o protagonismo da mulher no espetÁculo a brava, da … · o protagonismo da mulher no espetÁculo...

12
1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA BRAVA COMPANHIA (SP) Vanessa Biffon Lopes 1 Resumo: A Brava Companhia, inserida no contexto de teatro de grupo na cidade de São Paulo, há cerca de dez anos apresenta o espetáculo teatral de rua, A Brava. A peça, inspirada na história de Joana d’Arc – personagem histórica que precisou se travestir de homem para poder agir socialmente na Guerra dos Cem Anos , evoca batalhas contemporâneas ao inserir elementos da política nacional, e tem na voz desta mulher, o protagonismo de um processo histórico em plena transformação. Este espetáculo, de linguagem épica dialética, integra uma série de atividades promovidas pela Brava Companhia que vêm contribuindo para uma transformação sociocultural no bairro e na cidade onde está inserida. O artigo analisará esta obra teatral a partir da perspectiva feminista (Elin Diamond e Michelle Perrot), considerando alguns elementos cênicos como dramaturgia, figurino, cenário, encenação, representação, música cênica; e debaterá o protagonismo da mulher na cena. Deste modo, alguns questionamentos serão levantados: como essa personagem é representada, que elementos cênicos a caracterizam, quais discursos foram inseridos em cena, como foi o processo criativo, qual a participação da atriz na construção da personagem e na montagem, quais foram as modificações da peça em dez anos de apresentação, o que os movimentos feministas e os estudos de gênero influenciaram o discurso poético, qual o significado de protagonismo, qual é o protagonismo da mulher personagem e atriz na Brava Companhia. Palavras-chave: Teatro de Grupo. Mulher. Protagonismo. Com quase vinte anos de existência 2 , a Brava Companhia tem relevante pesquisa teatral na cidade de São Paulo. Também é característica deste grupo uma reconhecida militância política, com atuação em movimentos sociais e participação em debates para construção de políticas culturais e melhorias das condições da(o) trabalhadora teatral. Na trajetória da Companhia, diversas atividades foram (e são) voltadas para a formação estética e social, especialmente na zona sul paulistana Parque Santo Antônio (Sacolão das Artes 3 ) e Parque Santo Amaro 4 - contribuindo para a construção de uma cultura periférica e uma poética com forte crítica social. Esse percurso advém de muita luta e persistência, e encontra-se em permanente oscilação material. Porém, ao colocar enfoque para as 1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Artes (Área de concentração: Artes Cênicas), Instituto de Artes, da Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, São Paulo SP, Brasil. 2 De 1998 a 2005, o grupo chamava-se Companhia Teatral ManiCômicos. Após um rompimento entre as(os) integrantes em 2005, passou a se denominar Brava Companhia. 3 Antigo sacolão hortifrutigranjeiro, espaço ocioso há anos, foi transformado em polo cultural em razão da verba de editais públicos como a Lei de Fomento ao Teatro, de iniciativas de grupos como a Brava Companhia, e da militância local. Ali foram oferecidas ações culturais, como: teatro para escolas, cursos livres para jovens e adultos, debates com profissionais diversas(os), criação de brinquedoteca, biblioteca comunitária, somadas a outras inciativas de grupos parceiros que ainda ocupam o local. 4 No início de 2016, a Brava Companhia anuncia a retirada de sua sede do Sacolão das Artes após 9 anos de ocupação e passa a realizar atividades em um espaço provisório no bairro Parque Santo Amaro. Mais informações: http://blogdabrava.blogspot.com.br/2016/02/brava-companhia-retira-sua-sede-do.html

Upload: dongoc

Post on 25-Jan-2019

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA … · O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA BRAVA COMPANHIA (SP) ... personagem histórica que precisou se travestir

1

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA

BRAVA COMPANHIA (SP)

Vanessa Biffon Lopes1

Resumo: A Brava Companhia, inserida no contexto de teatro de grupo na cidade de São Paulo, há

cerca de dez anos apresenta o espetáculo teatral de rua, A Brava. A peça, inspirada na história de

Joana d’Arc – personagem histórica que precisou se travestir de homem para poder agir socialmente

na Guerra dos Cem Anos –, evoca batalhas contemporâneas ao inserir elementos da política

nacional, e tem na voz desta mulher, o protagonismo de um processo histórico em plena

transformação. Este espetáculo, de linguagem épica dialética, integra uma série de atividades

promovidas pela Brava Companhia que vêm contribuindo para uma transformação sociocultural no

bairro e na cidade onde está inserida. O artigo analisará esta obra teatral a partir da perspectiva

feminista (Elin Diamond e Michelle Perrot), considerando alguns elementos cênicos como

dramaturgia, figurino, cenário, encenação, representação, música cênica; e debaterá o protagonismo

da mulher na cena. Deste modo, alguns questionamentos serão levantados: como essa personagem é

representada, que elementos cênicos a caracterizam, quais discursos foram inseridos em cena,

como foi o processo criativo, qual a participação da atriz na construção da personagem e na

montagem, quais foram as modificações da peça em dez anos de apresentação, o que os

movimentos feministas e os estudos de gênero influenciaram o discurso poético, qual o significado

de protagonismo, qual é o protagonismo da mulher – personagem e atriz – na Brava Companhia.

Palavras-chave: Teatro de Grupo. Mulher. Protagonismo.

Com quase vinte anos de existência2, a Brava Companhia tem relevante pesquisa teatral na

cidade de São Paulo. Também é característica deste grupo uma reconhecida militância política, com

atuação em movimentos sociais e participação em debates para construção de políticas culturais e

melhorias das condições da(o) trabalhadora teatral. Na trajetória da Companhia, diversas atividades

foram (e são) voltadas para a formação estética e social, especialmente na zona sul paulistana –

Parque Santo Antônio (Sacolão das Artes3) e Parque Santo Amaro4 - contribuindo para a construção

de uma cultura periférica e uma poética com forte crítica social. Esse percurso advém de muita luta

e persistência, e encontra-se em permanente oscilação material. Porém, ao colocar enfoque para as

1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Artes (Área de concentração: Artes Cênicas), Instituto de Artes, da

Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, São Paulo – SP, Brasil. 2 De 1998 a 2005, o grupo chamava-se Companhia Teatral ManiCômicos. Após um rompimento entre as(os) integrantes

em 2005, passou a se denominar Brava Companhia. 3 Antigo sacolão hortifrutigranjeiro, espaço ocioso há anos, foi transformado em polo cultural em razão da verba de

editais públicos como a Lei de Fomento ao Teatro, de iniciativas de grupos como a Brava Companhia, e da militância

local. Ali foram oferecidas ações culturais, como: teatro para escolas, cursos livres para jovens e adultos, debates com

profissionais diversas(os), criação de brinquedoteca, biblioteca comunitária, somadas a outras inciativas de grupos

parceiros que ainda ocupam o local. 4 No início de 2016, a Brava Companhia anuncia a retirada de sua sede do Sacolão das Artes após 9 anos de ocupação e

passa a realizar atividades em um espaço provisório no bairro Parque Santo Amaro. Mais informações:

http://blogdabrava.blogspot.com.br/2016/02/brava-companhia-retira-sua-sede-do.html

Page 2: O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA … · O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA BRAVA COMPANHIA (SP) ... personagem histórica que precisou se travestir

2

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

relações de gênero percebe-se o quanto ainda se faz necessário um debate mais aprofundado, seja

no âmbito da divisão do trabalho, seja na construção poética dos espetáculos.

O teatro é uma arte que pressupõe o trabalho conjunto de artistas. A maneira de organizar e

realizar as funções artísticas estão intimamente ligadas ao “resultado final” do espetáculo teatral.

Apesar de ser uma arte coletiva, as decisões nem sempre são tomadas coletivamente pelas(os)

artistas envolvidas em um grupo. Para citar um exemplo, historicamente, algumas funções artísticas

já gozaram de grande hierarquia e prestígio distinto, com participação discrepante entre homens e

mulheres (e outras categorias de gênero). As funções de dramaturgia, direção e encenação, cada

qual preponderante em determinado tempo histórico, estiveram por muito tempo associadas a uma

condução intelectual do espetáculo em detrimento a outras funções cênicas como cenografia,

figurino, iluminação. Essas funções, exercidas majoritariamente pelos homens, conferiam a eles

uma espécie de “cacife ideológico” da obra de arte (Roubine, 1982, 45).

No caso dos coletivos pertencentes ao chamado teatro de grupo de São Paulo, desde o início

de seu surgimento5, há a preocupação em romper este modus operandi citado no parágrafo acima.

Esses grupos passaram a construir um perfil de fazer teatral baseado em processos colaborativos

horizontais, com poéticas permeadas por crítica social, pesquisa continuada e atuação em regiões

não privilegiadas da cidade. Essa transformação pode ser considerada uma melhoria no quesito de

valorização e construção democrática de trabalho, o que já têm contribuído para uma configuração

mais igualitária das mulheres no exercício artístico.

Dos onze integrantes da Brava Companhia, quatro são mulheres: Rafaela Carneiro, Kátia

Alves, Cristiane Lima e Luciana Gabriel. Elas desempenham funções diversas no grupo com

predominância na atuação, no figurino e na produção. Das seis peças e dois experimentos cênicos

que o grupo realizou até hoje, apenas em um espetáculo houve direção e encenação de uma mulher6

e em nenhuma dramaturgia há a assinatura delas, no entanto, a criação no grupo tem caráter

colaborativo, a construção textual, por exemplo, baseia-se nas improvisações realizadas durante os

ensaios. No Caderno de Erros, publicação da Brava Companhia desde 2010, são descritos

procedimentos técnicos, treinamentos, pesquisa de linguagem, manifestos, textos e registros

5 Para Mate (2008), o sujeito histórico teatro de grupo de São Paulo é resultado de inúmeros fatores políticos, sociais e

culturais das décadas de 1980 e 1990. Da união de alguns grupos e artistas independentes surgiu o Movimento Arte

Contra a Barbárie (1999), que elaborou e aprovou – a duras penas – a Lei de Fomento ao Teatro (início em 2002),

criando condições para que houvesse liberdade e continuidade de pesquisa cênica para coletivos que, sem uma política

pública que os contemplasse, dificilmente sobreviveriam em um mercado regido pela indústria cultural. (Carvalho,

2008, 34). A Lei de Fomento modificou parte do fazer teatral em São Paulo, tornando a arte mais próxima de um viés

social. 6 Rafaela dirigiu a peça Corinthians, meu amor- segundo Brava Companhia – Uma homenagem ao Teatro Popular

União e Olho Vivo, em 2012.

Page 3: O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA … · O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA BRAVA COMPANHIA (SP) ... personagem histórica que precisou se travestir

3

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

históricos, e apenas contam com a participação escrita das mulheres em dois excertos7, sendo que as

quatro edições foram organizadas pelos homens. Na construção do cenário, iluminação e música

cênica, há um rodízio maior de funções, apesar dos homens assumirem mais a parte cenotécnica.

É interessante observar que esse panorama se repete em vários grupos da cidade que

compõem o chamado teatro de grupo. Para citar outros exemplos, Alexandre Mate em seu artigo O

teatro de grupo na cidade de São Paulo e a criação de espetáculos (na condição de experimentos)

estéticos sociais (2012), enumera 95 grupos de teatro com percurso consolidado na cidade. Desses

grupos8, considerando apenas os membros efetivos, apenas 22 contam com a presença da mulher na

direção, encenação e na dramaturgia, sendo que a maioria desses casos há um rodízio de funções

com os homens. Pode-se presumir que as funções de dramaturgo, direção e encenação dos

espetáculos são realizadas prioritariamente pelos homens até os dias atuais, as mulheres têm se

exercitado pouco em algumas funções desempenhadas historicamente por eles. No que tange o

trabalho colaborativo, isso não seria um problema se não houvesse privilégio de pontos de vista

sobre outros. Parece que, mesmo com uma significativa reformulação na prática e na concepção

produzida pelo teatro de grupo, há resquícios de um jeito de fazer teatro hierárquico e dissonante ao

exercício das funções artísticas e também há lacunas de perspectivas relacionadas, principalmente,

às questões das mulheres, conforme será analisado na peça A Brava.

Dos espetáculos da Brava Companhia, apenas em A Brava há a figura da mulher como

protagonista9. Nos outros espetáculos, as personagens mulheres tem aparições e funções cênicas

variadas, mas não conduzem a trama narrativa da história da peça, não têm destaque central, apesar

de serem importantes. Joana d’Arc ganhou protagonismo neste espetáculo por insistência da atriz

Rafaela Carneiro, única mulher no processo, que vinha de experiências anteriores, ainda quando o

grupo chamava Companhia Teatral ManiCômicos, em que só os homens eram destacados e as

mulheres faziam “tudo em coro, as coisas mais ‘árvores’10 possíveis da peça” (Entrevista11 com

Rafaela Carneiro). O grupo aceitou coletivamente o pedido da atriz, mas no decorrer das entrevistas

7 Rafaela Carneiro escreveu um breve texto sobre a montagem de Corinthians, meu amor (Almeida, 2015b, 124), e

Luciana Gabriel, Cristiane Lima e Débora Torres (ex-integrante da Brava Cia) escreveram meia página acerca do

experimento cênico da turma do Curso Livre (Almeida, 2015b, 105). 8 A relação dos grupos encontra-se em Mate, 2012, 183. Dos 95 grupos pesquisados através de seus sites oficiais, em 7

não foi possível encontrar informações a respeito da divisão artística das montagens por gênero. 9 A palavra protagonista refere-se à personagem central de uma obra artística. No entanto, neste artigo procurou-se

associar este conceito à categoria de gênero mulher para destacar uma atitude feminista perante a necessidade de “dar

mais voz” às mulheres, requisitar mais atenção a este debate, e não necessariamente atribuir maior importância às

personagens centrais de um espetáculo. 10 Termo coloquial que, no vocabulário teatral, conota uma personagem sem importância dramatúrgica. 11 Entrevistas feitas com as mulheres e os homens da Brava Companhia, em momentos distintos, e que serão publicadas

ao término do Mestrado, previsto para março de 2018.

Page 4: O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA … · O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA BRAVA COMPANHIA (SP) ... personagem histórica que precisou se travestir

4

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

realizadas com os artistas, parece não haver grande diferença para os homens ter a história de Joana

d’Arc como central no espetáculo ou a de outro personagem (Galileu e Sócrates, por exemplo,

foram personalidades cogitadas para essa peça), mas para a atriz sim, pois assim como a

personagem, Rafaela é mulher.

(...) a coisa do feminino entra por causa da Rafa, ela que coloca essa questão de primeira,

obviamente. “Acho que a gente tinha que falar da questão da mulher” [ela disse]. Essa

discussão sobre o feminino que hoje está bastante no ar, há 10 anos atrás já estava um

pouco, mas não estava com a intensidade que tem hoje, mas acho que é um resquício do

que estava para vir. Quando a Rafa coloca essa questão e a gente senta para discutir o que

vamos fazer, e como você está todo desestruturado, acabou o grupo [ManiCômicos], porque

agora vamos fazer o que a gente quiser, então, cada um falou o que era afim de fazer, do

que queria falar, e a Rafa colocou essa questão. É assim que entra. (Entrevista com Ademir

de Almeida)

Na citação acima não é apresentada uma preocupação com a perspectiva de gênero na

escolha inicial do tema, mas ela irá aparecer na construção do espetáculo. Nas entrevistas e textos

encontrados de publicações do grupo, é possível perceber, no entanto, que a maior inquietação da

Cia ao montar seus espetáculos é trazer para cena os conflitos da luta de classes, dentro de um

pensamento materialista histórico. Essa perspectiva é associada a uma linguagem épica dialética

que, mais do que um formato teatral, propõe uma historicização atualizada de crítica social na cena.

Para Bertolt Brecht (1967), que era marxista, a função do teatro é mostrar as contradições

das situações sociais trazidas para a cena – que ora são representadas/narradas ficcionalmente, ora

são representadas/narradas pelas(os) atrizes(atores) –, a fim de conectar o público a um processo

histórico maior do qual ele faz parte, para além da obra artística. Só no mundo material há condição

de transformação social (desejo maior desse fazer teatral), portanto, a ilusão cênica é

constantemente revelada à(ao) espectadora. O método brechtiano não é simplesmente uma

aplicação de técnica, e pode ser feito de inúmeras maneiras, mas estrutura-se na construção de

cenas-imagens, de gestos (e gestus sociais), de símbolos, de músicas com finalidade épica. Todos

esses recursos procuram ter efeito de distanciamento, que consiste em transformar uma situação e

sinais cotidianos/vulgares, em algo inesperado, peculiar, para que cause um “estranhamento” no

espectador e o ative a pensar, a se questionar. O esforço também é para as(os) atrizes(atores) épicas;

elas(eles) precisam compreender e estar em posse de toda a criação cênica para mostrá-la ao

público, e não apenas decoram um texto e interpretam a personagem.

A linguagem épica dialética na Brava Companhia é combinada a um vocabulário cômico,

com referências da bufonaria, da arte clownesca e dos tipos populares. Metade de seus espetáculos é

apresentado na rua, como é o caso de A Brava, o que exige uma representação mais direta, explícita,

Page 5: O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA … · O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA BRAVA COMPANHIA (SP) ... personagem histórica que precisou se travestir

5

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

gestualmente maior. Essas combinações podem se tornar mecanismos importantes na construção de

um espetáculo com alto teor crítico, algo que a Cia vem se especializando.

Elin Diamond (1997), traz uma preciosa leitura entrecruzada da teoria brechtiana e a teoria

feminista12. Segundo a autora, por se tratar de uma linguagem que requer constante revisão,

atualização e historicização, o teatro épico brechtiano é uma ferramenta potente de desnaturalização

do olhar sobre o gênero13. O gênero é percebido em um conjunto de gestos, comportamentos,

aparências, que englobam uma identidade de categoria construída culturalmente. Por trás da análise

de gênero encontra-se a ideologia de uma cultura, naturalizadas (forçosamente) em categorias fixas

que estruturam as relações humanas em torno do poder de uns sobre outros. Essas construções

hegemônicas de gênero podem ou não ser reproduzidas na arte, dependendo de como os gêneros são

representados.

Na encenação de A Brava14, a peça inicia com uma cena do final da história, Joana sendo

condenada à fogueira. O carrasco amarra a protagonista em uma pilastra da igreja (Mosteiro São

Bento)15. Joana parece chorar enquanto é amarrada, mas acaba soltando uma estrondosa gargalhada.

O arcebispo profere a sentença final, enquanto o carrasco cospe fogo (pirofagia) simbolizando a

morte da personagem. Há uma “quebra cênica”: sem representar personagens, atores e atriz cantam

uma música convidando o público a sentar-se em semi-arena para que o teatro comece, enquanto

introduzem a história de Joana através da letra da música16.

Na primeira parte do espetáculo, Joana está com um figurino com cores claras em

sobreposições. Ela usa vestido, casaquinho roxo e tem cabelos longos cobertos por uma faixa

rendada, está descalça. A vestimenta estilizada remete a uma camponesa medieval, conforme a

imagem abaixo.

12 O termo teoria feminista abrange inúmeras vertentes, “muitas delas associam-se dentro de diferentes rubricas a

diferentes topoi e diferentes inflexões políticas. Todavia, provavelmente todas as teorias que se auto intitulam

‘feministas’ partilham um objetivo: a análise apaixonada do gênero nas relações sociais materiais e nas estruturas

representativas e discursivas, particularmente o teatro e o cinema, que envolvem o prazer visual e o corpo”. (Diamond,

2011, 34). 13 De acordo com Diamond, o mesmo não acontece com as dramaturgias de Brecht, que denotam uma “típica cegueira

marxista perante as relações de gênero” (Diamond, 1997, 44). No entanto, é necessário apontar a distância temporal que

há entre os escritos de Brecht e o estudos de gênero. 14 Direção e dramaturgia final de Fábio Resende, com criação coletiva de Ademir de Almeida, Márcio Rodrigues e

Rafaela Carneiro. 15 Esta apresentação pode ser assistida na íntegra em: http://blogdabrava.blogspot.com.br/p/espetaculos-da-brava-

companhia.html 16 A música é elemento forte na construção épica, ela tem a função de romper a narrativa dramática para comentar a

cena e revelar o outro lado das ações. Em A Brava, ela também aparece como espaço de diversão e criação de ironia

(Almeida, 2015a, 97).

Page 6: O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA … · O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA BRAVA COMPANHIA (SP) ... personagem histórica que precisou se travestir

6

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Foto: Tainá Azevedo

Essas características pertencem à Joana jovem que, ao ouvir vozes “divinas”, abandona a

família rumo à guerra contra os ingleses. Na interpretação da Cia, Joana primeiro ouve o chamado

divino – que na cena ganha tom cômico: o anjo faz uma ligação telefônica do céu à moça –, e

também ouve algumas “vozes pesadas” (Almeida, 2015c, 22), pertencentes à sociedade em que ela

vive. Essas últimas vozes, cantam que ela é mulher, tem que casar e cuidar do lar. Joana, tapa os

ouvidos negando sua sina feminina. Assim, a moça narra a sua história:

JOANA d’ARC: Eu nasci na beira do rio. Do outro lado da floresta. Desde bem

pequenininha a minha mãe me ensinou a cozinhar, a limpar, a costurar... Quando eu fiquei

mais velha eu fui até meu pai e pedi para que ele me ensinasse a levar as ovelhas pro

campo. Ele me ensinou e eu faço isso de vez em quando junto com meu irmão mais velho.

Mas eu não quero mais isso não. O meu pai sempre entendeu que eu era torta, mas ele

sempre me aprumou. Ele disse que quem ouve vozes que não existem ou é ninguém ou

pode até ser louca. Mas como ele sabe que as vozes não existem se sou eu que escuto? Ele

disse: “Menina! Para de inventar essas vozes, fica quieta no seu canto e para de inventar

essas vozes”. Como é difícil tentar explicar o inexplicável. Mas eu tento dizer para o meu

pai que as vozes me mandam fazer um monte de coisas e que às vezes não são as mesmas

coisas que ele quer que eu faça e que agora... (ALMEIDA, 2015c, 22-23)

No instante da fala, a jovem agora ouve outras vozes, que parecem vindas do seu interior:

“Meus pés não cabem nesse chão/ Eu mesma não caibo em mim” (Almeida, 2015c, 22). Há uma

mudança de atitude em Joana, que decide abandonar o lar. Grita: “Eu vou ‘travessar’” e gira em

torno de si, dançando. A fala que segue é a despedida de seus familiares. A atriz utiliza o público

como personagens da história.

Eu vou embora... Eu vou “travessar”! (...) Pai! Eu sei que o senhor quer que eu fique aqui e

que eu seja igual à outras mulheres: tenha uma casa, filhos... mas eu não posso, meu pai.

(...) Mãe! A senhora me ensinou tanta coisa, mãe. Tanta coisa. É agora que eu vou colocar

tudo isso em prova no mundo. Eu vou “travessar”. (...) Meus irmãos! Eu vou embora. Eu

sei que o pai e a mãe estão aqui para cuidar de vocês. Mas talvez o mundo seja tão maior,

meus irmãos. Talvez vocês também caibam em outros lugares. Eu vou travessar. (...) Eu

não vou sentir falta da Joana que queriam que eu fosse, não. E aí eu me farei: Joana! Porque

eu posso fingir que sou outra. Mas eu não posso fugir de mim! (ALMEIDA, 2015c, 22-23)

Nos trechos acima, é possível perceber o conflito entre o desejo da personagem e as

possibilidades limitadoras do mundo que a cerca, assim como apontam a preocupação da Brava

Companhia em colocar as dificuldades em ser mulher na Idade Média. Entretanto, no decorrer da

Page 7: O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA … · O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA BRAVA COMPANHIA (SP) ... personagem histórica que precisou se travestir

7

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

história, a dramaturgia parece não se empenhar em trazer as questões de ser mulher nos dias atuais

ou qualquer outro discurso que estimule o público a conectar essa categoria de gênero para além da

lógica ficcional. Apenas na representação épica da atriz, que olha nos olhos das outras mulheres da

plateia, essa relação acontece. Rafaela está encarnada da sua própria categoria de gênero enquanto

representa Joana d’Arc, e as mulheres do público parecem perceber que a personagem/atriz fala

para elas, ou, pelo menos, sua fala traz ambiguidade, fazendo o público questionar se aquela fala é

da guerreira medieval ou da própria atriz.

Esse efeito, diz Diamond, demonstra o que Brecht chamava de historicizar a cena, revelar na

encenação outras camadas históricas que atravessam a ficção. Quando a Brava Companhia escolhe

a história de Joana d’Arc como narrativa teatral é porque nela há estruturas que permitem, pela

encenação épica, criar analogias entre os tempos históricos. O que o grupo parece ignorar, mas

Rafaela sente na pele, é que o próprio corpo da atriz também é historicizado e carrega signos que

serão compreendidos pelas(os) espectadoras como parte do todo teatral. Nesse sentido, a teoria

feminista expande o ponto de vista do teatro épico dialético através da historicização do gênero:

Se a teoria feminista se preocupa com os múltiplos e complexos sinais da vida de uma

mulher: a sua cor, a sua idade, os seus desejos, o seu enquadramento político – aquilo que

pretendo designar como a sua historicidade – a teoria brechtiana dá-nos uma forma de pôr

essa “historicidade” em perspectiva – no teatro. Na sua convencional iconoclastia, o teatro

reduz o corpo do ator à personagem, mas o corpo historicizado encontra-se visível e

palpavelmente separado do “papel” do ator assim como do papel da personagem; é sempre

insuficiente e aberto. Quero ser clara quanto a este ponto importante: o corpo,

particularmente o corpo feminino, por virtude de entrar no espaço do palco, entra na

representação – não está só ali, uma presença direta, ao vivo, mas antes (1) um elemento

significante numa ficção dramática; (2) parte de um sistema de signos teatrais cujas

gesticulação, voz e personificação são referentes tanto para o ator como para o público; e

(3) um signo num sistema governado por um mecanismo particular, normalmente

pertencente a homens e por eles dirigido para o prazer de um público cuja maioria de

assalariados são homens.

No entanto, com todas estas classificações, a teoria brechtiana imagina uma polivalência

para a representação do corpo, pois o corpo da performer também é historicizado,

impregnado com a sua própria história e com a da personagem, e estas histórias perturbam

as frágeis margens da imagem, da representação. (DIAMOND, 2011, 45)

Na peça A Brava, esse efeito acontece apenas na representação da atriz Rafaela e pode ser

complementado pelas espectadoras, por uma identificação de gênero. Porém, há que se ponderar tal

afirmação para não cair em determinismos, pois este fenômeno irá depender de inúmeros fatores

que particularizam cada espectadora, sendo possível realizar leituras cênicas de acordo com “suas

condições materiais, o seu posicionamento político, a sua pele, os seus desejos” (Diamond, 2011,

47).

Page 8: O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA … · O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA BRAVA COMPANHIA (SP) ... personagem histórica que precisou se travestir

8

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Na segunda parte do espetáculo, Joana jovem é deixada para trás para surgir a Joana

guerreira. No pouco cenário17 que há, tudo é construído de ferro velho. O príncipe Carlos acaba

convencido de que Joana tem sensibilidade sobrenatural e concede um exército à moça, mas exige

que a guerreira coloque trajes masculinos e corte os cabelos ao modo dos homens da época, pois

“não é seguro uma menina viajando por aí com os invasores por toda a parte” (Almeida, 2015, 31).

Esta é a justificativa que a Brava Companhia escolhe para a transformação de Joana em guerreiro.

Os artistas parecem não se atentar que essa atitude do príncipe é uma ótima oportunidade de revelar

um machismo estrutural existente na sociedade medieval e que ganha outras facetas (e, muitas

vezes, as mesmas) nos dias de hoje. Poderia ser uma opção para o grupo mostrar criticamente que

se travestir de homem traria mais credibilidade aos comandados de Joana, que não a respeitariam se

soubessem que era uma mulher. Ou, em uma outra possibilidade, o grupo poderia denunciar que se

vestir de homem seria uma prevenção para diminuir o risco de Joana ser estuprada por parte de sua

tropa e/ou da tropa dos inimigos. Em relação ao corte do cabelo, Michelle Perrot traz o argumento

histórico que, desde a Antiguidade e mesmo na Idade Média, tosquiar os cabelos era um sinal de

ignomínia. Os cabelos das feiticeiras eram cortados como se a sua cabeleira fosse maléfica (Perrot,

2015, 61). Cortar o cabelo de Joana poderia significar, na encenação, o desejo do príncipe de

enfraquecer e humilhar a moça. De qualquer forma, o que interessa são as respostas que a Brava

Companhia deu para essa encenação, e perceber que essa transformação é demasiada importante na

peça, pois há uma mudança drástica no visual e uma intensificação da atitude destemida de Joana,

assim como uma modificação definitiva em relação ao gênero na cena.

Conforme a imagem abaixo, os cabelos (postiços) de Joana são arrancados após ela se vestir

com armadura e empunhar uma espada. Com uma música de transformação (cantada pelos atores),

é ateado fogo que circunda Joana guerreira. Ela gira riscando a espada no chão.

Foto: Fábio Hirata

17 O cenário é assinado pelas artistas convidadas do grupo Ligia Passos e Karla Maria Passos.

Page 9: O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA … · O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA BRAVA COMPANHIA (SP) ... personagem histórica que precisou se travestir

9

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Enquanto cantam uma música que diz: “O caminho é a certeza/Que a Brava logo virá”

(Almeida, 2015c, 39), a atriz empunha um estandarte com o nome da Brava Companhia, dando a

entender que a história de Joana também é a do grupo, ou pelo menos indica de que lado o grupo

está nessa história. Segurando a bandeira, ela diz algumas palavras ao seu exército e olha para o

público proferindo um texto que poderia significar um chamamento às lutas atuais, colocando todos

juntos, unidos, lutando contra um inimigo comum.

Meus valentes guerreiros! Enfim, estamos todos trajados e armados, é chegada a hora de

partir. E é belo ver como formamos um só corpo, com um só objetivo. Sejamos honestos e

claros: há nessa investida o risco iminente da morte. Esse não é o caminho para quem quer

uma vida estável e segura. Mas eu vos digo guerreiros, que é melhor morrer assim, no calor

da batalha do que morrer por nenhuma vez em sua vida ter ousado trocar o certo pelo

incerto. Por nunca ter fugido de todos os conselhos sensatos. Nos lembremos, guerreiros,

que viver pode ser muito mais que respirar. Minhas palavras têm sangue! É do que corre em

nossas veias que eu falo. Se alguém aqui não está disposto a dar o próprio sangue por isso,

está livre para ir para casa. Aquele que se olhar agora e não estiver nessa investida com

todos ou não acredita nesta luta, pode ir embora! À parte isso, guerreiros, à luta!

(ALMEIDA, 2015c, 40)

Nenhuma pessoa do público vai embora, todos ficam e se sentem integrantes do exército de

Joana. A atriz-personagem parece introduzir, neste instante, um discurso mais socialista, colocando

todos – homens e mulheres – juntos, em um mesmo “exército” (da classe trabalhadora) que deve

lutar por uma vida mais digna. Mas, diferentemente dos trechos anteriormente citados, as questões

de gênero não estão mais no centro da fala. Conforme dito anteriormente, a historicização que a Cia

se interessa em revelar é classista. O intuito é que os espectadores, ao observarem o movimento das

relações de classes em cena, tomem consciência das contradições e comecem a mudar as suas

próprias vidas.

A partir de então não haverá mais distinção de gênero no público através das falas e gestos

da atriz. A história segue com Rafaela “quebrando” a ficção e dizendo: “Mas o que a nossa heroína

ainda não sabe, é que assim como ela, que será queimada no final desta peça, muitas outras pessoas

pagaram com a vida por seguirem seus próprios ideais” (Almeida, 2015c, 40). Joana é colocada ao

lado dos que lutaram por seus ideais, agregando-a ao imenso grupo de pessoas (de diversos tempos

históricos) que foram assassinadas por pensarem e agirem diferentemente da norma vigente.

Todavia, novamente aqui não há qualquer referência ao gênero feminino, embora haja distinções

históricas importantes que não podem ser ignoradas. Perrot aponta que 90% das vítimas

sentenciadas a morrer na fogueira eram mulheres, e que esta porcentagem refere-se a um número de

cem mil casos. “A onda de repressão, iniciada no final do século XV, e da qual Joana d’Arc, de

certo modo, foi vítima, exacerbou-se nos séculos XVI e XVII”. (Perrot, 2015, 89).

Page 10: O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA … · O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA BRAVA COMPANHIA (SP) ... personagem histórica que precisou se travestir

10

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Na encenação, Joana ainda encontra o duque da Inglaterra, Jhony Alckimin Red Label

(trocadilho com o nome do governador de São Paulo, Geraldo Alckimin, que é colocado em cena

como inimigo de Joana, portanto, inimigo da Brava Companhia) e acaba ganhando a batalha contra

o exército dele. Mal sabia a moça que, por suas costas, Jhony Alckimin e o rei Carlos (recém

empossado na França) entram em acordo político na divisão das terras. Ao tomar conhecimento

desse acordo, Joana questiona: “É assim que você agradece seu povo, Rei Carlos? Entregando

nossas terras para aos invasores? (...) Não é hora para acordos, não! É hora de vitória. E é por isso

que iremos a Paris” (Almeida, 2015c, 51); e pede outro exército para lutar na capital francesa.

Quando o rei nega o pedido de Joana, ela afirma que seguirá sua luta, agora ao lado do povo. O

patriotismo da moça diante da traição de seu rei, parece se transformar em uma consciência de

“classe social”, cujo interesse da nobreza está em lado oposto ao da plebe.

Através de narrativas e cenas paralelas repletas de comicidade e ironia, o público é

informado que a conspiração entre os nobres da França e da Inglaterra, e também da Igreja

Católica18 (a quem não interessava uma mulher clarividente), culmina na prisão de Joana, que

passará por intenso julgamento. Na cena, a guerreira é amarrada a correntes abaixo do seu

inquisidor, o arcebispo. Alguém do povo (ator) fala que ela podia estar em casa, passando, lavando,

mas não... Ela responde que: “Há mulheres demais para fazer isso aonde eu morava, senhor

arcebispo, e só eu poderia cumprir essa missão.” (Almeida, 2015c, 57) Nesta fala não há qualquer

gesto da atriz/personagem que sugere que ela disse isto para enganar o religioso, portanto, não há

nenhuma identificação coletiva de gênero por parte de Joana, que parece lutar apenas porque ouviu

vozes “divinas”, caso contrário estaria cumprindo sua “missão de mulher”.

Após julgamento, a guerreira acaba sendo condenada à morte na fogueira, pronunciando

suas últimas palavras:

O senhor aí em cima pensa que viver é simplesmente poder respirar? Não se mata o outro

apenas o queimando numa fogueira. Mata-se todos os dias, a toda hora, quando o impede

de pensar, de ver novas paisagens. Eu não temo o pão e a água. Posso viver de pão. Nunca

pedi mais que isso. E não é prisão beber apenas água, se a agua é limpa. Agora, ficar

encurralada como um rato, sem poder me expressar, sem poder aspirar novas criações, sem

poder viver! Isso é pior que o fogo! Isso é mutilação do ser! Ao público. As vozes disseram

que eu me salvaria. Elas estavam certas. Eu prefiro o risco a viver do jeito que você quer.

Eu prefiro a ousadia, a viver morta. Eu prefiro o fogo! (ALMEIDA, 2015c, 60)

18 A mesma Igreja Católica Apostólica Romana que condenou Joana d’Arc à fogueira em 1431, retirou todas as

acusações contra ela em 1456, mas a moça já estava morta. Em 1920, Joana é canonizada santa. (Almeida, 2015b, 59-

60)

Page 11: O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA … · O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA BRAVA COMPANHIA (SP) ... personagem histórica que precisou se travestir

11

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Encerra-se o espetáculo com uma música alegre e emocionante, entoando a vitória da Brava:

“A Brava venceu!/Seguindo em frente buscamos/Aquilo que acreditamos/A Brava venceu!/De

fronte erguida sabemos/A força está em nós mesmos (...)” (Almeida, 2015c, 61). Um ator escreve

Joana d‘Arc com querosene no chão e a atriz ateia fogo.

De modo geral, é possível perceber que, apesar de inúmeros trechos com preocupação

acerca das questões das mulheres, há espaços dramatúrgicos que poderia haver um debate mais

aprofundado de gênero. A defesa da luta de classes como pano de fundo da encenação oculta um

viés evidente de discussão feminista. Ambos poderiam caminhar juntos em toda a encenação, em

uma intersecção entre gênero e classe, mas essa não foi essa a escolha do grupo. É na representação

épica da atriz que o gênero encontra algumas possibilidades de expressão mais crítica, pois na

interação entre atriz, personagem e espectadora é produzida uma dimensão simbólica que propõe

um olhar para categoria de gênero para além da ficção.

A Brava é a peça que mais tem sido requisitada no repertório da Brava Companhia nos

últimos dois anos, por conta talvez do protagonismo da mulher. Instituições têm procurado incluir

programações culturais com igualdade de gênero e convidado espetáculos que abordem essa

questão. Muito dessa demanda advém de pressão externa e intensificação dos movimentos

feministas, movimentos LGBTQ19 e grupos de estudo de gênero.

Questionada acerca das mudanças da peça nesses 10 anos desde a montagem, Rafaela

responde que não houve muitas modificações, apenas alguns detalhes. Ela diz que a maior

preocupação do grupo foi deixar Joana mais materialista. Contudo, também faz parte da

materialidade de Joana ser mulher da Idade Média. Faz parte da materialidade de um espetáculo as

atrizes e os atores que compõem esse complexo conjunto de imagens. O teatro épico possibilita

inúmeras intervenções críticas para a construção do gênero em cena, e este exercício pode

contribuir muito para um debate sobre as relações de gênero internas em um grupo. Uma parte está

ligada à outra.

Referências

ALMEIDA, Ademir de; RAIMUNDO, Max; RESENDE, Fábio (orgs.). Brava Companhia -

caderno de erros I. 2ª edição. São Paulo: LibersArs, 2015a.

ALMEIDA, Ademir de; RAIMUNDO, Max; RESENDE, Fábio (orgs.). Brava Companhia -

caderno de erros II. 2ª edição. São Paulo: LibersArs, 2015b.

19 Sigla de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Pessoas Queer.

Page 12: O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA … · O PROTAGONISMO DA MULHER NO ESPETÁCULO A BRAVA, DA BRAVA COMPANHIA (SP) ... personagem histórica que precisou se travestir

12

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

ALMEIDA, Ademir de; RAIMUNDO, Max; RESENDE, Fábio (orgs.). Brava Companhia -

caderno de erros IV da Brava Cia – peças erradas que tentam emperrar a máquina. 1ª edição. São

Paulo: LibersArs, 2015c.

BRECHT, Bertolt. Teatro dialético – ensaios. 1ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1967.

CARVALHO, Dorberto; COSTA, Iná Camargo. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por

políticas públicas para a cultura. 1ª edição. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008.

DIAMOND, Elin. Teoria Brechtiana/Teoria Feminista. Para uma crítica feminista géstica. Termo

In: MACEDO, Ana Gabriela; RAYNER, Francesca (orgs.) Género, cultura social e performance –

antologia crítica. Universidade do Minho (Braga, Portugal). Edições Húmus, 2011.

MATE, Alexandre Luiz. O teatro de grupo na cidade de São Paulo e a criação de espetáculos (na

condição de experimentos) estéticos sociais. Marília-SP: Revista Baleia na Rede – estudos em arte e

sociedade. Volume 9, n.1, 2012. Páginas 178-194.

___________________. A produção teatral paulistana dos anos 1980 – R(ab)iscando com faca o

chão da história: tempo de contar os (pré)juízos em percursos de andança. Tese de Doutorado

(História Social), Universidade de São Paulo, USP, Brasil, 2008.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. 2ª edição. São Paulo: Contexto, 2015.

ROMANO, Lúcia Regina Vieira. De quem é esse corpo? – a performatividade do gênero feminino

no teatro contemporâneo: cruzamentos entre processos criativos das mulheres, cena e gênero. Tese

de Doutorado (Artes Cênicas), Universidade de São Paulo (USP), Brasil, 2009.

ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. 2ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Ed., 1998.

The protagonism of the woman in the show A Brava, of Brava Company (SP).

Astract: The Brava Company, inserted in the context of group theater in the city of São Paulo, has

been presenting the street theater show A Brava for ten years. The play, inspired by the story of

Joan of Arc – a historical character who had to cross-dress in order to be able to act socially in the

Hundred Years' War – evokes contemporary battles by inserting elements of national politics, and

has in the voice of this woman the protagonism of a historical process in full transformation. This

dialectical epic language show integrates a series of activities, which have contributed to a social

and cultural transformation in the neighborhood and also in the city, promoted by the Brava

Company. The article will analyze this play from a feminist perspective (Elin Diamond and

Michelle Perrot), considering some scenic elements, such as dramaturgy, costumes, scenery,

staging, representation, scenic music, as well as also discuss the protagonism of the woman in the

scene. In this way, some questions will be raised: how this character is represented, which scenic

elements characterize her, which discourses were inserted in the scene, how the creative process

was made, how the actress participated in the construction and character set, which changes of the

play have been made in ten years of presentation, which feminist movements influenced in the

poetic discourse, the meaning of protagonism, the protagonism of the woman – character and

actress – in the Brava Company.

Keywords: Group theater. Woman. Protagonism.