfa Calipso, até conseguir chegar a casa e desbaratar os

presunçosos pretendentes, reassumindo seu trono.

Por todo esse tempo o heroísmo e a astúcia de Ulisses brilharam

intensamente. Durante todo o cerco de Ílion o rei de Ítaca mostrou

extraordinário bom-senso, destemor, audácia, inteligência prática e

criatividade. Convocavam-no para toda e qualquer missão que

demandasse, além de coragem, sagacidade, prudência e habilidade

oratória. Polymekhanes, industrioso, fértil em recursos, é o epíteto

honroso, que lhe outorga Atena logo no canto segundo: Il., II, 173. É

assim que sua solércia e atividade diplomática se desdobram desde

os primeiros cantos do poema (Brandão, 2008, V. II: 472).

171

Na Ilíada encontramos os relatos dos feitos bélicos de Ulisses, seus

estratagemas e estratégias, sua bravura em combate. Focaremos nossa leitura na

Odisseia, que narra as venturas e desventuras do herói no seu retorno a casa,

atravessando o sem caminho do mar, via instável e imprevisível como a

essência da astuciosa Métis, potência das águas, filha de Oceano e Tétis.

Para vencer os obstáculos, atravessar os mares nunca dantes navegados,

Ulisses, além da sua natural astúcia, em muitas ocasiões contou com o auxílio

direto dos imortais, quer seja através de intervenções favoráveis ao herói no

conselho dos deuses, quer seja através de mensagens, avisos, orientações que

lhe permitiram o retorno aos seus. Dentre esses seres imortais, além do

ancestral Hermes, é muito atuante a deusa Palas Atena, ambos deuses, assim

como o herói, portadores de astúcia.

Foi Atena quem convenceu os deuses a findarem com o exílio de Ulisses,

ordenando a Calipso que o deixasse ir embora. Havia sido a deusa também a

doadora da ideia do cavalo de Troia, que lhes garantira a vitória. Era ela quem

também inspirava a rendeira Penélope a enrolar os pretendentes. Em forma

humana, chegou a interferir diretamente nos acontecimentos, dirigindo seus

sábios conselhos a Telêmaco e ao próprio Ulisses.

Já Hermes encontra Ulisses, seu descendente, em diversas ocasiões, como

mensageiro dos deuses, portador da palavra do destino. Quando Circe

encantou os sócios e os transformou em porcos, Ulisses se safou porque no

caminho Hermes deu a ele uma erva que cortava o feitiço da bruxa. O herói

venceu a bruxa e ainda ficou lá por um tempo, usufruindo das regalias de

amante, até resolver partir.

Ulisses para vencer [Circe] terá que ser portador da linguagem, isto é,

de Hermes, o portador da palavra sagrada. [...] Não basta ao homem

apelar para a razão. É necessária a própria linguagem, Hermes, a

referência Essencial de ser e ser humano [...] o mito dos mitos e ritos,

o sagrado primordial e originário (Castro, 2011: 156).

172

Ulisses, em sua astúcia sábia, se abre para a Escuta da palavra, jogada no

entre vazio do nada. Sempre que ele recebe a mensagem do destino, ele a

percebe e a obedece, porque ele está aberto para a Escuta, e só assim pode

vencer os inimigos. Ele é da estirpe de Hermes: bom de ouvido, bom de jogo.

O advento e a possibilidade da Escuta não é fruto de um desejo de

Ulisses, isto é, nosso. Podemos ou não apenas acolhê-la. É um poder

impotente, porque o acolher não é uma questão de vontade, mas de

acolhimento do destino (Castro, 2011: 176).

A abertura de Ulisses para a Escuta e acolhimento da mensagem do

destino leva-o a agir poeticamente, na medida em que se pauta não pela lógica

ou pelos valores dominantes, mas pelo querer poder que move e promove o

homem a ser o que ele é, apropriar-se do que lhe é próprio, consumar o destino.

O filho de Sísifo foi o único de sua esquadra a escapar da morte, foi

quem restou para contar a estória. Por sua fala, cantada na Odisseia, os mortais

puderam tomar conhecimento do que ele escutou da boca das Sereias.

A travessia de Ulisses ao largo do lar das Sereias é um episódio da

Odisseia repleto de significações, tem dado margem a inúmeros discursos ao

longo da tradição ocidental, na filosofia, nas artes, na cultura popular e na

cultura de massa. As sereias povoam o imaginário de todos nós.

Como imagem-questão, a escuta do Canto das Sereias nos confronta com

a mensagem do destino, enigmática, vital: Como proceder no confronto com a

realidade, que dá e tira com a mesma desfaçatez? Qual o sentido da existência?

O pano de fundo no qual está inscrito o mito do Canto das Sereias [é]

o destino. Trata-se da questão maior e permanente para o humano de

todo ser humano e que tece e entretece os fios sutis não só da

narrativa homérica, mas também das ações e percalços de Ulisses, na

sua tra-vessia, na busca do seu sentido e da sua verdade, essa busca

que é de todos nós em todos os tempos: fazer de nossas ações e

escolhas a realização e acolhida do que somos, nosso próprio, nosso

destino (Castro, 2011: 159).

173

Para sobreviver às Sereias, Ulisses escutou o conselho de Circe: o herói

deveria estar atado ao mastro do navio, enquanto os sócios, com os ouvidos

tapados, deveriam remar até se afastarem de todo. Isso porque em seu canto

elas anunciam o que o homem mais deseja: o pleno saber do destino.

O pleno saber das Sereias, da palavra cantada como voz do silêncio,

que é a possibilidade de experienciação da morte, é a oferta do não-

saber em todo saber da fala, é a oferta do não-caminho e do não-

sentido em todo caminho e sentido do mar, em toda finitude e não-

finitude. Por isso Ulisses tem que ser amarrado ao mastro do navio. O

navio e seu mastro é o limite e a finitude no limiar do ilimitado e

inefável do mar (Castro, 2011: 179).

Para o homem, ser sábio e astuto é saber-se existindo em um corpo vivo,

destinado à morte. O que acontece no percurso da travessia depende de suas

ações e suas buscas, a partir do que lhe foi destinado, de seu próprio, que a ele

cabe deixar consumar, na eclosão do ser que acontece em cada vivente.

Como ente mortal e limitado, desconhecedor do mistério da realidade,

do qual faz parte, para atravessar o mar do destino, o homem carece de atender

à palavra poética, na dobra de saber e não saber, de limite e não limite,

configurando na travessia a dissimulada verdade do ser, que se manifesta em

linguagem, em palavras, em ações poéticas.

Na travessia poética se dá o saber do não-saber de toda sabedoria.

Por isso o herói é Ulisses, no qual a astúcia se faz sabedoria, uma

sabedoria viva, concreta, ética e poética (Castro, 2001: 154).

A travessia da vida não cessa, só quando acaba. Na busca de vir a ser o

que é, o homem humano atende ao apelo do inesperado, se lança na travessia,

com os recursos que lhe são dados, atento ao envio sábio. Não tem certeza de

nada, apenas ginga seu barco, no balanço das ondas, guiado pelas estrelas, indo

ao encontro de si, buscando escapar da morte.

174

Nossos caminhos, o frágil navio que singra, o mastro ao qual estamos

em pé, amarrados e o sentido da Escuta são uma doação do mar

instável e infinito, da realidade se realizando, do destino se

destinando, e não uma conquista de nosso querer. Sempre em estado

de limiar somos um frágil e instável corpo que, em meio às infinitas

possibilidades, abre seu caminho a cada escolha, a cada escuta,

fazendo da existência da vida uma travessia poética. Só amarrados ao

mastro do nosso corpo-navio podemos manter os ouvidos bem

abertos para acolhimento do Canto das Sereias e, assim, nos

preservarmos da morte, fazendo da travessia poética uma caminhada

de saber, sabor e sabedoria, em direção à con-sumação e plenitude do

que somos (Castro, 2011: 180-181).

Ao homem não é dado escolher seu destino, suas possibilidades, sua

essência, o que recebe ao nascer. A ele cabe apenas acolher ou não aquilo que

lhe está destinado, e consumar ou não sua estória. Isso nos diz o mito. A Escuta

poética leva a consumar o destino. Disso Ulisses bem o sabia. E nós, sabemos?

Para nós, seres pós-modernos, o destino se apresenta como algo que

foge ao nosso alcance e vivência, não porque seja algo extraordinário,

mas porque somos filhos do sistema de controle e da sociedade em

rede. Tendemos cada vez mais para o sistema de controle total, daí a

urgência do poético como o inesperado de todo sistema e controle. É

dessas instâncias que depende o nosso destino, sem a dimensão de

uma fatalidade e de desafio de uma ordem que nos transcende

(Castro, 2011: 162).

O burburinho da vida moderna abafa a mensagem do destino. A astúcia

sábia abre os ouvidos para a Escuta poética. “A alegria é a prova dos nove”,

promulga Oswald de Andrade (1928). Se o homem faz tudo certo, obedece às

regras do sistema, satisfaz seus desejos, conquista poder e fama, e mesmo assim

a tristeza o acompanha, algo não soa bem. É como dizem os versos que

encerram “Retrato de cavalo” (Rosa, 1967: 133):

175

Era verdade de-noite,

Era verdade de-dia,

Mentira, porque eu sofria.

RECAPÍTULO.

O homem moderno, ao negar o destino e a Escuta poética, se perde nas

vias do impróprio, vivendo alheio de si, sem questionar a verdade de suas

vivências, sofrendo, enganando a si mesmo, até que encontra algo que não

procurava, que o convoca ao questionamento, na busca do que lhe é próprio.

A via do impróprio nos faz sofrer porque nos lança no esquecimento

do próprio e na aparência de ser o que não somos. Podemos mentir e

nos enganar muito, mas não podemos fazer isso o tempo todo. Há

sempre o kairós, instante de verdade que a cada um, no mais íntimo

do seu íntimo, se revela e manifesta (Castro, 2011: 176).

Os sucessos e infortúnios de Ulisses em sua travessia, narrados na

Odisseia, são os modos de consumação do seu fado. Nesse sentido, as

artimanhas de Ulisses são envio dos deuses, que o herói apanha no tempo

oportuno, kairós:

Há um tempo próprio, que os gregos denominavam kairós, o tempo

do ad-vento, do momento oportuno, que não se regula por datas nem

por causas e consequências conhecidas cientificamente, muito menos

por análises ou explicações técnicas e críticas. É o advento do

inesperado, do extraordinário, do mistério, do acontecer poético da

palavra cantada, da fala do lógos. Não é o desejo de algo consciente ou

inconscientemente manifestado, mas um despertar para realizar a

travessia do que somos (Castro, 2011: 175).

A travessia no mar por Ulisses é a travessia da vida pelo homem. Neste

mundão velho sem porteira, o homem caminha para a morte querendo voltar

para o útero. A arte é o salto mortale, palavra poética, no nada lançada. O que

existe é homem humano, lançado na travessia, na dobra de tudo e nada.

176

Sem ilusões nem modelos, com agir ético, precisamos nos abrir para a

palavra cantada e seu convite à escuta, porque somos finitos e

precisamos de sistemas, mas só para ultrapassá-los e afirmar

igualmente a não-finitude, pelo poder libertador da palavra cantada

(Castro, 2011: 182).

O mito de Ulisses assoma a literatura moderna ocidental, explicitamente,

como na gigantesca narrativa de James Joyce, e de forma mais ou menos direta

na obra de inúmeros escritores. Existem inclusive versões midiáticas, do cinema

e da indústria do entretenimento, que contam as aventuras e peripécias do

herói, em narrativas esvaziadas de seu poder criativo, transformado-se o mito

em mera mercadoria barata e previsível. Na obra dos grandes artistas, contudo,

como é o caso de Guimarães Rosa, o mito de Ulisses ressurge de forma

vigorosa, na medida em que as estórias rosianas evocam a questão da essência

do homem e do destino como travessia.

Mares de morros

Na travessia da vida, viver é muito perigoso, como

nos lembra insistentemente Ulisses nas suas

aventuras e desventuras. É o mesmo itinerário de

Riobaldo.

(Castro, 2001: 154).

Como Ulisses, o homem humano se depara com a realidade, imprevsível,

bem mais potente do que ele, mísero mortal limitado. As marcas do mito de

Ulisses e dos textos de Homero na obra de Guimarães Rosa já são notórias, e

muitos estudiosos operam o diálogo entre a épica grega e a saga rosiana.

Não só Homero, como Platão e Aristóteles, por exemplo, constituem o

universo virtual do escritor mineiro, e os diálogos com esses textos e tantos

outros da literatura mundial são tão originárias em sua prosa como o dialeto

caipira, estilizado em suas narrativas.

177

A leitura de Castro (1976) é bastante esclarecedora de como a temática da

travessia, motivo da Odisseia, também conduz a narrativa de Grande sertão:

veredas, sendo Riobaldo o homem humano em travessia, na busca da

consumação do destino.

Como Ulisses se prende ao mastro do navio, Riobaldo segue o traçado

das veredas, para não se perder no mar do grande sertão:

Na paisagem geofísica as veredas são uma garantia e certeza de vida

dentro do inóspito sertão. No segundo sentido, o da busca humana,

elas simbolizam o alcance da compreensão de que os homens

necessitam para não serem tragados pelo enigma do Sertão. As

veredas como oásis ou riachos do grande sertão tornam-se o símbolo

da travessia: única certeza vivencial (Castro, 1976: 45).

Riobaldo percebe a ambiguidade da Realidade, onde tudo é e não é, e

conclui que nas linhas tortas da vida carece também de entortar os caminhos,

para não perder o bonde. Rememorando suas andanças, a todo momento

Riobaldo questiona o sentido de sua existência, o motivo de tudo aquilo ter

acontecido com ele. Por mais que ele pergunte, contudo, sempre fica a dúvida,

diante dos mistérios da Realidade.

O homem em sua relação com o Real tenta compreendê-lo,

estabelecendo um conhecimento através da pergunta. Ora, algo é

conhecido na medida em que é. Porém, tal conhecimento não conduz

à certeza, à resposta tão ansiosamente perseguida, exatamente porque

o que é pode manifestar-se como não sendo, e o que não é pode vir a

ser: há uma mutabilidade constante, que corrói a equação de

qualquer conhecimento. Mas o homem persegue uma resposta para

essa contínua ambiguidade do Real (Castro, 1976: 32).

Da mesma forma que Ulisses, para vencer os obstáculos e realizar a

travessia de seu destino, precisou se abrir para a Escuta poética, ser tomado

pela mensagem de Hermes, o deus das encruzilhadas, também Riobaldo, para

178

encarar os desafios que se apresentavam diante dele, precisou fazer o pacto com

o diabo, na encruzilhada das Veredas Mortas. Nesse sentido, ao mesmo tempo

em que o romance narra o confronto do homem com a Realidade, também

realiza o confronto do homem com a Linguagem.

Grande sertão: veredas é o percurso da demanda da linguagem [...]

Desse percurso são símbolos centrais o pacto e o diabo. E o símbolo

diz exatamente isso: é nele que se estabelece a tensão entre a língua e

a linguagem. A obra artística resulta do esforço de desrealização que

o poeta opera no sistema linguístico, através da instauração simbólica

substituindo o signo linguístico pelo signo literário. Ao passo que

aquele é o estabelecido e definido, este se afirma e vivencia na

medida em que se nega a ser signo, porque portador de uma energia

atuante e libertadora (Castro, 1976: 80).

Como vimos no capítulo anterior, ao tratarmos do mito de Hermes, o

deus da linguagem, a dúvida em relação à capacidade do signo linguístico de

expressar a Linguagem enquanto verdade e sentido do Ser se faz presente

também em Tutameia, sendo tematizada explicitamente no prefácio “Sobre a

escova e a dúvida”. Neste texto, o autor se coloca, como vimos, possuído pela

linguagem, como Ulisses e Riobaldo, mas como este último, moderno herói

problemático, não cessa a dúvida em sua relação tanto com a realidade quanto

com a linguagem.

Tomando o diabo como símbolo da linguagem, da poesia, o poeta, no

entanto, continua consciente de que ele ainda é símbolo de, daí sua

dúvida permanecer viva: “O diabo não há! É o que digo, se for...”

(GS: V, p. 460). Torna claro que a poesia se manifesta é na demanda,

única e humana certeza que lhe resta: a travessia literária (Castro,

1976: 80).

A partir dessa leitura, fica a possibilidade de, em estudos futuros,

investigar as manifestações da astúcia nas demais obras rosianas. Nos limites

desta tese, ensaiarei a seguir uma breve aproximação entre Odisseia e Tutameia.

179

No eco da Odisseia

– E o senhor quer me levar, distante, às cidades?

Delongo. Tudo, para mim, é viagem de volta.

(Rosa, 1967: 13).

Uma ressonância entre Tutameia e a Odisseia se percebe logo na

semelhança entre os títulos, motivo de minha primeira abordagem do tema,

ainda no mestrado: “Odisseia e Tutameia: rima ou solução?”7 foi o título que

encontrei para o estudo feito à época, com base na leitura do mito feita por

Adorno e Horkeimer na Dialética do esclarecimento. Na ocasião, apontei a

predileção do autor mineiro pelos textos de Homero, já bastante comentada

pela crítica, ressaltando algumas semelhanças entre a epopeia homérica e esta

obra rosiana, como a temática e da travessia, tão caro ao Rosa. Naquela primeira

leitura, percebi uma semelhança entre os estratagemas de Ulisses e do escritor

mineiro, lançando luz no episódio de Polifemo.

No glossário do próprio livro (p. 166), constatamos que “tutameia” apresenta

certa valoração negativa (quase-nada), mas significa também, paradoxalmente, mea

omnia (“todas as minhas coisas”). Assim, esse termo caracteriza um discurso ambíguo,

contraditório, em que um signo pode representar, ao mesmo tempo, tudo e nada. Foi com

ardil semelhante que Ulisses logrou o ciclope Polifemo, conseguindo sobreviver à sua

força colossal8.

A partir da leitura de Gagnebin (1997), soube que a palavra grega para

ninguém é outis, semelhante ao nome do herói, Odisseus. Com base nessa

semelhança, a autora afirma que ao se denominar como Ninguém, Outis,

Ulisses estaria fazendo um trocadilho com essa palavra, seu nome e ainda a

palavra métis, já que ou e me são partículas de negação, donde: ou-tis = me-tis.

Segundo a autora, Ulisses supera as ameaças das potências míticas que encontra em sua 7 Disponível em: www.oocities.org/textossbec/andrade.doc. Acesso em: 5 jan. 2013.

8 Quando o “monstro que pensa sem lei” pede ao herói que se identifique, este responde que se chama Ninguém. Depois de embebedar o gigante, Ulisses e seus companheiros furam seu único olho. Polifemo grita por socorro, mas quando seus amigos perguntam o que está havendo, o monstro responde que Ninguém o está atacando. Os outros ciclopes vão embora, possibilitando a fuga dos gregos.

180

jornada pelo uso da inteligência da métis, “uma inteligência ardilosa, cheia de recursos,

entre a malandragem e o jeitinho brasileiro”.

O encontro com estas leituras levou-me a conhecer o nome grego daquilo

que na cidade se chama astúcia e que em Minas se chama velhacaria: métis. No

encalço desta palavra lancei-me na pesquisa de doutorado, buscando a origem

mítica deste modo de pensamento, deste enfrentamento da realidade de que o

homem lança mão para superar os obstáculos, na consumação do destino, na

busca do que lhe é próprio. Isso percebo agora, depois de introduzida nos

estudos da poética, do pensamento de Heidegger.

Para encerrar o presente estudo, retorno ao mito de Ulisses, o primeiro

com quem me encontrei quando percebi que Tutameia tinha me escolhido e abri-

me para a Escuta poética de suas palavras. Percebo agora, ainda mais do que

antes, que o diálogo entre este mito e a obra rosiana dá margem para muitos

adentramentos, impossíveis nos limites desta tese. Exigiria que eu parasse para

reler novamente a Ilíada, a Odisseia, a Eneida, o Grande sertão: veredas, para então

poder me confrontar novamente com Tutameia e percorrer mais uma vez cada

uma de suas estórias.

Por ora, apresento uma leitura do prefácio “Nós, os temulentos”, além da

referência a alguns textos do livro que trazem a temática da travessia, os quais

pretendo oportunamente abordar.

181

Temulentus sumus

O estudo do prefácio “Nós, os temulentos” vem me intrigando há muito

tempo. Como um a narrativa composta pela justaposição de um rol de

conhecidas piadas de bêbado poderia ser tomado como um prefácio? A

justaposição é de tal forma explícita neste texto que todos os seus parágrafos

começam com a conjunção enumerativa “E”.

Além dessa complexa relação entre o texto e o gênero prefácio, há ainda

a dificuldade, também comum ao leitor rosiano, de saber o sentido próprio da

palavra que compõe este título, temulento, termo que causa o mesmo

estranhamento inicial de tutameia, hipotrélico e aletria.

O primeiro termo, tutameia, é regional, apropriado poeticamente pelo

Rosa, no glossário do próprio livro; hipotrélico é um neologismo, cuja criação é

narrada no texto o qual intitula; aletria é no vernáculo o nome de uma massa; já

temulento é um latinismo, que significa encharcado, embebido, bêbado,

embriagado (cf. Araujo, 2001: 32). O termo condiz, portanto, com o conteúdo do

texto: piadas de bêbado.

Mas o pronome de primeira pessoa do plural, nós, a identificar

personagens, leitor e autor como bêbados ainda me causava estranheza. O viés

biográfico cairia bem ao colega Vinicius de Moraes, talvez, mas não ao Rosa.

Entretanto, em “Sobre a escova e a dúvida”, como vimos, ao segredar o modo

como lhe vieram suas estórias, Rosa afirma que “O recado do morro” fora

formado “talvez também sob razoável ação do vinho e do conhaque” (Rosa,

1967: 158).

Além disso, ao ler a correspondência do autor com seu tradutor italiano,

soube que o autor apreciava uma branquinha de vez em quando, e que, o

principal, identificava o buquê dionisíaco em sua obra:

182

Hem? Por exemplo, não sei se Você gosta, às vezes, de beber, um

pouco. Pelo retrato seu, que vi, parece-me que não. Parece-me que

Você é mais para o lado dos sóbrios, a não ser talvez um pò di vino, ou

um stregha. Se não, diria que talvez valesse a pena, agora, no acabar a

“bella copia”, encher bicchiere e experimentar a companhia de Sileno.

Não é que eu faça isso. Não fiz. Mas, como Você já viu, o nosso

“Corpo de Baile” tem no espírito e no bojo qualquer coisa de dionisíaco

(contido), de porre amplo, de enfática “desmesura” (Rosa apud

Bizzarri, 1981: 83).

O amigo responde dizendo que bebe, sim, aprecia com moderação a boa

bebida alcoólica de todas as partes do mundo, e aproveita para perguntar ao

autor onde seria possível encontrar a legítima januária, famosa cachaça mineira,

consumida pelo bando de Riobaldo. O Rosa gentilmente envia umas garrafas da

branquinha sertaneja ao italiano:

A januária já estaria aí com Você, como um dia estará, só ainda não

sei quando, não fosse o cuidado que a gente tem de ter na obtenção

da melhor, genuína e supra, capaz de não desmerecer uma fama

grande e justa, nesses tempos de falsificação e comercialização

indisciplinada e gananciosa. (A gente põe num copo, com pedaços de

gelo, fica para mim muito melhor que o uísque.) Beberemos à saúde

de tudo, de Diadorim, Otacília, Riobaldo (Rosa apud Bizzarri, 1981:

88-89).

Agora, importante: 3 pícolas garrafinhas da januária devem ir para

São Paulo, à sua procura. Veja se gosta. Encomendei a um amigo

meu, que veio de Montes Claros, de automóvel, elas chegaram bem.

Penso que gelada é sempre mais gostosa. É um pouco do sertão, em

todo o caso (Rosa apud Bizzarri, 1981: 100). 9

9 Tive a oportunidade de conhecer a cidade de Januária, onde fui falar sobre a obra do Rosa e a cultura sanfranciscana, em 2007. Na ocasião, ouvi estórias de pescadores na beira do rio, lindo, apesar de assoreado, e pude apreciar in loco a famosa cachaça local. As “curraleiras”, feitas nas roças, são as mais saborosas. Hoje existe até uma cachaça chamada Sagarana, boazinha, mas a que Riobaldo e os outros jagunços bebiam parece que não existe ou não é mais fabricada.

183

O tradutor muito se alegrou ao receber o presente, como afirma ao amigo

em resposta, agradecendo. Agradecida também fiquei eu, percebendo que ali

poderia se abrir uma trilha para a interpretação da obra rosiana. Eu já havia

ficado com a pulga atrás da orelha por causa de uma coisa que tinha visto no

prefácio “Sobre a escova e a dúvida”, no item em que o autor fala dos achados e

coincidências, e que agora posso trazer para a discussão.

Após falar dos mistérios da criação literária e das coincidências entre

ficção e realidade, Rosa faz um tipo de resenha de um lançamento da época,

Dona Sinhá e o Filho Padre, de Gilberto Freire (também publicado pela José

Olympio), que retrata justamente essas misteriosas coincidências, as quais

fizeram o autor abandonar, como vimos, a escrita de A fazedora de velas.

O livro de Freire conta a estória de um escritor que, depois de dar uma

entrevista divulgando seu próximo lançamento, cujos personagens seriam uma

mulher, Dona Sinhá, e seu filho padre, recebe a visita de uma senhora dizendo

que aquela era e história da vida dela.

A narrativa se constrói nestes dois planos, com tipos diferentes de letras

(redondo e itálico) para diferenciar as partes do livro que estava sendo escrito e

as partes que relatavam a relação do escritor com a “verdadeira” Dona Sinhá,

de quem ele acabou se aproximando.

Além de apresentar um mistério semelhante ao que lhe acontecera com o

livro inacabado, o Rosa encontrou outra coincidência entre aquele livro e “A

fazedora de velas”: um personagem comum, “o francês”. Pensei que aquela

estória de francês poderia ser uma pista: haveria um escritor francês que traria

luz para a leitura de Tutameia? Aquilo ficara esperando resposta.

A leitura de “Nós, os temulentos” levou-me a reparar na menção do Rosa

à bebida e ao dionisíaco de “Corpo de baile”, o que me fez lembrar de outra carta

ao tradutor italiano, em que Rosa menciona Rabelais para falar das congadas

retratadas em “O recado do morro”:

184

Onde poderia encontrar dados que caracterizem essas imaginações

populares?

Só, talvez, em Rabelais, nas narrações de sabaths, de bruxarias

medievais, sugestões de catedrais góticas, nas górgulas e carantonhas

(Bizzarri, 1981: 33).

A leitura de “Aletria e hermenêutica” havia me levado a pesquisar sobre

o cômico e a cultura popular, quando acabei me deparando com o famoso

estudo de Bakhtin sobre a obra de Rabelais.10

Como eu estava encafifada querendo encontrar um francês que me

auxiliasse na interpretação de Tutameia, pensei que esse francês pudesse ser

Rabelais. A presença dos gigantes no livro, como no conto “Grande Gedeão”,

reforçava minha desconfiança. Além disso, o Rosa era médico como Rabelais, e

devido a sua estatura avantajada, era muitas vezes descrito como gigante. Fui à

procura da obra do francês de que tratava Bakhtin (2008), a estórias dos

gigantes Gargantua e Pantagruel,11 para ver o que encontrava, sem saber o que

estava procurando, invocando Serendipty. E, como ler Tutameia é cambalear no

escuro, esperando encontrar o inesperado, no prólogo do primeiro livro de

Rabelais encontrei uma possível solução para o título “Nós, os temulentos”.

No texto, Rabelais convoca os leitores tratando-os por “bebedores

ilustres”, fórmula que irá usar também no prólogo do terceiro livro da obra, no

qual cita Diógenes e as Danaides, citados também no terceiro prefácio de

Tutameia.

Temulentos seriam então os leitores de Rabelais, pantragruelistas, grupo

ao qual pertencia Guimarães Rosa. O vocativo com que Rabelais inicia o texto,

“bebedores”, permite, portanto, a aproximação de “Nós, os temulentos” ao

chamado pantagruelismo, assim definido por Auerbach (1998: 246): 10 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: UnB, 2008. 11 RABELAIS, François. A vida de Gargântua e de Pantagruel; livro primeiro: mui horripilante vida do Grande Gargântua, pai de Pantagruel. Escrita por Mestre Alcofibras Nasier, extrator da quinta-essência – um livro repleto de pantagruelismo. Belo Horizonte: Itatiaia, 2003.

185

Aquilo que se oculta na obra, embora se comunique de mil maneiras,

é uma atitude de espírito, que o próprio Rabelais chama de

pantagruelismo: uma forma de captar a vida, que apreende

simultaneamente o espiritual e o sensível, que não deixa escapar

nenhuma das possibilidades que oferece.

Nesse sentido, temulentos somos nós todos, leitores de Rabelais, de Rosa,

do riscado da vida. Vejamos, portanto, o esclarecedor prólogo de Rabelais.

Transcrevo o texto na íntegra, a seguir, por considerar elucidativa esta

aproximação, a qual, até onde eu sei, não havia sido realizada pela crítica.

Bebedores ilustres e preciosíssimos bexigentos (pois a vós, não a

outros, se dedica o meu engenho): Alcebíades, no diálogo de Platão

intitulado O Banquete, louvando seu preceptor Sócrates (sem

controvérsia, príncipe dos filósofos), entre outras coisas disse ser ele

semelhante aos “silenos”. Silenos, para os antigos eram caixinhas, tais

como as que hoje vemos nas vendas dos boticários, tendo pintadas

umas figuras alegres e frívolas, como harpias, sátiros, gansos

ajaezados, lebres chifrudas, patos com cangalhas, bodes voadores,

veados atrelados e outras figuras semelhantes, nascidas da

imaginação, próprias para provocar o riso, como fazia Sileno, mestre

do excelente Baco. Dentro delas, porém, guardavam-se drogas

valiosas, como o bálsamo, o âmbar-cinzento, o amomo, o almíscar,

joias e outras preciosidades. Tal se dizia ser Sócrates, porque, quem o

visse por fora, e estimando apenas sua aparência exterior, não lhe

daria o mínimo valor, tanto ele era feio de corpo e ridículo em sua

aparência, com nariz pontudo, olhos de boi, cara de bobo, simples em

seus modos, rústico em suas vestes, parco de riquezas, infeliz com as

mulheres, inapto para todos os ofícios da república, sempre rindo,

sempre tomando seus tragos, por causa disso, sempre brincalhão,

sempre dissimulando o seu divino saber. Quem abrisse aquela caixa,

porém, lá dentro encontraria um bálsamo celeste e inapreciável, um

entendimento mais que humano, virtudes maravilhosas, coragem

invencível, sobriedade sem igual, contentamento certo, segurança

186

perfeita, incrível desprendimento com relação a tudo que os humanos

tanto prezam, tudo aquilo que tanto cobiçam e em prol do que

correm, trabalham, navegam e batalham.

A que propósito, em vossa opinião, vem este prelúdio e este

esclarecimento? É porque vós, meus bons discípulos, e alguns outros

doidivanas ávidos de lazer, lestes os divertidos títulos de alguns

livros de nossa invenção, como Gargântua, Pantagruel, Fesepinte, A

dignidade das braguilhas, e mui levianamente julgais que, dentro, não

se tratou senão de brincadeiras, fantasias e mentiras divertidas, visto

que, sem se examinar o conteúdo, o rótulo externo (isto é, o título)

insinuava zombaria e pândega. Não convém, todavia, encarar tão

levianamente a obra dos humanos, pois vós mesmos dizeis que o

hábito não faz o monge; pode alguém usar as vestes monacais, e por

dentro nada ter de monge, como pode um outro, vestido de capa

espanhola, nada ter que ver com a Espanha por sua coragem. Por

isso, é preciso abrir o livro e cuidadosamente verificar o que contém.

Quando conhecerdes a essência que ele encerra, vereis que vale bem

mais do que aquilo que a caixa prometia. Em outras palavras: as

matérias aqui tratadas não são fúteis, como o título sugere.

Sem dúvida, no sentido literal, achareis matérias bem divertidas, e

que correspondem bem ao nome, mas não vos fieis muito nelas, como

no canto das sereias, convém em alto sentido interpretar o que

porventura vos parece dito levianamente. Nunca abriste uma

garrafa? Pois é: o que importa é o conteúdo. Já vistes um cão

encontrando um osso com tutano? É, como diz Platão (lib. 2, De Rep.),

o animal mais filósofo do mundo. Se já vistes, podeis ter notado com

que devoção ele o olha, com que cuidado o guarda, com que fervor o

segura, com que prudência o parte, com que afeição o quebra, com

que diligência o chupa. O que o induz a assim agir? Qual o resultado

de seu esforço? Que pretende? Nada mais do que um pouco de

tutano. Na verdade, esse pouco é mais delicioso que todos os outros

muitos, visto que o tutano é o alimento elaborado com perfeição pela

natureza, como diz Galeno (III Facult. Nat. e XI De Usu Partium).

187

Seguindo esse exemplo, convém que sejais sábios, para farejar e

apreciar estes belos livros, de alto valor, fáceis de procurar, mas

difíceis de encontrar. Depois, por curiosa lição e meditação frequente,

romper os ossos e sugar o substancioso tutano: eis o que pretendo

dizer com esses símbolos pitagóricos, com fundada esperança de ser

feita com prudência e zelo a leitura, porquanto nela achareis outro

deleite, estudando a doutrina impenetrável, que vos revelará altos

segredos e mistérios horríficos, tanto no que concerne à nossa

religião, como ao estado político e à vida econômica.

Porventura acreditais que Homero, ao escrever a Ilíada e a Odisseia,

tivesse imaginado as alegorias que lhe atribuiriam Plutarco,

Heráclides Pôntico, Eustátio, Fortuno, repetidos mais tarde por

Poliziano? Se acreditais, bem longe estais da minha opinião, que é a

de que tais alegorias foram tão pouco sonhadas por Homero quanto o

foram, por Ovídio, em suas Metamorfoses, os Sacramentos do

Evangelho, conforme Frei Lubino, grande papalvo, se esforçou por

demonstrar, julgando ser possível encontrar gente tão idiota quanto

ele, ou (como diz o provérbio), uma tampa digna do caldeirão.

Se não acreditais, por que não fareis o mesmo com estas novas e

divertidas crônicas? Eis que, dizendo-as, não pensei senão em vós,

que porventura bebeis como eu bebo. Porque, na composição deste

livro senhoril, não perdi, e jamais empreguei um outro tempo, do que

aquele que gasto para tomar a minha refeição corporal, a saber,

bebendo e comendo. São estas as horas mais adequadas para escrever

sobre estas altas matérias e ciências profundas, como bem fez saber

Homero, paradigma de todos os filólogos, e Ênio, pai dos poetas

latinos, assim como testemunha Horácio, embora um grosseirão

tenha dito que seus “Odres” cheiravam mais a vinho do que a azeite.

Coisa idêntica disse um bufão dos meus livros: mas a merda para ele!

O odor de vinho, ó, como é mais saboroso, mais agradável, mais

atraente do que o do azeite!

E sinto-me muito mais lisonjeado, quando se diz que gasto mais

vinho do que azeite, do que ficou Demóstenes quando dele disseram

188

que gastava mais azeite do que vinho. Para mim, só me sinto honrado

e jubiloso por ter fama de ser um bom copo e um bom companheiro:

graças a isso sou bem recebido em todos os bons grupos de

pantagruelistas. Um rabugento disse de Demóstenes que as suas

orações fediam como a serapilheiras de uma galheta porca e suja. Por

isso, interpretai meus atos e meus ditos de maneira perfeitíssima:

reverenciai o cérebro caseiforme que vos oferece essas belas fantasias,

e na medida que estiver ao vosso alcance, conservai-me sempre

alegre.

E agora diverti-vos, meus queridos, e lede alegremente, para

satisfação do corpo e benefício dos rins. Mas escutai, sem vergonhas e

que a úlcera vos corroa: tratai de beber por mim, que eu começarei,

sem mais demora (Rabelais, 2003: 33-36).

Filósofo pantagruelista seria, de acordo com Rabelais, o cachorro que

quebra o osso para degustar o tutano. Esta imagem lembrou-me a temporada

em Aracaju, onde aprendi a apreciar a principal iguaria local: caranguejo. Para

usufruir de sua deliciosa, branca e tenra carne é preciso quebrar sua carapaça

com um martelo e depois chupar as patinhas, cabeludas, grudentas. Num nível

mais avançado, aprendi a abrir a cabeça, tirar o pulmão, o fel, as fezes e comer o

miolo do bicho com farinha, lambendo os beiços.

Mais esta significação pode ser atribuída à ilustre figura que orna as

páginas de Tutameia: um animal de que o homem se alimenta quebrando a

carapaça e sorvendo o tutano. Assim deve se comportar o leitor de Tutameia:

quebrar os hermetismos da língua até encontrar a essência da linguagem,

doadora de vida.

Voltemos ao texto de Rabelais. Assim como as Sereias oferecem a Ulisses,

o que o autor oferece aos leitores que atenderem seu convite, e adentrarem o

livro de espírito aberto, é o saber pleno, pois na leitura daquela obra eles

estariam “estudando a doutrina impenetrável, que vos revelará altos segredos e

mistérios horríficos, tanto no que concerne à nossa religião, como ao estado

político e à vida econômica”.

189

Assim como o irresistível canto, o que encanta e engana nestes textos são

os títulos, embalagens risíveis, e as palavras divertidas, que escondem em seu

bojo mensagens muito importantes. Por isso, “convém em alto sentido interpretar

o que porventura vos parece dito levianamente”. Como vimos, isto também nos diz

“Aletria e hermenêutica”, quando Rosa compara as estórias a anedotas de

abstração, que levam o leitor a realizar o pulo do cômico ao excelso.

A leitura do prólogo de Gargântua, de Rabelais, num diálogo com “Nós,

os temulentos”, prefácio de Tutameia, de Guimarães Rosa, lança nova luz na

interpretação deste texto, o que por sua vez realça o sentido das terceiras estórias:

despertar o leitor para a questão originária, que move a existência humana:

apropriar-se do que lhe é próprio, consumar seu destino, ser feliz.

Com essa nova perspectiva, podemos agora partir para a leitura do texto,

procurando desocultar as questões que ele coloca, que são, como veremos, as

questões que se colocam na escuta do mito de Ulisses: a procura do sentido da

existência, o destino como travessia, o homem como ser-do-entre.

O ser humano é ambíguo: é ente e não-ente, está e não-está, tem

limite e não-limite. Por isso, em alemão, existência diz-se Da-sein: o ser

do entre, o entre-ser (Castro, 2011: 26).

A odisseia de Chico, o herói

“Nós, os temulentos”, pude já presenciar, faz muito sucesso nas

dramatizações do Grupo Miguilim, de Cordisburgo, que emprestam a legítima

oralidade mineira aos textos do autor consagrado. O público vai às gargalhadas

com o rol de anedotas de bêbado que o autor desfia, sem nada dever às

apresentações humorísticas tão ao gosto dos ouvintes. Penso que este texto

ficaria ótimo se interpretado por Ari Toledo. Sem uma gota de sangue, traição

ou violência, a leveza cômica dum palco circense encontra aqui os leitores, um

momento de descanso em meio a tanta tragédia. Mas ao final há um certo

desconcerto, alguma coisa parece estar errada.

190

Ouçamos o texto de Rosa. Assim ele inicia o referido prefácio:

Entendem os filósofos que nosso conflito essencial e drama talvez único seja

mesmo o estar-no-mundo. Chico, o herói, não perqueria tanto. Deixava de

interpretar as séries de símbolos que são esta nossa outra vida de aquém-

túmulo, tãopouco pretendendo ele próprio representar sob farsa. De sobra

afligia-o a problemática corriqueira quotidiana, a qual tentava, sempre que

possível, converter em irrealidade. Isto, a pifar, virar e andar, de bar a bar

(Rosa, 1967: 101).

Assim como Ulisses, Chico realiza uma travessia cheia de perigos e

obstáculos, até voltar para casa. Buscando escapar da “sozinhidão”, vai

perambular pela rua, tirando onda com todos que cruzavam seu caminho: o

padre, a mulher feia, em cada encontro uma nova piada velha, bebendo para

esquecer do que já nem mais lembrava.

E, vindo, noé, pombinho assim, montado-na-ema, nem a calçada nem a rua

olhosa lhe ofereciam latitude suficiente. Com o que, casual, por ele perpassou

um padre conhecido, que retirou do breviário os óculos, para a ele dizer: -

Bêbado, outra vez... – em pito de pastor a ovelha. – É? Eu também... – o

Chico respondeu, com, báquicos, o melhor soluço e sorriso.

E, como a vida é também alguma repetição, dali a pouco de novo o

apostrofaram: - Bêbado, outra vez? – E: - Não senhor... – o Chico

retrucou - ... ainda é a mesma.

E, mais três passos, pernibambo, tapava o caminho a uma senhora, de

paupérrimas feições, que em ira o mirou, com trinta espetos. – Feia! – o

Chico disse; fora-se-lhe a galanteria. – E você, seu bêbado!? – megerizou a

cuja. E, aí, o Chico: - Ah, mas... Eu?... Eu... amanhã, estou bom... (Rosa,

1967: 101).

Seguindo sua jornada, encontrou seus “copoanheiros”, João e José, e com

eles seguiu a via sacra, agora no carro de José, já quase apagando, mas que toma

uma coca-cola para melhorar.

191

E – quem sabe como e a que poder de meios – entraram no auto, pondo-o em

movimento. Por poucos metros: porque havia um poste. Com mais o milagre

de serem extraídos dos escombros, salvos e sãos, os bafos inclusive. – Qual

dos senhores estava na direção? – foi-lhes perguntado. Mas: - Ninguém

nenhum. Nós todos estávamos no banco de trás... (Rosa, 1067: 102).

Depois do acidente automobilístico, cada um dos amigos segue seu

rumo. Os outros vão para casa, o Chico segue perambulando a esmo – assim

como Ulisses na Odisseia, demora a voltar para casa.

Segue falando com estranhos, procurando o que não perdeu,

perambulando em ziguezague, de cá para lá, confunde o chão e o céu, anda na

sarjeta com um pé na calçada pensando estar coxo, avançando, recuando,

caindo, levantado, topando com as pessoas, sempre fazendo piadas, que pelo

inusitado levam a questionar as convenções estabelecidas, relativas, como

tempo e espaço, levianamente tomadas pelo comum como absolutas:

E avistou um avistado senhor e com ele se abraçou: - Pode me dizer onde é

que eu estou? – Na esquina da 12 de Setembro com a 7 de Outubro. –

Deixe de datas e detalhes! Quero saber é o nome da cidade! [...]

E atravessou a rua, zupicando, foi indagar de alguém: - Faz favor, onde é

que é o outro lado? – Lá... – apontou o sujeito. – Ora! Lá eu perguntei, e

me disseram que era cá... [...]

E, vai, uma árvore e ele esbarraram, ele pediu muitas desculpas. Sentou-se a

um portal, e disse-se, ajuizado: - É melhor espera que o cortejo todo

acabe de passar... [...]

E deteve mais um passante e perguntou-lhe a hora. Daí: - Não entendo... –

ingrato resmungou. – Recebo respostas diferentes, o dia inteiro.

(Rosa, 1967: 103-104).

192

As questões do Chico acerca do óbvio nos levam a questionar a

obviedade do óbvio, deixam evidente o arbítrio das convenções inquestionadas.

A irrupção do inesperado manifesta-se nos chistes de Chico, levando o leitor ao

questionamento de suas aparentes verdades.

Somos um tento ou cento temulentos? Até que ponto estamos mesmo

sóbrios, conscientes, e não perdidos como o Chico, esquecidos do sentido do

ser? A temulência do Chico é uma hipérbole do sono cotidiano.

Bêbados todos nós o somos, se nos deixamos emplastrar na goma

arábica da vida cotidiana. Temulento é o homem humano, anulado

pela mediocridade generalizada. O fato de as piadas encadeadas

serem batidas ressalta a ideia da temulência geral em que nos

encontramos. Precisamente, como já se acentuou, o trajeto que todas

as estórias descrevem é a travessia do nada ao tudo (Faria, 2006: 238).

Por mais que fuja de si e adie a hora do retorno ao que lhe está destinado,

uma hora o homem precisa voltar para casa. É quando a estrada acaba.

Ulisses, com sua natural astúcia e o auxílio dos deuses, retorna depois de

uma longa jornada, por lugares desconhecidos, distantes do lar. Ao chegar,

encontra a família à sua espera, luta e reassume seu lugar de direito.

Já Chico percorre os caminhos de sempre, a via sacra dos bares,

buscando o advento do inesperado escondido sob as aparências. Como o

cachorro atrás do tutano, como a comer caranguejo, ele vai quebrando tudo que

constitui o amálgama amorfo da sociedade anônima, “removendo as camadas

de cinzas com que pintaram nossos sentidos”, com o sopro de suas palavras

revigora a brasa da linguagem, luz do fogo que ilumina o oculto no clareado.

O herói enfim chega ao lar, mas ninguém o espera, nem esposa, nem

filho, só a solidão amarga. Ao se ver no espelho não se reconhece, toma a

imagem como um intruso, atira-lhe uma sapatada, e finalmente apaga.

193

E, caindo em si e vendo mulher nenhuma, lembrou-se que era solteiro, e de

que aquilo seriam apenas reminiscências de uma antiquíssima anedota.

Chegou ao quarto. Quis despir-se, diante do espelho do armário: - Que?! Um

homem aqui, nu pela metade? Sai, ou te massacro!

E, avançando contra o armário, e vendo o outro arremeter também ao seu

encontro, assestou-lhe uma sapatada, que rebentou com o espelho nos mil

pedaços de praxe. – Desculpe, meu velho. Também, quem mandou você

não tirar os óculos? – o Chico se arrependeu.

E, com isso, lançou: tumbou-se pronto na cama; e desapareceu de si mesmo

(Rosa, 1967: 104).

Nas anedotas do terceiro prefácio, “Nós, os temulentos”, o discurso

dionisíaco do filósofo embriagado conduz, de riso em soluço, a diante do

espelho: imagem que ao leitor rosiano evoca a questão essencial: “você chegou a

existir?” (Rosa, 1981: 68). O espelho, que o personagem encontra no final de sua

travessia, reporta ao conto de Primeiras estórias, em que se questionam os limites

entre eu e outro, realidade e ilusão, na procura no sentido da existência.

O estar-no-mundo – Dasein – é o drama não só de Chico, o “herói” do

prefácio, mas de toda a humanidade, e portanto, de todos os

personagens das estórias. Como estar-no-mundo e “chegar a existir”,

segundo o “julgamento-problema” proposto pelo narrador de “O

espelho”(Rosa, 1978a: 68). [...] “Converter em irrealidade” a rasa e

insatisfatória realidade, como faz o Chico através da bebida, ilude a

“corriqueira problemática quotidiana” (p. 101), mas não a resolve.

Para a solução, o que se demanda é a “realidade superior”, que abre

“dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento” (p. 3)

(Faria, 2005: 236).

O filósofo Henri Bergson (2001), ao refletir sobre o humorismo a partir

das comédias de Molière, elabora uma bela imagem poética para esclarecer o

efeito do riso nas pessoas. Ele compara o humor à espuma das ondas do mar,

leve e linda, mas que deixa na boca um travo de sal: é quando, depois de rirmos

do outro, percebemos que rimos de nós mesmos. Este travo de sal levaria o

194

público a refletir sobre sua postura diante da existência, corrigindo o que fosse

motivo de chacota, já que todos temem ser ridicularizados. No caso deste

hilário prefácio, acredito que, além de pensar duas vezes antes de tomar um

porre, o que este texto nos sugere é que estamos lançados na realidade, sem

termos certeza de nada, a não ser da travessia, em que se realiza nosso destino.

Para nós não há outro destino senão procurar o que todos os

pensadores e poetas procuraram em tudo que pensaram e poetaram.

Isso exige de nós, o termos de nos confrontar com o nosso destino,

com o que em nós, em cada um, acontece inauguralmente (Castro,

2011: 170).

Terceira margem

O tema da travessia comparece em muitas das Terceiras estórias. Além do

prefácio “Nós, os temulentos”, acima abordado, que “conta a odisseia que para

um borracho representa a simples volta a casa” (Rónai in Rosa, 1967: 196), está

presente também no item IV de “Sobre a escova e a dúvida”, que narra a

travessia de um transeunte paranoico a caminho do trabalho, em pleno carnaval

carioca, topando com iminentes perigos, achando-se com pouca sorte,

insatisfeito, perdido na multidão de formas, esbarrando-se em possíveis

ameaças – o gigante que topa na calçada, o ônibus desenfreado, o taxista

desconfiado, o colega de trabalho -, até que se depara com a inesperada musa,

doação de Apolo:

Mas é Apolo quem guia as musas. Dizer e dizer – Walfrida. Imperava ela de

costas, embrulhei olhos em seu vestido, outroverde, do que as alfaces mais

ofertam. Em tir-te também as pernas com sardas, ancas, cintura, o

bamboleio. Tudo de cor se seguiu. Isto é: o rato, rápido; o gato mágico. Oh

que para desejável amorável pervê-la eu precisara estar recuado a raso grau.

Mas todos somos bobos ou anões em volta do rei. Do que nem ela não se

admirava, de eu antes desazado correr tão tortas linhas; pois noivamos, no

dia mesmo, lindo como um hino ou um ovo. Tudo está escrito; leia-se, pois,

principal, e reescreva-se (Rosa, 1967: 155).

195

Nos caminhos cotidianos, os personagens dessas duas narrativas, um

bêbado e outro perdido em devaneios, enxergam nos episódios cotidianos o

inexplicável mistério da realidade, a compor incessantes e sempre novas e

imprevisíveis realizações. Seguem atravessando o mar da realidade, buscando

com o pensamento extrair o mel da existência. Se Chico sucumbe solitário ao

escuro de si mesmo, partido o espelho, aqui o transeunte encontra o amor no

fim do túnel. Consumação de vida e de morte, amor e esquecimento, chegar ao

termo é alcançar a plenitude.

Recorrente em toda a obra rosiana, encontramos a questão da travessia,

em Tutameia, além disso, ainda em contos como “Ripuária”, “Barra-da-Vaca” e

“Antiperipleia”. Percebo que esta questão se configura de diferentes modos na

obra de Guimarães Rosa.

Em contos como “A terceira margem do rio”, de Primeiras estórias, e

“Ripuária” e “Barra-da-Vaca”, de Terceiras estórias, os personagens não

completam simplesmente a travessia de um lado a outro da margem. Eles

permanecem no entre, presos a algo inefável que os impede de atravessar e

seguir adiante. Vigoram suspensos no nada. O vento do amor é a brisa que toca

a vela do barco e o ajuda a completar a jornada.

No romance Grande sertão: veredas, como vimos pelo diálogo com a

leitura de Castro (1976), a travessia do sertão por Riobaldo é a travessia do mar

por Ulisses. As veredas são os caminhos de floresta por onde o homem humano

transita na sua passagem pela terra, onde a única certeza possível é o percurso

que se realiza na e pela travessia.

Em vez de jagunços, quem atravessa o sertão em Tutameia são os

vaqueiros, liderados por Ladislau (nome do santo do dia de nascimento de

Rosa). Este personagem aparece guiando a comitiva em algumas das Terceiras

estórias, como “Intruje-se” e “Vida ensinada”. Nestes contos, o líder da comitiva

comporta-se como o comandante de uma esquadra, a transportar gado e gente

pelo sertão afora, lidando com as adversidades e os desafios que eclodem pelo

caminho, usando de astúcia para vencer as batalhas.

196

Referente ainda ao mito de Ulisses, a questão da Escuta é abordada em

contos como “Grande Gedeão”, como vimos, e os temas náuticos surgem em

contos como “Azo de almirante” e “Sota e barla”.

Findo o prazo, o que posso fazer agora é deixar indicadas essas

recorrências, prometendo retomá-las em momento oportuno.

Convido também o leitor a re-visitar as Terceiras estórias, pois muito do

que lá está aqui não deveu caber.

197

Conclusão

Eu estou depois das tempestades. O senhor nonada

conhece de mim; sabe o muito ou o pouco? O

Urucuia é ázigo... Vida vencida de um, caminhos

todos para trás, é história que instrui vida do senhor

algum? O senhor enche uma caderneta... O senhor

vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele? Tudo sai

é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do

Céu. Eu sei.

(Rosa, 1986: 527).

A leitura de Tutameia sempre foi para mim muito mais do que um

trabalho acadêmico para conseguir um diploma. É um honesto e humilde

exercício de escuta desta obra, como projeto de vida. Desde o momento em que

pus as mãos neste livrinho, vi que jamais iria me livrar dele. Chegando ao

termo do doutorado, apresento o que pude realizar até aqui, na esperança de

possibilidades futuras de novas abordagens desta obra, tão densa, cheia de

silêncios inexplorados.

A crítica ainda não deu a devida atenção às Terceiras estórias, e as

tentativas de análises classificatórias realizadas pela maioria dos poucos que

ousaram tratar deste enigmático livro, se por um lado trazem informações

esclarecedoras, por outro lado não alcançam a essência da obra, que a todo o

momento nos convoca a romper o gesso das classificações.

A via da Poética trouxe para meu universo a possibilidade da abordagem

aqui apresentada, num diálogo criativo com a obra, deixando que ela me

levasse num caminho tortuoso, às escuras, num exercício hermenêutico de

extrair o sentido da verdade que eclode no inesperado da realidade. São tantas

as questões e os desvios ao longo do percurso da leitura, que para chegar a este

final tive que muitas vezes, como Ulisses, atar-me ao mastro e seguir adiante,

pois se me rendesse a cada apelo insinuante jamais chegaria ao final do texto.

198

Espero que os exercícios de leitura aqui apresentados possam servir de

auxílio para os futuros leitores de Tutameia, que certamente irão trazer para a

luz novos sentidos por mim insuspeitados.

O fim da escrita da tese é o término de um longo ciclo, e depois de

concluir essas páginas não sei o que o destino me reserva. No nada que se me

apresenta, vislumbro miríades de possibilidades de vir a ser, lançada que estou

no empenho de consumar meu destino.

Depois do prazeroso, porém árduo, trabalho de leitura e releitura de

Tutameia, do enfrentamento do desafio de me embrenhar nos textos de

Heidegger, de perceber que muito do que eu não entendia desde sempre eu já

sabia, depois de me jogar de corpo e alma na elaboração deste texto, muitas

vezes me sentindo miudinha diante da grandiosidade das questões abordadas,

na minha limitada compreensão tentei figurar um texto com pés e cabeça, mas

também com olhos de coruja e patas de caranguejo.

O operar de Tutameia não se faz na linearidade nem nas categorias

atributivas. Como obra de arte que é, seu apelo se dá num jogo de esconde-

esconde, em que o que não se mostra é o que se dá a ver. Para fugir às

armadilhas das classificações sistemáticas, e ao mesmo tempo necessitando

encontrar uma ordem para encaminhar o texto, após várias tentativas, acabou

se configurando a ordem dos mitos, que segui na abordagem das Terceiras

estórias. Com isto, o mito de Ulisses foi o último a ser abordado.

A complexidade e a riqueza de questões colocadas por este mito

merecem uma aproximação mais demorada, num diálogo não só com Tutameia,

mas também com todo o conjunto da obra rosiana. Assim como Ulisses em sua

travessia encontra os conselhos de Hermes e Atena, assim o leitor deste livro

encontra ao longo da leitura a coruja e o caranguejo, a lembrar que é preciso

manter sempre os olhos abertos para enxergar no escuro, com a luz do

pensamento, e não esquecer que a travessia não se faz em linha reta nem em

direções previsíveis. Só com astúcia o homem alcança o que lhe é próprio.

199

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