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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
O PROFETA E O RIO: dom Cappio e a polêmica da
transposição
Fábio Adriano de Queiroz
BELO HORIZONTE 2010
FÁBIO ADRIANO DE QUEIROZ
O PROFETA E O RIO: dom Cappio e a polêmica da transposição
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião.
Orientador: Professor Dr. Pedro A. Ribeiro de Oliveira
BELO HORIZONTE
2010
FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Queiroz, Fábio Adriano de Q3p O profeta e o rio: dom Cappio e a polêmica da transposição / Fábio Adriano de
Queiroz. Belo Horizonte, 2011. 122f. Orientador: Pedro de Assis. Ribeiro de Oliveira Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião 1. Profetas. 2. Cappio, Luiz Flávio, 1946- 3. Transposição de águas. 4.
Religião. 5. Política ambiental. 6. Meio ambiente. I. Oliveira, Pedro de Assis Ribeiro de. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. III. Título.
CDU: 224.01
FÁBIO ADRIANO DE QUEIROZ
O PROFETA E O RIO: dom Cappio e a polêmica da transposição Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião.
_____________________________________________________________ Prof. Dr. Pedro A. Ribeiro de Oliveira (Orientador) – PUC Minas
____________________________________________ Prof. Dr. Mauro Passos – PUC Minas
____________________________________________ Prof. Dr. Marcelo Ayres Camurça Lima – UFJF
Belo Horizonte, 15 de dezembro de 2010.
A dom frei Luiz Flávio Cappio e a todos que abraçaram a causa do rio São Francisco, em especial os movimentos populares e o povo do sertão.
AGRADECIMENTOS A Deus, minha base, minha essencial força, chama sagrada que me leva a sonhar com
um novo mundo.
A Franciane, minha esposa e amiga sempre presente. Encontrei em você energia,
carinho e fortaleza para a realização desse trabalho. Contigo me sinto feliz e realizado a
cada dia de minha vida.
A minha mãe, exemplo de persistência e conquista. Seu exemplo de coragem e
determinação foi fundamental para que eu seguisse em frente.
Ao Prof. Pedro, por me possibilitar o desenvolvimento da capacidade de escuta de uma
realidade marcada de sinais que apontam para uma nova consciência. Mais ainda,
agradeço-lhe muito pela atenção, o cuidado, a paciência, a sabedoria e os agradáveis
momentos de orientação.
Aos professores do Programa do Mestrado em Ciências da Religião da PUC-MINAS,
em especial, ao Prof. Flávio Senra, agradeço-lhe pelo carinho, a atenção e o
significativo trabalho realizado na coordenação do PPGCR.
Ao Prof. Mauro Passos, sempre atencioso e cuidadoso. Seus conselhos e orientações
provocaram a busca de valiosas leituras, fundamentais para a concretização deste
trabalho.
Ao Prof. Paulo Agostinho Nogueira Baptista, pelas inestimáveis contribuições, a leitura
cuidadosa e o incentivo de seguir adiante.
Ao Prof. Marcelo Ayres Camurça, pela contribuição intelectual, a leitura criteriosa e as
observações pertinentes, fundamentais para o aprimoramento desse trabalho.
A todos os amigos que, com sua ajuda, sabedoria, conselhos, sugestões e conversas,
contribuíram para execução deste projeto e por terem sido compreensivos em relação ao
meu confinamento.
RESUMO Esta dissertação realizou um estudo sobre a dimensão profética do gesto de dom Frei
Luiz Flávio Cappio, de jejuar em defesa do rio São Francisco e de seu povo entre 26 de
setembro e 05 de outubro de 2005, em Cabrobó/PE, e de 27 de novembro a 20 de
dezembro de 2007, na cidade de Sobradinho/BA. Para uma melhor compreensão dos
respectivos períodos de jejum e oração de dom Cappio, fez-se necessário o
levantamento de cartas, notas, declarações, artigos e outros textos, produzidos nos dois
momentos supracitados. As informações contidas nos documentos escritos com
pertinência ao tema da pesquisa permitiram inferir uma posterior análise sociológica
sobre o fato social. Tendo como referencial teórico as contribuições de Max Weber e
Pierre Bourdieu acerca da categoria do profeta, a pesquisa analisou o papel de dom Frei
Luiz Flávio Cappio no processo de mobilização coletiva de setores da Igreja, do meio
político, dos movimentos sociais e povos que abraçaram a causa do bispo franciscano
de proteger o rio São Francisco. Foi realizado um estudo das condições sociais para sua
emergência enquanto liderança religiosa, assim como sua capacidade de colocar a
religião a serviço de uma causa política, social e ambiental. Para compreender a
natureza de sua atitude e a legitimidade daqueles que o reconheceram como profeta, a
presente pesquisa partiu da hipótese de que a transposição do rio São Francisco é
resultante de um cenário de crise ambiental que possibilitou o aparecimento de um
porta-voz que falasse em nome de sua população. Assim, através das contribuições da
categoria “profeta”, é possível analisar o significado dos dois períodos de jejum e expor
as dimensões religiosas, políticas e ambientais desse evento.
Palavras-chave: Profeta. Religião. Política. Meio Ambiente.
ABSTRACT
This dissertation has accomplished a study on the prophetic dimensions of Friar Luiz
Flávio Cappio’s gesture of fasting in defense of the São Francisco river and its people,
from September 26th to October 5th, 2005, in the city of Cabrobó/BA. For a better
comprehension of the respective fasting and prayer periods, it was necessary to raise
letters, notes, declarations and old texts produced during the previously mentioned
periods of time. The information contained in these written documents, belonging to the
research theme, made it possible to infer a posterior sociological analysis on the social
fact itself. Having as a theoretical referential the contributions of Max Weber and Pierre
Bourdieu around the prophet category, the research analyzed Friar Luiz Flávio Cappio’s
role in the collective mobilization process of church sectors, of political environment,
social movements and peoples who have embraced the Franciscan Bishop’s cause of
protecting the São Francisco River. A study on the social conditions for his emergence
as a religious leader as well as his capacity of putting religion at the service of a
political, environmental and social cause was carried out. In order to comprehend the
nature of his attitude and the legitimacy of those that recognized him as a prophet, the
present research started from the hypothesis that the transposition of the São Francisco
River results from an environmental crime scenario that made the appearance of a
population’s spokesman possible. As such, through the contributions coming from the
‘prophet’ position, it is possible to analyze the meaning of both fasting periods and to
expose the religious, political and environmental dimensions of this event.
Key words: Prophet. Religion. Politics. Environment.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 8 2 O RIO SÃO FRANCISCO E A ATUAÇÃO DE UM BISPO CATÓL ICO......... 17 2.1 Os Caminhos do Rio São Francisco ...................................................................... 18 2.2 Referencial Teórico para uma Análise Documental............................................ 22 2.3 Os Dois Períodos de Jejum: uma Análise Documental ....................................... 23 2.3.1 O Primeiro Período de Jejum............................................................................... 26 2.3.2 O Segundo Período de Jejum............................................................................... 38 3 O BISPO E SEU POVO: EMERGÊNCIA DO PROFETA................................... 52 3.1 O Profeta e a Polêmica da Transposição.............................................................. 53 3.2 O Significante e o Significado: as Condições para a Emergência do Profeta ... 56 3.3 A Mudança Simbólica e o Trabalho Religioso..................................................... 61 3.4 A Crise: Palco de Atuação do Profeta .................................................................. 65 3.5 Dom Cappio e a Organização Popular ................................................................. 69 4 O PROFETA E O CAMPO CATÓLICO ............................................................... 75 4.1 Dom Cappio: Profeta e Sacerdote......................................................................... 77 4.2 A Polêmica na Igreja .............................................................................................. 82 4.3 Religião e Meio Ambiente: uma Experiência no São Francisco......................... 91 5 CONCLUSÃO.......................................................................................................... 101 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 107
8
1 INTRODUÇÃO
As funções sociais da religião são múltiplas, pois se apresentam conforme as
peculiaridades históricas, culturais e naturais de cada sociedade. A influência sobre
determinados grupos, movimentos e povos pode ocasionar a deflagração de conflitos e
mobilizações. A religião opera na sociedade conforme cada conjuntura e contexto,
podendo gerar mudança de consciência, organização de classe e mobilização em busca
de transformações concretas.
A polêmica criada em torno do projeto de transposição das águas do rio São
Francisco1 constitui-se num significativo objeto de estudo histórico e sociológico, pois
mostra a luta de comunidades e grupos sociais que encontraram, numa liderança
religiosa, uma forma de situar-se, orientar-se e agir no seu meio socionatural. A
capacidade de tais grupos, movimentos e comunidades de transformar essa realidade
dependeu da aptidão de um bispo que escutou os clamores dessa gente e se opôs,
através de um gesto radical, ao Estado e às orientações eclesiásticas da Igreja Católica.
O jejum do bispo da Diocese de Barra, na Bahia, dom Frei Luiz Flávio Cappio2
1 No decorrer de nossa pesquisa, utilizaremos os termos “transposição”, “projeto de transposição” ou
“transposição das águas do rio São Francisco”. Todos eles fazem referência ao nome oficialmente denominado “Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional”, que se baseia num empreendimento do governo federal, sob responsabilidade do Ministério da Integração Nacional – MIN. O projeto foi orçado em R$ 4,5 bilhões e prevê a construção de dois canais que totalizam 700 quilômetros de extensão no sertão. Baseia-se na transposição de parte das águas do rio São Francisco, que, teoricamente, irrigará a região Nordeste e semiárida do Brasil. A polêmica criada por esse projeto é a de que possa levar água apenas a 5% do território e a 0,3% da população do semiárido brasileiro e que, se tal obra seguir adiante, causará um impacto ambiental irreversível em toda bacia desse rio. Há também inúmeras argumentações de que esse projeto privilegiará apenas grandes empresários e latifundiários, deixando o problema da seca em segundo plano (AB’SABER, 2008).
2 Assim como o termo “transposição das águas do rio São Francisco” remete a várias outras abreviações e designações, o mesmo equivale a dom Luiz Flávio Cappio, que também é citado em nossa pesquisa como “dom Cappio”, “dom frei Luiz Flávio Cappio” “frei Luiz” ou “frei Luiz Flávio Cappio”. Esse protagonista das discussões em torno da transposição é originário do estado de São Paulo, onde se ordenou frade franciscano em 1971 e exerceu trabalhos junto à pastoral operária na periferia. Há mais de 30 anos foi para o sertão nordestino. Desde a década de 90, engendra uma campanha de preservação e revitalização do rio São Francisco, através de caminhadas, celebrações, encontros e debates sobre a questão ambiental na bacia são-franciscana. Entre 1992 e 1993, peregrinou seis mil quilômetros, da nascente do rio até a foz, visitando diversas comunidades, o que deu origem à obra “O Rio São Francisco – uma caminhada entre vida e morte” . Em 6 de julho de 1997, foi ordenado bispo da Diocese de Barra (BA). Em 2005 e 2007, tornou-se conhecido internacionalmente devido a duas greves de fome contra o projeto de transposição do Velho Chico (MOREIRA, 2008c, p.18-20)
9
– o primeiro em 2005, e o segundo em 2007 – em defesa do rio São Francisco3,
desencadeou as mais diversas reações no seio da Igreja e no meio político, situação que
culminou num conjunto de documentos que procuraram narrar, compreender, criticar,
apoiar e condenar a postura do bispo. Sua atitude arrebanhou artistas, movimentos
sociais e órgãos técnicos, além de ganhar repercussão no exterior e fomentar
mobilizações de apoio na luta pelo rio São Francisco e em benefício da população
ribeirinha. Através dessa mediação religiosa, foram desenvolvidas espontâneas e
organizadas ações de protesto local, realizadas por movimentos populares e com
objetivo político de participar do processo de discussão sobre a revitalização do rio São
Francisco.
A polêmica da transposição das águas do rio São Francisco se fez presente nas
mobilizações que envolveram a participação de grupos, povos, personalidades e
movimentos sociais em torno do gesto de dom Luiz Flávio Cappio. De acordo com o
próprio bispo, que diz que, “quando a razão se extingue, a loucura é o caminho”4, o
“jejum” foi o último recurso para interromper o projeto de transposição, proteger o rio e
sua população. Tanto do ponto de vista religioso quanto do político, foi um momento de
incômodo para a Igreja e o governo federal, principalmente porque o bispo mantinha
uma ligação de mútua estima com o presidente da República desde a organização do
Partido dos Trabalhadores (PT) até o momento em que, eleito presidente, decidiu levar
em frente o projeto da transposição.
Dom Cappio considerou o projeto inviável para a solução da seca no sertão e
catastrófico para o meio ambiente. Após várias tentativas frustrantes de se estabelecer
um debate junto ao governo e à sociedade, para colocar em pauta a eventual
transposição e apresentar alternativas para a solução da seca nordestina, o bispo partiu
para uma atitude extrema: tentar manter-se em jejum e oração até que o projeto fosse
interrompido. No entanto, apesar de a interrupção total não ter ocorrido, dom Cappio
arrebanhou multidões, gerou divergências no seio da Igreja, desobedeceu ao Vaticano,
perturbou o Estado e, através de seu gesto e seu discurso, chamou a atenção da
sociedade para a questão socioambiental. 3 O rio São Francisco possui uma extensão de 2.800 quilômetros. Ele nasce no município de São Roque de Minas, na serra da Canastra, em Minas Gerais, e suas águas percorrem a Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, para desembocar no oceano Atlântico, na divisa entre esses dois últimos estados. Esse rio possui uma relevância econômica para todas as regiões por onde passa, pois contribui para a irrigação de plantações, possibilita o desenvolvimento da pesca e serve de via para o transporte de mercadorias como: sal, arroz, soja, açúcar, areia, cimento e manufaturados (ROCHA, 2004).
4 Cf. Trecho da declaração “Uma vida pela Vida”, que marca o primeiro período de jejum de dom Cappio, entre 25 de setembro de 2005 e 6 de outubro desse mesmo ano.
10
Toda essa realidade contribuiu para o crescimento de uma nova consciência5,
que se faz universal. Nas palavras de Cristián Parker G. (2010), é uma consciência
planetária6 que surge em função das mudanças bruscas sentidas pela Terra desde os
últimos decênios do século XX. Ela vai ao encontro de uma situação de crise ambiental7
que começa a se desenhar nos anos de 1970 a partir de importantes discussões no trato
da questão e ganha corpo nos propósitos da Carta da Terra8, condicionando assim o
papel da religião e dos movimentos sociais na sociedade, com suas interpretações e
práticas.
O episódio em torno de dom Cappio está em consonância com um conjunto de
valores abraçados pelos movimentos sociais e voltados para a preservação do planeta no
presente momento de nossa historia. Esses mesmos valores levam diversas pessoas a
tomar posição em favor da vida na Terra. De acordo com Pedro A. Ribeiro de Oliveira
(2009b), vivenciamos um momento marcado por uma nova consciência, que vai além
da consciência ecológica pelo fato de ultrapassar a responsabilidade humana de cuidar
da Terra. A consciência planetária coloca o ser humano como um membro entre outros
5 De acordo com Pedro A. Ribeiro de Oliveira, “para todos esses movimentos a ‘consciência’ é o
elemento ideal que articula o autoconhecimento (quem somos), o conhecimento experiencial da realidade (o que é o mundo) e o critério ético para o agir transformador (em que aspecto esse mundo deve ser mudado)” (OLIVEIRA, 2009a).
6 Para Cristián Parker G. (2010, p. 29), a consciência planetária contempla as “vertentes: ambiental, cósmica, ecológica, de fontes de energia, e inclusive mística”. Ela faz com que o ser humano se coloque na condição de integrante do planeta e se posicione frente às graves situações que ameaçam a vida de tudo e de todos. De acordo com Pedro A. Ribeiro de Oliveira, os movimentos sociais atuam em defesa da vida da Terra porque estão respaldados por um conjunto de valores que motivam suas ações. Assim, a “consciência planetária” suscita os movimentos a atuarem em prol do bem-estar de todos os seres vivos e da comunidade humana. Ela se volta para a responsabilidade de cada ser humano com o planeta. Como a ideia de “consciência planetária” ainda é vaga, a “Carta da Terra” expressa de forma documental esse novo pensamento (OLIVEIRA, 2008, p. 29-42).
7 Segundo Sirvinskas (2005, p. 23), a crise ambiental não é uma realidade apenas deste novo milênio: ela remonta a muitos séculos atrás. Nas palavras dele, “a crise ambiental surge entre a Idade Média e a Moderna, especialmente no período da Revolução Industrial, pois começaram as agressões à natureza...”. Principalmente com a Revolução Industrial, nos séculos XVIII e XIX, presenciamos a utilização desenfreada de diversos recursos naturais. Para Barcellos (2008, p. 109-123), a crise ambiental aparece como um grande desafio neste século XXI e aponta para a urgência de novas formas de relações sociais de produção, fato que excede os patamares físicos e químicos da natureza. Ela é uma crise da civilização contemporânea, pois coloca em dúvida os valores culturais, políticos e econômicos que garantiam certa segurança à humanidade.
8 De acordo com Boff (2008), a Carta da Terra é uma declaração de princípios éticos necessários para a construção de uma sociedade justa, pacífica e sensível aos problemas ambientais. Sua construção derivou de uma ampla discussão nos anos 80 do século XX, vindo a ser ratificada em março de 2000. Sua elaboração envolveu a participação de mais de 4.500 organizações, incluindo vários organismos governamentais e organizações internacionais. Ela reconhece que os objetivos de proteção ecológica, erradicação da pobreza, desenvolvimento econômico equitativo, respeito aos direitos humanos, democracia e paz são interdependentes e indivisíveis. Busca inspirar todos os povos a alcançar um novo sentido de interdependência global e responsabilidade com o meio ambiente, no intuito de garantir a vida das futuras gerações. O texto da carta da Terra encontra-se disponível na home Page da “Carta da terra em ação”.
11
na morada comum que é a Terra. Essa consciência vem dizer que o ser humano
enquanto ser pensante se diferencia dos outros seres bióticos e abióticos; todavia, isso
não lhe dá o direito de se colocar acima de tudo e de todos “a ponto de arrogar-se o
direito de considerar os outros seres vivos como coisas das quais se dispõe à vontade”
(OLIVEIRA, 2009b, p.30). Ela pode ser comparada a uma árvore cujas raízes são locais
e seus galhos são o pensamento que ultrapassa as fronteiras de países e continentes.
O tema proposto para esta pesquisa – “O profeta e o Rio: dom Luiz Flávio
Cappio e a polêmica da transposição” – está em função da busca da compreensão
sociológica de um líder religioso e também intelectual, cuja postura ética causou
controvérsias na Igreja, na política e nos meios de comunicação. Torna-se também
importante o estudo da contribuição desse gesto religioso nas mudanças de pensamento
e comportamento na relação entre ser humano e natureza e sua repercussão nos meios
religioso, político e social.
É sobre a dimensão profética do gesto de dom Luiz Flávio Cappio que este
trabalho versará, pois ela nos permite compreender a articulação dos movimentos
sociais por uma causa socioambiental, fato que levou tantas pessoas a tomarem posição
em seu favor. Sua atitude chama a atenção para o meio ambiente e as relações que a
sociedade entretém com ele, sejam elas benevolentes ou agressivas. Adentra os campos
político e social quando fala da seca e do impacto do projeto sobre a população do
sertão. Desperta para a necessidade de uma relação de respeito com a natureza, pautada
pela justiça ecológica, de maneira que o acesso aos recursos naturais ocorra de forma
equânime e gere qualidade de vida.
Sua posição em defesa do meio ambiente representa um fato específico situado
numa dimensão global. O acelerado processo de degradação ambiental cria
paradoxalmente uma consciência que, por sua vez, termina repercutindo na vida social,
cultural e política de diversas sociedades; portanto, grupos, entidades e movimentos
sociais se organizam no intuito de garantir a sobrevivência do planeta (IANNI, 2001).
No caso das discussões acerca da transposição, presenciamos uma expressão
religiosa intimamente ligada a uma vivência regional que produz, a partir dela, um
discurso em sintonia com o atual cenário ambiental e que reforça a vitalidade da
consciência planetária. Ela é uma das inúmeras manifestações que emergem em todo o
planeta, revelando, ao mesmo tempo, uma insatisfação com o atual modelo de
desenvolvimento econômico e a necessidade de medidas de proteção socioambiental.
Mais ainda, ela se liga aos inúmeros apelos de justiça social e aos sentimentos de
12
indignação ainda soltos e silenciosos, mas que se canalizam para uma nova visão de
mundo, unificada, orgânica e espiritual (BOFF, 1993).
Os principais motivos que conduziram à presente pesquisa foram a busca do
significado do gesto de dom Luiz Flávio Cappio, o estudo de sua polêmica na sociedade
e na Igreja, e a ligação desse fato com uma realidade marcada por uma crise ambiental
contemporânea. A atitude religiosa de defender o rio São Francisco através do jejum e
da oração aponta para a necessidade de compreender as possibilidades de transformação
da consciência e dos comportamentos individuais e sociais no sentido de valorização da
vida e das relações humanas com a natureza.
O problema ambiental não se restringe hoje aos movimentos ambientalistas;
ganhou uma dimensão mundial, pois muitos cientistas, técnicos e entidades religiosas
constataram que a Terra encontra-se num acelerado processo de degradação em função
do modelo de desenvolvimento econômico predominante há séculos e que, agora, com o
mundo globalizado, alcançou seu ápice (BAPTISTA, 2008).
A atitude de dom Cappio revela um momento em que a questão ambiental saiu
de seu nicho e atingiu também a dimensão religiosa. A pesquisa sobre esse episódio
encontrou na postura desse bispo a possibilidade de confirmar o encontro do religioso
com o ecológico e o nascer de uma consciência, na contemporaneidade, que liga – ou
religa – o ser humano à natureza. Neste contexto, os movimentos sociais foram
motivados não somente por uma causa social, mas também sagrada, na medida em que
o rio São Francisco foi reencantado e foram descobertos, no gesto de dom Cappio,
novos sentidos para sua atuação. Nas palavras de Leonardo Boff,
O reencantamento não emerge voluntaristicamente; surge quando alargamos nosso horizonte, para além daquele da racionalidade moderna, e nos damos conta, pelo conhecimento simbólico e místico, de que o mundo é portador de uma mensagem e de um mistério. (BOFF, 1993, p. 78)9.
Assim, a polêmica da transposição desvela uma nova aproximação entre ser
humano e natureza, e coloca em relevo o papel da Igreja e das demais religiões no apoio
aos movimentos populares que abraçaram a causa ambiental e social. Tais
considerações expõem a necessidade da religião em responder aos dilemas e
perspectivas da humanidade frente aos problemas ambientais “num tempo de
9 A grafia dos trechos retirados de todas as obras adotadas neste estudo será modernizada conforme o
Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa firmado em 1990 e que passou a vigorar em 2009.
13
velocíssima transformação e de profunda mudança na percepção das pessoas”
(BAPTISTA, 2009 p. 142).
O projeto de transposição das águas do rio São Francisco apresentado pelo
governo federal fez levantar uma série de opiniões éticas e religiosas nos meios de
comunicação, além de despertar debates acerca do conjunto das relações existentes entre
meio ambiente, religião e política na contemporaneidade. A maior divergência relativa a
esse fato recaiu sobre o bispo franciscano dom Luiz Flávio Cappio, que se posicionou
contra o projeto de transposição através de uma solitária atitude de jejuar até que o
mesmo fosse suspenso. Dom Cappio propôs defender, até a morte, o rio e aqueles que
vivem do rio, caso o governo não abrisse uma discussão mais profunda com a
sociedade. Além disso, discursou em nome do povo do sertão da Bahia e interpelou
movimentos sociais, artistas, intelectuais, órgãos e instituições, que se sensibilizaram
com suas palavras. Neste sentido, seu gesto foi uma espécie de mola propulsora no
exercício da participação social, pois terminou provocando em diversos povos um
conjunto de atitudes coletivas que levaram à mobilização.
Tudo desperta a ideia de que os problemas sociais podem influir de forma
significativa sobre a religião e que esta pode atuar sobre eles como força estimulante no
processo de legitimação das forças dominantes ou como força deslegitimadora capaz de
apontar para novos caminhos. Há na disputa da transposição um modo original de
organização e ação de diversos grupos populares que faz urgir um estudo sociológico
acerca da postura religiosa de dom Luiz Flávio Cappio e da mobilização em torno de
seu gesto radical, e que esta análise mostra ser profético.
Portanto, à luz das contribuições de Max Weber e Pierre Bourdieu acerca da
categoria do profeta, analisamos o papel de dom Luiz Flávio Cappio no processo de
mobilização coletiva para proteger o rio São Francisco, assim como sua capacidade de
colocar a religião a serviço de uma causa social e ambiental. Ao mesmo tempo,
estudamos as condições sociais para sua emergência enquanto liderança religiosa. Seu
gesto, seu discurso e a função desempenhada na organização autônoma de diversos
povos foram objetos de nossa análise. Para compreender a natureza de sua atitude e a
legitimidade daqueles que o reconheceram como profeta, a presente pesquisa parte da
hipótese de que a transposição do São Francisco é resultante de um cenário de crise
ambiental que possibilitou o aparecimento de um porta-voz que falasse em nome de
uma população colocada, amiúde, à margem das discussões sobre os caminhos desse
rio.
14
Assim, através das contribuições da categoria “profeta”, é possível analisar os
dois períodos de jejum. Coube então o desafio de aliar as teorias sociológicas acerca do
profeta aos dois períodos de jejum de forma flexível e respeitando as peculiaridades
desses inflamados momentos de protesto. De acordo com Bourdieu (2005), o profeta é
aquele que proporciona uma verdadeira criação religiosa a partir dos sentimentos e das
palavras de um povo. Logo, a força, a coerência particular, a disposição ética ou política
são características únicas desse protagonista que, juntamente com as insatisfações já
presentes numa realidade, possibilitam sua atuação. O profeta se apoia na vontade de
mudança que se encontra “em estado implícito, em todos os membros da classe ou do
grupo de seus destinatários” (BOURDIEU, 2005 p. 74). Assim, as condições sociais e
políticas de uma sociedade são um terreno fértil para essa atuação, que faz ser ele um
produto de sua própria história e, ao mesmo tempo, um agente que a transforma.
O protesto de dom Cappio sensibilizou a população ribeirinha, os movimentos
sociais, as organizações populares, como também a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Sociedade Brasileira para
o Progresso da Ciência (SBPC) e demais entidades, além de técnicos, artistas e
intelectuais que endossaram a postura do bispo em sua atitude de contestação.
Por outro lado, ele incomodou o governo federal, o Vaticano e diversos
segmentos e membros da Igreja Católica. Em virtude de sua postura radical, provocou
discussões e desencadeou uma avalanche de debates e artigos envolvendo religião,
política e meio ambiente. O ápice foi quando o bispo, através da oração e do jejum por
tempo indeterminado, decidiu doar sua vida para salvar o rio e seu povo, caso o projeto
não fosse interrompido e o governo federal não abrisse um diálogo com a sociedade.
A complexa tarefa de estudar, sem cair no senso comum, uma problemática
religiosa atrelada à questão ambiental implica a necessidade de um estudo científico que
exponha as dimensões religiosas, políticas e ambientais desse evento. Portanto é
importante uma análise, à luz da sociologia da religião, dos traços e das características
do profeta para a compreensão da polêmica da transposição. Cabe ressaltar que as
palavras e o gesto de dom Cappio estão enraizados numa realidade histórica, social e
cultural que conferiu rico significado para sua ação e lhe possibilitou a organização de
movimentos e grupos sociais.
O presente estudo exigiu uma pesquisa documental e bibliográfica ampla e teve
como principais referências teórico-metodológicas os estudos sociológicos de Max
Weber, Pierre Bourdieu e outros autores que se dedicaram a estudar a religião e sua
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influência na sociedade, nos auxiliando a vislumbrar melhor o contexto em que emerge
o profeta. Por fim, utilizaremos como fonte primária documentos que mostram a
correnteza de reações derivadas da atitude de dom Luiz Flávio Cappio e, em seguida,
partiremos para uma análise sociológica.
Já para uma análise acerca do meio ambiente, nos apoiamos principalmente nos
estudos de Enrique Leff, Milton Santos, Carlos Walter Porto-Gonçalves10 e outros
estudiosos que se voltam para a questão da sustentabilidade, dos movimentos sociais na
defesa do meio ambiente, da crise ambiental e da consciência ecológica no contexto da
globalização.
No intuito de contemplar o objetivo proposto, a presente pesquisa está
estruturada em três importantes momentos. Um primeiro capítulo, voltado para uma
narrativa historiográfica através dos documentos originados pelo gesto de dom Cappio.
O mesmo assenta-se sobre os alicerces de uma documentação escrita nos dois períodos
de jejum e oração11: o primeiro, entre 26 de setembro e 5 de outubro de 2005, em
Cabrobó/PE; e o segundo, entre 27 de novembro e 20 de dezembro de 2007, na cidade
de Sobradinho/BA. Duas intensas ocasiões que se configuraram um controverso cenário
de reflexões, protestos, mobilizações, angústias e expectativas, ao ponto de incomodar a
Santa Sé, o governo federal e a opinião pública, além de dividir opiniões nos meios
político e religioso.
O segundo capítulo tratará da análise sociológica do profeta na polêmica da
transposição. Nesse momento, pretende-se ressaltar esse papel profético a partir da
dinâmica de atuação de dom Luiz Flávio Cappio no processo de arrebanhamento dos
movimentos sociais e da repercussão de sua postura na sociedade. Muitas considerações
realizadas sobre a categoria do profeta possibilitam compreender por um lado
sociológico os dois ciclos de “jejum e oração”12.
No terceiro capítulo, será analisado o gesto de dom Cappio frente à Igreja
Católica e a relação com a questão ambiental. Destacamos também o contexto histórico
desse protagonista e sua atividade em socorro do povo do semiárido. Cabe salientar a
10 Trataremos desses autores e dos respectivos tópicos de estudo, com mais detalhes, nos capítulos que se
seguem. 11 Os termos “jejum e oração” e “greve de fome” foram usados para classificar a atitude de dom Cappio
sem uma nítida distinção. Todavia, de acordo com Jung Mo Sung, há diferença: enquanto a greve de fome se reduz a uma forma de protesto político ou social, o jejum busca a transformação política por meio de uma mudança de consciência, o que revela o poder simbólico da religião.
12 Consideramos o “jejum e oração” uma atitude religiosa, na medida em que integra outras práticas religiosas (ritos, liturgias, celebrações) da Igreja, e um fenômeno social pelo fato de desencadear diversas reações na sociedade e especificamente na instituição católica.
16
análise da sua condição de sacerdote como forma de protesto escolhida para interromper
o projeto de transposição que tanto impactou o meio eclesiástico.
Por fim, o enfoque da pesquisa é sociológico e busca compreender as
divergências sobre a transposição tendo como base teórica os estudos sobre a figura do
profeta, pois a mesma, em muitos aspectos, apresenta elementos para a compreensão da
história de um bispo franciscano da Diocese da Barra-BA que decidiu, a partir de uma
postura radical, defender o rio São Francisco e o povo que vive às suas margens, do
projeto de transposição do governo federal. Neste sentido, toda uma mobilização
ocorreu à sua volta, tendo uma peculiar linguagem religiosa e política que foi ao
encontro de uma demanda social que apontou para uma mudança simbólica13 e esteve
em conformidade com uma lógica de pensamento voltada para a conservação do meio
ambiente no mundo contemporâneo.
13 Trataremos adiante da questão sobre a mudança simbólica, pela perspectiva dos estudos de Pierre
Bourdieu.
17
2 O RIO SÃO FRANCISCO E A ATUAÇÃO DE UM BISPO CATÓL ICO
A luta de dom Luiz Flávio Cappio pela revitalização do rio São Francisco
remonta a 1992, quando, ainda padre, ele, juntamente com uma equipe, realizou uma
peregrinação ecológica da nascente do rio, na serra da Canastra, em Minas Gerais, até a
foz, no oceano Atlântico, entre Alagoas e Sergipe14. A viagem envolveu a participação
de entidades e instituições, e foi marcada por celebrações realizadas em diversas
comunidades à beira-rio e na caatinga. Ela teve como principal objetivo pesquisar o São
Francisco e os diversos vilarejos localizados na região.
A partir de 2005, quando o projeto do governo federal começou a ser posto em
prática, o bispo iniciou sua luta contra a transposição das águas são-franciscanas,
embate que repercutiu na sociedade e na Igreja. Entre 26 de setembro e 5 de outubro de
2005, o bispo adotou uma postura radical em relação ao projeto do governo federal: fez
um jejum de 11 dias, em Cabrobó/PE. Tentou com esta postura defender um projeto de
revitalização para o rio São Francisco e abrir uma discussão com a sociedade sobre a
transposição.
No entanto o diálogo não ocorreu; então, após dois anos, entre 27 de novembro e
20 de dezembro de 2007, em Sobradinho/BA, dom Cappio se pôs novamente em jejum.
Nesse período, sua atitude alcançou os diversos meios de comunicação, foram muitos os
artigos de especialistas a favor e contra seu gesto. Dom Cappio foi considerado por
muitos como pastor e profeta que clamava, na sequidão do sertão, por justiça social e
respeito ao meio ambiente. A inédita ação de um bispo da Igreja Católica de jejuar
oferecendo a própria vida na tentativa de condicionar o governo a propor alternativas
para a seca no sertão ganhou uma dimensão simbólica que repercutiu no Brasil e no
mundo.
Neste sentido, o presente capítulo expõe o palco de atuação de dom Cappio
através de um pequeno estudo sobre o rio São Francisco, com seus aspectos históricos,
naturais e culturais. Em seguida, versa sobre a narrativa dos dois períodos de jejum com
o objetivo de expor a polêmica na sociedade, nos meios político e religioso.
14 Nesta peregrinação, destacamos a presença de irmã Conceição Tanajura Menezes, do lavrador e
garimpeiro Orlando Rosa de Araújo e do sociólogo e ecologista Adriano Martins.
18
2.1 Os Caminhos do Rio São Francisco
A bacia do São Francisco15 pode ser analisada como uma arena marcada por
conflitos sociais em consequência das situações de povoamento e dominação ao longo
de nossa história. Tal rio não somente recebeu várias correntes étnicas, como uniu
diversas raças e culturas desde as camadas humanas mais antigas às estruturas étnicas
lusitanas e africanas que ocuparam sua bacia durante o período colonial, em específico
no século XVII16. Sua história se mescla às lendas dos povos com suas tradições orais
intimamente ligadas aos aspectos naturais da região. Conta-se que a origem do rio está
relacionada a um episódio ocorrido na serra da Canastra, Minas Gerais.
Viviam os índios, nos chapadões, em várias tribos felizes. Entre esses estava uma linda mulher, a doce Iati. Era noiva de um forte guerreiro, quando houve uma guerra nas terras do norte e todos os guerreiros se foram para a luta. Eles eram tantos que os seus passos afundaram a terra formando um grande sulco. Entre eles se foi o noivo da formosa índia que, tomada de saudades pelo seu amado, chorou copiosamente. Suas lágrimas foram tantas que escorreram pelo chapadão despencando do alto da serra formando uma linda cascata, e, caindo no sulco criado pelos passos dos Guerreiros, escorreram para o norte e lá muito longe se derramou no oceano, e assim se formou o rio São Francisco.17
O rio São Francisco desempenha um papel único, na história do Brasil, de
condicionar a instalação e a formação de comunidades com específicas culturas.
Conforme Gabriela Martin Ávila (1998), o Velho Chico foi um polo de agrupamentos
indígenas pré-históricos milhares de anos antes da ocupação lusitana. Há inúmeros
indícios sobre povos e culturas que se firmaram às suas margens, além do registro de
pinturas e gravuras rupestres retratando momentos de caça, lavoura, pesca e a criação de
animais, revelando assim, uma história que confirma a presença de comunidades
indígenas no vale do São Francisco.
A região também é marcada por conflitos históricos devido à criação do gado,
no século XVII; da mineração, no século XVIII; da caça ao índio para suprir mão de
15 De acordo com o Plano Decenal de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco,
elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente /ANA/GEF/PNUMA/OEA, de 2004, a bacia hidrográfica são-franciscana abrange áreas pertencentes a Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e uma pequenina porção de Goiás e do Distrito Federal.
16 Para o estudo do rio São Francisco ao longo da história do Brasil, além de outras obras historiográficas, foi fundamental o trabalho de Marcos Antônio Tavares Coelho “Os Descaminhos do São Francisco” (2005).
17 Lenda narrada pelo prof. José Theodomiro de Araújo (2010), intitulada “A Lenda da Origem do Rio”, conforme home page do Vale do São Francisco.
19
obra escrava; da busca de metais preciosos, especiarias e drogas do sertão (SILVA,
1990). Por outro lado, se apresenta como um espaço onde se tecem microrredes de
relações sociais através de seus vilarejos e comunidades. O rio São Francisco enquanto
eixo central possibilitou a ocupação, a condensação e a distribuição de correntes
humanas que povoaram todo o território nacional; portanto foi local de encontro de
diversas culturas que se expandiram por todo o Brasil. Foi às margens do Velho Chico
que diferentes povos se encontraram, se agruparam e se homogeneizaram com o
ambiente natural. Essa relação entre o meio natural e o social tanto permitiu a cada
pessoa situar-se no seu ambiente e nele atuar, como também possibilitou a construção
de representações religiosas de mundo que estruturaram a experiência dessa gente.
Os mitos, as lendas e as superstições têm raízes profundas na mente do sertanejo. Como as plantas mais selvagens que resistem às agruras da seca, essas crenças ingênuas persistem nele, malgrado as investidas de indescritíveis sofrimentos – de incalculáveis privações. [...] Tem-se a impressão de que não existem fronteiras entre a natureza e o homem nos lugares mais afastados do que chamamos de civilização. Devido, talvez, à ausência de estímulos externos, de influências vindas de fora, seu mundo interior povoa-se de seres misteriosos. [...] Para ele (o sertanejo) tudo é parte do mesmo mistério imenso. Aceita sem espanto o inusitado porque, de coisas mais estranhas, já tomou conhecimento. [...] Ele, destemido, capaz de enfrentar no matagal qualquer perigo, recua diante de forças misteriosas que regem os destinos dos homens. E tira o chapéu. E faz o sinal da cruz. (UNGER, 1978, p. 36-37).
A bacia do São Francisco é moldada por diversas crenças representadas na
natureza, nas lendas, nos mitos e nas tradições étnicas que fazem parte da identidade
dos povos ribeirinhos. Somam-se a esse cenário as romarias de milhares de fiéis que
seguem a pé, de barco, em paus-de-arara, em jegues e carros de boi, por exemplo, para
cumprir suas promessas no santuário de Bom Jesus da Lapa (COELHO, 2005). Com
tudo isso, se verifica a existência de um conjunto de práticas religiosas que não
dependem de uma intervenção do poder eclesiástico para sua execução e que colorem o
campo religioso brasileiro, revelando uma interação significativa com a natureza, os
símbolos e os santos do catolicismo popular18.
18 De acordo com Pedro A. Ribeiro de Oliveira (1985), o catolicismo popular pode ser compreendido
como as representações religiosas que estão do lado de fora da instituição. São os cultos e práticas religiosas que não necessitam da catequese e da mediação do sacerdote para serem efetivadas.
20
O campo religioso brasileiro19 é marcado de forma significativa pelo
catolicismo; entretanto não podemos omitir que esta mesma religião vem perdendo
espaço nas últimas décadas. Conforme o estudo de Alberto Antoniazzi sobre as religiões
do Brasil, com base nos dados do senso de 2000 do IBGE:
O Brasil, até os anos 70 do século XX, parecia um país católico, onde a religião católica não era só a da maioria, mas quase monopolizava crenças e atitudes religiosas. O Censo de 1980 registrou, pela primeira vez na história do Brasil, uma porcentagem de católicos inferior, embora de pouco, a 90%. Como vimos, tal porcentagem diminuiu nos censos seguintes: 83,3% em 1991 e 73,9% em 2000. Temos, assim, um processo de diversificação religiosa em que crescem as religiões evangélicas (tradicionais ou pentecostais) e os “sem religião”. (ANTONIAZZI, 2004, p. 14).
De acordo com Pierre Sanchis (1992, p. 33), “há religiões demais nesta
religião”. Para o devoto católico brasileiro, em especial o devoto popular, os caminhos
que levam a Deus envolvem trocas, relacionamentos e ajuntamentos. O cristianismo
brasileiro é bastante complexo e plural, pois a grande mistura de crenças e costumes que
o compõem teve suas origens nas culturas europeia, indígena e africana. Acrescentam-
se a isto os diversos segmentos religiosos vivos e atuantes na sociedade. Como narra
Guimarães Rosa, na obra Grande sertão: veredas:
Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo o rio... Uma só para mim é pouca, talvez não me chegue. [...] Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca (ROSA, 1967, p. 15).
A identidade religiosa daqueles que se encontram nos povoados e municípios de
todo o sertão, na caatinga ou à beira do rio São Francisco, é resultante de uma
construção histórico-cultural socialmente reconhecível nos moldes católicos (FILHO;
GIL, 2001, p. 39-68). No entanto, o campo religioso brasileiro apresenta-se em
constante mutação; não só se modifica o mapa das religiões, mas a própria “religião”
perde sentidos tradicionais e antigas funções enquanto adquire novos sentidos.
(SANCHIS, 1999, p. 239).
19 Para Pierre Sanchis (1998), o campo religioso brasileiro é compreendido nas dimensões da
heterogeneização e da homogeneização. A primeira se refere à pluralidade religiosa presente na sociedade brasileira e que pode ser vista na presença do catolicismo, do protestantismo, do kardecismo, dos movimentos pentecostais e outras linhas religiosas. A segunda é uma tendência que se apresenta acima das instituições religiosas, que está viva na mente e nas práticas cotidianas das pessoas. A homogeneização vem mostrar que há na contemporaneidade uma espécie de perfume espiritual que envolve diferentes pessoas e interfere em suas vidas, gerando um clima cultural que passa a sensação de que tudo se pode em termos de religião.
21
As ideias acima vêm corroborar que o campo religioso não segue um único
caminho, justamente por causa das inúmeras influências recebidas ao longo da história.
Daí soma-se à característica deste pluralismo religioso de formação as influências
trazidas pela modernidade. Desta forma, o quadro atual pode ser entendido como uma
situação na qual as sociedades transpassadas pelo viés da globalização sofrem impactos
que ameaçam suas variáveis formas de organização social e religiosa. Nas palavras de
Marcelo Ayres Camurça:
Portanto, longe de estabelecerem apenas polaridades e cristalizarem antagonismos, as dinâmicas de modernidade e tradicionalismo atravessam várias regiões geográficas, sociais e culturais do país, estabelecendo articulações, combinações e interpenetrações entre si. (CAMURÇA, 2006).
No caso da bacia são-franciscana, presenciam-se as mais variadas maneiras de
crer ligadas a elementos da natureza e que possibilitam compreender o simbolismo que
o rio tem para o povo ribeirinho.
Meu rio de São Francisco, nesta grande turvação, vim te dar um gole d'água e pedir tua benção! (estribilho) 1. Lá na serra da Canastra, lá em Minas dos Gerais, o Senhor olhou seu povo, e uma lágrima derramou; esse choro virou rio: São Francisco se chamou! 2. Choro santo do bom Deus gerou vida, planta, flor, peixes, bichos, passarinhos. E, na sua ribanceira, à sombra do juazeiro, muita gente se arranchou! 3. Pai da gente, mãe do povo, dando água, dando peixe, fome e sede ele matou. E as terras da caatinga: brejos, sertões e veredas, sertão seco ele molhou! 4. Como disse o padre santo: “o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão!” Tão matando o Velho Chico, o rio que gera vida nunca pode morrer não! 5. A barragem cerca a água, o veneno mata o chão: morre planta no cerrado, morre a ave, morre o bicho e o meu povo vai-se embora com saudade do sertão!20
A cultura do povo são-franciscano, que é profundamente religioso e ligado às
manifestações simbólicas, somada ao gesto de dom Cappio de beber apenas a água
desse rio durante o jejum, contribuiu ainda mais para a formação de uma visão
ecoespiritual. Neste contexto, encontramos viva, presente e forte a dimensão espiritual
que relaciona religião e meio ambiente.
Levando em conta essas considerações, para a análise da polêmica da
transposição, a bacia do São Francisco pode ser compreendida como um espaço
20 Letra e música de dom Luiz Flávio Cappio (OFM), Diocese de Barra-BA; refrão adaptado da obra de
João Guimarães Rosa e partitura de frei Luiz Carlos Susin (OFM) (CAPPIO, 2000, p. 20).
22
marcado por conflitos religiosos e sociais e também como uma “porção do espaço social
constituída pelo conjunto de instituições e atores religiosos em inter-relação”
(MADURO, 1981, p. 69).
O campo geográfico aqui mencionado é a bacia do São Francisco, mas o que nos
interessa de fato é o contexto social marcado pelas controvérsias da transposição das
águas do rio São Francisco. Tal contexto, situado num determinado espaço, delimita o
palco de atuação de dom Cappio, protagonista que opera a partir de uma situação
concreta, cuja linguagem está em harmonia com a história de um povo e com um leque
de recursos naturais específicos. Assim, com o jejum de dom Cappio, o rio São
Francisco não continua sendo apenas um rio: reforça os laços de identidade com a vida
de seu povo.
De acordo com Milton Santos (2000), o território pode ser entendido como a
morada das pessoas, a identidade e os fatos, o sentimento de pertencimento. Nele se
enraíza o sentimento de identidade coletiva em função dos vínculos estabelecidos com o
meio ambiente. Todo esse sentimento de pertencimento pode aflorar numa figura
carismática que se encontra ligada a um contexto social. Cabe assinalar que o objetivo
do jejum destinado a interromper o projeto de transposição, tendo ou não sucesso,
acarretou uma função social significativa: (re)descobrir a bacia do São Francisco
enquanto o lar de diversos povos com suas identidades e relações peculiares com a
natureza.
2.2 Referencial Teórico para uma Análise Documental
O principal objetivo neste instante é o de colocar em relevo o esqueleto da
polêmica através da narrativa historiográfica dos dois períodos de jejum e oração de
dom Luiz Flávio Cappio, o primeiro entre 26 de setembro e 5 de outubro de 2005, em
Cabrobó, e o segundo, entre 27 de novembro e 20 de dezembro de 2007, em
Sobradinho, tendo como principal fonte os documentos escritos na efervescência desses
acontecimentos.
No entanto, mais do que uma interpretação sociológica, o capítulo priorizou a
análise de conteúdo dos documentos que surgiram nos dois períodos de jejum,
possibilitando assim uma produção historiográfica. Apoiou-se num procedimento
analítico que tem como base teórico-metodológica a obra de Laurence Bardin, a
“Análise de conteúdo”, cujo intuito é captar as informações que dialogarão com a
23
proposta da pesquisa. De acordo com Edgar Salvadori de Decca (2001, p. 30), “é a
exigência documental que funda o acontecimento e não o contrário, isto é, a sua
narrativa”. Sendo assim, o estudo das fontes escritas foi de grande importância para a
narrativa do fato e base para uma posterior análise sociológica das discussões sobre a
transposição das águas do rio São Francisco e da figura do profeta.
Para uma melhor compreensão dos respectivos períodos de jejum e oração de
dom Cappio, fez-se necessário o levantamento de cartas, notas, declarações, artigos e
outros textos, produzidos nos dois momentos supracitados. Em específico, são
correspondências e discursos de dom Cappio, declarações e notas da CNBB,
pronunciamentos da Santa Sé por meio do núncio apostólico, missivas trocadas entre o
governo federal e o próprio bispo, além de recortes de artigos e textos narrando fatos
referentes à transposição.
O critério de seleção desses documentos está intimamente ligado à relevância de
seus conteúdos para o tema da pesquisa – o profeta e a controvérsia da transposição – e
por terem sido elaborados nos dois ciclos de jejum e oração. Ambos os momentos foram
marcados por manifestações contrárias e favoráveis às ações do bispo de
arrebanhamento de povos e movimentos populares e de abertura para debates de
caracteres religioso, político, social e ambiental, na sociedade brasileira.
2.3 Os Dois Períodos de Jejum: uma Análise Documental
Seguindo as orientações de Bardin (1977), a escolha dos documentos está
também relacionada às “unidades de registro e de contexto”21, que se encontram
inseridas na dinâmica da análise de conteúdo, face ao objetivo de narrar a duas fases de
jejum. A “unidade de registro” é cada palavra, tema, personagem, acontecimento,
artigo, relatório, texto e objeto físico que nos permitiu realizar um estudo temático e
descobrir os “núcleos de sentido” que integram a trama da polêmica da transposição.
Ainda na perspectiva de Bardin (1977), levamos em consideração a “unidade de
contexto”. A mesma consiste na totalidade do contexto histórico em que se manifestou
o fato singular; diz respeito às estruturas políticas, religiosas, sociais e ao universo 21 Laurence Bardin, em sua obra “Análise de Conteúdo” (1977), indica caminhos metodológicos para a
escolha das “unidades de registro e contexto”. Para ele, é importante haver uma ligação entre o material selecionado e os objetivos das análises. Meu objetivo é a narrativa histórica, dando ênfase ao personagem principal, dom Cappio, e o acontecimento são as discordâncias em torno do jejum em defesa do rio e do povo do sertão nordestino.
24
simbólico no qual se inserem os discursos analisados e incrementados pela conjuntura
do momento e pelo processo de globalização, em específico o aspecto ambiental e sua
face religiosa. Procuramos, através da análise de conteúdo, tratar as informações
contidas nos documentos escritos com pertinência ao tema da pesquisa, de forma a
extrair dos mesmos o máximo de informações e indicadores que permitam inferir uma
posterior compreensão da figura do profeta na questão da transposição.
A análise de conteúdo procura conhecer aquilo que está por trás das palavras sobre as quais se debruça [...]. A análise de conteúdo é uma busca de outras realidades através das mensagens [...]. Visa o conhecimento de variáveis de ordem psicológica, sociológica, histórica etc., por meio de um mecanismo de dedução com base em indicadores reconstruídos a partir de uma amostra de mensagens particulares. (BARDIN, 1977, p. 44).
Tal análise procura compreender os personagens de um episódio e o ambiente
em que este ocorre, ou seja, o tempo e o espaço, “com o contributo das partes
observáveis” (BARDIN, 1977, p. 43). Ela leva em consideração os significados do
conteúdo e a compreensão das mensagens, no intuito de possibilitar uma
correspondência das estruturas semânticas22 à estrutura sociológica.
Eliseo Verón (1981), ao propor uma metodologia de estudo dos documentos
escritos, ressalta que “todo fenômeno social é suscetível de ser lido em relação ao
ideológico e em relação ao poder”. Para ele, as “condições de produção” de um discurso
estão intimamente ligadas ao “ideológico”, que reflete interesses e valores de
personagens, sociedades e instituições. Neste sentido, a análise salienta nos documentos
a postura de um bispo que, através de um ato religioso, criticou um projeto político,
despertou os movimentos sociais, pastorais, artistas e lideranças religiosas para a causa
ambiental, gerou desconcordância nos meios de comunicação e causou dissensão no
setor eclesiástico e no meio político.
Há, portanto, em nossa pesquisa, um tema central, um acontecimento singular,
um personagem principal e documentos em torno desse episódio. Sendo assim, não
pretendemos realizar uma análise documental do fato, primeiramente porque
selecionamos trechos cujo principal enfoque são a mensagem e o sentido. Em segundo
lugar, não classificamos os mesmos de forma categórica, porém destacamos o caráter
temático de certos discursos e a sequência dos fatos que envolveram os aspectos
22 “A semântica é o estudo do sentido das unidades linguísticas, funcionando, portanto, como material
principal da análise de conteúdo: os significados” (BARDIN, 1977, p. 44). O estudo do sentido de determinadas unidades linguísticas numa perspectiva sociológica permitirá refletir sobre os significados presentes nos discursos que apontam para a compreensão da figura do profeta.
25
políticos, sociais e religiosos. Em terceiro, não priorizamos o resumo do documento, o
que Bardin (1977) chama de “representação condensada da informação, para consulta e
armazenagem”, mas procuramos detectar a expressão do conteúdo a partir de um
conjunto de amostra de missivas, artigos, discursos e outros textos que constroem a
narrativa do caso da transposição.
Durante os dois períodos de protesto, surgiram inúmeras reações que permitiram
perceber a emergência da figura do profeta a partir das divergências acerca da
transposição das águas do rio São Francisco. Logo, foi dedicada grande atenção para o
modo como se apresentaram o documento e seu conteúdo, quer se tratem de simples
recomendações ou avisos, quer se tratem de ordens, prescrições e críticas ao bispo.
Cabe remarcar que o acontecimento não ficou restrito aos textos; esses estão
intimamente relacionados ao contexto da transposição.
O estudo dos documentos possibilitou reconstruir os dois períodos de jejum –
que consistem num fato social, político, ambiental e religioso – assim como elencar
elementos para a compreensão tanto das discussões em torno do projeto de transposição
do São Francisco, como da figura do profeta, a partir do estabelecimento de ligações
entre as informações contidas nos textos e a estratégia de jejuar.
Sendo assim, o pressuposto metodológico fundamental e inicial para a seleção
da documentação escrita “é o de que um documento é sempre portador de um discurso
que, assim considerado, não pode ser visto como algo transparente” (CARDOSO;
VAINFAS, 1997, p. 377). Muitos dos documentos selecionados, sem o cuidado
posterior de se fazer uma interpretação crítica dos mesmos, não possuem informações
claras e diretas que explicitem a figura do profeta; por outro lado, há aqueles que o
exaltam até demais e são ideologicamente tendenciosos. Ambos são destacados seja
pela obscuridade ou pela evidente opção partidária e religiosa.
Todavia seguimos alguns procedimentos de análise obrigatórios, como a
implicação dos discursos político, religioso, social e ambiental sobre a questão da
transposição e a postura de dom Luiz Flávio Cappio. Procuramos detectar a
manifestação coletiva por detrás das informações divulgadas ao público. Narramos o
fato a partir de informações que sobressaíram e geraram diferenças de opinião, as quais
condicionaram o rumo da situação.
No entanto, é preciso asseverar que cabe ao pesquisador mediar, analisar,
comparar e filtrar, por meio de suas ações metodológicas, as fontes de conhecimento
que emergiram na efervescência do episódio, prioritariamente sem negligenciar a forma
26
do discurso, mas relacioná-la ao social, ao político, ao ambiental e ao religioso. A
escolha do documento escrito para a elaboração da presente pesquisa trata-se de uma
opção metodológica que não anula a proposta de novos objetos de investigação, outros
enfoques e metodologias de pesquisa. Trata-se de buscar “os nexos entre as ideias
contidas nos discursos, as formas pelas quais elas se exprimem e o conjunto de
determinações extratextuais que presidem a produção, a circulação e o consumo dos
discursos” (CARDOSO; VAINFAS, 1997, p. 378).
É importante ressaltar que um fato histórico pode se apresentar através de
documentos embebidos de diferentes discursos, tanto escritos quanto iconográficos.
Acontece que somente através da decifração das mensagens descobre-se a
potencialidade dos documentos para a compreensão de um fato histórico-social. Tal
opção metodológica parte do pressuposto de que os documentos possam ser uma das
chaves para a compreensão desse episódio protagonizado por dom Cappio, levando-se
em consideração que o fato não se reduz à estrutura do texto, mas que esta também não
pode ser desprezada na análise da polêmica da transposição. “Nada é uma fonte por sua
própria natureza e é o problema colocado pelo historiador que, identificando um traço
que fornece uma resposta, transforma assim um documento em uma fonte histórica”
(MONIOT, 1993, p. 26).
Entendendo que os documentos escritos são incapazes de dar conta da totalidade
do fato, e que nem deve ser este o propósito de seu registro, há de se reconhecer que,
“os documentos não falam por si mesmos”, porém são portadores de um valor histórico,
conforme o tratamento dado pelo pesquisador. Esta observação demonstra que o
trabalho, neste instante, está orientado para a produção de um texto historiográfico a
partir da seleção e da demarcação de fontes adequadas para a compreensão da polêmica.
De acordo com a interpretação documental dos dois períodos de jejum, a ênfase será
dada à narrativa histórica, tendo como suporte os documentos que emergiram nas
dimensões religiosa, política, midiática e ambiental, diante de um ato arrebanhador de
multidões e considerado por muitos como radical, louco ou até suicida.
2.3.1 O Primeiro Período de Jejum
O projeto da transposição das águas do Velho Chico, que prevê a solução da
seca no sertão, o incentivo ao investimento privado e o desenvolvimento da região
receptora, despertou, em 2005, variada gama de opiniões. De um lado, se manifestaram
27
aqueles que acentuaram a excelência técnica do projeto, enumerando os benefícios
econômicos e as contribuições para o desenvolvimento da sociedade. De outro lado,
surgiram os oponentes, que procuraram realçar os impactos sociais e ambientais
irreversíveis de tal obra. Assim, tais vertentes ganharam maior dimensão quando, nesse
mesmo ano, o bispo dom Luiz Flávio Cappio iniciou sua luta contra a transposição,
reverberando este embate na sociedade e na Igreja. No domingo de Páscoa, 27 de março
de 2005, em Barra-BA, dom Cappio, através de uma declaração, expôs sua posição
frente ao projeto:
1. De livre e espontânea vontade assumo o propósito de entregar minha vida pela vida do Rio São Francisco e de seu povo contra o projeto de transposição, a favor do Projeto de Revitalização. 2. Permanecerei em “greve de fome”, até a morte, caso não haja uma reversão da decisão do Projeto de transposição. 3. A “greve de fome” só será suspensa mediante documento assinado pelo Exmo. Sr. Presidente da República revogando e arquivando o Projeto de Transposição. (CAPPIO, 2008n p. 18).
Além das divergências técnicas, sociais e ambientais, o bispo teceu críticas
sobre o custo e a viabilidade do projeto, discordando também dos procedimentos do
governo nesta questão, pois, para ele, um projeto de tamanha dimensão estava sendo
implantado sem uma prévia consulta à sociedade, o que também acusava a fragilidade
do processo democrático brasileiro e a ausência de uma articulação dos movimentos
sociais e da sociedade de modo geral em defesa de sua soberania e das questões
socioambientais. Essa realidade possibilitou a emergência de dom Cappio, que invocou
uma autoridade cujo sucesso esteve na sua identificação, tanto social quanto cultural,
com uma determinada parte da sociedade, e na incorporação de um discurso que
correspondeu aos anseios de muita gente.
Entre 26 de setembro e 6 de outubro de 2005, o bispo se pôs em jejum e oração
durante 11 dias, na Capela de São Sebastião, a três quilômetros de Cabrobó/PE, nas
terras do povo indígena truká23. O local foi escolhido pelo próprio bispo por ser
próximo da tomada d’água do eixo norte da transposição do rio São Francisco. Tentou
com isto impedir o projeto do governo federal, defender um projeto de revitalização do
São Francisco e abrir uma discussão com a sociedade sobre o assunto.
23 O povo truká vive na ilha da Assunção, no médio rio São Francisco, município de Cabrobó. A aldeia da
Assunção foi fundada provavelmente em 1722 e abriga hoje 3.463 indígenas em sua região, de acordo com o texto “Os povos indígenas de Pernambuco”, disponível na home page da Universidade Federal de Pernambuco.
28
Para dom Cappio, o projeto não era ético, representava interesses unicamente
empresariais, além de gerar um impacto ambiental irrecuperável. Portanto, julgou-o
antidemocrático, distante dos interesses do povo ribeirinho e vinculado ao agronegócio;
não viu resultados positivos e condenou seu custo. Em contrapartida, juntamente com
órgãos especializados, dom Cappio apresentou alternativas econômicas consideradas
mais viáveis para o meio ambiente e para o problema da seca no sertão.
Entretanto, diante das infrutíferas tentativas de estabelecer um colóquio com o
governo, concluiu que “quando a razão se extingue, a loucura é o caminho” (CAPPIO,
2008o, p. 18), dando início a um período de jejum e oração sem fim e mantendo-se
firme em sua decisão enquanto o projeto não fosse suspenso.
Há mais de 30 anos, buscando ser fiel a Jesus Cristo e a meu pai São Francisco, identifiquei minha vida sacerdotal com o Rio São Francisco e seu povo. Neste momento, apenas procuro manter-me coerente com esta opção. Não quero morrer, mas quero a vida verdadeira para o Rio São Francisco e para o todo o Povo Sanfranciscano [sic] e do Nordeste! (CAPPIO, 2008b, p. 33).
Esse líder religioso pautou-se por oração e entrega humana em prol de algo que
considerou maior: a vida do rio e a vida daqueles que necessitam do rio. Em virtude de
sua postura extrema, trouxe polêmica e desencadeou uma avalanche de debates e artigos
envolvendo religião, política e meio ambiente.
Por sua vez, a mídia omitiu até certo momento o episódio, vindo a veicular a
informação apenas quando a situação se mostrava mais conflitante. Só então os meios
de comunicação suscitaram uma série de indagações éticas e religiosas que
ocasionaram, por sua vez, várias discussões acerca da atitude do bispo e da relação
existente entre meio ambiente e religião.
Acresça-se a isto, a chegada de peregrinos a Cabrobó, gente ligada às pastorais,
à Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), aos movimentos sociais e demais
paróquias. A presença do povo, a repercussão em nível internacional, a adesão de outras
pessoas ao gesto de jejum, a união dos movimentos populares numa única causa e a
participação de artistas e intelectuais contribuíram para a formação de um cenário cujos
contornos eram propícios a uma mobilização social de maior vulto.
Numa carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de 26 de setembro de 2005,
dom Cappio deixou transparecer sua frustração com o governo, por levar adiante um
projeto que não estava em seu programa. Cabe ressaltar que, antes desse episódio, dom
29
Cappio apoiou o PT nas campanhas eleitorais de Lula. Em 1994, logo após sua
peregrinação pelo rio São Francisco, chegou a se encontrar com o então candidato a
Presidência da República, Lula, pondo-o a par da necessidade da preservação desse rio e
firmando com ele um acordo que garantisse futuras ações de revitalização e
desenvolvimento para o povo do sertão nordestino. No entanto, tal pacto, conforme
afirma dom Cappio, não foi cumprido, e, em 25 de setembro de 2005, o bispo iniciou
seu primeiro embate com o governo federal, colocando-se em jejum até que o projeto de
transposição fosse paralisado.
Sempre fui seu admirador. Participei ativamente em todas as campanhas eleitorais do PT, alimentando o sonho de ver o povo no poder. Esperávamos do senhor um apoio maior em favor da vida do rio e do seu povo. Esperávamos que, diante de tantos e consistentes questionamentos de ordem política, ambiental, econômica e jurídica, o governo revisse sua disposição de levar a cabo este projeto que carece de verdade e de transparência. Quando cessa o entendimento e a razão, a loucura fala mais alto. Em meu gesto não existe nenhuma atitude anti-Lula neste momento delicado da vida nacional. Pelo contrário. Quem sabe seja uma maneira extrema de ajudá-lo a entender pelo coração aquilo que a razão não alcança. (CAPPIO, 2008d, p. 19).
Com essa atitude, esperava que o governo se sensibilizasse, suspendesse a obra e
estabelecesse uma discussão mais profunda com toda a sociedade. Tal ato religioso foi
repercutido pelos meios de comunicação porque, primeiramente, era realizado por um
bispo, e, segundo, porque sua atitude religiosa ganhou uma dimensão altamente política,
o que permitiu dupla leitura – jejum e greve de fome.
O jejum, que é de caráter religioso, se tornou um instrumento de pressão política
e protesto social, passando a ser chamado de “greve de fome” de caráter reivindicatório
e de afronta política. De acordo com os documentos estudados, dom Cappio sempre
compreendeu seu gesto como “jejum e oração”; todavia, numa declaração intitulada
“Uma vida pela vida”, de 27 de março de 2005, ele usa a expressão “greve de fome”
(CAPPIO, 2008o, p. 18), e, depois, na sua “Carta ao Povo do Nordeste”, de 30 de
novembro de 2007, fala de sua decisão em permanecer em “jejum e oração” (CAPPIO,
2008c, p. 50-51).
Tanto o termo “jejum” quanto “greve”, apesar de distintos em seus sentidos,
procuravam classificar a atitude do bispo; no entanto, o clero, os intelectuais e as
pastorais usaram frequentemente o termo “jejum”. Já os meios de comunicação de
30
massa, os movimentos sociais, as pastorais, artistas, intelectuais e lideranças religiosas
utilizaram indiscriminadamente os dois termos para classificar a atitude de dom Cappio.
A denominada “greve de fome” acabou sendo noticiada no mundo inteiro
através dos meios de comunicação e, em especial, no seio da Igreja católica e no meio
político. Caravanas de diversas partes do Brasil seguiram para Cabrobó, havendo uma
adesão significativa de diversos povos que, juntamente com os movimentos sociais,
apoiaram o gesto de frei Luiz. Portanto, diante dessa situação efervescente, em 29 de
setembro de 2005, numa carta dirigida a dom Cappio, o presidente Lula cedeu e propôs-
lhe um diálogo.
O apelo pessoal ao diálogo que lhe faço, Dom Luiz Flávio, baseia-se na minha responsabilidade de governante, que deve dialogar com uma sociedade múltipla em suas crenças, convicções pessoais e ideologias, tendo como fundamento a vida democrática, com o necessário respeito às decisões das maiorias e aos direitos das minorias. (SILVA, 2008, p. 21).
Dom Cappio insistiu em manter-se em jejum, ignorando o apelo presidencial,
enquanto não tivesse em mãos um documento que cancelasse o projeto de transposição
para posteriormente estabelecer um diálogo e propor alternativas para o São Francisco.
Aqui é importante sublinhar que o jejum de dom Cappio não somente ressoava nas
massas de peregrinos, povos indígenas e militantes, mas originava um incômodo no
meio político. Muitos movimentos populares e religiosos encontraram em dom Cappio
uma força encorajadora que os levou a refletir e a se mobilizar em torno de propostas
que apontaram para uma política ambiental.
Confirmo minha decisão de permanecer em jejum e oração enquanto não chegar em minhas mãos [sic] o documento assinado pelo senhor revogando e arquivando o atual Projeto de Transposição. Depois de não termos mais, sobre nossas cabeças, o fantasma do Projeto de Transposição, estamos inteiramente abertos para um amplo diálogo e debate nacional, verdadeiro e transparente, discutindo alternativas de convivência com o semiárido e a oportunidade ou não de realizar a transposição. (CAPPIO, 2008e, p. 26).
A postura subversiva de dom Cappio sacudiu a Igreja em função do abalo à
ordem política e da proposta que seu gesto apresentava: um chamado para uma nova
forma de relação entre o humano e o meio ambiente. Este gesto ecoespiritual, cuja
repercussão transpôs as fronteiras do país, suscitou uma série de questionamentos éticos
e religiosos no seio da Igreja e no meio político. Sua atitude alvoroçou a Igreja Católica
Apostólica Romana, além de gerar uma profunda discussão no episcopado.
31
A tensão tendeu a se agravar pelo fato de que todos que participaram do
processo de discussão do projeto de transposição das águas do São Francisco numa
perspectiva de mudança social e política não comungavam das mesmas visões e
concepções.
Uma ala demonstrou apoio ao gesto político do frei, contudo condenou o meio
escolhido: o jejum radical.
Outro grupo considerou sua atitude equivocada, radical, fundamentalista e
contraditória aos dogmas cristãos; além disto, defendeu a ideia de que a transposição
beneficiaria a população e se posicionou contrário aos fins políticos do frei e favorável
ao projeto do governo federal.
Enfim, outra ala católica aprovou o meio utilizado por dom Cappio para barrar a
transposição, enquanto último recurso existente; ademais, articulou-se com diversas
organizações, movimentos populares e sociais que abraçaram a causa política e
ambiental: Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos
Pequenos Agricultores (MPA), Movimentos dos Atingidos por Barragens (MAB), Via
Campesina, movimentos estudantis, sindicatos, além de órgãos públicos, técnicos,
intelectuais e artistas.
Dom Cappio foi evocado porque sua postura motivou um questionamento sobre
o papel da religião frente ao meio ambiente. Com ele vieram vários movimentos,
grupos, tribos, técnicos, artistas, políticos, líderes religiosos e a população, todos
atraídos pela causa do bispo. Assim, sua atividade religiosa assumiu um novo contorno,
o político. Todavia cabe lembrar a aglomeração de pessoas próxima à Capela de São
Sebastião, buscando bênçãos, conselhos e transmitindo apoio ao bispo.
Lá estava o povo. Índios Tumbalalá e Truká com suas vestes de palha e seus maracás. Uma mulher vestida com hábito franciscano, comum nos locais de romaria do nordeste. Freiras de hábito e sem hábito. Um senhor queria que o frei ajudasse a resolver a questão da imagem da santa que ainda falta na capela de seu povoado. Alguns buscavam confessar-lhe os pecados. Uma família trazia uma menina doente para Dom Luiz abençoar e quem sabe curar... Gente chegando o tempo todo, e ele pacientemente atendendo a todos. (SIQUEIRA, 2008b, p. 101).
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) posicionou-se
demonstrando preocupação com a forma adotada por dom Cappio para defender o rio e
sua gente; afinal era um bispo disposto a doar a vida por uma causa social e ambiental.
A CNBB manifestou apoio e solidariedade num primeiro momento, reconhecendo o
32
carisma franciscano de doação aos pobres; porém, depois, considerando extremista sua
atitude, se mostrou receosa quanto ao meio escolhido, tanto foi que estabeleceu um
diálogo com frei Luiz no intento de pôr fim à sua decisão, pois, para a entidade, seria
mais interessante que o bispo continuasse com sua causa, consciente e atuante.
No momento em que você toma uma decisão de extrema importância em sua vida, queremos assegurar-lhe a presença fraterna de seus irmãos bispos da Presidência e do Conselho Episcopal de Pastoral da CNBB. Sabemos que estamos diante de uma atitude extrema, mas também de grande generosidade. Qualquer que seja o juízo sobre a oportunidade de sua decisão, não é possível deixar de reconhecer a nobreza de seu propósito. Num mundo em favor do povo pobre, tem a marca evangélica de Francisco de Assis no seguimento de Jesus. (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2008a, p. 27).
Além de obter reconhecimento de diversos movimentos sociais e religiosos, a
primeira greve de fome foi capaz de condicionar a CNBB a adentrar na esfera política,
pois, preocupada com a saúde do bispo e também com a repercussão do fato, a entidade
se direcionou em carta ao presidente da República.
Somos interpelados por este gesto profético, fruto de um discernimento espiritual feito ao longo de anos de convívio com a realidade de pobreza e sofrimento das populações que sobrevivem do Rio São Francisco [...] Senhor presidente, apelamos para que reconsidere a decisão política que, ainda longe de um consenso na região nordestina a respeito da viabilidade e dos resultados socioambientais da transposição do rio São Francisco, divide as mentes e os corações. Esperamos uma atitude sua em favor da unidade do povo nordestino. É preciso intensificar o diálogo capaz de superar as divergências que existem na região e construir um projeto que seja do conjunto da sociedade. (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2008c, p. 28).
A polêmica em torno da transposição do rio São Francisco refletiu um momento,
na história do Brasil, em que o meio ambiente ganhou atenção através de uma atitude
religiosa. Por isso, se por um lado a CNBB considerou a atitude franciscana de dom
Cappio “generosa”, por outro a classificou como radical, por ir além dos limites
cristãos. Portanto, na visão da CNBB, caberia a dom Cappio reconsiderar sua estratégia,
pois o meio escolhido para salvar o rio São Francisco e seu povo transpunha os
“limites” circunscritos à Igreja.
Rezamos e renovamos, em nome da Igreja, nosso pedido ao caro irmão para que reveja sua decisão colocando-a nos limites que permitirão sua volta à sua Diocese de Barra e à continuação da luta pela causa. (AGNELO, 2008, p. 30).
33
Com a avalanche de notícias e imagens sensacionalistas transmitidas ao mundo
inteiro, ficava evidente o desconforto que dom Cappio havia trazido à Santa Sé. Numa
carta do Vaticano, de 4 de outubro de 2005, o cardeal Giovanni Battista Re advertiu-o
sobre o jejum, classificando-o como um atentado à própria vida; assim, exigiu que, em
obediência à Santa Sé, dom Cappio pusesse fim ao seu gesto. Sua atitude, caso o levasse
à morte, seria vista como um ato contrário aos preceitos cristãos.
Com referência à sua radical decisão de jejum contra o plano de transposição das águas do Rio São Francisco, reclamando também a sua revitalização, e diante da firme opção de Vossa Excelência de levar até o extremo a greve de fome, tenho o grave dever de recordar-lhe que os princípios da moral cristã não permitem que leve adiante a sua decisão. É necessário conservar a vida, dom de Deus, e a integridade da saúde. Em nome da Santa Sé, peço firmemente que não prossiga com esse gesto radical. Não é esse o modo aceitável para exprimir a sua solidariedade e sua doação pelo Povo de Deus. A Santa Sé confia que Vossa Excelência não desobedecerá o preceito divino de não extinguir e prejudicar a sua vida e que imediatamente V. Exa. colocará fim a este gesto em obediência também à Santa Sé. (RE, 2008, p. 31).
As considerações acima mostram que a Igreja buscou dar continuidade às
relações fundamentais da ordem eclesiástica. Naquele momento, ela combateu a ideia
de transgressão através da imposição dos limites, das regras morais, do respeito e da
obediência à hierarquia, delimitando o espaço e a posição de dom Cappio no universo
social e religioso. Tudo isto para assegurar uma estrutura religiosa que estivesse em
concordância com a ordem política e social, evitando seu ato subversivo.
Mesmo diante do pedido do Vaticano, dom Cappio permaneceu em jejum e
oração. Diariamente recebia o povo que vinha de diversas partes do Brasil, mantendo-se
consciente e convicto de sua decisão, e acreditando ser esta a última maneira de salvar o
rio. Para ele, a greve de fome só terminaria com um documento do presidente Lula
suspendendo a execução do projeto de transposição das águas do São Francisco.
Além disso, em 4 de outubro de 2005, centenas de pessoas e entidades populares
de vários cantos do país realizaram a Assembleia dos Povos do Semiárido. Nela
estavam representantes de vários grupos e lideranças sociais. Toda essa confluência de
pessoas indicava que o sentido da luta de dom Cappio se expandia e se multiplicava em
gestos de presença e organização. Enquanto o bispo praticava o jejum, os atores sociais
que estavam ocultos emergiram dando início a discussões sobre a transposição e seus
34
resultados. Neste contexto de luta, muitas pessoas, num ato coletivo de solidariedade a
dom Cappio, adotaram o jejum:
Tomaram a palavra representantes dos vários segmentos da população sertaneja, além do bispo presidente da CPT, dom Tomás Balduíno, e da engenheira Maria Higina, do CREA/BA e CONFEA e do Fórum Permanente em Defesa do São Francisco. Um pequeno agricultor, do MPA, que aderiu à greve, José Santana, de Iço/CE, região beneficiária da transposição, falou do sucateamento em que se encontra o projeto de irrigação que há 30 anos o DNOCS instalou na região. Santana e mais dois companheiros do MPA aderiram à greve de fome de Dom Luiz. Falaram ainda o deputado do PV/BA, Edson Duarte, Alzeni Thomas, da Pastoral dos Pescadores, Pedro Paulo, pela Pastoral da Juventude do Meio Popular, de Senhor do Bonfim, Anderson, da ASA Articulação do Semi-Árido e Neguinho Truká, líder do povo Truká, da ilha de Assunção, em frente à qual foi realizada a Assembleia. (SIQUEIRA, 2008a, p. 98).
E aumentava cada vez mais o número de peregrinos a Cabrobó-PE pedindo sua
bênção e se solidarizando com sua atitude. Havia uma participação que se mesclava
com discussões políticas, vigílias e missas. Mesmo diante dos pedidos do governo
federal, da oposição clerical para a suspensão de sua “greve de fome”, o bispo
continuava firme. O relatório de visita de dom Itamar Vian, a Feira de Santana, em 5 de
outubro de 2005, deixou isto claro:
[...] Dom Luiz confirma decisão de permanecer em “greve de fome”. “Confirmo minha decisão de permanecer em jejum e oração enquanto não chegar em minhas mãos o documento assinado pelo senhor revogando e arquivando o atual Projeto de Transposição”. (VIAN, 2008, p. 32).
Em contrapartida, a Presidência do Regional Nordeste II da CNBB, formada por
Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte, divulgou uma nota afirmando o
apoio dos bispos ao projeto de transposição do governo federal e a não-aprovação da
atitude de dom Cappio, classificada como extrema e contrária à doutrina católica. O
arcebispo da Paraíba e presidente do Comitê de Defesa do Projeto de Integração de
Bacias na Paraíba, dom Aldo di Cillo Pagotto, se mostrou desde o início favorável ao
projeto do governo federal e contrário à atitude de dom Cappio por ferir os preceitos
cristãos e barrar obras que, segundo ele, trariam benefícios ao povo nordestino.
Somos a favor de que o processo de revitalização do rio São Francisco, em toda a sua extensão e complexidade, seja iniciado com a devida urgência, contemplando inclusive as necessidades vitais das populações ribeirinhas. Queremos reafirmar nossa adesão ao Projeto da captação de águas do Rio São Francisco, para suprir as necessidades de água potável, nas carentes
35
bacias hidrográficas de nossos Estados, de modo especial, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. [...] Na caridade da Colegialidade Episcopal, por dever de nosso ministério, afirmamos a nossa desaprovação à atitude extrema do nosso irmão Dom Luiz Flávio Cappio, que provocou perplexidade e sofrimento a nós pastores e ao povo de Deus a nós confiado. Agradecemos ao querido irmão pela acolhida aos ensinamentos da doutrina de nossa Igreja Católica, que afirma ninguém ser dono de sua própria vida. Fraternalmente, o temos, bem como a todo o povo do nordeste, em nossas orações. (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL – REGIONAL NORDESTE 2, 2008, p. 35-36).
A estratégia de dom Cappio tinha o propósito de sensibilizar a sociedade e o
governo federal para um debate mais profundo em torno do projeto de transposição,
além de fomentar o investimento em obras que revitalizassem o rio São Francisco.
Diante da polêmica em nível internacional, o ministro de estado, chefe da Secretaria de
Relações Institucionais, Jacques Wagner, em nome do governo federal, enviou, em 5 de
outubro de 2005, uma carta ao bispo assegurando-lhe um debate com a sociedade e
convidando-o para um diálogo no Palácio do Planalto. Para os diversos movimentos
sociais que se mantiveram juntos a dom Cappio, essa era uma significativa conquista:
uma audiência, em Brasília, focalizada numa discussão que poderia dar origem a um
projeto de desenvolvimento sustentável para a bacia são-franciscana.
[...] O Governo Federal assegura que será prolongado o debate em torno do processo de transposição das águas do rio São Francisco, ainda na fase anterior ao início de obras, para o esclarecimento amplo de questões que ainda suscitem dúvidas e divergências. Além disso o Governo Federal dará continuidade e intensificará as obras relativas à revitalização do rio São Francisco. [...] Por fim, o Presidente Lula lhe transmite convite para ser recebido por ele no Palácio do Planalto tão logo o senhor estiver restabelecido, com o objetivo de dialogar sobre o mesmo tema. (WAGNER, 2008, p. 37).
Paralelo ao período de jejum, estreitavam-se os laços de comunicação entre o
Planalto e o Vaticano. O núncio apostólico dom Lorenzo Baldisseri acionou o
secretário-geral da CNBB, dom Odilo Scherer, e o cardeal Re, que interpretaram a ato
de jejum como sendo uma ofensa contra “o preceito divino”. Assim, a atitude de dom
Cappio poderia terminar com sua morte, compreendida como um ato suicida,
infringindo desta forma “os princípios da moral cristã”.
O ministro das Relações Institucionais, Jacques Wagner, ao tomar conhecimento
da posição da Santa Sé, dirigiu-se, juntamente com o núncio para Cabrobó, em 6 de
outubro de 2005. Diante da possibilidade de seu gesto ser interpretado como uma
atitude suicida e perante a promessa do presidente em estabelecer uma discussão sobre o
36
projeto de transposição, dom Cappio decidiu, em 6 de outubro de 2005, interromper o
jejum. O bispo cessou o jejuar não em função das orientações e das pressões políticas e
religiosas (essas viriam no dia seguinte), mas porque o que ele buscava, pelo menos
num primeiro momento, fora alcançado: um diálogo que pudesse sinalizar alternativas.
Considerando que o tempo para o diálogo deva ser suficiente para permitir uma ampla discussão, participativa, verdadeira e transparente para que se chegue a um plano de desenvolvimento sustentável baseado na convivência em todo o semiárido, para o bem de sua população, priorizando a mais pobre; Declaro: fica suspenso meu jejum em favor da vida. (CAPPIO, 2008m, p. 39).
Pondo fim à greve de fome, logo no dia seguinte, 7 de outubro de 2005, dom
Cappio se deslocou da Capela de São Sebastião e foi ao encontro do núncio apostólico
dom Lorenzo Baldisseri, que o esperava para uma conversa e estava portando consigo
uma carta do cardeal Re, caso dom Cappio continuasse seu jejum. A greve de fome foi
finalizada com uma missa de ação de graças, na própria Capela de São Sebastião,
presidida pelo núncio apostólico e concelebrada por dom Cappio, dom Adriano Ciocca,
dom Antônio Muniz, pelo bispo de Guarabira e presidente do Regional Nordeste II,
dom Paulo Cardoso da Silva, pelo bispo de Petrolina e muitos sacerdotes, além da
presença significativa do povo.
Durante a homilia o Núncio apostólico destacou que a vida é um dom de Deus, da qual não somos donos, mas sim administradores: “Só Deus é o dono da vida e nós não podemos tirá-la. Segundo a moral católica, o fim não justifica os meios, mesmo que o fim seja uma nobre causa”. O Núncio trouxe o afeto e a Benção Apostólica do Santo Padre, pela feliz conclusão desta vicissitude. (BALDISSERI, 2008c, p. 40).
Numa carta de dom Cappio, de 11 de outubro de 2005, intitulada “Vida para
todos: por isso fiz a greve de fome”, percebe-se que suas palavras estavam apoiadas em
princípios éticos vinculados a uma causa religiosa, política ou social que lhe conferiam
a legitimidade para exercer certa influência sobre um povo e movimentos populares.
Fica evidente a maneira como conseguiu conciliar sua atitude com a demanda social de
povos, tribos, movimentos populares, parte do clero e demais religiosos que se
reconheceram e se acharam representados em seu discurso e em seu gesto.
Foi em favor da vida que fiquei 11 dias em jejum e oração na tão querida capelinha de São Sebastião, em Cabrobó (PE). Motivou-me o compromisso, baseado no Evangelho, que tenho com os pobres, os do rio São Francisco em
37
primeiro lugar, porque me são mais próximos, há mais de 30 anos, por opção de franciscano, sacerdote e bispo desde 1997. Compromisso com a vida do próprio rio São Francisco, tão degradado. [...] Busquemos um plano que una novamente a nação nordestina. A transposição nos divide. A revitalização do São Francisco e do semiárido nos une. [...] Fico feliz que meu gesto, suas razões e sua “loucura” tenham sido compreendidos e apoiados por tanta gente. Agradeço sinceramente. Tenho rezado por todos. [...] “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (João, 10, 10). [...] Fiz dessas palavras centrais do Evangelho meu lema de bispo. Só quis ser fiel a elas, com a radicalidade que a questão exigia. E voltarei ao jejum e à oração, com mais determinação ainda, se o acordo firmado, em confiança, com o governo não for cumprido. E sei que não estarei sozinho. (CAPPIO, 2008p, p. 41-42).
A necessidade de conservação do rio, somada à questão social do povo que vive
no semiárido, orientou a atividade religiosa de um bispo, no útero deste campo social, a
se constituir um líder capaz de comover povos e movimentos através de uma dinâmica
religiosa particular: jejum e oração. Houve também um interesse por parte desse
protagonista em elaborar uma visão daquela realidade que correspondesse da melhor
maneira possível ao interesse religioso e também ao social de certos grupos,
comunidades e povos. Através de seu discurso, apresentou uma prática ou concepção
religiosa que foi ao encontro de interesses e da necessidade de vários povos.
Dom Cappio deixou clara sua motivação baseada no evangelho e seu
compromisso com seu povo, cuja relação mantém há mais de três décadas, além da
motivação franciscana. Para ele, sua luta contra a transposição possuía uma extensão
maior: pensar um plano de desenvolvimento sustentável para toda a população do
semiárido. Ao final de seu jejum, demonstrou felicidade diante do apoio que recebeu e
mostrou-se consciente da radicalidade assumida diante da questão.
Por fim, o primeiro período de jejum e oração foi significativo e marcante, uma
vez que conseguiu interromper o projeto e propor uma discussão sobre alternativas de
recuperação do rio. Visto pelo ângulo da conquista, seu gesto adquiriu uma dimensão
profética, pois rendeu um acordo com o governo federal de se estabelecer um diálogo
com a sociedade sobre o projeto da transposição. Dom Cappio conseguiu paralisar as
obras, e isto trouxe mudanças significativas nos campos social e religioso, pois revelou
a força de uma liderança religiosa carismática, cujas razões não surgiram no meio
eclesiástico: provieram de sua experiência com o povo do sertão e da frustrante tentativa
de não conseguir propor soluções para o sertão através das vias democráticas.
Foi da periferia que dom Cappio exprimiu um conjunto de solicitações
ambientais e sociais insatisfeitas e aptas para mobilizar em torno de si um conjunto de
forças em prol de transformações socioambientais. Havia um clima de que os
38
movimentos inspirados na religião podiam produzir grandes transformações sociais a
partir do comportamento religioso e sua influência sobre a sociedade.
Presenciamos, nessas inflamadas circunstâncias, a ordem religiosa sendo
incomodada por causa da ação de dom Cappio, que passou por cima da hierarquia
religiosa e afrontou o meio político. A atitude de jejuar, independentemente da
aquiescência da Igreja Católica, mobilizou parte do clero e até mesmo o Vaticano. Seu
gesto influenciou na organização e manifestação social de diferentes grupos da
sociedade e repercutiu no mundo inteiro. Diante da polêmica da atitude de dom Cappio,
foram necessárias notas e declarações para coibir sua conduta, restabelecer uma
sistematização burocrática, manter certa ordem interna e conservar as relações entre
Igreja e Estado.
2.3.2 O Segundo Período de Jejum
Dois anos se passaram desde o primeiro jejum de dom Cappio, interrompido em
função de um acordo firmado com o governo federal. Tal pacto preceituava uma ampla
discussão com a sociedade brasileira sobre o projeto de transposição, bem como o
levantamento de alternativas para o semiárido, a partir de uma política de
desenvolvimento sustentável. Tudo levava a se apostar, naquele instante, que
alternativas seriam encaminhadas; no entanto o diálogo foi apenas iniciado, não houve
continuidade, ignorando a proposta estabelecida em 2005. Para agravar a situação, o
governo federal deu sequência às obras, tendo desta vez à frente o exército brasileiro.
Conforme uma carta, de 4 de outubro de 2007, enviada ao presidente Lula, o
bispo expõe as tentativas de apresentação de propostas como alternativas à transposição.
Já existem propostas concretas para garantir o abastecimento de água para toda a população do semiárido: as ações previstas no Atlas do Nordeste apresentado pela Agência Nacional de Águas (ANA) e as ações desenvolvidas pela Articulação do Semi-Árido (ASA) (CAPPIO, 2008i, p. 44).
Diante da infrutífera insistência para reabertura do diálogo, do descumprimento
do acordo estabelecido com o governo federal e do início das obras, dom Cappio
reiniciou seu jejum e oração em 27 de novembro de 2007. Numa correspondência que
data de 25 de novembro de 2007 – festa de Cristo rei – dirigida ao clero da Diocese de
Barra-BA, o bispo manifesta sua frustração com o governo, avalia como sem efeito
39
significativo o trabalho dos movimentos sociais e alerta sobre a gravidade do problema
da transposição, encontrando como única solução a retomada do jejum:
Os movimentos sociais têm feito o que podem. Em vão. Diante da sucessão de absurdos que vem acontecendo a nível institucional, econômico, político, social e ambiental, não posso me omitir. Novo grito tem que ser dado. Se o eco do primeiro ainda ressoa, agora será alimentado por novo gesto baseado na fé e no amor, principalmente ao povo de Deus, a quem doei minha vida. Peço-lhes perdão pela ousadia. Mas não tenho outra alternativa. Espero e desejo voltar são e salvo para continuarmos nossa caminhada de pastores em nossa querida Diocese de Barra. Sei que isto traz uma profunda experiência de insegurança diante do futuro. Peço que encarem com fé este profundo gesto de amor e doação. “A profecia não pode morrer”, ensinava Dom Helder Câmara, embora saibamos que seu preço é muito caro. (CAPPIO, 2008h, p. 46).
O segundo jejum ocorreu na Capela de São Francisco, em Sobradinho-BA. A
escolha do local não foi gratuita: estava associada à violenta expulsão de trabalhadores
rurais e camponeses, de suas terras, entre 1971 e 1978, devido à construção da
Barragem de Sobradinho. Mais uma vez a atitude do bispo repercutiu no seio
eclesiástico, gerando divergências de opinião. A CNBB tomou conhecimento do jejum
no seu primeiro dia e emitiu nota expressando sua posição sobre a transposição das
águas do São Francisco.
É necessário dar continuidade a um amplo diálogo visando a soluções adequadas e considerando as alternativas apresentadas pelas forças sociais populares envolvidas no processo, para promover o desenvolvimento sustentável, a preservação do meio ambiente, a agricultura familiar e convivência com o semiárido; (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2008e, p. 48).
A presidência da CNBB NE V, que representa o estado do Maranhão, tendo à
frente o bispo de Viana, dom Xavier Gilles, dom Franco Cuter e demais religiosos,
através de uma carta endereçada ao próprio frei Luiz Cappio, de 28 de novembro de
2007, reconheceram o gesto de dom Cappio como evangélico. Nela ficou patente o
reconhecimento da luta do bispo franciscano para a construção de uma nova relação
entre ser humano e natureza, capaz de fazer valer o caráter missionário franciscano em
função da vida e reconhecendo a ausência de unanimidade dentro da Igreja Católica.
Para a CNBB NE V, toda essa polêmica revelou, depois de séculos de obscuridade, o
renascer do carisma de São Francisco de Assis frente aos desafios de preservar o planeta
e cuidar do povo excluído.
Dom Cappio canalizou para si a insatisfação de um povo, evocou o passado com
sua tradição e seus costumes, no intuito de resgatar a autenticidade de seu gesto, e
40
apontou “o caminho da desobediência civil e da objeção de consciência, que se associa
à luta das organizações populares e dos movimentos sociais do Brasil e da Pátria
Grande” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2008b, p. 155).
Em contrapartida, a Presidência da CNBB NE III – Bahia e Sergipe – reafirmou sua
posição favorável ao projeto de transposição e contrária à ideia de dom Cappio de
principiar novo jejum. “Esclarecemos que o seu gesto de ‘jejum e oração’ é iniciativa e
opção pessoal, não necessariamente refletindo o pensamento da CNBB NE III”
(CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL – REGIONAL
NORDESTE 3, 2008, p. 49).
A maneira que dom Cappio encontrou de se rebelar causou divergência teológica
no meio eclesiástico, no entanto não ao ponto de gerar uma cisão na Igreja. Conforme
os documentos mencionados, uma parte do clero viu sua atitude como um atentado à
própria vida e uma afronta à doutrina cristã; outra ala defendeu a posição de que dom
Cappio não estava dando fim à sua vida, mas a doava em função de seu povo e do rio
São Francisco. Além disto, houve também discordâncias no clero sobre a viabilidade do
projeto de transposição: uma parte foi favorável a ele, classificando a atitude do bispo
como antidemocrática, e outra parte condenou o projeto, acreditando ser inviável e
oneroso.
A falta de consenso levou a CNBB a buscar orientações nas normas da Igreja,
através do direito canônico. Conforme dom Geraldo Lyrio, presidente da CNBB em
2007, o ato de dom Cappio não era um ato suicida, entretanto criava uma imagem
negativa para a Igreja Católica, uma vez que a instituição encontrava-se em campanha
contra o aborto e a eutanásia.
Já o clero da Diocese de Barra-BA apoiou dom Cappio e sua luta pelo rio São
Francisco e suas comunidades, numa carta aberta ao povo, de 28 de novembro de 2007:
Reunidos na Sede da Diocese de Barra, por ocasião do JEJUM E ORAÇÃO DO NOSSO BISPO, D. Frei Luiz Flávio Cappio, ação concreta, na luta e defesa da vida do Rio São Francisco e do povo ribeirinho, queremos através desta manifestar nosso apoio, solidariedade e respeito por este gesto grandioso de profecia do nosso Pastor. (DIOCESE DE BARRA, 2008, p. 52, grifos do autor).
A repercussão ultrapassou os muros da instituição católica e se fez ouvir nas
demais comunidades cristãs. Numa nota de 5 de dezembro de 2007, a diretoria do
Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), que se encontrava em
41
Brasília-DF, manifestou sua posição sobre a transposição das águas do rio São
Francisco e o posicionamento de dom Cappio.
O conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil entende que o ato extremo de Dom Frei Luiz supera o campo puramente político e se situa na dimensão simbólica e religiosa. O bispo tem declarado e demonstrado com suas ações a vontade de doar a vida em favor da causa do povo do sertão, com quem ele convive há anos partilhando necessidades e sofrimentos, esperanças e lutas. Esse ato pode resultar incompreensível para muitas pessoas e parecer uma chantagem para membros do governo, mas é de acordo com a mais autêntica tradição cristã pontilhada de mártires. (CONSELHO NACIONAL DE IGREJAS CRISTÃS DO BRASIL, 2008, p. 157).
O CONIC reconheceu a luta de dom Cappio, assim como a degradação
desenfreada do meio ambiente e a necessidade da abertura de um diálogo que fora
firmado, em 6 de outubro de 2005, entre o bispo e o presidente da República. Por fim,
uniu-se ao bispo em seu propósito ético e democrático de proteção ao meio ambiente.
Numa nota que data de 5 de dezembro de 2007, o CONIC manifestou apoio a dom
Cappio na luta pela revitalização do rio São Francisco, além de ressaltar a necessidade
de abastecimento de água à população através de alternativas garantidas pelos recursos
hídricos do próprio sertão.
O CONIC entende o gesto extremo de Dom Frei Luiz como um testemunho cristão, une-se a ele em oração, preocupa-se com a sua saúde e a sua vida e reafirma o propósito de defender os direitos humanos das populações do semiárido, a democratização do uso da água, a revitalização do Rio São Francisco, metas que, a nosso ver, não estão contempladas no projeto de transposição. (CONSELHO NACIONAL DE IGREJAS CRISTÃS DO BRASIL, 2008, p. 158).
Por sua vez, a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, através de seu bispo primaz
dom Maurício José Araújo de Andrade, e tendo como base o documento ecumênico “Os
Pobres Possuirão a Terra”24, chamou luteranos, metodistas e católicos a se solidarizarem
com dom Cappio. Solicitou ao presidente da República que parasse as obras e chamou a
sociedade civil a refletir sobre a atitude do bispo. Também convidou a todos para, num
ato coletivo, se colocarem em oração e jejum, no segundo domingo do advento, 9 de
24 Cf. “ Os Pobres Possuirão a Terra: pronunciamento de bispos e pastores sinodais sobre a terra” (2006).
O texto ressalta os princípios fundamentais para uma sociedade, como a justiça, o respeito aos direitos humanos e a preservação do meio ambiente, além de resgatar o papel da Igreja na luta pela reforma agrária e a necessidade de uma nova consciência ecológica que deve presidir toda política voltada para a extração dos recursos naturais.
42
dezembro de 2007, pelas intenções de dom Cappio. Dom Maurício conclamou toda a
Igreja,
[...] para manifestar solidariedade com o bispo católico romano da Diocese de Barra, na Bahia, Dom Frei Luiz Cappio, OFM, profeta, místico e pastor muito estimado por nossa Igreja, ora em jejum e orações pela revitalização do Rio São Francisco, e em protesto pelo início do projeto de transposição das águas de sua bacia hidrográfica. (ANDRADE, 2008, p. 159).
Em 9 de dezembro de 2007, estando dom Cappio em seu 13º dia de jejum, foi
realizado um ato ecumênico em apoio à sua causa. Cerca de cinco mil pessoas de
caravanas de Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia chegaram a Sobradinho-BA. Para
os manifestantes, a causa do bispo era significativa, já que o projeto da transposição
traria um impacto ambiental incalculável, além de beneficiar apenas empresários e a
população com maior poder aquisitivo. A posição dos movimentos sociais sobre a
atitude de dom Cappio refletiu o descontentamento de terem apoiado um governo cuja
postura, àquela altura, redundava num desserviço; portanto, no rastro da indignação de
dom Cappio, seguiram-se os movimentos sociais que abraçaram a causa do rio São
Francisco.
O ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima (2007) afirmou que a
transposição e a revitalização não eram “causas nobres” que justificassem tal ato e que a
greve de fome era “um disparate”, assegurando que a transposição consistia num projeto
para “combater a indústria da seca” e que “a democracia não pode se dobrar a um único
homem”25:
Greve de fome como método de pressão política só fez sentido na História em lutas libertárias contra injustiças extremas. Foi assim que as mulheres inglesas conquistaram direito ao voto, que Mahatma Gandhi encerrou a longa opressão do colonialismo britânico na Índia e que, muitas vezes, presos políticos ou comuns conseguem denunciar regimes de maus tratos e torturas. Na forma, a greve de fome do Bispo de Barra, Dom Luiz Flávio Cappio, se aproxima da estética dos mártires. No conteúdo, não. Dom Cappio diz protestar contra a transposição e a favor da revitalização do rio São Francisco, o que justificaria seu gesto radical. Mas é um erro banalizar esse instrumento sagrado de luta porque, antes de mais nada, ele exige uma causa nobre ou uma iniquidade de enormes proporções. E isso é tudo o que não é o projeto do governo para o São Francisco. Dom Cappio faz do marketing do martírio seu único argumento, numa alegoria da sua incomunicabilidade com o governo. Produz com isso talvez uma imagem forte, mas um debate certamente fraco. Um fato precisa ser colocado com toda a moderação, mas com toda honestidade intelectual:
25 O pronunciamento do ministro Gedel Vieira Lima (LIMA, 2007) encontra-se disponível na home Page
do Ministério da Integração Nacional de acordo com o endereço eletrônico citado na referência final.
43
atitudes assim embutem o vício de pensar que uma democracia pode se dobrar a uma vontade individual. Mas, em democracia, desrespeitar os ritos e os processos é pecado capital. (LIMA, 2007).
Além das celebrações que ocorriam todos os dias, marcadas por orações e
grande fervor religioso, aproximadamente seis mil pessoas e 120 representações de
movimentos sociais participaram de uma romaria a Sobradinho-BA em 9 de dezembro
de 2007. Estavam ali, entre outros, a Comissão Pastoral da terra (CPT), o Movimento
dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), o
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Conselho Pastoral dos Pescadores
(CPP).
A Capela de São Francisco foi tomada por pessoas oriundas de diversas partes
do Brasil que acompanhavam, com de reflexões e rezas, o gesto do bispo. Coube aos
movimentos sociais administrar a segurança do lugar, montar acampamentos e receber
as diversas romarias, personalidades artísticas e políticas que ali se fixavam e
transmitiam solidariedade. Além da presença dos diversos povos, dom Cappio recebeu
apoio de muitos que não estavam em Sobradinho-BA, mas assistiam, mesmo de longe, à
intensidade daquela circunstância.
Em sinal de solidariedade a dom Cappio, o ministro-geral da Ordem dos Frades
Menores (OFM), frei José Rodriguez Carbalio (2008), emitiu de Roma, em 9 de
dezembro de 2007, uma carta a dom Cappio, louvando a intenção do bispo em amparo à
população do semiárido atingida pelo projeto de transposição. Na carta, faz um apelo ao
governo federal, aos movimentos sociais e pastorais que reiniciem um diálogo que
aponte para positivas alternativas favoráveis a todo o povo nordestino e que não
agridam a natureza da região. A admiração pelo gesto de dom Cappio se torna fato,
visto por muitos como profético, gratuito, evangelizador e de grande magnitude
franciscana, além de fomentar as pastorais e trazer reflexões de cunho teológico.
Tal observação fica explícita numa mensagem de 12 de dezembro de 2007,
enviada a dom Cappio pelo coordenador do Clero de Feira de Santana, pe. Luiz
Rodrigues Oliveira.
Se isto não se parecesse com oportunismo, diríamos que o senhor está escrevendo e entregando-nos gratuitamente os melhores subsídios teológico-pastorais para a ação evangelizadora da Igreja no Brasil e está reavivando o dom de Deus que há em nós, presbíteros, e o múnus profético que já foi a “marca marcante” dos bispos do Brasil. Muito obrigado... O Pai que tudo vê o recompensará (OLIVEIRA, 2008, p. 166).
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Junta-se, nesse apoio, a Conferência dos Frades Menores do Brasil (CFMB),
formada por ministros, custódios e delegados responsáveis por aproximadamente 1.100
frades franciscanos, organizados em 11 entidades no Brasil. Numa carta de aprovação
ao seu segundo jejum, 11 superiores manifestaram sua posição política e religiosa
favorável ao bispo.
No entanto cabe remarcar que também houve divergências dentro da Ordem dos
Frades Menores quanto à forma de protesto adotada pelo bispo:
A ninguém interessa o fim de uma pessoa que tanto bem tem feito na sua vida de franciscano e de pastor: ao próprio irmão bispo em primeiro lugar, a nós, frades franciscanos, aos movimentos populares, às comunidades eclesiais, ao Governo Federal e à sociedade civil. A vida, qualquer que seja ela, é um dom do Criador. Entretanto, colocar a própria vida em favor da vida do próximo (e é numerosa a população ribeirinha empobrecida às margens do Velho Chico) constitui um dos centros da mensagem evangélica de Jesus de Nazaré. É preciso poupar a vida de Dom Frei Luiz Flávio Cappio e salvar a vida do Velho Chico, para que as populações ribeirinhas empobrecidas tenham, de fato, vida mais digna. Propomos a continuação do diálogo com o Governo e a oitiva dos projetos alternativos, que beneficiarão maior número de pessoas, com custos bem menores. (CARVALHO NETO et al., 2008, p. 170).
O Conselho Episcopal de Pastoral da CNBB também manifestou seu apoio em
nota de 12 de dezembro de 2007. Escancarou a luta entre dois modelos opostos de
desenvolvimento: um primeiro voltado para o social, e outro, voltado para os grandes
negócios. Ademais convocou as comunidades a se unirem na causa defendida pelo
bispo, a qual é antes de tudo a busca de respeito a marginalizados sociais, à sociedade
como um todo e à natureza:
O jejum e a oração de Dom Luiz Flávio Cappio, OFM, bispo da diocese de Barra-BA são motivados por seu espírito de pastor que ama seu povo. Dom Luiz expressa seu constante compromisso em defesa do Rio São Francisco e da vida das populações ribeirinhas – agricultores, quilombolas, povos indígenas – e de outras áreas. Sua atitude revela respeito à dignidade da pessoa e da criação e sua convicção de que o ser humano é capaz de conviver em harmonia e respeito com o meio-ambiente. (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2008f, p. 54).
É essencial salientar que, se por um lado houve um arrebanhamento significativo
de movimentos sociais e do povo, por outro o silêncio dos meios de comunicação e a
omissão do governo federal diante de seu gesto foram fatos marcantes. Destarte, no
meio eclesiástico, a CNBB só posicionou-se frente ao governo após 15 dias de jejum.
45
Assim, o apoio veio realmente de movimentos, do povo e de pastorais ou dioceses
isoladas, como foi o caso da Prelazia de São Félix do Araguaia, numa carta dirigida a
dom Cappio ostentando solidariedade ao bispo na proteção do meio ambiente, dos
pobres e da população indígena:
A Prelazia de São Félix do Araguaia em Assembleia Pastoral acolhe com gratidão o seu testemunho profético. A sua luta é nossa luta, o seu São Francisco é nosso Araguaia. Refletimos na Assembleia sobre o documento de Aparecida que propõe como uma missão continental a defesa da vida, com ênfase na Ecologia e no Meio Ambiente. Frente a uma política e a uns projetos do capitalismo neoliberal que mercantilizam tudo e produzem exclusão e morte, acolhemos contigo, com as igrejas comprometidas e com os movimentos sociais as políticas alternativas para o semiárido, na partilha da terra e da água, nas reivindicações dos povos indígenas, quilombolas e sertanejos. (PRELAZIA DE SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA, 2008, p. 174).
Tal radicalidade levou a CNBB a se encontrar com o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva, no Palácio do Planalto, em 12 de dezembro de 2007. Na audiência,
acompanhada pelo ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, a CNBB
expressou sua preocupação em relação à posição assumida por dom Cappio e mostrou-
se disposta a intermediar uma conversa entre o presidente e o bispo, conforme se
apresenta no documento chamado Pró-Memória, entregue ao presidente da República.
Colocamo-nos à disposição para colaborar na retomada do diálogo entre o Governo e Dom Luiz Flávio Cappio. Sugerimos a criação de uma comissão para estudar melhor o atual Projeto e analisar também as propostas que têm sido elaboradas por entidades governamentais, especialistas e movimentos sociais que consideram, também, a revitalização e a despoluição do Rio São Francisco. (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2008d, p. 57).
Neste sentido, a CNBB propôs criar uma comissão para aprofundar a discussão
sobre o projeto de transposição do rio São Francisco. Tal comissão ficaria incumbida de
estudar alternativas para o problema da seca apresentadas por especialistas. Após o
evento com o presidente Lula, dom Geraldo Lyrio Rocha e dom Dimas Lara Barbosa
expressaram preocupação com a saúde e vida de dom Cappio:
Tememos pela morte do bispo. Por isso, a CNBB conversou com o presidente da República. Queremos dom Cappio vivo. Ele é uma pessoa importantíssima para a Diocese de Barra e para a Igreja no Brasil. Faremos tudo para salvar a vida de Dom Cappio. (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2007).
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Nesse mesmo encontro, a discussão centrou-se na complexidade do projeto da
transposição das águas do rio São Francisco e no gesto individual de dom Cappio.
Segundo a CNBB, o projeto deveria ser analisado em suas dimensões social,
econômica, cultural e ambiental, levando em consideração várias alternativas para o
abastecimento de água no sertão. O presidente manifestou disposição em estabelecer um
diálogo com o bispo, contudo deixou claro que não cederia a um apelo individual e que
realizaria um seminário com a CNBB para debater sobre as obras do projeto de
transposição (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2007).
Dom Geraldo Lyrio, ao final desse evento, informou o bispo dom Cappio e o
núncio apostólico dom Lorenzo Baldisseri sobre os tópicos tratados na audiência. Em
12 de dezembro de 2007, estando em seu 16º dia de “jejum e oração”, e ao ser avisado
sobre a presença do exército nos canteiros do eixo leste e norte, nas cidades
pernambucanas de Floresta e Cabrobó, o bispo de Barra, dom Luiz Flávio Cappio
acirrou seu discurso contra o governo federal:
O governo mente quando diz que vai levar água para 12 milhões de sedentos. É um projeto que pretende usar dinheiro público para favorecer empreiteiras, privatizar e concentrar nas mãos dos poucos de sempre as águas do Nordeste, dos grandes açudes, somadas às do rio São Francisco. (CAPPIO, 2008j, p. 59).
No senado, César Borges26 referiu-se ao protesto de dom Cappio da seguinte
forma: “Até agora, a luta do bispo só recebeu palavras duras e hostis, sem que tenha se
demonstrado nenhuma atenção ao que ele tem a dizer”. Segundo Borges, a decisão do
Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), que abrange Acre, Amapá, Amazonas,
Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e
Tocantins, de suspender o projeto27 mostrou que a obra não tinha condições de
continuar: “São várias questões sem esclarecimento”, justificou28. Dom Cappio foi alvo
de críticas, taxado por muitos como “inimigo da democracia”, conforme ele mesmo
escreve na Folha de São Paulo de 12 de dezembro de 2007.
26 Senador da Bahia, eleito em 2002. 27É preciso distinguir: a primeira interrupção ocorreu em 2005, por iniciativa do governo e para uma
conversa com dom Cappio. Já esta segunda paralisação é diferente, uma vez que não partiu do governo e atendeu a uma decisão do TRF.
28 A defesa de César Borges foi veiculada em 13 de dezembro de 2007, pelo site “Observatório Quilombola”, um espaço interativo, dedicado à coleta, organização e análise de informações relativas às comunidades negras rurais e quilombolas, em seus contextos locais e regionais, assim como às políticas pertinentes.
47
Acusam-me de inimigo da democracia por estar em jejum e oração combatendo um projeto do governo federal autoritário, falacioso e retrógrado, que é o da transposição de águas do rio São Francisco. (CAPPIO, 2008j, p. 58).
Por outro lado, vale recordar que o bispo teve um significativo auxílio de
movimentos sociais, centrais sindicais, além de artistas, intelectuais e técnicos. No
período de jejum, recebeu inúmeras pessoas oriundas de diversas partes do país; a
Capela de São Francisco diariamente estava repleta. A posição do bispo era obstinada,
ele continuaria em jejum enquanto o governo transgredisse o acordo, estabelecido em
2005, de ter um diálogo aberto com a sociedade, sobre a transposição. Estando em seu
16º dia de jejum, para se manter consciente e evitar o início de uma anemia e uma
desidratação, dom Cappio, sob orientação médica, passou a se alimentar com soro
caseiro.
Toda a celeuma gerada em torno do segundo jejum ressonou no Vaticano, que
respondeu ao bispo, através de nota em 13 de dezembro de 2007:
A esse respeito reafirmo o princípio de que é necessário conservar a vida, dom de Deus, e a integridade da saúde. A continuação do jejum, já muito prolongado e radical, colocando em risco a própria sobrevivência, não é um meio aceitável e contradiz os princípios cristãos. (BALDISSERI, 2008b, p. 64).
Diante do pedido do Vaticano, dom Cappio prometeu obedecer, todavia pediu
um pouco mais de tempo, pois, naquele momento, para ele, não era oportuno cessar o
protesto. Os dias de jejum foram marcados por orações com a comunidade dentro da
capela. Após as celebrações, o bispo se retirava para o interior, onde havia um colchão
estendido no chão. Alimentado com a água do rio e com soro caseiro, o bispo decidiu
manter sua resolução.
Ainda em 13 de dezembro de 2007, frei Betto, através de um artigo, estabeleceu
uma relação entre a vida de São Francisco de Assis a serviço daqueles que eram
excluídos pelo incipiente desenvolvimento das atividades comerciais no século XIII
com a posição de dom Cappio ao lado dos marginalizados pelo projeto de transposição.
Dom Cappio tem fome de justiça, uma bem-aventurança, segundo Jesus no Sermão da Montanha. Seu Natal é o da manjedoura, lá onde a família de Maria e José, sem-teto, faz nascer a esperança de que a população da bacia do São Francisco não venha, em futuro próximo, ser conhecida também como sem-rio. (BETTO, 2008, p. 163).
48
Torna-se importante um trecho da carta de frei Carlos Mesters a dom Cappio que
o reconhece como profeta em função de sua atitude solitária e questionadora perante os
poderes político e religioso.
Prezado Dom Luiz, irmão e amigo, frade mendicante como eu e tantos outros! Deus lhe dê força para manter o seu jejum como testemunho vivo do seu compromisso com o Evangelho de Jesus e com os pequenos. Tem gente por aí que anda dizendo que o seu jejum não tem nada a ver com a pastoral da Igreja. Não ligue não, Dom Luiz! Sempre haverá gente pra dizer que o profeta está errado. Disseram o mesmo de Jesus. Chegaram a dizer que ele era um louco (Mc 3, 21) e que ele estava sendo movido por um mau espírito (Mc 3, 22). Quando você tiver diante de si a multidão dos pequenos que vêm rezar com você e que apoiam o seu gesto profético, esqueça a crítica dos sábios e entendidos e faça sua prece de Jesus: “Pai, eu te agradeço, porque escondeste estas coisas aos sábios e doutores e as revelastes aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi de teu agrado!” (Mt 11, 25-26) (MOREIRA, 2008b, p. 162).
Devido à repercussão de sua luta pelos povos ribeirinhos e pela preservação do
rio São Francisco, Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz, estando em Buenos
Aires, se dirigiu ao presidente do Brasil através de uma carta, em 15 de dezembro de
2007, apresentando alternativas para o abastecimento de água na região do semiárido.
Ressaltou a importância de se pensar no povo, nos direitos humanos e na democracia,
valores que deveriam ser respeitados pelo governo.
La situación de salud de Dom Cappio se va deteriorando en el correr de los dias. Un bispo que, com coraje y decisión, recurre a la acción no-violenta para llamar a su mente y corazón, esperando uma respuesta clara y concreta em bien del pueblo. Lamentablemente hasta el momento no encuentra respuesta de su parte. Es como si la dureza del poder dominación [sic], no le deja margen para pensar en el bien del pueblo, y antepone los intereses económicos y políticos. (ESQUIVEL, 2008, p. 161).29
Dom Cappio se mantinha inabalável em seu gesto. A partir de 15 de dezembro
de 2007, estando em seu 19º dia de jejum, passou a apenas evitar aproximações com o
povo e a imprensa. Em 17 de dezembro de 2007, cerca de 50 integrantes de 18
movimentos sociais fizeram um jejum coletivo de 12 horas, em frente à Igreja da
Candelária, no centro do Rio de Janeiro, em apoio à greve de fome de frei Luiz.
29 “O estado de saúde de Dom Cappio se vai deteriorando no decorrer dos dias. Um bispo que, com
coragem e decisão, recorre à ação não-violenta para chamar à sua mente e coração, esperando uma resposta clara e concreta pelo bem do povo. Lamentavelmente, até o momento, não encontra resposta de sua parte. É como se a dureza do poder dominação [sic] não lhe desse margem para pensar no bem do povo, e antepõe os interesses econômicos e políticos.” (tradução nossa).
49
Segundo um dos membros da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores
Rurais sem Terra (MST), Léo Haua, o objetivo da manifestação era dar visibilidade à
luta de dom Cappio.
O frei Cappio já está em jejum há 20 dias, e isso não sai na imprensa, não está sendo debatido na sociedade. Atos como esse vão colocando para a sociedade o que está acontecendo nesse projeto [transposição], que só atende os interesses das elites do agronegócio (HAUA, 2007).
A manifestação no Rio de Janeiro era parte de uma ação nacional, com a adesão
de sete estados da federação. Além do jejum coletivo, as organizações elaboraram a
carta intitulada “Rio pela Vida de Dom Cappio”, que já contava com mais de 200
assinaturas.
Em 18 de dezembro de 2007, o secretário geral da CNBB, dom Dimas Lara
Barbosa reuniu-se com o chefe de gabinete da Presidência da República, Gilberto
Carvalho, e com o membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Roberto Malvezzi,
que representava dom Cappio na discussão da transposição do rio São Francisco e
também sobre a possível suspensão do jejum que, naquele instante, estava em seu 22º
dia de protesto. Também estavam presentes representantes da Agência Nacional de
Águas (ANA), do Ministério da Integração Nacional (MIN), da Cáritas Brasileira, do
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP),
organismos ligados à CNBB, além de assessores desta última entidade.
A reunião foi marcada por discordâncias nas propostas, principalmente na
exigência de dom Cappio de interromper a transposição e propor uma versão reduzida
do projeto pautada na implantação de uma adutora de água para as áreas de maior
déficit hídrico de Pernambuco e da Paraíba. Portanto a reunião não apresentou
definições, embora tenha sido o início de uma discussão acirrada, que se alastraria.
Na quarta-feira, 19 de dezembro de 2007, houve uma surpresa para todos que
aguardavam com expectativa um resultado positivo da reunião dos ministros do
Supremo Tribunal Federal (STF). A decisão do STF foi de liberar a retomada das obras
de transposição do rio São Francisco. Ao saber da decisão, dom Cappio, já debilitado e
frágil, se ressentiu e desmaiou. O bispo, após duas horas, foi internado, em estado
inconsciente, na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Memorial de Petrolina-PE.
Na quinta-feira, 20 de dezembro de 2007, ele deixou a UTI e foi para um apartamento.
50
Para aqueles que acompanhavam o bispo, foi um momento marcado por oração, dor,
choro e frustração.
Depois de 24 dias, a pedido dos movimentos sociais, frei Luis Flávio Cappio
encerrou, em 20 de dezembro de 2007, seu jejum contra o projeto de transposição do rio
São Francisco. Na correspondência que trata sobre o fim do jejum, ele diz que “uma de
nossas grandes alegrias neste período foi ter visto o povo se levantando e reacendendo
em seu coração a consciência da força da união” (CAPPIO, 2008f, p.72).
O anúncio do fim do jejum foi feito durante celebração da missa na Capela de
São Francisco, em Sobradinho, que contou com a presença de vários padres e dois
bispos. Em carta de 20 de dezembro de 2007, dom Cappio assegurou que iria continuar
a batalha para proteger o São Francisco, contra o projeto de transposição.
Ouvi com profundo respeito o apelo de meus familiares, amigos e das irmãs e irmãos de luta que me acompanham e que sempre me quiseram vivo e lutando pela vida. Lutando contra a destruição de nossa biodiversidade, de nossos rios, de nossa gente e contra a arrogância dos que querem transformar tudo em mercadoria e moeda de troca. Neste grande mutirão formado a partir de Sobradinho, vivemos um momento ímpar de intensa comunhão e exercício de solidariedade. Depois desses 24 dias encerro meu jejum, mas não a minha luta que é também de vocês, que é nossa. Precisamos ampliar o debate, espalhar a informação verdadeira, fazer crescer nossa mobilização. Até derrotarmos este projeto de morte e conquistarmos o verdadeiro desenvolvimento para o semiárido e o São Francisco. É por vocês, que lutaram comigo e trilham o mesmo caminho, que eu encerro meu jejum. Sei que conto com vocês e vocês contam comigo para continuarmos nossa batalha para que “todos tenham vida e tenham vida em abundância”. (CAPPIO, 2008f, p. 73).
Fazendo uma breve recapitulação, podemos dizer que, mesmo sendo alvo de
inúmeras críticas, dom Cappio recebeu apoio de várias partes do mundo. Tentou
alcançar com seu gesto um debate sobre o projeto do governo federal e apontar
alternativas menos onerosas e com menor impacto ambiental. Destarte, estava decidido
a doar sua vida para impedir o projeto de transposição das águas do São Francisco.
Conforme texto de Antônio Claret30, este fato incomodou a Igreja e a obrigou tomar
posição.
O gesto profético de Dom Luiz incomoda profundamente a Igreja e o governo. Os profetas são assim! A força cristalina da verdade feita entrega e testemunho toca feridas profundas, escondidas sob os discursos fáceis, palavras jogadas ao vento. Diante disso, a suposta segurança dos entendidos e importantes se torna areia movediça. Eles esperneiam e são obrigados a se posicionar, de um lado ou de outro. (CLARET, 2008, p. 166).
30 Antônio Claret é padre da Arquidiocese de Mariana-MG e militante do Movimento dos Atingidos por
Barragens (MAB), em Minas Gerais.
51
Ao se postar contra o projeto do governo federal, manifestou também sua
insatisfação com o PT, que outrora havia apoiado durante suas campanhas. Ao final de
seu jejum, decidiu continuar a luta junto aos movimentos, direcionando sua energia às
mobilizações e se tornando um símbolo de luta em prol de uma política que aponta para
a conservação da vida do povo e do meio ambiente.
Desde o fim do primeiro jejum, em 2005, os movimentos sociais se articularam e
agiram através de passeatas, acampamentos e debates, assim como expandiram suas
ações contrárias à transposição, além de aumentarem as manifestações de solidariedade
ao bispo.
No período do segundo jejum, ocorreram manifestações públicas com milhares
de participantes em várias partes do Brasil, além de muitas celebrações. Sua atitude,
mesmo com a obscuridade dos meios de comunicação, em especial os jornais
televisivos, gerou repercussão internacional. O jejum foi um ato religioso com
motivação ética, de inspiração franciscana e teológica, pautada por um compromisso
com o povo, e que logo conquistou uma dimensão política.
Dom Cappio considerou o projeto inviável e devastador para o meio ambiente,
classificando-o como antidemocrático por não atender aos interesses do povo do
semiárido e objetivar interesses puramente empresariais. Não obstante, se posicionou de
forma técnica, política, ética e religiosa num primeiro momento. Diante do silêncio do
governo federal, adotou uma postura de “loucura” respaldada pelo evangelho. Foi esse
extremo gesto que incomodou a hierarquia eclesiástica e que teve um alcance midiático
em nível internacional. A CNBB não adentrou as esferas técnica e política do projeto de
transposição, porém procurou, após um período, compreender a posição de dom Cappio
e transmitir apoio político e espiritual, devido à repercussão e por ter sido compelida a
tomar uma posição.
Sua condição de bispo gerou repercussão, mas cabe lembrar que em momento
nenhum, conforme os documentos estudados, ele agiu em nome dos poderes
institucionais da Igreja Católica. Dom Cappio tentou influenciar o Estado e mobilizar a
sociedade através de sua atitude solitária, que terminou repercutindo nos movimentos
sociais, interpelando-os sobre a participação nos meios político e ambiental.
52
3 O BISPO E SEU POVO: EMERGÊNCIA DO PROFETA
O presente capítulo propõe uma análise sociológica da figura profética de dom
Cappio na polêmica da transposição das águas do rio São Francisco e tem, como marco,
o conceito sociológico de profeta a partir das contribuições expressivas de Max Weber e
Pierre Bourdieu no campo da sociologia da religião. Muitas considerações realizadas
sobre a categoria do profeta possibilitam compreender os dois períodos de jejum e a
dinâmica de atuação de dom Cappio no processo de articulação e mobilização de setores
da Igreja, do meio político, dos movimentos sociais e povos que abraçaram a causa do
bispo franciscano. Enquanto instrumento teórico, esse conceito nos permite explicar
importantes aspectos da ação de dom Cappio e sua repercussão na sociedade.
Além de Weber e Bourdieu, procuramos realçar, de maneira seletiva, outras
contribuições expressivas no campo da sociologia da religião. Daremos ênfase à
dinâmica de atuação de dom Luiz Flávio Cappio e sua capacidade de arrebanhar
movimentos, incomodar parte do clero e muitos políticos. Somam-se a este objetivo
supracitado as plurais mudanças ambientais e sociais que se desenrolaram no rio São
Francisco ao longo da historia do Brasil, desembocando no projeto de transposição do
governo federal.
Destacamos neste momento as condições sociais para o aparecimento de um
líder religioso que decidiu colocar sua vida em risco “em função de um bem maior: a
vida do rio, a vida do povo” (CAPPIO, 2008a, p. 10). Este gesto pode ser entendido
como uma atitude religiosa que correspondeu à insatisfação crescente e calada de
determinados setores colocados à margem do processo de discussão e decisão do
projeto de transposição do São Francisco. Assim, ressaltamos a capacidade de dom frei
Luiz Flávio Cappio de apresentar uma linguagem religiosa para atender a demandas de
cunhos social, político e ambiental que se encontravam silenciosas, implícitas e em
estado de tensão, assim como uma habilidade desse líder carismático em formular e
articular essas mesmas procuras e conferir-lhes visibilidade de maneira tal que
movimentos e povos não pouparam esforços para defender o rio, junto a esse líder.
Na atual conjuntura, marcada por uma degradação ambiental desenfreada, são
fecundas as probabilidades de surgimento de movimentos e atores que advogam em
favor de uma nova relação entre ser humano e natureza (LEFF, 2005). Foi através do
53
jejuar, e não de um ato político, que povos e movimentos sociais se acharam
representados. Gesto religioso que, já no primeiro período de jejum, arrebanhou vários
grupos e pressionou o Estado a abrir uma discussão com a sociedade sobre a eventual
proposta de transposição.
O objetivo deste trabalho é aproveitar as contribuições da sociologia na
elaboração de um conceito de profeta que nos possibilite uma inteligibilidade da
conturbada controvérsia sobre a transposição das águas do rio São Francisco. Propõe-se,
neste instante, evidenciar os aspectos teóricos relevantes para a compreensão das ações
de dom Cappio e a repercussão nos meios político e religioso, além de estabelecer as
possíveis vinculações sociológicas capazes de esclarecer sua postura.
Enquanto sujeito provocante, dom Luiz Flávio Cappio atraiu simpatizantes e
opositores à sua causa, gerando discrepâncias no meio político e no religioso.
Apresentou-se como autoridade voluntária e aceita por muitas pessoas do sertão e do
resto do Brasil, tornando-se uma referência na defesa do meio ambiente31. Os estudos de
Weber e Bourdieu, procuram abranger a origem, o desenvolvimento e a função do
profeta em diversas sociedades; ademais, analisam sua condição de agente religioso,
político e social, tornando inteligível o êxito social de dom Cappio. Ao tratarmos da
polêmica da transposição, daremos ênfase ao apelo de dom Cappio à causa política,
social e ambiental, e sua capacidade de instigar coletividades, grupos e povos que
responderam com convicção ao seu chamado e o reconheceram como profeta que
apontou para um caminho regulado por uma nova ética32.
3.1 O Profeta e a Polêmica da Transposição
A sociologia da religião traz uma enorme contribuição ao processo de
compreensão de determinados fatos, instituições e personagens historicamente
verificáveis nas diversas sociedades. No caso do profeta, as colaborações de Weber
31 O meio ambiente é abordado na perspectiva da totalidade social, cultural. É uma categoria sociológica
composta por comportamentos, valores e saberes e por novos potenciais produtivos (LEFF, 2005). Diante da degradação acelerada da natureza e do consequente esgotamento dos recursos naturais, os problemas ambientais na contemporaneidade são constantes, pois afetam, direta e indiretamente, o modo de vida de cada pessoa e impõem limites à atual forma de desenvolvimento econômico (GONÇALVES, 2004).
32 Para uma abordagem sobre a ética ambiental e os desafios das relações entre sociedade e desenvolvimento econômico, consultar Marcelo José Caetano (2008). O autor trata de questões como degradação ambiental, desenvolvimento técnico, injustiça social e ecológica, e assinala a urgência de uma nova ética apoiada nos princípios da vida sustentável.
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(1991) são indispensáveis para o entendimento de um protagonista cujo carisma único o
diferencia dos demais membros de sua sociedade e de outros agentes religiosos. Em
virtude de seu carisma pessoal33 e seus dons particulares, o profeta é capaz de gerar o
caos e propor uma nova ordem significativa, modelada por valores fundamentais, para a
organização de uma nova sociedade.
Max Weber foi o pioneiro no método dos “tipos ideais” 34 para análise dos fatos
sociais, em específico o sacerdote, o profeta e o mago. Os tipos ideais foram construídos
com base na realidade, mas de maneira nenhuma procuram esgotá-la. Portanto são
instrumentos que possibilitam, através da comparação, conduzir o pesquisador à
formulação de análises, questões e hipóteses frente a uma realidade.
Pierre Bourdieu apoiou seus estudos nas análises de Max Weber, no entanto
criticou-o por elevar demais o aspecto carismático do profeta. Bourdieu apontou este
não como um homem de características excepcionais, mas como um intérprete ou porta-
voz de uma situação extraordinária. Em Bourdieu (2005), o profeta é um homem ligado
às situações sociais, que dispõe de seus dons, os quais não são nada especiais e muito
menos extraordinários, mas que correspondem à demanda de grupos sociais específicos.
Essa relação umbilical entre o profeta e seu meio é que garantiria o sucesso de sua
atuação carismática.
Neste sentido, o estudo de Bourdieu (2005) é significativo, primeiramente
porque sublinha o papel singular de um grupo ou coletividade na fabricação de seu
líder; em segundo, porque a religião ganha uma função propriamente política e social
capaz de justificar, reformar ou destruir, em nome de uma nova vivência, um sistema
simbólico e político de controle sobre as massas.
Os autores supracitados são reconhecidos pelo domínio que possuem sobre o
tema proposto; portanto, em função do grau de cientificidade de suas obras, a eles nos
33 A questão do carisma pessoal será tratada adiante. No entanto, de início podemos afirmar, conforme
Weber (1991), que o carisma pessoal pode ser compreendido como o dom da graça concedida ao profeta, sua capacidade de ser extraordinário e possuir uma autoconfiança na revelação divina. Esta concepção é atacada por Bourdieu (2005), que dá ênfase à situação social de onde emerge o profeta.
34 Os “tipos ideais” são um conjunto de arquétipos de caráter abstrato criados por Weber para serem usados como modelos de comparação com os fatos sociais. É um instrumento metodológico para compreender e não para substituir a realidade ou, compulsoriamente, ser fiel a uma específica realidade. O método weberiano do “tipo ideal” foi concebido com base na realidade, tendo o cuidado de não esgotá-la, muito menos substituí-la (MARIZ, 2007). Sendo assim, serve como um parâmetro para a análise da realidade empírica. Mais ainda, não tem uma abrangência universal: uma vez reproduzido como a verdadeira realidade, pode se distanciar do fato empírico e destruir a concretude singular da história. A coerência, a discordância e a aderência dos “tipos ideais” com o mundo real não gerariam problemas; muito pelo contrário, seriam uma espécie de termômetro para identificar possíveis mudanças e permanências na história.
55
ateremos, pois ambos tomam a religião como um objeto de estudo que se materializa na
vida concreta das diversas individualidades. Longe de ser uma questão pronta e
acabada, a atuação de dom Cappio na polêmica da transposição será compreendida a
partir das contribuições teóricas sobre a figura do profeta, sujeito que arrasta consigo
multidões rumo a transformações nos meios social, político, religioso e ambiental.
O projeto de transposição das águas do São Francisco apresenta desafios
teóricos, primeiramente o problema da relação entre religião e meio ambiente. Em
segundo lugar, coloca a questão da diversidade dos espaços onde nasce a consciência
ambiental com suas singularidades culturais, seus saberes acumulados por populações,
tribos e demais sociedades sobre a natureza, relevando a íntima ligação dos povos,
lideranças e movimentos populares com o espaço geográfico local, com a colheita, a
pesca, suas formas de organização, vivência e reprodução. Em terceiro, aponta para os
movimentos que surgem para proteger a natureza, cuja consciência é marcada por um
conjunto de ideias que envolvem política, religião, ecologia e que fomentam ações de
diversos gêneros. Em quarto, faz assomar a figura de uma liderança, portadora de um
conjunto de valores capaz de mobilizar pessoas, grupos e entidades em defesa da água
especificamente.
Por fim, reitere-se que a sociologia se preocupa em analisar a religião a partir de
sua repercussão na sociedade, extraindo conceitos que sirvam de ferramentas ao serviço
da história. Conforme já havíamos mencionado, o estudo que se segue baseia-se numa
linguagem sociológica (quer dizer, ele parte do sentido da ação); sendo assim, o que nos
interessa no presente capítulo são as chaves de compreensão das divergências acerca da
transposição através do gesto de dom Luiz Flávio Cappio e dos aspectos teóricos que
demarcam o sentido de sua atitude e a repercussão desta nos meios religioso, político e
social.
Torna-se fundamental analisar o carisma pessoal, a capacidade de manifestação,
o arrebanhamento de fiéis e a produção de um novo sentido mobilizador de pessoas.
Finalmente, buscamos apresentar as implicações de seu discurso na sociedade, destacar
as condições de seu surgimento e a preocupação de determinados grupos e camadas
dominantes em manter a hegemonia35 sobre as condutas política, social e religiosa da
sociedade.
35 Trataremos da “hegemonia” quando abordarmos a questão da crise que o projeto de transposição
instaurou, favorecendo a emergência de dom Cappio.
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3.2 O Significante e o Significado: as Condições para a Emergência do Profeta
A mobilização de diversos setores da sociedade e a repercussão na Igreja e nos
meios de comunicação, que ocorreram na efervescência dos dois períodos de jejum,
puseram em evidência um ato religioso atrelado a um conteúdo que é simultaneamente
político, social e ambiental, o que despertou avalanches de opiniões no Brasil. Assim,
uma vez constatado que dom Cappio despertou a atenção do clero brasileiro,
movimentos populares, comunidades eclesiais de base, personalidades políticas e
artísticas, órgãos técnicos e povos indígenas, atentamos para o estudo das condições
sociais que permitiram a emergência da figura de uma liderança religiosa e social.
Este episódio pode ser compreendido a partir de Bourdieu (2005), que define a
figura do profeta como sujeito capaz de perceber os sinais de seu tempo e conciliar sua
linguagem com um conjunto de demandas éticas e políticas já presentes num
determinado contexto social, porém em estado latente, adormecidas e pouco
estruturadas.
É pela capacidade de realizar, através de sua pessoa e de seu discurso com palavras exemplares, o encontro de um significante e de um significado que lhe era preexistente mas somente em estado potencial e implícito, que o profeta reúne as condições para mobilizar os grupos e as classes que reconhecem sua linguagem porque nele se reconhecem. (BOURDIEU, 2005 p. 75).
Ao nos referirmos à ideia supracitada acerca do significante e do significado,
partimos das reações surgidas nos dois períodos de jejum. O ato de dom Cappio
provocou, através de uma linguagem religiosa, diversas reflexões políticas e ambientais
voltadas para a realidade da seca e dos problemas sociais do semiárido brasileiro. O
significante usado por dom Cappio foi o jejum religioso, para expressar uma realidade
política, ambiental e social conturbada. Esse mesmo gesto assumiu diferentes
significados, pois para muitos, como José de Souza Martins36, foi uma forma de se fazer
política. Para a nunciatura apostólica, um atentado contra a própria vida, e, para outros,
um ato profético realizado por um religioso engajado, que colocou seu burel franciscano
e desceu de sua posição de bispo em função de uma causa social.
36 José de Souza Martins é um dos mais importantes cientistas sociais do Brasil. Professor titular de
sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), foi eleito fellow de Trinity Hall e professor da Cátedra Simon Bolívar, da Universidade de Cambridge (1993-1994). É mestre e doutor em sociologia pela USP. Foi professor visitante na Universidade de Flórida (1983) e na Universidade de Lisboa (2000).
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Exemplo importante de significado contrário ao profético foi a entrevista de Luiz
Alberto G. de Sousa37, concedida à revista Carta Capital, em 16 de janeiro de 2008,
intitulada “A transposição de dom Cappio”. Nela o jornalista A. Maurício Dias faz a
seguinte pergunta sobre a atitude de dom Cappio frente à transposição:
CC: Essa reação ao projeto de transposição faz sentido na biografia dele? Luiz A. Gómez: Neste caso, ele faz confusão. Confunde a luta legítima, pelos ribeirinhos, com posições radicais, duras, contra qualquer tipo de transposição das águas do rio. Ele tem o direito de ter mesmo uma certa mística em relação ao São Francisco, porque, afinal, é franciscano. Não poderia ter sido, no entanto, tão taxativo em relação a problemas de natureza técnica. (DIAS, 2008, p. 133).
Para o sociólogo, o bispo foi além do permitido e adentrou um campo que
desconhece. Segundo o próprio Luiz Alberto Gómez, “escorregou, sem se dar conta, de
uma posição de mística e de denúncia para uma tomada de posição política” (DIAS,
2008, p. 133). Em contrapartida, para Ruben Siqueira (2008b), a atitude de dom Cappio
resultou numa conquista significativa que foi a do debate e da organização popular
através de uma atitude religiosa.
Nesse contexto de distintos significados, destacamos o sentido profético do
jejum, que foi capaz, através de uma intervenção religiosa, de convidar grupos e
movimentos ao compromisso tanto social como ambiental, provocou tensões na Igreja e
no meio político, possibilitou um diálogo entre governo e sociedade, e foi eficaz na
interrupção do projeto de transposição em 2005.
O jejuar imbuiu-se de uma dimensão profética porque, primeiramente, ao lado
do jejum solitário do bispo, houve também um “jejum solidário” de muitas pessoas. Em
segundo, dom Cappio recebeu diariamente centenas de peregrinos de diversas regiões,
incluindo personalidades artísticas, intelectuais e lideranças religiosas que lhe
transmitiram apoio. Eram pessoas que o frei acolhia, que lhe beijavam a mão e de quem
ele escutava os clamores. Em terceiro, não ficou preso ao permitido, e é nisto que se
destacou sua profecia. Foram muitos os requerimentos, discursos, atos públicos,
passeatas e protestos realizados dentro daquilo considerado como tolerável e que de
37 Luiz Alberto Gómez de Souza é graduado em direito pela PUC-RS e pós-graduado em ciência política
pela Facultad Latino-americana de Ciencias Sociales (Flacso), de Santiago do Chile, e doutor em sociologia, pela Universidade de Paris Sorbonne Nouvelle. Atualmente é diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Cândido Mendes. De sua vasta obra bibliográfica, destacamos “A JUC: os estudantes católicos e a política”. Há também artigos publicados pela IHU On-Line, como: “Dai a César o que é de César,” “Fé e política em discussão” e “Uma prece a São Francisco: solidários com os pobres e livres dos fundamentalismos religiosos e ecológicos”.
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nada adiantaram. Somente quando dom Cappio colocou seu hábito franciscano, iniciou
o jejum por tempo indeterminado e começou a beber água do rio São Francisco é que
houve um fato impactante que tirou as comunidades religiosas e movimentos sociais de
um estado de paralisia.
Devemos acrescer a isto as advertências, discursos, pronunciamentos da Santa
Sé, através da Nunciatura Apostólica, no Brasil, condenando o gesto do bispo de
quebrar a hierarquia e exceder os limites daquilo que era consentido. Foi o significado
de sacrifício em prol de uma causa ambiental e social que lhe conferiu a condição de
profeta. Os atos de jejuar e beber da água do rio São Francisco até que as obras fossem
suspensas foram ao encontro do interesse social de muitas pessoas que viram em dom
Cappio uma liderança religiosa respeitável, capaz de reunir e conduzir povos e
movimentos sociais no processo de luta pelo rio São Francisco e pela população do
sertão – por isso alcançaram uma dimensão profética.
Numa entrevista concedida à IHU On-Line, dom frei Luiz Flávio Cappio falou
sobre as mobilizações e reflexões feitas a partir de seu jejum:
Em primeiro lugar, nós podemos dizer que este gesto, independentemente de ter sido feito por mim, poderia ter sido uma outra pessoa [sic]. Foi um grito muito forte que acordou os movimentos sociais brasileiros, que até então estavam, de certo modo, adormecidos. Porque o governo Lula, que é fruto de todo um trabalho muito intenso dos movimentos sociais brasileiros, trouxe uma imensa decepção para esses grupos. Então, se criou uma certa inércia, anestesiando os movimentos sociais, que estavam parados, atônitos, sem saber como agir diante de uma expectativa tão grande e que foi frustrada. Esse gesto fez com que os movimentos tomassem consciência da sua própria identidade (CAPPIO, 2008g, p. 106-107).
Somam-se a isto as inúmeras censuras realizadas pelo próprio bispo ao atual
modelo de desenvolvimento defendido pelo governo e sua avaliação juntamente com
outros técnicos sobre o impacto da obra em níveis social e ambiental. Dom Cappio fez
várias reflexões a respeito da vida dos povos que, com suas lendas, tradições e crenças,
se formaram e se agruparam às margens do Velho Chico. Não houve nenhuma fala
desvinculada de uma realidade histórica já existente.
A realidade da região do semiárido, que liga povo e rio numa grande dimensão
sociocultural, ao se deparar com o projeto de transposição, fez com que comunidades,
tribos e movimentos sociais se reconhecessem no gesto e nas palavras de denúncia
envolvendo as dimensões religiosa, política e ambiental. A organização social ocorreu
na medida em que a integração entre o jejum e o discurso de dom Cappio com os
59
contextos social, ambiental e político assumiu um plano de correlações análogas38,
gerando um significado profético para sua atitude.
Assim, o ato de contestar o projeto de transposição que surgiu em torno de dom
Cappio – criando uma mobilização crescente de forças populares ligadas ao clero e ao
povo, capaz de afrontar o Estado – ocorreu porque apareceu um profeta que reuniu e
articulou em seu discurso e em seu gesto, as condições tanto sociais, quanto políticas e
religiosas do semiárido, além de um conjunto de procuras insatisfeitas, de maneira que
povos, tribos e movimentos sociais se acharam expressos nessa formulação profética e
passaram a organizar suas forças em conformidade com isso. Seu sucesso foi resultante
de sua capacidade de ser um contundente canal de expressão.
Todavia, somente as condições sociais e religiosas são insuficientes para
produzir um movimento profético (MADURO, 1981). No caso da polêmica da
transposição, foi necessário, além da realidade social e religiosa já existente, alguém
qualificado para exercer o carisma39 com propriedade e encaixar em seu discurso e em
seu gesto as condições sociais e religiosas que possibilitaram a organização desse
movimento de defesa do rio São Francisco. Ao referir-se a Émile Durkheim, Bourdieu
(2005, p. 92) aponta que “a fala e a pessoa do profeta simbolizam as representações
coletivas porque contribuíram para constituí-las”, deixando clara a sua faculdade de
reunir as demandas de uma gente e sua ligação com um específico contexto social.
O profeta traz ao nível do discurso ou da conduta exemplar, representações, sentimentos e aspirações que já existiam antes dele embora de modo implícito, semiconsciente ou inconsciente. Em suma, realiza através de seu discurso e de sua pessoa, como falas exemplares, o encontro de um significante e de um significado preexistentes [...]. É por isso que o profeta [...] pode agir como uma força organizadora e mobilizadora. (BOURDIEU, 2005, p. 92-93).
Então, o discurso de dom Cappio está em consonância com uma determinada
conjuntura, marcada pela implantação do projeto de transposição das águas do São
Francisco, uma estrutura social ligada ao subdesenvolvimento da região do semiárido e
com os sentimentos, as cosmovisões e as aspirações preexistentes. Dom Cappio se
38 Cf. com o estudo de Filho e Gil que colocam em relevo a diversidade da identidade religiosa dentro dos
limites de uma experiência institucional (FILHO; GIL, 2008). 39 Weber (1999, p. 280) define o carisma como um dom inato à própria pessoa, e não adquirido ou
desenvolvido, mas sim despertado, estimulado e reconhecido na pessoa em função de alguma situação ou fato extracotidiano. Cabe assinalar que a legitimação maior do profeta é oriunda do povo que o reconhece enquanto sujeito portador de um dom, e não da instituição religiosa que procurará combatê-lo por se apresentar como portadora do discurso religioso oficial.
60
colocou como mediador entre um “significante” e um “significado”, elaborando desta
forma um novo sentido, capaz de mobilizar as energias coletivas dos portadores do
significado rumo a transformações nos campos político e ambiental. Canalizou um
conjunto de difusos sentimentos de desconforto com a realidade vivida e de anseios pela
preservação do rio e dos povos ribeirinhos, e os fez confluir para um movimento social
que teve como bandeira a sua própria figura e a oposição à transposição, de maneira que
vários grupos populares se acharam expressos nessa formulação profética de luta pelo
sertão e seu povo.
Meu gesto não é imposição voluntarista de um indivíduo. Fosse isso, não teria os apoios numerosos, diversificados e crescentes que tem tido, de representantes de amplos setores da sociedade, de cientistas renomados a pobres ribeirinhos, de artistas famosos a crianças de escolas, de movimentos sociais do campo a centrais sindicais, de longínquos cantos do país ao exterior, de bispos e pastores a políticos da direita e da esquerda, inclusive o próprio PT. Isso, apesar de todo o bloqueio que o governo montou na mídia e tentou na Igreja e nos movimentos sociais. (CAPPIO, 2008j, p. 58).
As considerações acima revelam a importância da interação entre o líder
religioso e seu grupo social, e sua aptidão de exercer uma função correspondente à
história de um povo. É importante destacar que, caso dom Cappio não tivesse tido essa
atitude radical de “jejum e oração”, essa realidade do povo do sertão continuaria
escondida, abafada e aguardando o aparecimento de uma liderança capaz de atender à
sua carência social e política. Nas palavras de Maduro (1981, p. 143), na ausência de
um líder, “as condições sociais e religiosas que permitem o aparecimento de um
movimento profético permanecerão na situação de latentes”. No entanto, com o
surgimento de uma liderança na região do São Francisco, as condições sociais de seu
povo foram questionadas, e a instituição católica, que até o presente momento exercia
certo “poder simbólico” 40, tornou-se alvo de crítica.
A força inicial de dom Cappio não foi seu gesto de “jejum e oração”, mas uma
realidade carente de significação, cujas condições sociais, culturais e econômicas
estavam grávidas de uma representatividade, de alguém já enraizado nesta realidade e
capaz de exprimir de maneira carismática os problemas socioambientais que assolam a
bacia são-franciscana.
40 Nas palavras de Pierre Bourdieu (1989, p. 7-8), “… o poder simbólico é, com efeito, esse poder
invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo o exercem”. O poder simbólico é um instrumento estruturado e estruturante de conhecimento e assegura a dominação de uma classe sobre outra a partir da imposição de uma legitimação, “domesticando” desta forma os dominados.
61
Encontrei aqui o melhor modo de seguir São Francisco, meu pai e modelo no seguimento de Jesus. Como São Francisco, também troquei uma família de posses para me dedicar aos pobres [...]. Passei a me sentir visceralmente integrado a esse povo e seu rio, numa franciscana, espiritual ecologia. (CAPPIO, 2008k, p. 97).
Na condição de sacerdote e líder religioso, dom Cappio trouxe à tona uma
linguagem religiosa que tratou do rio São Francisco e de seu povo, comungou da mesma
visão social de mundo daqueles que nesta região se encontravam, pois falou da seca, da
espiritualidade franciscana, da importância das águas e da necessidade de se conservar
os povos com suas culturas. Nesta perspectiva, o carisma do profeta é dependente de um
campo social e religioso que favorece sua atuação como porta-voz ou intérprete de
situações ou fatos.
3.3 A Mudança Simbólica e o Trabalho Religioso
Enquanto portador de um discurso ético e de caráter subversivo, o profeta opera
uma mudança simbólica que vai ao encontro de uma possível mudança política41.
Portanto, para se interromper o projeto de transposição, foi necessária uma mudança
simbólica, e isto ocorreu a partir do papel desempenhado por dom Cappio com sua
mensagem religiosa, social, política e ambiental e sua capacidade de gerar uma
mobilização (BOURDIEU, 2005).
De acordo com Bourdieu (1996, p. 158), o campo religioso é o palco de disputas
entre os agentes religiosos – o sacerdote, o profeta e o mago – pela produção dos bens
religiosos e de um grupo que produz excedente econômico – os leigos – em troca do
sustento espiritual. Pedro A. Ribeiro de Oliveira (2007) recorda que a grande
contribuição de Bourdieu para a compreensão do campo religioso é seu estudo sobre o
“trabalho religioso” 42 que consiste na produção dos bens religiosos, por parte do clero,
41 Utilizamos os termos “mudança simbólica” e “mudança política” ao perceber que houve tentativas de
interrupção de um projeto político através de uma linguagem religiosa e não necessariamente uma revolução que traria transformações mais profundas e amplas. Todavia, de acordo com Bourdieu (2005, p. 77), os elementos de ordem simbólica que garantiam a dominação e manutenção do status quo são questionados através do profeta, “sobre um novo palco da história”: a crise.
42 O citado conceito de “trabalho religioso” apoia-se nos estudos de Pierre Bourdieu analisados pelo sociólogo Pedro de Oliveira (2007, p. 182), que afirma: “há trabalho religioso quando seres humanos produzem e objetivam práticas ou discursos revestidos de sagrado, e assim atendem a uma necessidade de expressão de um grupo ou classe social”.
62
do profeta e do feiticeiro, para atender a carências religiosas, sociais e até políticas de
um específico grupo ou povo.
Assim, o trabalho religioso de Dom Cappio objetivou uma mudança simbólica
acompanhada de uma mudança política. É a transfiguração simbólica que prepara o
terreno para uma linguagem política assertiva e gera as condições subjetivas para a
elaboração de um novo ethos. Ela consiste numa modificação da consciência; no caso
específico da polêmica da transposição, é a transformação do pensamento humano
através do gesto religioso.
O poder do profeta baseia-se na força do grupo que mobiliza por meio de sua aptidão para simbolizar, em uma conduta exemplar e/ou em um discurso (quase) sistemático, os interesses propriamente religiosos de leigos que ocupam uma determinada posição na estrutura social (BOURDIEU, 2005, p. 92).
É essencial destacar que a mudança simbólica não se dá só no pensamento
humano, mas pressupõe também uma (re)significação dos grandes símbolos que
compõem determinado ambiente natural no intuito de atender às novas demandas do
contexto e se ajustar aos anseios de um grupo ou sociedade. O símbolo religioso é a
forma que a linguagem de um povo encontra para se manifestar, permitindo
compreender as divindades que não falam através da linguagem humana43. Em meio ao
questionamento do projeto da transposição, testemunhamos uma mudança no trato com
o rio São Francisco e a tomada de consciência de especialistas, lideranças religiosas,
educadores, advogados e do povo em geral, além do questionamento dos valores
políticos que garantiam certa ordem social.
Dom Cappio exerceu uma atividade única e consciente: ressignificou o rio para
gerar uma alteração nas esferas social, política e ambiental. Nas considerações de
Bourdieu (2005), o profeta cria formas de entrar em contato com o sagrado e de
compreender a manifestação divina no respectivo contexto. Enquanto detentor de um
carisma apoiado numa realidade única e extraordinariamente favorável, o profeta auxilia
na produção de sentidos simbólicos (BOURDIEU, 1989). Especificamente no contexto
do sertão nordestino, dom Cappio contribuiu para uma nova forma de relacionamento
ou pertença à natureza e indiretamente reforçou as tradições culturais ligadas à bacia
43 Neste momento, Bourdieu apoia-se em Durkheim para mostrar a luta travada entre determinadas classes
e agentes religiosos pela produção legítima dos bens simbólicos e domínio sobre os mesmos (BOURDIEU, 1989, p. 7-15).
63
são-franciscana – centro legítimo de experiência religiosa. Isto está em sintonia com o
que defende Carlos Rodrigues Brandão:
Para além da religião, o tempo cultural em que vivemos e para onde dirigimos, [sic] inclui cada vez mais um número maior de estilos de espiritualidades, de outros sistemas de sentido, de combinações pessoais e coletivas de saberes e valores que não apenas permitem, mas obrigam a própria pessoa-religiosa a interações de sentido, a integrações de escolhas, a indeterminações de seu próprio destino como indivíduo e uma identidade. (BRANDÃO, 2004, p. 284).
Na condição de líder religioso que convive há anos com comunidades singelas
num cenário historicamente marcado pela miséria, além da degradação ambiental e
social, dom Cappio procurou denunciar os problemas ambientais e sociais da bacia são-
franciscana em nome do povo e da Igreja. Exemplo disto foi a peregrinação feita entre
1992 e 1993, juntamente com técnicos, para avaliar a situação do Velho Chico44.
Seu gesto e sua linguagem religiosa nos dois períodos de jejum obtiveram um
significativo valor simbólico e podem ser analisados como um “trabalho religioso” 45,
pois estão alicerçados na produção de uma prática revestida de um discurso religioso
para atender à necessidade social de um povo; ademais, germinam a partir de uma
experiência com o coletivo, realizada por uma personalidade carismática (BOURDIEU,
2005). Compreendemos o “trabalho religioso” como o gesto de jejum e oração realizado
por um protagonista carismático, tendo a legitimidade de uma coletividade que
participou direta ou indiretamente no elaborar de uma cosmovisão que se adequasse a
um interesse religioso coletivo já existente, mas que estava tácito e latente.
Dia após dia, nestes anos todos, fui observando a degradação ambiental e social do Rio São Francisco e de seus afluentes. Os ribeirinhos diziam das dificuldades crescentes em tirar das águas seu sustento: peixe escasso, vazantes menos produtivas, bancos de areia, navegação difícil, águas poluídas, rasas... Senti-me incitado a uma atitude mais contundente, além das denúncias infrutíferas. Foi então que, entre 1992 e 1993, com mais três companheiros fizemos a peregrinação, por um ano, da nascente à foz, provocando as comunidades ribeirinhas, a opinião pública e as autoridades a se juntarem numa campanha de salvação do São Francisco, rio e povo. (CAPPIO, 2008k, p. 97).
44 A obra “Rio São Francisco – uma caminhada entre vida e morte” trata dos relatos da peregrinação
realizada por dom Cappio, irmã Conceição Menezes, o sociólogo e ecologista Adriano Martins e o lavrador e garimpeiro Orlando rosa, por todo o rio São Francisco, visitando, celebrando e escutando as comunidades ribeirinhas (CAPPIO et al., 2000).
45 O “trabalho religioso” é exercido pelos protagonistas do sagrado – o sacerdote, o profeta e o mago – que, através de suas práticas e discursos revestidos de sagrado, disputam entre si o monopólio da prestação do serviço religioso. O profeta busca atender a uma necessidade de expressão de um grupo ou classe social (BOURDIEU, 2005).
64
Devemos levar em conta que o jejum e o discurso religioso enquanto “trabalho
religioso” ocorrem porque correspondem à história de um povo que há séculos é
castigado pela seca no sertão. Este alicerce é reforçado pelos costumes, crenças,
tradições do povo ribeirinho e pela experiência de vida de um personagem carismático
que satisfez aos interesses de grupos, povos e movimentos sociais em interromper o
projeto de transposição.
Sendo assim, presencia-se que o “trabalho religioso” surge da experiência
coletiva de uma personalidade carismática, levando à ideia de que não basta apenas o
interesse religioso e o social de um coletivo: torna-se necessário haver um protagonista
que possa encarnar em atos e palavras os elementos capazes de inaugurar um processo
de produção religiosa que satisfaça uma necessidade social.
O campo religioso tem por função específica satisfazer um tipo particular de interesse, isto é, o interesse religioso que leva os leigos a esperar de certas categorias de agentes que realizem “ações mágicas ou religiosas”, ações fundamentalmente “mundanas” e práticas, realizadas “a fim de que tudo corra bem para ti e para que vivas muito tempo na Terra”, como diz Weber. (BOURDIEU, 2005, p. 83-84, grifos do autor).
No caso do profeta, o sucesso de seu “trabalho religioso” não é garantido apenas
pela comunicação estabelecida com os leigos, mas, como mencionado acima, pelas
condições econômicas e sociais que possibilitaram o estabelecimento dessa
comunicação. O reconhecimento que dom Cappio obteve dos movimentos sociais e
povos foi também resultante de sua “aptidão para formular e nomear o que os sistemas
simbólicos vigentes afastam para o domínio do informulado [sic] ou do inominável”
(BOURDIEU, 2005, p. 73). Assim, tornou-se um intérprete ou porta-voz de uma
situação social específica e extraordinária. Esta relação íntima com o seu meio social e
econômico, marcada pela correspondência entre os anseios e demandas de um
determinado grupo ou povo e a oferta do serviço religioso, é que garantiu seu
desempenho carismático.
Todavia, como relembra Bourdieu (2005), o profeta se diferencia dos demais
membros de seu grupo pela sua capacidade de interpretar, formular e apresentar aquilo
que para os demais membros é impossível de ser concebido num determinado campo
religioso, através de uma linguagem religiosa socialmente estabelecida O profeta possui
a habilidade de expressar aquilo que, até certo momento e num contexto específico, não
65
tem consistência, embora, de maneira subjacente e silenciosa, se encontra em estado de
gestação.
3.4 A Crise: Palco de Atuação do Profeta
Dom Cappio ganhou notoriedade num momento em que o projeto de
transposição das águas do rio São Francisco estava sendo implantado silenciosamente,
sem encontrar qualquer tipo de oposição e questionamento visível por parte da
sociedade, um cenário de paralisia nacional e ausência de um pensamento crítico
voltado para a questão ambiental. De forma paradoxal, esse mesmo cenário estava em
processo de gestação de uma liderança religiosa e social. Dom Cappio surgiu de uma
realidade carente de referências e apoios para guiar um povo a ações transformadoras
que viabilizassem a passagem de uma consciência de mercado para uma consciência de
sustentabilidade baseada na democracia e na ressignificação do tratamento com a
natureza.
Assim, quando o bispo decidiu fazer o jejum, houve um choque na sociedade, o
qual despertou inúmeras reflexões sobre o papel da Igreja e do Estado na preservação
do meio ambiente. Acontece que tais considerações só ocorreram porque o projeto de
transposição enquanto fato singular esteve ligado a uma realidade maior: a percepção
global do acelerado processo de degradação ambiental, cada vez mais denunciado nos
meios de comunicação. Esta situação de crise ambiental é consequência do modelo de
desenvolvimento que se desdobra em aspectos múltiplos: econômicos, políticos, sociais,
culturais, éticos e religiosos (IANNI, 2001).
Portanto, há uma crise ambiental já instaurada, cujos sinais são ameaçadoras e
crescentes para todos os que habitam o planeta: o efeito estufa, que eleva cada vez mais
a temperatura da terra; a poluição do ar e da água, que envenena os seres bióticos e
abióticos; o buraco na camada de ozônio, relacionado à elevação de radiações
ultravioleta; a construção de hidrelétricas à custa do desmatamento e da expulsão de
povos; e outros impactos ambientais e culturais causados pela ação humana. Milaré
(2005, p. 127) compara o planeta Terra à nossa casa e destaca: “... evidenciam-se sinais
de verdadeira crise, isto é, de uma casa suja, insalubre e desarrumada, carente de uma
urgente faxina”. Tal realidade leva inúmeras pessoas a se situarem de maneira diferente
nas sociedades, admitindo-se seres integrantes da natureza e não donos.
66
Face à globalização econômica, os movimentos da cidadania estão legitimando novos valores e direitos humanos [...]. A cidadania emerge configurando novos atores sociais fora dos campos de atração das burocracias estatais e dos círculos empresariais, que reclamam a autodeterminação de suas condições de existência e a autogestão de seus meios de vida (LEFF, 2001, p. 125).
A crise ambiental está também relacionada a uma alteração na relação entre ser
humano e natureza. A ausência de equilíbrio neste relacionamento acabou resultando,
de forma contraditória, numa modificação na consciência e na organização social de
determinados grupos interessados na questão que envolve a vida de todos os seres
viventes. Neste sentido, a consciência ambiental que irrompe com força em todos os
quatro cantos do planeta produz uma força universal rica em possibilidades de mudança
e capazes de apontar para novos caminhos que assegurem a vida do planeta (JUNGES,
2001).
Neste contexto, quem apregoa uma ética ambiental46 se apresenta como uma
força de oposição ao poder do Estado. Os cidadãos reclamam seu desejo e seu direito de
participar nos processos de tomada de decisão que afetam as condições e a qualidade de
vida de todos os seres vivos. Assim, surgem lideranças mobilizadoras e movimentos
ambientais almejando novas utopias, apoiadas em princípios colocados à margem pela
racionalidade econômica dominante. Diante do desenfreado processo de
desenvolvimento econômico, os movimentos populares estão abraçando novos valores e
questionando a ordem estabelecida.
A “Carta da Terra” tem sido um ponto de referência para esses movimentos,
governos e lideranças sociais, pois é o resultado de uma profunda discussão em âmbito
mundial que remonta aos últimos decênios do século XX e que culminou num texto
oficial no ano 2000. Sua elaboração envolveu 46 países e mais de cem mil pessoas de
diferentes continentes. Pauta-se por um documento de “referência ética para o
desenvolvimento sustentável e convidando os Estados-Membros a utilizar a Carta como
um instrumento educativo” (BOFF, 2009, p. 18). Ela alerta para um panorama de
destruição e devastação ambiental, de extinção de seres bióticos e abióticos, e para a
dilatação do abismo entre ricos e pobres. Ao mesmo tempo, conclama todos a se unirem
46 Para Gonçalvez (2004), a ética ambiental aponta para um novo saber que possa dialogar com o lugar, o
espaço, e que não imponha do alto ou de fora as vontades predominantes do ser humano. A ética ambiental é o resultado de uma mudança de consciência que corresponde a novas atitudes de respeito à vida de todos os seres vivos e à reflexão sobre os limites da intervenção humana na natureza.
67
em defesa da vida do planeta, propondo ações voluntárias e coletivas, além de
regulamentações no trato com a Terra, aventando uma nova relação entre o ser humano
e a natureza (BOFF, 2009).
Bourdieu (2005) busca ilustrar que é nos momentos de crise – guerra, fome,
tragédia ambiental, extrema desigualdade – que emerge o profeta com seu discurso
herege e subversivo, recebendo o apoio dos grupos que estão do lado de fora do muro
das instituições. O profeta está intimamente atrelado a uma situação catastrófica que cai
como uma enorme onda sobre os valores que, até certo momento, forneciam as
orientações para a vida humana.
O discurso profético tem maiores chances de aparecer em períodos de crise manifesta ou latente, afetando sociedades inteiras ou determinadas classes, isto é, em períodos nos quais as transformações econômicas ou morfológicas determinam, nesta ou naquela parte da sociedade, a destruição, o enfraquecimento ou a obsolescência das tradições ou dos sistemas de valores que forneciam os princípios da visão do mundo e da conduta na vida. (BOURDIEU, 2005, p. 93).
De acordo com o próprio bispo, o jejum foi o derradeiro recurso utilizado para
pressionar o governo a permitir uma discussão com o povo e os movimentos sociais da
região sobre as possíveis vias para uma revitalização da bacia são-franciscana. Seu
gesto pode ser analisado como uma expressão de resistência e uma tática de luta em
consonância com uma realidade maior, as quais, através de sua eficácia simbólica,
conseguiram mobilizar pessoas e enfrentar o poder do Estado. Foi também uma resposta
tanto à violência ambiental na bacia são-franciscana quanto uma reação à violência
simbólica provocada pelo poder político que calou as consciências, deixando-as à
margem do processo de discussão e participação sobre a questão da seca no semiárido.
No contexto da globalização, a ética ambiental, através de dom Cappio, se
manifestou como uma resistência aos poderes econômico e político do Estado. Dom
Cappio procurou responder especificamente a uma crise ambiental e social que, embora
de origem extraeclesiástica, afetou direta e indiretamente a Igreja e seus fiéis. Instaurou-
se um momento de mobilização no qual o projeto de transposição foi posto em relevo
por uma oposição coletiva influenciada por dom Cappio.
O gesto profético de Dom Luiz sacudiu a Igreja, o Governo e pessoas de tantas instituições. A força cristalina do testemunho de profeta tocou feridas profundas, encobertas por discursos fáceis, palavras jogadas ao vento. Dom Cappio retomou uma modalidade de luta assentada sobre a fina flor da tradição cristã: jejum e oração. (MOREIRA, 2008d, p. 216).
68
Esta mobilização, cujas forças estão fundamentadas na atitude simbólica do
bispo e numa proposta que aponta para outra lógica de desenvolvimento humano,
antagoniza com a racionalidade predominante do sistema econômico e político vigente
na atual conjuntura e vai ao encontro dos princípios da “Carta da Terra”, que faz
referência às ameaças ao meio ambiente e delata as forças que prejudicam a vida no
planeta. Os efeitos simbólicos de sua estratégia para barrar o projeto de transposição
podem ser vistos numa mudança de consciência que levou povos, movimentos
populares, intelectuais, técnicos e artistas a se organizarem para assegurar a integridade
do rio e suas comunidades. Assim, formou-se uma organização popular num
determinado meio social, e dela derivou uma mobilização que, de algum modo,
buscava, diante do Estado, inclusão no processo de tomada de decisões – o que
desagradou os setores dominantes.
Esse mobilizar-se em torno do rio São Francisco é reação perante a exploração
direta e indiscriminada dos recursos naturais, conduzindo a novos sentidos
civilizatórios. A emergência de uma liderança coloca a possibilidade de povos, grupos e
movimentos elaborarem novas utopias face à crise ambiental mundial, contribuindo
para a construção de uma nova ordem social (LEFF, 1998).
Há dois anos realizamos aqueles dias de oração e jejum que foi [sic] um grito desesperado em defesa da vida, quando todos os argumentos de razão haviam se tornado insuficientes para demover o governo federal da decisão de realizar o projeto de transposição de águas. O sacrifício valeu no sentido de fazer as consciências acordarem para a gravidade do problema, que não apenas diz respeito ao rio, como também ao meio-ambiente, à vida, de um modo geral. (CAPPIO, 2008h, p. 46).
Nesta dinâmica, o profeta engendra os meios para o ser humano pensar a si
mesmo em sua íntima verdade, pensar o que era considerado impensável e inominável,
e apresentar uma linguagem adequada, capaz de trazer mudanças a uma sociedade. O
profeta é aquele que abala e até mesmo desestabiliza a instituição religiosa. Ele é a voz
dos grupos que contestam, é a expressão viva do povo do qual é líder. Conforme
Bourdieu (2005), o profeta chama seu povo para uma nova vivência, o que termina
gerando um choque com o Estado e até mesmo com sua instituição religiosa. Todavia a
atitude de dom Cappio não se limita apenas a uma resistência ao Estado: ela abre vias
para alcançar a justiça social, a participação democrática e a sustentabilidade ecológica.
69
3.5 Dom Cappio e a Organização Popular
A polêmica da transposição revela um momento em que foram estremecidas as
relações entre governo e sociedade civil, constituída esta por membros da Igreja,
políticos, movimentos populares e órgãos públicos. Presencia-se um momento em que a
força hegemônica do Estado é questionada. De acordo com Gramsci (1982), a dinâmica
da dominação consiste em conquistar a hegemonia47 ou granjear a aceitação de todos os
grupos da sociedade. A hegemonia enquanto ação política da classe dominante ocorre
também em simetria com um conjunto de orientações sobre a atividade religiosa em
toda a sociedade, ou seja, a religião se torna um instrumento a serviço das classes
dominantes que detêm os poderes político e econômico e ditam as direções cultural,
social e política. Logo, a estratégia hegemônica consiste na orientação da ação religiosa
para determinados fins que assegurem os interesses dominantes.
A hegemonia, por outro lado, pode ser compreendida como um novo
direcionamento intelectual que se faz presente em específicos grupos subalternos ou
povos que, através de uma organização, caminham em direção a novas atitudes que
esbarram em interesses de determinados grupos dominantes. Isto ocorre quando a
comunidade ameaçada toma consciência de sua condição e se organiza numa nova
dinâmica social e religiosa. No caso da transposição, percebemos que a contestação do
projeto veio dos excluídos tendo à frente uma liderança religiosa. Esses grupos e
movimentos tomaram consciência da situação a partir do gesto de dom Cappio, e
desenvolveram, por conseguinte, a capacidade de se organizar e de lutar por uma
questão ambiental e social.
Frei Gilvander Moreira lista “Dez conquistas de Dom Frei Luiz Flávio Cappio”
que ocorreram a partir de uma organização popular. Cabe aqui lembrar três delas:
5) Dom Cappio reforçou a Via Campesina, os movimentos populares e lideranças sociais, setores religiosos e a consciência cidadã a fim de prosseguirem na luta ecológica, ligada às lutas contra injustiças sociais, políticas e econômicas.
47 Para o conceito de hegemonia, recorremos a Gramsci (1982), que a define primeiramente como a ação
política de grupos dirigentes a fim de manter uma coesão social das classes subalternas através do consenso e do senso comum. Em segundo, ao tratar dos grupos subalternos, a hegemonia é a ação de uma coletividade que, através de alianças com os diversos grupos, forma uma base social que possibilita uma nova concepção de mundo e vai de encontro aos interesses comuns de luta de um povo contra um grupo dirigente. Em ambos os casos, trata-se da direção intelectual e moral, diferente do poder político (do Estado) e do poder econômico (do mercado).
70
6) Nas mentes e corações de milhares de pessoas despertou indignação e as informou com a verdade sobre a insana, ineficiente e faraônica Transposição do rio São Francisco e sobre as mentiras que emanam da Praça dos Três Poderes em Brasília. 8) A maior conquista é Dom Cappio vivo entre nós. Mais do que nunca será, daqui pra frente, um grande profeta no meio do povo para encorajar a luta dos pequenos para denunciar arbitrariedades e desumanidades dos quatro poderes que, travestidos de Estado de Direito, insistem em imperar sobre os pobres e sobre o ambiente natural. (MOREIRA, 2008a, p. 131).
Dom Cappio foi uma espécie de mediador ativo do povo ao possibilitar uma
modificação de consciência sobre o meio natural e o social. Influenciou a organização
de movimentos contestatórios ao projeto de transposição e gerou tensão e oposição
profunda nos meios político e religioso, por se orientar em direção a ideais voltados
para uma ética ambiental.
O aspecto subversivo do bispo franciscano é inegável, pois provocou
constrangimento e discrepâncias, sacudiu determinados pilares de uma estrutura social,
religiosa e política, e se colocou como um moderador num processo de mudança de
concepção sobre o rio São Francisco. Cabe destacar, mesmo que já dito, que esse líder
religioso é um sacerdote; no entanto observa-se que na América latina e, em específico,
no Brasil, principalmente com o surgimento da Teologia da Libertação48, uma parte do
clero católico teve uma participação significativa no processo de conscientização e
organização das classes subalternas. Na perspectiva de Gramsci, podemos identificá-los
como “intelectuais orgânicos”49.
Dom Luiz Flávio Cappio se insere na dinâmica de um tempo de transformações
sociais e políticas que se iniciaram com o Concílio Vaticano II, caminhando em
conexão com as novas formas de atuação social e política através da religião, e
possibilitando uma maior participação em prol dos direitos humanos. Sua atitude em
48 Para Boff (1980), essa corrente religiosa teve início no começo dos anos 60, quando a Juventude
Universitária Católica brasileira (JUC), formulou, pela primeira vez, uma proposta radical de transformação social. Seu principal lema é a “opção preferencial pelos pobres.” Esse movimento se estende depois a outros países do continente e encontra, a partir dos anos 70, uma expressão cultural, política e espiritual denominada de “Teologia da Libertação”.
49 O intelectual, em Gramsci, está mergulhado na vida prática como “construtor e organizador”, um líder político que não se restringe apenas à sua capacidade de discurso abstrato, uma vez que prima tanto pela ação como pela produção intelectual. Gramsci ressalta que há categorias especializadas de intelectuais em conexão com os diversos grupos sociais. Cabe destacar que o surgimento de intelectuais ocorre na realidade concreta, de acordo com as vicissitudes históricas, e não numa esfera democrática abstrata. Ao tratar do intelectual orgânico, Gramsci o diferencia do intelectual tradicional devido à sua atuação na sociedade. Neste sentido, o intelectual orgânico desempenha uma função importante no mundo da produção e organização econômica, social, cultural e religiosa de uma sociedade que, de forma orgânica, cria para si grupos de intelectuais que lhe conferem homogeneidade, identidade e consciência da própria função. “Todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer então; mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais”. (GRAMSCI, 1982, p. 7).
71
relação ao rio São Francisco tem raízes na Teologia da Libertação e se apresenta através
de uma nova roupagem: a do meio ambiente. Sua atitude está em afinidade com uma
consciência que se formou no interior de uma reflexão socioanalítica sobre as diversas
situações de pobreza, desigualdades sociais, culturais, políticas e econômicas que
remontam à década de 1960.
Muitos movimentos sociais e religiosos perceberam o gesto de Frei Luiz como tiro de largada. Podem retomar o leme da história, em vez de arrumar as cabines no porão do navio. Num momento de depressão política, o movimento de Cabrobó devolveu ao povo a esperança. A resistência é possível, a luta faz sentido. (SUESS, 2008, p. 95).
Na dinâmica do conceito sobre o intelectual orgânico, um sacerdote pode ser
caracterizado como intelectual não necessariamente pelo trabalho religioso que exerce
em função de sua instituição, mas por este trabalho se ligar a determinadas condições e
relações sociais. Assim, o trabalho religioso em si apresenta um mínimo de “atividade
intelectual criadora” (GRAMSCI, 1982, p. 6).
Ao analisarmos a realidade da polêmica da transposição, presenciamos uma
figura religiosa que, mesmo sendo um sacerdote – na visão de Gramsci, um intelectual
tradicional50 – com sua postura de defesa do rio São Francisco e de seu povo, passa a
ser espontaneamente solicitado pelas massas não só para exprimir e sistematizar as
aspirações e necessidades daqueles dos quais é representante, como para dar respostas a
elas. Por isso mesmo, na condição de sacerdote, dom Cappio representa um líder
fundamental na luta pelos interesses dos setores menos favorecidos com os quais
convive há anos.
Através da liturgia, da pregação e outras formas de difusão religiosa, se obram
mudanças na consciência de cada fiel e mobilizações em redor de seu gesto e seu
discurso. Tudo isto se dá porque este líder atende, através de uma linguagem religiosa, a
um conjunto de insatisfeitas solicitações dos setores populares e atua num momento de
crise ambiental não somente na bacia do São Francisco, mas em todo o planeta.
Seu gesto e sua articulação junto aos movimentos sociais lograram um relativo
êxito, porque o próprio bispo se colocou como o portador, o encarregado de uma missão
50 De acordo com Gramsci (1982, p. 6), um grupo que sempre esteve presente na história monopolizando
os serviços religiosos foi o dos intelectuais eclesiásticos. Esses, durante a Idade Média, foram os detentores da filosofia, da ciência e da formação humana através de suas ideologias, escolas e assistencialismo, além de ostentar um poder fundiário dentro do sistema feudal. O grupo dos intelectuais tradicionais, em especifico os eclesiásticos, se sentem “autônomos e independentes do grupo social dominante”.
72
que atendeu às aspirações de muitas pessoas. Dom Cappio se colocou como uma força
solitária oriunda das relações concretas de um processo histórico de produção social,
cujas ideias foram absorvidas pelos movimentos sociais e outros intelectuais, criando a
possibilidade de se relacionar organicamente com esses grupos populares. Além disso,
desempenhou uma função social inovadora e revolucionária a partir da categoria à qual
pertence: o grupo sacerdotal.
Trata-se de um sábio, culto, avesso à demagogia, conhecedor do sertão nas suas entranhas e, em especial, do Velho Chico, cujas margens percorreu a pé denunciando sua degradação bem antes de se falar em transposição. Um estudioso de técnicas de convivência com as secas e equacionamento dos recursos hídricos locais tão simples e baratas que os chineses e os indianos praticam com sucesso há milênios em regiões de climas bem mais hostis do que o nosso. (ALVES FILHO, 2008, p. 28).
Gramsci relata que toda atividade tem um grau de elaboração intelectual e que,
por isso, “é impossível falar de não-intelectuais, porque não existem não-intelectuais”
(GRAMSCI, 1982, p. 7). Portanto, além de serem elaborados por uma classe em sua
evolução histórica, todos cumprem uma função organizadora na sociedade, desde um
tecnólogo ou um administrador de empresas até um dirigente sindical ou partidário, sem
esquecer-se dos membros do clero e da academia. Então, partindo do pressuposto de
que todo ser humano realiza uma atividade intelectual fora de seu cotidiano de trabalho,
torna-se fundamental recordar que a atividade intelectual que cada ser humano
desenvolve encontra-se em patamares diferenciados de desenvolvimento e ligados a
determinadas classes sociais. Dom Cappio está vinculado às relações sociais
pertencentes a uma classe subalterna que envolve trabalho, engajamento e produção
intelectual.
O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloquência, motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões, mas num imiscuir-se ativamente na vida prática, como construtor, organizador, “persuasor permanente”, já que não apenas orador puro – e superior, todavia, ao espírito matemático abstrato; da técnica-ciência e à concepção humanista histórica, sem a qual se permanece “especialista” e não se chega a “dirigente” especialista mais político. (GRAMSCI, 1982, p. 8).
A bacia do São Francisco pode ser comparada a um organismo vivo em
expansão, que acolheu ao longo da história diversos povos e culturas, um cenário
propício para a formação e organização de vários líderes, representantes, profetas e
intelectuais envolvidos na práxis da vida dos excluídos, buscando com isso arquitetar
73
novas filosofias, construir políticas e projetos sociais com fins democráticos, capazes de
superar a hegemonia dos grupos dominantes e gerar transformações na consciência do
povo que ali se situa.
De acordo com Foucault (1979), os intelectuais adquirem uma consciência
vinculada a uma determinada realidade à medida que se engajam nas lutas concretas. A
aproximação do intelectual com as lutas de um povo o obriga a assumir específicas
responsabilidades sociais e políticas. Sobretudo no lugar onde se situa, ele reforça o
poder dos movimentos populares no intuito de somar forças. E, na arena de lutas
políticas e sociais, ele mantém uma posição de orientador, mas que também age,
denuncia, modifica e gera saber.
O papel do intelectual não é mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” [...], é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do discurso. (FOUCAULT, 1979, p. 71).
No caso da transposição, dom Cappio ocupa uma posição específica: a de bispo
no sertão nordestino. Ele se assume assim, o que, de alguma forma, o liga a uma série
de demandas sociais e políticas; portanto age como conselheiro e intérprete de uma
realidade complexa, procurando indicar novos rumos. Sua ação religiosa leva para a
esfera do campo político as carências sociais da população do semiárido.
Dom Cappio é um profeta que exerce uma atividade intelectual, pois é um
estudioso e, ao mesmo tempo, um autor individual, reconhecido por suas palavras e
ações em benefício do povo da bacia são-franciscana. No auge dos dois períodos de
jejum, falou às comunidades, ao governo e às instituições na condição de representante
de uma gente, e apresentou-se como a voz dos movimentos e grupos populares. Mais
importante do que uma previsão apocalíptica sobre o projeto de transposição foi sua
sensibilidade frente à situação da sociedade de seu tempo e ao clamor de seus
seguidores. Portanto falou com propriedade e conhecimento, e em algumas situações foi
intensamente poético. Assim o profeta está muito próximo de um intelectual, em função
de seu senso crítico e pela linguagem de que se apropria.
Dom Cappio trouxe novas dimensões, a dos compromissos ético, político, social
e ambiental com o povo do sertão e com o próprio rio São Francisco. Ao representar um
povo contra a imposição de um projeto, seu conhecimento foi desafiado e questionado
por outros intelectuais e lideranças religiosas. Mesmo assim, produziu um tipo de
74
conhecimento ajustado a uma sensibilidade voltada para a proposição de uma nova
forma de relacionamento com a natureza, realidade que se refletiu numa mudança de
consciência e na mobilização social.
De forma geral, cabe salientar que dom Cappio cumpriu um papel significativo
na organização das “massas de homens” (GRAMSCI, 1982, p. 4). Ao se apresentar
como o defensor de um povo ou de uma coletividade, buscando salvá-los de um
desastre socioambiental, protegendo-os da ameaça política através de sua linguagem,
seu discurso e suas práticas específicas, esteve intimamente atrelado a uma esfera da
sociedade a qual ele representou, pois, na condição de portador de um discurso
legitimador, foi responsável pela formação da consciência das camadas populares que
levou a uma organização e a uma tentativa de mudança socioambiental.
75
4 O PROFETA E O CAMPO CATÓLICO
Este capítulo analisa o impacto da atitude de dom Cappio na Igreja e no atual
cenário de crise ambiental. Na medida em que a força religiosa de dom Luiz Flávio
Cappio esteve alicerçada apenas em seu gesto e não em sua condição de sacerdote51,
gerou polêmica e trouxe preocupação à Igreja. As ações de dom Cappio tiveram
impacto na consciência social porque ele era um bispo que se colocava em “jejum e
oração” por tempo indeterminado, e não um leigo. O fato de um religioso católico se
dispor a doar a vida para salvar comunidades ribeirinhas adquiriu uma força simbólica
capaz de estremecer o interior da Igreja Católica e dividir opiniões internas no meio
eclesiástico.
Por outro lado, se o bispo estivesse fazendo somente um discurso político ou
apenas participando dos movimentos sociais pela revitalização do rio São Francisco,
provavelmente obteria pouca repercussão. Nas palavras de Jung Mo Sung (2007), “seria
visto simplesmente como um bispo ‘fazendo política’, isto é, extrapolando o seu campo
de atuação ou função”52. No entanto, dom Cappio se colocou em “jejum e oração”, um
ato religioso com grande poder simbólico, capaz de mudar consciências e provocar
protestos contra as obras da transposição, ganhando então uma dimensão não só
religiosa, mas social, política e ambiental.
O jejum é uma prática usual no meio religioso. É uma forma de sacrifício
acompanhada de oração que busca a transformação por meio da fé, a superação dos
desafios através da autodoação e a busca de forças mediante a reflexão (HIGUET,
2005). Assim, esse ato gera mudanças no comportamento e implica novas formas de
ações e relações. Ele também pode ser realizado de forma coletiva, praticado por uma
comunidade, um povo, uma Igreja e até mesmo uma nação. No caso da transposição, o
jejum de dom Cappio, que também foi chamado indiscriminadamente de “greve de
fome”, teve como pano de fundo uma causa política, o que gerou repercussão na mídia e
abriu precedentes nunca vistos. Afinal, era um bispo usando de uma prática religiosa
para alcançar um fim político.
51 Os sacerdotes, de acordo com Weber (1991, p. 294), são os “funcionários capacitados por seu saber
específico, sua doutrina fixamente regulada e sua qualificação profissional”. Não agem como os profetas, que atuam em virtude de uma revelação e do carisma pessoal.
52 O autor faz uma distinção entre “greve de fome” e “jejum”, classificando o último como um ato religioso, mas com um fim político, sem cair no equívoco de misturar política com religião (SUNG, 2007).
76
É oportuno lembrar que o tempo de sua formação está em congruência com as
disposições particulares de sua conduta religiosa; afinal o bispo faz parte de uma época
notabilizada pelo desejo de mudanças políticas e sociais. Os anos de 1960 foram de
lutas por liberdade, igualdade, solidariedade, fraternidade e afirmação de ideais que
envolveram o cenário mundial. Nos últimos decênios do século XX, movimentos
sociais, em suas diferentes dimensões, se opuseram às formas de dominação que
agravavam a miséria e aumentavam o abismo entre ricos e pobres.
Na Igreja, esta realidade se refletiu em 1962, no Concílio Vaticano II53. Dom
Cappio é filho de uma Igreja que encontrou no engajamento político e social e na
mobilização dos clérigos uma nova forma de “construir o reino de Deus”. Momento que
trouxe mudanças significativas ao clero, condicionando-o a novas experiências e à
atualização perante uma nova conjuntura, – esta, profundamente marcada pela repressão
e pelas mobilizações perante um efervescente período de autoritarismo e desrespeito aos
direitos humanos. Assim, é um sacerdote que testemunhou processos cruciais na história
do Brasil, como a ditadura militar (1964-1984); a campanha das “Diretas Já”, em 1984;
e as campanhas à presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, com a respectiva vitória.
Na polêmica da transposição, dom Cappio encontrou problemas tanto com o
Estado quanto com a Igreja Católica. Sua afronta ocasionou, com efeito, uma série de
recomendações e pedidos de suspensão de seu jejum. Foram cartas e notas alertando-o
sobre os preceitos de conduta e recomendando a observação dos princípios cristãos,
tudo isto com o objetivo de restabelecer uma certa ordem interna. Até o Vaticano
procurou estabilizar a situação e evitar uma celeuma maior no meio eclesiástico.
Portanto, é sobre essa dimensão supracitada que nos ocuparemos neste capítulo, pois, no
episódio da transposição, verificamos que a instituição religiosa, além de ter a função de
satisfazer os interesses religiosos, sejam eles particulares ou coletivos, teve a
preocupação de manter uma harmonia interna que respeitasse sua hierarquia
eclesiástica.
53Cf. obra de dom Hilário Moser (2006), o Concílio Vaticano II (1962 – 1965), trouxe mudanças
significativas ao clero, condicionando-o para novas experiências e para a atualização com uma nova conjuntura profundamente marcada pela repressão de um período de autoritarismo e desrespeito aos direitos humanos. A mudança seguirá com Medellín e se materializará na América Latina através da Teologia da Libertação.
77
4.1 Dom Cappio: Profeta e Sacerdote
Enquanto funcionário especializado e consagrado em oposição aos demais
agentes religiosos, em específico os leigos, o sacerdote referenda o controle de um
conhecimento que garante o poder institucional: ele é legitimado e consagrado nos ritos
de sua instituição e recebe a unção para agir em nome dessa mesma instituição. O
profeta, ao contrário do sacerdote, apresenta algo de novo. Enquanto o profeta é um
agente religioso de caráter extraordinário e, através de seu discurso e da prática, aponta
para uma nova visão religiosa, o sacerdote é funcionário de uma instituição detentora de
uma oferta religiosa considerada legítima e verdadeira, cuja mensagem não é inovadora,
mas preestabelecida, ordinária e rigorosamente repetida (BOURDIEU, 2005).
De acordo com Weber (1991, p. 294), o sacerdote é o funcionário “de uma
empresa permanente, regular e organizada, visando a influência sobre os deuses, em
oposição à utilização individual e ocasional dos serviços dos magos”, os quais, através
do culto e da súplica aos deuses, os condicionam a atender seus pedidos.
[...] Distinguem-se os sacerdotes como capacitados por seu saber específico, sua doutrina fixamente regulada e sua qualificação profissional, daqueles que atuam em virtude de dons pessoais (carisma) e da prova destes por milagres e revelação pessoal, isto é, de um lado, os magos e, de outro, os “profetas”. (WEBER, 1991, p. 294).
Também é importante destacar que outro elemento diferenciador entre
“autoridade carismática” e “autoridade institucional” são os instrumentos utilizados. A
autoridade carismática acredita ser movida por uma revelação divina que assinala uma
nova conduta; já a autoridade institucional exerce um cargo, é funcionária de uma
instituição portadora da salvação, que lhe confere poder e legitimação para atuar
conforme a doutrina a ele designada.
Vale ressaltar que o sacerdote recebe remuneração de sua instituição para
realizar suas atividades, enquanto o profeta propaga sua atividade de maneira gratuita
(WEBER, 1991). O carisma é a marca central do profeta, materializado na força de sua
palavra, ao passo que o sacerdote se apoia na instituição, é parte de um corpo maior que
orienta suas palavras e comportamento.
Quando tratamos do personagem central da polêmica da transposição,
verificamos que, ao adotar o jejum como meio de resistência ao Estado, ele perde o
respaldo de sua instituição para atuar por uma causa socioambiental; fica, portanto,
78
sozinho, embora ganhe do povo respeito, admiração, solidariedade e participação, e
divide as opiniões no meio eclesiástico. Assim, a condição de sacerdote de dom Cappio,
somada à dimensão profética de sua atitude, outorgou-lhe certo poder para guiar as
organizações populares e possibilitar a elas a oportunidade de discutir alternativas de
revitalização do rio São Francisco.
Em entrevista ao IHU On-Line, em 16 de agosto de 2008, dom Cappio responde
a uma pergunta que revela a polêmica de um bispo que adentrou o meio político através
de um ato religioso.
IHU On-Line – Por que, em sua opinião, tanto se criticou essa “mistura” que o senhor fez, ao utilizar-se da sua fé e da sua posição como Bispo para combater um problema tão grave, que é a transposição do São Francisco? Dom Luiz Cappio – Não é uma questão apenas política; é uma questão pastoral. O Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, no capítulo 10 do Evangelho de São João, afirma que “o pastor é aquele que cuida do seu rebanho”, e Jesus diz que o Bom Pastor, se for necessário, dá a vida pelo seu rebanho. Eu fui constituído pastor pela Igreja. Eu sou Bispo de um povo, sou um pastor segundo Jesus Cristo e não posso me calar diante do meu rebanho que passa todas as privações, as carências, as necessidades e as injustiças de um governo alheio às necessidades dele. Então, se o meu povo não tem voz e não tem vez, eu tenho que usar do curinga que eu tenho em minhas mãos, e da minha posição de ser pastor de um povo, para ser a voz desse povo que não tem voz. Então, eu não estou falando por mim, Dom Luiz. O meu fórum é um coletivo formado por todo o meu rebanho. Então, esse assunto não é apenas político ou econômico. Trata-se de um problema pastoral também, que diz respeito à vida do meu povo. Se meu povo está sofrendo as consequências de um gesto que gera morte, eu tenho que levantar a minha voz para defender o meu povo, para que eles tenham vida em abundância. A campanha da Fraternidade deste ano conclama todos os homens a lutar em defesa da vida, porque a vida é o dom maior de Deus e o pastor tem que zelar pela vida do seu rebanho. Então, é uma mistura sim, porque todas as questões fazem parte de um só assunto: a defesa da vida. (CAPPIO, 200g, p.111)
Para Pierre Bourdieu, o poder dos profetas deriva do poder político dos grupos
sociais de quem se fazem representantes, e isto podemos averiguar no caso da
transposição. Com seu corpo de auxiliares permanentes e o círculo mais amplo de
adeptos leigos, é que o profeta configura as bases de assentamento de uma nova conduta
face ao Estado e à Igreja. São os grupos populares que conferem legitimidade à profecia
em troca da esperança de uma nova vida.
No caso de dom Cappio, sua condição de sacerdote, em conexão com o interesse
religioso e social de movimentos populares e ainda com o povo, revalida ainda mais sua
atuação e lhe atribui o caráter de profeta. No entanto, apesar de, enquanto “tipos ideais”,
sacerdote e profeta serem teoricamente incompatíveis, no fato concreto da polêmica da
transposição, presenciamos um líder que é bispo e que, através de um ato isolado e
79
independente do consentimento da Igreja-instituição, agiu segundo convicções próprias,
angariando respeito, admiração e apoio de diversos setores da sociedade.
Dom Cappio operou numa “realidade socialmente situada” (MADURO, 1981, p.
72), e se utilizou de um instrumento – o jejum – socialmente aceito por muitas pessoas.
Essa capacidade de manusear um determinado vocabulário, de lidar com um conjunto
de costumes e práticas com suas tradições e os recursos naturais da região, trouxeram-
lhe um relativo êxito. Logo, Dom Cappio causou discordância porque não era um
indivíduo qualquer realizando o jejum: era um sacerdote que pôs em xeque o papel da
Igreja Católica frente a uma questão política, social e ambiental.
Meu jejum e oração não é mera “greve de fome”, não sou “suicida” nem adepto da “eutanásia”. Uma das mais profícuas tradições bíblicas e cristãs é o jejum e oração, necessários para expulsar certos demônios, conforme disse Jesus (cf. Mateus 17, 21). Um dos movimentos mais profundos da história da humanidade tem sido a “Não Violência Ativa e Firmeza”, da tradição de um Gandhi. Agora mesmo, foi desencadeado um movimento, Jejum Solidário, que está crescendo em adesões em várias partes. São pessoas de religiões diversas ou mesmo sem religião confessional que jejuam por alguns dias em comunhão espiritual conosco [...]. Não quero morrer, mas a vida do rio e do povo do rio e de todo o sertão nordestino vale meu sacrifício, se tiver que consumá-lo. “Para que todos tenham vida” (João 10, 10) (CAPPIO, 2008k, p. 99-100).
Por mais que observemos o caso da transposição a partir dos estudos sobre o
profeta, não devemos desconsiderar que o protagonista central desta trama é
primeiramente um sacerdote; na visão de Weber (1991, p. 294), um funcionário
especializado da Igreja Católica. Todavia, com o ato polêmico e subversivo do jejum,
boa parte do clero se mostrou favorável ao seu gesto, outras alas se opuseram e algumas
se mantiveram neutras. Muitos religiosos e sacerdotes se dirigiram ao sertão para
transmitir solidariedade ao gesto que classificaram como profético. Aqueles que não
participaram diretamente do processo se manifestaram através de debates, encontros e
seminários. O Bispo da diocese Anglicana de Recife-PE tornou público o apoio a Dom
Cappio num texto do dia 21 de dezembro de 2007.
Dom Luiz, revestido da austeridade do hábito franciscano, é o profeta e o pastor do povo e das águas, a clamar na sequidão e na solitude do deserto. [...] Deveríamos entender a hora de Deus e toda a Igreja em adesão fiel ao crucificado: a cruz de Cristo se encarna na cruz dos pobres, o mais não passa de piedosas e enganosas fantasias (SOARES, 2008, p. 219-220).
Foram muitos os religiosos e sacerdotes que desempenharam um papel
significativo contra as forças do Estado e criticaram a posição do Vaticano. Uma
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considerável parte do clero no Brasil contribuiu na estratégia de interromper o projeto
de transposição das águas do rio São Francisco engrossando os movimentos sociais e
participando de discussões sobre o tema. Cabe lembrar o apoio da Conferência dos
Frades Menores do Brasil (CFMB) a dom Cappio, em dezembro de 2007, através de um
documento que reúne a assinatura de provinciais, custódios e delegados, os quais
asseveraram: “Com Dom Frei Luiz Cappio queremos afirmar nossa posição franciscana
em favor da revitalização do Rio São Francisco e de uma ampla discussão nacional em
busca de soluções alternativas à transposição” (CONFERÊNCIA DOS FRADES
MENORES DO BRASIL, 2007, p. 171).
Portanto presenciamos, nessas intensas circunstâncias, a dimensão
contestadora de uma ala do clero, bem viva e atuante contra o projeto de transposição.
Ao nos referirmos a dom Cappio como sacerdote, fica evidente o papel desempenhado
ao longo de sua vida na região do São Francisco, com suas práticas e discursos que
concorreram para o desenvolvimento de uma consciência ecoespiritual e social dos
grupos subalternos e que nortearam a atuação dos movimentos sociais.
Todavia, na perspectiva de Bourdieu (2005), o papel subversivo do profeta é
respaldado pelas condições sociais nas quais esse líder religioso e os atores ocultos se
encontram enraizados. Dom Cappio contribui para conscientizar, organizar e mobilizar
o povo do sertão no seu meio socionatural, além de atingir um grau mínimo de
mobilização de grupos que se propuseram, através de passeatas, debates e outras
atividades, alcançar um fim político. Num depoimento acerca do bispo dom Cappio,
Leonardo Boff fala de sua trajetória na vida religiosa e seu engajamento por
comunidades pobres. Enfatiza sua saída repentina de São Paulo-SP para a Bahia.
Foi meu aluno de teologia por cinco anos. Sempre trabalhava nas favelas de Petrópolis. Como vocação adulta, vindo de uma família rica de Guaratinguetá, sua opção franciscana era límpida e sem os vícios da formação convencional seminarística. Já na época, o cercava uma aura de santidade pessoal, de extrema simplicidade e pobreza. Era estudante assíduo. Mas até hoje me deve o trabalho final, uma espécie de tese de fim de curso, que todos deviam fazer. Eu insistia que se pusesse a trabalhar. E foi protelando até o último dia, quando foi transferido para São Paulo para trabalhar nas favelas. Antes de sair, pela madrugada, me deixou debaixo da porta escrito em português, latim e grego o texto do Pai-Nosso. Dizendo: “Depois de cinco anos de estudo, oração e meditação, foi o que me restou: a oração de Jesus que o senhor nas aulas nos ensinou ser a essência da mensagem de Jesus”. Sempre que o encontrava lhe cobrava o trabalho. Depois que ficou bispo, me desmoralizei e me edifiquei pelo grave erro cometido pelo vaticano. Este não avaliou quem era frei Cappio, aquele que na Quinta-Feira Santa desapareceu de São Paulo, levando apenas o burel franciscano, a Bíblia e a Regra de São Francisco. De carona com caminhoneiros, foi para onde achava que estavam
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os pobres em Barra Bahia. O provincial o descobriu apenas dois meses depois. Telefonou-me dizendo: “Devemos ir pegá-lo, pois ficou louco”. Eu lhe respondi: “Provincial, abra Marcos 3, 21 onde se diz: os parentes saíram para pegar Jesus porque diziam: ele está louco”. Acrescentei: “Ele está em excelente companhia, com Jesus e ainda com São Francisco que se chamava a si mesmo de pazzus, que em latim medieval e italiano significa louco. Lógico, louco para certo tipo de ordem deste mundo, não para a ordem do Reino.” (BOFF, 2008, p. 23-24).
Segundo Weber (1991), o poder carismático do profeta é oriundo de uma
situação exterior, cuja linguagem religiosa parece nunca ter sido dita antes e que goza,
portanto, de uma aura inaugural. No entanto, embora essa linguagem possa ser
fundamentada numa tradição antiga, o profeta pode trazê-la ao presente de forma
inovadora e com novos significados. Tal situação faz dele o portador de novas ideias e
novos comportamentos.
O profeta é um agente social de inovação e mudança. Não possui um aparato
legitimador originário da função que tem seu cargo institucional, pois o poder
eclesiástico se opõe a qualquer atitude profética que ameace a ordem simbólica
estabelecida. Seu discurso é marcado por uma sabedoria pautada por uma tradição, mas
renovada e contextualizada de acordo com as mudanças da sociedade ao longo da
história e conforme cada grupo cultural e suas crenças, hábitos e organização social.
No entanto, há aspectos permanentes nos discursos proféticos que, mesmo diante
das transformações ao longo do tempo, continuam firmes e constantes: a capacidade de
orientar, através da mensagem religiosa, um povo; o ato de denunciar uma situação
injusta; o desejo de mudança; e a profecia em si. Por isso, é devido a tais aspectos que o
profeta reúne à sua volta seguidores e busca ganhar adesões com seu efeito mobilizador,
além de pregar uma nova ética. Essas considerações são confirmadas no texto de Pe.
Paulo Suess, intitulado “Luiz Cappio, por que vieste incomodar-nos?”:
Quem começa uma greve de fome, que é um instrumento de luta da não-violência, não sabe como vai terminar. O objetivo não é “ganhar” a luta. Quem ganha são os outros. O objetivo é fazer avançar uma causa. Com visibilidade de sua figura quase invisível, Frei Cappio fez avançar a causa dos ribeirinhos, dos povos indígenas e dos quilombolas do Rio São Francisco. Ao partilhar simbolicamente a austeridade de sua vida e lutar por água para os sedentos, Luiz Cappio se tornou ícone de esperança e sinal de justiça maior. Através do silêncio, da oração e do jejum na Igrejinha de São Francisco, em Sobradinho (BA), ele nos motivou novamente a acreditar na presença de um Deus que se despojou para caber ao lado dos pequenos. Vivemos desses pobres sinais que reforçam nossas lutas, das Romarias da Terra, do Grito, do jejum e da oração, da mística nos assentamentos do MST, das celebrações dos nossos mártires, da eucaristia (SUESS, 2008, p. 115).
82
No caso de dom Cappio, seu papel principal foi o de se valer de um gesto que,
independentemente da anuência da Igreja-instituição, remonta à tradição cristã de
sistematizar e ordenar todos os movimentos cujas manifestações eram diversificadas e
oferecer aos mesmos uma causa legítima pela qual pudessem se orientar, além de
coordenar todas as ações humanas através de um sentido ecoespiritual que tinha o
próprio bispo como modelo ideal. A conduta dos movimentos ganhou mais sentido a
partir do processo de significação que a religião, através do profeta, apresentou aos seus
fiéis. O sucesso de dom Cappio foi também garantido por seu carisma e sua capacidade
de mobilizar, controlar os grupos sociais e de se fazer representante religioso e político
deles.
Ao propor uma mensagem de salvação, procurou ordenar tudo e todos dentro de
um sentido cosmológico, além de coordenar as diferentes manifestações da vida num
único ideal. Sua relação com os fiéis é compreendida pela força religiosa que ele possui;
afinal ele é um bispo que carrega uma autoridade oriunda da Igreja Católica para
satisfazer as necessidades religiosas dos grupos sociais que lhe são confiados. Por outro
lado, ao escolher um gesto radical, dom Cappio apresentou uma mensagem de salvação
ambiental e dispensou qualquer aparato ritualístico do sacerdote, apoiando-se
unicamente em sua atitude e em seu discurso religioso como meios para atingir um
determinado fim político.
4.2 A Polêmica na Igreja
O impacto das mobilizações para conservar o rio São Francisco foi grande ao
ponto de a CNBB demorar a se posicionar, revelando-se dividida sobre o meio
escolhido para interromper o projeto de transposição. Chegou a pedir que dom Cappio
fosse ponderado em sua decisão e pusesse termo ao jejum, pois para ela era mais
interessante que o bispo continuasse com sua causa de forma ativa e consciente. A
situação agravou-se com o posicionamento do Vaticano, pois a Santa Sé não viu com
bons olhos a “greve de fome” e, através de argumentos morais, condenou e proibiu a
atitude de jejum.
Entretanto dom Cappio perseverou em seu propósito, inflamando ainda mais as
tensões na interpretação de sua postura. Para acirrar a situação, ocorreram debates,
83
passeatas e outras manifestações, como a de dom Aldo Pagotto54 em favor da
transposição. Em nota, dom Aldo Pagotto afirmou que os bispos do Nordeste eram, em
sua maioria, a favor da integração das bacias do rio e que quase todos os bispos da
Paraíba, do Rio Grande do Norte, Pernambuco e Alagoas apoiavam o projeto
governamental.
O protesto do Bispo de Barra (BA), que está em greve de fome, deve ser visto como ato pessoal. Ele não consultou os responsáveis da CNBB, tomando uma atitude isolada da opinião do episcopado. Seu gesto não se identifica com a opinião e com a postura de muitos outros bispos brasileiros (PAGOTTO, 2005).
Tudo isso provocou um clima de divergências no seio da Igreja Católica.
Ressalte-se que Dom Cappio é um sacerdote, funcionário de uma instituição religiosa e
encarregado de satisfazer um tipo particular de interesse religioso, concernente a certo
grupo social, mediante a elaboração de práticas e discursos religiosos que estejam
abonados pela Igreja Católica (BOURDIEU, 2005). A opção por um novo modo de
produção religiosa ressoou no Vaticano e na sociedade, encontrando resistências e
rejeição na Igreja. Em carta da Nunciatura Apostólica, dirigida a dom Luiz Flávio
Cappio, fica transparente tal repúdio.
Tomei conhecimento da decisão de Vossa Excelência de permanecer em jejum como forma de manifestação contra o plano de transposição das águas do Rio são Francisco. A esse respeito, reafirmo o princípio de que é necessário conservar a vida, dom de Deus, e a integridade da saúde. A continuação do jejum, já muito prolongado e radical, colocando em risco a própria sobrevivência, não é um meio aceitável e contradiz os princípios cristãos. (RE, 2008, p. 64).
O Vaticano negou explicitamente a legitimidade da atitude de dom Cappio e
desaprovou o jejum, alegando ferir os “princípios cristãos”; por outro lado, não
forneceu nenhuma referência teológica que justificasse a argumentação. Nas palavras de
Maduro (1981, p. 144), “toda iniciativa profética – na medida em que constitui uma
ameaça objetiva ao monopólio do exercício legítimo do poder religioso pela igreja –
54 C.f home page da CNBB. Dom Aldo pertence à Congregação do Santíssimo Sacramento. Foi nomeado
arcebispo da Paraíba em 5 de maio de 2004. Como bispo, exerceu as seguintes atividades: bispo de Sobral-CE (1998-2004); encarregado da Dimensão Ecumênica no Regional NE I; Comissão Pastoral da Seca no NE I; presidente do Regional NE I CNBB (2000); presidente da Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz (2003-2007); membro do Conselho Permanente da CNBB.
84
provoca reações contrárias da parte do poder eclesiástico”. A Igreja Católica censurou o
gesto de dom Cappio por motivos eclesiais.
O bispo desobedeceu – lembrando aqui que ele não havia consultado o Vaticano
antes de iniciar o jejum – portanto quebrou a hierarquia da colegialidade episcopal e
causou celeuma no seio da Igreja. A Santa Sé, por meio da Nunciatura Apostólica no
Brasil, desqualificou sua atitude religiosa, classificando-a de ilegítima. Em alguns
momentos, alegou que o motivo consistia numa situação externa na qual não se deveria
intervir. De acordo com a carta do núncio apostólico no Brasil dom Lorenzo Baldisseri
ao arcebispo de Feira de Santana-BA, dom Itamar Vian, a ideia acima fica mais
transparente.
Confio nas mãos de Vossa Excelência a referida Carta para que tenha a bondade de a entregar pessoalmente ao Exmo. Destinatário (Anexo). Peço ainda a Vossa Excelência obter da parte de Dom Cappio uma adequada resposta. Queira Vossa Excelência ter além do mais a bondade de explicar a Dom Cappio que a decisão sobre o projeto em questão é da competência da Autoridade Civil. (BALDISSERI, 2008a, p. 63).
Enquanto produtor religioso, dom Cappio fez de seu gesto uma estratégia capaz
de mobilizar significativos setores da Igreja, assim como dos meios político e
intelectual, a se posicionarem contra o Estado. Articulou, em seu discurso e sua atitude,
as condições tanto sociais como religiosas que possibilitaram a mobilização de diversos
segmentos da sociedade e movimentos da Igreja. Muitos teólogos55, como José
Comblin, o reconheceram como um portador de inovações no campo religioso e
transmitiram apoio através da presença nos períodos de jejum e na produção intelectual.
Se a vida é dom de Deus, ela não é dom supremo, e ela não é bem supremo e não é a primeira exigência de Deus. O bem supremo é a fidelidade ao evangelho: a fidelidade ao evangelho vale mais do que a vida e Deus quer essa fidelidade mais do que a vida. Assim o mostraram os mártires que provocaram a sua morte porque rejeitaram os gestos que podiam salvar-lhes a vida. Puderam escolher e escolheram a morte porque havia um valor superior que era a fidelidade ao evangelho. (COMBLIN, 2008, p. 119).
A citação acima revela a autenticidade da atitude “profética” na medida em que
é vista como uma postura aplicada em determinada situação e em tempo e lugar
específicos, sem negar a tradição cristã. Mostra também que seu gesto e seu discurso 55 Queremos dizer que o bispo recebeu inúmeras provas de solidariedade teólogos e demais estudiosos da
Igreja, como José Comblin, Leonardo Boff, frei Betto, Paulo Suess, Gilvander Moreira e outros que, através da produção de textos e artigos, estabeleceram relações entre o jejum e a tradição cristã a partir dos evangelhos e personagens que doaram suas vidas por fidelidade à sua fé.
85
estiveram dentro dos limites de uma tradição absorvida pela Igreja – o martírio, o jejum
e a profecia – mas que não foram tolerados pela Santa Sé por motivos eclesiásticos.
Dom Cappio agiu por convicção própria, independentemente do consentimento
da Igreja católica. Propagou suas palavras por si mesmas e não em função da sua
condição de bispo ou funcionário de uma instituição religiosa. Assim, esse ato
subversivo desagradou à Igreja Católica, pois para ela dom Cappio ignorou uma
hierarquia, simbolicamente despiu-se de suas vestes de bispo e apenas usou seu burel
franciscano.
Numa perspectiva weberiana, verificamos que o carisma de dom Cappio é o
elemento que incomoda em função de sua característica de extraordinário e de inovador.
Dom Cappio evoca respeito e reúne seguidores sem a intervenção institucional da
Igreja. Ele adquire uma autoridade voluntariamente aceita, respeitada e seguida por
povos e movimentos populares, sem exercer um poder institucional, mas em virtude da
legitimidade de seu gesto e de suas palavras. Os seguidores sentem que “é dever dos
que foram chamados para uma missão carismática reconhecer suas qualidades e agir de
acordo com isso” (O’ DEA, 1969, p. 38).
Essa influência sobre as massas é alheia à instituição religiosa católica. Soma-se
a isto o fato de que o profeta é portador de novos valores e outras significações, capazes
de transformar comportamentos e conferir novos sentidos, os quais podem de alguma
forma contagiar outros sacerdotes. Logo, a possibilidade de influenciar adequar-se-ia
aos inéditos valores apresentados pelo profeta. Dom Cappio, uma vez que conseguiu
empatia de vários sacerdotes, se situou como um operador de mudanças sociais e
religiosas, passando a ser uma ameaça à hierarquia católica. Portanto, a hierarquia
eclesiástica não tolerou o “jejum” pelo fato de seu ato religioso ser desobediente à
Igreja-instituição.
Cabe aqui dar destaque à fala do núncio apostólico dom Lorenzo Baldisseri
numa missa de ação de graças, em 7 de outubro de 2005, quando dom Cappio
interrompeu seu primeiro período de jejum: “Só Deus é o dono da vida e nós não
podemos tirá-la. Segundo a moral católica, o fim não justifica os meios, mesmo que o
fim seja uma nobre causa (BALDISSERI, 2008c, p. 40).
Quando, em 2007, dom Luiz Flávio Cappio iniciou seu segundo jejum por
tempo indeterminado, setores da Igreja começaram a discutir se a atitude do bispo não
traduzia apenas um gesto extremo de loucura e contrário aos preceitos cristãos.
Acontece que houve uma tentativa de coibição por parte da Igreja-instituição ao ponto
86
de classificar sua atitude como um ato suicida. Diante da polêmica da transposição,
constatamos que o Vaticano desempenhou uma função conservadora em relação a dom
Luiz Flávio Cappio. Nas palavras de Otto Maduro, verifica-se que:
[...] uma igreja tende a desempenhar, a maior parte do tempo, uma função conservadora, sobretudo nas sociedades de classes com estrutura de dominação consolidada ao longo de um processo de muitas gerações, e sobretudo se essa igreja esteve presente como tal igreja durante esse processo de consolidação da estrutura de dominação.(MADURO, 1981, p. 172).
A Igreja Católica enquanto instituição tem funções sociais que, segundo
Bourdieu (2005, p. 30), “tendem sempre a se transformar em funções políticas”, o que
nos revela uma relação umbilical entre seu poder simbólico e a manutenção da ordem
política. É preciso recordar que a função conservadora da Igreja-instituição permaneceu
oculta até certo momento. Diante do mal-estar inaugurado por dom Cappio (que
desafiou o Estado, pôs em risco os interesses políticos e econômicos de setores
empresariais, incentivou a organização de movimentos populares por uma causa
ambiental, gerou cizânia no meio eclesiástico e trouxe repercussão na mídia), a Igreja-
instituição foi obrigada a intervir, repreendendo sua atitude, pressionando-o a agir
conforme os dogmas cristãos. Nas palavras de Bourdieu,
A estrutura das relações entre o campo religioso e o campo do poder comanda, em cada conjuntura, a configuração da estrutura das relações constitutivas do campo religioso que cumpre uma função externa de legitimação da ordem estabelecida, na medida em que a manutenção da ordem simbólica contribui diretamente para a manutenção da ordem política, ao passo que a subversão simbólica da ordem simbólica só consegue afetar a ordem política quando se faz acompanhar por uma subversão política desta ordem (BOURDIEU, 2005, p. 69).
O poder simbólico56 é o conjunto de valores e preceitos inculcados no
pensamento humano, que termina desempenhando um papel “estruturante” na formação
da sociedade; não obstante, o simbólico está em função do político, e o político depende
da atuação eficaz do poder simbólico no intuito de se manter uma ordem ou
“naturalização” das coisas (BOURDIEU, 2005, p. 69-72). Logo, a Igreja-instituição se
vale da eficácia dos símbolos religiosos para a dominação no propósito de reforçar ou
criar uma crença coletiva que tenha também uma eficácia política.
56 Para Pierre Bourdieu (1989, p. 7-8), o poder simbólico é um poder imperceptível que só pode ser
exercido com a “cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”.
87
A Igreja contribui para a manutenção da ordem política, ou melhor, para o reforço simbólico das divisões desta ordem, pela consecução de sua função específica, qual seja de contribuir para a manutenção da ordem simbólica. (BOURDIEU, 2005, p. 70).
Em virtude da ameaça religiosa de dom Cappio à instituição eclesiástica, ocorreu
uma série de pronunciamentos de conteúdo disciplinador no intento de deter sua atitude
e lembrá-lo dos princípios cristãos. Conforme afirma Foucault,
O poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”, ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo (FOUCAULT, 1984, p. 153).
A organização de movimentos sociais contrários ao projeto de transposição,
fomentada por um gesto pessoal, resultou numa afronta ao poder institucional do Estado
e do Vaticano, tornando-se necessária a implantação de medidas que pusessem fim ao
jejum do bispo. Através de advertências, o Vaticano procurou assegurar a ordem
eclesiástica e restabelecer a ordem interna. Em carta do cardeal Giovanni Battista Re a
dom Cappio, no segundo período de jejum, tal posição fica ostensiva:
Com referência à sua radical decisão de jejum contra o plano de transposição das águas do Rio São Francisco, reclamando também a sua revitalização, e diante da firme opção de Vossa Excelência de levar até o extremo a greve de fome, tenho o grave dever de recordar-lhe que os princípios da moral cristã não permitem que leve adiante a sua decisão. É necessário conservar a vida, dom de Deus e a integridade da saúde. Em nome da Santa Sé, peço firmemente que não prossiga com esse gesto radical. Não é esse o modo aceitável para exprimir a sua solidariedade e sua doação pelo Povo de Deus. A Santa Sé confia que Vossa Excelência não desobedecerá o preceito divino de não extinguir e prejudicar a sua vida e que imediatamente V. Exa. colocará fim a este gesto em obediência também à Santa Sé. (RE, 2008, p. 31).
A estrutura eclesiástica prima pela hierarquia interna. Neste sentido, o elemento
gerador da crise é uma situação inovadora que será agravada pela atuação do profeta e
pelas funções simbólica e política de sua profecia57. A atitude de dom Cappio voltou-se
para uma transformação social profunda que apontou para a solução da seca no sertão e
57 Estas considerações demonstram que as instâncias religiosas, em específico a Igreja-instituição,
asseguram as divisões simbólicas na medida em que geram e implantam esquemas de percepção, pensamento e ação, as quais, por sua vez, se ligam às estruturas políticas e garantem o consentimento voluntário dos atores sociais. Uma vez ameaçados os valores que até dado momento garantem certa ordem, elas procuram usar de seu poder para frear qualquer ação que desestruture aquilo que se encontra numa ordem natural das coisas.
88
também para uma política de preservação ambiental. Dom Cappio assumiu uma postura
religiosa visando uma mudança de consciência que repercutiria numa possível alteração
política e social. No entanto, isto incomodou a Igreja Católica pelo fato de o carisma
pessoal sobrepor-se ao institucional. Nas palavras de Bourdieu,
[...] a empresa burocrática de salvação é incondicionalmente hostil ao carisma “pessoal”, isto é, profético, místico ou extático, que pretende indicar um caminho original em direção a Deus: “Aquele que faz milagres de modo carismático e não no exercício de suas funções é condenado como herético ou feiticeiro”. (BOURDIEU, 2005, p. 95).
Através do profeta, instaura-se um descontentamento no meio eclesiástico – e
reforça-se o apoio de povos, movimentos sociais, grupos e classes mergulhados em
profundas transformações de caráter tanto social quanto econômico, político e cultural –
com relação ao líder carismático que passa a exprimir, com uma força e uma coerência
particulares, disposições éticas ou políticas já presentes, as quais passam a incomodar
ainda mais o meio eclesiástico.
Com o ato de jejum e oração, dom Cappio se firmou como uma forte liderança.
Sua capacidade carismática de articulação e expressão foi ao encontro dos anseios e
aspirações de um povo que lhe transmitiu autoridade para contestar a realidade do sertão
e inaugurar uma nova visão religiosa. O “trabalho religioso” executado por ele foi
respaldado por uma realidade histórica preexistente somada ao projeto de transposição e
voltou-se para uma tentativa de mudança de consciência em níveis social, político,
religioso e ambiental. Tal fato desagradou à diretoria da CNBB – NE III que, em nota
sobre o jejum de dom Cappio, expôs sua posição:
Ao tomar o conhecimento da retomada de “jejum e oração” pelo Dom Frei Luiz Cappio, bispo da Barra (BA), contra o “Projeto de Transposição do Rio São Francisco”, a CNBB NE III – Bahia e Sergipe – reafirma a posição já manifestada em público mais uma vez. Apoiamos iniciativas que visam a revitalização do rio São Francisco. Incentivamos a busca de soluções para o abastecimento de águas de boa qualidade, necessária para a vida humana, dos animais e plantas. Esclarecemos que o seu gesto de “jejum e oração” é iniciativa e opção pessoal, não necessariamente refletindo o pensamento da CNBB NE III (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL NORDESTE III, 2008, p. 49).
Enfim, dom Cappio não agiu em função da instituição, mas sim de um
julgamento que considerou sagrado, por isso seu ato foi inovador e tendenciosamente
revolucionário, pois atacou uma predominante visão religiosa tradicional sobre o meio
89
ambiente e se chocou com o Estado. Além disto, convocou multidões de seguidores
embebidos pela vontade de contestar e transformar uma realidade. Devido ao seu caráter
provocante e às suas convicções, se mostrou um protagonista em constante tensão com
a questão ambiental posta em sua sociedade. Dom Cappio veio para romper com o que
já estava estabelecido pelo Estado, aspirando a uma nova proposta, direcionada para
uma política ambiental com base em projetos alternativos de revitalização do rio São
Francisco.
Em resposta a esse gesto, surgiram várias reações oriundas de dentro da Igreja.
Segue trecho da nota-carta do presidente do Comitê Paraibano pela Integração das
Bacias Hidrográficas do Rio São Francisco e arcebispo metropolitano da Paraíba, dom
Aldo Pagotto, de 28 de novembro de 2007, endereçada a dom Cappio.
Caro irmão Dom Luiz Flávio Cappio: Deus o ilumine e o proteja. Nossa vida a Deus pertence. Não temos o direito de tirá-la a qualquer título. O comportamento cristão leva-nos à coerência irreformável na defesa e promoção da vida. Por ocasião de sua primeira greve de fome, a Santa Sé lhe pediu, em carta que lhe foi entregue em mãos pelo Núncio Apostólico no Brasil, que desistisse dessa conduta. Diante da dádiva da vida, peço que você reveja a sua posição quanto à revitalização e à integração das Bacias Hidrográficas do Rio São Francisco, contempladas em uma obra que beneficia a doze milhões de nordestinos dos estados da Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco. O planejamento técnico-científico e a gestão administrativa e econômica da obra são de competência governamental através dos órgãos específicos. Não compete a nós bispos da Igreja intervir nesse mérito. Contudo, nós bispos e o povo da Paraíba e dos demais estados pleiteantes apoiamos a obra que favorece o desenvolvimento de nossas regiões do semiárido, assoladas pelas estiagens inclementes. Quem tem sede apoia a obra! Peço que o caro irmão escute a voz do Espírito do Senhor que fala pelo clamor do povo sedento de água, de amor, de justiça e de paz. (PAGOTTO, 2007).
De acordo com Weber (1991), o profeta não obedece à instituição; ao contrário,
ele a questiona, se guia pelo sonho do futuro e segue apenas o desígnio divino. Sua
missão é libertar seu povo oprimido e lembrá-lo de sua aliança com Deus. Na condição
de enviado, indica rumos a um povo sem direção e que se esqueceu de seu autêntico
passado. Ademais, é ele quem capta a situação ou realidade de um determinado tempo e
um dado lugar e ali aplica a revelação que teve no intuito de conduzir seus fiéis por um
novo caminho. Sua profecia está vinculada a uma ação concreta, por isso o profeta é
aquele que não apenas discursa, mas também atua numa realidade.
Independentemente da posição de dom Aldo Pagotto, dom Cappio continuou seu
jejum e deu um retorno ao arcebispo, em 30 de novembro de 2007, através de uma
carta. Cabe aqui extrair os principais tópicos tratados.
90
1- Concordo que nossa vida a Deus pertence e não temos o direito de tirá-la. Exatamente porque a minha não me pertence e sim a Deus, pois a Ele já a entreguei há muito tempo, é que a ofereço pela vida de muitos. Não a estou tirando, apenas jejuo e rezo, como é da tradição bíblica e cristã, por tempo indeterminado, disposto a ir até o fim. Primeiro, direcionado a Deus, Senhor da Vida e da História, como sacrifício, para que Ele se compadeça de nós e mude o coração de homens cegados pelo poder e pelo dinheiro. Segundo, direcionado aos governantes deste país, como legítima forma de ação de um cidadão, esgotadas e infrutíferas todas as tentativas anteriores de amplos setores da sociedade fazerem-se ouvir e respeitar. É um gesto pessoal, mas de significado coletivo. 2- Se conhece a minha vida, sabe que meu comportamento atual não é nada mais que coerência irreformável com toda a minha trajetória de franciscano, padre e bispo a serviço da defesa e promoção da vida. Isso quis expressar em meu lema de bispo “Para que todos tenham vida” (Jo 10, 10). 3- A Santa Sé, através do Núncio Apostólico, de fato me “pediu” que não lançasse mão do recurso da greve de fome. Tratou-se de apenas um “pedido”. Quanto à expressão “greve de fome”, usei-a da outra vez porque mais conhecida e por seu significado político. Desta vez, prefiro que seja “jejum e oração permanentes”. 4- Quanto ao projeto de transposição, o Sr. e outras lideranças esclarecidas que o defendem deveriam contar ao povo toda a verdade sobre esse projeto, suas reais finalidades, custos, mecanismos de cobrança pela água, traçados distantes dos sertões mais secos, interesses mercantis, etc, etc. Esse projeto não é solução, será mais problema. Continuar, a essa altura, insistindo no velho “discurso da seca”, pregando um “populismo hídrico”, a serviço da antiga “indústria da seca”, agora moderno “hidronegócio”, é um desserviço ao povo e uma perversão de nossa missão de pastores. O mérito aqui em questão não é técnico, é pastoral, pois “ovelhas” em risco cobram a solicitude do Bom Pastor. Foi assim que os bispos nordestinos, há quase 60 anos, com competência pastoral e apoio técnico, provocaram a criação da SUDENE. 5- O projeto de transposição não vai trazer verdadeiro desenvolvimento. A propaganda da irrigação no próprio Vale do São Francisco esconde a face dos danos sociais e ambientais e mesmo os sucessos econômicos são relativos, não é modelo a se propagar, precisa ser revisto urgentemente. Por que não fazem o mesmo empenho pelas 530 obras do Atlas Nordeste da ANA – Agência Nacional de Águas e pelas mais de 140 tecnologias da ASA e da EMBRAPA? Essas, sim, são soluções reais e bem mais baratas, resolvem o déficit humano de água nas cidades e promovem o desenvolvimento apropriado às diversidades rurais do semiárido, sem ônus ao já tão sofrido povo nordestino e ao meio ambiente. 6- A voz do Espírito do Senhor sopra aonde quer (cf. Jo 3, 8) e no clamor do povo ele exige que sejamos “simples como as pombas e espertos como as serpentes” (Mt 10, 16) (CAPPIO, 2008n., p. 125-126).
Por fim, a organização de movimentos sociais contrários ao projeto de
transposição desembocou em divergências no meio eclesiástico e afronta ao Vaticano,
tornando-se necessária a implantação de medidas que pusessem um término ao jejum do
bispo. Através de admoestações feitas a ele, o Vaticano procurou assegurar a ordem
eclesiástica; paralelo a isto, contribuiu para que o projeto de transposição seguisse em
frente e as tensões fossem eliminadas – ou pelo menos suavizadas. Dom Cappio
cumpriu uma função profética dentro da própria igreja causando embaraço e mostrando
sua radicalidade em prol de uma causa social e ambiental.
91
4.3 Religião e Meio Ambiente: uma Experiência no São Francisco
A globalização é marcada por valores políticos, culturais e religiosos que
buscam homogeneizar as sociedades, mas que paradoxalmente fragmentam povos,
sociedades, tribos e movimentos. Por isso, ela gera conflitos que envolvem política,
cultura, religião, economia e meio ambiente. De acordo com Octavio Ianni (2001, p.
22), “muitos passam a reconhecer que o céu e a terra, a água e o ar, a fauna e a flora, os
recursos minerais e a camada de ozônio, tudo isso diz respeito a todos, aos que sabem e
aos que não sabem, nos quatro cantos do mundo”.
São muitos os grupos, classes, movimentos sociais, partidos políticos e correntes
de opinião que são levados a perceber algo de novo no cenário mundial: que a terra é
uma morada comum. Nesse cenário, a religião dá uma contribuição significativa na
construção de uma ética voltada para a vida. “Essa nova ética socioambiental só se
implementa se surgir mais e mais uma nova consciência planetária, a consciência da
responsabilidade para com o destino comum de todos os seres” (BOFF, 2000, p. 63).
Esse cenário favorece a criação e recriação de várias formas de percepção do
mundo, pontos de vista, atitudes individuais e coletivas que emergem de forma solta e
ainda pouco estruturada em várias partes do globo58. No meio ambiente, as novas
atitudes humanas com seus diferentes olhares podem ser comparadas a pontas de
icebergs que remetem a algo maior e indicam novas concepções de mundo que, aos
poucos, se apresentam como saída para os problemas que assolam o planeta.
A perspectiva ambiental no mundo contemporâneo compele lideranças políticas,
religiosas, sociais e os próprios movimentos populares a se organizarem através de
associações, uniões, coalizões, e agirem através de práticas concretas de mobilização.
No campo religioso, variadas formas de comportamento e pensamento estão surgindo e
ameaçando antigos valores, revelando ser esse um período de incertezas, dilemas e
perspectivas. Faustino Teixeira confirma, em seu artigo, a retomada da dimensão
espiritual enquanto transformação cultural significativa no século XXI:
Trata-se da viva consciência de que o ser humano não é somente parte do universo material, mas igualmente espírito que se integra ao Todo, como ente “ re-ligado a todas as coisas” e que lança interrogações fundamentais sobre o sentido da história e do destino humano. (TEIXEIRA, 2009, p. 211, grifos do autor).
58 Para uma abordagem dos movimentos em defesa do meio ambiente e do cenário brasileiro, ressaltamos
o trabalho de Eduardo Viola “O movimento ecológico no Brasil (1974-1986): do ambientalismo à ecopolítica” (1987).
92
Diante de tais considerações, testemunhamos diferentes modos de elaboração do
religioso presentes nas instituições, nos grupos e movimentos sociais, nas identidades
individuais e coletivas. Diante do desafio de conservar o planeta, a religião – não
necessariamente a institucional – se torna uma importante ferramenta formadora de
opiniões e de atitudes. Exerce influência em diversas culturas locais, contribui para a
reelaboração das diversas maneiras de perceber o mundo, inspira a ressignificação da
identidade cultural de cada ser humano e o condiciona a diversas atitudes; por isso, ela
ocupa um significativo papel na sociedade.
A polêmica criada em torno da transposição das águas do rio São Francisco tem
correlação com uma situação maior: a proteção do meio ambiente e a necessidade de
uma outra relação com a natureza. A atitude de dom Cappio pode ser entendida como
uma nova proposta de convivência dentro de uma dinâmica ecoespiritual que envolve
abertura e respeito à natureza.
Garantir a integridade do rio São Francisco é uma necessidade específica
vinculada a uma situação global: a emergência de uma consciência ambiental. O
acelerado processo de apropriação autodestrutiva dos recursos naturais gera
contraditoriamente uma consciência que termina repercutindo na vida social, cultural e
política de diversas sociedades. O discurso de dom Cappio não só esteve ligado à
realidade do povo do sertão, como alertou para a situação ecológica em nível mundial.
Ele incitou debates sobre a sustentabilidade ambiental, os limites do crescimento
econômico, a justiça social e o papel da Igreja na preservação do meio ambiente.
Em nota, os movimentos sociais ressaltaram o significado de sua atitude:
Ao tema do São Francisco e do Semiárido virão se somar os outros grandes temas atuais do país, dos transgênicos às hidrelétricas do rio Madeira, da internacionalização da nossa agricultura às transposições do rio Tocantins, da entrega de nossas águas e florestas aos agrocombustíveis. E a luz lançada sobre esta conjuntura nacional mais cedo ou mais tarde fará despertar as organizações e movimentos sociais acomodados ou atrelados, para um novo ascenso das forças populares, na direção da soberania nacional e do ecossocialismo. (MOVIMENTO DOS PEQUENOS AGRICULTORES et al., 2008, p. 213)59.
59 Além do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), outras entidades assinaram o documento, são
elas: Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Simpósio Nacional de Tecnologia em Agronegócio (Sintagro), Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (Feab), Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa).
93
O rio São Francisco teve um papel único na história do Brasil, pois foi fonte de
vida e de riqueza desde o início da colonização até os dias atuais. Suas águas
possibilitaram não somente a confluência de inúmeros povos como também o múltiplo
uso do seu potencial hídrico: para abastecimento humano, agricultura irrigada, geração
de energia, navegação, piscicultura, lazer e turismo.
A partir da segunda metade do século XX, profundas mudanças ocorreram no
cenário ambiental brasileiro, e o rio São Francisco se tornou ponto de construção de
várias represas e usinas (COELHO, 2005). Somam-se a isto diversos problemas tanto de
ordem social quanto econômica que vêm afetando o rio, como o desmatamento de suas
várzeas, a poluição, a pesca predatória, as queimadas, o garimpo. São inúmeras
reportagens e declarações denunciando que o “o rio está morrendo” e fotografias a
mostrar pessoas atravessando de um lado ao outro do rio a pé. De acordo com Marco
Antônio T. Coelho (2005, p. 108), presencia-se um processo de “diminuição das águas
em nascentes, córregos, riachos, lagoas e até em afluentes de determinado porte na
região do semiárido”.
Após centenas de anos de ocupação, o São Francisco é, ainda hoje, o principal
recurso natural que impulsiona o desenvolvimento regional, gerando energia elétrica
para abastecer todo o Nordeste brasileiro e parte de Minas Gerais, através das
hidrelétricas de Paulo Afonso, Itaparica, Sobradinho e Três Marias, realidade que tem
um preço alto e negativo para a população. A construção de barragens e grandes
represas60 levou à expulsão de muitas pessoas de seus vilarejos, além da matança de
peixes que garantiam não só sustento daqueles que viviam na região, como a renda de
pescadores profissionais.
O Nordeste é uma área historicamente carente e pobre, realidade que tem raízes
nos fatores naturais, climáticos, sociais, políticos e econômicos. Parte considerável da
população que habita a bacia são-franciscana sofre algum tipo de déficit em recursos
hídricos. Conforme o estudo de Villa (2000), foram apresentados vários planos que
pudessem solucionar o problema da seca no sertão. Em 1831, quando o Brasil estava
sob o governo da regência trina, foi concedida permissão para a abertura de poços
artesianos. Por volta de 1847, foi concebido um plano que se pautava pela construção de
60 Cabe destacar a represa de Sobradinho, considerada o maior lago artificial do mundo. Ela ocupa um
território três vezes maior do que o município de São Paulo. Ela está localizada nas cidades de Casa Nova, Remanso, Pilão Arcado, Barra, Sento Sé, Juazeiro e Xique-Xique. Os atingidos pela construção da represa foram Casa Nova, Remanso, Pilão Arcado e Sento Sé, os quais foram inundados, além de outros povoados (COELHO, 2005).
94
túneis para desviar parte do rio para o Norte, em direção ao Ceará, e para o Leste, rumo
à Paraíba e ao Rio Grande do Norte.
Entre os anos de 1876 e 1879, quando houve uma grande seca, resultando na
morte de meio milhão de nordestinos, o imperador dom Pedro II ficou chocado com o
fato e chegou a afirmar que “venderia até as joias da Coroa a fim de ajudar os sertanejos
que sofriam com a seca” (COELHO, 2005, p. 174).
Nessa inundação de propostas, destacamos o trabalho de Geraldo Rocha
(2004)61, que, através da sua obra “O rio São Francisco: fator precípuo da existência do
Brasil”, realizou um estudo sobre as possíveis soluções para o atraso da região através
de empreendimentos voltados para a construção de represas, ferrovias. Conforme
COELHO (2005), a questão da pobreza na região semiárida brasileira não está
vinculada unicamente à disponibilidade de recursos hídricos, mas a um estado de
pobreza presente em povoados situados tanto nas regiões semidesérticas como nas
margens do próprio São Francisco, o que revela uma situação social que vai além da
escassez de água.
Desde 2005, o São Francisco vem se tornando o centro de acalorados debates em
função do projeto de transposição de suas águas, que, na visão do governo federal, se
apresenta como “a redenção da grande região do semiárido nordestino dos estados de
PE, PB, RN e CE”62.
O projeto de transposição do São Francisco remete a discussões em torno de
todo um ecossistema, envolvendo sustentabilidade e políticas ambientais que busquem
novos caminhos na defesa da ecologia e da vida no planeta. Coloca em evidência o
problema da diversidade dos nichos ecológicos, das formas sociais de vida e trabalho,
da singularidade das culturas, dos conhecimentos acumulados por tribos e povos sobre o
seu meio ambiente e a relação com a natureza local.
Em tal contexto, a linguagem religiosa de dom Cappio possibilita captar o
vínculo entre religião, política e natureza, e o avançar de um discurso direcionado para
um novo exercício ético. Trata-se da criação e emancipação de novos sentidos para a
vida humana a partir de uma realidade já colocada sobre a mesa, cujo impulso pode
61 Geraldo Rocha procurou estudar os aspectos naturais, sociais e culturais do vale do São Francisco.
Trouxe para o Brasil muitos técnicos e especialistas para analisarem o potencial do rio, objetivando a utilização de suas potencialidades e o desenvolvimento não só regional, mas nacional. Suas análises serviram de apoio para avanços técnicos na região.
62Este trecho é parte de uma síntese elaborada pelo prof. de Hidrologia e Irrigação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), dr. João Abner Guimarães Jr. Trata-se do relatório final de duas comissões da UFRN que estudaram o projeto de transposição das águas do rio São Francisco.
95
emergir de inúmeras formas – no caso da transposição, surgiu de um gesto extremo que
assinalou a necessidade de uma nova relação entre ser humano, religião e natureza.
O custo social da destruição ecológica e da degradação ambiental gerada pela maximização do lucro e dos excedentes econômicos a curto prazo deram pois impulso à emergência de novos atores sociais mobilizados por valores, direitos e demandas que orientam a construção de uma racionalidade ambiental. (LEFF, 2005, p. 96).
Dos conflitos que provêm do desenvolvimento técnico e econômico da
sociedade capitalista, nascem movimentos sociais, lideranças ambientalistas e
ecologistas que dinamizam e transformam suas formas de exercício e luta pela natureza.
Portanto, a problemática ambiental é percebida de forma heterogênea e abrange um
amplo campo de concepções e estratégias de solução. Conforme Leff (2005), qualquer
manifestação de cunho ambiental está atrelada a um contexto cultural, político, social e
econômico.
O discurso de dom Cappio buscou, além da participação dos movimentos sociais
e de toda a sociedade, apresentar uma inédita relação entre ser humano e meio ambiente,
numa proposta ambiental e social, utilizando-se de uma linguagem religiosa:
O que precisamos, não só no Nordeste, é construir uma nova mentalidade a respeito da água, combater o desperdício, valorizar cada gota disponível, para que ela não falte à reprodução da vida, não só a humana. Precisamos repensar o que estamos fazendo dos bens da terra, repensar os rumos do Brasil e do mundo. Ou estaremos condenados à destruição de nossa casa e à nossa própria extinção, contra o Projeto de Deus (CAPPIO, 2008c, p. 51).
A polêmica da transposição favorece, tanto em nível individual quanto
coletivo, a elaboração e reelaboração de várias formas de perceber o mundo e agir nele,
fazendo-as se convergir para a defesa do meio ambiente. A bacia do São Francisco
resguarda uma tessitura de símbolos, mitos e rituais que expressa uma relação com a
vida que se dá para além dos marcos da racionalidade instrumental. Em momentos de
crise, a tradição cultural de um povo funciona como uma fonte a partir da qual uma
sabedoria de vida pode jorrar. Os elos entre o social, o ecológico e o espiritual vistos na
prática de dom Cappio passam pelo enraizamento e diálogo com esta tradição.
A questão da transposição vem demonstrar que os territórios são ambientes
nos quais se desenvolvem conflitos e processos que dão sentido social, econômico,
político e cultural à história humana. Ela chama a atenção para o papel do Estado no
planejamento econômico e social do território. Aponta para uma nova realidade
96
universal em que a questão ambiental integrou-se aos discursos políticos e religiosos.
Diversas tradições religiosas se norteiam para uma mudança de consciência e
aprofundamento na relação entre Deus, ser humano e natureza, concretizando-se em
documentos, organizações, manifestações e publicações (Boff, 2009). De acordo com
Matos (2008), muitos órgãos financeiros mudam suas orientações, priorizando
avaliações ambientais frente aos objetivos e seus impactos.
O gesto de dom Cappio estimulou o sentimento de respeito à singularidade
cultural e de pertencimento ao território. “Esse espaço-território-meio ambiente
funciona como um lócus de convergência de saberes e de vivências, experiências,
contradições, conflitos e possibilidades” (GUERRA; PASSOS, 2009, p. 49). Muitas
pessoas passam a reconhecer que todos os elementos que compõem seu espaço dizem
respeito a todos e por isso apoiam os movimentos sociais para proteger nichos
ecológicos, reivindicam medidas de proteção à fauna e à flora, estimulam publicações,
cursos e palestras que envolvam o tema ecologia. No mundo globalizado, o meio
ambiente ganha um novo contorno: o religioso.
Como ‘imagem de Deus’, a relação se inverte, o ser humano é o representante e administrador do Criador junto às demais criaturas, o cultivador do jardim em parceria com os céus, com as potências celestes que vêm de Deus, que trazem a palavra e o espírito à terra. A vocação e a responsabilidade humanas portam a marca do divino sobre a Terra. Por isso as criaturas deveriam sentir-se aconchegadas à sombra do ser humano, protegidas e cultivadas, aproximadas ao próprio Criador, exatamente o oposto da inquietação, do medo e do terror. (SUSIN, 2003, p. 102).
Percebe-se que paira no ar uma nova forma religiosa de relacionamento do
humano com a natureza, pois surge a necessidade de uma responsabilidade voltada para
o cuidado com a Terra; postulam-se novas atitudes, que desafiam a religião a trabalhar
rumo a outra ordem de convivência inspirada no novo paradigma63 ecológico
(OLIVEIRA, 2008, p. 63-87).
O comportamento religioso de dom Cappio se volta para uma finalidade clara
e objetiva: salvar o rio São Francisco e seu povo. Na condição de bispo da Igreja
Católica, assume uma causa que estimula uma espiritualidade ecológica e a produção de
inúmeras reflexões voltadas para a ressignificação das concepções do desenvolvimento
63Para Thomas Kuhn, em sua obra “A estrutura das revoluções científicas” (2003), o paradigma pode ser
compreendido como uma concepção de mundo, numa determinada época, fundamental para o estudo científico da vida na sociedade. Pode ser também, dentre os vários olhares, aquele que servirá de base para uma ciência.
97
a qualquer custo. A polêmica da transposição gerou laços de diálogo que contribuíram
para a configuração de uma nova percepção social que se refletiu no campo dos
conhecimentos político e religioso.
Para o profeta, os acontecimentos sociais e a realidade global possuem um
determinado sentido, pelo qual os homens devem se guiar e então assumir uma nova
postura. Quando sua profecia é aceita, ele arregimenta discípulos com seu carisma
pessoal; por sua vez, o apoio recebido desses discípulos ajuda-o em sua missão. Essas
considerações nos remetem a um trecho do texto de frei Gilvander Moreira que trata da
retomada do jejum por dom Cappio.
Agora, Dom Cappio retoma uma modalidade de luta assentada sobre a fina flor da tradição cristã: jejum e oração. Resgata no coração de muitos militantes uma espiritualidade nova. Jejuar e orar continuam sendo expressão da resistência contra os faraós de hoje (MOREIRA, 2008a, p. 131).
O profeta surge em momentos de crise e convulsão social, denunciando a
injustiça, a exploração e a autodestruição de seu povo. Neste sentido, ele alfineta os
líderes que deturpam a política e que usufruem do poder em benefício próprio. Como
figura profética, dom Cappio foi a referência ética de um povo que estava desorientado,
que era explorado, mas não sabia como reagir à opressão. Ele ilustra com seu discurso o
atual cenário de crise, conflito, desordem ou catástrofe e assume o desafio de ousar e
abraçar as causas sociais de uma determinada realidade.
O rio São Francisco sempre abrigou às suas margens distintas nações indígenas e
populações diversas, principalmente pequenos lavradores e pescadores. Sua bacia é o
lugar onde cada habitante se insere, desenvolve forte identidade religiosa e ainda é lugar
para as manifestações simbólicas. Porém, se o espaço da bacia são-franciscana favorece
o exercício de uma eco-espiritualidade, por outro lado isso ocorre também em função da
presença de um profissional religioso especializado. Dom Cappio, assim como outros
agentes religiosos – chefes indígenas, sacerdotes, pastores e demais lideranças –
organiza a vida religiosa e possibilita a transmissão e a permanência de uma tradição
religiosa ligada à natureza.
A história ambiental mostra que, em relação à natureza, não existem somente interesses, mas também valores, e estes são decisivos. Ela ensina que, em qualquer sociedade, a natureza é fonte de valores e representações intricados, complexos, contraditórios, que nutrem as artes, as religiões, os mitos, os saberes. A natureza é uma construção cultural, concretizada nas concepções de mundo. É também marco da memória e indicador de pertença. (MARTINS, 2008, p. 75).
98
Com dom Cappio, o rio São Francisco ganha – ou tem reforçada – uma
dimensão sagrada que influencia movimentos e povos a engajarem-se na defesa
socioambiental de toda a bacia são-franciscana. Neste sentido, não importam o jejum e a
oração em si, mas a destinação desses atos para fins políticos. Com ele vieram vários
movimentos, grupos, tribos, técnicos, artistas, políticos, líderes religiosos e a população
em geral, que se sensibilizaram com a causa do bispo. Assim, sua atividade religiosa
assumiu um novo contorno: o político. Sua posição não somente foi a de um bispo que
pastoreia o seu povo, mas também a de quem se preocupa com o meio ambiente e,
através da postura religiosa, realiza uma denúncia política. Sua postura envolveu a
dimensão ecoespiritual da vida que refletiu na Igreja, na política e no meio ambiente.
Em seu artigo “Por que faço jejum em Sobradinho?”, tal denúncia política e
ambiental é posta em relevo, confirmando a ideia acima de que o ato religioso de dom
Cappio tem tanto um objetivo político como um de conservação ambiental.
A raiz destes males está num modelo dito de “desenvolvimento”, que nada mais é que a acumulação ilimitada de capital. Estes devastadores usos irrestritos, indisciplinados e conflitantes das terras, águas e gentes do Velho Chico, voltados exclusivamente para o lucro, decretam sua morte, que se aproxima a olhos vistos. Vê-se na acelerada devastação dos Cerrados do Oeste Baiano, produtor de suas derradeiras águas, e na transformação das Caatingas em carvão, assoreando afluentes e a calha principal. A sanha pelos agrocombustíveis a partir de cana-de-açúcar, soja e eucalipto é a mais recente ameaça, talvez fatal. (CAPPIO, 2008k, p. 97).
A polêmica em torno da transposição do rio São Francisco espelha um momento
na história em que o meio ambiente é o centro das atenções e o ser humano é parte da
natureza; ademais, começa a surgir a noção da necessidade de se cuidar da Terra não
por causa de sua utilidade, mas, sim, pelo reconhecimento de seu valor próprio.
Historicamente, a Igreja apresentou uma concepção de mundo na qual o ser
humano sempre permaneceu no centro das relações e do entendimento da vida;
portanto, toda a natureza ficou submetida a uma lógica utilitarista e avaliada de acordo
com os critérios econômicos da ordem vigente. Assim, a Igreja, no seu caminhar,
desconsiderou a vida de muitos seres bióticos a abióticos ao levar em conta apenas o
humano como o centro de todas as coisas. Sob um prisma antropocêntrico, a natureza
não teve um valor em si: foi transformada em mero recurso natural.
99
Essas considerações são abordadas nos estudos de Lyn White Jr. (1967)64, cuja
análise sobre o cenário ambiental destaca o tempo cíclico e sagrado da natureza e
sustenta que os lugares, os animais, as plantas, as águas têm seus espíritos. Para ele, a
atual crise tem como pano de fundo o religioso, e a solução deste caos passaria pela
religião.
Nosso comportamento ecológico depende de nossas ideias da relação homem-natureza. Nem mais ciência e nem mais tecnologia vão nos livrar da atual crise ecológica até que encontremos uma nova religião, ou reconsideremos nossos antigos valores religiosos (WHITE JR. 2010, p. 39).65
O episódio da resistência ao projeto da transposição influenciou
significativamente alguns movimentos sociais, que se mostraram interessados em
incorporar a dimensão ambiental ao campo de suas atuações sociais, políticas e
econômicas. Atentos à crise ambiental que assola o planeta, agregaram valores ligados à
religião e ao meio ambiente a partir de um fato regional. O gesto de dom Cappio e a
questão ambiental abriram, guardadas as proporções, um processo de ressignificação da
realidade atual não somente no Brasil, mas no mundo.
O gesto de dom Luiz Flávio revelou a universalidade de sua causa que é o pressuposto para alianças duradouras. Desencadeou um encontro em massa entre peregrinos místicos e militantes em marcha, entre indígenas e pobres que vivem ao longo do rio, entre brasileiros do norte ao sul e internacionalistas de todos os países. (SUESS, 2008, p. 95).
A greve de fome reuniu diversos movimentos, que passaram a refletir sobre o
planeta. Possibilitou ainda uma visão da bacia são-franciscana como a casa de várias
gentes – muitos passaram a perceber que as diferentes formas de vida desse povo são
igualmente importantes e que a água, a terra, o ar são partes essenciais da vida. A
perspectiva ambiental do rio São Francisco oferece um enfoque global e integrador
sobre a realidade social. Dom Cappio abriu caminhos para a atuação de movimentos
ambientalistas que primam por projetos voltados para a heterogeneidade não só de
culturas, mas de tipos de desenvolvimento. Se preocupou com o rio e também com o
64 Lynn White Jr. (1907-1987) foi professor de história medieval reconhecido internacionalmente.
Desenvolveu Trabalhos significativos nas universidades de Princeton, Stanford e Califórnia. Fundou o Centro de Estudos Medievais e Renascentistas da Universidade da Califórnia e Los Angeles.
65 Este artigo foi originalmente publicado com o título “The Historical Roots of Our Ecological Crisis”, publicado na revista Science, em 1967.
100
seu povo, que, segundo ele, sofrerá em breve devido a uma catástrofe ambiental. Por
isso sua atitude suscitou a ideia do respeito à vida em todas as formas que se possam
apresentar mostrando-se conciliador e integrador. A partir de uma situação particular, a
conscientização vai cavando soluções para os desafios que o desenvolvimento
econômico mundial apresenta, com novas alternativas baseadas no potencial ambiental
das diferentes regiões e comunidades.
Visto sob este ângulo, o gesto de Dom Cappio passa a ter uma dimensão profética. Seu sacrifício foi um alerta a todos nós e, especialmente, a uma parcela da nossa Igreja, que se refugia na piedade individual e na observância de ritos para não enfrentar o escândalo que é a passividade diante da maneira desumana com que o País trata os pobres (SAMPAIO, 2008, p. 125).
Logo, a organização para preservar o rio São Francisco assumiu o desafio de
questionar até que ponto o cristianismo não foi usado pela ideologia capitalista para
justificar a expansão dos grandes empreendimentos, às custas da exploração da
natureza. Assim como também assumiu o desafio de repensar o papel da Igreja no
contexto ambiental, lançando por terra certas interpretações e dando sentido aos novos
gestos religiosos voltados para a proteção da natureza.
101
5 CONCLUSÃO
Calcular o êxito ou o fracasso do jejum e da mobilização em torno do projeto de
transposição numa perspectiva sociológica não é fácil, contudo é possível fazer algumas
análises a partir deste estudo. Primeiramente podemos dizer que houve um sucesso
relativo, já que o primeiro jejum, em 2005, conseguiu paralisar as obras e possibilitou
uma discussão sobre alternativas para a bacia são-franciscana. Mais ainda: logrou
mudanças significativas no campo religioso, pois essa inovação religiosa suscitou
discussões teológicas, trouxe modificação na conduta de um significativo setor da Igreja
e despertou parte do clero não só para a questão ambiental, como para as
transformações de consciência sobre temas que envolvem os aspectos sociais e
ambientais.
O gesto de jejum e oração de dom Cappio foi uma ameaça à hierarquia católica,
haja vista que alcançou uma dimensão profética que se chocou com sua função de
sacerdote; adentrou o campo político-social através da organização de movimentos
populares; fez repensar o papel da Igreja arrebanhando parte do clero e pastorais; e
provocou diversas reações que ecoaram no mundo inteiro.
A mobilização em torno do gesto de dom Luiz Flávio Cappio contra o projeto de
transposição das águas do rio São Francisco esteve ligada a uma realidade tão social
quanto ambiental presente há séculos na história do Brasil, assim como também a um
momento na contemporaneidade marcado por uma crise ambiental em todo o planeta.
Esse fato social veio mostrar que a religião não é autônoma ou independente em relação
às transformações sociais e ambientais e nem totalmente determinada por essas mesmas
situações de conflito e transformações no mundo. A polêmica da transposição revela
que a função da religião é variável, podendo desempenhar funções contraditórias,
conservadoras e conflitantes. Todavia ela é condicionada pelos conflitos e
transformações no meio social e, ao mesmo tempo, atua com uma relativa autonomia
sobre essas mudanças, garantindo ora a mudança, ora a manutenção de seu tradicional
discurso religioso.
102
A problemática ambiental fica evidente no mundo contemporâneo desvelando
uma crise de civilização66 que implica diversos valores de ordem tanto cultural, quanto
filosófica ou política (GONÇALVES, 2004). Neste contexto, a transposição das águas
do rio São Francisco expõe a função social desempenhada pela religião através de um
protagonista carismático que correspondeu à conjuntura social e ambiental das
comunidades ribeirinhas e que se colocou como mediador entre o povo e o Estado.
Com a polêmica da transposição, confirmamos que a religião é uma realidade
comunicante, e não um compartimento estanque e isolado. Ela termina repercutindo na
sociedade, porque obra conforme os meios que um determinado contexto social lhe
oferece. Nas palavras de Maduro (1981, p. 72), “ela opera – em cada caso concreto –
com instrumentos socialmente acessíveis no contexto no qual ela existe.”
Todos que participaram dessa mobilização são indivíduos que, além de
compartilharem muitas crenças, também anelaram por transformações e buscaram de
forma direta e indireta soluções para os problemas sociais e ambientais da região do
semiárido. Comungaram do desejo de proteger o rio e propor soluções para o problema
da seca, tendo como inspiração uma forma específica de chamado para a organização
popular.
Dom Cappio orientou sua atividade religiosa no seio das classes subalternas,
portanto agiu conforme os interesses daqueles que foram excluídos do processo de
discussão, canalizando seu gesto para a conquista da participação política do povo
ribeirinho e para uma nova ética em relação ao meio ambiente.
Assim como em Canudos, presenciamos o desenvolvimento avançando e
esmagando a natureza com grande truculência e calando as vozes anônimas carentes de
uma representatividade que pudesse falar sobre seu meio natural e social, permitindo a
essa mesma gente situar-se e identificar-se neste espaço para nele atuar, garantir a
própria sobrevivência e a do rio São Francisco. Dom Cappio assomou como liderança
religiosa e social dessa realidade e possibilitou aos movimentos populares agirem nesse
meio natural e social, intercedeu pelos interesses da população ribeirinha.
Noutras palavras, dom Cappio inspirou a articulação entre vários movimentos,
pastorais, grupos, órgãos, personalidades e povos, e a consequente ação. Verificamos
que a necessidade de uma representatividade possibilitou a muitas pessoas atuar a partir
66 Segundo Leff (2006), a crise não se refere apenas às catástrofes ambientais causadas pela humanidade,
mas à perda do sentido da existência do ser devido ao conhecimento humano usado para se apropriar dos recursos naturais.
103
de uma realidade específica. O interesse religioso somado à insatisfação social fez com
que esse bispo, na condição de porta-voz, colocasse em relevo uma visão religiosa,
social, ambiental e cultural do rio São Francisco, capaz de despertar uma mudança de
consciência.
Dom Cappio realizou um trabalho religioso que nasceu de sua experiência
coletiva com o povo do sertão. Somente com seu gesto foi possível desencadear
diversas mobilizações com fim político e que atendessem ao interesse social latente.
Assim, o bispo de Barra-BA encarnou em seu ato radical os elementos capazes de
inaugurar um processo de mudança simbólica que culminou em mobilizações contra o
projeto de transposição. Portanto seu trabalho religioso individual ganhou uma
dimensão coletiva que levou muitas pessoas a participar da elaboração de uma nova
relação com o rio São Francisco.
Além disso, se apoiou na história do povo do sertão, acumulada há vários
séculos por diversas gerações, somou a sua experiência e amarrou tudo isto num único
instrumento de trabalho religioso: o jejum. Assim, a finalidade a que sua missão se
destinou – quer conseguisse ou não um resultado – proporcionou uma função social: a
de preservar o rio São Francisco e salvar sua gente. Então, por mais que sua atitude
apresentasse um aspecto unicamente individual, tornou-se uma atividade com
repercussão coletiva. Dessa maneira, efetuou uma produção religiosa em sintonia com
uma específica realidade social. Enquanto bispo, ele conseguiu fazer convergir para
dentro da Igreja uma solicitação que veio de fora, de caráter ambiental e social, e
chamou vários religiosos a participarem desse protesto.
A ação de Dom Cappio voltou-se para as necessidades das classes
desfavorecidas. O respaldo concedido por muitas pessoas se deu em função de uma
procura que foi ao encontro de uma oferta específica, somada à realidade social do
semiárido. Todo apoio, organização e mobilização ocorreram porque o gesto de jejum
se adequava a uma procura preexistente, mas que se encontrava insatisfeita, sinalizando
para uma função social objetiva: permitir à sociedade atuar nas decisões que envolvem
o ambiente socionatural, com vistas a conservar ou transformar esse meio.
As solicitações sociais dos movimentos e da população ribeirinha foram
reconhecidas pela Igreja, no entanto a forma como o bispo agiu para reivindicar foi
condenada pelo Vaticano. À medida que a produção religiosa de dom Cappio ganhou
uma dimensão profética, gerou desacordos no seio da Igreja pelo fato de subverter a
104
hierarquia eclesiástica, desobedecer a Nunciatura Apostólica e agir radicalmente em
defesa de uma causa política, social e ambiental.
A Igreja Católica nesses episódios constituiu-se numa instância mediadora dos
impactos dessa atitude, obstaculizando o prosseguimento, no intuito de manter certa
ordem interna. Por outro lado verificamos o papel da CNBB, incomodada com a
radicalidade e a repercussão, procurando, através da comunicação junto ao governo,
propor soluções para a questão do rio São Francisco e a vida do bispo.
O Vaticano encarou com temor o aparecimento de um profeta, protagonista
religioso que buscou mudanças através de sua capacidade de organizar e mobilizar
pessoas ligadas à Igreja, aos movimentos sociais, pastorais, órgãos e setores culturais e
artísticos da sociedade que se manifestaram contra o poder exercido pela instância
política.
Todavia cabe salientar que a mobilização crescente por parte do clero e de
muitos leigos, em torno do gesto de dom Cappio, não objetivou uma revolta contra a
Igreja Católica, muito menos se guiou por um movimento questionador do modo de
produção religioso imperante no sertão e exercido pelo corpo sacerdotal instituído. O
que tivemos foi um bispo que usou o jejum para um fim ao mesmo tempo político,
social e ambiental, e, com isso, reuniu multidões, inspirou movimentos populares,
articulou em seu discurso todas as condições sociais e ambientais que possibilitaram o
surgimento de um grande movimento para proteção do rio São Francisco e da população
ribeirinha.
Dom Cappio representa uma parte do clero cuja origem, trajetória e posição se
inclinaram para as solicitações religiosas e sociais insatisfeitas dos grupos e povos
marginalizados e interessados em conquistar espaço e autonomia no processo de decisão
política no país. Com a conjuntura da transposição, surgiram as condições reais para sua
atuação e o consequente apoio aos movimentos de subversão à ordem política
estabelecida. Ele reuniu em seu gesto e em seu discurso um leque de procuras sociais,
políticas e ambientais de maneira tal que aqueles que se encontravam insatisfeitos com a
atual realidade se acharam representados e depositaram sua fé nessa formulação
profética, a ponto de empreenderem esforços em torno de seu ato radical de “doar a vida
para salvar o rio e seu povo”.
O jejum foi uma espécie de alerta à sociedade e à Igreja sobre a violência social
e ambiental que estava sendo cometida no sertão nordestino. Dom Cappio atuou sobre
uma realidade histórica já estruturada em sua linguagem, em seu modo de expressar sua
105
fé, seus costumes e cultura. Tudo isso serviu de alicerce e orientação para a atuação do
bispo e possibilitou a organização e a ação dos povos no seio dessa mesma estrutura
social. Além disso, correspondeu ao interesse mostrado por todos os grupos populares
em conseguir participação no processo de discussão da transposição perante o Estado, o
que traduziu também uma mudança simbólica através da construção de novos valores
na relação entre o ser humano e a natureza.
Seu trabalho religioso consistiu em situar e nortear as classes subalternas em seu
meio socionatural de maneira que pudessem desempenhar uma função mobilizadora e
autônoma em relação ao Estado. A influência religiosa de dom Cappio na estratégia de
suspender a transposição voltou-se também para a incorporação de novos valores,
fundamentais na instauração de políticas ambientais. Então, com a polêmica, podemos
dizer que a religião pode funcionar como uma espécie de mediadora entre uma gente
excluída da participação política e o pleno exercício da cidadania – um canal para passar
de um grau de consciência para outro superior.
Ao utilizarmos a categoria do profeta para compreendermos a questão da
transposição, procuramos destacar as condições sociais e religiosas que permitiram sua
emersão e o cenário de crise ambiental que possibilitou uma visão religiosa sobre a
natureza, por parte desse protagonista. Enquanto produtor de inovações, dom Cappio,
através de seu gesto e seu discurso, conseguiu organizar multidões, dando um novo
sentido ao papel da religião nas questões que envolvem política e meio ambiente. Não
buscou um rompimento com a Igreja Católica, entretanto procurou adaptar a realidade
social e ambiental a um novo sentido, que interligou natureza e religião. Esta inovação,
mesmo não gerando uma ruptura com a instituição, contrariou a ordem religiosa,
principalmente pelo fato de tal estratégia ter ganhado uma dimensão subversiva em
relação à hierarquia católica.
Tendo como referência os estudos de Bourdieu (2005), podemos afirmar que
dom Cappio foi uma personalidade carismática que teve a capacidade de unir um
“significante” a um “significado”, arquitetando um novo sentido simbólico apto a gerar
a mobilização de inúmeras pessoas, desde comunidades a movimentos sociais, políticos,
artistas e intelectuais, e, que, por sua vez, foram portadores de significado. Nesta
perspectiva sociológica sobre o profeta, dom Cappio teve habilidade de produzir algo de
novo no momento em que ligou a religião à questão ambiental, exprimiu um conjunto
de solicitações sociais e ambientais até dado momento latentes e mobilizou em torno de
106
si uma massa de pessoas, tanto leigos como religiosos, que se articularam para impedir
a implantação do projeto de transposição das águas do rio São Francisco.
Quando remarcamos que dom Cappio concretizou uma inovação religiosa,
atentamos para a forma como isto ocorreu: através do jejum. Diante disso,
compreendemos que a força social e política de sua ação esteve alicerçada nos seguintes
aspectos: em primeiro, na credibilidade de sua religião; em segundo, na capacidade de
arrebanhar multidões; em terceiro, no impacto obtido na consciência social, pois era
uma ação religiosa carregada de força simbólica. Neste sentido, podemos constatar que
seu gesto mostrou claramente a relação existente entre religião e política, e sua
repercussão na sociedade, além de destacar a capacidade de uma liderança religiosa de
falar em nome de povos e movimentos populares.
De acordo com Weber (1991), o profeta não necessariamente precisa ter uma
prática totalmente inovadora: ela pode se apoiar no passado e se apresentar na
atualidade como uma atitude legitimada pela tradição. O jejum importunou não somente
o meio político, mas também o religioso, pois foi uma atitude individual, desobediente,
radical e que se chocou com sua condição sacerdotal.
É importante frisar que dom Cappio é um sacerdote, pertencente a uma
instituição permanente e organizada regularmente. Foi qualificado intelectual e
espiritualmente para seguir as orientações de um saber específico de uma doutrina
sistematizada e elaborada conceitualmente. Em vez de ter se mantido a serviço de uma
tradição legitimada por sua instituição, ele transgrediu a condição de sacerdote,
colocando em risco assim a legitimidade institucional naqueles obstinados períodos de
jejum e oração.
Por fim, se colocou como intermediário e anunciador de uma realidade social.
Assim, atraiu e mobilizou, pelo poder de seu gesto e de suas palavras, povos e
movimentos sociais, para deste modo, canalizar a força deste grande movimento para a
interrupção da transposição do rio São Francisco. Dom Cappio, na sua relação com os
movimentos populares, pode ser compreendido como força política capaz de trazer
mudanças significativas e solucionar problemas sociais dos grupos que ele representa.
Ao se colocar em jejum, dispensou o aparato ritualístico do sacerdote e, apenas por seu
gesto e seu carisma, ordenou todas as manifestações e influenciou ações através de seu
modelo de protesto, tornou-se um agente social de inovação e mudança, portador e
construtor de uma nova mensagem, não-restrita à questão do rio São Francisco, mas
referente a todo o planeta.
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