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A transposição do rio São Francisco no Jornal Correio da Paraíba: polêmica e desinformação José Glaydson Pereira de SOUZA 1 Resumo Este trabalho é um estudo sobre a desinformação funcional na abordagem jornalística do Projeto da Transposição do Rio São Francisco no jornal Correio da Paraíba. O contexto no qual o tema pesquisado se inseriu é o da polêmica surgida em torno da declaração contrária à realização do projeto, emitida pela cantora Elba Ramalho em outubro de 2005. Tal declaração se tornou polêmica e mobilizou a Câmara Municipal de Campina Grande e o Correio da Paraíba que, em novembro do mesmo ano, se posicionaram contra a atitude da cantora via nota de repúdio e textos jornalísticos, respectivamente. A importância da pesquisa justificou- se pela reflexão que propôs sobre a atuação da mídia na sociedade, assim como sobre o compromisso ético com a informação em temas que dividem opiniões. Tendo em vista o posicionamento do Correio neste caso – a favor da Transposição e contra a opinião de Elba – nossa pretensão foi analisar através das relações de agendamento, dos enquadramentos e estratégias discursivas como essa inerente parcialidade comprometeu a função informativa do jornal sobre o tema. Também observamos como nos textos do jornal investigado informação e opinião se fundiram, contribuindo qualitativamente com a desinformação. Para isso, analisamos o material informativo e opinativo publicado no Correio da Paraíba de novembro de 2005 a julho de 2006, período delimitado como contexto da polêmica. De antemão, podemos afirmar que, ao expor um único ponto de vista sobre a Transposição e polarizar o debate apenas no quesito do ser contra ou favor, o jornal deixou de abordar diversos aspectos que poderiam ajudar o leitor a entender o Projeto, suas implicações e porque existe essa divisão de opiniões acerca do mesmo, – configurando assim um quadro de desinformação funcional. Palavras-chave: Desinformação e Enquadramento. Transposição do Rio São Francisco. Correio da Paraíba Introdução “O jornalismo é conflito, e quando não há conflito um alarme deve soar”. (Eugênio Bucci. Sobre Ética e Imprensa) Não é de hoje que a região Nordeste aparece nos veículos de comunicação como um espaço geográfico subdesenvolvido economicamente. Boa parte do conteúdo midiático traça 1 Graduado em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, pela UFPB. Ano VI, n. 11 – novembro/2010

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A transposição do rio São Francisco no Jornal Correio da Paraíba:

polêmica e desinformação

José Glaydson Pereira de SOUZA1

Resumo Este trabalho é um estudo sobre a desinformação funcional na abordagem jornalística do Projeto da Transposição do Rio São Francisco no jornal Correio da Paraíba. O contexto no qual o tema pesquisado se inseriu é o da polêmica surgida em torno da declaração contrária à realização do projeto, emitida pela cantora Elba Ramalho em outubro de 2005. Tal declaração se tornou polêmica e mobilizou a Câmara Municipal de Campina Grande e o Correio da Paraíba que, em novembro do mesmo ano, se posicionaram contra a atitude da cantora via nota de repúdio e textos jornalísticos, respectivamente. A importância da pesquisa justificou-se pela reflexão que propôs sobre a atuação da mídia na sociedade, assim como sobre o compromisso ético com a informação em temas que dividem opiniões. Tendo em vista o posicionamento do Correio neste caso – a favor da Transposição e contra a opinião de Elba – nossa pretensão foi analisar através das relações de agendamento, dos enquadramentos e estratégias discursivas como essa inerente parcialidade comprometeu a função informativa do jornal sobre o tema. Também observamos como nos textos do jornal investigado informação e opinião se fundiram, contribuindo qualitativamente com a desinformação. Para isso, analisamos o material informativo e opinativo publicado no Correio da Paraíba de novembro de 2005 a julho de 2006, período delimitado como contexto da polêmica. De antemão, podemos afirmar que, ao expor um único ponto de vista sobre a Transposição e polarizar o debate apenas no quesito do ser contra ou favor, o jornal deixou de abordar diversos aspectos que poderiam ajudar o leitor a entender o Projeto, suas implicações e porque existe essa divisão de opiniões acerca do mesmo, – configurando assim um quadro de desinformação funcional. Palavras-chave: Desinformação e Enquadramento. Transposição do Rio São Francisco. Correio da Paraíba

Introdução

“O jornalismo é conflito, e quando não há conflito um alarme deve soar”.

(Eugênio Bucci. Sobre Ética e Imprensa)

Não é de hoje que a região Nordeste aparece nos veículos de comunicação como um

espaço geográfico subdesenvolvido economicamente. Boa parte do conteúdo midiático traça

1 Graduado em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, pela UFPB.

Ano VI, n. 11 – novembro/2010 

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uma relação desse subdesenvolvimento com as condições climáticas da região. Em outras

palavras, a falta de chuvas geralmente é mostrada na mídia como fator responsável por tal

quadro. A imagem do solo seco, rachado, é freqüentemente usada nas matérias jornalísticas

quando o enfoque é o sertão. O homem nordestino, por sua vez, é mostrado nesse ambiente

como um sujeito necessitado e passivo, à mercê da bondade de Deus ou dos políticos.

Quase tão antigo quanto estes enquadramentos midiáticos é a principal solução

apontada para resolver a seca nordestina: o Projeto de Transposição do Rio São Francisco,

que consiste na transferência de águas desse rio para abastecer açudes e pequenos rios no

Nordeste. Estados do Brasil como Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, teoricamente,

seriam diretamente beneficiados pela Transposição. Trata-se de uma proposta idealizada a

partir da época de Dom Pedro II, ainda no Brasil Império, mas que desde então, esteve

envolvida em polêmicas quanto a sua viabilidade (BEZERRA, 2002).

Com a retomada do Projeto de Transposição pelo Governo Lula, o debate sobre o

grandioso empreendimento também voltou à agenda jornalística, dividindo opiniões e setores

na sociedade. Na Paraíba, a discussão sobre a viabilidade ou não da Transposição das águas se

tornou ainda mais polêmica, quando a cantora paraibana Elba Ramalho, em outubro de 2005,

declarou-se contra o projeto. A declaração de Elba causou grande repercussão na política e no

jornalismo do Estado. É tanto que, em novembro do mesmo ano, a Câmara Municipal de

Campina Grande aprovou por unanimidade, uma nota de repúdio, à cantora.

Na imprensa paraibana, o efeito foi semelhante, pois o jornal Correio da Paraíba,

também em defesa do projeto, se posicionou contra a declaração. Elba, por sua vez, temendo

represálias, anunciou nunca mais fazer shows na Paraíba. Este cenário se apresenta como um

contexto oportuno e relevante para se pesquisar a atuação do Correio da Paraíba e o seu papel

social enquanto veículo jornalístico. Mas, pensar o papel social de um jornal é ir ao encontro

de um campo complexo, atravessado por interesses políticos e econômicos que, por vezes,

descaracterizam o princípio fundamental da existência da profissão: levar informações

verídicas e de qualidade ao público consumidor; é observar os fatos, considerados relevantes,

através dos textos jornalísticos; é compreender também que, na verdade, esses textos são

constituídos de seleções, de enquadramentos, ou seja, são as escolhas do que vai ou não se

configurar produto jornalístico; e é, principalmente, saber que dessas escolhas surgem

produtos informativos ou “desinformativos”. Estas reflexões resumem, assim, as motivações

de ordem mais geral que nos levaram a analisar a abordagem da transposição relacionada à

polêmica envolvendo Elba Ramalho.

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O objetivo principal é examinar a desinformação funcional sobre a Transposição. A

expressão “desinformação funcional”, usada por Serva (2001) é uma analogia ao conceito de

“analfabetismo funcional”. Neste caso, o leitor consegue ler, mas não apreende o que está

escrito. Já na desinformação funcional ocasionada pelo jornalismo o leitor também não

consegue formar uma compreensão dos fatos a partir que está sendo noticiado. Em outras

palavras, é quando o material jornalístico que chega ao público contém lacunas de

informação, fontes duvidosas, visão passional dos fatos etc. dificultando assim, um

entendimento aproximado da realidade noticiada.

É importante esclarecer que não analisamos a receptividade do público ao tema, e sim

os produtos jornalísticos que chegam até ele. De início, entendemos a “relação” Transposição

- Elba Ramalho e o seu agendamento na mídia. Mas nosso foco analítico foi como a polêmica

criada em torno dessa relação interferiu na qualidade jornalística das informações sobre a

Transposição do Rio São Francisco. Observamos também, como o assunto foi “enquadrado

discursivamente”, se promoveu maiores esclarecimentos ou se desinformou. Devido à

flagrante postura parcial do Correio no caso, analisamos também em que medida opinião e

informação se confundiram. Para tanto, coletamos notícias, notas, artigos e colunas no

período que vai desde a nota de repúdio em novembro de 2005, até a volta de Elba aos palcos

paraibanos, no Festival de Inverno de Campina Grande, em julho de 2006. Do ponto de vista

teórico-analítico, tomamos como referencial específico os conceitos de agenda-setting,

framing (enquadramentos), de estratégias discursivas, além daqueles que regem a prática

jornalística contemporânea: a imparcialidade, a objetividade e a ética. Os estudiosos que nos

darão esses suportes teóricos são Traquina (2001), Charaudeau (2006), Gutmann (2006),

Rossi, Melo e Bucci (2008).

A monografia divide-se em quatro capítulos:

No Capítulo 1 (“Breve história do jornalismo”), apresentamos um breve painel de sua

história: suas transformações e importância social. E, em seguida, mostramos alguns

problemas da cultura profissional instituída.

No Capítulo 2 (“O que falar e como falar no jornalismo”), discutimos as relações de

poder que envolvem o agendamento de notícias, o enquadramento dos fatos e a

desinformação.

No Capítulo 3 (“ A transposição no correio da paraíba, corpus e procedimentos de

análise”), indicamos os aspectos gerais da problemática investigada, assim como as

orientações metodológicas do trabalho.

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No Capítulo 4 (“Transposição do Rio São Francisco: informação ou opinião?”), é onde

analisamos como se deu a desinformação funcional na abordagem feita pelo jornal Correio da

Paraíba.

Na seqüência do trabalho, apresentamos as Considerações Finais.

1 Breve história do jornalismo: suas transformações e importância social

O jornalismo é uma das profissões essenciais numa sociedade democrática. Se

fizermos uma breve revisão histórica, observaremos que do seu surgimento a sua

consolidação, a atividade adquiriu o status de “informante da sociedade”, contribuindo

cotidianamente com a impressão que temos do mundo e influenciando nossas decisões

políticas no seu sentido mais abrangente. Constataremos ainda que, no decorrer dos séculos, a

profissão foi se adaptando a novos contextos histórico-sociais nos quais esteve inserida,

assumindo formas e práticas diversas de atuação. Estes serão os temas explorados na primeira

parte deste capítulo. Eles nos darão base para uma reflexão sobre a prática do jornalismo

contemporâneo e sua função social. Antes, porém, vamos a um pequeno retrospecto do

aparecimento da imprensa jornalística, sua importância e suas práticas.

Os termos “imprensa” e “jornalismo” são compreendidos na atualidade como verbetes

equivalentes, apesar da diferença etimológica entre eles. Nada mais natural, se levarmos em

consideração que a prensa, máquina inventada por Gutemberg no século XV, facilitou a

expansão da escrita, a difusão de conhecimentos, e o jornalismo, historicamente, assumiu o

papel de atividade propagadora de informações para uma grande massa. O uso da prensa,

associado às técnicas jornalísticas, não só agilizou o processo informativo de emissão e

recepção, como também contribuiu significativamente na formação de uma nova sociedade.

Inserido no universo da Revolução Francesa, o jornalismo se expande a partir das lutas pelos

direitos humanos, atuando na democratização do conhecimento e contra a censura vigente:

O aparecimento do jornalismo está associado também à “desconstrução” do poder instituído em torno da igreja e da Universidade. O saber, o acesso aos documentos, o direito à pesquisa estiveram, até a invenção dos tipos móveis por Gutemberg, nas mãos da Igreja. As primeiras publicações começaram a multiplicar o número daqueles a quem era dado conhecer os textos reservados, secretos ou sagrados. O saber se espalha e começa a arruinar as bases da unidade religiosa. (MARCONDES FILHO, 2000, p. 10)

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Considerado pelos historiadores como marco da idade moderna, a Revolução Francesa

foi um levante burguês, apoiado pelas camadas sociais populares, em torno de idéias liberais

que transformassem as relações de ordens política, econômicas e sociais até então

centralizadas nos âmbitos monárquico, aristocrático e clerical. Os revolucionários franceses,

em suas exigências, se inspiraram no movimento iluminista, corrente filosófica do século

XVIII, responsável por transformações decisivas em todo o mundo e cujas doutrinas

caracterizavam-se pela importância que davam à razão. Somente por meio da razão, afirmavam ser possível compreender perfeitamente os fenômenos naturais e sociais. Essas idéias baseavam-se no racionalismo. Defendiam a democracia, o liberalismo econômico e a liberdade de culto e pensamento. As idéias iluministas influenciaram movimentos como a Independência dos Estados Unidos, a Inconfidência Mineira e a Revolução Francesa. O Iluminismo iniciou-se na Inglaterra, mais foi na França, que atingiu seu maior desenvolvimento. Foi na França que viveram os maiores pensadores iluministas, Voltaire, Montesquieu, Rousseau, Diderot e D´Alembert. 2

Não é demais lembrar que o termo “iluminismo” surgiu como uma crítica à Idade

Média, esta considerada pelos intelectuais, o “período de trevas”, devido às inúmeras formas

de cerceamento político, democrático etc. Rompendo com essas tradições medievais e sob o

lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” dos iluministas, a Revolução Francesa instaura

um modelo de sociedade que precisa ser desvelada em todos os aspectos. E assim, a imprensa

passa a ter importância cada vez mais relevante nessa nova sociedade. De acordo com

Marcondes Filho (2000, p. 10-11):

a Revolução Francesa, símbolo da queda de regimes monárquicos e da aristocracia, foi também, ao mesmo tempo, a conquista do direito à informação. Todo o saber acumulado e reservado aos sábios passa agora a circular de forma mais ou menos livre. E são os jornalistas que irão abastecer esse mercado.

Foi justamente dos ideais do Iluminismo e da Revolução Francesa que o jornalismo

herdou o papel que tem hoje – o de mediador entre os fatos e a sociedade. Esses movimentos

defendiam que tudo o que era obscuro deveria ser exposto, iluminado, sobretudo as relações

de poder, já que:

Enquanto eu não sei que o poder é algo dos homens, associado a seus interesses de domínio e exploração de outros homens, eu acredito que é “natural”, que Deus e a natureza criam homens para mandar e outros para servir. (MARCONDES FILHO, 2000, p. 11)

2 Informação obtida em: http://www.historiamais.com/iluminismo.htm

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O jornalismo nessa época tinha um caráter político-libertário e visava esclarecer

politicamente o público existente da condição de dominação em que este se encontrava. É

claro que o conceito que regula essa prática social, no entanto, foi se modificando ao longo do

tempo, condicionando e sofrendo os condicionamentos dos períodos históricos e contextos

singulares em que foi e é exercido. Pena (2005, p. 32-33) resumiu bem a trajetória do

jornalismo a partir dos aportes teóricos de Marcondes Filho:

Pré-história do jornalismo: de 1631 a 1639. Caracterizada por uma nova economia elementar,

produção artesanal e forma semelhante ao livro.

·Primeiro jornalismo: 1789 a 1830. Caracterizado pelo conteúdo literário e político, com texto

crítico, economia deficitária e comandado por escritores, políticos e intelectuais.

·Segundo jornalismo: 1830 a 1900. Imprensa de massa, marca o início da profissionalização

dos jornalistas, a criação de reportagens e manchetes, a utilização da publicidade e a

consolidação da economia de empresa.

·Terceiro jornalismo: 1900 a 1960. Imprensa monopolista, marcada por grandes tiragens,

influência das relações públicas, grandes rubricas políticas e fortes grupos editoriais que

monopolizam o mercado.

·Quarto jornalismo: de 1960 em diante. Caracterizado pela informação eletrônica e interativa,

como ampla utilização de tecnologia, mudança das funções do jornalista, muita velocidade na

transmissão de informações, valorização do visual e crise da imprensa escrita.

Como podemos perceber, a atividade jornalística, através dos séculos, passou por

inúmeras transformações estruturais, intelectuais, tecnológicas, sofreu influências

econômicas, políticas etc. Mas existe algo que se manteve e que é razão principal da

existência da profissão: o jornalismo mesmo determinado por pressões diversas, ainda é a

atividade que, ao menos em tese, busca informar a sociedade sobre os assuntos que dizem

respeito a ela. O jornal impresso, por sua vez, ainda é uma das fontes onde o cidadão comum

espera encontrar informações que lhe ajudem a compreender melhor a sua realidade, pois:

para maior parte das pessoas hoje, o conhecimento que nós temos dos fatos que acontecem além do nosso meio social imediato é, em grande parte, derivado de nossa recepção das formas simbólicas mediadas pela mídia. O conhecimento que temos dos líderes políticos e de suas políticas é derivado quase que totalmente dos jornais (...) as maneiras como participamos do sistema institucionalizado do poder político são profundamente afetadas pelo conhecimento que daí deriva. (THOMPSON, 1995, p.285).

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Para Charaudeau (2006, p.15), as mídias são o suporte organizacional que dão

visibilidade aos fenômenos sociais. É através delas que os acontecimentos ganham

importância, forma, texto, imagem, som etc. A imprensa, nesse ambiente, pode ser

compreendida como um instrumento dos quais os leitores “lançam mão para buscar suas

representações e para sondar seu espaço social” (VICCHIATTI, 2005, p. 30). Sobre este

aspecto, Thompson (1995, p. 219) destaca:

dia a dia, semana a semana, jornais, estações de rádio e televisão nos apresentam um fluxo contínuo de palavras e imagens, informações e idéias, a respeito dos acontecimentos que tem lugar para além de nosso ambiente social imediato.

Embora as mídias tenham um papel preponderante no processo de construção de

nossas percepções de mundo, o jornalismo praticado nos dias de hoje, não é mais conduzido

pelos ideais libertários que o originaram. Esta concepção de jornalista preocupado em vigiar,

denunciar e esclarecer os cidadãos vem cedendo cada vez mais espaço apenas para anseios

mercadológicos. Desde o surgimento da imprensa de massa em meados do século XIX, que a

preocupação com as grandes tiragens lucrativas é prioridade nos processos de produção

jornalística, ainda que muitos jornais afirmem que a prioridade é levar informação verdadeira

e livre ao público. Este, inclusive, passou a ser visto por aqueles como consumidores,

conseqüentemente a imprensa escrita e a notícia se transformaram em mercadorias destinadas

aos mercados de anunciantes e dos leitores. Para Marcondes Filho (2000, p. 32-33):

o aumento fantástico da produção significou uma total reorientação da indústria jornalística no sentido de render lucros e se tornar economicamente sustentável. Conseqüentemente, o jornalismo deixou de ser tão livre, descomprometido, espaço aberto a toda e qualquer manifestação dos agentes sociais, tornando-se produto “trabalhado”, voltado ao mercado, dependente dos gostos e do interesse de uma ampla massa de consumidores. A audácia e a criatividade jornalística perdem terreno em relação ao conformismo e a repetitividade mercadológica.

É importante destacar também, a influência política nos conteúdos midiáticos. É de

conhecimento comum a formação dos monopólios e oligopólios por grupos políticos nos

veículos da comunicação. Quando isso ocorre, a produção jornalística e seus conteúdos viram

“reféns” de uma ideologia privada onde os interesses de tal grupo, por vezes, se sobrepõem ao

coletivo e a paradigmas éticos e estéticos da profissão. Os suportes midiáticos, nestes casos,

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tornam-se locais privilegiados para se divulgar campanhas políticas e uma ferramenta

estratégica de convencimento e construção de imagens.

Talvez o grande desafio das empresas jornalísticas seja gerenciar a atividade dentro de

um sistema capitalista, equilibrando com os interesses sociais. E isso não é tarefa simples,

mas não deve ser visto como algo integralmente utópico. Se por um lado, essa visão é

considerada, por muitos, “romântica”, o contrário pode ser visto como conformismo. Afinal,

seguir algumas regras de conduta ética profissional, uma formação superior de qualidade, os

estudos críticos e pesquisas acadêmicas sobre a relação mídia-sociedade, a aproximação

desses estudos com o mercado de trabalho, a própria concorrência no mercado que impõe um

padrão de qualidade e um público mais exigente podem ser bons motivadores para uma

prática jornalística comprometida também com a sociedade e não apenas em obter lucros dela.

É óbvio que para isso, toda a conjuntura tem de ser revista e não simplesmente uma redação

de jornal. Mas ainda assim, é um indício de que nem tudo está perdido. Eugênio Bucci, em

Sobre Ética e Imprensa, faz um alerta: “É verdade que a atividade jornalística se converteu

num mercado, mas, atenção, esse mercado é conseqüência e não o fundamento de ser da

imprensa.” (BUCCI, 2008, p.33). É válido lembrar também, que a atividade jornalística só

funciona se o público depositar sua confiança no trabalho de mediação realizado.

Diante desse quadro, a reflexão sobre o jornalismo atual passa, num sentido qualitativo,

pela observação das suas práticas, o “como” informa o público. Vicchiati (2005, p. 25)

problematiza uma característica dessas práticas nas rotinas produtivas:

a atividade jornalística, marcada por forte ritmo de periodicidade, repetida a intervalos relativamente curtos, obriga os veículos de imprensa a recortarem o tempo em frações limitadas, a debruçarem-se sobre o hoje, tentando explicar acontecimentos cuja origem, em muitos casos, desenhou-se num tempo distante e cuja conseqüência prosseguirá além do horizonte temporal imediato.

Para este autor, esse tipo de jornalismo é “mecânico”, pois não há uma preocupação

em contextualizar o leitor. É o que ele chama de “dizer simples” que se manifesta nas

matérias jornalísticas através das notícias-produto, que são aquelas pensadas para um típico

consumidor das grandes metrópoles. Este consumidor, em tese, dispõe de pouco tempo para

se informar. Esta imagem do leitor-consumidor, inclusive, é uma das justificativas usadas para

justificar o formato das notícias serem cada vez mais curtas.

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Outros autores a exemplo de Rosenstiel (2004, p. 227) também apontam alguns itens

mecanicistas da atividade jornalística que reforçam a problemática de sua função informativa:

Uma lista enorme de problemas atravanca o caminho, impedindo que as notícias cheguem aos leitores de forma impactante: pressa, ignorância, clichês, preconceitos, antolhos culturais. Uma matéria bem escrita, fora do clássico esquema da pirâmide invertida (onde, como, quando, quem, por quê), exige tempo. É, no final das contas, um exercício estratégico que envolve muito mais que juntar fatos em frases curtas, declaratórias. O bom texto jornalístico é sempre resultado de uma reportagem sólida, profunda, unindo numa única peça detalhe e contexto.

Já Nelson Traquina em seus estudos sobre as rotinas produtivas, observou a existência

do que ele considera o ethos da profissão de jornalista. Esse ethos seria formado a partir de

uma “cultura profissional que fornece um modo de ser, de estar, um modo de agir, um modo

de falar, e um modo de ver o mundo” (TRAQUINA, 2005, p. 36). Para o autor, esta cultura

profissional seria condicionante e influenciadora nas ações dos jornalistas ao cobrir

determinado assunto.

1.1 Os problemas da cultura profissional

Parte das críticas que se fazem aos conteúdos da imprensa poderiam ser direcionadas

também a cultura profissional do jornalista. Tal cultura, engessada nos parâmetros

mercadológicos, em muito pouco se identifica com os valores de liberdade iluministas e com

o compromisso social de levar ao público informações relevantes e claras. Seguindo o

pensamento de autores da dimensão de Orguz Nayman e Elliott, Traquina (2005) entende que

numa profissão, valores, papéis e quadros de referência são mais ou menos compartilhados

por seus membros, dando origem a“crenças comuns” e a uma “sabedoria coletiva”. Na cultura

dos profissionais jornalistas isso se manifesta através das coberturas noticiosas dos

acontecimentos, contados quase sempre da mesma maneira, é o que caracteriza um

“pensamento de grupo” ou “jornalismo em pacote”:

os jornalistas monitorizam a cobertura uns dos outros. Mesmo quando não estão em contato direto, os jornalistas confiam fortemente no trabalho uns dos outros, como prática institucionalizada para idéias de histórias e confirmação dos seus critérios noticiosos (TRAQUINA, 2005, p.27)

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Tal cultura resulta em produtos jornalísticos cada vez mais parecidos. Dentre vários

exemplos, podemos citar a relação às vezes de interdependência dos veículos de comunicação

com as agências de notícias e assessorias de imprensa:

reféns do mercado e das amarras do release e da burocratização das redações, muitos jornalistas produzem textos requentados, oriundos das assessorias de imprensa e das agências de notícias nacionais e internacionais, ou optam pelas notícias fragmentadas, que se mantêm na imediaticidade do real e tratam de maneira conservadora temas de interesse para a comunidade – saúde, educação, habitação, entre outros - que deveriam ser aprofundados, analisados e contextualizados. (JAWSNICKER, 2007, p.120)

É interessante lembrar que embora as agências de notícias geralmente divulguem fatos

que ocorrem além do espaço físico dos jornais locais, as chamadas “notícias em pacote”,

distribuídas para inúmeros veículos, são em muitos casos, usadas para preencher espaço nas

folhas de jornais em detrimento dos temas locais, os quais culturalmente estão dependentes de

políticas e de políticos regionais:

A relação de dependência publicitária e com o poder público faz com que o noticiário sobre a cidade se reduza, muitas vezes, aos feitos da administração municipal, prática preocupante e que compromete a independência editorial dos veículos. (JAWSNICKER, 2007, p.120)

Outra característica da cultura profissional jornalística é a pressa. Para Traquina (2005,

p. 38) “Ser obcecado pelo tempo é ser jornalista”. Por isso, o imediatismo é utilizado em

muitos casos, para explicar a razão do não aprofundamento das matérias e reportagens. De

acordo com o autor, “o fator tempo condiciona todo o processo de produção das notícias,

porque o jornalismo é marcado por horas de fechamento.” (TRAQUINA, 2005, p. 37) Esse

imediatismo é, não só uma medida para evitar que um acontecimento se torne assunto velho,

deteriorado, mas é, principalmente, uma forma de não perder audiência para os concorrentes.

É importante lembrar que a preocupação em noticiar primeiro e o ritmo frenético das

redações podem incorrer em superficialidade, apuração não criteriosa dos fatos ou até

conduzir a opinião pública a um julgamento prévio com danos irreversíveis para os

envolvidos. O caso da Escola de Base reflete bem esta possibilidade. Em 1994, os seus

proprietários foram expostos em vários veículos de comunicação do Brasil, sob acusação de

pedofilia relacionada aos alunos da escola, sem a devida confirmação dos fatos. O casal de

proprietários era, na verdade, inocente, mas aí o julgamento da mídia e conseqüentemente, de

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grande parte da opinião pública já tinham acontecido. Conforme Moretzohn (2007a), o dilema

velocidade em publicar X informação verdadeira é uma prática antiga, pois

uma remissão histórica permitirá perceber que, desde que se configurou como atividade industrial, em meados do século XIX, o jornalismo vive sob uma permanente tensão, que frequentemente se torna contradição, expressa no lema “get it first, but first get it rigtht”, livremente traduzido no compromisso de “dar a verdade” em primeira mão”: pois, entre a “verdade” – a informação verdadeira, objetiva, checada, confiável – e a velocidade – a necessidade empresarial de chegar antes do concorrente –, a verdade deveria ter prioridade, embora o que costume ocorrer seja o contrário, pois prevalece a lógica da concorrência (MORETZOHN, 2007a, p.239)

Sobre a tensa relação jornalista/tempo, Traquina (2005, p. 40) ressalta a ação como

fator determinante de competência: “Ser profissional implica uma capacidade performativa

avaliada pela aptidão de dominar o tempo em vez de ser vitima dele.” Ao descrever

determinado perfil o autor destaca:

a ênfase na ação está no centro do profissionalismo, reside no controle da ação e não em ser vitimado pela cadência. Devido ao fato das organizações jornalísticas funcionarem dentro de um ciclo estruturado em funções de marcos temporais, não é de estranhar que o verdadeiro teste de competência profissional resida na capacidade de o jornalista de não ser vitimado pela cadência frenética imposta pelas horas de fechamento e passar a controlar o tempo. (TRAQUINA, 2005, p. 41)

De fato, as organizações jornalísticas vivem sob pressão do fechamento da edição.

Entretanto, afirmar que o “verdadeiro teste de competência profissional” é a capacidade de

domínio do tempo é quase que desumanizar o profissional e torná-lo uma máquina. Será que

só isso é necessário para qualificar alguém como competente? Do ponto de vista

mercadológico pode até ser. Temos que reconhecer também que:

a velocidade acaba se transformando num fetiche: a valorização da urgência na transmissão de informações cria um fluxo contínuo que tem como efeito principal “alimentar o sistema” de modo que se consome, sobretudo velocidade, e não notícias. (MORETZOHN , 2007a, p. 239)

É inegável a contribuição de Nelson Traquina sobre os estudos das rotinas produtivas,

tendo em vista que ele sistematiza e descreve com didatismo como elas funcionam. Por outro

lado, o autor assume uma postura “conformista” diante de tais rotinas; a ênfase de seus

estudos é mais focada na descrição do funcionamento das ações, do que sua na essência. Isso

fica mais claro na seguinte afirmação:

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os jornalistas são pragmáticos; os jornalismo é uma atividade prática, continuamente confrontada “com horas de fechamento” e o imperativo de responder à importância atribuída ao valor do imediatismo. Não há tempo para pensar porque é preciso agir” (TRAQUINA, 2005, p. 44)

Para Moretzohn (2007a) a valorização da ação em detrimento da reflexão denuncia

uma forma de “pensar automatizado” adequado as rotinas, porém prejudicial ao jornalismo

em si, pois junto com esse automatismo, vêm os estereótipos, a naturalização dos fatos e a

simplificação das apurações. Tal quadro desenha-se nas formas esquematizadas as quais o

jornalista molda seu trabalho, adequando os fatos a modelos narrativos consolidados – a

exemplo do lide – e bipolarizados: “a maneira de ver dos membros da tribo jornalística

privilegia uma visão bipolar – o mundo é estruturado em pólos opostos: o bem e o mal, o pró

e o contra etc”. (Traquina, 2005, p. 43). A simplificação das apurações pode ocorrer nesse

ciclo vicioso em que o jornalista por comodidade, falta de tempo ou outras implicações,

consulta apenas as chamadas fontes oficiais, ou seja, àquelas que ocupam algum cargo de

poder social e as consideradas autoridades no assunto, e estas fontes, em alguns casos,

também adquirem influência de pautar o trabalho daqueles:

o caráter imediato do trabalho jornalístico, o expõe ao risco de manipulação pelas fontes, tanto maior quanto mais preparadas elas forem; (...) devido à própria rotina das redações, o mais comum é que as fontes conduzam sua relação com os jornalistas, embora aparentemente seja o contrário; e com o desenvolvimento das técnicas de assessoria de imprensa essas possibilidades são cada vez maiores. (MORETZOHN, 2007a, p. 200)

Considerando a possibilidade de manipulação pelas fontes, Pena afirma:

as fontes oficiais são sempre as mais tendenciosas. Tem interesses a preservar, informações a esconder e beneficiam-se da própria lógica do poder que as colocaram na clássica condição de instituição. Governo, institutos, empresas, associações e demais organizações estão nessa categoria. (PENA, 2005, p. 62)

Esta relação com as fontes oficiais tem como vantagens, além de agilizar a captação de

dados, tais fontes normalmente possuem informações relevantes para a construção da notícia.

O problema é limitar-se a elas, não usar da criatividade para pesquisar determinado assunto,

não dar voz a outras instâncias alternativas, visto que cada fonte vai defender uma

perspectiva. Medina (2001, p. 37) enfatiza a importância da pluralidade dos pontos de vista

como algo enriquecedor: “A seleção das fontes de informação terá de se enriquecer através da

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pluralidade de vozes e ao mesmo tempo, da qualificação humanizadora dos entrevistados

descobertos”.

Não podemos deixar de falar, também, de outra tendência da cultura jornalística

enquadrada também na “maneira de ver” categorizada por Traquina. Trata-se da

“personalização dos acontecimentos”, que é centrar os fatos em torno de indivíduos. De

acordo com o autor:

quanto mais personalizado é o acontecimento mais possibilidades tem a notícia de ser notada, pois facilita a identificação dos acontecimentos em termos “negativo” ou “positivo”. Por personalizar, entendemos valorizar as pessoas envolvidas no acontecimento: acentuar o fator pessoa (...) a personalização da notícia permite ao jornalista comunicar a um nível em que um vasto público composto por não profissionais é capaz de entender (TRAQUINA, 2005, p. 92)

Esta estratégia pode até atrair e facilitar o entendimento do público acerca de um fato,

mas também, pode desviar às atenções somente para a “personagem” reduzindo a

complexidade às vezes necessária ao entendimento e favorecendo o surgimento de uma

imagem simplificada ou estereotipada do mundo. Por falar em simplificação, Tuchman apud

Traquina (2005) afirma que devido ao ritmo das rotinas não há tempo de aprofundar as

temáticas tratadas em um jornal, daí a “ênfase nos acontecimentos e não nas problemáticas”.

Numa entrevista ao site “verso e reverso”, do Grupo de Estudos em Jornalismo da Usininos,

(Universidade do Vale do Rio dos Sinos, RS), Moretzohn (2007b) analisa a relação do

deadline e a qualidade de notícia:

o problema principal para mim não é propriamente o deadline e sim os interesses envolvidos. A gente tende a achar, e os estudos de Sociologia do Jornalismo, por exemplo, falam isso, que as rotinas são responsáveis por essa conformação de uma determinada maneira de ver o mundo e claro elas não são inocentes, mas alguma rotina vai ter que ter ou do contrário a coisa não sai hora nenhuma. O que você faz no intervalo entre a pauta e o fechamento? Nesse espaço você tem que realizar coisas, o que é completamente diferente da temporalidade do pesquisador. Há uma temporalidade específica, você vai ter que se adequar a ela, queira ou não. Você não pode dizer assim: “vamos dar uma notícia por ano”. Então, a questão está mais na ênfase da pauta, na orientação ideológica, no que você seleciona e de que maneira vai cobrir. Não é obrigatório através das rotinas que você vá para os estereótipos.

A simplificação também ocorre na maneira de falar, categorizada por Traquina.

Segundo o autor:

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os jornalistas precisam comunicar através das fronteiras de classe, étnicas, políticas e sociais existentes numa sociedade. Para atingir este público heterogêneo, a linguagem deve possuir certos traços que vão no sentido de ser compreensível : a) frases curtas; b) parágrafos curtos; c) palavras simples (evitar palavras polissilábicas d) uma sintaxe direta e econômica; e) concisão; e f) a utilização de metáforas para incrementar a compreensão do texto. (TRAQUINA, 200. p.46)

Realmente esta é a linguagem mais utilizada nas produções jornalísticas; regras e mais

regras que supostamente são utilizadas para facilitar tanto o trabalho de quem narra como de

quem lê/ouve. Mas será que esse modelo não poderia ser repensado? Será que “emoldurar” os

acontecimentos nessas fórmulas voltadas mais para economizar tempo (jornalista e leitor) não

suprime o potencial de informações de um fato? E essa imagem de público sem tempo para

ler deve permanecer estática?

Queremos chamar a atenção aqui para uma reflexão acerca do processo de rotinização

e seus moldes de “enquadrar” a notícia. É válido lembrar também, que a maneira de falar é

precedida pelo o que falar, ou seja, como surgem os assuntos noticiados e de que forma. Os

conceitos de agenda-setting e enquadramento se fazem úteis para tal abordagem, como

veremos no capítulo seguinte.

2 O que falar e como falar no jornalismo

2.1 Da agenda ao enquadramento

Já tivemos a oportunidade, no item anterior, de evidenciar a importância da mídia na

construção de nossa percepção de mundo. A partir de agora, iremos entender como isso

acontece. A imagem que temos da realidade é, em grande parte derivada das construções

midiáticas, ao folhearmos um jornal – por exemplo –iremos encontrar diversos assuntos em

forma de notícia que foram selecionados entre vários, e, por estarem num veículo midiático,

adquirem projeção social. Nossa percepção do que é relevante na sociedade passa, nesse

sentido, por um filtro midiático e as questões discutidas pelos jornais passam a fazer parte das

conversas diárias no ambiente familiar, no trabalho, escolas, bares etc. Para tanto, existem nas

rotinas produtivas os valores-notícia, que tratam justamente dos critérios como novidade,

notoriedade, entre outros, utilizados pelos jornalistas, na seleção do que será publicado.

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Além desses valores incorporados às rotinas produtivas, existe também a seleção

através do agendamento ou agenda-setting. A idéia básica da agenda setting sustenta a

existência de uma correlação entre a agenda da mídia e a agenda do público na medida em

que, numa sociedade de massa, a percepção pública dos temas relevantes é construída tendo

por base as informações veiculadas pela mídia. O conceito do agendamento foi exposto pela

primeira vez por McCombs e Shaw, em 1972 e afirmava que “os mídia podem não dizer às

pessoas como pensar, mas sim sobre o que pensar “(TRAQUINA, 2002, p. 33), ou seja,

apenas pautava a agenda pública, concepção revista nos anos seguintes. Abordaremos este

ponto adiante. Por enquanto, entenderemos como se dá o processo de agendamento

jornalístico, a partir dos estudos de Traquina. O autor nos mostra, a partir de Molotch e

Lester, que esse processo é constituído dos estudos de duas outras agendas, a pública (public-

agenda-setting), a agenda política governamental (policy agenda-setting), e de suas

intrínsecas dinâmicas. Dando seqüência a este enfoque, os autores identificam três instâncias

atuantes na organização do trabalho jornalístico –os news consumers, os news assemblers e os

news promotors – os quais, num jogo de influências mútuas podem ser identificados

respectivamente, assim:

Os consumidores de notícia correspondem àqueles membros sujeitos à influência dos mídia que ajudam a constituir a agenda pública; os news assemblers correspondem àqueles que determinam a agenda jornalística; e os news promotors são constituídos por aqueles que propõem a agenda da política governamental, mas também por outros agentes especializados e membros do campo político, cada um com a sua agenda política. (TRAQUINA, 2002. p. 21)

É através das inter-relações entre essas categorias que se dá o processo de

agendamento; de decisão sobre o que vai “virar” ou não notícia. A interatividade com estes

agentes sociais exerce um papel ativo e de negociação constante. Traquina (2002), seguindo

Molotch e Lester, parte do princípio de que as notícias não espelham a realidade e que nem

tudo que é noticiado corresponde necessariamente aos assuntos mais importantes de uma

realidade objetiva, mas sim, parte de uma realidade tornada pública e que se torna tema de

discussão.

Essa perspectiva aponta a existência de interesses diversos na “ordem do dia” na hora

de pautar os assuntos a serem noticiados e não necessariamente o que há de mais relevante na

sociedade, apesar de muitos jornais afirmarem fazer isso. É claro que existem eventos e

acontecimentos sociais importantes para a coletividade que atraem as mídias, “intimando-as”

a divulgação – a exemplo de notícias sobre saúde, educação e segurança pública. Entretanto,

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sabe-se também, da influência ideológica, política, publicitária (só para citar alguns) dos news

assemblers (chefes, editores etc.) nas decisões da ordem dia. Sendo assim, um tema

considerado de suma importância pode nem ser noticiado se por acaso existirem interesses

extra o compromisso de informar. Para ilustrar tal afirmativa, nos valemos de Bucci (2004) e

o seu exemplo histórico de boicote à notícia por parte do Jornal Nacional na época das

Diretas Já:

O que aconteceu em 25 de janeiro de 1984? O leitor há de lembrar-se. Naquele dia realizou-se um comício na praça da Sé, em São Paulo. Foi um ato exigindo a volta das eleições diretas para presidente da República, um ato histórico. No dia seguinte, uma grande foto da multidão ocuparia quase toda a primeira página da Folha de São Paulo, sob manchete: “300 mil nas ruas pelas diretas”. A cobertura do Jornal Nacional, na noite do dia 25, adotou um tom diverso, dando a entender que a manifestação da Sé era apenas mais uma das solenidades que comemoraram o 430º aniversário de São Paulo, cuja data coincidiu com o “Comício das Diretas. (BUCCI, 2004, p. 192)

Se por um lado, a agenda jornalística pode interferir na observação, construção e

compreensão da realidade dos news consumers (consumidores), estes, até certo ponto,

interferem na orientação de quais assuntos são abordados pelos jornais. Exemplo recente disso

foi a visita do Papa Bento XVI ao Brasil em maio de 2007. Toda a imprensa se voltou para o

grande acontecimento, os telejornais adaptavam suas escaladas de notícias, abordando o

assunto ao vivo ou sempre como a primeira notícia do programa, ampliando sua importância.

A Rede Record, do bispo Edir Macedo é uma emissora evangélica, portanto, a chegada do

maior líder representante da igreja católica, é um tema que não lhe interessava muito. Porém,

num país onde 73,79 %3 das pessoas se dizem católicos, um evento com esta proporção não

poderia ser ignorado por nenhum veículo de comunicação. E assim, a Record teve que se

“render” ao interesse do público e aos ditames da concorrência. Contudo, diferentemente dos

outros canais de TVs, a chegada do papa ao Brasil foi mostrada em seus noticiários sempre

depois de uma ou duas notícias; nunca como a primeira do dia, diminuindo a sua relevância

na grade jornalística. Segundo o site Wikipédia, os diretores da emissora tomaram outras

medidas editoriais, no que segundo eles, poderiam gerar os “excessos” cometidos pelas outros

canais:

3 Dado do estudo “Economia das Religiões: mudanças recentes” realizada pela Fundação Getúlio Vargas realizado em 2003, último ano sobre o qual se pesquisou a religiosidade dos brasileiros.

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A Rede Record (ligada à Igreja Universal) editou um conjunto de normas para "orientar" seus repórteres e editores na cobertura da visita de Bento XVI a São Paulo. Por e-mail, proibiu seus jornalistas de chamarem o papa de "Sua Santidade", Bento XVI deveria ser chamado apenas de papa. Os repórteres também não poderiam se referir a ele como "líder religioso", mas como "líder da Igreja Católica" ou chefe de Estado do Vaticano.4

Além dos grandes eventos, acontecimentos inesperados e assuntos cotidianos, fazem

parte também de uma agenda jornalística os pseudo-acontecimentos. Encarregam-se disso os

news promoters (promotores de notícias: políticos, assessores, os próprios jornalistas etc.)

que, por algum interesse, investem “na promoção de certas ocorrências ou na prevenção de

certas ocorrências se tornarem acontecimentos públicos” (TRAQUINA, 2002. p. 23) Já

tratamos anteriormente, de como as mídias podem ser usadas como “vitrine política”. Para

Traquina, “um objetivo primordial da luta política consiste em fazer concordar as suas

necessidades de acontecimento com as suas necessidades do campo jornalístico” (p. 24). Essa

simbiose de interesses vez por outra ocorre em períodos eleitorais, quando mídia A, mesmo

sem assumir diretamente, apóia partido X e, “coincidentemente” neste período, ressalta

características negativas da administração do partido Y, como aumento de violência,

desemprego etc.

Como vimos, as notícias que consumimos diariamente são resultado de um complexo

processo de influências na seleção de fatos já incorporado às rotinas produtivas. E apesar de

não ser exatamente um modelo estável de pesquisa sobre mediação (WOLF, 1987, p. 128) a

hipótese do agenda setting “têm contribuído para a compreensão das relações entre a mídia e

a opinião pública”(GUTMANN, 2006, p.27). Sobre um dos aspectos dessas relações, afirma

Mauro Wolf (1987, p.129):

a hipótese realça a diversidade existente entre a quantidade de informações, conhecimentos e interpretações da realidade social, apreendidos através dos mass media, e as experiências em primeira mão, pessoal e directamente vividas pelos indivíduos.

Tais considerações só são legítimas, atualmente, porque Mc Combs e Shaw, num

estudo retrospectivo da agenda e contrapondo a teoria dos efeitos limitados, concluíram que

os media são bem sucedidos ao nos dizer no que pensar e também como pensar.

(TRAQUINA, 2005). Não estamos afirmando, com isso, que haja uma relação de dominação

da mídia para público. E que, este, seja desprovido de capacidade crítica. Entretanto, no ato de

4 O fragmento pode ser encontrado no seguinte endereço: http://pt.wikipedia.org/wiki/Visita_de_Bento_XVI_ao_Brasil

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informar, por exemplo, as mídias intuem um receptor ideal, tentando se aproximar o máximo

possível de uma compreensão de seus aspectos psicossociais, seus interesses para produzir um

determinado efeito (CHARAUDEAU, 2006). E para tanto, ao recortar determinada realidade,

os mídias dão um sentido a notícia via escolhas, desde as fontes, os destaques para certos

aspectos e ângulos, a ênfase em certas características, omissão de outras. Para pesquisadores

do assunto, é nesse contexto que poderia se dar o “como pensar”, através dos enquadramentos

dos fatos pelos media, vamos ao conceito de framing:

a idéia de framing ou enquadramento se relaciona aos ângulos de abordagem dados aos assuntos pautados pelos meios de comunicação. No âmbito dos estudos sobre os efeitos da mídia, o termo designa “moldura” de referência construída para os temas e acontecimentos midiáticos que, por sua vez, também é utilizada pela audiência na interpretação desses mesmos eventos. O frame seria justamente o quadro a partir do qual um determinado tema é pautado e, conseqüentemente discutido na esfera pública. (GUTMANN, 2006, p. 30)

De acordo com Gutmann (2006, p.32), esse conceito foi posto em prática,

inicialmente, na década de 70 pelo sociólogo Goffman, estudioso interessado em saber “como

os indivíduos compreendem e respondem às situações sociais a partir do modo com que

organizam a vida cotidiana”. Outros pesquisadores se interessaram em estudar o

enquadramento, a exemplo de Robert Entman. Conforme Entman (apud GUTMANN, 2006,

p. 32), o framing de notícias define a construção do conteúdo jornalístico, pois:

Enquadrar é selecionar alguns aspectos de uma realidade percebida e fazer eles mais salientes no texto comunicativo de modo a promover uma definição particular de um problema, interpretação causal, avaliação moral e /ou um tratamento recomendado para o item descrito

No campo das comunicações, o enquadramento midiático dos fatos pode resultar em

coberturas jornalísticas abrangentes, ricas em detalhes, minimamente imparcial, com pontos

de vistas plurais, mas pode também, ser lacunosa, tendenciosa e superficial. Isso porque,

segundo Carvalho (2009, p. 5), o enquadramento confere a notícia uma visão peculiar dos

fatos narrados a partir de quadros de referência e da seleção de alguns aspectos em detrimento

de outros, que conduzirão a narrativa dos textos para uma determinada visão, dentre uma série

de outras possíveis. Carvalho (2009, p.3) ressalta que:

Ao promover enquadramentos, o jornalismo está colocando em ação mais do que a saliência de aspectos considerados relevantes para a interpretação dos

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acontecimentos narrados. Está neste processo a especificidade da sua participação nas dinâmicas de construção social da realidade. Em outros termos, os enquadramentos revelam as peculiaridades de cada veículo noticioso, em suas múltiplas inserções sociais.

Muitos estudiosos consideram os enquadramentos midiáticos resultado das rotinas

produtivas do jornalista, pois tais rotinas “fazem o profissional identificar e classificar

rapidamente a informação e empacotá-la para uma eficiente leitura da audiência”

(GUTMANN, 2006, p. 34).

Apesar de não utilizar o conceito de framing, Charaudeau (2006) faz um tipo de

abordagem que pode ser relacionada ao enquadramento dos fatos feitos pelas mídias, mas

neste caso, o enquadramento surge em função de hipóteses a respeito do público receptor, a

quem o autor denomina “destinatário-alvo”. Sobre estes aspectos, o autor faz as seguintes

considerações:

há pesquisas que tentam definir perfis de leitores, ouvintes e telespectadores, que cada organismo de informação faz escolhas quanto ao alvo em função de opiniões políticas, de classes sociais, de faixas etárias, de locais de residência (cidade/campo), de profissões, mas não deixam de ser hipóteses a respeito do público que é heterogêneo e instável. (CHARAUDEAU, 2006p. 79)

É válido ressaltar que mesmo a “instância de recepção” sendo composta de públicos

sócio culturalmente diversificados, a “instância midiática” tende a considerar tais hipóteses

para poder apresentar uma informação mais ou menos de acordo com as expectativas do seu

público (CHARAUDEAU, 2006). Nesse contexto, segundo o autor, a mídia focaliza dois

tipos de alvos. O primeiro é o alvo intelectivo, definido por Charaudeau como aquele que

é considerado capaz de avaliar seu interesse com relação àquilo que lhe é proposto, à credibilidade que confere ao organismo que informa, a sua aptidão para compreender a notícia, isto é, ter acesso a ela. Um alvo intelectivo é um alvo ao qual se atribui a capacidade de pensar. (CHARAUDEAU, 2006, p. 80)

O segundo é o alvo afetivo, ou seja:

aquele que se acredita não avaliar nada de maneira racional, mas sim de modo inconsciente através de reações de ordem emocional. Assim sendo. A instância midiática constrói hipóteses sobre o que é mais apropriado para tocar a afetividade do sujeito alvo. (CHARAUDEAU, 2006, p. 80)

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Mais adiante, no capítulo de análise veremos que através dos enquadramentos é

possível identificá-los em notícias, notas, artigos de opinião etc.

2.2 Do enquadramento a desinformação

É através de enquadramentos que se configura uma notícia. Concepções de que esta

seria um espelho fiel da realidade são confrontadas por diversas teorias, metodologias e

pesquisadores no campo da comunicação. Seguindo o pensamento de Gaye Tuchman, Vizeu

(2005), por exemplo, compreende que a notícia não espelha a realidade. Para o autor “a

notícia ajuda a construí-la como um fenômeno social compartilhado, uma vez que no processo

de definir um acontecimento a notícia define e dá forma a este acontecimento” (p. 86). Na

mesma linha de raciocínio, Zanchetta Júnior (2004) destaca o caráter seletivo pelo qual a

informação passa antes de ser noticiada. O autor diz que “a técnica jornalística contemporânea

toma a notícia como a soma de informações sobre um acontecimento que seja considerado,

por quem publica importante ou interessante para um determinado público” (p. 61). O

enquadramento e a configuração da notícia se dão justamente através dessa soma e seleção de

informações e do seu tratamento, segundo Charaudeau:

O tratamento é a maneira de fazer, o modo pelo qual o sujeito informador decide transpor (e também iconicamente, caso possa recorrer à imagem) os fatos selecionados, em função do alvo predeterminado, com o efeito que escolheu produzir. Neste processo está em jogo a inteligibilidade da informação transmitida, e como não há inteligibilidade em si, esta depende de escolhas discursivas efetuadas pelo sujeito informador. Ora, toda escolha se caracteriza por aquilo que retém ou despreza; a escolha põe em evidência certos fatos deixando outros à sombra. (CHARAUDEAU, 2006, p. 38)

A partir de escolhas, o enquadramento dos fatos, baseado no modelo jornalístico

contemporâneo, pode ser precedido por uma série de práticas institucionalizadas, como:

postura ética, objetiva e imparcial, acesso à fontes legítimas e confiáveis, checagem das

informações, textos claros, entre outras. Todas essas recomendadas práticas são encontradas

em vários manuais de redação e estilo. Elas visam à configuração de um jornalismo

informativo, seguro e confiável, ou seja, realmente voltado para o seu papel social. No que diz

respeito ao conceito de objetividade, muitos pesquisadores das comunicações e correntes

lingüísticas defendem a impossibilidade de se refletir a realidade de maneira objetiva. Entre

outros argumentos, estes estudiosos acreditam que “não há captura da realidade que não passe

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pelo filtro de um ponto de vista particular, o qual constrói um objeto particular que é dado

como fragmento do real” (CHARAUDEAU, 2006, p. 131).

De fato, é impossível expor a realidade de forma pura, pois, como dissemos

anteriormente, a realidade é construída e a notícia não é o seu espelho. Mesmo diante dessa

improbabilidade, a objetividade jornalística é um “dever-ser” da profissão. Grosser afirma que

(apud BARROS FILHO, 1995, p. 44): “A objetividade não existe, mas a vontade de ser

objetivo pode ou não existir”. Na prática, tal ação pode se configurar através das notícias que

separam opinião de informação (KUNCZIK, 2002, p. 230-231). Não estamos, com isso,

desvalorizando o jornalismo opinativo. Não se trata disso. Desde que, as opiniões sejam

assumidas enquanto tais, sem ludibriar o leitor e em seções específicas existentes na maior

parte dos veículos de informação.

No que concerne a idéia de imparcialidade jornalística, Barros Filho (1995, p. 43) nos

alerta que mais do que equilibrar diversas versões e opiniões dos fatos é preciso pensar na

“enorme variedade de leitores e no conjunto social, onde há tantos matizes diferentes, trata-se

de tentar refletir a diversidade”. Esses conceitos só são postos em prática se forem guiados

por princípios éticos. Para Melo (2006, p. 49), por exemplo, a objetividade assume uma

dimensão ética “na medida em o jornalista assume o papel de agente social, mediador entre os

fatos de interesse público e a cidadania. Eugênio Bucci, por sua vez, considera que a ética

associada à técnica pode resultar em qualidade informativa e exemplifica:

Dar voz aos dois lados de uma mesma história, quando há dois lados que nela se enfrentam, é uma exigência ética e técnica do jornalismo. Procurar a verdade dos fatos é um imperativo ético – e é, também, o objetivo de toda técnica jornalística. Em nenhum aspecto haverá contradição entre técnica e ética jornalísticas. Aliás, a competência e as habilidades técnicas são requisitos para a realização da ética. (BUCCI, 2008, p. 50)

Dessa forma, um enquadramento destituído de princípios éticos em suas técnicas

jornalísticas, não tem condições de levar informações confiáveis e de qualidade a seu público.

Ao contrário, o que pode surgir é um jornalismo superficial, panfletário, sensacionalista e

conseqüentemente desinformante.

Nestes casos, a desinformação jornalística ocorre de várias formas, antes de

especificarmos as principais, vamos ao conceito de “desinformação funcional”, de Leão Serva

que descreve bem a problemática desta pesquisa:

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A desinformação funcional, então corresponde a um fenômeno definido pelo fato de que as pessoas consomem informações através de um ou mais meios de comunicação, mas não conseguem compor com tais informações uma compreensão do mundo ou dos fatos narrados nas notícias que consumiram. (SERVA, 2001, p. 71)

Nosso trabalho não busca compreender os níveis de apreensão dos consumidores de

notícias e sim, analisar se a mídia oferece a sua audiência um produto informativo em sua

construção textual, levando em consideração os princípios éticos e técnicos da profissão.

Outro autor que problematiza a desinformação é Marcondes Filho (2000, p.113), para ele “os

jornalistas dão sua contribuição à desinformação quando se usam de termos indevidos,

tendenciosamente minimizadores dos problemas ou exageradores de sua periculosidade”.

Quando isto ocorre, significa que, a instância midiática, ao invés de tentar se aproximar da

realidade dos fatos os julgou e deu o seu “veredicto”, ampliando ou diminuindo a sua

importância e, principalmente, se distanciou da tão recomendada regra da objetividade.

O autor prossegue dissertando sobre a desinformação, e indica outro aspecto presente

em produtos jornalísticos. Trata-se do “generalismo” que acontece “quando o aparelho

informacional demonstra sua precariedade fazendo afirmações totalizantes (“todas as

mulheres do mundo, “todos os telespectadores concordam...”)” (MARCONDES FILHO,

2000, p. 114). Estes tipos de afirmações sugerem certo descuido na apuração, na busca por um

percentual ou até mesmo, tentativa de manipulação.

A última, mas não menos relevante das características “desinformativas”

exemplificadas pelo pesquisador, reúne temas indispensáveis ao debate do “fazer

jornalístico”, como por exemplo: a velocidade de circulação de notícias e suas possíveis

conseqüências, as fontes e, principalmente, chama à atenção para o “valor de verdade” que

um assunto tratado nas mídias tem:

por força da velocidade de circulação de notícias, do grande número de fontes e das facilidades de sua inserção – mesmo por não profissionais – nas redes de comunicação, tudo ganha “valor de verdade”, por um determinado tempo, mesmo os rumores disseminados aleatoriamente. Trata-se de um processo de detonação livre, cujas conseqüências são imprevisíveis e que podem envolver pessoas, instituições, governos, desacreditá-los, em suma, ter efeitos tipo “borboleta”, haja vista a extensão mundial das comunicações. (MARCONDES FLHO, 2000, p.114)

Bucci (2008, p. 140-141), também alerta que a apuração criteriosa nunca deve ficar em

segundo plano em relação à agilidade e a pressa em se publicar algo:

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Se a informação de que o jornalista dispõe ainda não está checada, ela é apenas uma pista, não é uma notícia; é uma possível notícia. Ao publicá-la, correndo o risco de ter de corrigir-la adiante, ele assume também o risco de distorcer os fatos. A pressa é justa, boa e necessária – mas, quando assumida como um valor ético equiparável a correção, pode ser atalho para o erro. O engano ético de superestimar a agilidade como um bem em si mesmo conduz à falha técnica..

Já exploramos, anteriormente, essa questão da pressa em se publicar algo, associada ao

risco de se dizer inverdades. Só que agora, assumimos esta prática como uma das

possibilidades de desinformação.

2.3 A desinformação como conseqüência das novidades

Todo mundo sabe que as instâncias midiáticas vivem numa incessante busca por

novidades. Afinal, é delas que vem a matéria-prima de trabalho dos jornalistas. Por outro

lado, esse aspecto, em alguns casos, faz com que os assuntos sejam tratados de forma

descartável, sem continuidade, como uma “história sem fim”. E revela que, mais importante

que deixar o público realmente informado é manter o ciclo diário de novidades. Segundo

Serva (2001, p. 103):

O modelo jornalístico contemporâneo, que apresenta a novidade como produto a cada edição, impõe à imprensa dar um tratamento de segundo, terceiro, quarto plano às informações sobre os desdobramentos de fatos à medida que o consumidor for conhecendo o objeto da cobertura [...] impõe ao mesmo tempo a desinformação sobre os desdobramentos de longo prazo de fatos que um dia soaram surpreendentes ou sobre as origens de longo prazo de fatos que um dia surpreenderão em outro momento.

Ocorre o mesmo com uma informação descontextualizada, ou seja, o contexto de um

fato por vezes, é suprimido pelas próprias características de novidades que contém. E, como

resultado,

A conseqüência natural desse sistema é que, ao apresentar retratos dos fatos de forma isolada e descontextualizada, os meios informativos simultaneamente negam ao seu consumidor uma apreensão mais completa da notícia e produzem uma percepção alterada dos acontecimentos ao longo do tempo – e por decorrência do fluxo da história – ao gerar uma falsa sucessão de fatos novos e independentes. (SERVA, 2001, p. 126)

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Dessa forma, o leitor de um jornal – por exemplo – certamente terá dificuldades em

apreender uma notícia que expõe apenas os fatos em andamentos, sem relacioná-los com os

seus antecedentes ou referências.

2.4 A desinformação via a redução e polarização dos fatos

A redução contribui com a desinformação quando um assunto é noticiado mais por

seus aspectos polêmicos e curiosos do que pela sua devida importância social. Nestes casos, a

notícia é construída em tom polarizador, o contra, o a favor, o bom e o mau etc. Serva (2001)

cita como exemplo as eleições presidenciais no Brasil em 1989, na qual o candidato Fernando

Collor de Melo utilizou em seu guia político imagens da queda do muro de Berlim. Tratava-se

de uma tentativa de caracterizar seu concorrente, Luís Inácio Lula da Silva, como um

candidato comunista (mesmo o candidato sendo sindicalista não-comunista) e polarizar a

eleição comunismo x não-comunismo.

Os aspectos teóricos, acima levantados, nos darão embasamento para compreender a

abordagem feita pelo jornal Correio da Paraíba, sobre a polêmica em torno da Transposição

do rio São Francisco, relacionada à declaração de Elba Ramalho, enfoque do Capítulo 4.

Antes disso, no entanto, apresentamos no Capítulo 3, a seguir, os procedimentos

metodológicos que nortearam a análise.

3 A transposição no correio da paraíba, corpus e procedimentos de análise

A pesquisa abordará o tratamento dado ao tema da transposição do rio São Francisco

pelo Correio da Paraíba -PB em seus gêneros jornalísticos. O contexto histórico no qual o

tema está inserido é da polêmica envolvendo a cantora Elba Ramalho que, em outubro de

2005, teria declarado ser contra o projeto. A declaração foi publicada em 27/10/05 na coluna

de Ancelmo Góis, do Jornal O Globo. A nota publicada pelo colunista repercutiu na política e

imprensa paraibana, fazendo com que no dia 03/11/05 a Câmara de Vereadores da cidade de

Campina Grande aprovasse, por unanimidade, voto de repúdio à cantora por ela ter emitido tal

declaração.

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3.1 O Jornal Correio da Paraíba

A escolha do veículo midiático se deve ao fato de o Correio da Paraíba ser um dos

principais jornais de maior circulação no Estado e, principalmente, por que numa análise

preliminar, constatamos que o jornal assumiu uma postura parcial em relação à transposição

do rio São Francisco. Fundado por Teotônio Neto, em agosto de 1953, o Correio atualmente

pertence ao empresário e senador Roberto Cavalcanti (PMDB). De acordo com Araújo (apud

Calado 2006, p. 33), o Correio surgiu primeiramente como um informativo semanal e em

pouco tempo se tornou diário, devido ao sucesso alcançado entre o público leitor paraibano.

Segundo Calado , “seu projeto editorial apresenta dez editorias divididas em: Brasil, Cidades,

Cultura, Economia, Esportes, Mundo, Opinião, Policial, Política e Últimas. O jornal ainda

disponibiliza páginas especiais intituladas: Direito, Entrevista, Informática, Justiça, Correio

Trabalhista, Ministério Público e Municípios. Nas edições de domingo, o Correio da Paraíba,

apresenta uma série de suplementos, dentre eles; o Papo-Cabeça, Religião, Turismo,

Magazine, Magazine Jovem, bem como ainda perpetuamos suplementos Milenium, Homem e

Mulher” (p. 35).

O corpus da pesquisa, coletado no acervo de periódicos da Biblioteca Municipal de

Campina Grande, entre os meses de julho e agosto de 2008, corresponde a 7 notícias, 2 artigos

e 1 coluna de opinião, publicados no Correio da Paraíba, tendo como tema a Transposição do

rio São Francisco relacionado a declaração de Elba Ramalho e a Transposição desvinculada

da polêmica. O período das publicações é de 03 de novembro de 2005 a 12 de julho de 2006.

O recorte temporal é delimitado pela publicação da nota de repúdio dos vereadores a e

a volta de Elba aos palcos paraibanos, nas respectivas datas mencionadas, pois como se sabe,

devido à repercussão de sua declaração na imprensa, a cantora, por medo de sofrer represálias,

afirmou em fevereiro de 2005, não mais se apresentaria na Paraíba. A cantora voltou atrás em

sua decisão e se apresentou no Festival de Inverno em Campina Grande em julho de 2006,

marcando assim o fim da polêmica. Este retorno significou o que muitos chamaram de “as

pazes” entre Elba e a Paraíba. Para nós significou o encerramento da relação Transposição-

Elba Ramalho, pois foi essa relação de envolvimento que nos chamou a atenção para a

atuação da mídia neste contexto, surgindo assim, o interesse de se pesquisar em que medida a

opinião da cantora se confundiu a temática da transposição e se esse quadro influenciou os

conteúdos jornalísticos no que diz respeito à função informativa.

O material selecionado foi analisado segundo dois critérios. Em primeiro lugar

considerando a relação que se estabeleceu entre Elba e a Transposição em textos informativos

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e opinativos. E, em segundo lugar, observando notícias da Transposição desvinculadas de

Elba publicadas no mesmo período.

O objetivo geral da monografia foi analisar a desinformação funcional sobre a

Transposição no contexto da polêmica com Elba Ramalho. A análise se deu mediante a

observação dos enquadramentos dados ao tema, tendo em vista:

a) a verificação das relações de agendamento midiático e de como a Transposição do

Rio São Francisco aparece nesse contexto em notícias, notas, artigos de opinião, colunas;

b) a identificação dos destinatários-receptores projetados nos textos analisado;

c) a avaliação da qualidade jornalística e informativa, ou seja, do tipo de abordagem

dada ao longo da polêmica, e se há alguma mudança qualitativa quando cessa a relação

Transposição – Elba;

d) a averiguação da proximidade das estratégias discursivas entre os gêneros

informativos e opinativos acerca do tema pesquisado.

Optamos pela análise dos gêneros informativos (notícias, notas) e opinativos (artigos,

colunas) por acreditarmos que, apesar das diferenças estruturais, esses dois gêneros

dialogaram entre si, revelando o posicionamento do Correio da Paraíba diante da questão

analisada.

3.2 Procedimentos de análise

Como procedimento, foi feita uma análise dos sentidos nos textos considerando de

acordo com Charaudeau (2006, p. 41) que os sentidos se constroem por um duplo processo: o

de transformação e de transação. Segundo o autor: “O processo de transformação consiste

em transformar o ‘mundo a significar’ em ‘mundo significado’ [...] e o processo de transação

consiste, para o sujeito que produz um ato de linguagem, em dar uma significação

psicossocial a seu ato”. No primeiro caso, o mundo se torna significado através de

simbolizações feitas pelos atos linguageiros do homem, como por exemplo, nomear os seres,

qualificá-los, descrever suas ações etc. Já o processo de transação diz respeito às impressões

sobre o destinatário-receptor, sua identidade, seu saber e seus interesses, que o emissor em

uma ação comunicativa tem de seu interlocutor e do efeito que quer causar nele. Além disso,

o sentido resultante da transformação (os termos escolhidos, adjetivações, o mundo

simbolizado) vai depender do processo de transação, ou seja, da imagem que o emissor tem

do receptor. Essa imagem pré-construída vai “comandar”, consciente e inconscientemente, a

produção de discursos do emissor.

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Dessa forma, entendemos que o jornalismo, por se tratar de uma ação comunicativa,

também é resultado dos processos de transformação e de transação, pois, o ato de informar

“deve descrever (identificar-qualificar fatos), contar (reportar acontecimentos) explicar

(fornecer causas desses fatos e acontecimentos)” (CHARAUDEAU, 2006, p. 41) E, para

informar, o jornalista faz uso de hipóteses sobre quem é o seu receptor.

Na prática, a partir do material coletado, foi possível entender como o tema da

pesquisa foi agendado, identificar para qual tipo de público o jornal se dirige e que imagem

tem ou quer construir dele. Para isso, faremos uso também dos conceitos de alvo afetivo, alvo

intelectivo e enquadramento (explicitados no Capítulo 2). Os dois primeiros podem ser

compreendidos como formas de transação, pois os alvos, afetivo e intelectivo dizem respeito

à imagem do destinatário-receptor; O enquadramento por sua vez, pode ser visto como

relativo à transformação, pois sugere o mundo significado pelas escolhas de termos, de

abordagens, de ângulos, descrição das ações etc. Sendo assim, o enquadramento jornalístico

dos fatos pode ser entendido como uma tática de organização de discursos, que reúne as

características de transformação e transação, pois, ao escrever uma notícia, por exemplo, o

jornalista antes de significá-la através da construção de um texto, projeta uma audiência ideal

para o tipo de “enquadramento discursivo” a fazer.

Não podemos deixar de lado os conceitos de objetividade, imparcialidade, ética (ver

Capítulo 2) que também nos auxiliarão na análise do caráter informativo do material, isto é, se

os textos jornalísticos coletados contribuem para uma melhor compreensão acerca do assunto

ou se desinforma.

4 Transposição do rio são francisco: informação ou opinião?

4.1 Análise da relação transposição- declaração de elba

Em primeiro lugar, vamos identificar a qual destinatário-alvo o jornal Correio da

Paraíba se dirige a partir dos enquadramentos discursivos dados aos textos. Serão analisadas

três notícias sobre o tema. E, na análise da primeira matéria, faremos, também, uma

comparação entre fragmentos da nota de repúdio da câmara de vereadores e da notícia abaixo:

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NOTÍCIA 1: “Comitê pede que Governo não pague cachê a Elba Ramalho.” (Caderno

de Política, 15 /02/06)5.

Recorte 1.1

“O Comitê Estadual de Defesa do Projeto de Transposição do Rio São Francisco encaminhou, ontem ofício ao governador Cássio Cunha Lima (PSDB), solicitando a suspensão imediata de qualquer pagamento à cantora Elba Ramalho, por intermédio dos diretores dos blocos carnavalesco Muriçocas do Miramar, na capital. Motivo: a cantora, que é paraibana do município de Conceição, na seca região do Vale do Piancó, se posicionou contra a transposição do rio São Francisco...” (grifo nosso)

O texto acima não é fala de nenhum representante do Comitê Estadual de Defesa da

Transposição. No entanto, é o que parece, pois o enquadramento discursivo tenta mostrar que

há incoerência no posicionamento de Elba, destacando o fato de a cantora, por ser paraibana e

principalmente, enfatizando a origem sertaneja “município de Conceição, na seca região do

Vale do Piancó”, deveria conhecer bem o drama da falta d’água e reconhecer a importância da

Transposição.

Recorte 1.2

“ [...] e está sendo contratada pelo bloco, com o dinheiro do Governo da Paraíba, para desfilar na semana pré-carnavalesca de João Pessoa.”

No recorte 1.2, continuação do fragmento anterior, o autor insinua uma possível

incoerência, só que desta vez, do Governo da Paraíba, se este, pagar o cachê a cantora apesar

de sua suposta traição. Ao enfatizar que é com dinheiro do Governo da Paraíba que se pagaria

o cachê, existe um discurso implícito de indignação. É quase como se algo ilegal estivesse

ocorrendo com as verbas do Estado ao se contratar Elba Ramalho.

A seguir, veja nos recortes 1.3 e 1.4, a semelhança de enquadramentos e discursos

entre a nota de repúdio e o fragmento jornalístico, respectivamente:

Recorte 1.3

Nota de repúdio

“Nascida sertaneja, em esturricado solo árido de Conceição do Piancó-PB, obrigada a acudir-se em retirada para as brisas de Campina Grande, cidade que a educou e acolheu junto aos demais familiares e a tem como filha querida e hoje ilustre, a atriz e cantora Elba Ramalho acaba de dar uma infeliz demonstração de repulsa ao seu próprio berço ao posicionar-se, na Bahia, contra o sonhado e ansiado projeto de transposição das águas do rio São Francisco...”

5 Ver notícia na íntegra nos anexos, página 77

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Recorte 1.4

Fragmento jornalístico

“A cantora, que é paraibana do município de Conceição, na seca região do Vale do Piancó, se posicionou contra a transposição do rio São Francisco...” (grifo nosso)

Ambos os trechos destacam a origem sertaneja da cantora e enfatizam sua posição

contrária a transposição. Essa característica mostra a influência da agenda política sobre a

midiática .

Apesar de menos direta que a nota de repúdio (recorte 1.3), o fragmento da notícia

(recorte 1.4) busca o mesmo efeito de sentido e focaliza um tipo de destinatário-alvo. Em

outras palavras, os dois fragmentos se dirigem ou tentam criar a imagem de um mesmo perfil

de público, simples, unitário e não divergente de opiniões. Com esse intuito, os dois textos

invocam, enquanto estratégia discursiva, uma “paraibanidade” totalitária, ou seja, pensar

diferente neste caso, significa incoerência e, em último caso, traição. No caso da nota, isso

fica evidente na expressão “infeliz demonstração de repulsa ao seu próprio berço”. E como

estratégia de convencimento o autor da nota faz uso de “sonhado e ansiado projeto de

transposição das águas do rio São Francisco”. Já o fragmento da notícia tenta disfarçar sua

parcialidade com um suposto relato objetivo das origens de Elba e de sua declaração: “A

cantora, que é paraibana do município de Conceição, na seca região do Vale do Piancó, se

posicionou contra a transposição do rio São Francisco...” Entretanto, a parcialidade aparece na

construção textual, no encadeamento das informações. Ao relatar primeiramente a origem

sertaneja da cantora, descrever as condições climáticas de sua região e em seguida finalizar o

período afirmando que ela se diz contrária ao projeto que, teoricamente resolveria o problema

da seca, é tal qual na nota de repúdio, uma tentativa de insinuar traição à Paraíba e

insensibilidade à questão.

Recorte 1.5

“No geral, as manifestações são no sentido de que, ao se posicionar contra um interesse do Estado, a cantora Elba Ramalho não deveria ter shows financiados pelas verbas do Governo, já que os recursos são frutos de impostos do povo que defende a transposição de águas do São Francisco...” (grifo nosso)

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Um detalhe interessante no fragmento 1.5 é que o texto é categórico afirmando que

Elba se posicionou contra um interesse do Estado, mas não se vê uma fala dela escrita na

matéria. Esse discurso se apresenta ao leitor como uma explicação justa, para que a cantora

não seja remunerada com verbas estaduais. Podemos perceber, também, neste recorte,

recursos discursivos totalizantes e excludentes ao mesmo tempo, como é possível verificar na

seguinte afirmativa: os recursos são frutos de impostos do povo que defende a transposição de

águas do São Francisco. Totalizantes porque assume a “voz do povo” ao afirmar o “povo que

defende a transposição”. Excludentes porque não considera a existência de vozes divergentes

e neutras na sociedade e que também fazem parte “do povo”.

No que diz respeito às manifestações, o coordenador do comitê prol transposição, o

ex-deputado Chico Lopes, foi quem organizou um ofício encaminhado ao Governo do Estado,

exigindo o não pagamento do cachê. Entretanto, o Sistema Correio também teve grande

participação nesta “campanha punitiva” a cantora Elba Ramalho, conforme pode ser

observado no recorte abaixo:

Recorte 1.6

“Foi através do Sistema CORREIO e do programa CORREIO Debate, apresentado por Ruy Dantas, Josival Pereira e Gutemberg Cardoso, na 98,3 FM, a iniciativa de realizar uma ampla mobilização estadual no sentido de evitar que o Governo pague a apresentação de Elba Ramalho na semana pré-carnavalesca”

O recorte 1.6 se refere às ações do Sistema Correio e cita o programa de rádio

“Correio Debate” como exemplo. Ao relatar tais ações no jornal impresso, o Sistema Correio

também estendeu sua campanha de mobilização para o jornal e seu público. Neste trecho, o

jornal assume claramente sua parcialidade. Iniciar uma campanha punitiva contra Elba, por

ela ter declarado ser contra a Transposição do rio São Francisco, confirma isso. O que se pode

perceber também, é que o Sistema Correio se apresenta como “instância” legítima para julgar.

Ao mobilizar a população para evitar que o Governo pague pela apresentação de Elba,

pressupõe-se que, para o Correio, a cantora cometeu um crime, foi julgada e deve ser punida.

Para o jornal, é como se todos os leitores estivessem apoiando essa campanha.

Tal posicionamento, mais uma vez, ilustra que o Correio considera ou pretende criar a

existência de um só público, de uma só opinião, – a daqueles que concordam com o projeto de

Transposição.

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NOTÍCIA 2: “Elba desiste de participar do Muriçocas de Miramar.” (Caderno Brasil,

16/02/06)6

Recorte 2.1

“A reação popular, manifestada através dos veículos do Sistema CORREIO, contra sua posição também fez Elba desistir da apresentação em João Pessoa.

Outra decisão anunciada pela cantora Elba Ramalho foi a de não mais aceitar convites para se apresentar em shows na Paraíba.” (grifo nosso)

Um dia após a mobilização do Sistema Correio, a cantora anunciou que, temendo

represálias, não iria mais se apresentar na prévia carnavalesca, em João Pessoa, e também não

faria mais shows em toda a Paraíba. É interessante observar neste recorte que o jornal se

apresenta quase como neutro. É como se o Correio tivesse servido apenas de suporte

midiático que fez a cobertura da tal “reação popular” e não um organizador da campanha

contra a cantora.

Recorte 2.2

“A novidade foi uma ligeira flexibilização no conceito de Elba. Ela afirmou, desta feita, que não é contra o projeto de transposição e sim a favor da revitalização, dando a entender que concordaria com a execução do projeto após a concretização de obras e ações de revitalização do rio.” (grifo nosso)

No recorte 2.2 apesar de não encontrarmos nenhuma declaração de Elba na matéria, é

possível perceber que, mesmo quando “deu voz a cantora,” o Correio impôs, sutilmente, o seu

ponto de vista a respeito do Projeto de Transposição, adiantando para o leitor a interpretação

de que a cantora poderia estar mudando de opinião: dando a entender que concordaria com a

execução do projeto após a concretização de obras e ações de revitalização do rio.” O texto

afirma que Elba teria declarado não ser contra a transposição e sim a favor da revitalização,

entretanto, não informa onde essa declaração foi dada. Por outro lado, em uma carta enviada a

outro veículo de imprensa da Paraíba, Elba Ramalho diz que em momento algum foi

procurada por nenhum órgão de imprensa para esclarecimentos. (Ver apêndice, p. 71)

NOTÍCIA 3: “Transposição volta a ser polêmica na Assembléia.” (Caderno Política,

23/02/06)7

Recorte 3.1

6 Ver notícia na íntegra nos anexos, página 77. 7 Ver anexo, página 78.

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“A polêmica envolvendo a posição da cantora Elba Ramalho contra a transposição do rio São Francisco, chegou ontem ao plenário da Assembléia Legislativa que realizou sessão igualmente polêmica. Os deputados governistas Ricardo Barbosa e João Fernandes apresentaram voto de desagravo à cantora, por considerarem que ela esta sendo vítima de agressões e de cerceamento da liberdade de expressão.”

Este parágrafo resume a idéia principal da matéria, o debate em torno da aprovação ou

não de um voto de desagravo a cantora. Entretanto, o título da notícia “Transposição volta a

ser polêmica na Assembléia” é um equívoco, pois sugere que os deputados irão discutir o

projeto em si e suas implicações sociais. Ou seja, a polêmica debatida neste caso, não é a

transposição e sim sua relação com a declaração da cantora. Essa característica mostra que

naquele momento Elba e transposição pertenciam ao mesmo universo semântico na notícia. O

recorte a seguir reforça esta visão:

Recorte 3.2

“A discussão do requerimento perdurou por mais de duas horas e não houve votação. O requerimento pode voltar à ordem do dia na sessão de hoje. Pela oposição, os deputados Gervásio Filho (líder do PMDB), Trócolli Júnior e Olenka Maranhão (também peemedebistas) saíram em defesa da transposição. (grifo nosso)

Eles disseram nutrir respeito pelo talento da cantora de quem são fãs, mas disseram não concordar com a posição dela, contrária a transposição. De acordo com Gervásio, Trócolli Júnior e Olenka Maranhão, a proposta de desagravo a Elba fortalece aos adversários da transposição”.

A sentença “saíram em defesa da transposição” (grifo nosso) está fora de contexto no

debate. Pois o que estava sendo discutido não era a aprovação ou não de um requerimento de

desagravo? Por que, segundo a matéria, os deputados saíram em defesa da transposição e não

do requerimento em questão? Por que, como dissemos, Elba e transposição se confundem no

texto jornalístico assim como informação e opinião.

4.2 Análise da relação transposição-declaração de Elba no gênero opinativo

É sabido que o gênero opinativo nos jornais é de livre expressão de seus autores e que

estes, nem sempre são jornalistas. Tecnicamente os veículos de comunicação reservam um

espaço onde colunistas fixos, leitores e profissionais de diversas áreas opinam sobre

determinado assunto, e esta opinião teoricamente não representa a mesma da empresa. Nosso

objetivo aqui é observar como o tema pesquisado foi enquadrado discursivamente no gênero

opinativo e também se diferiu do informativo.

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F. Pereira Nóbrega escreve sobre o caso de forma literária, mas não menos desprovida

de polêmica, observe:

ARTIGO DE OPINIÃO 1: “Elba, seu canto e fala” (F. Pereira Nóbrega. Seção

Opinião, 24/02/06)8.

Recorte 1.1

“Elba Ramalho desceu das colinas do Vale do Piancó, caminhou com as águas até o litoral. Encantou o Brasil com sua voz maviosa, com a expressão corporal que junta ao seu cantar.” A revelação sonora que deslumbrou este país já se ouvia na terra natal, quando Elba, criança, cantava e eu, ali, habitava.”

Recorte 1.2

“Cantava até nas secas quando o sertão, quando o sertão se abrasa. Num ano de tamanha estiagem, em Conceição do Piancó, o prefeito mandou sugar o resto das lamacentas águas – mais lama que água – que o povo tentava beber, mais para adoecer do que para se saciar.”

O enquadramento discursivo aqui revela um diálogo entre os gêneros informativos e

opinativos. Assim como na notícia “Comitê pede que Governo não pague cachê a Elba

Ramalho”, analisada anteriormente, os recortes 1.1 e 1.2, da crônica de Nóbrega também

remetem a origem sertaneja da cantora: “Elba Ramalho desceu das colinas do Vale do

Piancó”. E em tom poético o autor descreve o início da trajetória dela como artista, ainda na

sua terra natal, da qual ele afirma ter sido testemunha: “A revelação sonora que deslumbrou

este país já se ouvia na terra natal, quando Elba, criança, cantava e eu, ali, habitava.”

O diálogo prossegue ressaltando as experiências de períodos de seca pelas quais a

cantora já passou reforçando mais uma vez, a idéia de incoerência.

Recorte 1.3

“Cantava até nas secas, quando o sertão se abrasa. Num ano de tamanha estiagem, em Conceição do Piancó, o prefeito mandou sugar o resto das lamacentas águas – mais lama que água – que o povo tentava beber, mais para adoecer do que para se saciar.”

Assim, esse trecho tenta induzir o leitor a uma conclusão: alguém que conhece de

perto o problema da seca, não pode declarar-se contra qualquer perspectiva de solução. É 8 Ver artigo de opinião na íntegra nos anexos, página 79.

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como se existisse uma relação lógica entre ser sertanejo e ser a favor da transposição. Pereira

vai desenhando o seu ponto de vista a partir de lembranças, de uma vivência passada comum,

no mesmo espaço temporal que Elba. A lembrança das águas lamacentas, do prefeito

mandando sugá-las e o povo, mesmo assim, tentando beber correndo o risco de adoecer,

exerce uma função discursiva dramática no texto e apagam qualquer forma de questionamento

sobre a viabilidade e efetividade da transposição do rio São Francisco. Outro trecho que

exerce semelhante função é este:

Recorte 1.4

“À noite, aquela voz entova: eu sou pobre, pobre, pobre, de mavé, mavé, mavé. E as casinhas pobres, entre si pegadas, imitavam cirandas, cantando o mesmo com Elba Ramalho.”

O autor recorre à música “Eu sou pobre, pobre” do cancioneiro popular, não apenas

para falar da lembrança de Elba na infância, como também, para remeter, indiretamente,

através dessa parte da música a origem pobre da cantora e, com isso, enfatizar mais uma vez a

contradição entre, o ser paraibana, ter conhecido a pobreza e hoje não ser a favor da

transposição.

A seguir, Pereira Nóbrega faz uso de trocadilhos com os verbos cantar e falar,

insinuando que Elba deveria optar apenas por um desses verbos:

Recorte 1.5

“Aves cantam. Só o homem fala. O ser humano se define menos pelo que entoa, mais por seu falar. Elba canta melhor do que fala. Desafinou quando se opôs à transposição das águas.”

Como o autor não aceita outro ponto de vista acerca do assunto, para ele, Elba – talvez

por ser uma pessoa pública, mas principalmente por pensar diferente – deveria calar-se

enquanto cidadã, não opinar sobre questões sociais e deixar em evidência apenas a Elba

cantora: “Desafinou quando se opôs à transposição das águas.” Contraditoriamente, neste

caso, o articulista utiliza um espaço que lhe garante o livre direito de opinar sobre o que

quiser, para propor a outra pessoa que se cale. É como se o direito de opinar pertencesse

somente a alguns.

No trecho a seguir, o autor ensaia uma defesa do livre direito de pensar de Elba, mas

recua e mantém a postura anterior:

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Recorte 1.6

“Tenho vontade de, nessas linhas, pedir aos meus leitores um ato de desagravo por quem ora está em risco de ser apedrejada, porque ousou ser livre no seu direito de pensar. A mão pára, a pena seca, como secam meus olhos proibidos de chorar. Porque tudo se torna tão ambíguo que pedir desagravo para ela parece apoiar opositores das águas.”

Observe que Pereira Nóbrega, sutilmente, joga com a diferença entre pensar e falar.

Ele diz que tem vontade de pedir um ato de desagravo por quem “ousou ser livre no seu

direito de pensar” (grifo nosso). Primeiramente, fica sugerido aqui, que pensar, ou melhor,

discordar, é uma ousadia e não um direito. Em segundo lugar, para Nóbrega, Elba deveria ter

apenas “ousado” pensar, mas não ter falado; assim como fez ele, ao desistir de escrever aos

seus leitores pedindo um ato de desagravo, porque isso implicaria se posicionar contra a

transposição. Veja a parte do texto que ilustra essa passagem: “(...) A mão pára, a pena seca,

como secam meus olhos proibidos de chorar. Porque tudo se torna tão ambíguo que pedir

desagravo para ela parece apoiar opositores das águas.” Mais uma vez, assim como na matéria

“Transposição volta a ser polêmica”, Elba e transposição estão simbolicamente intrincados, é

tanto que o articulista não discerne um tema do outro e nem ousa por em debate a liberdade de

expressão da cantora.

Para Nóbrega, o fato de Elba pensar diferente neste caso, é uma forma de ingratidão da

cantora com a sua gente, de apagamento de sua própria história. Para demonstrar isto, o autor

recorre mais uma vez as suas lembranças e a dramaticidade conforme pode-se observar:

Recorte 1.7

“Eu disse que meus olhos secam. E disse, sem exagerar. Porque uma razão especial me prende afetivamente a Elba Ramalho. Se água nunca houvesse, se houvesse só a lama que aquele prefeito interditou, ela nem teria se batizado. Mas houve Elba e houve água. Houve-me, também, que naqueles dias, vivendo meus tempos de padre. E disso ela sabe demais. Fui eu quem batizou Elba Ramalho.

[...] Por tudo isso Elba, não resista às águas.”

O recurso da dramaticidade como estratégia discursiva vai desde o trocadilho de

“meus olhos secam”, que implicitamente se refere à seca das águas, até a lembrança do

batismo. A referência ao batizado, inclusive, é uma estratégia com apelo religioso não só de

convencimento da suposta ingratidão de Elba, como também, uma forma de criar relação,

entre a seca e a sua solução, ou seja, a transposição do Rio São Francisco, veja: “Se água

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nunca houvesse, se houvesse só a lama que aquele prefeito interditou, ela nem teria se

batizado.” Em outras palavras, o autor quer transmitir, ao mesmo tempo, o valor da água para

a vida e o terror da sua escassez, que ele acredita poder ser resolvido com a transposição.

Essa relação fica mais evidente na última frase: “Por tudo isso Elba, não resista às águas.”

ARTIGO DE OPINIÃO 2: “Elba e a traição” (Wellington Aguiar, Seção Opinião

23/02/06)9.

Neste artigo, Aguiar comenta a mobilização feita pelo Sistema Correio contra o

pagamento pelo Estado a uma apresentação de Elba, depois que ela teria declarado ser contra

a transposição. O autor considerou esta atitude da cantora uma traição, daí explica-se o título

do seu artigo.

Em defesa da transposição, Wellington Aguiar dialoga abertamente com as matérias

analisadas, observe:

Recorte 2.1

“Meus afusivos [sic] parabéns ao bravo Sistema Correio de Comunicação e aos jornalistas Gutemberg Cardoso, Josival Pereira e Ruy Dantas. No programa Correio Debate, eles desnudaram com competência a esdrúxula atitude da cantora Elba Ramalho que, usando falsos argumentos, posicionou-se contrária à transposição de águas do rio São Francisco para os estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco.”

O diálogo em questão é referente à matéria “Comitê pede que Governo não pague

cachê a Elba Ramalho”, já analisada. Nesta matéria consta que os jornalistas do Sistema

Correio, Ruy Dantas, Josival Pereira e Gutemberg Cardoso realizaram uma mobilização em

seus programas de rádio com o intuito de evitar o pagamento pelo Governo, da apresentação

de Elba Ramalho na semana pré-carnavalesca. É importante destacar que Wellington Aguiar

parabeniza os jornalistas mobilizadores, sob alegação de que a cantora usou falsos argumentos

para se posicionar contrária a tal projeto: “eles desnudaram com competência a esdrúxula

atitude da cantora Elba Ramalho que, usando falsos argumentos, posicionou-se contrária à

transposição de águas do rio São Francisco”. Entretanto, as notícias analisadas referentes ao

programa de rádio, mostram que em nenhum momento a cantora expôs falsos ou verdadeiros

argumentos, além disso, ela nem se quer foi entrevistada pelo Sistema Correio.

9 Ver anexos, página 79.

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Na sequência, é possível observar que assim como nas matérias analisadas, a

paraibanidade também consiste em defender a transposição sem questionamentos:

Recorte 2.2

“Senti-me orgulhoso, muito orgulhoso mesmo, tanto do Sistema Correio quanto de Gutemberg, Josival e Ruy. Fizeram mais que louvável exercício de paraibanidade, revelando que a nossa terra ainda tem brios e honra.”

O autor projeta, em seus discursos, uma Paraíba em que todos não só entendem e

concordam com o projeto de transposição, como também, apóiam a atitude dos jornalistas em

relação à campanha contra Elba. Na defesa de um pensamento único e linear, ele ignorou que

o jornalismo realizado por seus colegas do Sistema Correio apenas polarizou a discussão

entre, ser contra (Elba, “sozinha”) ou a favor (O Sistema Correio e a Paraíba “toda”), sem

esclarecer minimamente o público a respeito do tema.

Recorte 2.3

“Quanto à condenável opinião da cantora – filha desnaturada da nossa pequena Paraíba –, comparo-a ao nefando procedimento que teve Domingos Calabar, no século 17, tempo em que nossos ancestrais lutavam contra o domínio holandês. O alagoano Calabar passou-se para os batavos, ocasionado perdas consideráveis aos luso-brasileiros, no campo de batalha, já que orientava tropas flamengas. Obteve o posto de major do exército invasor, mas não usufruiu muito desse prestigio: apanhado pelos nossos, foi logo fuzilado. Era o castigo reservado aos traidores.”

Para classificar de traição à atitude de Elba, Aguiar fez uso de uma analogia, “a traição

de Calabar”. Primeiramente, atribuir à atitude de Elba o valor de traição é algo discutível. Pois

é o princípio democrático da liberdade de expressão que também entra em discussão. E, em

segundo lugar, a analogia usada para classificar a declaração da cantora como infidelidade aos

paraibanos é um argumento baseado mais na emoção do que na historicidade. Pois, assim

como no primeiro caso, a suposta traição de Calabar também é um tema discutível, já que, no

período colonial, todos queriam mesmo era explorar e se tornar donos das terras brasileiras,

inclusive os holandeses e portugueses, igualmente. Portanto, a figura do vilão é relativa nessa

história. Observe os questionamentos feitos pelo historiador Gilberto Cotrim sobre este tema:

Calabar, um traidor? O gesto de Calabar foi considerado por muitos historiadores como traição ao Brasil, mas tal julgamento é objeto de controvérsias. Afinal, a que Brasil traiu Calabar? Ao Brasil que antes dessa

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época pertencia a Portugal e agora estava sob o domínio espanhol? (COTRIM, 1998, p. 85)

Desenvolvendo o seu pensamento sobre traição, e comparando com “o caso Calabar”,

Aguiar retoma indiretamente (recorte 2.4) a discussão de paraibanidade, sentimento que para

ele, Elba teria renegado em nome da “baianidade”:

Recorte 2.4

“Elba Ramalho, no entanto, não precisou mudar de lado: seu coração é da Bahia há anos. Daí o execrável posicionamento contrário à transposição. Para ela de nada valem 12 milhões de sedentos e famintos nordestinos, incluídos aí os mais pobres de seus conterrâneos. Que coisa terrível praticou a cantora de “Nordeste Independente”, música aliás tida por muitos como uma algarávia [sic] de sandices!”

Podemos constatar, também, a relação de causa e efeito que o autor traça. Ou seja, se

posicionar contra o projeto implica, na visão dele, ser insensível ao problema da seca e as

dificuldades do povo nordestino.

Aguiar não considera a hipótese de que possam existir motivos admissíveis para ser

contra a transposição. Por isso, na tentativa de desqualificar a opinião da cantora ele cita como

estratégia de convencimento, à música “Nordeste Independente,” dos compositores Bráulio

Tavares e Ivanildo Villa Nova, gravada por Elba em 1984. A música em questão aparece em

dois sentidos: primeiro, no sentido irônico, ora, como alguém que não é sensível a “12

milhões de nordestinos sedentos e famintos”, pôde um dia cantar “Nordeste Independente”?

Veja, abaixo:

Recorte 2.5

“Que coisa terrível praticou a cantora de “Nordeste Independente”, música aliás tida por muitos como uma algarávia (sic) de sandices!”.

O nome da canção aparece, neste primeiro momento de forma irônica, para sugerir,

mais uma vez a suposta incoerência de Elba. E, num segundo momento, para reforçar a

desqualificação do posicionamento da cantora, o autor atribui à música de Bráulio e Ivanildo

um sentido negativo. Ele afirma que alguns críticos a consideram “uma algaravia de

sandices.” Ao que parece, o articulista concorda com tais críticos. Se assim for, é um indício

que ele preferiu interpretar Nordeste Independente de forma literal. Ou seja, como se a

composição fosse um projeto político de nordeste auto-suficiente e não uma obra artística,

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bem humorada sobre os valores culturais do nordeste; que de acordo com a letra, são sempre

vistos pela ótica sulista de forma inferior. Vejamos um trecho da música:

Já que existe a separação de fato

É preciso torná-la de direito Quando um dia qualquer isso for feito

Todos dois vão lucrar imensamente Começando uma vida diferente

De que a gente até hoje tem vivido Imagina o Brasil ser dividido

E o nordeste ficar independente Dividindo a partir de Salvador

O nordeste seria outro país Vigoroso, leal, rico e feliz

Sem dever a ninguém no exterior Jangadeiro seria o senador

O cassaco de roça era o suplente Cantador de viola o presidente

O vaqueiro era o líder do partido Imagina o Brasil ser dividido

E o nordeste ficar independente (“Nordeste Independente”, Bráulio Tavares/Ivanildo Vilanova) 10

O próprio Bráulio Tavares, em entrevista ao site de poesias “Sobresites” 11, explica

que a música foi feita com o intuito de elevar a auto-estima do nordestino e não para propor

um projeto separatista da região. Veja a parte da entrevista que denota isso:

Sobresites: Fala como foi que surgiu o mote do "Nordeste independente", a parceria com o

Ivanildo Vila Nova e a idéia que se pretende passar com o que foi dito e que caiu tão bem ao

gosto popular.

Bráulio: Existe um certo ressentimento, em muitos nordestinos, com o modo como são tratados no Rio e São Paulo, como cidadãos de quinta categoria, como uma porção de broncos, analfabetos, mal-educados, etc. Eu fiz essa música para tentar aumentar a nossa auto-estima, dizendo que "a gente não precisa do resto do Brasil". Não é uma música para ser levada ao pé da letra. O Nordeste não sobreviveria, separado. É uma provocação bem-humorada, uma chamada para que o nordestino tenha orgulho de si próprio, e para que os demais nos respeitem. Mas numa boa, sem briga, sem ressentimento. As pessoas com quem convivo no Rio e em São Paulo admiram o Nordeste, conhecem, respeitam. Agora -- gente burra, preconceituosa, desinformada, tem tanto lá como cá. Aguiar poderia escolher qualquer outra música para citar como referência à Elba. A

escolha desta, sugere também, a intenção de enfatizar um possível “equívoco” dela ao cantar

uma letra que defenderia a independência do nordeste. Além disso, considerar o nordeste

independente poderia descaracterizar a necessidade da transposição. 10 A letra completa da música “Nordeste Independente” pode ser encontrada no seguinte endereço eletrônico: http://www.letras.com.br/elba-ramalho/nordeste-independente 11 Para conferir a entrevista na íntegra acesse o endereço: www.sobresites.com/poesia/brauliotavares.htm

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O autor encerra seu artigo relatando a desistência de Elba de se apresentar na Paraíba:

Recorte 2.6

“Sabe-se que Elba, agastada com as justas críticas que lhe foram dirigidas, recusou raivosa o alto cachê de 60 mil reais, que embolsaria para apresentar-se uma só noite, puxando certo bloco de carnaval. Sugiro ao poder público que, com esse dinheiro contrate artistas locais, vários deles ótimos intérpretes das canções que o povo gosta de ouvir.

Prometeu ela não mais vir à Paraíba. Aliás, aqui só aparecia para ganhar dinheiro. Que fique por lá! Não precisamos de quem está contra nós.”

O recorte acima também dialoga com as matérias analisadas. Pois, como percebemos,

a argumentação existente entre o gênero informativo e opinativo é de que a única solução para

a seca é a transposição do Rio São Francisco. Conforme visto, não existe, em ambos os

gêneros, outro tipo de abordagem acerca do assunto. O autor de certa forma impõe a

existência de um pensamento único sobre o tema, e o nordestino de opinião diferente é

considerado traidor.

Aguiar sugere que, com a desistência da cantora se “contrate artistas locais, vários

deles ótimos intérpretes das canções que o povo gosta de ouvir”. Elba, nesse contexto, não é

vista como uma artista local é como se não fosse mais paraibana. Mas e se esses outros

intérpretes da região também não forem a favor da transposição, se questionados, devem

mentir para não sofrerem represálias? A imposição de uma massificada e única opinião

pública a respeito do polêmico projeto tomou tamanha proporção, que ao escrever “Que fique

por lá! Não precisamos de quem está contra nós”, o articulista nos faz lembrar a censura nos

anos de ditadura do Brasil. Neste período, quem ousasse pensar diferente dos militares era

convidado a se retirar do país. No caso da transposição, Aguiar quis criar o seguinte ambiente:

quem não está com a transposição está contra o povo nordestino, não sendo digno de voltar à

região.

COLUNA DE OPINIÃO 3: “Bráulio não arrisca” (Carlos Magno, 02/03/06)12.

A coluna de Magno tem um perfil político e aborda, através de pequenas notas,

assuntos diversos relacionado a esse campo. Em 2006, o escritor e compositor Bráulio

Tavares esteve participando do 15º Encontro para a Nova Consciência, e o Correio da Paraíba,

12 Ver anexos, página 80.

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através desta coluna, destacou a opinião dele a respeito da polêmica da transposição, Veja o

que escreveu Magno:

Recorte 3.1

“Bráulio Tavares, que é bem amigo de Elba Ramalho, disse que não tinha embasamento teórico suficiente para se posicionar contra ou a favor da transposição de águas do Rio São Francisco, um dos temas debatidos no evento deste ano.”

Observe mais uma vez a interrelação entre Elba e a transposição. Em outras palavras,

Magno, ao descrever o posicionamento de Bráulio sobre o projeto de transposição não

desvincula o tema da ligação com Elba, informando, de forma irônica, e até mesmo antes do

assunto principal – a tranposição –, que o compositor “é bem amigo da cantora”.

Recorte 3.2

“Sem base: Politicamente correto, diferentemente de Elba, Bráulio se esquivou de qualquer opinião ao afirmar que as notícias sobre a transposição que chegam ao Rio de Janeiro, onde mora, são “os boatos, as fofocas, as intrigas.” Os dados técnicos e detalhes precisos que poderiam me ajudar a formar uma opinião não chegam.”

Na nota acima, Magno sugere que o “politicamente correto” é ser a favor ou se

esquivar. Elba não se enquadrou em nenhuma das alternativas e por isso, apesar do contra-

senso ela teria agido de forma politicamente incorreta. Na visão dele, Bráulio se esquivou,

mas mesmo assim, o colunista ainda põe em dúvida a credibilidade do seu argumento,

conforme podemos observar a seguir:

Recorte 3.3

“Será? A posição de Bráulio foi politicamente correta. Se ele é contra o projeto não quis dizer na cidade onde nasceu, para não gerar algo parecido com o que ocorreu com a amiga Elba. Entretanto, dizer que as notícias sobre a transposição que chegam ao Rio são “boatos, fofocas e intrigas” não foi, assim, tão convincente.”

Carlos Magno dar a entender que Bráulio é contra o projeto, mas, por medo de sofrer

represálias, não teve coragem de opinar e que sua argumentação de ausências de informações

teria sido apenas uma desculpa. Mas será que temos mesmo informações suficientes sobre a

transposição? Para o colunista, parece que sim. Outro detalhe perceptível aqui, é que se repete

o tipo de abordagem polarizada do Correio, saber quem é contra e quem é a favor do projeto.

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Como pudemos notar, até aqui o tema da transposição foi enquadrado discursivamente

a partir de um único ponto de vista, o de ser a favor da transposição. Para isso, o jornal

ressaltou em suas matérias e artigos, a necessidade desse projeto como solução para o

problema da seca. Aspectos climáticos da região, bem como o sentimento de paraibanidade,

foram a “moldura” argumentativa do Correio para convencer o leitor de que todos apóiam a

idéia, diferentemente de Elba.

A suposta declaração da cantora, nesse contexto, foi usada para polarizar a discussão.

E a polarização em “o ser contra” ou “o ser a favor” efetivada pelo Correio focaliza um alvo

afetivo, aquele que, de acordo com Charaudeau, (2006, p. 81) reage aos apelos “de ordem

emocional.” Assim, o alvo afetivo é vislumbrado em vários trechos das matérias analisadas,

exemplo disso é o fato do Correio fazer campanha exigindo que o governador não pague

cachê a cantora, já que esta, na visão retratada nos textos, traiu o seu estado; ora, como uma

paraibana, conhecedora da problemática da seca pôde se posicionar contra a solução?

Essa estratégia midiática, segundo o autor, baseia-se ao mesmo tempo, nos apelos

emocionais que prevalecem em cada comunidade sociocultural e no conhecimento dos

universos de crenças que nele circulam. E, como sabemos a crença que a transposição é a

redenção do nordeste vem de longe, sempre alimentada pelos discursos políticos e midiáticos.

O alvo intelectivo, neste caso, foi negligenciado quando o tema passou a ser tratado sem

espaços para questionamentos, dúvidas e reflexões.

A forma como o assunto foi enquadrado revela certa negligência das recomendadas

regras do jornalismo contemporâneo, a exemplo da objetividade, em seu sentido ético, que de

acordo com Melo (2006, p. 49):

se desdobra em pluralidade de fontes, de canais e de núcleos receptores. Em síntese: corresponde a assegurar que os acontecimentos sejam captados e reproduzidos sob diferentes ângulos, gerando distintas versões honestamente registradas pelos seus protagonistas privilegiados – os jornalistas profissionais.

Havendo negligência no jornalismo do que foi dito acima, os leitores não conseguem

compor uma visão própria do que está sendo noticiado por determinado veiculo. É o que

Serva (2001) considera “desinformação funcional.”

Na polêmica analisada, o Correio contribui com a desinformação na medida em que

mostra apenas um ponto de vista, assume uma postura parcial – o que contraria o principio de

objetividade – e não informa minimamente o que é a transposição do rio São Francisco e suas

possíveis implicações. O jornal deu destaque, sobretudo, a uma polarização superficial do

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tema, desqualificando a opinião contrária de Elba sem, ao menos, buscar fontes especializadas

para legitimar a discussão e os prováveis posicionamentos diversos existentes na sociedade.

Este aspecto é reforçado através dos artigos de opinião, que praticamente fazem uso dos

mesmos argumentos discursivos das notícias para defender a transposição – a exemplo do

sentimento de paraibanidade. Aliás, neste caso, os gêneros informativos e opinativos

estiveram sempre entrelaçados.

Também podemos perceber, na análise dos textos, um estreitamento das agendas

midiáticas e políticas, a policy agenda-setting a qual Molotch, Lester e Traquina (2001) se

referem. A relação se configura a partir da publicação de uma nota na coluna do jornal O

Globo13. A nota em questão, afirmava que Elba Ramalho era contra o projeto de transposição

das águas do rio São Francisco. A partir desta publicação, a Câmara de Municipal de Campina

Grande publicou em seu site uma nota de repúdio ao posicionamento da cantora. Ou seja, a

mídia pautou a política. Entretanto, quase que, num movimento de retorno, através do voto de

repúdio, a política pautou o jornal Correio da Paraíba. E, neste caso, não só como tema

jornalístico a ser destacado, mas também direcionando todo o ângulo da abordagem. Por

último, é válido ressaltar que Elba Ramalho afirmou em carta enviada ao Jornal da Paraíba

que não foi procurada por nenhum órgão de imprensa local para dar esclarecimentos sobre o

caso, conforme veremos abaixo:

4.2.1 O que disse Elba Ramalho a respeito da polêmica

Dois dias após a campanha organizada pelo Sistema Correio contra a presença de Elba

no bloco Muriçocas, o que ocasionou a sua desistência, mais precisamente no dia 17 de

fevereiro de 2006, a cantora se posicionou a respeito em outro veiculo de imprensa, o Jornal

da Paraíba. Através de uma carta intitulada “Eu e o velho Chico”, enviada ao jornal, a cantora

expõe o seu ponto de vista sobre a Transposição, rebateu críticas e defendeu a sua liberdade

de expressão. Já que não pudemos saber através do Correio da Paraíba da postura de Elba em

meio a polêmica, acreditamos ser oportuno expor o outro ângulo dessa história, vamos aos

principais trechos da carta (Jornal da Paraíba, 17/02/2006)14:

1. Sobre sua declaração contrária ao projeto no show da ONG Onda Azul

13 Ver anexos, página 76. 14 Ver apêndices, página 71.

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“Ao final da apresentação, lancei um apelo aos representantes da Onda Azul para que tratassem com carinho a questão da transposição das águas do Velho Chico, exigindo do Governo Federal mais transparência quanto aos tramites que envolvem este grandioso projeto. Naquele instante não manifestei nenhuma posição, nem contrária, nem favorável a transposição do Velho Chico, apenas uma observação sutil, uma tênue sugestão de um alargamento de diálogo entre o Governo Federal e os representantes das diversas Ongs que defendem a preservação do meio ambiente.” 2. Sobre a repercussão na política e imprensa

“Foi publicado no Estado de São Paulo uma nota relatando o fato, o que levou a Câmara de Vereadores de Campina Grande a redigir um ato de repúdio à minha pessoa transmitida por alguns órgãos de comunicação. O mais surpreendente é que em momento algum fui procurada pelos Vereadores ou qualquer órgão da imprensa para um esclarecimento.” 3. Sobre sua imagem criada na nota de repúdio e em alguns veículos de comunicação

“Não sou este ser que os senhores estão pintando para o povo simples e pobre do sertão. Também para o povo rico e afortunado da capital, para o estudante desavisado que pega o bonde andando e vai na onda sem saber o destino que virá. E o que dizer aos meus parentes e amigos que sofrem ao ver-me exposta ao ridículo, carregando uma culpa de um crime que não cometi?

É um jogo sujo e do qual não desejo fazer parte, pois mesmo tendo explicado a toda a imprensa, quando aí estive, sobre o meu pensamento puramente ecológico e sem qualquer comprometimento político, até porque não me envolvo com políticos, não tive o direito de resposta.” 4. Sobre a falta de ética jornalística

“A incitação feita por certos jornalistas paraibanos visando à violência contra minha pessoa, caso viesse a cantar na festa do Muriçoca é algo descabível na atual conjuntura político-social em que vivemos.”

5. Sobre a censura de cantar no evento e a paraibanidade que carrega

“Após trinta e cinco anos nos palcos da vida, é a primeira vez que vejo meu direito de cantar cerceado. Pasmo com tanta ignorância e inveja. Sim, porque vim e venci, porque sempre aceitei que me chamassem de “Paraíba” e com orgulho pulei os muros do preconceito para conquistar o mundo. Não para a minha honra, mas pela honra de meu povo, da terra que me gerou, da cultura que ganhou na minha voz e no meu discurso força e vitalidade.” 6. Sobre as suas origens

“Sei das necessidades do povo humilde de minha terra. Também sou fruto da seca.” 7. Sobre a liberdade de opinião

“Onde estão a verdade, a justiça, o direito de existir e do pensar, senhores jornalistas, vereadores e adeptos da violência contra a minha pessoa?

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8. O seu posicionamento final sobre a Transposição

“Acredito existirem meios melhores e mais eficazes de levar a sagrada água ao povo do sertão...

Aceito o sacrifício imposto por vós, amigos, como Cristo aceitou a Cruz, porém meu ponto de vista é o mesmo: “Deixe o Chico no seu canto que eu canto um acalanto, faço outra. Deixe o peixe, deixe o Rio que o Rio é o fio de inspiração!”

A partir do que foi exposto, pudemos ouvir o outro lado da história. Mesmo a carta

tendo sido publicada em outro jornal de grande circulação no Estado, de fácil acesso, o jornal

Correio da Paraíba se quer mencionou que a cantora havia se posicionado sobre o assunto.

Pelo contrário, manteve o mesmo tipo de enquadramento sobre a polêmica. Pudemos observar

isso durante a análise, pois, nos dias subseqüentes aos tais esclarecimentos, 23 e 24 de

fevereiro, o jornal publicou um artigo de Wellington Aguiar, no qual Elba é acusada de

traição à Paraíba e outro de F. Pereira Nóbrega, este sugerindo que ela não deveria ter se

declarado contrária a Transposição. E, para o Correio da Paraíba, é como se Elba Ramalho

tivesse se mantido em silêncio neste período.

4.4 A transposição desvinculada da polêmica com Elba

Nesta etapa da análise, observaremos o tratamento dado ao tema da transposição pelo

Correio da Paraíba, sem relacioná-lo à declaração da cantora e suas conseqüências. Com isso,

buscaremos compreender se houve mudanças nos quesitos informatividade, angulações e

pluralidade de abordagem. Vamos às matérias:

NOTÍCIA 1: “Transposição do São Francisco será discutida pelos CAOPS”

(Publicado na seção “Divulgação” de assuntos relacionados ao Ministério Público no

dia 17 de novembro de 2005)15.

A notícia, na verdade, é um release da assessoria do Ministério Público da Paraíba e,

como vimos no capítulo 1 que trata da cultura profissional, os releases normalmente são

emitidos aos veículos de comunicações prontos para serem publicados e com uma única

perspectiva, a do assessorado. Sendo assim, são textos de divulgação onde não se

problematiza ou informa com profundidade o que está sendo divulgado. No caso acima, o

foco é apenas “anúnciar” um encontro entre coordenadores dos Centros de Apoio Operacional

15 Ver anexos, página 81.

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às Curadorias (CAOPs) para discutirem o projeto de transposição. Mesmo assim, observe que,

diferentemente da abordagem do Sistema Correio, existe o reconhecimento por parte do

Ministério Público do Estado da importância em se debater o assunto com o apoio de técnicos

especializados:

Recorte 1.1

“A necessidade de debater a transposição do Rio São Francisco foi o destaque da reunião (...). Segundo os coordenadores, deverá acontecer um encontro, mais precisamente em Campina Grande, onde serão convocados técnicos especializados para este fim, no sentido de dar ao integrante todas as informações necessárias à importante compreensão do assunto”

NOTÍCIA 2: “MP se reúne com Exército para discutir transposição do S. Francisco”

(Publicado no Caderno “Divulgação” de assuntos relacionados ao Ministério Público

no dia 24 de novembro de 2005, emitido ao Correio da Paraíba pela assessoria do

MP)16.

A informação principal é a que o próprio título do texto contém, ou seja, um encontro

entre o MP e o exército para falar sobre a transposição do rio São Francisco. Na reunião

estavam: a procuradora geral de Justiça, Janete Ismael, o procurador Agnello Amorim,

representante do MP na discussão sobre o projeto, o general de Brigada Paulo Komatsu,

Comandante do 1° Grupamento de Engenharia e da Guarnição Federal de João Pessoa, o

subprocurador geral de Justiça, promotor Paulo Barbosa, o coronel Ferreira, segundo o autor

“um dos maiores estudiosos sobre a questão da água,” além de dois engenheiros (os quais os

nomes não foram citados) “responsáveis pela elaboração do projeto e execução da obra”.

Apesar das inúmeras fontes presentes, inclusive engenheiros, poucas informações

foram emitidas ao jornal. Entre elas, a disponibilidade do Ministério Público ao exército em

acompanhar o caso: “A procuradora geral disse que o MP quer acompanhar todo o processo

no Estado da Paraíba e se colocou a disposição” e que o 1° Grupamento de Engenharia terá

participação na obra elaborando um projeto executivo de dois canais que deverão ser

construídos no Estado. Outro destaque no texto é que, para o MP é necessário conscientizar à

população sobre a importância da obra:

16 Ver anexos, página 81.

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Recorte 2.1

“O procurador Agnello Amorim falou da necessidade da Paraíba se preparar para receber as águas do Rio São Francisco. Para isso, conclamou o Ministério Público a desenvolver um trabalho de conscientização da população.” Do texto acima, pressupõe-se que a população não está suficientemente informada

acerca do projeto de transposição.

NOTÍCIA 3: “Assembléia vai discutir Transposição” (Caderno de política, 27/01/

2006)17.

A nota assinada pela jornalista Adriana Rodrigues informa exatamente o que o título

diz. Trata-se de um evento organizado pela Assembléia Legislativa excepcionalmente às

margens do Açude Epitácio Pessoa em defesa do projeto de transposição. O objetivo é

conseguir o apoio da população:

Recorte 3.1

“A proposta foi apresentada pelo deputado estadual João Fernandes (PSDB), com o objetivo de promover uma ampla discussão sobre a importância da transposição para atender aos municípios do nordeste setentrional, atingidos com efeitos danosos da seca e com a falta de água para atender as necessidades básicas da população. De acordo com João Fernandes, a Transposição do Rio São Francisco é uma das obras mais importantes a ser realizada pelo Governo Federal, e que não depende apenas de decisão política, mas da manifestação do povo brasileiro em favor da consolidação do projeto”.

Observe que, segundo o texto, a proposta do deputado é “promover uma ampla

discussão” do projeto, entretanto, a matéria não informa se no evento estarão fontes

especializadas (engenheiros, técnicos, ambientalistas etc.) que possibilitariam tamanha

discussão, esclarecendo os possíveis pontos controversos existentes. Por outro lado, reforça

através da fala do deputado, a importância da manifestação do povo a favor do projeto.

NOTÍCIA 4: “Parlamentares articulam evento pela transposição” (Publicado no

caderno de política no dia 10 de março de 2006)18.

17 Ver anexos, página 82. 18 Ver anexos, página 83.

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A matéria é referente a um encontro entre parlamentares que defendem a transposição,

observe abaixo os seguintes trechos:

Recorte 4.1

“Campina Grande vai sediar, no próximo dia 19, reunião de parlamentares do Nordeste que defendem e apóiam a transposição das águas do Rio São Francisco para Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte, os Estados mais afetados com os efeitos da seca. O evento está sendo organizado pelos deputados federais paraibanos Carlos Dunga (PTB) e Enivaldo Ribeiro (PP) que convidaram colegas de toda a região.”

O fragmento acima demonstra sutilmente o posicionamento favorável do jornal ao

projeto, quando afirma quais são“os Estados mais afetados com os efeitos da seca”, sem

oferecer ao leitor dados técnicos ou uma fonte de pesquisa assegurando essa veracidade (grifo

nosso). Nesse contexto, essa afirmação está apenas reforçando a necessidade da transposição

como solução para os efeitos da seca nesses estados, coincidindo assim, com a visão dos

parlamentares que “defendem e apóiam” a causa.

Outro dado interessante é a “diversidade” de segmentos que participarão da discussão:

Recorte 4.2

“Além dos deputados federais, também deverão participar do evento deputados estaduais, presidentes de Assembléias Legislativas, prefeitos, vereadores e outros segmentos da sociedade nordestina.”

Mais uma vez, pode-se perceber, no texto, que, se no encontro haverá engenheiros,

ambientalistas e técnicos. colaborando com a polêmica discussão, ficaram incluídos na

indefinida expressão “...e outros segmentos da sociedade nordestina”.

O trecho a seguir ressalta o lado opinativo do jornal, nesta matéria informativa:

Recorte 4.3

“Dunga lamenta que parlamentares da Bahia, Sergipe e Alagoas trabalhem contra o projeto da interligação de bacias, o que contribui para protelar a sua execução. A bancada nordestina é formada por um total de 151 deputados. Se houvesse união entre os componentes da bancada, o Nordeste seria muito beneficiado.”

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Observe que fica a dúvida onde termina o discurso do deputado Dunga e dá início a

opinião jornalística. No fragmento “A bancada nordestina é formada por um total de 151

deputados. “Se houvesse união entre os componentes da bancada, o Nordeste seria muito

beneficiado” (grifo nosso) diz respeito à fala de quem, já que o autor não utilizou aspas?

Quem defende a união da bancada em favor do projeto?

A abordagem sobre a transposição do Rio São Francisco feita pelo jornal Correio da

Paraíba, mesmo desvencilhada da polêmica declaração de Elba Ramalho, não trouxe maiores

esclarecimentos acerca do projeto. A cobertura do assunto se restringiu a um ciclo de

anúncios de eventos políticos, como os títulos das matérias mostraram:

1. “Transposição será discutida pela CAOPs” (17/11/2005);

2. “MP se reúne com Exército para discutir transposição do S. Francisco”

(24/11/2005);

3. “Assembléia vai discutir Transposição” (27/01/2006);

4. “Parlamentares articulam evento pela transposição” (10/03/2006).

Em síntese, o que pôde ser visto é que não houve variações de ângulos em torno do

assunto em questão. Ou seja, não houve espaço para diversidades de pontos de vista nas

matérias analisadas, o projeto de transposição foi tratado sempre como algo indiscutivelmente

positivo para o nordeste e as notícias sobre encontros para se debater o tema tinham o objetivo

de conseguir o apoio popular fazendo uso apenas desse argumento. O destaque, nesse

contexto, foi dado para as fontes políticas e releases de onde saiam às restritas informações. A

conseqüência da não pluralidade de fontes foi o ofuscamento de outras possíveis abordagens

nesse período, como por exemplo: Os argumentos de quem não concorda com a transposição,

o impacto dessa obra na questão ambiental, na fauna e flora e nas populações ribeirinhas que

utilizam a água do rio São Francisco, as condições do rio, a revitalização, a efetividade e os

gastos públicos dessa obra, se há projetos alternativos etc. Mais uma vez, a Transposição foi

tratada pelo Correio da Paraíba com uma única perspectiva, a dos que são a favor e sem dar

margem para questionamentos.

Após a última notícia analisada, houve um “esvaziamento” de notícias, notas e artigos,

sobre a transposição. Como dissemos anteriormente, o período delimitado para pesquisa foi

de novembro de 2005 a julho de 2006 e, neste último ano, aconteceram à copa do mundo de

futebol, as eleições presidenciais e para governador, o que de certa forma ocuparam a atenção

midiática mais que qualquer outro evento. Devido à relevância social e midiática desses temas

pré-agendados, ocorreu o que Serva (2001) chama “a desinformação sobre os

desdobramentos”, que acontece quando um assunto novo ofusca outro antigo, causando sua

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não continuidade na mídia. Contudo, a notícia que encerra o ciclo da pesquisa – sendo

também, a última no período relacionando à Transposição e Elba – foi esta:

NOTÍCIA 5: “Elba Ramalho voltará a se apresentar em Campina Grande” (Caderno

de Cultura, 12/07 /0619.

Recorte 5.1

“Depois da polêmica do Fenart- Festival Nacional de Arte em João Pessoa, quando uma declaração de Elba Ramalho contra a transposição do Rio São Francisco sem uma revitalização prévia do “Velho Chico” causou até pedido de boicote à cantora, chegou a hora da Paraíba se render aos encantos de Elba.

Na verdade, o reencontro de Elba com a Paraíba já aconteceu na abertura do São João de Bananeiras, mas agora ela vem para um evento de proporções maiores, que é o 31° Festival de Inverno de Campina Grande”.

O que chama à atenção é que agora, o jornal omite que, orgulhosamente foi um dos

responsáveis pelo pedido de boicote à cantora, preferindo enfatizar o seu valor artístico:

“Chegou a hora da Paraíba se render aos encantos de Elba.” (grifo nosso) Durante toda a

pesquisa, pudemos ver que o Correio priorizou mais a polêmica do que os esclarecimentos

sobre a Transposição. Tal abordagem limitou a pluralidade de enquadramentos possíveis

sobre o tema. Mas deixemos para tratar disso nas conclusões, a seguir.

Conclusão

“Posso não concordar com nenhuma das palavras

que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las”. (Voltaire)

O debate sobre a Transposição do São Francisco já é um tema por si só controverso.

Sempre despertou a fé e desconfiança simultaneamente. A fé na democratização da água para

os lugares mais secos da região Nordeste. E inúmeras desconfianças: da efetividade do

projeto, dos impactos sociais, ambientais, dos interesses políticos, etc. O fato é que a maioria

da população brasileira pouco sabe a respeito da transposição e acompanha o seu debate mais

na base “da torcida” – contra ou favor – do que em informações consistentes e bem

fundamentadas. Em geral, a mídia informativa – que poderia contribuir para o esclarecimento

dos cidadãos – se limita a fontes políticas na construção dos seus textos, diminuindo o ângulo

19 Ver anexos, página 83.

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de abordagens possíveis que poderiam ser realizadas. Este foi um dos resultados a que

chegamos nesta pesquisa que teve como objetivo entender a desinformação sobre a

Transposição no contexto da polêmica em torno da declaração de Elba Ramalho, contrária ao

projeto. A partir das análises dos enquadramentos discursivos das matérias, artigos e notas,

podemos concluir que, de modo geral:

a) o assunto foi abordado a partir de um só ângulo, a transposição como solução para a

seca do nordeste, sem permitir espaço para dúvidas ou questionamentos;

b) o jornal foi parcial e antiético no caso da polêmica com Elba, não respeitando a

liberdade de expressão;

c) houve coincidência de discursos e pontos de vista entre os gêneros informativos e

opinativos, caracterizando que informação e opinião se fundiram;

d) o enquadramento das notícias e artigos que tratavam da relação Transposição-

declaração de Elba se assemelha ao enquadramento da nota de repúdio emitida pelos

vereadores, sugerindo uma aproximação entre a agenda política e midiática.

e) a desinformação funcional foi ocasionada por uma série de outras características

relativas à cobertura do caso como: polêmica no lugar de informação, polarização do tema,

inexistência de fontes especializadas para falar sobre a Transposição, ausência de pluralidade

de pontos de vista e abordagens em torno do tema (o que é o projeto, perspectivas,

prospectivas, impactos sociais, econômicos, ambientais, etc.).

O que pôde ser constatado no decorrer do trabalho é que apesar de o tema ser

controverso, o Jornal Correio da Paraíba o tratou a partir de um só enquadramento: como

algo certo e positivo para o povo nordestino. É tanto que quando Elba declarou-se contra a

Transposição, o jornal, não aceitando tal postura, abriu mão de princípios éticos da profissão e

fez “campanha” contra a presença da cantora no bloco Muriçocas, atribuindo-lhe a imagem de

traidora de seus conterrâneos. É válido destacar que essa “campanha” não foi feita no espaço

opinativo – para o qual, regras éticas devem também existir – e sim no informativo. Aliás, não

houve delimitação de fronteiras entre os espaços opinativo e informativo, durante esse

episódio. O diálogo entre informação e opinião foi perceptível, assim como a proximidade

entre a agenda política e a midiática, cujo direcionamento da cobertura desta, se assemelha à

nota de repúdio dos vereadores à cantora. O jornalismo, enquanto formador de opinião, não

pode prescindir da responsabilidade social que a profissão exige. Usar um veículo de

comunicação para perseguir alguém por discordâncias de ponto de vistas, não é democrático,

fere a liberdade de expressão e pode ter conseqüências violentas imensuráveis.

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Não é papel da imprensa perseguir pessoas que discordem de sua linha editorial. Sua

função é dar espaço também a essas e outras vozes para que o público consiga ter uma noção

bilateral, multilateral dos fatos. E isso o Correio não fez. Não procurou falar com Elba sobre o

caso, preferiu polarizá-lo. No entanto, já que o Jornal assumiu essa postura parcial colocando-

se contra quem não apóia a Transposição, criou-se o ambiente ideal, para o Correio

fundamentar sua defesa com fontes especializadas no assunto, assim os leitores seriam

beneficiados com informações qualificadas que os ajudassem a compor uma visão própria do

tema.

Outra característica verificada é que as notícias sobre a transposição à época da

declaração apareceram sempre interligadas, pertencentes ao mesmo universo. Não era nítido,

em alguns textos, se a discussão era sobre a transposição ou sobre a declaração contrária ao

projeto.

Passada a polêmica com Elba, pudemos notar que não houve muita diferença no

quesito informatividade. Se antes as matérias, artigos e notas enfocavam a polarização ser

contra ou a favor, os textos jornalísticos, incluindo releases, analisados sem o vínculo com

Elba destacaram apenas um ciclo de eventos políticos programados para se discutir a

transposição. Os enquadramentos, nestes casos, apesar de sutis, eram semelhantes aos

anteriores, ou seja, consideravam que todo mundo apóia ou deveria apoiar o projeto.

Todos esses aspectos relativos à cobertura feita pelo Correio contribuíram para um

quadro de desinformação funcional, visto que o jornal tratou a questão de forma indutiva, no

sentido de que todo paraibano deve ser a favor. Não houve pluralidade na abordagem. É

importante lembrar que a Transposição do São Francisco é de interesse social, e está

relacionado não só com questões políticas, mas também com a economia, o meio ambiente,

etc. um jornalismo informativo de qualidade não pode deixar de abordar essas relações. Mas

foi isso que pudemos constatar durante a pesquisa.

Diante dessas constatações, é importante enfatizar que a cultura profissional do jornalista não

pode ser vista como um conjunto de hábitos estáticos e imutáveis. Algumas práticas poderiam

ser repensadas e adaptadas nas rotinas produtivas, por exemplo: não se acomodar com as

informações contidas em um release, ou seja, ir em busca de outras fontes que o

complementem e não só as fontes oficiais, checar se as informações são verídicas antes de

publicar pois, acima do deadline deve prevalecer a verdade dos fatos, não abordar as questões

sociais com enfoque mais passional do que informativo. Se o jornal analisado tivesse

observado essas e outras recomendações de um jornalismo ético, talvez os leitores pudessem

entender também a Transposição e não só a polêmica. No entanto, embora o slogan do

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Correio da Paraíba seja “Jornalismo com Ética e Paixão”, o que se pôde observar no decorrer

do trabalho é que a paixão se sobrepôs à ética.

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