o que pode a clínica

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O que pode a clínica? A posição de um problema e de um paradoxo. Algo que se passa entre o Corpo, a Arte e a Clínica: é neste interstício da passagem, neste entre- dois, ponto ilocalizável ou não lugar (um u-topos) onde acreditamos a experiência da clínica se situa. É muito difícil, talvez mesmo impossível, situar a clínica. Daí ser melhor substituir a pergunta “onde a clínica se passa” por essa outra: “o que se passa na clínica?”. Essa pergunta para nós, mais adequada, se desdobra numa outra: o que pode a clínica? Pergunta paráfrase que nos evoca Espinoza e uma nova dobra da questão: o que pode um corpo? Modulação de nossa questão inicial, ela se justifica pelo fato de que toda experiência clínica é uma experiência com as afecções da existência ou com isso que se produz a partir de nossa posição no mundo, como corpo em encontro com outros corpos que assim se afetam de modo alegre ou triste. O que pode um corpo? Espinoza nos propõe esta pergunta como índice tanto de nossa ignorância quanto de nossa experiência paradoxal conosco mesmo. Eis meu corpo afirmação que nos lança de imediato na experiência do paradoxo, pois quem diz isso? Quem afirma ter um corpo? Esse que afirma tendo um corpo se apreende como tal, sendo um corpo? Esse que se diz ser um corpo se sente efetivamente nos limites desta forma física? E, diante desta situação embaraçosa, somos como que impelidos a assumir uma das duas alternativas: ou nos refugiar na solução cartesiana do dualismo, ou assumir a situação paradoxal de sermos e não sermos a um só tempo este corpo. Esta segunda alternativa se justifica no fato de nos sentirmos fechados nos limites desta forma corpórea, dela, no entanto, sempre fugindo pela força que em nós nos impulsiona para além. Ímpeto que nos anima a este despregar-se cotidiano e glorioso tal como o gesto sublime que na Vitória de Samotrácia[1] permite que leveza e peso, transparência e opacidade, presença e ausência, carne e pedra se distingam mas não se separem. Assim é a experiência paradoxal com o corpo: estar nele contido, mas fazendo deste pertencimento uma abertura. Espinoza no escólio da proposição 2 da 3a parte da Ética (1661-1665) afirma: “Ninguém, é verdade, até o presente determinou isto que pode o Corpo, quer dizer, a experiência não ensinou a ninguém, até o presente isso que, pelas únicas leis da natureza considerada enquanto somente corporal, o corpo pode fazer e isso que ele não pode fazer, a menos sendo determinado pela alma. Ninguém de fato conhece tão exatamente a estrutura do corpo que tenha podido explicar todas as funções, para não dizer nada disso que se observa muitas vezes nas feras que ultrapassa em muito a sagacidade humana, e disso que muito freqüentemente fazem os sonâmbulos durante o sono, que eles não ousariam durante a vigília, e isso mostra bastante que o Corpo pode, pelas únicas leis de sua natureza, muitas coisas que causam à sua alma estupefação” *2+. Espinoza assim faz nossa declaração de ignorância, apontando para um “mais além” do conhecimento, ou para este ponto cego onde o pensamento se apresenta em sua dimensão inconsciente. Em seu anti-cartesianismo, é um crítico da consciência e de toda moral assentada na dominação das paixões pela reflexão do espírito. Sua tese paralelista refuta a hierarquia entre corpo e alma, fazendo prova disto ao tomar o corpo como modelo de seu pensamento. E por que este privilégio metodológico? Porque o corpo supera sempre o conhecimento que temos dele,

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o Que Pode a Clínica Psicologica

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  • O que pode a clnica? A posio de um problema e de um paradoxo. Algo que se passa entre o Corpo, a Arte e a Clnica: neste interstcio da passagem, neste entre-dois, ponto ilocalizvel ou no lugar (um u-topos) onde acreditamos a experincia da clnica se situa. muito difcil, talvez mesmo impossvel, situar a clnica. Da ser melhor substituir a pergunta onde a clnica se passa por essa outra: o que se passa na clnica?. Essa pergunta para ns, mais adequada, se desdobra numa outra: o que pode a clnica? Pergunta parfrase que nos evoca Espinoza e uma nova dobra da questo: o que pode um corpo? Modulao de nossa questo inicial, ela se justifica pelo fato de que toda experincia clnica uma experincia com as afeces da existncia ou com isso que se produz a partir de nossa posio no mundo, como corpo em encontro com outros corpos que assim se afetam de modo alegre ou triste. O que pode um corpo? Espinoza nos prope esta pergunta como ndice tanto de nossa ignorncia quanto de nossa experincia paradoxal conosco mesmo. Eis meu corpo afirmao que nos lana de imediato na experincia do paradoxo, pois quem diz isso? Quem afirma ter um corpo? Esse que afirma tendo um corpo se apreende como tal, sendo um corpo? Esse que se diz ser um corpo se sente efetivamente nos limites desta forma fsica? E, diante desta situao embaraosa, somos como que impelidos a assumir uma das duas alternativas: ou nos refugiar na soluo cartesiana do dualismo, ou assumir a situao paradoxal de sermos e no sermos a um s tempo este corpo. Esta segunda alternativa se justifica no fato de nos sentirmos fechados nos limites desta forma corprea, dela, no entanto, sempre fugindo pela fora que em ns nos impulsiona para alm. mpeto que nos anima a este despregar-se cotidiano e glorioso tal como o gesto sublime que na Vitria de Samotrcia[1] permite que leveza e peso, transparncia e opacidade, presena e ausncia, carne e pedra se distingam mas no se separem. Assim a experincia paradoxal com o corpo: estar nele contido, mas fazendo deste pertencimento uma abertura. Espinoza no esclio da proposio 2 da 3a parte da tica (1661-1665) afirma: Ningum, verdade, at o presente determinou isto que pode o Corpo, quer dizer, a experincia no ensinou a ningum, at o presente isso que, pelas nicas leis da natureza considerada enquanto somente corporal, o corpo pode fazer e isso que ele no pode fazer, a menos sendo determinado pela alma. Ningum de fato conhece to exatamente a estrutura do corpo que tenha podido explicar todas as funes, para no dizer nada disso que se observa muitas vezes nas feras que ultrapassa em muito a sagacidade humana, e disso que muito freqentemente fazem os sonmbulos durante o sono, que eles no ousariam durante a viglia, e isso mostra bastante que o Corpo pode, pelas nicas leis de sua natureza, muitas coisas que causam sua alma estupefao *2+. Espinoza assim faz nossa declarao de ignorncia, apontando para um mais alm do conhecimento, ou para este ponto cego onde o pensamento se apresenta em sua dimenso inconsciente. Em seu anti-cartesianismo, um crtico da conscincia e de toda moral assentada na dominao das paixes pela reflexo do esprito. Sua tese paralelista refuta a hierarquia entre corpo e alma, fazendo prova disto ao tomar o corpo como modelo de seu pensamento. E por que este privilgio metodolgico? Porque o corpo supera sempre o conhecimento que temos dele,

  • sempre nos surpreendendo como fazem as feras e os sonmbulos. E se h um para alm do que conhecemos de nosso corpo, podemos inferir eis a o mtodo que Deleuze designa de materialismo[3] que assim como h um fora do conhecimento do corpo que nos surpreende como a sua potncia, h tambm um fora do esprito, tambm uma fora, para alm das condies dadas da conscincia. H, portanto, uma fora inconsciente no esprito assim como h uma potncia insuspeita do corpo. Espinoza um pensador do corpo e do inconsciente. Sua crtica noo de conscincia identifica esta ltima ao domnio da iluso. A conscincia nos ilude porque opera ilusoriamente, e opera assim porque conhece somente os efeitos ignorando as causas. Conhecer pelas causas , segundo o filsofo, conhecer pela composio das coisas. De que partes as coisas so compostas? Como estas partes se relacionam? Cada coisa extensa assim como cada idia se caracteriza por relaes de combinao, por modos de conexo. Conhecer , ento, conhecer a composio, ou por outra, conhecer a ordem das causas conhecer a ordem de composio e decomposio das relaes que constituem a natureza. Na primeira pgina da tica, Espinoza apresenta 6 definies que sero os pilares de sua construo. Na 3a., 5a. e 6a. definies lemos respectivamente: (3a) Entendo por substncia isto que em si e concebido por si: quer dizer isso cujo conceito no tem necessidade do conceito de uma outra coisa, do qual ele deve ser formado; (5a.)Entendo por modo as afeces de uma substncia, dito diferentemente isto que em uma outra coisa, por meio da qual ele tambm conhecido; (6a.) Entendo por Deus um ser absolutamente infinito, quer dizer uma substncia constituda por uma infinidade de atributos cada um exprimindo uma essncia eterna e infinita. Todas as coisas, coisa pensante ou coisa extensa, um modo de ser, portanto, uma modulao da substncia, um grau intensivo ou efeito expressivo dela. Como tal todo modo se explica pelo que lhe causa, isto , o modo uma explicao da substncia, enquanto a substncia em si tem toda a realidade complicada. No comentrio que Deleuze faz da obra de Espinosa no livro Spinoza et le problme de l expression[4], o captulo XIV dedica-se a uma digresso acerca do problema do corpo. Tentar responder pergunta o que pode um corpo? nos obriga, segundo Deleuze, a pensar um sistema rigoroso ao modo de um gemetra de equivalncias. Essas equivalncias inicialmente dizem respeito a como Espinoza define um corpo enquanto um modo finito ou um modo existente. H uma teoria da expresso em Espinoza ou uma teoria da modulao. A filosofia espinozista toma toda a realidade existente como modulaes ou expresses da substncia divina. O ser uno em sua potncia de se desdobrar, de se expressar em modos finitos que guardam, enquanto graus da potncia divina, a sua infinitude. Segundo Deleuze (1968) h duas trades expressivas do modo finito. Na primeira, os existentes, tal como um corpo, se definem como: a) tendo uma essncia que um grau de potncia; b) tendo uma relao caracterstica, particular, na qual a essncia se exprime no existente; c) tendo um conjunto de partes extensivas que compem a existncia do modo. Esta trade se equivale a uma outra que assim coloca o modo existente: a) tendo uma essncia que um grau de potncia; b) se exprimindo por um certo poder de ser afetado; c) tendo esse poder a cada instante preenchido por afeces. Dessa equivalncia podemos concluir que o corpo enquanto um grau de potncia se define por um modo de por em relao, que equivale a um poder de afetar e de ser afetado, de tal maneira que as partes extensivas que compem este corpo garantem a ele, a cada instante, afeces que preenchem o poder de afetar e ser afetado. Deleuze chega, portanto, a essa outra equivalncia: perguntar o que pode um corpo equivale a perguntar qual sua estrutura, ou por outra, como ele se compe como corpo afetivo.

  • Se queremos parafrasear a pergunta espinozista propondo esta outra: o que pode a clnica?, a argumentao das equivalncias entre as duas trades do modo finito nos leva seguinte proposio: a clnica se define por um modo de por em relao, isto , por um poder de afetar e ser afetada; por um conjunto de afeces que tanto a define quanto por ela tomado como seu objeto de afeco, seu ponto de incidncia. Perguntar o que pode a clnica o mesmo que perguntar do que a clnica composta, o que equivale, por sua vez, a perguntar como ela pode afetar e ser afetada e que conjunto de afeces exprimem a sua essncia. Alm disso, enquanto atitude, enquanto tica de interveno, a clnica se apresenta como uma experincia de libertao (no sentido foucaultiano do termo[5]) do modo existente, isto , uma experincia de retomada do conhecimento pela causa, de retomada do plano de composio tanto dos que lhe demandam interveno quanto de si mesma enquanto instituio, enquanto realidade existente. O que queremos dizer que o que caracteriza a clnica seu ser de composio ou seu conjunto de afeces isso mesmo que ela toma como seu problema. Nesta operao de desdobramento de si, debruada sobre o seu prprio plano de composio, a clnica se efetiva em um movimento de modulao que impe a variao tanto de quem lhe demanda interveno quanto da instituio clnica ela mesma. Esta afirmao segue numa dupla direo: a do plano transdisciplinar da clnica e a da definio do objeto da clnica como hbrido e paradoxal. O plano transdisciplinar da clnica[6] Perguntar o que pode a clnica colocar em questo os seus limites: quais so os limites da clnica que uma vez ultrapassados nos comprometeriam com o no-clnico? Pergunta que nos indica o esforo de delimitao de um campo onde a clnica se distingue e separa da arte, da cincia, da filosofia, da poltica. Mas manter tais limites no enclausurar a clnica l onde ela fenece? Como fecha-la em um campo, uma vez que por definio ela no se totaliza na unidade seja de um conceito veja os conceito de inconsciente seja de uma escola que enunciaria a verdade de seu objeto? Neste sentido, o plano da clnica se estende por hibridaes, estando sempre na passagem de seu domnio para outro, isto que chamamos de transdisciplinaridade. Forando sempre os seus limites ou operando no limite, a clnica se apresenta como uma experincia do entre-dois que no pode se realizar seno neste plano onde os domnios do eu e do outro, de si e do mundo, do clnico e do no clnico se transversalizam. Da a dificuldade da pergunta onde a clnica se passa? e a sua substituio por o que se passa na clnica?. E o que ali se passa tem a forma do paradoxo do que no ao mesmo tempo[7]. O que queremos dizer que o plano da clnica no pode ser estranho ao indecidvel de seu objeto que parece resistir a toda tentativa de definitiva apreenso nos limites de uma identidade, que persiste como figura paradoxal sendo igual e diferente de si ao mesmo tempo, o que bem se expressa a partir do conceito inaugural de inconsciente.

  • O hbrido e paradoxal objeto da clnica J em Freud encontramos a definio do objeto da clnica marcado por este carter hbrido e paradoxal. No texto metapsicolgico de 1915[8], o autor apresenta a afirmao paradoxal do primado do inconsciente na teoria do aparelho psquico ou, por outra, a afirmao de que h o primado do que segundo, isto , do que engendrado, produzido. Lemos no texto freudiano uma descrio do inconsciente que no pode deixar de considerar a operao que o engendra e que Freud nomea de recalcamento. O paradoxo, portanto, este: para ser primeiro preciso ser segundo.Tematizar o conceito de inconsciente necessariamente por em questo o paradoxo de sua produo, isto , esta situao em que se produz o prprio agente produtor. A montagem do plano transdisciplinar da clnica se sustenta, aqui, em duas afirmaes: (1) o inconsciente produtor e produzido. essa instncia de produo sem agente produtor que dela se separe; (2) Assumir a dimenso paradoxal do inconsciente recusar qualquer dualismo, oposio ou contradio. No paradoxo aqui se apresenta na forma desta situao em que os domnios que se distinguem no se separam. Seguindo o texto de 1915, o inconsciente se define pela operao de recalcamento, isto , pelo processo que no consiste em cancelar, em aniquilar uma representao representante da pulso, mas sim em impedir-lhe que se torne consciente (Freud, 1998, p.161). Esta operao dita de recalcamento originrio no apenas garante contedos para o inconsciente como lhe constitui. Esse momento da formulao freudiana, aposta, justamente, numa dinmica de produo do inconsciente. Lemos em Freud uma definio positiva do inconsciente que no o coloca a reboque da conscincia. No entanto, afirmar o primado do inconsciente, para Freud, parece no significar, paradoxalmente, tom-lo como 1. H um primado do inconsciente, porm o inconsciente segundo, pois h uma operao de produo do inconsciente. O inconsciente produzido, mas produzido por quem? Freud no deixa dvidas quanto resposta: o inconsciente produzido inconscientemente. Para ser 1 preciso ser 2. Para entendermos esta dimenso paradoxal do inconsciente importante pensar sua relao com a pulso. A relao com a pulso expressa o hibridismo do inconsciente nas formulaes de Freud. Alis, o prprio conceito de pulso atesta este hibridismo, j que diz respeito a uma posio limtrofe, irremediavelmente indeterminada entre o somtico e o psquico, entre o dentro e o fora do aparelho psquico. A relao de hibridismo entre pulso e inconsciente se expressa no mecanismo de produo do inconsciente, isto , na inseparabilidade entre inconsciente como produo e como produto. Mas para sustentarmos tal afirmao no nos afastando da dimenso paradoxal do problema, preciso evitar a depurao da noo de inconsciente pelas vias da sua desmaterializao. preciso articular o inconsciente dimenso produtiva da pulso. Entretanto, ao distinguir pulso (produo) de inconsciente (produto), no podemos tentar separ-los. A pulso por seu carter hbrido se apresenta para Freud na forma de uma estranha arquitetura. Destaquemos duas definies dadas pulso: (a) conceito situado na fronteira entre o mental e o somtico, sendo tomada como representante psquico dos estmulos endossomticos. Esta definio pode ser lida em Pulses e

  • seus destinos*9+, assim como na anlise do caso Schreber *10+ onde tambm afirmado que a pulso o representante psquico de foras orgnicas ; (b) enquanto conceito da delegao do somtico no psquico, a pulso se apresenta na forma de representantes: representante psquico (idia, Vorstellungreprsentanz) e afeto (Affekt). Freud afirma que a pulso nunca pode passar a ser objeto da conscincia; s pode s-lo a representao que seu representante... tampouco no interior do inconsciente pode estar representada a no ser pela representao (Freud, 1915a , pp: 173). Afirmar que a pulso est sempre no registro da representao como representao e como representao de representao para Freud construir, sua maneira, uma mitologia. A teoria das pulses , por assim dizer, nossa mitologia*11+. Trata-se de uma mitologia, pois como diz Freud na Psicopatologia da vida cotidiana*12+, a mitologia a psicologia projetada no mundo externo, uma espcie de percepo endopsquica, projeo de fatores inconscientes que se espelham na construo de uma dada realidade. Se a teoria das pulses uma mitologia e se a mitologia a representao de uma experincia endopsquica, pergunta-se: o que Freud teria sentido ou experimentado na clnica que apontou para esta construo do conceito de pulso? Para construir este conceito, Freud usou a palavra Trieb e no a palavra Instinct. Por que esta distino? Quando Freud fala de pulso quer dar conta de um impulso (treiben = impelir) que mobiliza o humano, malgrado a inespecificidade do objeto e da meta desta impulso. Frente ao inespecfico da produo pulsional, Freud formula uma definio do psquico sempre representacional. E por que assim? Se acompanhamos a construo da Psicanlise podemos entender este destino do inespecfico. Clinicamente, este inespecfico aparecia na experincia clnica com a histrica. Aquelas mulheres ouvidas atentamente por Freud no suportavam tal inespecificidade, no suportavam o carter fronteirio disso que as impulsiona, aferrando-se sintomaticamente ao que tm mo de mais especfico, a saber, seu corpo: corpo especfico que convertido em palco para a representao de seu sofrimento. Essa converso se d na forma do teatro da histrica, onde ela finge (ou representa) um corpo. da histrica responder representacionalmente experincia do inespecfico. Isso que no pra de impulsionar o organismo como uma fonte interna de que no se pode escapar exaspera a histrica que luta dramaticamente para parar esta excitao. preciso parar este movimento. Isso no pra de funcionar. Cessar esta produo. Algo colocado no lugar do inespecfico da produo pulsional, com esta funo de substituio. A operao histrica a de se aferrar nos produtos definitivamente especficos, que resultam de e paralisam o seu processo de produo ele mesmo. Da as paralisias histricas. O produto a que se aferra a histrica seu prprio corpo teatralizado. Podemos, ento, dizer que Freud constri a teoria das pulses a partir do modelo obtido na experincia com a histrica. O que talvez Freud no tenha levado em considerao foram as condies heterclitas presentes no plano da produo do mundo histrico, encantado que ficou pelo jogo da representao que, no discurso daquelas mulheres, encenava personagens de uma vida privada. O que experimentado pela histrica como inespecfico o que se oculta, ou se intimiza, no interior de uma alcova: um pequeno segredo sujo.

  • A instituio do segredo e a histrica O subttulo do livro de Sennet O declnio do homem pblico: as tiranias da intimidade[13] nos indica um efeito desta alcovatizao da vida associada transformao da famlia no sculo XIX. A criao da estvel famlia burguesa, ao contrrio do que muitas teorias sobre a mudana da famlia extensa para a famlia nuclear creditavam, no se deveu a uma necessidade de maior eficincia frente ao crescimento urbano da poca. Muito menos a famlia burguesa se constituiu numa resposta positiva para uma sociedade nova simbolizada pela cidade grande, estruturada pela burocracia impessoal, pela mobilidade social e pela grande diviso do trabalho (Sennet, 1989, p.222). Na sociedade moderna esperava-se da famlia a possibilidade de seus membros expressarem suas personalidades. As regras sociais voltavam-se para a criao de ordem dentro da famlia, a fim de estabilizar as aparncias que os membros apresentavam uns aos outros. Esta estabilizao era fundamental para as relaes sociais no domnio pblico. Mais do que reao desordem material do mundo, a luta pela ordem no processo familiar foi gerada pelas mesmas regras que fizeram com que as pessoas vissem as obras da sociedade em termos pessoais. Essa luta pela ordem familiar est, neste momento, totalmente afinada com a forma da famlia nuclear. Difunde-se, portanto, a idia de que o desenvolvimento da personalidade s pode ocorrer atravs da estabilizao das interaes pessoais. A vida da famlia nuclear adequa-se perfeitamente a isto e desempenha papel importante contra os processos de complexificao/caotizao/desequilibrao. Nos textos mdicos do sculo XIX pode ser arrolado um catlogo de queixas que consistiam em aflies fsicas no catastrficas originadas em ansiedade, prolongada tenso nervosa ou temor paranico (Sennet, 1989, p.227). Este catlogo, segundo Sennet, um testamento para os tribunais na tentativa de criarem ordem no comportamento e na expresso em casa. O panorama , ento, o de uma sociedade que prope a seus membros a regularidade e a pureza de sentimentos. Estes seriam o preo a ser pago para se ter um eu prprio, sua prpria personalidade. Neste contexto, a histeria pode ser vista como uma espcie de rebelio. Virgindade, pureza, permanncia de sentimentos, ausncia de qualquer experincia ou de qualquer conhecimento de outro homem: daqui proviriam as futuras queixas das histricas sobre a vida(Sennet, 1989, p.228). O propsito era o domnio. Domnio sobre a espontaneidade, sobre o corpo, sobre a processualidade da vida. a instituio do segredo que implantada, ocultando este fundo de turbulncia que a ordem social quer dominar, operando como controle do que vivido como inespecfico. Assim, a histrica a expresso do sentimento involuntrio no interior da famlia, a expresso da complexidade, do inespecfico que, no encontrando meios de ser vivido, paralisa o processo, congela em seu corpo o movimento de produo inconsciente. A histrica , ao mesmo tempo, rebelio porque denuncia a irregularidade, a inespecificidade, a complexidade da vida e paralisia do processo de produo inconsciente porque representa de modo congelado, paralisado, na cena da famlia nuclear, a ordem social vigente. No plano de produo do mundo histrico, portanto, h condies heterclitas que no podem ser reduzidas alcova ou a um mundo privado e intimizado da personalidade

  • Pulso e produo do inconsciente Em uma entrevista na PUC/SP, em agosto de 1992, Felix Guattari se refere revoluo extraordinria operada por Freud: separar a vida instintiva da pulsional sem negar a primeira. A pulso no se define apenas pela relao com sua fonte biolgica, sendo pensada por Freud a partir de sua relao com a presso energtica libidinal, seu objeto e sua meta. Se no instinto o objeto necessrio e a meta invarivel, na pulso tem-se um objeto contingente e uma meta varivel. Logo, a defesa da separao entre instinto e pulso supe a dimenso produtora da relao pulsional com o mundo. isto que Guattari destaca ao privilegiar a relao da pulso com o objeto, entendendo assim sua ligao com a existncia no uma existncia dada definitivamente no jogo entre o Ser e o Nada, mas uma existncia que vai se artificializando segundo as condies diversas e materiais dadas. Trata-se de um outro existencialimo mais pragmtico, construtivista: a pulso construo de existncia, maqunica da existncia. Compreender essa dimenso maqunica da pulso pressupe que desloquemos a ateno da representao pulsional e do aspecto dinmico do recalque. O inconsciente , ento, redefinido, segundo uma perspectiva construtivista, como uma fbrica, uma mquina de produo de existncia. Esse construtivismo inconsciente, essa caosmose*14+, pressupe uma reverso do esquema tradicional de explicao. Nessa outra perspectiva, quem produz ou constri? Ou, dito de outra maneira, quem primeiro, a galinha ou o ovo, mas tambm o pai e a me ou a criana?*15+. A soluo tradicional aponta seja para um plo ou outro, pressupondo, qualquer que seja o plo, uma soluo para o impasse: a) a criana vem antes, pois o pai est doente de sua prpria infncia; b) o pai vem antes, pois a criana s o em relao a um pai e uma me. (Deleuze & Guattari, 1976, p. 348). Essa busca por uma origem ou princpio explicativo confrontada com uma soluo que, no lugar de buscar sair do impasse, assume sua forma circular de paradoxo: pai e filho, ovo e galinha, so figuras que se determinam simultaneamente, em um mesmo plano social com seus investimentos inconscientes. O plano do inconsciente um plano de produo com materiais heterclitos onde paradoxalmente o inconsciente a produo e o produto, ou seja, autopoiesis[16]. Por ser este funcionamento paradoxal, autoprodutivo, nunca fundamento, sendo sempre segundo. A falta do primeiro ou do fundamento o que confere experincia psquica seu fundo de inespecificidade, fundo este superficial, fundo do plano. Se em Freud a teoria da representao que acaba por imprimir um certo olhar, uma certa escuta, construindo, assim, uma certa clnica, em Espinoza encontramos a valorizao da expresso em detrimento da representao, como apreenso das formas existentes. Como fazer modular a clnica de tal modo a tomar o inconsciente em sua funo expressiva? Se acompanharmos Espinoza afirmaremos que isto que da ordem do inespecfico ou do complicado se especificar, ou se descomplicar no modo existente (no corpo ou na idia). Neste sentido, o inconsciente se manifesta no por uma representao da/na realidade, mas sim, pela existencializao dela. Chegamos, ento a essa posio que podemos dizer tambm tica, segundo a qual a clnica lida com esse plano de existencializao, a partir do qual tanto a realidade de si, quanto a realidade do mundo emergem como efeitos ou modulaes do inconsciente. por repetio diferenciadora que esse plano de existencializao se desdobra: repetio do complicado no explicado, da substncia nos modos existentes, do inespecfico da pulso no especfico do corpo, portanto, do no corpo (substncia) no corpo (modo existente), do no finito no finito. A repetio s diferenciadora quando e porque ela se d numa srie mltipla de afeces, pela ao de composio prpria dos encontros.

  • pela distino e inseparabilidade entre estes termos da srie expressiva que o plano do inconsciente se apresenta em sua dimenso paradoxal. porque a clinica no pode prescindir da noo de inconsciente que ela tampouco pode se furtar a esta experincia do paradoxo, sendo constantemente forada a extrair o no clnico na clnica nesta operao que designamos de transdisciplinar. Podemos, agora, dizer que assim como a tica espinozista tomada em sua relao expressiva com a substncia divina que se desdobra nos modos, a clnica tomada em sua relao com o inconsciente enquanto paradoxal e hbrido. Considerando o plano de atravessamento entre a clnica e a filosofia, estes dois termos, substncia e inconsciente, exigem de ns temos que tomemos de sada uma posio que deixa importantes conseqncias. Tais termos em sua condio de primado podem ser entendidos como multiplicidade ou como totalidade, como diferena ou como unidade. Pensar o inconsciente como diferena toma-lo como plano de diferenciao, o que faz da clnica esta experincia de modulao em que fazemos nossas apostas. [1] Escultura de autor annimo, 190 a. c. , 3,28cm, Louvre. [2] Spinoza, B. thique. Paris: Flammarion, 1965, p:137-138 (as tradues so de nossa responsabilidade) *3+ Deleuze, em seus comentrios sobre a tica de Espinoza entendida como filosofia prtica, indica a trplice denncia que ela opera: denncia da conscincia, dos valores e das paixes tristes. A cada uma delas corresponde uma categoria de acusao que recai sobre o filsofo que escandaliza sua poca com a ousadia de suas teses: materialismo, imoralismo e atesmo. A tese materialista de Espinoza diz respeito desvalorizao da conscincia realizada pela definio de um outro modelo para o pensamento: o corpo. Deleuze, G. Spinoza: philosofhie pratique. Paris: ditions de Minuit, 1981. *4+ Deleuze, G. Spinoza et le problme de lexpression. Paris: Minuit, 1968 [5] Discutindo a tica foucaultiana, Rajchman indica os traos gerais de uma teoria da liberdade neste autor. Rajchman, J. Foucault: A liberdade da filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987. [6] J apresentamos em outro lugar a idia de que a experincia clnica no se fecha em um campo disciplinar, mas compe um plano transdisciplinar. No repetiremos aqui a argumentao, remetendo o leitor ao artigo Passos, E.; Barros, R. B. A construo do plano da clnica e o conceito de transdisciplinaridade. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Braslia, v. 16, n. 1, p. 71-79, 2000. [7] Acerca desta relao com a forma paradoxal do tempo cf. PASSOS, E.; BARROS, R. B. Clnica e biopoltica na experincia do contemporneo. Psicologia Clnica. Ps-Graduao e Pesquisa. PUC-RJ, v. 13, n. 1, p. 89-99, 2001. [8] Freud, S. Lo inconciente (1915 a). Em Freud, S. Obras Completas, v XIV. Buenos Aires: Amorrortu, pp 155-213, 1998a

  • [9] Freud, S. Pulsiones y destinos de pulsion[9](1915 b) Em Freud, S. Obras Completas, v XIV. Buenos Aires: Amorrortu, pp107-134, 1998b. [10] Freud, S. Puntualizaciones psicoanaliticas sobre un caso de paranoia ( Dementia paranoides) descrito autobiogrficamente (1911) Em Freud, S. Obras Completas, v XII. Buenos Aires: Amorrortu, pp. 1-76,1996 [11] Freud, S. Nuevas Conferencias de introduccin al psicoanlisis (1933) Em Freud, S. Obras Completas, v XXII. Buenos Aires: Amorrortu, pp. 1-168, 1997a. [12]Freud, S. Psicopatologia de la vida cotidiana (1901) Em Freud, S. Obras Completas, v VI, Buenos Aires: Amorrortu, 1997b [13] SENNET, R. O declnio do homem pblico: as tiranias da intimidade. So Paulo: Companhia das Letras, 1989. [14] Guattari, F. Caosmose. Um novo paradigma esttico.Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. [15] Deleuze,G & Guattari,F O Anti-dipo: Capitalismo e Esquizofrenia, Rio de Janeiro: Imago, 1976,p:347. [16] Acerca da relao do conceito de autopoiese e os estudos da subjetividade cf. Passos, E. Cognio e produo de subjetividade: o modelo mquina e os novos maquinismos nos estudos da cognio. Revista do Departamento de Psicologia da UFF, Niteri, v. 11, n. 2/3, p. 67-76, 1999.