o que é a fenomenologia?
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Autor: André DartiguesTRANSCRIPT
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ANDR DARTIGUES
O QUE EA
FENOMENOLOGIA? Traduo de Maria Jos J. G. de Almeida 100060981 32 Edio EDITORA MORAES Ttulo original: Qu'est-ce que Ia phnomnologie? Edouard Privat Capa: Paulo Ferreira Leite Composio e Arte-Final: Prisma Assessoria Editorial Reviso: Marilda Ivanov Terceira edio: 1992
V da traduo: Editora Moraes Ltda. Rua Ministro Godoy, 1036 05015, So Paulo, SP, Brasil Tels: (011) 62-8987 e 864-1298 SUMARIO Introduo ................................... 1 Captulo 1 Um Positivismo Superior......................... 7 Husserl e a necessidade de um recomeo............. 7 O sentimento de uma crise ..................... 8 Um duplo escolho: o empirismo e a filosofia especulativa .............................. 10 Recomeo e "retorno s coisas mesmas"............. 13 A intuio das essncias....................... 14 A anlise intencional.......................... 17 A reduo fenomenolgica e seu resduo ............. 20 Uma mudana de atitude ....................... 20 A fenomenologia constitutiva.................... 22 Idealismo ou existencialismo? ................... 25 Captulo 2 Uma Prtica Cientfica .......................... 29 Os recursos do mtodo.......................... 30 A variao eidtica........................... 30 Viso das essncias e induo................... 32 Viso das essncias e introspeco................ 35 Fenomenologia e objetivismo: a teoria da forma........ 37 Essncia, forma e estrutura..................... 38 Campo e intencionalidade...................... 41 O naturalismo da Gestaltheorie.................. 45 Captulo 3 Uma Metodologia da Compreenso................. 49 Inteno e compreenso......................... 49 O humano deve ser compreendido................ 50
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O risco de equvoco: um ponto de encontro entre fenomenologia e psicanlise................... 51 Explicao e compreenso ....................... 54 Necessidade e limites da fase explicativa........... 55 Um exemplo de compreenso em psiquiatria......... 56 Os fundamentos da compreenso................... 60 A ideia de uma socialidade originria.............. 61 A impossvel objetividade...................... 65 Captulo 4 Uma Filosofia Crtica das Cincias.................. 71 A crise das cincias............................ 72 Crise das cincias e humanidade em crise........... 72 As razes da crise: o esquecimento das origens....... 74 A volta ao mundo da vida...................... 78 A verdade de seus horizontes...................... 82 A verdade do cientista e a verdade do mercador...... 82 A evidncia como "vivncia" da verdade........... 84 A verdade como ideal e o mundo como Ideia......... 86 A histria como sentido e a filosofia como tarefa...... 89 Captulo 5 Uma Esttica da Existncia....................... 93 Da conscincia-existncia conscincia-liberdade...... 95 Uma conscincia sem sujeito.................... 95 O primado do pi-reflexivo sobre a reflexo......... 97 Existncia e liberdade......................... 99 Fenomenologia existencial e psicologia.............. 101 A emoo como significao.................... 102 A imaginao reveladora de uma conscincia livre..... 106 A psicanlise existencial e o caso Flaubert.......... 107 Fenomenologia e filosofia da ao.................. 111 Uma filosofia da revoluo..................... 112 O secreto revs do xito....................... 114 Captulo 6 Um Retorno Ontologia......................... 117 A ontologia fenomenolgica de Sartre............... 118 O ser-em-si e a transfenomenalidade do fenmeno..... 119 O ser-para-si e o surgimento do nada (nant)......... 121 A unidade do em-si e do para-si na fenomenologia existencial................................ 123 A ontologia fenomenolgica de Heidegger............ 125 As insuficincias da fenomenologia transcedental..... 126 A passagem para uma fenomenologia hermenutica .... 129 O Ser compreendido a partir do tempo............. 134 Da fenomenologia ao dizer potico................ 138 Captulo 7 Uma Converso tica.......................... 141 Os cosmos tico de Max Scheler................... 142 A fenomenologia como acesso ao mundo dos valores .. . 142 A fenomenologia como acesso ao mundo das pessoas . . 146 Os fundamentos de um personalismo tico.......... 150 tica e pensamento do Infinito segundo E. Lvinas...... 155 Pensamento totalizante e violncia totalitria......... 155 O infinito e o atesmo da separao............... 158 A Epifania do Semblante e a verdade como justia .... 161
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Concluso . .................................. 167 Bibliografia .................................. 171 INTRODUO Segundo a etimologia, a fenomenologia o estudo ou a cincia do fenmeno. Como tudo o que
aparece fenmeno, o domnio da fenomenologia praticamente ilimitado e no poderamos,
pois, confin-la numa cincia particular. Assim, no poderamos proibir a ningum pretender-se
fenomenlogo desde que sua atitude tenha algo a ver com a etimologia do termo: "Se nos
atemos etimologia, qualquer um que trate da maneira de aparecer do que quer que seja,
qualquer um, por conseguinte, que descreva aparncias ou aparies, faz fenomenologia1". E
preciso dizer que, se nos ativermos a esse sentido muito amplo, no teremos to cedo esgotado a
lista dos fenomenlogos, desde William Whe-well, que escrevia uma geografia fenomenolgica
(1847) ou Ernst Mach, que havia concebido uma fenomenologia fsica ge-raP (1894), at
Teilhard de Chardin cuja "hiperfsica" - que tem por objetivo descobrir "nada mais que o
fenmeno, mas tambm todo o fenmeno3" - poderia levar o ttulo de fenomenologia.
A histria do termo pode, no entanto, ser mais esclarecedora do que sua mera etimologia, se
pelo menos admitimos que a fenomenologia representa um momento no desprezvel da histria
da filosofia. O primeiro texto em que figura esse termo o Novo 1. P. Ricoeur: "Sur Ia phnomnologie", exaEsprit, dez. 1953, p. 82. 2. Cf. H. Spiegelberg: The phenomenological movement. A historical introduc-tion, M. Nijhoff, Haia, 1969, p. 9. 3. Lephnomne humain. Paris, Seuil, 1955, p. 21. 2 O QUE A FENOMENOLOGIA? rganon (1764) de J.H. Lambert, discpulo livre de Christian Wolff, que entende por
fenomenologia a teoria da iluso sob suas diferentes formas. talvez sob a influncia de
Lambert que Kant retoma por sua vez o termo; ele o utiliza, em todo caso, em 1770 numa carta
a Lambert onde o que chama ' 'phaenomenologia ge-neralis" designa a disciplina propedutica
que deve, segundo ele, preceder a metafsica. Utiliza-o de novo na clebre Carta a-Mar-cus
Herz de 21 de fevereiro de 1772, onde esboa o plano da obra que, aps uma longa gestao,
aparecer em 1781 sob o ttulo de Crtica da razo pura. Ora, a primeira seco da primeira
parte dessa obra deveria, segundo a carta a Herz, intitular-se: A fenomenologia em geral. O fato
de que Kant no tenha posteriormente retido esse ttulo e tenha preferido o de Esttica trans-
cendental retardou sem dvida alguma a carreira do termo. Mas nem por isso uma
fenomenologia est ausente da Crtica kantiana pois esta, ao se entregar a uma investigao da
estrutura do sujeito e das "funes" do esprito, se d por tarefa circunscrever o domnio do
aparecer ou "fenmeno". A meta de tal investigao , no entanto, menos a elucidao desse
aparecer que a limitao das pretenses do conhecimento que, por atingir apenas o fenmeno,
no pode jamais se prevalecer de ser conhecimento do ser ou do absoluto. Podemos, pois, dizer
que se j encontramos em Kant uma fenomenologia no sentido rigoroso do termo, essa no
seno uma fenomenologia crtica. com a Fenomenologia do esprito (1807) de Hegel que o termo entra definitivamente na
tradio filosfica para em seguida vir a ser de uso corrente. A diferena fundamental entre a
fenomenologia de Hegel e a de Kant reside na concepo das relaes entre o fenmeno e o ser
ou o absoluto. Segundo Hegel, o absoluto, sendo co%noscvel, por este fato mesmo
qualificvel como Si ou como Esprito, de modo que a fenomenologia de imediato uma
filosofia do absoluto ou do Esprito. Mas essa filosofia tambm uma fenomenologia, isto ,
uma retomada paciente do caminho que o Esprito percorre no desenrolar da Histria. No se
trata, pois, para Hegel, de construir uma filosofia na qual a verdade do absoluto se enunciar fora
ou parte da experincia humana, mas de mostrar como o absoluto est presente em cada
momento dessa experincia, seja ela religiosa, esttica, jurdica,
INTRODUO S poltica ou prtica. At mesmo o trgico da Histria humana um momento necessrio do devir
do Esprito, j que ele constitui o que Hegel chama o negativo, isto , o motor do movimento da
Histria sem o qual o Esprito no poderia se enriquecer com suas figuras ou manifestaes
ABNTHighlight
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sucessivas. Sem dvida, essa fenomeno-logia somente, como o queria Kant, uma propedutica
ontologia, cincia sistemtica do ser; mas, em vez de revelar a impossibilidade dessa
ontologia, ela fornece, ao contrrio, todo o seu material ao filsofo que no tem seno que
pensar sua ordem oculta "^ e dizer sua significao absoluta. No , contudo, a fenomenologia hegeliana que iria se perpetuar no sculo XX sob a forma do
movimento de pensamento que * traz o nome de fenomenologia. O verdadeiro iniciador desse
movimento devia ser E. Husserl, que deu um contedo novo a uma palavra j antiga. Se, no
entanto, comparamos Husserl a Kant e a Hegel, com os quais seria permitido aproxim-lo
quanto aos v- rios pontos particulares, podemos notar que, com respeito ao pro- ontolgico, sua
tentativa representa algo como uma terceira enquanto a fenomenologia de tipo kantiano
concebe o ser como o que limita a pretenso do fenmeno ao mesmo tempo em que ele prprio
permanece fora de alcance, enquanto inversamente, na fenomenologia hegeliana, o fenmeno
reabsorvido num conhecimento sistemtico do ser, a fenomenologia husserliana se prope como
fazendo ela prpria, s vezes, de ontologia pois, segundo Husserl, o sentido do ser e o do
fenmeno no podem ser dissociados. Husserl procura substituir uma fenomenologia limitada
por uma ontologia impossvel e outra que absorve e ultrapassa a fenomenologia por uma
fenomenologia que dispenda a ontologia como disciplina distinta, que seja, pois, sua maneira,
ontologia - cincia do ser. Esse percurso da histria de um termo, que tambm o de uma etapa importante da filosofia,
nos permite ao menos precisar em que sentido a fenomenologia pode ser dita rigorosa: "No fun-
do, a fenomenologia nasceu no momento em que, colocando entre parnteses - provisria ou
definitivamente - a questo do ser trata-se como um problema autnomo a maneira de aparecer
das coisas. H fenomenologia rigorosa a partir do momento em que essa dissociao refletida
por ela mesma qualquer que seja seu desti- 4 O QUE A FENOMENOLOGIA? no definitivo; ela recai ao nvel de uma fenomenologia banal e diluda no momento em que o
ato de nascimento que faz surgir o aparecer s custas do ser ou tendo como fundo o ser no de
nenhum modo percebido nem tematizado: sob o nome de fenomenologia no se faz mais que
uma apresentao popular de opinies, de convices, sem tomar partido a seu respeito4". Isto
significa que a perspectiva filosfica essencial constituio de uma fenomenologia que se
quer rigorosa. Por isso no poderemos nos deter na "fenomenologia banal" cujas descries recobrem os mais
variados domnios. Pois no basta descrever um objeto, qualquer que seja de um ponto de vista
o interesse de sua descrio, para adornar essa descrio com o ttulo de "fenomenologia". No
poderemos tampouco remontar "pr-histria" do movimento fenomenolgico nascido de
Husserl, o que por si s exigiria um longo estudo. Nos limitaremos, pois, ideia da
fenomenologia tal como Husserl e elaborou e tal como se desenvolveu aps ele e sob sua
inspirao. Ser visto, no entanto, que, mesmo limitado assim, o domnio da fenomenologia era por demais
vasto e rico em pormenores para poder dar lugar a uma anlise detalhada. Sem dvida,
possvel propor uma anlise detalhada do movimento fenomenolgico, como o fez Herbert
Spiegelberg numa obra5 cuja rica informao no deixa de lado nenhum nome nem obra alguma
que se ligue, prxima ou longinquamente, inspirao husserliana. tambm possvel destacar
brevemente a doutrina dos mais representativos fenomenlogos, como o havia feito de maneira
excelente Pierre Thvenaz em seus artigos da Revue de Thologie et de Philoso-phie de
Lausanne6. Esses trabalhos so de uma tal qualidade que no necessrio repeti-los.
De nossa parte, nos empenhamos simplesmente em mostrar como a ideia da fenomenologia sem
cessar se transformou, sem contudo renunciar inspirao fundamental vinda de Husserl. Dessa
maneira, a questo "O que a fenomenologia?" pode receber ml- 4. P. Ricoeur.art. cit.,p. 821. 5. Thephenomenohgicalmovement, op. cit., 2 vols., 765 pp. 6. 1952, I-III-IV. Editados separadamente em De Husserl Merleau-Ponty -Quest-ce que kiphnomnologie?, com uma
introduo de J. Brun, Neuchtel, La Ba-connire, 1966. INTRODUO tiplas respostas, por vezes muito afastadas umas das outras e, no entanto, ligadas a uma mesma
fonte. Por isso poderamos dizer, explorando a imagem da fonte, que essa se tornou aps as
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primeiras obras de Husserl como que um rio de mltiplos braos que se cruzam sem se reunir e
sem desembocar no mesmo esturio. Captulo 1 UM POSITIVISMO SUPERIOR O pensamento de Edmund Husserl (1859-1938) sem dvida no usurpou a reputao de
dificuldade criada sobre ele. Filsofo escrupuloso, por demais escrupuloso, Husserl sem cessar
retomou os resultados de um labor infatigvel. Escrevendo muito, publicando pouco, a tarefa
imensa que se propusera no lhe parecia jamais estar seno esboada e, portanto, sempre a ser
retomada em sua inteireza, como se a filosofia jamais pudesse sair de seu comeo. "Se a idade
de Matusalm me fosse concebida, quase que ousaria entrever a possibilidade de vir ainda a ser
filsofo1", escreve sobre si prprio aos 70 anos. Talvez a filosofia no seja, com efeito, seno a
busca de seu fundamento, do "terreno absoluto" sobre o qual ela poderia enfim "seriamente"
comear. No seguiremos em detalhe o andamento sinuoso que conduz Husserl em direo a esse
comeo. Esboaremos apenas as grandes etapas atravs das quais veremos nascer o que se
tornar, alm de Husserl e sob formas imprevistas, o movimento fenome-nolgico. HUSSERL E A NECESSIDADE DE UM RECOMEO Se desde as suas origens a filosofia ainda no comeou seriamente, no pode ser por falta de
tentativas, pois ela j tem, ao 1. "Postface mes ides directrices" ("Posfcio s minhas ideias diretrizes") em Revue mtaphysique et de morale, 1951, p. 397. X O QUE A FENOMENOLOGIA? nascer Husserl, uma longa tradio. Mas verdade que ela sem cessar se recolocou em questo
e que h uma secreta esperana do filsofo, ao recapitular a tradio que o engendrou, de ser o
filsofo definitivo ou, se possvel diz-lo, ao mesmo tempo o primeiro e o ltimo. Sem dvida,
ele no comear no sentido prprio do termo, mas ele tem o recurso de recomear a tarefa que
seus predecessores haviam empreendido mal. Trabalho de Ssifo? Husserl atravessar
efetivamente uma crise de ceticismo pouco antes de 1907, poca das Cinco lies sobre a
fenomenologia, mas ele a superar. Mesmo se a conjuntura m no mundo da cultura e
precisamente porque o , urgente fundar a "filosofia verdadeira". O sentimento de uma crise Pode-se dizer que toda a vida filosfica de Husserl, da Filosofia da Aritmtica (1891) as
conferncias sobre a Crise das cincias europeias (1935), dominada pelo sentimento de uma
crise da cultura. , portanto, possvel afirmar com Merleau-Ponty que a fenomenologia nasceu
de uma crise e sem dvida tambm que essa crise ainda a nossa. "A fenomenologia se
apresentou desde o seu incio como uma tentativa para resolver um problema que no o de
uma seita: ele se colocava desde 1900 a todo o mundo, ele se coloca ainda hoje. O esforo
filosfico de Husserl , com efeito, destinado em seu espirito a resolver simultaneamente uma
crise da filosofia, uma crise das cincias do homem e uma crise das cincias pura e
simplesmente, da qual ainda no samos2".
Os dez ltimos anos do sculo XIX, perodo dos primeiros trabalhos de Husserl, se caracterizam
na Alemanha pela derrocada dos grandes sistemas filosficos tradicionais. Hegel, que iluminava
todo o pensamento alemo quarenta anos antes, voltou sombra e a influncia de Schopenhauer
entra em declnio. Sem dvida, pensadores poderosos como Marx, Freud e Nietzsche esto a 2. M. Merleau-Ponty, Les sciences de thonrme et Ia phnomnologie, Cours de 1'Universit, Paris, p. 1. UM POSITIVISMO SUPERIOR 9 produzir, mas no interessam ainda seno crculos restritos e s despontaro verdadeiramente no
sculo seguinte. a Cincia que doravante preenche o espao deixado vazio pela filosofia
especulativa e, sobre o seu fundamento, o positivismo, para o qual o conhecimento objetivo
parece estar definitivamente ao abrigo das construes subjetivas da metafsica. No domnio das cincias, duas dentre elas so particularmente notveis: as matemticas e a
psicologia. As primeiras, afastando-se cada vez mais dos dados da intuio, procuram construir
sistemas formais que permitiriam unificar numa s suas diversas disciplinas, realizando assim o
velho sonho dos Pitagricos. Essas investigaes, que conduziro G. Cantor constituio da
teoria dos conjuntos, so conhecidas do jovem Husserl, que se formou nas matemticas sob a
direo de Weierstrass e prepara uma tese sobre o clculo das variaes. Quanto psicologia,
ela busca, de acordo com a tendncia positivista em voga, constituir-se como cincia exata
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conforme o modelo das cincias da natureza, eliminando assim os aspectos subjetivos e,
portanto, aparentemente no cientficos, que o uso da introspeco comporta. Mas, a partir de 1880, a bela segurana do pensamento positivista comea a ser abalada, pois
cada vez mais os fundamentos e o alcance da cincia tornam-se objeto de interrogao: tero as
leis que ela descobre uma validez universal? Qual o sentido de sua objetividade? No sero
elas somente convenes e no dependero do psiquismo, cujas leis a psicologia por sua vez
descobre? A essas questes, os ltimos ramos do pensamento kantiano ou nkantismos, tentam
responder concebendo um "sujeito puro" que asseguraria a objetividade e a coerncia dos
diferentes domnios do conhecimento objetivo. Mas outras questes comeam tambm a se
colocar: O que dizer do sujeito concreto, em sua vida psquica imediata e em seu engajamento
histrico, que o pensamento objetivo no consegue explicar? A esse respeito, o sujeito puro dos
neokantianos parece bem abstrato e "exangue", segundo o termo de Dilthey. Este ltimo, com
efeito, pensa que preciso voltar ao "sentimento da vida", mais fundamental que os dados da
cincia; tendncia que compartilham W. James nos Estados Unidos e Bergson na Frana, que
analisam a "corrente de conscincia" ou os "dados imediatos da conscincia". 10 O QUE A FENOMENOLOGIA? Husserl, que jamais sacrificou s matemticas suas preocupaes filosficas, abandona em 1884
o posto de assistente de Weiertrass que acabava de obter e decide consagrar-se soluo desses
problemas. Nessa poca, entra em contato com Franz Brentano que, em sua Psicologia do ponto
de vista emprico, prope um novo mtodo de conhecimento do psiquismo. A grande
contribuio de Brentano consiste de incio em distinguir fundamentalmente os fenmenos
psquicos, que comportam uma intencionalidade, a visada de um objeto, dos fenmenos fsicos;
em seguida, em afirmar que esses fenmenos podem ser percebidos e que o modo de percepo
original que deles temos constitui o seu conhecimento fundamental. De onde a frmula:
"Ningum pode verdadeiramente duvidar que o estado psquico que em si mesmo percebe no
existe e no existe tal como o percebe", frmula que Husserl no esquecer. Eis a, com efeito, uma posio estratgica forte, j que a descrio do fenmeno tal como ele
obedece s exigncias do positivismo reinante, que exclui todo conhecimento que no venha da
experincia e permite, por outro lado, aceder ao concreto e vida que a cincia tinha tendncia a
esquecer. A explorao do campo de conscincia e dos modos de relao ao objeto, que a escola
de Brentano persegue com Stumpf e von Meinong, delimita o que se tornar o campo de anlise
da fenomenologia de Husserl. Mas essa escola fica na descrio dos fenmenos psquicos, e no
responde s questes fundamentais que Husserl se coloca: poder um conceito lgico ou
matemtico, como um nmero, se reduzir operao mental que o constitui, por exemplo
numerao? E se ele no reduz a isto, no ser o estudo da operao mental mais que uma
simples descrio do psiquismo? Um ultra-passamento da psicologia descritiva de Brentano e
verifica necessrio e este ultrapassamento que Husserl realizar sob o nome de fenomenologia. Um duplo escolho: o empirismo e a filosofia especulativa O contato com Brentano ter pelo menos despertado Husserl para as insuficincias das cincias
humanas ou "cincias mo- UM POSITIVISMO SUPERIOR 11 rais", tais como elas se desenvolvem sob seus olhos por volta dos anos 1900./O que ele censura
a essas cincias e notadamente psicologia, ter tomado os seus mtodos das cincias da
natureza e aplic-los sem discernir que seu objetivo diferente. Essa crtica j se encontra em
Dilthey, cujas Ideias concernentes a uma psicologia descritiva e analtica (1894) Husserl leu.
Ao passo que a natureza s acessvel indiretamente, a partir dos fatos esparsos cuja unidade e
coerncia no so jamais seno hipotticas, a vida psquica ao contrrio um dado imediato que
no exige nenhuma reconstruo, mas somente uma descrio. Donde a famosa dis-tino
proposta por Dilthey: "No existe um conjunto coerente da natureza nas cincias fsicas e naturais seno graas aos
raciocnios que completam os dados da experincia graas a uma combinao de hipteses; nas
cincias morais, ao contrrio, o conjunto da vida psquica constitui por toda parte um dado
primitivo e fundamental. Ns explicamos a natureza, compreendemos a vida psquica?". Se nesse ponto a crtica de Husserl encontra-se com a de Dilthey, no que ele procure
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depreciar os resultados que puderam obter as cincias experimentais (e notadamente a
psicologia experimental). Mas essas cincias no determinaram exatamente seu objeto e no
sabem, pois, a que se referem os resultados obtidos. Pensamos aqui nas palavras de Binet que,
questo: "O que a inteligncia?" respondia: "A inteligncia o que os meus testes medem".
Como admitir que se possa calcular sobre a sensao, a percepo, a memria, etc., sem ter
previamente elucidado o que quer dizer sensao, percepo, memria? Se a psicologia con-
tempornea quer ser a cincia dos fenmenos psquicos, preciso que ela possa descrever e
determinar esses fenmenos com um rigor conceptual. preciso que ela adapte a si prpria,
atravs de um trabalho metdico, os conceitos rigorosos necessrios4".
3. W. Dilthey, "Ides" em Le monde de tesprit, trad. Remy, Paris, Aubier. 1947, tl.p. 150. 4. E. Husserl, La philosophie comme science rigoureuse (A filosofia como cincia de rigor), trad. Q. Lauer, Paris, P.UJF., 1955, p. 77. O QUE A FENOMENOLOGIA? O que Husserl quer sobretudo rejeitar o naturalismo dessas cincias que, no tendo destacado
a especificidade de seu objeto e tratando-o como se se tratasse de um objeto fsico, confundem a
descoberta das causas exteriores de um fenmeno com a natureza prpria deste fenmeno. As
consequncias de tal atitude so graves: ser dito, por exemplo, que uma afirmao, que cr ter
razes, determinada na realidade por causas que o psiclogo ou o socilogo podem explicar.
Mas amplamente, que os princpios diretores do conhecimento no so seno a resultante de leis
biolgicas, psicolgicas ou sociolgicas. Essa tendncia, que Husserl combate sob o nome de
psicologismo, tem por resultado minar a base dessas prprias cincias, j que relativizam seu
prprio fundamento: que crdito, por exemplo, conceder ao psiclogo que pretende explicar
pela psicologia os princpios da lgica, quando ele prprio se utiliza desses princpios para
trazer a explicao deles? Husserl no tem dificuldade em mostrar que as matemticas ou a
lgica, cujas leis tm uma exatido absoluta e podem ser conhecidas a priori, isto , sem recurso
experincia, so irredutveis s cincia empricas cujas leis so ainda imprecisas e no podem
jamais ser definitivamente asseguradas por dependerem elas de uma experincia sempre
imperfeita. O que constitui o interesse das cincias humanas a saber, o fato que estudam as atividades do
homem e notadamente esta atividade privilegiada que o conhecimento constitui tambm
sua fraqueza quando essas atividades so reduzidas a simples fenmenos naturais: neste caso
elas aniquilam no somente seus prprios pressupostos, mas tambm os de toda outra forma de
conhecimento, quer se trate da filosofia ou da cincia. Isso no significa, todavia, que se deva voltar s concepes filosficas do passado. Pois, tendo
sado j inteiramente armadas como Minerva da cabea de seu criador, essas filosofias "prontas
e acabadas" vo por seu turno reunir-se a "outras semelhantes Minervas no museu tranquilo da
Histria5". Se, com efeito, a lgica e com ela a atividade de pensamento devem ser salvas do ce-
ticismo ao qual as entrega a reduo empirista, no para lhes permitir tecer ainda outros
sistemas filosficos que, sua manei- 5. Id.,p.55. UM POSITIVISMO SUPERIOR 13 ra, fariam tanta violncia realidade como pode lhe fazer um mau uso das cincias empricas. O caminho de Husserl busca e que comandar at em suas ltimas obras a sua concepo da
fenomenologia uma via mdia entre esses dois escolhos: como pensar segundo a sua natureza
e em cada uma de suas nuanas e portanto, sem jamais ultrapass-los - os dados da
experincia em sua totalidade? Todo o fenmeno e nada mais que o fenmeno, se poderia dizer.
O postulado que funda tal empresa que o fenmeno est penetrado no pensamento, de logos e
que por sua vez o logos se expe e s se expe no fenmeno. Apenas sob essa condio
possvel uma fenomenologia. Mas se o fenmeno no nada de construdo, se portanto acessvel a todos, o pensamento
racional, o logos, deve s-lo tambm a Husserl acaba ento por conceber uma filosofia nova que
realizaria enfim o sonho de toda filosofia: tornar-se uma cincia rigorosa. A realizao de tal
projeto supe que, em vez de se prender as tradies filosficas divergentes que lhe transmitem
indefinidamente seu desacordo, o pensamento filosfico retorne s suas origens dando-se como
ponto de partida, no mais s opinies dos filsofos, mas prpria realidade: "No convm que
a impulso filosfica surja das filosofias, mas das coisas e dos problemas6". Assim, a filosofia,
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nascendo sobre o solo de uma experincia comum, poderiam enfim comear verdadeiramente
como um assunto que diz respeito a todos, em vez de ser, como o so ainda as "vises do
mundo", a expresso acabada, mas apenas singular e, portanto contestvel, de uma
individualidade genial. RECOMEO E "RETORNO S COISAS MESMAS" Entre o discurso especulativo da Metafsica e o raciocnio das cincias positivas deve, pois,
existir uma terceira via, aquela que antes de todo raciocnio, nos colocaria no mesmo plano da
realidade ou, como diz Husserl, das "coisas mesmas". Essa via j foi tentada por Descartes que
busca para sua filosofia um fundamento 6. Id., p. 124. 14 O QUE A FENOMENOLOGIA? inabalvel, que , como todos sabem, o "eu penso", com o qual se d inseparavelmente o "eu
sou". Eis a o que Husserl chama "uma intuio originria". Infelizmente Descartes procede de
tal maneira que todas as outras intuies se do a ele como duvidosas e ele tem que recorrer a
Deus para garantir sua verdade. Mas no ser isso ento chocar-se contra um dos escolhos a
evitar, voltar especulao metafsica que cumpre definitivamente banir da filosofia? De fato, o discurso filosfico deve sempre permanecer em contato com a intuio se no quiser
se dissolver em especulaes vazias. Esse retorno incessante intuio originria, "fonte de di-
reito para o conhecimento", Husserl o chama o princpio dos princpios. "Significaes que no
fossem vivificadas seno por intuies longnquas e imprecisas, inautnticas - se que isso
acontece atravs de intuies quaisquer no poderiam nos satisfazer. Ns queremos voltar s
coisas mesmas1".
Mas nem por isso quer isto dizer que seja preciso se limitar s impresses sensveis, o que seria
afundar-se num ceticismo do tipo de Hume. Pois, se verdade que os fenmenos se do a ns
por intermdio dos sentidos, eles se do sempre como dotados de um sentido ou de uma
"essncia". Eis por que, para alm dos dados dos sentidos, a intuio ser uma intuio da
essncia ou do sentido. A intuio das essncias , como dissemos, um postulado da fenomenologia que o fenmeno seja lastrado de
pensamento, que seja logos ao mesmo tempo que fenmeno. No se pode pois conceber o
fenmeno como uma pelcula de impresses ou uma cortina atrs da qual se abrigaria o mistrio
das "coisas em si". Hegel j dizia que atrs da cortina no h nada a ver8. Falar de uma viso das
essncias no significar pois devotar-se a uma contemplao mstica que permitiria a alguns
iniciados ver o que o comum dos mortais no 7. Recherches logiques (Investigaes lgicas). Tomo 2, ls parte. Trad. H. Elie. Paris, P.U.F., 1961, p. 8. 8. Cf. Phnomnologie de Tesprit. Trad. Hippolyte, Paris, Aubier, 1947, p. 140. UM POSITIVISMO SUPERIOR 15 v, mas ao contrrio, ressaltar que o sentido de um fenmeno lhe imanente e pode ser
percebido, de alguma maneira, por transparncia. Tradicionalmente, a essncia responde questo: o que o que ? Esta questo pode ser
colocada a propsito de qualquer fenmeno e, se no a colocamos, porque j estamos
assegurados de sua essncia ou porque ao menos acreditamos estar. No existe, com efeito,
nenhum fenmeno do qual possamos dizer que ele no nada, pois o que no nada no . J&e
todo fenmeno tem uma essncia, o que se traduzir pela possibilidade de design-lo, nome-lo,
isso significa que no se pode reduzi-lo sua nica dimenso de fato, ao simples fato que ele
tenha se produzido, Atravs de um fato sempre visado um sentido. /Husserl gosta de evocar a
esse respeito o exemplo da "IX Sinfonia". Esta pode se traduzir pelas impresses que
experimento ao escutar este ou aquele concerto, pela escritura desta ou daquela partitura, pela
atividade do regente de orquestra ou dos msicos, etc. Em cada caso poderei dizer que se trata
da "IX Sinfonia" e, contudo, esta no se reduz a nenhum desses casos, se bem que ela possa a
cada vez se dar neles inteiramente. A essncia da "IX Sinfonia" persistiria mesmo se as
partituras, orquestras e ouvintes viessem a desaparecer para sempre. Ela persistiria, no como
uma realidade, como um fato, mas como uma^wra possibilidade/No obstante, essa pura
possibilidade que me permite distingui-la de imediato de toda outra sinfonia, mesmo se o disco
no qual eu a escuto est riscado ou se a orquestra ruim. Da mesma maneira, um menino
-
trabalhando sem compasso dir que a forma vagamente oval que traou em seu caderno um
clrculo./Vemos em que a intuiojla essncia se distingue da percepo do fato: ela a viso do
sentido ideal que atribumos ao fato materialmente percebido e que nos permite identific-lo/ Se a essncia permite identificar um fenmeno, porque ela sempre idntica a si prpria, no
importando as circunstncias contingentes de sua realizao. Por numerosos que sejam os tem-
pos e os lugares em que se fala do tringulo, por numerosas que sejam as inscries de
tringulos sobre os quadro-negros de todas as escolas do mundo, sempre do mesmo tringulo
que se trata. /Esta identidade da essncia consigo prpria, portanto esta imps- 16 O QUE A FENOMENOLOGIA? sibilidade de ser outra coisa que o que , se traduz por seu carter de necessidade que se ope
"facticjdade", isto , ao carter de fato, aleatrio, de sua manifestao/Ademais, se cada essncia
nica em seu gnero, pode-se conceber uma infinidade de essncias novas das quais cada qual
ser irredutvel s outras. O que nos conduz a perguntar: mas de que ento h essncias? Sem dvida, h uma essncia de cada objeto que percebemos: rvore, mesa, casa, etc. e das
qualidades que atribumos a estes objetos: verde, rugoso, confortvel, etc/Mas se a essncia no
a coisa ou a qualidade, se ela somente o ser da coisa ou da qualidade, isto , um puro
possvel para cuja definio a existncia no entra em conta, poder haver tantas essncias
quantas significaes nosso esprito capaz de produzir; isto , tantas quantos objetos nossa
percepo, nossa memria, nossa imaginao, nosso pensamento podem se dar/Independentes
da experincia sensvel, muito embora se dando atravs dela, as essncias constituem como que
a armadura inteligvel do ser, tendo sua estrutura e suas leis prprias/Elas so a racionalidade
imanente do ser, o sentido a priori no qual deve entrar todo mundo real ou possvel e fora do
qual nada pode se produzir, j que a idia mesma de produo ou de acontecimento uma
essncia e cai, pois, nessa estrutura a priori do pensvel/ /Ser, pois, uma primeira tarefa da fenomenologia elucidar esse "puro reino das essncias",
segundo os diversos domnios ou "regies" que elas permitem pensar independentemente da
prpria existncia dessas regies/seja a regio "natureza", compreendendo os fenmenos reais
ou possveis de que tratam as cincias da natureza; a regio "esprito", compreendendo os
fenmenos que tratam as cincias humanas; a regio "conscincia", compreendendo todos os
atos de conscincia sem os quais, como teremos a dizer, nenhum acesso nos seria dado as outras
regies. /Mas previamente - e essa a tarefa qual se dedica Husserl nas Investigaes lgicas -
ser elucidada a essncia das formas puras do pensamento, as categorias lgicas e gramaticais
que nos permitem pensar um "objeto em geral" e que so, pois, a condio de inteligibilidade
das outras regies. Essas categorias formais podem, com efeito, ser elas tambm objeto de uma
intuio que Husserl chama "intuio categorial"/ UM POSITIVISMO SUPERIOR 17 / possvel assim alcanar uma compreenso ajjriori do ser, portanto uma compreenso
independente da experincia efetiva, sem por isso abandonar a intuio, j que a intuio das
essncias intuio de possibilidades puras. ao mesmo tempo possvel ter um conhecimento a
priori dos diferentes domnios aos quais se aplicam as cincias experimentais, portanto saber de
antemo o que o objeto de que vo tratar. Pode-se assim conceber que elas sejam precedidas e
acompanhadas em seu trabalho por cincias de_ essncias ou "cincias eidticas"/ A anlise intencional /Mas dizer que, atravs da experincia sensvel, ns alcanamos ajntuip da essncia e que esta
condiciona o sentido do sensvel no novo. Plato j chamava eidos esse gnero de intuio
condicionado viso sensata do sensvel: "Se h muitas camas e muitas mesas, as "ideias"
dessas coisas so, no entanto, apenas duas: uma para a cama, uma para a mesa9"/Termanece,
ento, a questo de saber se preciso situar essas ideias, como o faz Plato, num mundo
inteligvel do qual o mundo sensvel no seria seno um derivado/'Ora, pensa Husserj, no seria
manter-se fiel ao princpio da "volta s coisas mesmas" imaginar um lugar celeste onde as ideias
teriam sua residncia. Seria, ainda uma vez, cair na especulao metafsica. /Dnde elas ento podero residir? Muito simplesmente na conscincia, j que como vivncias
de conscincia que elas se do a ns. Mas ento surge uma nova dificuldade/se elas esto na_
conscincia, ns vamos reduzi-las a simples fenmenos psquicos, tributrios por sua vez da
psicologia e recairemos nesse psicolo-gismo que Hysserl to vigorosamente refutou/ Cumpre,
-
pois, que /elas sejam acessveis somente na conscincia, mas que elas no se confundam jamais
com os fenmenos de conscincia que competem psicologia/ aqui que Husserl vai recorrer
noo funda- 9. Repblica, 595 c. 18 O QUE A FENOMENOLOGIA? mental de intenJonalidadeJda. qual j se servia Brentano, que a tomara ele prprio filosofia
medieval. p princpio da^intenionalidade que a conscincia, sempre / "conscincia de alguma coisa",
que ela s conscincia^estando / dirigida a um objeto (sentido de intendo). Por sua vez, o
objeto \ s
-
anlise da fenomenologia: ela deve elucidar a essncia dessa cor- I relao na qual no somente
aparece tal ou qual^objeto, mas se estende o mundo inteiro/ Como essa anlise recobre toda a
esfera dinmica do esprito, do nous, Husserl batizar com o nome de 10. Ides directrices pour une phnomnologie (Ideias diretrizes para uma fenomenologia), trad. P. Ricoeur, Paris, Gallimard, 1950,p. 306. 20 O QUE A FENOMENOLOGIA? nese a atividade da conscincia e com o nome de nema o objeto constitudo por essa
atividade, estendendo-se que se trata do mesmo campo de anlise no qual a conscincia aparece
como se projetando para fora de si prpria em direo a seu objeto e o objeto como se referindo
sempre aos atos da conscincia: /fNo sujeito h mais que o sujeito, entendamos: mais que a
cogitatio ou / nese; h o objeto mesmo enquanto visado, o cogitatwn enquanto puramente
para o sujeito, isto , constitudo por sua referncia | ao fluxo subjetivo da vivncia11
". /Se, com efeito, a correlao sujeito-objeto s se d na intuio originria da
vivnciaJ^Erlebnis) de conscincia, o estudo dessa correlao consistir numa anlise
descritiv~d~campo de conscincia, o que conduzir Husserl a definir a fenomenologia como
"a cincia descritiya-das-essnciasjia-Qnsincia e de seus atos" ./Mas no se trata mais aqui
de uma psicologia descritiva tal como a praticava Brentano, pois a conscincia contm muito
mais que a si prpria: nela percebemos a essncia daquilo que ela no , o sentido mesmo do
mundo em direo ao qual ela no cessa_de "explodir" (clater)/como dir Sartre. O que, ento, vem a ser, para voltarmos ao nosso exemplo, a macieira em si e sua miniatura
representada? Como ningum jamais soube o que fossem, seria melhor no lev-las em conta
ou, como diz Husserl, "reduzi-las". A REDUO FENOMENOLGICA E SEU RESDUO / assim que a anlise intencional conduz reduo fenomenolgica ou colofco entre
parnteses da realidade tal como a concebe o senso comum, isto , como existindo em si,
independentemente de todo ato de conscincia. / Uma mudana de atitude Essa concepo do senso comum, Husserl a denomina atitude, natural. A atitude natural, que
tanto a do cientista como_a_do 11. Ides directrices, op. cit. Comentrio de P. Ricoeur, p. 300. UM POSITIVISMO SUPERIOR 21 homem na rua, consiste em pensar que/q sujeito est no mundo como em algo que o contm ou
como uma coisa entre outras coisas, perdido sobre uma terra, sob um cu, entre objetos e outros
seres vivos ou conscientes e, at mesmo entre ideias, que encontrou "j af' independentemente
de si prprio. Em consequncia ele considera a vida psquica como uma realidade do mundo
entre outras e, para ele, a psicologia no para a conscincia seno o que a astronomia para as
estrelas: cada qual estuda um fragmento da mesma realidade, uma regio diferente do mesmo
mundo./ Quanto ao que pode constituir a unidade dessas regies dspares do mundo, um
enigma que ele no percebe. No ser, contudo, o enigma que Pascal enunciava: "Pelo espao, o
universo me compreende e me traga como um ponto; pelo pensamento, eu o compreendo12
"? Ora, a anlise intencional conduz, ns o vimos, a distinguir entre sujeito e objeto ou conscincia
e mundo, uma correlao mais original que a dualidade sujeito-objeto e sua traduo em in-
terior-exterior, j que no prprio interior da correlao que se opera a separao entre interior
e exterior. Mas o acesso a essa dimenso primordial s possvel se a conscincia efetua uma
verdadeira converso, isto , se ela suspende sua crena na realidade do mundo exterior para se
colocar, ela mesma, como cons-cincia transcendental, condio de apario desse mundo e
doadora de seu sentido. Est a uma nova atitude que Husserl chamar atitude fenomenolgica. A conscincia no mais, consequentemente, uma parte do mundo, mas o lugar de seu
desdobramento no campo original da intencionalidade. Isto significa que o mundo no em
primeiro lugar e em si mesmo o que explicam as filosofias especulativas ou as cincias da
natureza, j que essas explicaes so posteriores abertura do campo primordial, mas/sim que
ele em primeiro lu-gar o que aparece conscincia e a ela se d na evidncia irrecusvel de
sua vivncia. O mundo no assim nada mais que o que ele para a conscincia: 7 O mundo,
na atitude fenomenolgica, no uma existncia, mas um simples fenmeno13
". 12. Penses, Fragmentos 348, edit. Brunschvicg. 13. E. Husserl, Mditations cartsiennes (Meditaes cartesianas). Trad. Pfeiffer e Lvinas, Paris, Vrin, 1953, p. 27.
-
22 O QUE A FENOMENOLOGIA? Esta posio do mundo como fenmeno, isto , como s tendo sentido em sua manifestao na
vivncia, est na linha reta da atitude de Descartes, que era tambm, sua maneira, uma re-
duo. Para HussrT, assim como para Descartes, o eu penso a primeira certeza a partir da
qual devem ser obtidas as outras certezas. Mas o erro de Descartes ter concebido o eu do
cogito como uma alma-substncia, por conseguinte como uma coisa (res) independente, da qual
restava saber como poderia entrar em relao s outras coisas, colocadas por definio como
exteriores. Mas isso era recair ento na atitude natural que descrevemos. Graas
intencionalidade, o resultado da reduo fenomenolgica difere totalmente do resultado da
dvida cartesiana: o que resta ao termo da reduo, seu "resduo", no s o eu penso, mas a
conexo ou correlao entre o eu penso e seu objeto de pensamento, no o ego cogito, mas o
ego cogito cogitatum. Assim, aps a reduo fenomenolgica, Qjnundojio se tornou, como
para Descartes, duvidoso;' ele permanece tal como era, conservando seus valores e suas
significaes antigas. Mas esses valores e essas significaes e entre elas seu sentido de
existncia so "fenomenalizados", isto , desembaraados da atitude ingnua que nos levava
a coloc-los como sendo "em si" e assim acarretava essas especulaes metafsicas que
estorvam um conhecimento rigoroso. Referida vivncia da conscincia, inconcebvel sem essa
vivncia, a questo de seu ser no pode mais se dissociar da questo da origem do sentido que
se enraiza na vivncia de conscincia, na qual encontramos ento, segundo a frmula que
Husserl retoma de Empdocles, os rhizomata panton, as razes de todas as coisas. A fenomenologia constitutiva A tarefa efetiva da fenomenologia ser, pois, analisar as vivncias intencionais da conscincia
para perceber como a se produz o sentido dos fenmenos, o sentido desse fenmeno global que
se chama mundo. Trata-se, para empregar uma metfora aproximativa, de distender o tecido da
conscincia e do mundo UM POSITIVISMO SUPERIOR 23 para fazer aparecer os seus fios, que so de uma extraordinria complexidade e de uma arnea
fineza. To finos que no apareciam na atitude natural, a qual se contentava em conceber a
conscincia como contida no mundo - caso do realismo ingnuo - a menos que concebesse o
mundo como contido na conscincia -caso do idealismo. A ttulo de indicao sumria, evoquemos a anlise de um fenmeno como a percepo de uma
rvore, digamos, a macieira de que se tratou. A constatao paradoxal de Husserl, mas que
decorre do princpio da intencionalidade, que a estrutura dessa vivncia comporta elementos
reais, que podemos pois encontrar a e de elementos irreais, que no encontraremos a. Um
primeiro elemento real ser a abertura da conscincia para o objeto, no caso a percepo (da
rvore), mas que poderia ser um de outro modo: imaginao, ideao, lembrana, etc. Essa
abertura concebida por Husserl como um raio (Strahl) que parte do lado-sujeito da conscincia
para se dirigir para seu lado-objeto, com o risco alis de no ser "preenchido", de s atingir o
vazio, caso, por exemplo, a rvore que eu esperava perceber tenha desaparecido. Um outro
componente real ser a matria (hyl), isto , a sequncia das sensaes de pardo, verde, rugoso,
etc. que se compem em forma que perceberei como pardo do tronco, verde da folhagem, etc.
Mas do lado-objeto da conscincia, isso que Husserl chama seu nema ou correlato, vou
descobrir um elemento "irreal" pois, com efeito, a rvore, cujos componentes de ser-percebido
esto todos na conscincia, no est ela prpria na conscincia. O prprio da estrutura
intencional ou notico-noemtica, precisamente de fazer-me descobrir na conscincia ou no
sujeito e somente a, pois no poderia encontr-lo alhures, um objeto que o sujeito no pode
evidentemente conter. Onde, pois, est o objeto, onde, pois, est a rvore? Essas questes s se
colocam porque no abandonamos a atitude natural e porque ainda concebemos uma rvore que
existiria em si, seja fora da conscincia, seja dentro dela a ttulo de representao,
independentemente da atividade perceptiva da conscincia. Na realidade, a rvore percebida no existe seno enquanto percebida, isto , como plo
sinttico dessa atividade perceptiva cuja estrutura isolamos. A rvore no outra coisa seno a
uni- 24 O QUE A FENOMENOLOGIA? dade ideal de todos esses "momentos sensveis" que so o rugo-so, o pardo, o verde, todos esses
"esboos" que se modificam medida que me aproximo da rvore ou ando em volta dela, que se
-
encadeiam e convergem na certeza que a no jardim h uma rvore. Esta certeza ou "crena",
como dir Husserl, no uma qualidade da rvore, mas um carter do "nema" da percepo. A
realidade, a exterioridade, a existncia do objeto percebido e o seu prprio carter de objeto
dependem das estruturas da conscincia intencional, estruturas graas s quais a conscincia
ingnua v o objeto como o v - portanto aqui como real, exterior, existente - mas sem saber que
graas a essas estruturas que ela o v assim. O fato que o objeto e finalmente o prprio mundo dependam assim dessas estruturas conduzir
Husserl a dizer que eles so constitudos. Afenomenologia se tornar consequentemente o
-
do eu psquico como a essncia de um fenmeno se distingue de suas manifestaes
contingentes. Esse eu, Husserl chamar Sujeito ou Eu transcendental. Mas, se este Sujeito
transcendental a essncia do eu concreto e, portanto, s se distingue dele como aquilo que
condiciona a "ego-idade" (Ichheit) do eu concreto, o fato que, em sua multiplicidade, as
vivncias que fluem na conscincia se referem sempre mesma fonte, bvio que ele no po-
deria ser acessvel seno no eu concreto. "Na reflexo fenomenolgica eu me distingo, na
medida em que j me compreendi sempre como tal ou qual homem, do Eu enquanto Ego cujos
atos de conscincia so a fonte e o fundamento da possibilidade de tal compreenso de si; eu me
distingo de meu Ego transcendental17
". Que uma tal distino possa trazer dificuldades, o que
ressaltaro as an1i
-
formado por Husserl ao mesmo tempo que ele elabora sua doutrina da intuio das essncias;
mas, se essas cincias tm o mesmo objeto que as cincias empricas, cumprir tambm se
perguntar em que elas interferem e que esclarecimento mtuo podem trazer. A variao eidtica As essncias, s quais se referem pois as cincias eidticas, no podem se concludas a partir
dos fatos, j que elas so, por definio, o objeto de uma intuio. Para alcanar a essncia, no
se trata de comparar e de concluir, mas de reduzir, isto , de purificar o fenmeno de tudo o que
comporta de inessencial, de "fc-tico", para fazer aparecer o que lhe essencial. O que Husserl
chama "reduo eidtica" no se obtm, pois, atravs de manipulaes, mas de um esforo de
pensamento que se exerce sobre o fenmeno cujo sentido se busca, qualquer que seja por outro
lado a maneira pela qual dele tratam as cincias empricas. Assim, por um esforo mental que
eu conseguirei descobrir a essncia, o ser fundamental, de fenmenos tais como percepo,
sensao, imagem, conscincia, fato psquico, etc. que so tratados por seu lado e com outros
mtodos pela psicologia emprica. Ainda assim preciso que a anlise mental que conduz a
intuio da essncia no se exera de qualquer maneira. Eis por que Husserl UMA PRATICA CIENTFICA 31 ncebeu uma tcnica que d ao pensamento a certeza de reter &6 ^essencial do fenmeno em
questo. Esta tcnica de anlise inspira-me numa observao de Berkeley em sua controvrsia com
Locke sobre a relao de um todo com suas partes no separveis1. Existem todos cujas partes
posso me representar separadamente, diz Berkeley, como uma cabea sem o corpo ou um busto
de homem adaptado a um corpo de cavalo. Ao contrrio, no posso me representar uma cor sem
extenso ou um movimento sem um corpo que se mova. Berkeley conclui da um movimento
que no se pode separar pelo pensamento as partes de um todo, nem combin-las pela
imaginao em totalidades novas e imprevistas, seno quando essas partes so efetivamente
separveis na realidade. O que no separvel realmente, isto , no sentido de Berkeley, para a
percepo, no pode tampouco s-lo para o pensamento puro. Foi nessa observao que Husserl
encontrou o princpio que permite isolar o essencial de um fenmeno, aquilo que pertence como
prprio sua essncia. Se uma cor que no pode ser percebida sem extenso - tampouco
pode ser pensada sem uma certa extenso, que pertence essncia da cor de s se dar com a
extenso. A essncia se definir ento como uma "conscincia de impossibilidade", isto , como
aquilo que impossvel conscincia pensar de outro modo: "O que no se poderia suprimir
sem destruir o prprio objeto uma lei ontolgica de seu ser, pertence sua essncia2".
O processo pelo qual podemos chegar a essa conscincia consiste em imaginar, a propsito de
um objeto tomado por modelo, todas as variaes que ele suscetfvel de sofrer: "Revela-se,
ento, que a liberdade no poderia ser absoluta, que h condies sem as quais as 'variantes' no
seriam mais variantes desse modelo, 'exemplos' da mesma espcie. Este 'invariante' identificado
atravs das diferenas define precisamente a essncia dos objetos dessa espcie, isto sem o que
seriam inimaginveis, no sentido de impensveis3". Foi esse processo que Husserl chamou de
va- 1. Cf. Recherches logiques. Op. cit., tomo 2,25 parte, pp. 10-11. 2. Tran-Duc-Thao, Phnominologie et matrialisme dialectique, Paris, edit. Mi-nh-Tn,1951,p.26. 3. Id.,p.27. 32 O QUE A FENOMENOLOGIA? riao eidtica. Deve-se observar que nele no se apela seno ao poder e liberdade da
conscincia que atravs de seu prprio funcionamento, consegue descobrir as leis e a estrutura
de uma essncia como os limites que ela deve fixar para a variao livre, se quiser pensar
sempre a mesma coisa. A descoberta da essncia, em princpio, no invoca de nenhum modo a
experincia, seno enquanto esta fornece os exemplos sobre os quais a imaginao exercer suas
variaes. Viso das essncias e induo A descoberta do invariante ou essncia de um fenmeno pela variao imaginria estar, pois,
no mago da constituio das cincias eidticas. Mas sero essas to distintas das cincias emp-
ricas que a descoberta das essncias, que as define, nada tenha a ver com a induo tal como a
-
praticam as cincias empricas? Husserl sempre ndmitiu que esses dois tipos de cincias, por serem distintos, nem por isso so
absolutamente separados, como se pudssemos desenvolver as cincias eidticas sem jamais nos
referirmos s cincias empricas e como se essas ltimas no recorressem jamais, ainda que o
ignorassem, a uma intuio das essncias. De resto, no estar uma "eidtica" j implicada na
prpria investigao das cincias empricas, como o testemunha, por exemplo, a fsica de
Galileu? Galileu no era, certamente, fe-nomenlogo, nem mesmo pretendia o ttulo de filsofo.
Contudo, no fundo de suas experincias e clculos, tinha a intuio da essncia do objeto fsico
tal como o fsico deve apreend-lo, a saber, que ele consiste em seu ser-medido, tinha a intuio
que a caracterstica essencial do objeto fsico, tal como est implicada por suas pesquisas sobre
a queda dos corpos, a determinao espacial. sobre o fundo dessa intuio no explicitada da
essncia do fsico que se constituiu toda a fsica moderna. Se, por seu lado, o fenomenlogo se
interrogar sobre a essncia do fato fsico na cincia moderna, dever evidentemente se referir
prtica dos fsicos. Poder-se-, contudo, observar que Husserl sempre distinguiu nitidamente a reduo eidtica do
mtodo indutivo praticado nas UMA PRATICA CIENTIFICA 33 ncias da natureza, sobretudo sob a forma proposta por J.S. Mill para q
uem e^
e consistia em
extrair, por abstrao, de uma luralidade de fatos, o carter comum desses fatos ou em tri-los a fim de descobrir entre os fatos
antecedentes aqueles que poderiam ser a causa dos consequentes. Mas tem-se tambm
ressaltado
ue o mtodo indutivo empirista no corresponde prtica real do cientista, pelo menos no
momento das grandes descobertas. Por isso Merleau-Ponty se pergunta se no h uma
convergncia maior que a imaginada por Husserl entre a viso das essncias e a induo tal
como os cientistas de fato a tm praticado4. No observou o prprio Husserl que as grandes
descobertas no foram jamais o resultado de uma simples observao e que no basta acumular
fatos para que deles se extraia uma lei? As novas concepes da fsica foram, ao contrrio,
construes ideais com relao s quais os fatos comportam sempre um coeficiente de im-
perfeio. Assim, Galileu concebe o caso da queda perfeitamente livre de um corpo, caso que
ainda no se realizou em nenhum lugar e mostra em suas experincias que os fatos, levados em
conta os fatores de atrito, resistncia, etc. tendem a realizar esse modelo ideal previamente
construdo. Da mesma maneira, o princpio de Newton no se pronuncia sobre a existncia das
massas em gravitao, mas enuncia idealmente que leis devem lhes convir se elas existem: " assim que todas as leis das cincias exaras referentes aos fatos so, sem dvida, verdadeiras
leis, mas do ponto de vista da teoria do conhecimento so apenas fices idealizantes se bem
que fices cum fundamento in re. Elas tm por tarefa tornar possveis as cincias tericas como
os ideais mais adequados realidade5".
Pode-se ento perguntar o que distingue uma cincia eidtica de uma cincia indutiva:
simplesmente, pensa Merleau-Ponty, 4. Cf. Les sciences de thomme et Ia phnomnologie, op. cit, p. 29 sq. 5. E. Husserl, Prolgomnes Ia hgique pur. Recherches logiques. Tomo 1, ttad. Elie, Kelkel, Scherer, Paris, P.U.F., 1969, p. 80. 34 O QUE A FENOMENOLOGIA? "que uma aplica aos exemplos um processo de variao imaginria, ao passo que a outra
procede por variaes efetivas considerando casos mltiplos que verdadeiramente se
realizaram6". verdade que, s vezes, mesmo nas cincias experimentais, uma nica
experincia basta para estabelecer uma lei, como Brunsch-vicg o mostra a propsito de Davy,
que estabelece a existncia da "base de potssio" ou potassiwn, em consequncia de uma nica
experincia de eletrlise7. Mas, ao termo dos dois tipos de variao; seja ela imaginria ou
efetiva, ns chegamos a uma possibilidade ideal, o que precisamente a definio que Husserl
d da essncia. No se deve, com efeito, conceber as leis segundo um modelo energtico, como
se elas fossem foras reais dissimuladas por detrs das aparncias sensveis, mas como
concepes ideais, puras possibilidades graas as quais nosso espirito tenta se aproximar da
realidade. Mas, se o prprio de uma possibilidade o de no ser um fato real, ela tem tambm
por caracterstica ser realizvel, ter portanto uma vocao para o real e o conhecimento desta
-
pode nos conduzir ao conhecimento do real: "A antiga doutrina ontolgica, segundo a qual o
conhecimento do 'possvel' deve preceder o conhecimento do real, permanece a meu ver uma
grande verdade, desde que seja entendida corretamente e que seja empregada de maneira
carreta8".
Uma dificuldade subsiste contudo. Os exemplos que propuseram concernem fsica, dommio
no qual os modelos ideais tm a exatido das matemticas. Mas pode-se dar o mesmo na
psicologia, na sociologia e nas cincias humanas em geral? Pois, por mais que se idealize a
percepo ou o sentimento, no se chega a nenhum modelo matematizvel e, mesmo se
chegssemos a um tal modelo, poderamos perguntar se ainda estamos a falar de uma percepo
ou de um sentimento. Eis por que Husserl foi levado a distinguir duas espcies de essncias: as essncias exalas que
correspondem aos conceitos rigorosos das matemticas e da fsica e que no tm seno uma re-
lao indireta com a vivncia, j que elas no tm que exprimir 6. Les sciences de t homme et ia phnomnologie, op. cit., p. 30. 7. Cf. L. Brunschvicg, Uexprience humaine et Ia causaUtphyque, Paris, Al-can, 1922, p. 56. 8. E. Husserl, Ides directrices, op. cit., p. 269. UMA PRTICA CIENTFICA 35 a vivncia como tal e as essncias morfolgicas ou inexatas, ' devem, ao contrrio, exprimir a
vivncia em todas suas nuan-as e sem tra-la. Ao passo que as primeiras podem ser construes,
tirando o seu rigor de seu acabamento e de sua coerncia as segundas s podero ser descries
cujo rigor no provir seno da fidelidade ao dado, justamente com o carter fluente e vago que
lhe inerente. Em virtude disso no h uma "geometria da vivncia", isto , uma cincia na qual
os fenmenos vividos pudessem ser deduzidos de um sistema de axiomas e de conceitos
definidos de antemo. "A mais perfeita geometria e seu mais perfeito domnio prtico no podem de modo algum
ajudar o cientista que quer descrever a natureza a exprimir em conceitos de geometria exata
aquilo mesmo que exprime de uma maneira to simples, to compreensvel, to inteiramente
apropriada, atravs de palavras como denteado, entalhado, lenticular, umbeliforme, etc.; esses
conceitos simples so inexatos por essncia e no por acaso; por essa razo igualmente eles
so no matemticos9".
Vale dizer que os conceitos das cincias humanas; que so pelo menos to inexatos e nuanados
como "denteado" ou "umbeliforme" s podero ser o objeto de uma fenomenologia descritiva.
Vale tambm dizer que essas cincias no tm necessidade de ser exatas, como o a geometria,
para serem rigorosas, seu rigor provindo ao contrrio de uma ausncia de exatido, a qual
sempre uma simplificao idealizante do dado. Viso das essncias e introspeco Mas tal descrio da vivncia parecer certamente suspeita aos psiclogos devotados ao mtodo
experimental. No ser voltar introspeco, to explicitamente rejeitada por Auguste Comte? 36 O QUE A FENOMENOLOGIA? Sabemos que o perigo da introspeco de fazer passar por objetiva a descrio de um estado
psquico pelo prprio sujeito que o vive. Ora, alm desses dados internos serem vagos e cam-
biantes, eles no so suscetveis de nenhum controle objetivo, no comportam nenhum critrio
que pudesse premunir o sujeito contra a iluso. Por isso "a observao interior engendra quase
tantas opinies divergentes quantos indivduos haja que creiam se entregar a ela10
". Mas cair nesse erro precisamente no realizar a reduo eidtica ou, como Husserl o diz,
"interpretar psicologicamente o eidtco11
". a situao do mau fenomenlogo que confunde a
essncia do fenmeno com seu estado de conscincia atual, com o fato psquico atravs do qual
sua essncia se d. tratar a conscincia como se ela no fosse intencional, como se ela ficasse
sempre fechada sobre si prpria, prisioneira de sua particularidade emprica, da imediatidade de
sua vivncia, e no tivesse, por essncia, o poder de visar atravs de seus contedos particulares
uma verdade universal, por definio comum a todos e a todos acessvel: "Todas as vezes que se
trata as ideias, as essncias como 'construo psquicas' ... integra-se ao fluxo da conscincia, a
ttulo de componente real, o que lhe por princpio transcendente12
". O que Husserl diz aqui a
propsito da percepo externa vale do mesmo modo para a percepo dos fenmenos internos,
-
como uma sensao ou uma imagem, que correspondem a uma essncia to objetiva quanto a
cor ou a forma de um objeto. Para uma anlise fenomenolgica autntica haver, pois, uma
essncia transcendente do prprio psiquismo e de seus atos e ser possvel captar, atravs da
experincia de meu prprio psiquismo, a essncia do psiquismo em geral. , alis, unicamente
sob essa condio, que as pesquisas experimentais podero se referir a noes bem definidas,
pois como saber o que significa uma imagem ou uma percepo se no se pode defini-las a
partir de uma experincia de imagem ou de uma experincia de percepo? 10. A. Comte, Cours de philosophie positive, primeira lio, Paris, Hater, p. 30. 11. Ies directrices, op. cit., p. 199. 12. Id.,p.200. UMA PRTICA CIENTFICA 37 "Enquanto no tivermos, atravs de uma reflexo sobre nossa experincia da imagem, sobre
nossa experincia da percepo, dado um sentido coerente e vlido a essas diferentes noes,
no saberemos o que querem dizer e o que provam nossas experincias sobre a percepo ou
sobre a imagem13
". Desse modo descobrimos tambm mais claramente que emprego se faz do termo experincia
nas cincias experimentais e na anlise fenomenolgica: a experincia do experimentalista, que
melhor se chamaria experimentao uma experincia sobre o fenmeno. Ao contrrio, a
experincia do fenomenlogo uma experincia do fenmeno. Mostra-se assim que, se a
primeira forma de experincia quer ter um sentido, ela deve se fundar sobre a segunda, o que
equivale a dizer com Husserl que as cincias eidticas constituem o fundamento das cincias
empricas. FENOMENOLOGIA E OBJETIVISMO: A TEORIA DA FORMA Que a fenomenologia no deva necessariamente cair no in-trospeccionismo e no subjetivismo,
ningum poderia melhor testemunh-lo que os psiclogos da "Teoria da Forma" (Gestalt-
theorie), escola que agrupou antigos discpulos de Husserl ou pelo menos pesquisadores que
ficaram durante um certo tempo sob o seu domnio e que no esqueceram os pontos
fundamentais de seu ensinamento. Essencialmente devotados a pesquisas experimentais, os
psiclogos da Forma estabeleceram liames muito estreitos entre o domnio da experimentao e
o da experincia no sentido fenomenolgico. Esses liames so mesmo to estreitos que, levado
ao limite, o primeiro acaba por absorver o segundo, o que certamente no podia satisfazer
Husserl, mas demonstra como a inspirao fenomenolgica pode ser fecunda mesmo fora dos
quadros que Husserl havia estabelecido para ela. 13. Merleau-Ponty, op. cit., p. 18. 38 O QUE A FENOMENOLOGIA? Essncia, forma e estrutura Se a essncia pode ser designada como o invariante que persiste a despeito de todas as variaes
a que a imaginao submete o exemplo que serve de modelo, no ser uma aberrao aproximar
a noo de essncia da de forma e de estrutura, que conheceram, verdade, uma melhor sorte
nas cincias, sobretudo desde o aparecimento do estruturalismo. Como a essncia, & forma uma totalidade estruturada que se define por si mesma e no a
partir dos elementos que a compem. O iniciador da teoria da Forma, o psiclogo vienense
Ehrenfels, d como exemplo do que chama qualidade formal - e que se tornar a forma a
invariabilidade de uma melodia transposta em um outro tom: "Ela permanece para ns a mesma
melodia, to fcil de reconhecer que, as vezes, no notamos a mudana. No entanto, todos seus
elementos esto alterados, seja porque todos os sons so novos, seja porque alguns deles
ocupam outros lugares com outras funes14
". Este exemplo poderia alis servir para ilustrar a
noo de estrutura, que foi definida como "um todo formado de fenmenos solidrios tais que
cada um depende dos outros e s pode ser o que por sua relao com eles15
" ou, mais
brevemente, "uma entidade autnoma de dependncias internas16
". Observemos tambm que o
exemplo da melodia que no muda apesar das transposies, que pois constituda pela inva-
riabilidade da proporo entre elementos e no pela natureza de cada elemento tomado parte,
no deixa de evocar o exemplo da sinfonia com o qual Husserl ilustra a essncia. Mais ainda, o
prprio Husserl chama forma, como j o assinalamos, a unidade intencional pela qual, atravs
-
do fluxo das sensaes internas (sensao de verde, de rugoso, etc.) que constituem a matria
sensvel ou "sensual" da percepo, eu viso o mesmo objeto distinto de mim e exterior a mim (a
rvore que est minha frente). A forma , pois, para o prprio Husserl, um invariante, o
invariante 17. 14. Cf. Paul Guillaume,Lapsychologie de \a forme, Paris, Flammarion, 1937, p. 15. A. Lalande, Vocabulaire technique et critique de Ia philosophie. 16. A. Hjelmslev; cf. Benveniste: Problmes deUnguistique gnrale, Paris, Gal-limard, 1966, p. 97. UMA PRTICA CIENTFICA 39 na diversidade e mudana das sensaes pelas quais um ob- to' se d para mim, me permite
captar este objeto como sendo
pre o mesmo. , portanto, graas forma que a conscincia ode sair de sua vivncia imanente e
perceber, atravs do fluxo temporal dessa vivncia, a essncia que, ela prpria, no afeta-da
pelo tempo. Parece, portanto, haver um parentesco ou ao menos um ar de famlia, entre a noo
fenomenolgica de essncia e a noo de forma. Precisar esta ltima nos permitir, alis,
constatar tambm que a forma no uma simples retomada da noo husserliana da essncia. Para os psiclogos da Gestalttheorie, a forma tal como a havia definido Ehrenfels tornou-se a
chave de todos os fenmenos psquicos que acontecia serem todos definveis como formas: "Os
fatos psquicos so formas, isto , unidades orgnicas que se individualizam e se limitam no
campo espacial e temporal de percepo e de representao17
". Entre os princpios que dirigem
as pesquisas da Gestalttheorie, assinalaremos pelo menos a lei da pregnncia das formas ou da
boa forma, enunciada por Werthei-mer: "A forma to boa como pode ser nas condies
atuais". Esta lei inspirava-se, alis, em uma observao fsica: certas estruturas estveis tendem
incessantemente a retomar sua forma inicial quando so deformadas. Assim, uma gota de leo
pingada num lquido no miscvel toma um forma esfrica; se a fragmentamos ao mex-la, cada
um dos fragmentos retoma logo essa forma esfrica. Aplicada aos fenmenos psquicos, ela
permitia compreender fatos que a psicologia associacionista ou intelectualista no explicavam
claramente, em especial a atividade seletiva da percepo. Por que, por exemplo, percebeu-se no
cu as mesmas figuras desenhadas pelos astros, como os carros das duas "Ursas"? Se essas
formas so espontaneamente percebidas, porque sua percepo no um fenmeno cultural,
um produto da educao, mas repousa na prpria forma que se destaca do fundo e se d,
portanto, a perceber em virtude de sua prpria estrutura. Uma forma ser tanto mais perceptvel,
quanto mais "pregnante" ela for, quer dizer, quanto mais homognea sua estrutura a tornar e a
fizer aparecer 17. P. Guillaume, op.cit., p. 21. O QUE A FENOMENOLOGIA? como uma totalidade independente. Anteriormente reflexo e anteriormente prpria
linguagem, os objetos so percebidos de imediato como formas; assim o campo perceptivo no
um caos no qual o pensamento viria por ordem com o auxlio da linguagem, mas ele pr-
ordenado em formas distintas que no esperam o pensamento para "saltar aos olhos", como o
confirmam as observaes feitas com as crianas ou com os animais18
. bvio que a psicologia da Forma no se limitava anlise das formas do campo fsico, nem da
atividade perceptiva apenas. A noo de forma permitia a renovao da teoria do organismo e
de seu funcionamento19
e tambm trazer pontos de vista novos sobre o exerccio da inteligncia,
da memria, da expresso, etc. Ademais, seu rigoroso procedimento cientfico permitia-lhe
integrar numa compreenso nova os dados da psicologia experimental. Qual ento a relao entre a forma e a essncia tal como a concebia Husserl? Se o carter de
estrutura e de invariao lhes comum, no entanto uma diferena fundamental aparece:
enquanto a essncia permanece, em Husserl, o sentido ideal do objeto produzido pela atividade
da conscincia, a forma de que falam os psiclogos gestaltistas tende cada vez mais a se tornar
uma realidade psicofsica, ou mesmo uma realidade fsica que a conscincia no constitui, mas
que a ela se impe como preexistente a toda atividade de sntese. A distino entre matria e
forma, que Husserl ainda fazia, ser ela prpria rejeitada, pois, segundo os tericos da Forma,
uma matria sem fornia s pode ser uma ideia filosfica contrria aos dados da experincia. Ao
-
idealismo hus-serliano das essncias se contrape, na Gestalttheorie, um realismo das formas. Eis por que, ao inverso da anlise das essncias, a anlise das formas se apoia sobre um
abundante material experimental e, principalmente, no parece mais animada pela preocupaes
filosficas que caracterizavam a reflexo husserliana. Observemos enfim que a ideia de
totalidade estruturada, ao constituir um da- 18. Notadamente as experincias de W. Khler sobre as galinhas e os chimpanzs. 19. Cf. Kurt Goldstein, La structure de orgarsme, tiad. Burckbardt e Kuntz, Paris, Gallimard, 1951. UMA PRTICA CIENTFICA 41 do primeiro cuja ordem no depende de nenhuma gnese, representa uma antecipao, seno
uma primeira etapa, da psicologia estruturalista; "A Gestalt representa um tipo de 'estrutura' que
agrada a um certo nmero de estruturalistas cujo ideal, implcito ou confessado, consiste em
buscar estruturas que possam considerar como 'puras', porque eles as desejariam sem histria e
afor-tiori sem gnese, sem funes e sem relaes com o sujeito20
". Campo e intencionalidade Se, no obstante, a forma conserva, ao transp-los, certos caracteres da essncia, a teoria da
Forma se prende fenomenologia sobretudo pelo uso, igualmente transposto, que faz da noo
de intencionalidade. verdade que a esse ltimo termo prefere-se o de campo que Khler, que
havia recebido uma formao de fsico, estimava talvez mais cientfico. Mas os fenomenlogos
falam tambm do campo fenomenolgica que corresponde correlao sujeito-objeto ou
conscincia-mundo, da qual dissemos ser mais primitiva que o sujeito ou o objeto, que s se
definem nessa correlao. O campo ser, pois, concebido como um espao primordial no qual aparecem plos que iro lhe
dar sua configurao, dividindo-o entre eu e no eu: "A distino do eu e do mundo exterior
um fato de organizao do campo total21
". Essa anterioridade do campo sobre sua organizao
revelada, segundo Koff-ka, pela luz vaga que acompanha a volta conscincia de um alpinista
vtima de uma queda: "H a princpio 'alguma coisa..., claridade confusa', mas no um sujeito
que a perceba; mais estabelecem-se uma dissociao e uma oposio; agora o campo est
polarizado22
". Essa bipolarizao em torno do eu e do mundo exterior, na qual o corpo
desempenha um papel fundamental* j que funo dele que os fenmenos sero ditos externos
u internos, no depende de uma organizao diferente da que 20. J. Piaget, Le structuratisme, Paris, P.U.F., col. Que sais-je?, 1968, p. 48. 21. Cf. P. GuiUaume, op. cit.,p. 116. 22. Id. 42 O QUE A FENOMENOLOGIA? nos faz perceber os objetos como exteriores uns aos outros: "A exterioridade recproca do eu e
das coisas da mesma ordem que a exterioridade recproca de dois objetos na percepo; um
caso particular deste modo de organizao fenomenal que faz aparecer uma dualidade numa
figura complexa (por exemplo num grupo de pontos ou de linhas23
)". Que a conscincia de si no seja o plo de organizao original, surpreender sem dvida
alguma o leitor de Husserl. Esses objetos, que percebemos como exteriores a ns ou exteriores
uns aos outros, no sero assim percebidos pela atividade da conscincia constitutiva da
"objetividade" e da exterioridade? Mas acontece que, como j ressaltamos, a teoria da Forma
rejeita toda ideia de constituio que supusesse uma gnese das formas. A forma no deve sua
estrutura seno a si prpria e, se a conscincia aparece como um elemento na organizao do
campo, ela no de modo algum sua origem: "No esqueamos que a teoria da Forma no liga a
organizao nem conscincia, nem mesmo vida24
". No conviria, contudo, deduzir que essa organizao uma espcie de arquitetura esttica. A
prpria ideia de campo evoca um dinamismo, j que ele designa em fsica um espao de con-
junes e de oposies de foras. Esse dinamismo pode, alis, ser ilustrado a partir do campo de
comportamento ou do campo psicolgico tais como K. Koffka e K. Lewin os estudaram. O comportamento j havia sido definido graas aos trabalhos experimentais de Watson, nos
Estados Unidos, como a relao entre um conjunto de estmulos, provenientes do ambiente
natural ou cultural, e as respostas do organismo ao ambiente, respostas pelas quais o organismo
se adapta incessantemente s condies criadas pelo meio. Mas, segundo os tericos da Forma,
o erro de Watson foi o de procurar a causa das respostas unicamente na fisiologia nervosa, isso
-
sob a influncia dos trabalhos clebres de Pavlov e de Betcherev sobre os reflexos
condicionados. Ora, isso implicava isolar o corpo de seu ambiente, conceb-lo, sob pretexto de
objetividade, como um mecanismo fechado sobre si prprio 23. Id. 24. Id., p. 144. UMA PRATICA CIENTFICA 43 vez de perceb-lo como um plo num campo que o ultrapassa por relao ao qual ele se define.
Estudados como simples mecanismos, os circuitos sensrio-motores s apresentam cadeias de
reflexos e no um ato dotado de uma significao. O comportamento s ser compreendido, isto
, aprendido em sua natureza de ato finalizado, se for considerado como uma forma que se
desenvolve no tempo e que recobre simultaneamente o organismo e o meio ao qual o organismo
deve se adaptar. Assim Koffka compara a construo do ninho por um pssaro a uma melodia que, uma vez
comeada, tende a seu acabamento, integrando as diferentes sequncias que a compem. O
pssaro no executa uma srie de movimentos sem ligaes, mas uma tarefa cuja unidade d um
sentido a cada movimento que concorre para sua realizao. O campo do comportamento
assim ao mesmo tempo campo de ao e campo de percepo, j que a percepo funo das
necessidades do organismo e de suas visadas dirigidas ao ambiente e j que a ao, por seu lado,
funo da percepo que prope esse ambiente como uma exigncia permanente de adaptao.
A esse respeito, Koffka distingue o meio primordial de percepo e de adaptao, que denomina
meio de comportamento, do meio geogrfico, que seria o meio considerado independentemente
de toda inteno de adaptao, tal como, por exemplo, a cincia no-lo representa. P. Guillaume
ilustra essa distino pelo caso do viajante perdido que chega a um albergue aps ter
atravessado, diz ele, a plancie coberta de neve (meio de comportamento), quando de fato
atravessara o lago de Constana congelado (meio geogrfico25
). A percepo aparente da
plancie regulou o seu ato - alcanar o albergue - e o prprio ato determinou o meio aparente
como plancie, isto , como o que podia ser atravessado. O campo de comportamento, como
estruturao mtua da percepo e da adaptao, teria sido diferente se o viajante se tivesse
dado conta que a plancie era um lago. Com isto, vemos que esse campo no jamais um dado
absoluto, mas se define somente pelo estado atual da adaptao. Ele , pois, suscetvel de
nidificaes desde que uma tenso nova aparea entre o organismo e o seu meio. 25. Cf. op. cit., p. 129.
'
44 O QUE A FENOMENOLOGIA? Com isso, alis, a teoria da Forma permite estabelecer uma relao entre a fisiologia, que tem
por objeto a estrutura do organismo, e a ontognese, que tem por objeto a evoluo do orga-
nismo e de seu comportamento. A tese mecaniscista, que compreende a funo a partir da
estrutura do rgo, no explica a evoluo do organismo. Se este, ao contrrio, compreendido
como um plo no campo do comportamento, no h dificuldade em pensar que uma
reestruturao do meio acompanhada por uma reestruturao do organismo: "Entrev-se assim
a unidade dos problemas de ontognese e de fisiologia. A explicao do funcionamento pela
estrutura material no vai longe porque parece arbitrrio que esta estrutura seja precisamente
aquilo que ela . A teoria da Forma coloca ao contrrio em sua origem a estrutura de um
processo fsico que no tem mais nada de acidental, j que ela no seno a expresso de leis
dinmicas; ela faz compreender ... como a destruio da estrutura material (ou seu desequilbrio
com relao a um meio modificado) pode terminar, atravs da atuao das mesmas leis, numa
restaurao parcial ou numa correo da funo26
". A noo de campo psicolgico foi pensada por Kurt Lewin na mesma perspectiva que o campo
de comportamento de Koffka. Cumpre, alis, recordar que foi Lewin quem criou a expresso d
"dinmica de grupos" e fundou a escola que leva esse nome. A dinmica psicolgica tem em comum com a dinmica fsica, tal como foi concebida por
-
Galileu, o reconhecimento que "a situao assume tanta importncia quanto o objeto. Os vetores
que determinam a dinmica de um fenmeno no podem ser definidos seno em funo da
totalidade concreta, que compreende ao mesmo tempo o objeto e a situao27
". Tal concepo
significa concretamente que s se pode abordar a conduta de um indivduo ou de um grupo
situando-o em seu campo, que Lewin denomina tambm "espao de vida". Esse campo
psicolgico compreende assim duas regies principais: a pessoa ou o grupo e o ambiente,
regies que so funes uma da outra e, portanto, interdependen- 26. P. Guillaume, op. cit., p. 132. 27. K. Lewin: Psychologie dynanque, trad. M. e C. Faucheux, Paris, P.Ui\, 1967,p.51. UMA PRTICA CIENTFICA 45 Se analisamos as relaes entre a pessoa e o grupo, constata-ue este no um agregado de
indivduos, mas um organis- cuia estrutura constituda precisamente pelo campo psicol- . . os objetivos, as aes, as possibilidades, as normas, etc. dos divduos se organizam no grupo num sistema de tenses positi- ou negativas, correspondentemente ao jogo dos desejos e das oibioes peio qual grupo e
indivduos tendem ao seu equilbrio respectivo. Da mesma maneira, o campo psicolgico do
grupo situa-se num "campo social" com o qual mantm um jogo anlogo de tenses. Sendo a ecologia o estudo das relaes entre um organismo e o meio no qual ele est situado,
meio sem o qual no poderia alis subsistir, Lewin denominou "relao ecolgica" este jogo de
tenses entre os diversos campos28
. Esta concepo de um espao dinmico permite definir um
conjunto de variveis rigorosas e ordenadas umas s outras, a partir das quais podem-se
constituir diversas hipteses sobre as variaes de equilbrio de um grupo, hiptese possvel
alis de verificar em grupos experimentais. Com isso, Lewin pensava poder dar ao estudo da
dinmica psicolgica o mesmo rigor cientfico que Galileu havia dado dinmica fsica. O que,
sem dvida, significava chegar a esse tipo de "geometria da vivncia" que Husserl havia
declarado impossvel. O naturalismo da Gestalttheorie A filosofia derradeira da teoria da Forma no rejeitou afinal o fisiologismo de Watson seno
para terminar numa espcie de fisi-cismo ilustrado notadamente pela tese do isomorfismo. Esta
tese consiste em conceber as trs noes de forma - fsica, fisiolgica e psquica que sabemos
estar em correspondncia, como devendo ser compreendidas num campo nico, o qual preciso
pensar como um campo fsico: "A expresso: campo psicolgico ou cerebral, deve ser
considerada como mais que uma simples metfora e * bem que a descrio de seu dinamismo
permanea abstrata, nurn
sentido puramente fsico que preciso compreend-la29
". 28. Cf. id., Introd., p. 18. 29. P. Guillaume, op. cit., p. 112. 46 O QUE A FENOMENOLOGIA? Trata-se, com efeito, de evitar o paralelismo que justaporia as diferentes ordens de forma, como,
no caso de percepo de uma rvore, sua forma fsica externa, a forma correspondente nas estru-
turas cerebrais e a forma mental no psiquismo que conscincia da rvore percebida. Com
efeito, como poderiam essas formas entrar em relao, se fossem paralelas? Graas unidade do
campo, ao contrrio, todo dualismo ou pluralismo excludo da compreenso do fenmeno que
pode ser ao mesmo tempo, por sua estrutura unitria, fenmeno fsico, fisiolgico e psquico ou,
para resumir, fenmeno psicofsico. nessa perspectiva que Koffka compreendia seu projeto de
uma psicologia integrante: "Em nossa concepo, os processos psico e fisiolgicos, ou antes os
processos psicofsicos, so organizados segundo relaes intrnsecas ou internas, o que quer
dizer que em nossa concepo a psicologia e a lgica, a existncia e a verdade, no pertencem
mais a dois domnios ou dois universos do discurso verdadeiramente diferentes, entre os quais
nenhuma relao inteligvel poderia existir. aqui ou nunca que a psicologia poder
desempenhar o papel de integrao que lhe conferimos no incio de nosso trabalho30
". Compreende-se que Husserl no tenha jamais aceitado essas concluses que, como acontecer
em certas formas do estrutura-lismo, tende a reduzir a conscincia e o sujeito a uma simples
-
dinmica de estruturas naturais. Se a significao e a inteno so reduzidas aos fenmenos
psicofsicos e explicadas como tais, trata-se, com efeito, de um retorno evidente ao
psicologismo que Husserl no cessou de combater. Entretanto, a despeito de suas concluses, a teoria da Forma, proveniente da fenomenologia,
inspirar a forma nova que esta vai assumir em Merleau-Ponty: "Nosso objetivo, escreve este
ltimo, de compreender as relaes da conscincia e da natureza, orgnica, psicolgica ou
mesmo social31
". Se essa compreenso deve se operar pela anlise fenomenolgica que se
desenvolver notadamente na Fenomenologia da Percepo, ela comea por "baixo", isto , por
uma anlise do comportamento que tomaco- 30. K. Koffka, Principies of gestalt psychology, p. 570. Cf. Merleau-Ponty, Les sciences de thomme et Ia phnomnologie, op. cit.,
p. 37. 31. Lastructure du comportement, Paris, P.U.F., 6- ed. 1967, p. 1. UMA PRTICA CIENTFICA 47 ponto de apoio os trabalhos de Watson e dos tericos da For-m A vantagem da noo de
comportamento "que ela neutra com respeito s distines clssicas entre o 'psquico' e o
'fisiol-eico' e pode, portanto, nos dar a oportunidade de defini-los de Do comportamento do homem no mundo, se poder passar percepo do mundo, ambos sendo
primeiros e interdependentes, como tambm o mostraram os psiclogos da Forma. Mas se esses
primeiros dados, muito embora extrados pela cincia, so neutros, remetem a uma experincia
que antecede as prprias posies da cincia e notadamente a ideia que o cientista implicita-
mente se faz da objetividade e do real. A fenomenologia se dar ento por tarefa mostrar que,
antes de toda concepo filosfica ou cientfica, o homem de incio ser-no-mundo, "debate ou
explicao com o mundo" e que no se pode privilegiar nem a conscincia, como o fazem as
correntes idealistas e como o prprio Husserl tende a faz-lo, nem o mundo, como o supem as
"concepes cientficas segundo as quais eu sou um momento do mundo33
". Assim, se poderia
dizer que Merleau-Ponty procura corrigir, com os resultados da Gestalttheorie, o escolho do
idealismo que espreita a fenomenologia transcendental de Husserl (o mundo absorvido pela
conscincia que o constitui) e, pela fenomenologia, o escolho do naturalismo que espreita a
Gestalttheorie (a conscincia absorvida pelas estruturas naturais que a definem). 32. Id., p. 2. 33. Phnomnologie de Iaperception, op. cit., Prefcio, p. III. Captulo 3 UMA METODOLOGIA DA COMPREENSO Se a noo dejntencionalidade central para a fenomenologia, ela no pode se transformar num
simples campo psicoffsico sem comprometer com isso a prpria ideia de fenomenologia. , ao
contrrio, restaurar a intencionalidade em seu sentido bvio,! isto , como visada da conscincia
e produo de um sentido, que a fenomenologia poder perceber os fenmenos humanos em seu
teor vivido. No nos admiraremos pois, de que rejeitando as consequncias extremas da teoria
da Forma, outros pesquisadores tenham, ao contrrio, tentado restituir pela fenomenologia a di-
menso subjetivo que distingue os fenmenos humanos dos naturais. Essas tentativas, embora
diversas quanto ao seu modo e seu objeto, tm ao menos em comum o fato de terem esboado o
que se poderia chamar uma metodologia da compreenso nas cincias humanas. INTENO E COMPREENSO O tema do "compreender", que no foi criado pela fenomenologia, deu ensejo, desde o sculo
XIX, a inmeros estudos e ^scusses, que loachim Wach tentou divulgar na obra que leva
Precisamente por ttulo "O Compreender"1. A fenomenologia, Portanto, no fez mais do que
trazer a sua contribuio a um tema 1- DasVerstehen, 3 vols., Tubingen, 1926-1933. 50 O QUE A FENOMENOLOGIA?
L particularmente debatido e no se pode dizer que sua contribuio tenha fechado nem mesmo
simplificado a discusso: "Quem hoje quisesse empreender uma obra sinttica e passar em
revista todas as publicaes que at este dia apareceram contra ou a favor do 'compreender'
enquanto mtodo cientfico teria necessidade, no de trs, mas de ao menos 6 volumes2". Por
isso ns nos contentaremos em ressaltar em que a ideia de inteno est no fundamento do
compreender tal como o supem as investigaes que se recomendam da fenomen