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RDS IX (2017), 1 O processo especial para acordo de pagamento (PEAP): o novo regime pré- -insolvencial para devedores não empresários Sumário: 1. Nota introdutória. 2. O regime do PEAP e o regime do PER: aproximações e afastamentos: 2.1. A discussão sobre a aplicação do PER aos devedores não empresários. 2.2. A «empresa» como conceito nevrálgico. 2.3. Nota metodológica. 2.4. Outros regimes a considerar para além do PER. 3. Aspetos formais: 3.1. Denominação. 3.2. Posicionamento sistemático: a deslocação do regime do PEAP para as disposições introdutórias do CIRE e a inclusão de uma remissão geral para o regime do PER. 3.3. A opção pela manutenção de dois regimes parcialmente iguais (PER/PEAP): irregularidades e incoerências. 4. Alguns aspetos substantivos: 4.1. A «situação económica difícil» e a «situação de insolvência imi- nente» de devedores não empresários; a “prova” e a declaração pelo devedor da verificação dos requisitos objetivos do PEAP. 4.2. O início das negociações: 4.2.1. A autorização do administrador judicial provisório para a prática de «atos de especial relevo» pelo devedor. 4.2.2. A manutenção do fornecimento de serviços públicos essenciais. 4.2.3. A atuação de acordo com os princípios orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25 de setembro. 4.3. O conteúdo do acordo de pagamento e os seus efeitos perante os credores que não o aprovaram. 5. Alguns aspetos processuais: 5.1. A junção de documentos pelo devedor. 5.2. Efeitos processuais do despacho de nomeação do administrador judicial provisório: o efeito sobre as ações para cobrança de dívidas. 5.3. Os poderes do juiz e do administrador judicial provisório: 5.3.1. A nomeação do administrador judicial provi- sório. 5.3.2. A inexistência de uma fase de indeferimento liminar. 5.3.3. A relação entre a não homologação do acordo de pagamento, o parecer do administrador judicial provisório e a declaração da insolvência pelo juiz. 5.3.4. A apresentação de um plano de pagamentos aos credores antes da declaração de insolvência. 1. Nota introdutória 1. O texto que se segue corresponde, com algumas alterações, ao texto das autoras integrado na resposta à Consulta Pública apresentada pelo Centro de Investigação de Direito Privado (CIDP) ao Projeto de Decreto-Lei que altera o Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2017).indb 68 Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2017).indb 68 23/05/17 14:48 23/05/17 14:48

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O processo especial para acordo de pagamento (PEAP): o novo regime pré--insolvencial para devedores não empresários

Sumário: 1. Nota introdutória. 2. O regime do PEAP e o regime do PER: aproximações e afastamentos: 2.1. A discussão sobre a aplicação do PER aos devedores não empresários. 2.2. A «empresa» como conceito nevrálgico. 2.3. Nota metodológica. 2.4. Outros regimes a considerar para além do PER. 3. Aspetos formais: 3.1. Denominação. 3.2. Posicionamento sistemático: a deslocação do regime do PEAP para as disposições introdutórias do CIRE e a inclusão de uma remissão geral para o regime do PER. 3.3. A opção pela manutenção de dois regimes parcialmente iguais (PER/PEAP): irregularidades e incoerências. 4. Alguns aspetos substantivos: 4.1. A «situação económica difícil» e a «situação de insolvência imi-nente» de devedores não empresários; a “prova” e a declaração pelo devedor da verifi cação dos requisitos objetivos do PEAP. 4.2. O início das negociações: 4.2.1. A autorização do administrador judicial provisório para a prática de «atos de especial relevo» pelo devedor. 4.2.2. A manutenção do fornecimento de serviços públicos essenciais. 4.2.3. A atuação de acordo com os princípios orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25 de setembro. 4.3. O conteúdo do acordo de pagamento e os seus efeitos perante os credores que não o aprovaram. 5. Alguns aspetos processuais: 5.1. A junção de documentos pelo devedor. 5.2. Efeitos processuais do despacho de nomeação do administrador judicial provisório: o efeito sobre as ações para cobrança de dívidas. 5.3. Os poderes do juiz e do administrador judicial provisório: 5.3.1. A nomeação do administrador judicial provi-sório. 5.3.2. A inexistência de uma fase de indeferimento liminar. 5.3.3. A relação entre a não homologação do acordo de pagamento, o parecer do administrador judicial provisório e a declaração da insolvência pelo juiz. 5.3.4. A apresentação de um plano de pagamentos aos credores antes da declaração de insolvência.

1. Nota introdutória

1. O texto que se segue corresponde, com algumas alterações, ao texto das autoras integrado na resposta à Consulta Pública apresentada pelo Centro de Investigação de Direito Privado (CIDP) ao Projeto de Decreto-Lei que altera o

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Código das Sociedades Comerciais e o Código da Insolvência e da Recupera-ção de Empresas (o «Projeto»), que faz parte do conjunto de medidas legislativas do Programa Capitalizar aprovadas, no passado dia de 16 de março, em Con-selho de Ministros1. Este texto versa sobre a proposta de introdução no CIRE (nos artigos 222.º-A a 222.º-I) do designado «processo especial para acordo de pagamento» («PEAP»)2. Conforme se encontra delineado no Projeto, trata-se de um processo pré-insolvencial, de natureza judicial, aplicável aos devedores «que não sejam empresas» e que se encontrem em «situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente».

À introdução deste processo pré-insolvencial no CIRE subjaz a opção de reservar «o PER às empresas […], permitindo aos particulares continuarem a dispor de um instrumento mais simplifi cado, destinado a obter um acordo de pagamento com os seus credores»3. Em coerência, o Projeto introduz altera-ções à disciplina do PER, agora dirigido apenas a empresas, com o objetivo de credibilizar e de reforçar a transparência do PER enquanto instrumento de recuperação4 – propondo-se, nessa linha, um maior controlo da verifi cação dos requisitos para a aplicação do seu regime5-6.

1 Tal como divulgado no Comunicado do Conselho de Ministros de 16 de março de 2017, dis-ponível online em http://www.portugal.gov.pt/pt/o-governo/cm/comunicados/20170316-com-cm.aspx.2 As disposições legais não acompanhadas da fonte pertencem ao CIRE, salvo quando do con-texto resultar outra pertença. As disposições legais do CIRE propostas no Projeto são citadas com a referência «na versão do Projeto».3 Programa Capitalizar, ponto 1 (vide Comunicado do Conselho de Ministros de 16 de março de 2017).4 Veja-se, neste sentido, o 9.º parágrafo do Preâmbulo do Projeto.5 Não se altera o âmbito de aplicação objetivo do PER, mas consagra-se um sistema de controlo externo independente da verifi cação dos seus requisitos: a empresa deverá apresentar «declaração subscrita, há não mais de 30 dias, por contabilista certifi cado ou por revisor ofi cial de contas, sempre que a revisão de contas seja legalmente exigida, atestando que não se encontra em situa-ção de insolvência atual, à luz dos critérios previstos no artigo 3.º» (artigo 17.º-A/2, na versão do Projeto). Este sistema de controlo externo pretende evitar que o PER seja utilizado como mero instrumento dilatório por devedores que, pretendendo adiar a insolvência, já se encontrem em estado de insolvência. Mas, como bem refere David Oliveira Festas no estudo que integra a presente coletânea, Alterações a introduzir no processo especial de revitalização (artigos 17.º-A a 17.º-I), 38, «se o propósito é meritório, a concretização fi cou aquém do que seria desejável: o contabilista certifi cado ou ROC deverá certifi car que a empresa “não se encontra em insolvência atual”, mas a lei não lhe exigirá que ateste a verifi cação dos requisitos positivos de recurso ao PER, isto é, que a empresa se encontra “em situação económica difícil ou em situação de insolvência mera-mente iminente” e que é (ainda) suscetível de recuperação (artigo 17.º-A/1). Contrariamente ao que se estatui em outros sistemas, comete-se ao contabilista certifi cado ou ROC uma declaração de mera apreciação negativa (de que a empresa “não se encontra em insolvência atual”), quando

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6 2. Analisado o regime do PEAP – quase integralmente decalcado do regime do PER (basta considerar as epígrafes dos artigos do regime do PEAP, que correspondem na sua maioria às dos artigos do regime do PER) –, fi ca clara a opção do legislador de o fazer «sem abandonar o formato [do PER] para as pessoas singulares não titulares de empresas ou comerciantes»7. O PEAP surge, pois, como um “PER específi co” dos devedores que não sejam empresas. A distinção entre o PER e o PEAP é traçada, no Projeto, com base no tipo de devedores por esses regimes abrangidos (devedores empresários e devedores não empresários, respetivamente) e nas fi nalidades desses processos. Quanto a estas, cabe notar que visam ambos permitir ao devedor estabelecer negociações com os respetivos credores, de modo a celebrar um acordo com estes, cujo fi m é o de evitar que o devedor se venha a constituir em estado de insolvên-cia. Contudo, no caso do PER, esse será um acordo tendente à revitalização da empresa – donde resulta a exigência de que esta «ainda seja suscetível de recuperação» (artigo 17.º/1). Já no caso do PEAP, faz-se apenas referência ao objetivo de estabelecer negociações com os credores «de modo a concluir com estes acordos de pagamento» (artigo 222.º-A/1, in fi ne, na versão do Projeto). Em conformidade com estas fi nalidades, o Projeto vem acrescentar um n.º 3 ao artigo 1.º, no qual se determina que «Tratando-se de devedor de qualquer outra natureza em situação económica difícil ou em situação de insolvência mera-mente iminente, este pode requerer ao tribunal processo especial para acordo de pagamento, previsto nos artigos 222.º-A a 222.º-I». Modifi ca-se também o n.º 2 do mesmo artigo, o qual passa a dispor que «Estando em situação eco-nómica difícil, ou em situação de insolvência meramente iminente, a empresa pode requerer ao tribunal a instauração de processo especial de revitalização, de acordo com o previsto nos artigos 17.º-A a 17.º-I». Aparentemente afastadas do

seria recomendável uma apreciação positiva de que a empresa se encontra em “situação económica difícil” ou “de insolvência meramente iminente”, podendo ser ainda recuperada. Nesse caminho de retorno à solução gizada no anteprojeto, poderia admitir-se que o contabilista certifi cado ou o revisor ofi cial de contas não levassem a cabo essa apreciação, caso em que a sua declaração deveria ser complementada pela de (outros) profi ssionais qualifi cados e independentes com experiência em assuntos de insolvência», dando o autor o exemplo da solução consagrada no § 270b (1) da Insol-venzordnung, o qual admite que a declaração possa ser emitida por «eines in Insolvenzsachen erfahrenen Steuerberaters, Wirtschaftsprüfers oder Rechtsanwalts oder einer Person mit vergleichbarer Qualifi kation».6 Várias foram as pistas oferecidas ao legislador no sentido de o regime do PER ser melhorado para favorecer uma efetiva recuperação das empresas, em vez de permitir apenas um adiamento da insolvência destas – veja-se, por exemplo, o estudo de Rui Pinto Duarte, Refl exões de política legislativa sobre a recuperação das empresas, em II Congresso de Direito da Insolvência (Catarina Serra), Almedina, Coimbra, 2014, 347 e seguintes.7 Cf. 9.º parágrafo do Preâmbulo do Projeto.

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PEAP fi cam, portanto, a ideias de recuperabilidade e de revitalização do devedor não empresário. Veremos adiante o alcance deste afastastamento8.

3. O Projeto dá corpo a uma intervenção legislativa que, para lá do acerto de alguns aspetos do regime da insolvência, determina um aprofundamento da tutela judicial pré-insolvencial, agora dividida no PER e no PEAP, sem que se tenha alterado a estrutura e matriz do CIRE. Reconhecendo-se que, numa visão geral, a intervenção do legislador no CIRE foi necessária e acertada9, a oportunidade desta alteração ao CIRE em matéria de processos pré-insolven-ciais não poderá, todavia, deixar de ser questionada, quando apenas volvidos cinco anos desde a introdução do PER no nosso ordenamento jurídico e dois anos desde a sua última alteração (com o Decreto-Lei n.º 26/2015, de 6 de fevereiro), se antevê, a breve trecho, a regulação destas matérias no ordena-mento europeu, face à recente Proposta da Comissão Europeia de Diretriz do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos quadros jurídicos em matéria de reestruturação preventiva, à concessão de uma segunda oportunidade e às medidas destinadas a aumentar a efi ciência dos processos de reestruturação, insolvência e quitação e que altera a Diretriz 2012/30/UE10-11.

2. O regime do PEAP e o regime do PER: aproximações e afastamentos

2.1. A discussão sobre a aplicação do PER aos devedores não empresários

4. A proposta de circunscrição do âmbito de aplicação subjetivo do PER a empresas e do PEAP a devedores não empresários vem acabar com a discussão em torno do entendimento – que tem feito eco tanto nos nossos tribunais, como na doutrina12 – de que o PER não seria aplicável a devedores que não

8 Cf. 2.2. infra.9 Neste sentido se pronuncia Rui Pinto, no seu Comentário geral à reforma, 20, que integra a pre-sente coletânea.10 COM (2016) 723 fi nal, 2016/0359 (COD), 22.11.2016, disponível online em https://ec.europa.eu.11 Com críticas no mesmo sentido, David Oliveira Festas, Alterações a introduzir no processo especial de revitalização cit., 35-36; Adelaide Menezes Leitão, Propostas de alterações do regime de exoneração do passivo restante, 123-124, também em estudo integrante da presente coletânea.12 Na jurisprudência, veja-se, entre outros, o Ac. STJ 10-dez-2015, Proc. 1430/15.9T8STR.E1.S1 (Pinto de Almeida), no qual se decidiu que «as normas que regem o PER devem ser interpreta-das restritivamente, no sentido de que esse processo especial não é aplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes, empresários ou que não desenvolvam uma actividade económica por conta própria». Na doutrina, sustentando esta tese, Luís Carvalho Fernandes/João Laba-

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fossem empresas, não obstante a ausência de qualquer limitação nesse sentido na letra dos artigos 17.º-A e seguintes do CIRE.

5. Recorde-se que, muito simplifi cadamente, este entendimento assenta em duas ordens de razões.

Em primeiro lugar, baseia-se num argumento histórico-teleológico13: a intenção reguladora do legislador com a introdução do PER foi a de circuns-crever a utilização desse processo de recuperação aos devedores titulares de empresas, tendo em vista os anunciados desideratos de «manutenção do deve-dor no giro comercial», de «promover a revitalização de empresas, assegurando a produção de riqueza e a manutenção de postos de trabalho», e do «combate ao desaparecimento de agentes económicos» e ao «empobrecimento do tecido económico português»14.

Em segundo lugar, funda-se num argumento de proporcionalidade, por ser o recurso ao PER desadequado e desnecessário para devedores não empresá-rios. Por um lado, a aplicação do regime do PER a devedores que não sejam empresas seria desadequada à sua condição, porquanto este regime assenta na recuperabilidade do devedor e, à luz das medidas de recuperação constantes desse regime – que têm como pano de fundo a manutenção, com algumas restrições, da atividade da empresa, em detrimento do seu encerramento (que, muitas vezes, se segue à declaração de insolvência), com vista à sua revitalização –, é difícil conceber as ideias de conservação de atividade e de revitalização de devedores que não sejam empresas. E assim seria, desde logo, porque quanto a estes deve-dores o recurso ao PER de nada adiantaria no que à manutenção da atividade profi ssional destes diz respeito, pois nunca estes devedores (geralmente, traba-lhadores por conta de outrem) – nem na sequência da declaração de insolvência – se viram impedidos de continuar a praticar a respetiva atividade profi ssional. Depois, porque mesmo colocando-se a tónica (apenas) na recuperabilidade do devedor, então, a utilização do PER serviria os mesmos desideratos do já con-

reda, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado. Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE) Anotado. Legislação Complementar, Quid juris, Lisboa, 2015, 140; Paulo Olavo Cunha, Os deveres dos gestores e dos sócios no contexto da revitalização das sociedades, em II Congresso do Direito da Insolvência cit., 220-221.13 Aqui, com apoio na terminologia «interpretação histórico-teleológica» («historisch-teleologische Auslegung») utilizada em Karl Larenz/Claus-Wilhelm Canaris, Methodenlehre der Rechtswis-senschaft, 3. Aufl age, Springer, Berlin-Heidelberg, 1995, 164.14 Identifi cados na Resolução do Conselho de Ministros n.º 11/2012, de 19 de janeiro, que cria o Programa Revitalizar, bem como na Exposição de Motivos da Proposta de Lei 39/XII, de 30 de dezembro de 2011, que esteve na génese da Lei n.º 16/2012, de 20 de abril.

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sagrado mecanismo da exoneração do passivo restante15. Por outro lado, essa aplicação seria desnecessária, dado que já existe no CIRE um meio próprio para estes devedores, que é o plano de pagamentos aos credores (regulado nos arti-gos 251.º e seguintes), o qual garante a estes devedores uma «menor duração do processo, menores custos e inexistência dos efeitos da declaração de insolvência sobre o devedor, comportando menor desgaste psicológico e patrimonial e evi-tando o estigma social da declaração de insolvência, uma vez que a declaração de insolvência não é publicitada»16.

6. Da arquitetura do regime do PEAP infere-se que não terá vingado a ideia de que o CIRE oferecia já, com o mecanismo do plano de pagamentos aos credores, um processo alternativo ao PER para os devedores não empre-sários. De outra forma, ter-se-ia melhorado o regime do plano de pagamentos, de forma a acomodar os incentivos e as preocupações que estiveram na base da opção, pelos devedores não empresários, do recurso ao PER, em detrimento do recurso ao plano de pagamentos, ou ter-se-ia eliminado o regime do plano de pagamentos. Nada disto foi feito no Projeto.

Esta ideia de que o meio pré-insolvencial próprio e por excelência dos devedores não empresários é o plano de pagamentos aos credores foi, de resto, vincadamente combatida pelas revelações dos dados estatísticos sobre o tema (onde, aliás, se evidencia que houve mais devedores não empresários a recorrer ao PER do que devedores empresários17). O que permite suspeitar que o argu-mento da desnecessidade do recurso ao PER por pessoas não empresárias não procederia. Não se ignora que o plano de pagamentos aos credores, tal como o PER, assenta num processo de elaboração de um acordo entre o devedor e os seus credores. Mas aquilo que o distingue do PER acabou por ditar, na prática, que fosse relegado para segundo plano pelos devedores não empresários que pretendiam lançar mão de um mecanismo pré-insolvencial18. É que, tal como

15 Nuno Salazar Casanova/David Sequeira Dinis, PER – O Processo Especial de Revitalização. Comentários aos artigos 17.º-A a 17.º-I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, 13.16 Ana Filipa Conceição, Disposições específi cas da insolvência de pessoas singulares no CIRE, em I Congresso de Direito da Insolvência (Catarina Serra), Almedina, Coimbra, 2013, 32. A mesma ideia é expressamente veiculada no ponto 46 do Preâmbulo do CIRE.17 Dados que nos chegam através da Direção-Geral da Política de Justiça, Boletim n.º 25, janeiro de 2016, 5, Figura 11, disponível online em http://www.dgpj.mj.pt/sections/siej_pt/destaques4485/estatisticas-trimestrais8927/downloadFile/fi le/Insolvencias_trimestral_20160127.pdf?nocache=1454070355.8.18 Sobre a fraca popularidade do plano de pagamentos, José Manuel Branco, Plano de pagamentos: o instituto perdido, em Revista de Direito da Insolvência, n.º 0, 2016 (versão e-book); afi rma o autor que

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se encontra delineado, o plano de pagamentos aplica-se às situações de insol-vência e não de pré-insolvência; por outro lado, e em coerência, o plano de pagamentos não permite evitar – muito embora possa abreviar – a tramitação do processo de insolvência, desde logo porque pressupõe a declaração de insol-vência19. Pretender fazer equivaler, na ótica de um devedor não empresário, o plano de pagamentos ao PER, implicaria também, e em coerência, entender que os devedores empresários teriam já ao seu alcance, antes da introdução do PER, meios próprios e específi cos do processo de insolvência que tornariam, porque equivalentes, o PER desnecessário, como seja o plano de insolvência para os titulares de grandes empresas e o plano de pagamentos para os titulares de pequenas empresas20.

2.2. A «empresa» como conceito nevrálgico

7. A análise de uma proposta legislativa com este alcance – que (i) retira os devedores não empresários da alçada do PER e lhes oferece um regime pré-in-solvencial próprio, o PEAP, quase igual ao regime do PER, e que (ii) torna os requisitos do recurso ao PER mais exigentes – não se pode alhear do que seja o objetivo de fundo da introdução do PEAP no CIRE, nem da fundamental dissemelhança entre os pressupostos de aplicação do PER e do PEAP. Só assim se estará em condições de, por um lado, explicar – e porventura justifi car – esta opção do legislador, que foi a de desdobrar o (atual) PER na estrutura “PER para empresas – PEAP para devedores não empresários” (em detrimento de con-servar o regime do PER existente, eventualmente clarifi cando a aplicabilidade do mesmo aos devedores não empresários) e de, por outro lado, admitindo ter sido esta a decisão mais acertada, saber se faz mais sentido delinear o regime do PEAP com base numa remissão geral para o regime do PER, com a salvaguarda das especifi cidades que o PEAP deva regular, ou se faz mais sentido estabelecer

este mecanismo apenas seria apto a substituir o PER de devedores não empresários se «o legis-lador tivesse confi gurado o plano de pagamentos como um processo diferenciado do processo de insolvência e, logrado o consenso quanto ao plano de pagamentos – ou suprido na parte em que o pudesse ser –, instituir o despacho da respetiva homologação como a decisão fi nal sem que fosse necessário que “num outro processo” (que, “por acaso”, até é o principal, pois que o plano de pagamentos é um apenso do processo de insolvência), desprovido de conteúdo útil, se lavrasse mera declaração tabelar de insolvência da qual não resultam os típicos efeitos desta, mas um único efeito, bem desagradável, a rotulação do devedor como “falido”».19 Como bem refere Catarina Serra, O processo especial de revitalização na jurisprudência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, 39-41.20 Idem, 40.

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uma geminação de regimes com um texto normativo quase igual. Qualquer uma destas hipóteses (remissão geral ou geminação de regimes) depende da identi-fi cação dos aspetos do regime do PER que deverão ser afastados do regime do PEAP. Essa identifi cação, por sua vez, depende da determinação de um critério que a possibilite.

8. Como foi já referido, à introdução do PEAP subjaz o objetivo de permi-tir o recurso dos devedores não empresários a um regime pré-insolvencial mais adequado à sua qualidade de não empresários: com requisitos menos exigentes e de tramitação mais simplifi cada do que o regime do PER (seja face ao regime atual, seja sobretudo face ao regime do PER proposto no Projeto). Simulta-neamente, dissipam-se as dúvidas quanto à possibilidade de recurso a um pro-cedimento judicial pré-insolvencial por parte dos devedores não empresários.

9. Este objetivo resulta e apoia-se na principal diferença quanto aos pres-supostos de aplicação do regime do PER e do PEAP, que é a da qualidade dos devedores abrangidos. Na distinção entre o âmbito de aplicação desses regi-mes, o conceito nevrálgico é, assim, o de «empresa» (comercial ou não comer-cial21) e não o de «personalidade singular» ou o de «personalidade coletiva»22-23. O recurso à distinção entre devedores empresários e não empresários na deli-neação de regimes insolvenciais e pré-insolvenciais não é inédita. São vários os

21 Afi rmando que, para efeitos dos regimes insolvenciais e pré-insolvenciais, já não é adequado distinguir atualmente entre empresas comerciais e não comerciais porque os bens ou valores envolvidos são os mesmos em todas as atividades económicas, sendo o mesmo o interesse em sal-vaguardá-los, veja-se Catarina Serra, Falências derivadas e âmbito subjectivo da falência, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, 48 e seguintes. 22 Como, de resto, fazia antever toda a discussão acima referida sobre a legitimidade dos deve-dores não empresários no recurso ao PER. Neste contexto, várias foram as vozes que afi rmaram ser esta distinção entre empresa e não empresa uma distinção comum no âmbito insolvencial: «esta contraposição – que agrega as empresas, independentemente da titularidade do seu capital social – não deve surpreender, por não ser inédita no quadro do Código da Insolvência, que reserva certas medidas às situações em que da massa insolvente faça parte uma empresa, ainda que esta seja individual (cf. arts. 223.º a 229.º)» – Paulo Olavo Cunha, Os deveres dos gestores e dos sócios no contexto da revitalização de sociedades cit., 220-221. 23 Cabe recordar que o devedor empresário não é necessariamente uma pessoa coletiva, nem o devedor não empresário é necessariamente uma pessoa singular. Sobre a possível (mas não neces-sária) coincidência das fi guras da «empresa» e da «pessoa coletiva», Jorge Coutinho de Abreu, Da empresarialidade. As empresas no Direito, Coimbra, 1996, 214 e seguintes. Relembre-se que sem-pre que as pessoas singulares sejam empresárias, não haverá, à partida, no âmbito insolvencial e pré-insolvencial, qualquer distinção entre o seu património pessoal e o património da empresa, uma vez que todo o património do devedor responde pelas dívidas empresariais (Luís Menezes Leitão, Direito da insolvência, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, 86).

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regimes aplicáveis apenas a devedores empresários24 e no CIRE encontram-se várias normas pelas quais se intensifi cam ou cominam deveres específi cos a devedores empresários e que estatuem, quanto a estas, consequências mais pesa-das face ao incumprimento25. Mas reconhece-se que a distinção empresário-não empresário nem sempre é o critério que está na base de regimes insolvenciais (ou pré-insolvenciais) mais gravosos ou mais protetores dos devedores26.

A construção de regimes insolvenciais e pré-insolvenciais que tenham como âmbito subjetivo de aplicação apenas empresas radica nas particulares

24 Pense-se, por exemplo, no regime da administração da massa insolvente pelo devedor (artigo 223.º) ou nos regimes pré-insolvenciais RERE e SIREVE, dirigidos apenas a devedores empresários.25 Veja-se, por exemplo, que se o devedor é titular de uma empresa, a lei presume inilidivelmente o conhecimento da situação de insolvência, assim que decorridos três meses do incumprimento generalizado de alguma das obrigações referidas no artigo 20.º/1, g) (artigo 18.º/3). Por outro lado, o n.º 2 do artigo 18.º excetua da obrigação do dever de apresentação à insolvência as pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa. Acresce que a violação deste dever por parte de pessoas coletivas e de devedores empresários importa, entre outras consequências, a presunção de culpa grave no âmbito do incidente de qualifi cação de insolvência (artigo 186.º/3, a) e /4). Por outro lado, o Preâmbulo do CIRE é inequívoco quanto ao tratamento diferenciado destes tipos de devedores: «a sujeição ao processo de insolvência de pessoas singulares e colectivas, tanto titulares de empresas como alheias a qualquer atividade empresarial, não é feita sem a previsão de regimes e institutos diferenciados para cada categoria de entidades, que permitam o melhor tratamento normativo das respectivas situações de insolvência» (ponto 44).26 Faz-se aqui referência aos casos em que a distinção empresário-não empresário surge cruzada com o critério pessoa singular-pessoa coletiva (pense-se no plano de pagamentos, que pode aplicar-se a pessoas singulares não empresárias ou a pessoas singulares titulares de pequenas empresas), e aos casos em que aquela distinção não é, de todo, considerada (pense-se na exoneração do passivo res-tante, aplicável apenas a pessoas singulares). Nestes casos (especialmente neste último), a especial proteção do devedor pessoa singular (consubstanciada, em particular, em possibilitar que o deve-dor consiga “pôr-se de pé” novamente e “prosseguir com a sua vida”) assentam em imperativos constitucionalmente consagrados de tutela da dignidade da pessoa humana, na vertente da proteção da sua liberdade económica e do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, correspondendo também a uma decorrência da proteção social do mais fraco (enquanto princípio do Estado Social de Direito), que impõe que os social e economicamente mais fracos sejam protegidos também para recuperarem as suas condições de liberdade. É este o entendimento, que aqui se acolhe e transpõe para um âmbito mais geral, de Paulo Mota Pinto, Exoneração do passivo restante: fundamento e constitucionalidade, em III Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2015, 178-179 e 191, quanto ao fundamento para a previsão da exoneração do passivo restante. Num sentido convergente com este, colocando a tónica, a propósito do regime consagrado nos §§ 304 e seguintes da Insolven-zordnung alemã, na necessidade de garantir a manutenção de um mínimo de condições de vida e de um nível mínimo de autonomia privada, por forma a assegurar o livre desenvolvimento da personalidade dos devedores pessoas singulares, Martin Ahrens, Grundlagen des Verbraucherin-solvenzverfahrens, em Insolvenzrechts-Handbuch (Peter Gottwald), 5. Aufl age, C.H. Beck, Mün-chen, 2015, § 81, n.os 1 e 6.

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características que estas apresentam – e que não se verifi cam nos devedores não empresários: a existência de uma organização de meios, de capital e de pessoas, dirigida à prática de uma atividade económica (ainda que não comercial). Neste sentido aponta, aliás, a defi nição estipulativa de «empresa» constante do artigo 5.º27-28. Não cabe aqui fazer um excurso quanto à noção de «empresa» para efeitos do CIRE: seria tarefa desadequada e necessariamente incompleta. Mas haverá que saber o que subjaz à regulação instituída pelos regimes insolvenciais e pré-insolvenciais dirigidos a empresas. Tendo presente estas características apontadas às empresas, é frequente dizer-se que a insolvência de uma empresa origina no tráfego jurídico e, em geral, na economia, perturbações mais graves do que as de um sujeito não empresário: partindo-se da ideia de que as empre-sas interagem e se integram numa cadeia de relações de crédito de forma muito mais intensa e densa do que os sujeitos não empresários – desde logo, porque geralmente têm mais credores (trabalhadores, fornecedores, clientes, o Estado, etc.) –, o estado de insolvência destas (ou mesmo o estado pré-insolvencial) representa um perigo considerável, que é o de gerar uma cadeia de incumpri-mentos e, em consequência, numa cadeia de reações29, dar origem a uma crise coletiva ou geral30. Donde resulta que subjaz aos regimes dirigidos a empresas não só, e em primeira linha, a proteção dos interesses dos credores enquanto

27 Defi nição estipulativa porque oferece o signifi cado com o qual a palavra «empresa» vai ser usada num certo contexto, assim determinando o que vale, para efeitos da aplicação do CIRE, como subsumível ao conceito. As defi nições legais são sempre estipulativas, nunca meramente informa-tivas, pois «o legislador não pretende informar acerca dos usos de tal expressão linguística» (Car-los Alchourrón/Eugenio Bulygin, Defi niciones y normas, em Análisis lógico y derecho, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1991, 447).28 Trata-se de uma noção lata de «empresa», que abrange pessoas singulares e coletivas, bem como sociedades, associações ou entidades sem personalidade jurídica, desde que, em qualquer um des-ses casos, exerçam uma atividade económica com substrato empresarial, ainda que não o façam a título profi ssional, nem revista natureza comercial. Face a esta noção lata, não poderá deixar de se apontar que, no SIREVE, a noção de «empresa» é mais restrita: «abrange somente as sociedades comerciais e os empresários em nome individual que possuam contabilidade organizada» (artigo 2.º/5 do Decreto-lei n.º 178/2012, de 3 de agosto). Por sua vez, o RERE não é aplicável a qual-quer «empresa» que se inclua na defi nição do artigo 5.º, mas apenas àquelas referidas no artigo 3.º/1 do Projeto de Proposta de Lei que aprova esse regime. Seria recomendável a harmonização dos âmbitos subjetivos destes regimes.29 A expressão («Kettenreaktionen») é de Klaus Reischl, Insolvenzrecht, 4. Aufl age, C.F. Müller, Heidelberg, 2016, 2.30 Por todos, Catarina Serra, A falência no quadro da tutela jurisdicional dos direitos de crédito. O pro-blema da natureza do processo de liquidação aplicável à insolvência no Direito português, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, 342. Na doutrina estrangeira, quanto a este aspeto, merece destaque o estudo de Vanessa Finch, Corporate Insolvency Law. Perspectives and Principles, 2nd edition, Cambridge Uni-versity Press, New York, 2009, 7 e seguintes e 28.

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tais, mas antes um «interesse público na proteção do crédito comercial e empre-sarial»31 – portanto, um interesse público para lá daquele (o da «preservação do bom funcionamento do mercado»32) que enforma a generalidade dos regimes insolvenciais e pré-insolvenciais. É a proteção deste específi co interesse público que justifi ca que ao devedor titular de empresa seja assacada uma “responsabi-lidade jurídica” superior à dos devedores não empresários33, o que passa pela cominação, àqueles, de ónus e deveres mais intensos – os quais, à partida, não são desproporcionais por serem as empresas dotadas de uma organização e sofi s-ticação que possibilita a observância e cumprimento dos mesmos34.

10. Mas no PEAP não releva a empresa como fattispecie de normas; o que releva é a não empresa como integrante dessa fattispecie. Aceitando-se – passe a tautologia – que a não empresa é aquilo que a empresa não é, tal signifi ca que a determinação das dissemelhanças entre devedores empresários e não empresá-rios se estabelece com base nas qualidades dos primeiros, qualidades essas que – por via de uma delimitação negativa – não são predicado dos segundos. Esta ideia é fundamental para a determinação das razões que enformam o regime insolvencial e pré-insolvencial das não empresas. Na determinação dessas razões, o primeiro aspeto a reter é o de que entre elas não se contará com os deside-ratos, com arrimo constitucional, de tutela da dignidade da pessoa humana35. O segundo aspeto a reter é o de que, muitas vezes, os regimes dirigidos a não empresas – sendo o PEAP um exemplo disso – são construídos com base num

31 Catarina Serra, A falência no quadro da tutela jurisdicional dos direitos de crédito cit., 341: «o que está em causa não pode ser o interesse do devedor nem o interesse dos credores enquanto tais», pois «o interesse destes sujeitos no início atempado do processo é tão intenso quando existe uma empresa como em qualquer outro caso», pelo que a justifi cação deve procurar-se «nos interesses relacionados com o exercício do comércio e das outras atividades económicas […], numa palavra, no interesse público de proteção do crédito comercial e empresarial».32 Cf. 2.º parágrafo do ponto 3 do Preâmbulo do CIRE. Sobre o tema, Andrew Keay, Insolvency law: a matter of public interest?, em Northern Ireland Legal Quarterly, 51/4, 2000, 509 e seguintes; Ludwig Häsemeyer, Insolvenzrecht, 4. Aufl age, Carl Heymanns, Köln, 2007, n.º 2.08.; Cata-rina Serra, A falência no quadro da tutela jurisdicional dos direitos de crédito cit., 191 e seguintes, 290 e seguintes.33 Idem, 342.34 Neste sentido, afi rma-se no Preâmbulo do CIRE que «a vida económica e empresarial é vida de interdependência, pelo que o incumprimento por parte de certos agentes repercute-se neces-sariamente na situação económica e fi nanceira dos demais».35 Não relevam, pois (pelo menos de forma autónoma), em sede de delineação de um regime pré-insolvencial de devedores não empresários, as valorações que devem orientar o legislador na construção de regimes insolvenciais e pré-insolvenciais de pessoas singulares – valorações essas referidas atrás (nt. 25 supra).

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regime primariamente pensado ou dirigido a empresas, surgindo em derivação desse regime. O terceiro aspeto a reter é o de que os regimes dirigidos a devedo-res não empresários são fruto de um exercício de aligeiramento e simplifi cação face aos regimes para devedores empresários. Tendo isto presente, identifi cam-se duas razões que justifi cam os regimes para não empresas. Por um lado, as exi-gências de economia processual. Sem curar aqui das valorações que subjazem a estas exigências – e reconhecendo que o recurso à ideia de economia processual para justifi car certos regimes é, não raras vezes, desadequado e abusivo, ou que dá corpo a cripto-argumentações36 –, note-se que ditam estas que à aquisição de determinado resultado processual devem afetar-se os meios necessários e sufi -cientes e não mais do que esses: o resultado do processo deve ser alcançado com a maior economia de meios (cada processo deve resolver o maior número de litígios possível e apenas se devem admitir os atos e formalidades indispensáveis ou úteis) e celeridade (o processo deve ser organizado para que chegue ao seu termo tão rapidamente quanto possível)37. Neste sentido, para além daquelas que não possam, por razões lógicas, ser aplicáveis, haverá regras dos regimes destinados a empresas que se mostram desequilibradas e desproporcionais – seja para o próprio devedor, para os restantes intervenientes processuais, ou para a dinâmica do processo, global e externamente considerado – quando aplicadas a um processo onde intervêm devedores não empresários, em virtude das quali-dades que esses devedores não têm. Nestes casos, não sendo sacrifi cada a tutela jurisdicional efetiva das partes envolvidas no processo, e sendo possível a obten-ção do mesmo resultado processual, justifi ca-se e impõe-se – aqui enquanto tarefa do legislador e não do juiz – a simplifi cação do processo, sobretudo por causa da situação de incerteza que se segue ao início de qualquer processo insol-vencial e pré-insolvencial38. Por outro lado, os regimes aplicáveis a não empre-sas – que não se cifram apenas na simplifi cação procedimental, mas também na

36 Sobre as insufi ciências de uma argumentação fundada na economia processual e sobre a neces-sidade de clarifi cação – sobretudo, numa ótica de direito constitucional – das valências deste prin-cípio, Matthias Pflughaupt, Prozessökonomie: verfassungsrechtliche Anatomie und Belastbarkeit eines gern bemühten Arguments, Mohr, Tübingen, 2011, 1 e seguintes e 47 e seguintes.37 José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil – Conceito e princípios gerais, 3.ª edição, Coim-bra Editora, Coimbra, 2013, 203.38 Sobre esta situação de incerteza, afi rma António Menezes Cordeiro, Direito Comercial, 4.ª edi-ção, Almedina, Coimbra, 2016, 493, que o fator tempo adquire uma dimensão de primeiro plano em sede insolvencial (e, acrescentamos, pré-insolvencial), pelo facto de se «verifi car uma situação de incerteza que paralisa os bens e veda as iniciativas dos agentes envolvidos. Os meios produ-tivos implicados são afetados, sendo ainda de aguardar deteriorações e desperdícios. E enquanto o processo se arrastar, acumulam-se, naturalmente, as próprias despesas motivadas por ele, pelos seus incidentes e pela manutenção e administração da massa falida».

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proporcional desoneração e alívio do devedor quanto à observância e cumpri-mento de certos complexos de deveres e outras situações jurídicas passivas, bem como na mitigação de certos efeitos processuais ou substantivos que lhe seriam desfavoráveis – resultam de uma ideia de menor perigosidade da insolvência dos devedores não empresários para o tráfego jurídico, o que leva a que seja menos intensa a necessidade de tutela do interesse público acima referido.

11. Neste contexto, cabe ainda fazer uma referência à recuperabilidade do devedor empresário como elemento distintivo do PER e do PEAP. O que distingue estes regimes não é só o facto de o PER se destinar a devedores empresários: é o facto de também pressupor a recuperabilidade destes, diversa-mente do que sucede no regime do PEAP39. Veja-se que a própria intervenção legislativa em análise aponta nesse sentido: enquanto no PER se exige que – para além da «situação económica difícil» ou da «insolvência imimente» – a empresa «ainda seja suscetível de recuperação» (artigo 17.º-A/1, na versão do Projeto), no PEAP não é feita essa exigência40. Mas esta ideia carece de um esclarecimento. É que se tomarmos a recuperabilidade do devedor no seu sentido mais lato e comum – o de que é recuperável o devedor que, num juízo de prognose póstuma, de acordo com critérios económicos e fi nanceiros, mostre ter condições e, benefi ciando das prerrogativas de um certo regime (pré-in-solvencial), lhe seja possível escapar à declaração de insolvência – então, trata--se este de um elemento transversal a qualquer processo pré-insolvencial. Dir-se-á que, considerado o quadro dos mecanismos pré-insolvenciais da nossa ordem jurídica, em nenhum deles se admitirá um devedor que, a breve trecho, esteja inelutavelmente e irreversivelmente destinado à sua declaração de insolvên-cia. Neste sentido (recuperação vs. insolvência), a recuperabilidade não é um ele-mento diferenciador dos regimes do PER e do PEAP. Mas não é esse o sentido de recuperabilidade a que nos reportamos. Interessa aqui antes o sentido de recuperabilidade mais utilizado quando se fala de recuperação de empresas (por exemplo, no artigo 1.º/1)41. Neste sentido, e numa perspetiva geral, diz-se

39 Em bom rigor, como bem afi rma Alexandre de Soveral Martins, Um curso de Direito da Insolvência cit., 514, fi ca-se sem perceber se o requisito da «suscetibilidade da recuperação» exigido no artigo 17.º-A/1 diz respeito ao devedor ou à situação do devedor.40 O que está em linha com o entendimento que nega o recurso ao (atual) PER aos devedores não empresários com base na ideia da insuscetibilidade de recuperação destes – por todos, Paulo Olavo Cunha, Os deveres dos gestores e dos sócios no contexto da revitalização das sociedades cit., 220-221. 41 No ordenamento jurídico alemão, sobre os diferentes sentidos de «Sanierung» (que, sem qual-quer conotação pejorativa que a tradução literal [«saneamento»] poderia fazer prever, equivale à nossa «recuperação»), mas sempre com ligação à ideia de continuidade da empresa em crise, cf., por todos, Heinz Georg Bamberger, § 1 Einleitung, em Recht der Sanierungsfi nanzierung (Kai-Oli-

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recuperável o devedor que – independentemente do seu estado de insolvência (e do início do correspondente processo) – consiga, mediante reorganização42, prosseguir a sua atividade e solver as suas dívidas com os frutos dessa atividade ou com o produto da alienação da unidade produtiva que ela representa (i.e., sem que se dê a cessação dessa atividade ou a extinção da unidade produtiva). Em causa está sobretudo a sobrevivência do devedor como ente/pessoa coletiva e a continuação da empresa de que este é titular (que poderá, não obstante, ser ven-dida a um novo sujeito)43. Neste sentido, a recuperabilidade é privativa dos deve-dores empresários, não sendo qualidade dos devedores não empresários – que, à partida, não se extinguem nem têm de cessar a sua atividade com a liquidação do seu património. Ora, tendo presente este sentido (recuperação vs. cessação da atividade / extinção da unidade produtiva), dir-se-á que, para além de não se justi-fi car a aplicação, aos devedores não empresários, de regras que pressuponham as características necessárias de uma empresa, também não se justifi cará a aplicação de regras que pressuponham aquilo que é uma sua qualidade exclusiva, embora eventual: a recuperabilidade. É, designadamente, o que sucede com as regras do PER que regulam a atividade do devedor no decurso das negociações, bem como os incentivos (e o tratamento, numa perspetiva civilística e fi scal, desses incentivos) ao contributo de terceiros para a continuação dessa atividade. Não deixa, por isso, de ser insatisfatório verifi car – como se apontará adiante44 – que algumas dessas regras tenham sido transpostas para o regime do PEAP.

12. Do quanto se disse retira-se o critério para determinar, ainda no plano de produção legislativa, a medida em que os devedores não empresários devem submeter-se ou afastar-se do PER: as normas do regime do PER que se fundem ou pressuponham (que tenham como razão justifi cativa) as características (necessárias e even-tuais) das empresas não deverão ser transpostas para o regime do PEAP. Noutras pala-vras, dir-se-á que naquilo que são dissemelhantes, os devedores empresários e os devedores não empresários não deverão estar sujeitos ao mesmo tratamento jurídico. Ao longo desta análise, identifi car-se-ão algumas normas do PER que

ver Knops/Heinz Georg Bamberger/Georg Maier-Reimer), Springer, Berlin Heidelberg, 2005, 2 e seguintes.42 Associando inelutavelmente a corporate rescue à reorganisation, Gerard McCormack, Corporate Rescue Law – an Anglo-American Perspective, EE, 2008, 1; também assim, Axel Flessner, Sanierung und Reorganisation. Insolvenzverfahren und Großunternehmen in rechtsvergleichender und rechtspolitischer Untersuchung, Mohr Siebeck, Tübingen, 1982, 137 e seguintes, 147 e seguintes.43 Entre nós, com numerosas referências, Catarina Serra, Entre o princípio e os princípios da recupe-ração de empresas (um work in progress), em II Congresso de Direito da Insolvência cit., 72.44 Cf. 3.1. e 4.3. infra.

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têm como razão justifi cativa as (ou algumas) características das empresas e que, por isso, se recomenda a sua não transposição para o regime do PEAP.

2.3. Nota metodológica

13. O recurso ao critério apresentado implica que se abordem três aspetos de ordem metodológica.

14. O primeiro é o de que não se ignora que a argumentação apresentada no sentido de ser este o critério que deve orientar o legislador na delineação do regime do PEAP pode importar esclarecimentos adicionais. É que, até agora, a preocupação foi a de salientar as dissemelhanças entre os devedores empre-sários e não empresários para justifi car os afastamentos do regime do PEAP face ao regime do PER, sem nunca identifi car ou pôr em causa as semelhanças entre estes devedores que justifi quem que o regime do PER funcione como base para o regime do PEAP. Isto signifi ca, pois, que rege uma ideia de fundo de que o PEAP é um regime maioritariamente assente no regime do PER, salvo naquilo que sejam as dissemelhanças dos pressupostos entre esses regimes, assim se justifi cando a diversidade de (algumas) consequências jurídicas desses regimes.

Esta ideia funda-se exclusivamente nos contornos da intervenção legisla-tiva em causa: pese embora o regime do PEAP seja construído por via de uma demarcação, pela negativa, face ao PER – dirige-se expressamente a todos aqueles que não sejam abrangidos pelo PER, negando o recurso ao PER aos devedores que não sejam empresas, e dele parecendo diferir naquilo que não seja adequado à categoria desses devedores45 –, é claro o propósito de utilizar o regime do PER como ponto de partida e base na construção do regime do PEAP, aprovei-tando-o em tudo o que seja possível. Ora, esta utilização do regime do PER permite presumir a existência de alguma identidade valorativa entre a situação pré-insolvencial das empresas e a dos devedores não empresários no que con-cerne às propriedades relevantes do prisma das razões justifi cativas desses regi-mes globalmente considerados. Neste contexto de razões justifi cativas, importa ter presente que o PER visa permitir ao devedor (i) estabelecer – por intermédio da fi gura do tribunal, o que confere mais garantias de seriedade e de segurança

45 Com interesse para o que se afi rma em texto, para uma distinção entre negação e derrogação de normas, Giovanni Battista Ratti, Negation in legislation, em Logic in the theory and practice of lawmaking (Michał Araszkiewicz/Krzysztof Płeszka), Springer, Berlin Heidelberg, Swit-zerland, 2015, 145 seguintes.

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ao acordo – negociações com os seus credores num momento em que, por regra, se registam já algumas resistências a essas negociações (a progressiva degradação da situação económica e fi nanceira do devedor, e o seu consequente incumpri-mento, tende a deteriorar a relação deste com os seus credores), e (ii) concluir um acordo que lhe permita cumprir voluntariamente os seus deveres (que, por regra, sofrem modifi cações), manter a sua atividade e evitar o processo de insolvência (donde resulta a ideia de revitalização, por oposição à de morte da atividade pro-dutiva do devedor)46. Ora, esses objetivos também procedem, na sua essência, no que aos devedores não empresários diz respeito (salvo, porventura, a ideia de revitalização), não avultando aqui que as assinaladas dissemelhanças entre estes e os devedores empresários façam perigar uma idêntica valoração – e, consequentemente, um tratamento idêntico – dessas hipóteses em contexto pré-insolvencial. Tendo em conta o foco nas dissemelhanças entre os tipos de devedores, dir-se-á que – conformados com esta opção do legislador e por ela orientados – o regime do PER apenas deve deixar de servir de regime-base ao PEAP quando se detetarem contradições valorativas. O que signifi ca, pela ótica inversa, que é aquele um regime materialmente adequado sempre que exista identidade valorativa e, porque não se trata de normas estranhas ao sistema, sem-pre que exista indiferença valorativa47. Porventura indo para além da exigência fundamental do sistema de que casos idênticos sejam tratados de forma idên-tica, exigências de consistência – que postulam a unidade do sistema jurídico – poderão justifi car aqui esta solução48.

15. O segundo aspeto de ordem metodológica prende-se com o reconheci-mento de que a força persuasiva da argumentação que sustenta o critério apre-sentado depende da aceitabilidade (ou, pelo menos, da não contestabilidade) generalizada da relevância das dissemelhanças apontadas entre os devedores

46 Fazendo referência a estes objetivos do regime do PER, veja-se, entre outros, João Aveiro Pereira, A revitalização económica dos devedores, em Processo de insolvência e ações conexas, CEJ, 2014, 42 e seguintes, e-book disponível online em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Pro-cesso_insolvencia_acoes_conexas.pdf. 47 Quanto a estas últimas, em causa não estão normas contrárias ao sistema, mas também não são normas que postulem uma identidade valorativa. São normas que dão corpo a meras diferencia-ções de valores ou indiferenciações valorativas (Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento sistemá-tico e conceito de sistema na ciência do Direito, 4.ª edição [trad. de António Menezes Cordeiro da 2.ª edição, de 1983, da versão alemã], FCG, Lisboa, 2008, 201-202, 235-236).48 Carlos Blanco de Morais, Manual de legística. Critérios científi cos e técnicos para legislar melhor, Verbo, Lisboa, 2007, 529, que afi rma a necessidade de harmonia entre os enunciados dos novos regimes e daqueles que, sendo novos ou continuando a vigorar, se reportem a matérias dotadas de uma conexão material.

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empresários e não empresários para o efeito de os submeter, na medida dessas dissemelhanças, a uma diferente disciplina legal. Crê-se que as dissemelhanças apontadas, bem como a sua relevância, ainda que não evidenciadas no artigo 5.º, são, se não pacifi camente aceites, pelo menos quase consensuais49.

16. Por fi m, o terceiro aspeto de ordem metodológica reporta-se à cons-tatação de que estamos no domínio da produção legislativa, mas já na fase de apreciação de um texto legislativo disponibilizado para consulta pública – pas-sível, portanto, de interpretação. Dadas estas circunstâncias do iter legislativo, entrecruzam-se nesta análise considerações de política e técnica legislativa com considerações respeitantes à aplicação do direito, como se fosse já direito legis-lado – reconhecendo-se, portanto, uma combinação entre a «função de criação normativa do legislador e a função cognoscitiva do académico e intérprete»50. Esta confusão de planos – que, à partida, se querem separados porque obedecem a metodologias distintas – dar-se-á porque tanto se apela a critérios de raciona-lidade da decisão legislativa, como a critérios de interpretação da lei – quanto a

49 Desde logo porque a montante da formulação de uma defi nição legal de «empresa» no CIRE a tal já nos conduz um raciocínio assente em regras de experiência, isto é, em juízos de normali-dade de carácter genérico que descrevem o que geralmente acontece no mundo real. As regras de experiência epistemicamente válidas podem ser formadas através da perceção, da experimentação científi ca e da observação empírica com elevada frequência estatística. No caso específi co, a regra de experiência segundo a qual as empresas se caracterizam pela existência de uma organização de meios, de capital e de pessoas é formada através do último processo elencado. Isto é, a partir da observação da realidade do tecido económico-empresarial português, infere-se, com fi abilidade sufi ciente, que a esmagadora maioria dos sujeitos que o compõem reúnem as indicadas caracte-rísticas da organização de meios, capital e pessoas. Sobre as regras de experiência e os seus pro-cessos epistémicos de formação, Cláudia Trindade, A prova de estados subjetivos no Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2016, 266 e seguintes; Michele Taruffo, Considerazione sulle massime d’espe-rienza, Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, LXIII, 2, 2009, nomeadamente 554 e seguin-tes; Terence Anderson/David Schum/William Twining, The anaysis of evidence, 2nd edition, Cambridge University Press, Cambridge, 2005, principalmente 265 e seguintes. Tal como outras regras de experiência, a afi rmação genérica em apreço pode ser integrada numa presunção judicial, funcionando como regra de lógica que faz a ligação entre os factos conhecidos – já provados – e o facto desconhecido – a provar. A regra de experiência segundo a qual as empresas se caracteri-zam pela existência de uma organização de meios, de capital e de pessoas é notória, porquanto é do conhecimento do juiz, das partes no processo e do cidadão comum, não carecendo por isso de alegação e prova em sede judicial. Sobre o papel da regra de experiência na estrutura da presun-ção judicial e seu regime de alegação e prova, Cláudia Trindade, A prova de estados subjetivos no Processo Civil cit., 106 e seguintes, 262-265 e 275 e seguintes; Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por presunção no Direito Civil, 3.ª edição, Coimbra, 2017, 92 e seguintes.50 Carlos Alchourrón/Eugenio Bulygin, Introducción a la metodología de las ciencias sociales y jurí-dicas, Astrea, Buenos Aires, 1987, 137.

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estes se destacando os argumentos teleológicos-objetivos ou (não sem suscitar, neste contexto, alguma estranheza, seja pelas suas contestáveis valências, seja porque ainda se trata de uma “vontade” em formação51) os argumentos empíri-cos sobre aquela que é/parece ser a intenção reguladora e os fi ns do legislador. Não obstante, essa confusão surge de certa forma legitimada pela ideia de uma necessária relação estreita entre a Ciência da Legislação e a dogmática jurídica52 – geralmente concretizada por via da consideração de que também o processo legislativo há-de obedecer às regras do discurso prático racional53.

2.4. Outros regimes a considerar para além do PER

17. Explicou-se que a consideração do PEAP como um “PER específi co” para devedores que não sejam empresas e que a ideia de analisar o seu regime tendo por base o regime do PER deriva dos contornos da intervenção legisla-tiva aqui em análise, que duplica o regime do PER na construção do PEAP, diferindo este daquele no que, à partida, não seja adequado à categoria de deve-dores não empresários. Contudo, a fi sionomia desta intervenção legislativa não deve condicionar a consideração, nesta fase de produção legislativa, de outros regimes insolvenciais e pré-insolvenciais na delineação do regime do PEAP, de forma a poder evitar-se – logo a montante, naquilo que sejam os dados ineren-tes ao material linguístico das “fontes” – a ausência de consistência e coerência do sistema54.

18. Um dos regimes a considerar é o já referido regime do plano de paga-mentos (artigos 251.º e seguintes).

51 Mas fora da «vontade do legislador» como critério com relevância hermenêutica fi cam as opi-niões e ideias normativas concretas das pessoas que tomaram parte na assessoria e redação do texto legislativo – Karl Larenz/Claus-Wilhelm Canaris, Methodenlehre der Rechtswissenschaft cit., 149 e seguintes.52 Carlos Blanco de Morais, Manual de legística cit., 62.53 Robert Alexy, Theorie der juristischen Argumentation, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1991, 430-431.54 Ainda que se reconheça que apesar deste esforço de coerência no plano de produção legislativa, é ilusório pretender a erradição de contradições, lacunas e erros da lei – Philipp Heck, Interpre-tação da lei e jurisprudência dos interesses [trad. José Osório], Arménio Amado, Coimbra, 1947, 22. Além disso, «a unidade do direito não existe nas fontes, mas é construída através da aplicação do direito aos casos concretos […], nunca é preexistente, nunca se apresenta como um dado […] mas sempre como uma tarefa a desenvolver» (Miguel Nogueira de Brito, Introdução ao estudo do Direito, AAFDL, Lisboa, 2017, 158).

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Admitindo-se a improcedência dos entendimentos que propugnam, com base na existência deste regime, pela desnecessidade de um regime pré-insol-vencial dirigido a devedores não empresários, pensa-se que seria, não obstante, recomendável que fosse reciprocamente alinhado o âmbito subjetivo do PEAP e do plano de pagamentos55: aquele é para o devedor que não é uma empresa, este é para o devedor que seja pessoa singular e reúna, em alternativa, os requi-sitos do n.º 1 do artigo 249.º. Entendemos que o regime do plano de pagamen-tos, apesar do título onde se encontra inserido56, não foi construído na base das razões justifi cativas da proteção das pessoas singulares (de que é exemplo a exo-neração do passivo restante, regulada nos artigos 235.º e seguintes), mas antes prossegue o desiderato de simplifi car consideravelmente o processo de insolvên-cia, ajustando-o – sem impedir a obtenção do seu resultado e sem diminuição das garantias processuais a ele associadas – ao perfi l dos devedores que não são dotados da normal organização e sofi sticação dos empresários57. São, pois, sobretudo imperativos de economia processual, e não tanto de proteção destes devedores ou dos seus credores, que ditam a criação deste regime do plano de pagamentos. Ainda que não arvorado, de forma cristalina, no critério do não empresário (como o do PEAP), o regime do plano de pagamentos aos credores comunga, assim, da razão dominante que dita a autonomização do regime do PEAP face ao PER: a simplifi cação. Por isso, não se vislumbra justifi cação para a desarmonia entre os critérios que delimitam o âmbito de aplicação subjetivo do PEAP e do plano de pagamentos aos credores. Sugere-se, por isso, a sua harmonização: em particular, porque se afi gura critério mais claro e objetivo, a alteração do âmbito de aplicação subjetivo do plano de pagamentos a todos os devedores não empresários.

19. Para além da sintonia entre âmbitos subjetivos, haverá que não ignorar outros contributos que o regime do plano de pagamentos aos credores possa oferecer na construção do regime do PEAP. Esses contributos podem passar pela transposição direta, para o PEAP, de soluções do regime do plano de paga-mentos aos credores (seja, ou não, através de remissões para esse regime). Já no plano do direito legislado, tais contributos virão por via da aplicação analógica desse regime ao PEAP.

55 Rui Pinto, Comentário geral à reforma cit., 21.56 O regime do plano de pagamentos encontra-se ainda incluído no Título XII, o qual diz regular «disposições específi cas da insolvência de pessoas singulares».57 Sobre esta simplifi cação, Alexandre de Soveral Martins, Um curso de Direito da Insolvência cit., 620; José Alberto Vieira, Insolvência de não empresários e titulares de pequenas empresas, em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor José Dias Marques, Almedina, Coimbra, 2005, 252.

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Independentemente dos contornos desses contributos – que são, quando se justifi quem, desejáveis – este tema convoca mais amplamente a questão, que se tem vindo a debater já desde a implementação do PER, que é a de saber qual o direito de aplicação analógica e subsidiária aos regimes pré-insolvenciais.

Numa perspetiva geral, começa-se por aplaudir a alteração do artigo 17.º, que agora, no seu n.º 1 (na versão do Projeto), determina a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil a todos os processos regulados no CIRE, e não só ao processo de insolvência, como anteriormente se encontrava formulado.

Mas a questão não é tanto a da aplicação de segunda linha do Código do Processo Civil aos processos pré-insolvenciais; é antes a de saber se e que regras do CIRE reguladoras do processo de insolvência são aplicáveis aos processos pré-insolvenciais na ausência – bem frequente – de uma disciplina própria des-tes58. Quanto a este ponto, acompanha-se de perto o que tem sido a posição dominante nessa matéria relativamente ao regime do PER: globalmente consi-deradas, as normas do plano de insolvência são, por via analógica, as melhores candidatas à regulação de casos omissos em sede pré-insolvencial, designada-mente, no que respeita aos requisitos do conteúdo do acordo, de votação, aprovação, homologação e efeito do acordo59 – o que não prejudica, como se afi gura claro, a possibilidade de aplicação analógica de outras normas que, face ao caso concreto e omisso, se revele mais adequada. Quanto ao PEAP, e pelas razões acima afl oradas, torna-se claro que, naquilo que seja atinente ao acordo, o melhor candidato a uma aplicação analógica é, em abstrato, o regime do plano de pagamentos aos credores. De resto, também em abstrato, reclamar-se-á, em segundo grau, a aplicação das normas do plano de insolvência a casos omissos do regime do PEAP (também elas aplicáveis a casos omissos do regime do plano de pagamento a credores). Tanto assim é que – e por forma a evitar essa tarefa do intérprete aplicador – no regime do PEAP apresentado pelo Projeto avultam as remissões para o regime do plano de insolvência (vejam-se, por exemplo, as remissões do artigo 222.º-F/2, 4, 5 e 10, na versão do Projeto, para os artigos 211.º, 215.º, 216.º e 218.º).

58 Note-se que a nova redação do artigo 17.º-A/3, na versão do Projeto (que inexplicavelmente não consta do correspondente artigo no regime do PEAP), a qual determina que «O processo especial de revitalização tem caráter urgente, aplicando-se-lhe todas as regras previstas no presente Código que não sejam incompatíveis com a sua natureza», não ajuda à resposta da questão formulada. 59 Por todos, Catarina Serra, O processo especial de revitalização na jurisprudência cit., 24-25 (com referências jurisprudenciais); Bertha Parente Esteves, Da aplicação das normas relativas ao plano de insolvência ao plano de recuperação conducente à revitalização, em II Congresso de direito da insolvência cit, 267 e seguintes.

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20. Já fora dos quadros da legislação de insolvência, cabe ainda questionar se faz sentido que, no âmbito das medidas legislativas do Programa Capitalizar, nenhum regime pré-insolvencial de natureza extrajudicial tenha sido concebido para os devedores não empresários60. Faz-se aqui direta referência e comparação com o Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas («RERE), proposto nesse pacote de medidas legislativas, que é dirigido exclusivamente a empresários. Trata-se de um processo extrajudicial, exclusivamente negocial, materializado na celebração de um acordo de reestruturação confi dencial entre o devedor (uma empresa) e todos ou alguns credores, que apenas estes vincula, e que dispensa qualquer intervenção judicial ou administrativa (não requer sequer a mediação obrigatória do mediador de recuperação de empresas). Para lá dos aspetos do pro-posto regime do RERE que reclamem alguma correção ou aperfeiçoamento61, seria bem-vinda a implementação de um mecanismo pré-insolvencial de seme-lhantes contornos (onde se destaca, pela sua atratividade, a característica da con-fi dencialidade) para devedores não empresários, cuja efi cácia o regime do PEAP não permite suprir62. É que, quanto aos devedores não empresários, e excetuados alguns regimes especiais ou meios de apoio no combate ao sobreendividamento destes63, é notória a ausência de medidas preventivas da insolvência64.

60 Note-se que o processo regulado no artigo 222.º-I, na versão do Projeto (Homologação do acordo extrajudicial de pagamento) não é um regime extrajudicial pré-insolvencial, pois, tal como o seu homólogo do PER (artigo 17.º-I), necessita de intervenção judicial.61 Para um levantamento dos aspetos que deveriam ser corrigidos e melhorados no RERE, veja-se, na presente coletâna, Maria de Lurdes Pereira/Francisco Mendes Correia/Diogo Pereira Duarte, Considerações gerais sobre o projeto, 167 e seguintes.62 Da mesma forma que o PER não substitui o RERE, nem diminui a sua importância enquanto regime pré-insolvencial autónomo. Mas, como bem salienta Rui Pinto, Comentário geral à reforma cit., 16-17-9, reconhece-se que à introdução do RERE subjaz a fi nalidade indireta de retirar dos tribunais o PER (lê-se na exposição de motivos do Projeto que «o acordo que devedor e credores sujeitem ao RERE produzirá determinados efeitos que este teria caso fosse aprovado no contexto de um Processo Especial de Revitalização»). Nas palavras do autor, o RERE «integra-se num movimento de desjudicialização das funções para-judiciais do Estado, em que se retira da com-petência dos tribunais tudo o que não seja primariamente declarativo».63 Em causa estão regimes que regulem a negociação e reestruturação extrajudicial de dívidas, maxime, dívidas de consumidores. É, entre outros, o caso da Lei n.º 58/2012, de 9 de novembro, que cria um regime extraordinário de proteção de devedores de crédito à habitação que se encon-trem em situação económica muito difícil, ou do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, que estabelece os princípios e as regras a observar pelas instituições de crédito no acompanhamento e gestão de situações de risco de incumprimento e na regularização extrajudicial das situações de incumprimento dos seus clientes relativamente aos contratos de crédito, bem como a criação de uma rede de apoio a esses clientes no âmbito da prevenção e da regularização extrajudicial das situações de incumprimento.64 No mesmo sentido, Rui Pinto, Comentário geral à reforma cit., 16.

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21. Tendo presente a contiguidade do PEAP a outros regimes do CIRE, antes de se avançar para a concreta análise da proposta legislativa, haverá que deixar duas notas de teor mais prático. A primeira prende-se com a ideia de que o regime que nesta análise servirá fundamentalmente de parâmetro e lugar paralelo ao do PEAP será o do PER, sem prejuízo de algumas incursões e com-parações com o regime do plano de pagamentos, pela proximidade dos âmbitos de aplicação subjetivos desses regimes e pelo objeto e conteúdo do acordo aí elaborado e eventualmente aprovado e homologado. A segunda nota a assinalar é a de que, reconhecendo-se que o regime do PEAP replica, em grande parte, o regime do PER, será de considerar também nesta análise do PEAP, porque à partida serão igualmente procedentes as críticas e recomendações que tenham sido feitas (bem como aquelas que sejam agora, à luz do Projeto, formuladas) ao regime do PER. Quanto a essas críticas e recomendações, se tiverem evi-dente pertinência para algum aspeto do regime do PEAP, a elas será feita direta referência.

3. Aspetos formais

3.1. Denominação

22. À semelhança do que já se entendeu quanto à denominação do PER65, no PEAP também se deveria evitar a utilização da locução «especial» na sua designação. Cabe questionar: procedimento especial face ou por oposição a que procedimento? Derivará essa especialidade da sua natureza pré-insolvencial? Sem que se encontrem respostas às questões formuladas, importa ainda notar que, em qualquer ato legislativo, será de evitar, quando não exista qualquer vanta-gem compreensiva, o uso de adjetivos, por a utilização destes pôr em causa a frugalidade estilística que é exigida num texto legislativo66. Reconhece-se, não obstante, que depois de a locução «especial» constar da designação do PER, e atendendo ao facto de este ser o regime do qual se parte para desenhar o do PEAP, difícil seria, agora – uma vez que, face ao sucesso do PER na prática, a sua designação (sobretudo pelo uso do seu acrónimo) se tornou amplamente conhecida – retirar, sem quebras de identidade, a locução «especial» da desig-nação do PER. Por essa razão, e tendo em vista a já aludida paridade entre o

65 Catarina Serra, Processo especial de revitalização – contributos para uma “rectifi cação” –, ROA, 2012, II/III, 717.66 Alexandre Sousa Pinheiro, Algumas notas sobre temas de legística formal, em Cadernos de ciência de legislação, 41, 2005, 7.

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regime do PER e do PEAP, recomenda-se o uso de «especial» na designação do PEAP.

23. Acresce que quanto à expressão «acordo de pagamento», apenas se per-cebe a mesma na designação do PEAP se o acordo em causa só puder ser um acordo de pagamento entre devedores e credores – e não um acordo com qual-quer outro conteúdo. Como se dirá adiante, não se vê razão para essa limitação de conteúdo destes acordos – sobretudo quando tal limitação não resulta, sem ser desta expressão na sua designação, do regime do PEAP, e não decorre do regime do PER nem mesmo do regime do plano de pagamento aos credores67. Assim, na medida em que se conclua que o acordo celebrado no âmbito do PEAP é um acordo de reestruturação que poderá ter outro conteúdo para além de um acordo de pagamentos, então, deverá essa expressão, na designação, ser substituída por outra mais consentânea com a fi gura. Por outro lado, há ainda dois aspetos a considerar: (i) utilizando-se «pagamento» como termo técnico--jurídico, sabe-se da evidente ligação deste conceito ao cumprimento de obri-gações pecuniárias; ora, em causa poderá estar o cumprimento de obrigações não pecuniárias68; (ii) a utilização da expressão «pagamento» poderá contribuir para alguma confundibilidade com o regime do plano de pagamentos. Reco-nhece-se, não obstante, que a expressão «acordo de pagamento», pese embora as apontadas limitações que encerra, tem a virtualidade de deixar clara a fi na-lidade a que estão orientados esses acordos: a satisfação voluntária, por parte do devedor, dos créditos dos seus credores. Sugere-se, por isso, a utilização de «cumprimento» em vez de «pagamento» («PEAC» seria o acrónimo corres-pondente). Mas admitindo-se um conteúdo reestruturatório mais amplo destes acordos, não se vê razão – salvo a eventual confundibilidade com a designação do acordo celebrado no âmbito do RERE – para que não se utilize a expressão «acordo de reestruturação» (aqui, «PEAR» seria o acrónimo correspondente).

3.2. Posicionamento sistemático: a deslocação do regime do PEAP para as dis-posições introdutórias do CIRE e a inclusão de uma remissão geral para o regime do PER

24. Face à sua paridade valorativa e à sua natureza pré-insolvencial, os regi-mes do PER e do PEAP devem surgir na mesma parte do CIRE. Na falta da

67 Cf. 4.3. infra.68 Francisco Mendes Correia, Moeda bancária e cumprimento. O cumprimento das obrigações pecu-niárias através de serviços de pagamento, Almedina, Coimbra, 2017, 44 e seguintes.

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inserção – que se recomenda – de um título próprio, a seguir ao artigo 17.º, que incluísse a regulação de todos os processos pré-insolvenciais (um Título II), deverá o PEAP, à falta de melhor, ser posicionado na parte fi nal das disposi-ções introdutórias. Não se consegue discernir o critério que subjaz à opção de inserção sistemática do PEAP entre a regulação do plano de insolvência (Título IX, artigos 192.º e seguintes), mais concretamente, a execução do plano de insolvência e seus efeitos (Capítulo III, artigos 217.º e seguintes), e a regulação da administração da massa pelo devedor (Título X, artigos 223.º e seguin-tes). As desvantagens da inserção sistemática do regime do PEAP no contexto dos processos insolvenciais passam, desde logo, pelas dúvidas que tal originaria quanto à natureza pré-insolvencial desse processo, quanto à sua articulação com o regime do PER, ou quanto ao direito analogicamente aplicável ao PEAP. Recomenda-se, por isso, que o regime do PEAP seja inserido a seguir ao do PER69, fora do âmbito dos processos insolvenciais.

25. Todavia, neste contexto de aproximação sistemática dos regimes, há uma difi culdade que assoma de forma evidente (e que, de certa forma, surgiria mais “disfarçada” com a inserção do PEAP nos artigos 222.º-A e seguintes70): passar-se-á a ter dois regimes seguidos parcialmente iguais nos seus enunciados normativos, tornando-se claro o indesejável uso de epígrafes idênticas em dife-rentes artigos do mesmo diploma, bem como a repetição ou sobreponibilidade entre normas de regimes seguidos71. Dúvidas não restam que a opção pela con-sagração de um processo judicial pré-insolvencial para devedores não empresá-rios, dada a proximidade ao regime do PER, acarretará sempre este problema de geminação de regimes – e, portanto, de má técnica legislativa.

26. A solução para este problema passa por construir o regime do PEAP com base numa remissão geral para o regime do PER, regulando-se depois em normas (que se sugerem autonomizadas em artigos) subsequentes as especifi ci-dades do regime do PEAP (para as quais as correspondentes normas do regime do PER são inaplicáveis), que não são mais do que aquelas que derivam das dissemelhanças dos tipos de devedores que abrangem. Note-se que a recomen-

69 No capítulo III do Título I ou no capítulo II do Título II, se se seguir a recomendação anterior de inserção de um título próprio para os processos pré-insolvenciais.70 Embora, como se afi gura óbvio, este efeito de “disfarce” não possa justifi car a inserção do regime do PEAP nos artigos 222.º-A e seguintes.71 Ao que acrescem as eventuais difi culdades de numeração de artigos que tal poderá originar: continua-se a ordenação alfabética existente? Recomeça-se a ordenação alfabética daquele artigo com 17.º-AA, e assim sucessivamente?

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dação não é a de uma mera remissão para o regime do PER com a reserva da aplicação deste com “as necessárias adaptações” aos devedores não empresá-rios: tal não seria sufi ciente nem permitiria prevenir o manancial de dúvidas interpretativas que poderiam surgir, pois seria necessário que, em detrimento do legislador, fosse o intérprete e aplicador a, perante uma remissão aberta, ter o cuidado de verifi car, caso a caso e norma a norma, a ocorrência das razões justifi cativas da regulamentação para a qual é estabelecida a remissão72. Pro-põe-se antes que essa tarefa caiba ao legislador, pelo menos no que respeita às especifi cidades nucleares do regime do PEAP, sem que, contudo, o intérprete e aplicador fi quem desvinculados dessa tarefa e desse cuidado de adaptação, face aos dados do caso concreto.

27. Ainda que não se recomende a opção pela manutenção de uma gemina-ção dos regimes do PER e do PEAP, far-se-á, de seguida, uma análise (atinente aos aspetos formais, substantivos e processuais) do regime do PEAP nos moldes em que o mesmo foi apresentado no Projeto. Importa notar que, optando-se por essa manutenção do regime do PEAP (i.e., decalcado do regime do PER, com ligeiras adaptações), o raciocínio que subjaz à decisão de o distanciar, em certos aspetos, do regime do PER é fundamentalmente o mesmo que subjaz à decisão de regular, a seguir à remissão geral para o regime do PER, as especi-fi cidades do regime do PEAP (com a consequente inaplicabilidade das corres-pondentes normas do regime do PER): ambos os raciocínios têm na sua base as dissemelhanças entre os tipos de devedores a cuja aplicação estes regimes se dirigem.

3.3. A opção pela manutenção de dois regimes parcialmente iguais (PER/PEAP): irregularidades e incoerências

28. Decidindo manter-se o texto apresentado no Projeto como regime do PEAP, verifi ca-se que algumas irregularidades formais do regime do PER foram transpostas para o PEAP. Crê-se não ser útil reproduzir nesta análise as críticas que, em tempos, foram neste sentido feitas ao regime do PER73 – mas ressalva-se que grande parte delas não só não foram supridas neste Projeto, como agora contaminam o regime do PEAP. É certo que se reconhece que,

72 Salientando estas desvantagens das remissões abertas, veja-se Raul Guichard, Tópicos sobre técnicas legislativas, em Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, 16, 2012, 55 e seguintes.73 Por todos, Catarina Serra, Processo especial de revitalização – contributos para uma “rectifi cação” cit., 718-719.

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atentas as circunstâncias conturbadas que envolveram a introdução do PER no nosso ordenamento jurídico – i.e., na sequência dos imperativos resultantes das negociações com a Troika (que culminaram com o MoU [Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica] e com o MPEF [Memorando de Políticas Económicas e Financeiras]) relativos à criação de procedimentos judiciais de aprovação de planos de reestruturação céleres – o regime do PER então delineado apresentou a coerência e consistência possíveis. Mas nada disso vale agora quanto ao PEAP. Por essa razão, julga-se que, não obstante a referida quase duplicação de regimes, deveria repensar-se se essas irre-gularidades se devem manter no PEAP.

29. Num prisma geral, tal como sucede com o regime do PER74 (que não parece resultar, do Projeto, formalmente aperfeiçoado), algumas normas do PEAP falham em vários aspetos de sistematização e redação normativa: há artigos que dispõem sobre mais do que uma matéria, sem que haja subdivisões internas75, as epígrafes nem sempre elucidam sinteticamente a matéria de que o artigo trata ou são portadoras de um reducionismo que não traduz a totalidade das matérias que no artigo são reguladas76, o mesmo sucedendo com o proé-mio de certos artigos77, o discurso normativo apresenta enunciados vagos78, e utilizam-se sinónimos para referir a mesma realidade sem qualquer vantagem compreensiva e interpretativa79.

74 Catarina Serra, Processo especial de revitalização – contributos para uma “rectifi cação” cit., 718-719.75 Por exemplo, o artigo 222.º-F, na versão do Projeto, em cuja epígrafe se refere a «conclusão das negociações com a aprovação de acordo de pagamento», mas no qual se trata da homologação e não homologação do acordo (n.º 5 a 7), da suportação de custas (n.º 9) e do incumprimento do acordo (n.º 10). 76 Por exemplo, o artigo 222.º-E, na versão do Projeto, é epigrafado apenas com a palavra «efeitos», não se percebendo das normas (e epígrafes dos respetivos artigos) que a antecedem a fonte destes efeitos. Veja-se ainda o exemplo dado na nota anterior, representativo também do reducionismo de epígrafes que não traduzem a totalidade das matérias que no artigo são reguladas.77 Por exemplo, o artigo 222.º-C/3, na versão do Projeto, que se reporta a deveres do devedor, mas na sua alínea a) disciplina deveres do juiz (salientando este problema no atual artigo 17.º-C/3, a), Catarina Serra, Processo especial de revitalização – contributos para uma “rectifi cação” cit., 719).78 É o caso de «comprovadamente» (artigo 222.º-A/1, na versão do Projeto) ou a atuação «de ime-diato» do devedor (artigo 222.º-C/3, na versão do Projeto).79 Veja-se, por exemplo, a 2.ª parte do n.º 2 do artigo 222.º-F, na versão do Projeto, que tanto faz referência à aprovação do «acordo» como à junção e homologação do «plano», sendo que noutras normas deste artigo, como no seu n.º 5, se refere a homologação do «acordo». Sugere-se a unifor-mização dos signifi cantes utilizados para referir uma mesma realidade, devendo as referências ao «plano» se substituídas por referências ao «acordo».

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30. Por outro lado, encontram-se ainda algumas incoerências no regime do PEAP. Para além daquelas que vão sendo denunciadas ao longo da análise80 – e que já resultam do regime do PER em vigor – destaca-se o facto de algumas normas do PEAP pressuporem a qualidade de devedor empresário. Em causa está a menção à «recuperação» do devedor (artigos 222.º-C/3, a), na versão do Projeto) e ao «plano de recuperação» (artigo 222.º-F/10, na versão do Projeto), quando a recuperabilidade do devedor não é pressuposto de recurso ao PEAP, diversamente do que sucede no regime do PER. Considere-se também a refe-rência ao fi nanciamento da «atividade» do devedor para que este possa cumprir o acordo de pagamento, quando em causa estão devedores não empresários cuja (prática e existência de) «atividade» é, para os efeitos da aplicação deste regime, totalmente irrelevante – sendo, por isso, irrelevante a ligação fi nalística da concessão do fi nanciamento à atividade do devedor não empresário. Veja-se que também neste aspeto se deu uma importação acrítica do regime do PER – que agora está exclusivamente pensado para empresários que praticam uma atividade (e no âmbito da qual frequentemente procuram e obtêm fi nancia-mento para conseguir manter a sua atividade e, consequentemente, cumprir o plano de revitalização).

4. Alguns aspetos substantivos

31. Optando-se pela manutenção do regime do PEAP nos moldes em que o mesmo foi apresentado no Projeto, identifi cam-se, sem pretensões de exaurir todos os problemas que aí possam estar implicados, alguns aspetos de cariz subs-tantivo que se julga ser importante rever (ou, pelo menos, repensar), à luz do tipo de devedores que podem recorrer ao PEAP, bem como à luz dos objetivos de simplifi cação (face ao PER) do procedimento e dos efeitos deste mecanismo pré-insolvencial.

4.1. A «situação económica difícil» e a «situação de insolvência iminente» de devedores não empresários; a “prova” e a declaração pelo devedor da veri-fi cação dos requisitos objetivos do PEAP

32. O artigo 222.º-B, na versão do Projeto, reproduz integralmente o dis-posto no artigo 17.º-B (que se mantém na versão do Projeto, apenas com a

80 Designadamente, como tratado adiante a propósito dos aspetos processuais, as ambiguidades sobre os deveres do juiz quanto à nomeação do administrador judicial provisório, ou a falta de clareza sobre os termos em que pode ser declarada a insolvência do devedor que recorre ao PEAP.

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alteração da designação do devedor, que aí surge como «empresa»). Optou-se, assim, pela repetição de normas jurídicas, em vez de se recorrer a uma norma de remissão, incluída no regime do PEAP, para a noção de «situação econó-mica difícil» constante do artigo 17.º-B81. A utilização de uma norma remissiva seria a opção mais consentânea com as diretrizes de legística, que postulam que, em favor da simplifi cação e coerência do texto normativo, se evite a repetição de enunciados normativos desnecessários, sobretudo quando a remissão possa ser feita sem acarretar consigo uma grande prolixidade do texto, quebra da continuidade do discurso, difi culdade na interpretação ou perda de visão do conjunto. Admite-se, contudo, que a replicação de tal norma defi nitória no regime do PEAP assente em razões de ordem prática: visa evitar que se quebre o paralelismo da numeração (com ordenação alfabética) dos artigos do PER e do PEAP (sendo, de resto, sintomático desse objetivo a igual epigrafação das suas normas), por forma a facilitar a descrição e compreensão desses regimes – em particular, aproveitando-se para as correspondentes normas do PEAP o acquis jurisprudencial e doutrinário produzido até à data.

33. A questão passa, portanto, por saber se a defi nição de «situação econó-

mica difícil» constante do artigo 222.º-B, na versão do Projeto (que é oriunda do CPEREF, no que respeita à sua aplicação a titulares de empresas), é total-mente operativa perante devedores não empresários. A resposta não poderá ser positiva. É que, ainda que inserida no fragmento textual da norma onde é feita uma mera exemplifi cação, crê-se ser indesejável a referência, no texto norma-tivo, à não obtenção de fi nanciamentos por parte do devedor. Dirigindo-se o regime do PEAP maioritariamente a pessoas singulares, e tendo presente o combate que, nos últimos anos, através de várias intervenções legislativas, tem vindo a ser feito ao sobreendividamento das pessoas singulares e das suas famílias (sobretudo num contexto de celebração de novos fi nanciamentos para poder cumprir as obrigações emergentes de outros fi nanciamentos), julga-se que a referida menção à difi culdade na obtenção de crédito constitui um sinal em sentido contrário àquele que se tem vindo a promover, que é o de as pessoas singulares em situação económica difícil reestruturarem as suas dívidas (ainda que não vencidas), e não a de contraírem novos fi nanciamentos. Sob pena de com este texto normativo se poder fazer derivar a ideia de que as dívidas do devedor não são reestruturáveis em sede de PEAP se ele ainda conseguir obter crédito para poder cumprir as suas obrigações – portanto, a ideia de uma preferên-cia pela concessão de crédito e de uma secundarização da reestruturação da

81 Referimo-nos aqui à utilização de uma norma de remissão para outra norma do regime do PER, e não à remissão geral para o regime jurídico do PER, conforme sugerida acima, em 3.2. supra.

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dívida – recomenda-se a eliminação dessa referência na parte fi nal do n.º 2 do artigo 222.º-A, ou, então, que esta seja complementada da seguinte forma: «…designadamente, por ter falta de liquidez, por não conseguir reestruturar glo-balmente as suas dívidas ou por não conseguir obter crédito»82.

34. Por outro lado, não poderá deixar de se apontar a incoerência de se incluir uma defi nição para «situação económica difícil», mas não para a situação fi nanceira que geralmente se lhe segue, a «insolvência iminente». Sobretudo quando o conceito de «insolvência iminente» é utilizado, no CIRE, como pressuposto de aplicação de outros regimes – como o do PER (artigo 17.º-A/1) ou mesmo da insolvência, por via da sua equiparação à situação de insolvência atual (artigo 3.º/4). Ainda que se reconheça o esforço que que a doutrina tem vindo a fazer no sentido de concretizar a noção de «insolvência iminente», o Projeto deveria incluir no CIRE uma defi nição do conceito.

35. Exige o artigo 222.º-A, na versão do Projeto, que (i) o devedor com-prove que se encontra em situação económica difícil ou em situação de insol-vência iminente e que (ii) declare ao tribunal estar nessa situação, mediante declaração escrita por si e assinada – declaração essa que, malgrado não lhe ser feita qualquer referência nas normas que regulam as formalidades e tramitação do PEAP, deverá ser entregue junto com a declaração referida no artigo 222.º-C, na versão do Projeto. Trata-se de exigência importada do regime do PER (artigo 17.º-A/2). Mas aí exige-se ao devedor que declare «que reúne as condi-ções necessárias para a sua recuperação» e, agora, na versão desta norma do PER resultante do Projeto, é ainda incluído, na sua parte fi nal, a exigência de que o devedor «apresente declaração subscrita, há não mais de 30 dias, por contabilista certifi cado ou por revisor ofi cial de contas, sempre que a revisão de contas seja legalmente exigida, atestando que não se encontra em situação de insolvência atual, à luz dos critérios previstos no artigo 3.º». A respeito destas exigências, haverá que chamar a atenção para dois pontos. O primeiro é o de que se man-tém a desadequação – vinda do regime do PER – da exigência de uma compro-vação, pelo devedor, do seu estado, pois não só se trata de um estado difícil de provar83, como a única “prova” que se exige é a declaração do devedor de que se

82 Sugere-se a menção à reestruturação global das dívidas porque a reestruturação individual de alguma das dívidas do devedor (ou a renegociação a ela tendente) estará, à partida, verifi cada e pressuposta no recurso ao PEAP: é necessário que pelo menos um dos credores do devedor manifeste a sua vontade de encetar negociações para a celebração de acordo de pagamento (artigo 222.º-C/1, na versão do Projeto).83 Cf. Catarina Serra, Processo especial de revitalização – contributos para uma “rectifi cação” cit., 720.

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encontra em tal estado (veja-se que não se exige a junção de declarações sobre o património, rendimentos ou encargos do devedor [como deveria suceder84, e é exigido no regime do plano de pagamentos85] ou mesmo que este prove que lhe foi recusada a concessão de crédito por várias instituições de crédito). O segundo ponto reporta-se à recomendação de se incluir na parte fi nal do n.º 2 do artigo 222.º-A, na versão do Projeto, a exigência, agora constante do regime do PER, de apresentação, por parte do devedor, de «declaração subs-crita, há não mais de 30 dias, por contabilista certifi cado ou por revisor ofi cial de contas, sempre que a revisão de contas seja legalmente exigida, atestando que não se encontra em situação de insolvência atual, à luz dos critérios previs-tos no artigo 3.º». Recorde-se que no PEAP poderão estar em causa devedores não empresários que sejam pessoas coletivas, sujeitos à obrigação de revisão legal de contas. Não se vê razão para que, a estes – ainda que não empresas –, não se aplique a mesma exigência do PER (ainda que esta exigência não esteja isenta de críticas86): se o que se pretende com esta exigência é evitar que recorra a um procedimento pré-insolvencial alguém que se encontra já em situação de insolvência e a quem o ordenamento jurídico reserva um processo mais ade-quado (o processo de insolvência), vale este desiderato para qualquer devedor – empresário ou não empresário – devendo, sempre que possível (i.e., sempre que este seja obrigado a revisão legal de contas), esta exigência ser aplicada.

4.2. O início das negociações

4.2.1. A autorização do administrador judicial provisório para a prática de «atos de especial relevo» pelo devedor

36. Iniciadas as negociações, o devedor fi ca impedido de praticar «atos de especial relevo», conforme defi nidos no artigo 161.º, sem que previamente obtenha a autorização para a realização desses atos pelo administrador judicial

84 Veja-se esta recomendação em 5.1. infra.85 Determina o artigo 252.º/5 que o plano de pagamentos deve ser acompanhado da «relação dos bens disponíveis do devedor, bem como dos seus rendimentos» (alínea b), do «sumário com o conteúdo essencial dessa relação, neste capítulo designado por resumo do ativo» (alínea c) e da «declaração de que as informações prestadas são verdadeiras e completas» (alínea e). Como se dirá adiante (5.1. infra), não se vê razão para que esta documentação e declaração não sejam também exigidas no PEAP.86 Com críticas a esta exigência, David Oliveira Festas, Alterações a introduzir no processo especial de revitalização cit., 38-39.

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provisório (artigo 222.º-E/2, na versão do Projeto) – sob pena de o ato prati-cado sem essa autorização, apesar de válido, ser (relativamente) inefi caz87.

37. Seria importante fi car claro, no texto legal, que a exigência de auto-rização do administrador judicial provisório para a prática desses atos apenas se reporta ao período entre o início das negociações (marcado pela prolação do despacho de nomeação do administrador) e o encerramento do processo (independentemente dos contornos desse encerramento – homologação, não homologação, desistência das negociações, etc.), de forma a que não se susci-tem dúvidas sobre a manutenção deste efeito uma vez homologado o acordo, e na pendência da execução do mesmo pelo devedor e credores88.

38. Acresce que esta norma, que já consta do atual regime do PER (artigo 17.º-E/2), terá necessariamente no PEAP uma leitura diferente daquela que lhe tem sido conferida à luz do regime PER, dada a natureza dos devedores em causa. Assim é porque não poderá entrar aqui em jogo, na determinação do que seja um ato de especial relevo, o critério da «suscetibilidade de recuperação da empresa» constante do artigo 161.º/2, parte fi nal – e que se materializa na qualifi cação como «atos de especial relevo» aqueles constantes das alíneas a), b), c) e g) do n.º 3 do artigo 161.º. No PEAP, o critério relevante passa essencial-mente a ser o das «perspetivas da satisfação dos credores» (artigo 161.º/2), e os atos de relevo em causa consistirão sobretudo nos elencados nas alíneas d), e) e f) do n.º 3 do artigo 161.º.

Tendo presente os interesses a ponderar na qualifi cação de um ato como especialmente relevante (artigo 161.º/2) – em particular, este critério das «pers-petivas da satisfação dos credores» –, bem como a razão que subjaz ao regime contido no artigo 161.º (ainda que aqui não diretamente aplicável) – que é a de que os credores (e não o administrador judicial) são as pessoas que estão em melhor posição para avaliar o impacto da prática dos atos de especial relevo na

87 É a solução que resulta da aplicação do artigo 81.º/6, por via do artigo 34.º, para o qual remete o artigo 222.º-C/3, a), na versão do Projeto.88 Se, por exemplo, o devedor decidir unilateralmente pôr fi m às negociações (o que, de acordo com o disposto no artigo 222.º-G/6, na versão do Projeto, pode fazer a todo o tempo, embora com a consequência determinada no número seguinte desse artigo), por haver a perspetiva da cele-bração de um negócio vantajoso com terceiro (v.g., a venda de um imóvel), não poderão depois os seus credores, em sede de PEAP, impugnar a celebração de tal negócio por este carecer de auto-rização do administrador judicial provisório. E assim será mesmo que o (bom) preço pago pelo bem vendido não seja destinado, pelo devedor, ao pagamento de dívidas já vencidas ou – como será mais consentâneo com os pressupostos de aplicação objetivos do PEAP – a vencer em futuro próximo, e quanto às quais se previa o incumprimento do devedor.

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satisfação dos seus créditos89 –, importaria esclarecer, no artigo 222.º-E/2, na versão do Projeto, que sempre que se verifi que o consentimento dos credores interve-nientes nas negociações, poderá o devedor, na pendência das negociações do acordo de pagamento, praticar esses atos, independentemente da existência de autori-zação por parte do administrador judicial provisório. Nestas circunstâncias, e em virtude desse consentimento, o ato que assim fosse praticado pelo devedor sem autorização seria válido e efi caz (oponível aos credores do processo)90. Para além de ser válido e efi caz, a este ato «de especial relevo» não se aplicará o regime da resolução incondicional plasmado no artigo 121.º (artigo 120.º/6, na versão do Projeto)91. Por seu turno, importa notar que o administrador judi-cial provisório está vinculado aos critérios do artigo 161.º (aqui, com especial intensidade, ao das «perspetivas da satisfação dos credores») e conhece o con-teúdo das negociações (é ele quem as conduz e fi scaliza – artigo 222.º-D/8, na versão do Projeto) e o que no âmbito dessas negociações se convencione – ainda que tais convenções não correspondam nem venham a integrar o con-

89 Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, 268, nt. 904.90 Neste sentido, embora quanto a processo insolvencial, veja-se o Ac. RPt 13-dez.-2011 (António Martins), Proc. 4700/08.9TBSTS-H.P1, no qual se decidiu que «a circunstância de ser o único imóvel que integra o ativo da massa falida, não é critério sufi ciente para se qualifi car tal venda como de especial relevo. Não há elementos que permitam concluir que haja qualquer prejuízo, efectivo ou potencial, para os outros credores e para os próprios devedores/insolventes se aqueles concordam com a venda efectuada e não demonstram que houvesse qualquer possibilidade real e efectiva de venda do imóvel por valor superior ao obtido pela administradora da insolvência».91 Note-se que outra das novidades do Projeto é a proibição de resolução em benefício da massa dos atos praticados no âmbito do PEAP – ou seja, durante as negociações e em execução do acordo de pagamento que tenha sido homologado (artigo 120.º/6, na versão do Projeto). O que signifi ca que a estes atos não se aplicará o regime da resolução incondicional plasmado no artigo 121.º. Sobre o alcance da proibição de resolução em benefício da massa insolvente, aderimos ao enten-dimento – ainda que construído a propósito de igual proibição de resolução no regime do PER – de L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Recuperação de empresas: o processo especial de revitalização, Almedina, Coimbra, 2017, 87-89. Entende o autor que, ainda que, aparentemente, os negócios celebrados no âmbito do PER (ou, aqui, do PEAP) não possam ser resolvidos em caso algum, porque a lei não prevê qualquer exceção, os negócios devem poder ser resolvidos sempre que se vise por essa via prejudicar intencionalmente outros credores, maxime, os que não participam nas negociações. O autor recorre ao lugar paralelo da “imunização” em sede insolvencial dos con-tratos de garantia fi nanceira, a qual é travada nos casos em que os negócios de garantia «tenham sido praticados intencionalmente em detrimento de outros credores» (artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 105/2004, de 8 de maio) para justifi car esta posição: «se a lei limita a proteção desses acordos quando ela é fundamental por razões ligadas à integridade do sistema fi nanceiro, seguramente o mesmo se deverá dizer, recorrendo a um argumento por maioria de razão, quando estes interesses públicos de maior relevo não se verifi quem – como nestes casos. O que permite detetar a lacuna e aplicar por analogia esta norma».

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teúdo do acordo de pagamento. Por essa razão, e pese embora a ausência da autorização do administrador judicial provisório não conduzir, nestes casos, à inefi cácia do ato de especial relevo, está o administrador vinculado a conceder a sua autorização à prática de tal ato sempre que conheça (ou deva conhecer) esse consentimento dos credores.

4.2.2. A manutenção do fornecimento de serviços públicos essenciais

39. Consagra-se no regime do PEAP (artigo 222.º-E/8, na versão do Pro-jeto), a manutenção do fornecimento de serviços públicos essenciais ao devedor. Este efeito – com muita relutância se poderá falar de um “direito” à manutenção da prestação destes serviços – foi também consagrado no regime do PER (artigo 17.º-E/8, na versão do Projeto), bem como no regime do RERE (artigo 24.º da Proposta de Lei que aprova esse regime – embora aí se dirija à manutenção do fornecimento de serviços públicos essenciais à vida de uma empresa.

40. O efeito aqui consagrado constitui um conjunto de fornecedores de

serviços públicos essenciais – água, luz, gás, comunicações, serviços postais, recolha e tratamento de águas residuais e gestão de resíduos sólidos urbanos – na obrigação de fornecimento desses serviços durante a pendência do PEAP, independentemente de o devedor se encontrar em situação de incumprimento quanto ao seu pagamento.

Se bem se compreende, esta obrigação de fornecimento dirige-se aos pres-tadores de «serviços públicos essenciais» (serviços esses, bem como os seus for-necedores, defi nidos na Lei n.º 23/96, de 26 de julho, designada por Lei dos Serviços Públicos) e não a qualquer sujeito que, em alguma circunstância, tenha fornecido, ou forneça, serviços equivalentes a estes ao devedor92.

A expectável desproteção das empresas que forneçam os serviços públicos essenciais aqui visados parece surgir contrariada – ou compensada – no regime do PEAP em, pelo menos, três pontos: (i) estas empresas podem participar nas negociações tendentes à aprovação do acordo de pagamento, para que também os seus créditos sejam satisfeitos nos termos desse acordo; (ii) estas empresas – tal como quaisquer credores que forneçam bens ou serviços de outra natureza, perante os quais o devedor se encontre numa situação de incumprimento ou

92 Pense-se, designadamente, na venda (fornecimento) de vários metros cúbicos de água, por parte de um pequeno empresário, ao devedor, durante os meses de verão, para que este possa encher o reservatório de água que tem na sua casa de férias, que se insere em região na qual se costumam verifi car, nessas alturas (ou em anos de seca), problemas com o fornecimento de água canalizada.

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preveja entrar em incumprimento – veem a sua posição jurídica protegida pela suspensão dos prazos de prescrição e caducidade que lhes são oponíveis pelo devedor (artigo 222.º-E/7, na versão do Projeto), e (iii) caso as negociações não conduzam à aprovação de um acordo de pagamento ou este não seja homo-logado pelo juiz, havendo lugar à declaração de insolvência do devedor não empresário, as dívidas às empresas de serviços públicos essenciais são qualifi ca-das como dívidas da massa insolvente (artigo 222.º-E/9, na versão do Projeto).

41. Contudo, a introdução deste efeito – porventura, uma das novidades mais divulgadas desta intervenção legislativa – oferece-nos muitas reservas.

42. Em primeiro lugar, temos dúvidas quanto à legalidade (em particular, quanto à constitucionalidade) desta solução: é exigido aos prestadores de ser-viços que não interrompam o fornecimento dos mesmos ainda que o devedor se encontre em incumprimento. Se bem compreendemos, é certo que em causa não está a extinção dos direitos de crédito destes prestadores de serviço, mas haverá um enfraquecimento da consistência desses direitos: os prestadores de serviços veem-se agora impedidos de recorrer aos mecanismos de tutela do sinalagma (resultem eles de regimes específi cos ou de regimes gerais), como a exceção de não cumprimento ou a resolução por incumprimento. Se numa ótica indivi-dualizada, que tenha por base a relação negocial devedor-prestador, a solução já se afi gura questionável, numa ótica global, na qual os prestadores de serviços sejam considerados em conjunto com os restantes credores do devedor, fi ca patente o desfavor com que aqueles são, face a estes, tratados: os prestadores de serviços públicos essenciais são os únicos credores do devedor que não podem deixar de cumprir os seus deveres (por outras palavras, é-lhes cominado um “dever de continuar a cumprir os seus deveres”) num cenário de incumpri-mento reiterado do devedor. O que signifi ca que os prestadores de serviços têm uma exposição acrescida ao risco de incumprimento e insolvência do devedor, diferentemente dos demais credores, que, à partida, poderão lançar mão dos meios de reação a perturbações no cumprimento das respetivas relações obri-gacionais com o devedor93.

93 Em sentido próximo, embora quanto ao regime do RERE, Francisco Mendes Correia, Comentário aos artigos 18.º a 30.º do Projeto: negociações do acordo de reestruturação, em Resposta à consulta pública relativa ao projeto de proposta de lei que aprova o regime extrajudicial de recuperação de empresa, 189, em estudo também integrante desta coletânea. Sublinhe-se, contudo, que no RERE, a posição dos prestadores de serviços não é tão crítica como no PER ou no PEAP. Desde logo, porque se estabelece no artigo 24.º/4 do projeto de diploma que cria este regime que «a proibição prevista no n.º 1 cessa se o devedor não efetuar o pagamento pontual do custo dos serviços que sejam prestados após o depósito do protocolo de negociação».

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Tendo presente esta solução, antevê-se que a manutenção da mesma no texto legislativo trará dúvidas quanto à sua constitucionalidade, na medida em que se entenda que os créditos, seja no respeitante à sua existência, seja no respeitante à sua consistência, se incluem também na proteção constitucional-mente dispensada ao direito de propriedade privada (artigo 62.º da Constitui-ção)94. Recomenda-se, por isso, a sua eliminação.

43. Em segundo lugar, não sendo eliminada esta solução, julgamos ser essencial que se percebam as razões que justifi cam a cominação de uma obriga-ção desta índole aos prestadores de serviços públicos essenciais. Ora, perspeti-vada esta intervenção legislativa no seu conjunto, entendemos que os dados do sistema normativo por ela delineado e proposto não permitem a identifi cação dessas razões justifi cativas – o que difi cultará a tarefa do intérprete e aplicador assim que este regime passe a direito positivo.

Crê-se que a manutenção dos serviços públicos essenciais corresponde a uma medida de proteção do devedor em fase pré-insolvencial, independente-mente da natureza deste: seja empresário ou não empresário, verifi ca-se este efeito (nos regimes do PER, do RERE e do PEAP). Assim sendo, na determinação das razões justifi cativas desta medida não estará em causa, pelo menos como elemento dominante, um juízo de proteção da dignidade da pessoa humana – o que apenas se conceberia se este efeito fosse privativo dos regimes dirigidos a devedores singulares em regime pré-insolvencial. Note-se que se fosse essa a razão deste efeito, não se admitiria a incoerência evidente que este regime então postularia: se o devedor se encontrar em estado de insolvência – ou seja, numa situação fi nanceira pior do que aquela em que se encontra em sede de PEAP –, não têm os prestadores deste tipo de serviços o dever de continuar inde-terminadamente a fornecê-los (especialmente, caso exista incumprimento)95. Quando muito, tem o insolvente o direito a receber alimentos «à custa dos rendimentos da massa insolvente» (artigo 84.º/1), ou, no regime da exoneração do passivo restante, a serem subtraídos do rendimento do insolvente destinado à cessão o que seja razoavelmente necessário para «o sustento minimamente

94 Acompanhamos aqui, entre outros, Paulo Mota Pinto, A exoneração do passivo restante cit., 180 e seguintes: a proteção constitucional da «propriedade» deve ser lida em sentido lato, englobando os direitos de crédito com valor patrimonial (o património), impondo a própria teleologia do artigo 62.º/1 da Constituição que não se estabeleça uma distinção entre os direitos reais ou os direitos de crédito. Acresce que «não se encontra outra ancoragem constitucional que possa dar conta da atual elevada relevância económica – e, portanto, também para a realização da pessoa – dos cré-ditos como valores patrimoniais» (idem, 183).95 Veja-se que o artigo 111.º não impede a cessação, por ato do fornecedor de serviços, do contrato de prestação duradoura de serviços celebrado com o insolvente.

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digno do devedor e do seu agregado familiar» (artigo 239.º/3, b))96. Mas esses mecanismos de proteção nada têm que ver com este que aqui se analisa.

Parece, portanto, que com a manutenção dos serviços públicos essenciais se visa assegurar a viabilidade da negociação, aprovação e execução do acordo de pagamento (ou, se no RERE ou no PER, de reestruturação ou revitalização). Esta ideia deriva da constatação de que estes prestadores de serviços são tenden-cialmente os credores da “linha da frente” de qualquer pessoa (empresários e não empresários) e que, também muito por conta da impessoalidade que envolve as relações negociais entre eles e o devedor, são tendencialmente os primeiros cre-dores a serem afetados pela situação económica difícil do devedor – por serem os seus créditos aqueles que o devedor mais facilmente incumpre (geralmente, apenas de forma temporária). A viabilização da aprovação do acordo e da sua execução dar-se-á, através desta medida, porque o fornecimento destes serviços é condição necessária (embora, por regra, não sufi ciente) para que o devedor se mantenha em atividade (especialmente importante no caso do PER e do RERE, dirigido a devedores empresários) e aufi ra rendimentos (mais impor-tante no caso do PEAP), assim se possibilitando o cumprimento do acordo (de reestruturação, de revitalização ou de pagamento).

A ser este o propósito desta medida – o que não é claro –, recomenda-se que seja também regulado o papel que estes fornecedores de serviços podem ter nas negociações e na aprovação do acordo: não suscitando dúvidas que a participação destes nas negociações deverá ser permitida, menos consentâneo com as razões da introdução deste regime se afi gura que estes possam, quando tal lhes seja possível (quando os seus créditos, isoladamente ou conjuntamente considerados, lhes permitam atingir a maioria necessária para votar contra a aprovação), inviabilizar a aprovação do acordo de pagamentos.

44. Em terceiro lugar, recomenda-se uma mais esclarecedora fi xação do horizonte temporal em que as empresas de serviços públicos essenciais são obri-gadas a manter o fornecimento desses serviços perante uma situação de incum-primento do devedor. A questão torna-se particularmente relevante porque, diversamente do que sucede no regime do PER e do PEAP, no regime do RERE é estabelecido que a proibição de interromper o fornecimento desses serviços «dura pelo prazo máximo de 3 meses, exceto se os prestadores aí refe-ridos forem parte do protocolo de negociação e acordarem prazo mais longo» (artigo 24.º/3, da Proposta de Lei que aprova o Regime Extrajudicial de Recu-peração de Empresa).

96 O que está em linha com a exclusão dos bens isentos de penhora da massa insolvente (artigo 46.º/1).

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Quanto ao PEAP, refere o proémio do n.º 8 do artigo 222.º-E, na versão do Projeto, que esse período de obrigação de manutenção do fornecimento dos serviços públicos essenciais se compreende entre a prolação do despacho de nomeação do administrador judicial e durante todo o tempo em que perdurarem as negociações. Tendo presente a opção por este horizonte temporal, sugere-se, em primeiro lugar, a harmonização de prazos entre o regime do RER e o regime do PER e do PEAP; em segundo lugar, e a não ser assim, então recomenda-se a inserção ou a remissão, na parte fi nal desta norma, para os limites à duração dessas negociações (aqueles constantes do n.º 5 do artigo 222.º-D, na versão do Projeto). Não se nega, contudo, que os objetivos deste regime podem sur-gir prejudicados com uma solução como esta, desde logo, porque pode dar--se o corte do fornecimento desses serviços entre a aprovação do acordo de pagamento e a homologação do mesmo pelo tribunal. Sendo acolhido este entendimento – ainda que se reconheça a indesejabilidade, neste cenário, da intensifi cação dos deveres cominados aos credores com créditos vencidos não satisfeitos, mas se admita que talvez assim imponham razões de consistência da lei –, então, a duração desta obrigação de fornecimento deve ser harmonizada com os prazos em que se mantém a proibição de propositura de ações para cobrança de dívidas e a suspensão das ações com a mesma fi nalidade que já se encontrem pendentes (artigo 222.º-E/1, na versão do Projeto): até ao trânsito em julgado da sentença de homologação ou não homologação do acordo de pagamento97.

45. Em quarto lugar, haverá que esclarecer se o n.º 8 do artigo 222.º-E, na versão do Projeto, apenas se aplica a contratos de fornecimento (duradouros) já celebrados e em curso à data do início das negociações ou se, mais do que a cominação de uma obrigação, ao respetivo fornecedor, de fornecimento de serviços públicos essenciais independentemente do pagamento do seu preço ou tarifa, estamos na presença da cominação de uma obrigação de contratar e de fornecer esses serviços, também independentemente desse pagamento pelo devedor – maxime, se o devedor mudar ou pretender mudar de operador ou fornecedor no decurso das negociações. Note-se que também neste domínio o regime do RERE nos fornece pistas num sentido diferente do plasmado do PEAP, sem que se entendam as razões para essa diferença: determina-se aí que os presta-dores dos serviços essenciais «fi cam impedidos de interromper o fornecimento dos mesmos por dívidas relativas a serviços prestados em momento anterior ao

97 Na medida em que se altere o n.º 8 desse artigo, tendo por base a redação do n.º 1, defende--se até que, por razões de coerência, estas normas, em conjunto com o n.º 7 desse artigo, deve-rão apresentar todas o mesmo limite temporal (devendo, por isso, ser todas objeto de alteração).

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depósito» (artigo 24.º/1 da Proposta de Lei que aprova o Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresa), o que sugere que os serviços em causa já esta-riam a ser prestados por aquele fornecedor antes do início desse procedimento pré-insolvencial.

46. Em quinto lugar, há que regular no PEAP o tratamento dos créditos destas entidades em caso de não aprovação ou não homologação do acordo de pagamento, mas em que não haja lugar à declaração de insolvência do devedor não empresário (hipótese em que não se aplica o artigo 222.º-E/9, na versão do Projeto).

Estará aí o prestador de serviços obrigado a reestruturar extrajudicialmente (v.g., através de pagamentos a prestações) a dívida (muito provavelmente acu-mulada ao longo de meses de negociações) do devedor? Poderá resolver ime-diatamente o contrato de prestação de serviços?

Importa relembrar que, nesta arquitetura de regime, o prestador de serviços públicos essenciais tem a ingrata e pesada posição de ser o único credor do deve-dor que, em sede de PEAP, se vê na obrigação de continuar a cumprir os seus deveres num cenário de incumprimento reiterado do devedor.

Não poderá, por outro lado, deixar de se assinalar que, no regime do RERE, estes casos (de não declaração de insolvência) se encontram especifi -camente regulados, dispondo-se que «o custo decorrente do fornecimento de serviços essenciais […] que não seja pago pelo devedor […] benefi cia de privi-légio creditório mobiliário geral, graduado antes do privilégio creditório mobi-liário geral concedido aos trabalhadores» (artigo 24.º/5 da Proposta de Lei que aprova o Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresa). Ainda que se aplauda a não transposição desta solução para o regime do PEAP – pelas mes-mas razões que nos levaram a criticar a redação do artigo 222.º-H/2, na versão do Projeto98, ou seja, a desadequação do pressuposto da existência de traba-lhadores quanto a devedores não empresários – não se compreende a ausência desta solução no regime do PER (o artigo 17.º-E/9, na versão do Projeto, não incorpora esta solução).

4.2.3. A atuação de acordo com os princípios orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25 de setembro

47. Não poderá deixar de se apontar a desadequação da exigência, no artigo 222.º-D/10, na versão do Projeto, de que os intervenientes nas negociações

98 Cf. 3.1. supra.

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atuem de acordo com os princípios orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25 de setembro (a «Resolução»).

Sem que se questione aqui o valor normativo desta fonte, a aplicação – convocada per relationem – do regime procedimental plasmado na Resolução99 mostra-se desadequada ao PEAP porque se trata de um regime destinado a nortear a conduta das empresas devedoras e dos respetivos credores, com o objetivo de as recuperar pela via extrajudicial. Por isso, parte considerável do conteúdo destes princípios orientadores assenta no pressuposto de uma empresa devedora que seja recuperável. Veja-se: (i) o preâmbulo da Resolução deixa claro que as «empresas e respectivos empresários que, enquanto devedores ou credores, podem estar envolvidos num procedimento extrajudicial de reestru-turação» «são, de modo mais premente» os destinatários destes princípios100; (ii) é frequentemente assumido que a parte devedora é uma empresa e que o procedimento visa «a recuperação do devedor e a continuação da sua actividade económica»101; (iii) circunscreve-se o recurso a este mecanismo aos «devedores que se encontrem, efectivamente, numa situação fi nanceira que ainda permita a sua recuperação»102; ou (iv) do décimo princípio orientador decorre a exi-gência de que as propostas de recuperação do devedor se baseiem «num plano de negócios viável e credível, que evidencie a capacidade do devedor de gerar fl uxos de caixa necessários ao plano de reestruturação».

48. A desadequação a que se alude não signifi ca que estes princípios orien-tadores não possam reger as negociações entre credores e devedor no âmbito do PEAP; quanto a estes, reconhece-se, vigora como princípio de fundo a atuação das partes conforme à boa-fé, na busca de uma solução construtiva que satisfaça todos os envolvidos (o que, aliás, corresponde ao segundo princípio orienta-dor). E, nesta medida, dir-se-á que em causa estão os princípios e regras que

99 Trata-se de um conjunto de onze princípios de reestruturação voluntária extrajudicial que se encontram em linha com as boas práticas internacionais e que são inspirados no Statement od prin-ciples for a global approach to multi-creditor workouts, publicado pela INSOL International (International Federation of Insolvency Professionals) em 2000. Sobre estes princípios orientadores e sua rele-vância para o processo de negociação, José Manuel Gonçalves Machado, O dever de renegociar no âmbito pré-insolvencial. Estudo comparativo sobre os principais mecanismos de recuperação de empresas, Almedina, Coimbra, 2016, 61 e seguintes e 134 e seguintes.100 Cf. 10.º parágrafo do Preâmbulo da Resolução.101 Cf. 4.º parágrafo do anexo à Resolução (Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudi-cial de Devedores).102 Cf. 13.º parágrafo do anexo à Resolução (Princípios Orientadores da Recuperação Extraju-dicial de Devedores).

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devem enformar qualquer negociação ou renegociação103, pelo que esses princípios orientadores não são inaptos à regulação das negociações no PEAP. O que se entende não ser justifi cado, e revelador de má técnica legislativa, é a artifi ciali-dade do recurso, por remissão extra-sistemática, direta e global, a um diploma que não tem como destinatários diretos os devedores não empresários, nem se lhes aplica sem as devidas adaptações. Melhor seria que no regime do PEAP fossem estes princípios orientadores depurados e reduzidos àquilo que essencialmente releva na negociação com devedores que não sejam empresas, mas sem provo-car sobreposições com o texto constante do regime do PEAP, que já incorpora alguns dos afl oramentos e concretizações da boa-fé no domínio negocial104. A assim não ser, em última instância, justifi car-se-ia que a remissão para os princípios orientadores plasmada no artigo 222.º-C/10, na versão do Projeto, viesse acompanhada do operador linguístico «com as necessárias adaptações».

4.3. O conteúdo do acordo de pagamento e os seus efeitos perante os credores que não o aprovaram

49. Referiu-se já, a propósito da designação deste processo, e apesar dessa designação, que o acordo celebrado no âmbito do PEAP é um acordo de reestruturação que deverá poder ter outro conteúdo para além de um simples acordo de pagamentos (geralmente entendido como um acordo para pagamento a prestações105).

Disse-se, então, que, em linha como o disposto no regime do PER (onde, e como demonstrou a prática, não é feita esta restrição) e com o regime do plano de pagamentos a credores – no qual se dispõe que «o plano de pagamentos pode designadamente prever moratórias, perdões, constituições de garantias,

103 Como salienta António Menezes Cordeiro, O princípio da boa-fé e o dever de renegociação em contextos de “situação económica difícil”, em II Congresso de Direito da Insolvência cit., 66, o essencial dos princípios orientadores corresponde tão-só a concretizações da boa-fé, na dupla dimensão da tutela da confi ança e da primazia da materialidade subjacente. Em todos estes casos – todos reconduzidos ao campo da atuação mitigada – deverá estar-se sob o “manto da boa-fé” (idem, 67).104 Como seja o disposto no artigo 222.º-D/6, na versão do Projeto (prestação de informação por parte do devedor, em sobreposição com o sétimo e oitavo princípios orientadores), no artigo 222.º-E/1, na versão do Projeto (durante as negociações, os credores não poderão agir contra o devedor, em sobreposição com o quinto princípio orientador), ou no artigo 222.º-E/2, na versão do Projeto (durante as negociações, o devedor não deve praticar atos que prejudiquem os credo-res, em sobreposição com o sexto princípio orientador).105 Temos dados do sistema neste sentido: veja-se a distinção entre o objeto do acordo para pagamento em prestações da dívida exequenda (artigo 806.º CPC) e do acordo global (artigo 810.º CPC).

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extinções, totais ou parciais, de garantias reais ou privilégios creditórios exis-tentes, um programa calendarizado de pagamentos ou o pagamento numa só prestação e a adopção pelo devedor de medidas concretas de qualquer natureza susceptíveis de melhorar a sua situação patrimonial» (artigo 252.º/2)106 – não se vê razão para, ainda para mais no silêncio do texto proposto, admitir tal restri-ção ao conteúdo do acordo de pagamento. O que leva a recomendar que, em coerência, seja inserida uma norma no regime do PEAP de redação semelhante à do referido artigo 252.º/2 – o que, desde logo, permitirá evitar discussões em torno da sua aplicação, por via analógica, ao regime do PEAP.

50. Este entendimento, que postula que ao devedor e aos seus credores (estes, pelo menos, em número ou maioria necessária para que o acordo possa ser aprovado) seja dada liberdade na conformação do conteúdo desse acordo – o que, de certa forma, surge confi rmado pela possibilidade de serem celebrados acordos de garantia e acordos de fi nanciamento no decurso das negociações e no âmbito do acordo de pagamento (artigo 222.º-H, na versão do Projeto) –, não se justifi ca apenas com o apelo à ideia de um exercício de autonomia pri-vada das partes neles envolvidas.

Poderia ser útil considerar aqui os lugares paralelos do regime do RERE e do acordo global em ação executiva singular, regulado no Código de Processo Civil. No primeiro, determina-se que «o conteúdo do acordo de reestrutura-ção é fi xado livremente pelas partes, devendo compreender medidas que sejam comprovadamente aptas a contribuir para a recuperação do devedor, desig-nadamente os termos da reestruturação da atividade económica do devedor, do seu passivo, da sua estrutura legal, dos novos fi nanciamentos a conceder ao devedor e das novas garantias a prestar por este» (artigo 6.º/1 do respetivo projeto); no segundo, estabelece-se que esse acordo «pode consistir nomeada-mente numa simples moratória, num perdão, total ou parcial, de créditos, na substituição, total ou parcial, de garantias ou na constituição de novas garantias» (artigo 810.º/1 CPC). Contudo, nestes é essencialmente a autonomia privada que funda a vinculação (e não mera oponibilidade dos efeitos) das partes (e apenas destas107) ao negócio jurídico processual108.

106 Como se viu na nt. anterior, é uma norma de redação semelhante àquela que se reporta ao conteúdo do acordo global em ação executiva. 107 Estes acordos apenas vinculam e são oponíveis aos sujeitos que nele são parte (expressamente neste sentido, no regime do RERE, o artigo 6.º/5 do respetivo Projeto).108 Sobre o RERE, dando conta do «domínio absoluto pela autonomia privada» do processo, o que «constitui um estímulo a uma recuperação tempestiva das empresas (incentivo à recuperação precoce)», Maria de Lurdes Pereira, Comentário aos artigos 6.º a 17.º do Projeto: conteúdo, forma, depósito, efeitos e incumprimento do acordo de restruturação, nesta coletânea, 177-178. Por seu turno,

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Já no caso do acordo de pagamento, ainda que seja também a autonomia privada o fundamento da efi cácia do acordo – basta considerar que, no seu momento genético, as negociações tendentes ao acordo não se podem iniciar sem a «manifestação de vontade do devedor e de pelo menos um dos seus cre-dores» (artigo 222.º-C/1, na versão do Projeto), e que a aprovação do acordo depende de uma votação favorável por parte de uma maioria de credores -, não será a autonomia privada a justifi cação que preside à vinculação dos credores a esse acordo.

São vários os aspetos de regime que fornecem pistas no sentido desta con-clusão. Desde logo, o facto de (i) em colisão com uma exigência de consentimento, os credores que não votaram favoravelmente ou que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações se encontrarem vinculados ao acordo aprovado e homologado (artigo 222.º-F/8, na versão do Projeto) (o vulgarmente designado cram down), e o facto de (ii) mesmo havendo aprova-ção do acordo por unanimidade (o que tendencialmente acontece nos acordos pre-pack regulados no artigo 222.º-I, na versão do Projeto), o juiz poder não homologar o acordo.

A compressão da autonomia dos credores evidenciada por estes dois exem-plos não pode, todavia, ser tratada e justifi cada da mesma forma: num caso, impõe-se a produção de efeitos a quem não declarou querê-los (ou mesmo a quem declarou não os querer); no outro, impede-se essa produção a quem decla-rou querê-los.

No primeiro caso, em causa está a sujeição (vinculação) de uma minoria de credores ao acordado por uma maioria de credores. Na sua fi sionomia, o problema implicado não se distingue daquele existente nos casos de socialidade, em que, afastando-se da contratualidade (onde tudo se decide, em princípio, por consenso), é prevalecente e jurígena a competência exercida por uma maioria. Aqui, o que subjaz a esta prevalência da maioria é a “satisfação dos interes-ses colectivos dos credores”109 e, em última instância, o interesse público na não insolvência do devedor. Justifi ca-se, então, que uma minoria de credores – mediante aquilo que seria o exercício de um direito de veto – não possa impedir a criação de condições para essa não insolvência, condições essas esta-belecidas através da imposição de sacrifícios que serão suportados por todos

no sentido de que o conteúdo e efeitos do acordo global, em ação executiva singular, devem ser entendidos como uma instanciação do princípio da autonomia privada, Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, 633.109 Ac. TRG 05-nov-2015, Proc. 657/14.5TBBRG.G1 (Jorge Teixeira).

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os credores110. Para lá dos limites gerais ao conteúdo e objeto dos negócios jurídicos, bem como dos limites que poderão justifi car a não homologação do acordo (artigo 222.º-F/5, na versão do Projeto), identifi cam-se dois limites ao conteúdo de um acordo aprovado sem unanimidade: (i) a necessidade, adequa-ção e proporcionalidade dos sacrifícios para a obtenção das fi nalidades em jogo (o cumprimento voluntário por parte do devedor e evitar a insolvência deste); (ii) a desigualdade e desproporcionalidade nos sacrifícios impostos aos credo-res, quando globalmente considerados (maxime, entre os credores que votaram contra e os que votaram a favor da aprovação do acordo). Respeitados estes limites, não se vê obstáculo a que o acordo em causa integre qualquer conteúdo reestruturatório, com conexões mais ou menos diretas às situações jurídicas anteriores objeto de modifi cação ou extinção111.

No segundo caso, em que, apesar da unanimidade, o juiz pode ofi ciosamente não homologar o acordo, o problema será ainda de uma restrição à autonomia privada (individual e coletivamente perspetivada) dos credores. Essa restrição decorre dos limites, de contornos amplos, plasmados no artigo 222.º-F/5, na versão do Projeto, e a sua justifi cação corresponderá àquela que esteja na base das regras cuja violação tenha sido identifi cada pelo juiz e que conduziu à não homologação. Contudo, neste caso, já não valerão, à partida, os dois limites espe-ciais atrás referidos ao conteúdo do acordo aprovado por maioria dos credores: não carecem aqui os credores de qualquer proteção contra medidas acordadas e por todos aceites que se possam revelar desiguais ou desnecessárias às fi nalidades do processo. Salvo as reservas que, no campo processual, porventura se possam suscitar relativamente à instrumentalização de um processo judicial pré-insolven-cial para obter um acordo cujo conteúdo se afaste de uma reeestruturação (o que será essencialmente um problema de interesse processual), não se identifi ca razão ponderosa que dite a restrição da autonomia das partes (do devedor e de todos os seus credores) envolvidas neste acordo.

5. Alguns aspetos processuais

5.1. A junção de documentos pelo devedor

51. A transposição do regime do PER para o regime do PEAP não foi acrítica: é visível que o legislador fez um esforço para adaptar o regime do

110 Assim, no contexto do PER, L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Recuperação de empresas: o processo especial de revitalização cit., 72-73.111 Carlos Ferreira de Almeida, Contratos IV, Almedina, Coimbra, 2014, 9.

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PER (agora pensado para empresas) ao do PEAP. Contudo, em alguns casos, esse esforço de adaptação não foi bem conseguido; dir-se-á até que, em certos casos, o legislador adaptou demais, não replicando no regime do PEAP normas do regime do PER que se mostrariam adequadas àquele.

52. É o caso do artigo 222.º-C/3, b), na versão do Projeto, que elenca os documentos que o devedor deve remeter ao tribunal para dar início ao PEAP, resumindo-os a (i) uma relação de todos os seus credores e (ii) uma lista de todas as ações de cobrança de dívidas contra si pendentes. Este artigo foi adaptado do artigo 17.º-C/3, b) (cuja redação se mantém na versão do Projeto), que remete para a longa lista de documentos constantes do n.º 1 do artigo 24.º. Diferentemente, no regime do PEAP não é feita qualquer remissão para o referido artigo 24.º/1. Apenas se incorpora no texto do artigo 222.º-C/3, b), na versão do Projeto, dois documentos constantes do elenco do artigo 24.º/1: a relação de todos os seus credores (que corresponde à primeira parte da alínea a) do n.º 1, do artigo 24.º) e a lista de todas as ações de cobrança de dívida contra si pendentes (que se aproxima da alínea b) do n.º 1, do artigo 24.º).

Ora, ainda que se reconheça que alguns dos documentos exigidos pelo artigo 24.º/1, ex vi artigo 17.º-C/3, b), para dar início ao processo de revitali-zação de empresas não têm razão de ser quando o devedor não é empresário112, haverá que notar que, no mais, a apresentação dos documentos constantes das alíneas a) (integralmente considerada), d) e e) do n.º 1 do artigo 24.º se justifi ca plenamente, com as devidas adaptações, mesmo aos casos em que o devedor não é uma empresa, uma vez que permitem a identifi cação dos credores do devedor, do montantes das dívidas existentes e do património do devedor. Mas, como referido, o artigo 222.º-C/3, b), na versão do Projeto, dispensa inteiramente a apresentação dos documentos constantes dessas alíneas e reduz a referência aos dois documentos já mencionados.

53. A exigência de apenas dois documentos afi gura-se insufi ciente. Particularmente em falta no artigo 222.º-C/3, b), na versão do Projeto,

encontra-se a exigência dos documentos que especifi quem os elementos relativos aos credores e seus créditos que devem constar da lista a apresentar pelo devedor. Com efeito, a mera identifi cação dos credores é insufi ciente para conhecer a real situação passiva do devedor e, consequentemente, para a formulação de um adequado juízo sobre a viabilidade da realização de um acordo de pagamento. Para tal, é necessário que se identifi quem os montantes

112 É o caso dos documentos previstos nas alíneas c), g), h) e i), porquanto pressupõem caracterís-ticas distintivas dos devedores empresários que não se verifi cam nos devedores não empresários.

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dos créditos, as datas de vencimentos, eventuais garantias e relações especiais com o devedor, tal como se exige no regime do PER. Acresce ao exposto que nenhuma das características que distinguem os devedores empresários dos devedores não empresários justifi ca que sobre estes últimos recaia um ónus de caracterização das suas dívidas inferior àquele que é cominado para os devedo-res empresários, em prejuízo do esclarecimento dos credores interessados e da própria viabilidade do acordo de pagamento. Ainda a propósito da adequação da alínea a) do n.º 1 do artigo 24.º, cabe notar que também no caso do devedor não empresário podem existir relações especiais entre aquele e os seus credo-res, com infl uência na qualifi cação e graduação dos créditos, pelo que também no PEAP se justifi ca a manutenção da remissão efetuada nessa alínea para o artigo 49.º.

Depois, haverá que assinalar a necessidade, por imperativos de transparên-cia113, de que o devedor junte ao processo declarações sobre os seus rendimen-tos, ou da falta deles, bem como da sua situação profi ssional (ou, sendo o caso, de desemprego). Como apontado anteriormente114, isto mesmo é exigido no regime do plano de pagamentos (artigo 252.º/5), não se vendo razão para a mesma exigência não constar do regime do PEAP. Acresce que a apreciação (e sindicabilidade) do estado do devedor em situação económica difícil ou insol-vência iminente (artigo 222.º-B, na versão do Projeto) não se compadece com uma inexistência da exigência de documentação com este teor ao devedor. A exigência é tão mais premente quanto se defenda – como faremos adiante – a necessidade de instituir uma apreciação preliminar, por parte do juiz, do reque-rimento apresentado pelo devedor.

Por fi m, cabe notar que a alínea b) do artigo 24.º/1 (que se refere à «rela-ção e identifi cação de todas as ações e execuções» pendentes contra o devedor) não é adequada ao regime do PEAP; bem pelo contrário, é mais aconselhável a menção à «lista de todas as ações de cobrança de dívidas»115, como já consta da alínea b) do artigo 222.º-C/3, na versão do Projeto. A razão para essa maior adequação prende-se não só com os imperativos de harmonização e coerência do texto do regime (veja-se que essa menção é também utilizada no artigo

113 Erguendo a transparência a característica processual do PER (o que também procede para o PEAP), com base na ideia de que «a transparência implica a disponibilização e a circulação da informação por todos os sujeitos intervenientes no processo», sendo que «os deveres de informação fundamentais impendem principalmente sobre o devedor», veja-se Catarina Serra, O processo especial de revitalização na jurisprudência cit., 32. 114 Cf. 4.1. supra.115 O texto usa o singular «dívida», mas crê-se ser uma simples gralha – cuja correção obviamente se recomenda.

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222.º-E/1, na versão do Projeto), mas também com questões que serão desen-volvidas no ponto seguinte116.

54. Tendo presente quanto se disse, é, pois, conveniente que a redação da alínea b) do n.º 3 do artigo 222.º-C, na versão do Projeto, seja alterada para uma redação próxima da constante do regime do PER, com as especifi cidades referidas do regime do PEAP. Sugere-se o seguinte texto: «remeter ao tribunal lista de todas as ações de cobrança de dívida pendentes contra o devedor, com-provativo da declaração de rendimentos deste, comprovativo da sua situação profi ssional ou, se aplicável, situação de desemprego, bem como cópias dos documentos elencados nas alíneas a), d), e e) do n.º 1 do artigo 24.º, fi cando esta documentação disponível na secretaria para consulta dos credores durante todo o processo».

5.2. Efeitos processuais do despacho de nomeação do administrador judicial pro-visório: o efeito sobre as ações para cobrança de dívidas

55. No que respeita aos efeitos do despacho de nomeação do administrador provisório, consagrou-se no n.º 1 do artigo 222.º-E, na versão do Projeto, a proibição de instauração de novas ações para cobrança de dívidas e a imposição da suspensão de ações para cobrança de dívidas já em curso, durante todo o tempo em que durarem as negociações. Acrescenta ainda o preceito normativo em apreço que as ações que forem suspensas se extinguem, em princípio, logo que seja aprovado e homologado o acordo de pagamento.

56. Esta norma é uma importação do regime do PER e o seu texto merece as mesmas críticas que já mereceu o n.º 1 do artigo 17.º-E.

Tal como sucede no âmbito do PER com o artigo 17.º-E/1, o artigo 222.º-E/1, na versão do Projeto, não elenca especifi camente quais são as ações judiciais cuja instauração se proíbe ou cuja suspensão se impõe, recorrendo generalizadamente à expressão «ações para cobrança de dívidas». A interpreta-ção desta expressão, como se deixou perceber no ponto anterior, tem gerado dúvidas na doutrina e na jurisprudência, nomeadamente quanto à inclusão ou exclusão das ações declarativas e das ações executivas para entrega de coisa certa e para prestação de facto na previsão normativa do n.º 1 do 17.º-E117.

116 Cf. 5.2. infra.117 A propósito, considere-se alguma da jurisprudência mais recente que aborda a questão: no sentido de que a expressão ações para cobrança de dívidas engloba as ações declarativas de condenação, o Ac.

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Entendemos que se incluem na previsão normativa do n.º 1 do artigo 17.º-E, assim como na do n.º 1 do artigo 222.º-E, na versão do Projeto, apenas as ações judiciais cuja instauração ou pendência possa afetar o património do devedor e, assim, a sua recuperação (no caso do PER) ou a viabilidade de um acordo de pagamento (no PEAP). Neste sentido, fi cam excluídas quaisquer ações declara-tivas, porquanto a sua simples instauração ou pendência não tem a virtualidade de afetar diretamente o património do devedor118.

Já as ações executivas para pagamento de quantia certa estão inteiramente abrangidas pela previsão dos preceitos normativos em apreciação: trata-se de ações que têm como fi nalidade o pagamento coercivo de uma quantia pecu-niária, e que importam, por meio da penhora, a restrição à liberdade de uso, oneração e disposição de determinados bens por parte do devedor. No mesmo sentido milita a própria expressão utilizada nos preceitos normativos em apreço: ações para cobrança de dívidas, isto é, para pagamento coercivo de dívidas.

Tal expressão já não milita, contudo, a favor da inclusão das ações execu-tivas para entrega de coisa certa e para pagamento de quantia certa na previsão normativa do n.º 1 do artigo 17.º-E e do n.º 1 do artigo 222.º-E, na versão do Projeto. Não há, neste tipo de ações, qualquer pagamento coercivo de uma quantia pecuniária. Dir-se-á, contudo, que quer na ação executiva para entrega de coisa certa, quer na ação executiva para prestação de facto, se verifi ca uma afetação do património do devedor, no sentido de retirar a este as suas faculda-des de uso, oneração ou disposição de uma coisa determinada, seja a título prin-cipal (no caso da execução para entrega de coisa certa) seja a título instrumental

RCb 28-jan-2016, Proc. n.º 791/15.4TBGRD.C1 (Felizardo Paiva), Ac. STJ 06-jan-2016, Proc. 172724/12.6YIPRT.L1.S1 (Nuno Cameira), Ac. STJ 17-mar-2016, Proc. n.º 33/13.7TTBRG.P1.G1.S2 (Ana Luísa Geraldes), Ac. RCb 27-02-2014, Proc. n.º 1112/13.6TTCBR.C1 (Ramalho Pinto), Ac. TRL 21-nov-2013, Proc. 1290/13.4TBCLD.L1-2 (Olindo Geraldes). Contra a inclusão das ações declarativas no leque das ações para cobrança de dívidas, o Ac. RLx 10-nov-2016, Proc. n.º 495-13.2TVLSB.L1-6 (António Santos), Ac. RLx 25-ago-2015, Proc. n.º 7976/14.9T8SNT.L1-4 (José Eduardo Sapateiro), Ac. TCAN 17-abr-2015, Proc. n.º 01466/13.4BEBRG (João Beato Oli-veira Sousa), Ac. RLx 11-julho-2013, Proc. 1190/12.5TTLSB.L1-4 (Leopoldo Soares). Consideram que a expressão em análise inclui, dentro das ações executivas, apenas as que se destinem ao paga-mento de quantia certa, por exemplo, o já referido Ac. STJ 17-mar-2016, Proc. n.º 33/13.7TTBRG.P1.G1.S2 (Ana Luísa Geraldes), Ac. RCb 03-mar-2015, Proc. n.º 1075/13.8TBVIS.C1 (Manuel Capelo). Não distingue o tipo de ações executivas em causa, por exemplo, o Ac. RLx 10-nov-2016, Proc. n.º 495-13.2TVLSB.L1-6 (António Santos).118 Em sentido convergente, Isabel Alexandre, Efeitos processuais da abertura do processo de revi-talização, em II Congresso de Direito da Insolvência, cit., 246, considera, no âmbito do PER, que «a pendência de uma ação declarativa não pode prejudicar a recuperação do devedor», pelo que impedir a sua instauração ou prosseguimento confi gura uma «restrição desproporcionada ao direito de ação judicial».

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(no caso da execução para prestação de facto). Essa afetação é apta a pôr em causa a recuperação do devedor ou a viabilidade do acordo de pagamento, pelo que também as ações executivas para entrega de coisa certa e para prestação de facto fungível estão abrangidas pela previsão normativa do n.º 1 do artigo 17.º-E e do n.º 1 do artigo 222.º-E. Esta solução encontra-se alinhada com a constante do n.º 1 do artigo 88.º – embora este preceito não seja aplicável aos processos pré-insolvenciais – o qual, em sede de insolvência, determina a sus-pensão de todas as diligências executivas, sem distinção da sua natureza.

Aplicando o mesmo critério da afetação do património do devedor e con-sequente prejuízo da recuperação ou da viabilidade do acordo de pagamento, também os arrestos e os arrolamentos fi cam abrangidos pela previsão normativa do n.º 1 do artigo 17.º-E119 e do n.º 1 do artigo 222.º-E, na versão do Projeto.

Face às dúvidas que a interpretação da expressão tem suscitado no domínio do PER, entendemos que seria útil aproveitar esta intervenção legislativa para incluir no n.º 1 do artigo 222.º-E (e no n.º 1 do artigo 17.º-E) a natureza e tipo de ações judiciais cuja instauração se proíbe ou cuja suspensão se impõe.

57. Quanto ao horizonte temporal de duração da proibição de instaura-ção de ações para cobrança de dívidas e de suspensão das ações pendentes que tenham idêntica fi nalidade, considere-se o seguinte:

(i) Por um lado, a previsão da proibição de instauração de novas ações para cobrança de dívida e a suspensão das ações pendentes até ao termi-nus das negociações parece deixar o devedor sem proteção contra ações judiciais que façam perigar a viabilidade do acordo de pagamento, desde aquele momento até (pelo menos) à homologação do acordo de pagamento120. Contudo, e em evidente contradição, o n.º 1 do artigo 222.º-E, na versão do Projeto, prevê logo de seguida que as ações em curso só se extingam uma vez aprovado121 e homologado o acordo de pagamento.

(ii) Por outro lado, a sentença homologatória pode ser revogada em sede de recurso, pelo que a extinção das ações para cobrança de dívida sus-pensas com o despacho de nomeação do administrador judicial provi-

119 No âmbito do PER, Isabel Alexandre, Efeitos processuais da abertura do processo de revitalização cit., 247.120 No mesmo sentido, Nuno Salazar Casanova/David Sequeira Dinis, PER – O processo especial de revitalização cit., 106-107. 121 A referência à «aprovação» do acordo de pagamento está a mais: essa aprovação não produz os seus efeitos sem a homologação judicial, pelo que não tem a virtualidade de, só por si, determinar a extinção de qualquer instância judicial.

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sório não pode dar-se logo no momento da homologação do acordo de pagamento. Tal extinção pode apenas dar-se com o trânsito em julgado da decisão que homologa122 o acordo de pagamento. Trata-se da proteção dos credores que temporariamente se veem impossibili-tados de satisfazer coativamente o seu crédito. Outra interpretação, que fi xasse a homologação do acordo de pagamento como momento da extinção das ações pendentes, obrigaria injustifi cadamente o credor a propor nova ação para cobrança de dívida, em caso de procedência do recurso do despacho de homologação. Nomeadamente, porque a situação em apreço não confi gura base para a renovação da instância executiva, nos termos do artigo 850.º do Código de Processo Civil.

(iii) No caso de sentença que recuse a homologação do acordo de paga-mento, a limitação da suspensão das ações para cobrança de dívidas ao momento do seu proferimento importaria um elevado risco de invia-bilização do acordo de pagamentos durante a pendência do recurso, no caso de este ser declarado procedente, precipitando uma situação de real insolvência. Sendo o objetivo primário do PEAP que o devedor não empresário conclua com os seus credores um acordo que lhe per-mita cumprir voluntariamente os seus deveres, não pode admitir-se a frustração desse objetivo devido à própria tramitação do processo.

(iv) Assim sendo, devendo manter-se a suspensão das ações para cobrança de dívida pendentes até ao trânsito em julgado do acordo de pagamento, resta questionar se a proibição de instauração de novas ações com aquela fi nalidade se mantém até ao mesmo momento ou se deve cessar com a homologação do acordo de pagamento. Também neste caso a justi-fi cação de proteção do devedor é procedente: é preciso garantir que, na pendência do recurso da sentença de homologação ou não homo-logação do acordo de pagamento, não se conduz o devedor para uma situação de insolvência em consequência da propositura de novas ações para cobrança de dívidas, inviabilizando o acordo de pagamento.

58. Em face do exposto, é aconselhável a alteração da redação do n.º 1 do artigo 222.º-E, na versão do Projeto, com aditamento de um número autó-nomo, em benefício da clareza de compreensão do regime:

122 No âmbito do PER, defendem Nuno Salazar Casanova/David Sequeira Dinis, PER – O processo especial de revitalização cit., 108-109, que as ações para cobrança de dívidas que se encon-trem suspensas só se extinguem com o trânsito em julgado da decisão que homologa o plano de revitalização. Contra, Isabel Alexandre, Efeitos processuais da abertura do processo de revitalização cit., 249-252.

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«1 – A decisão a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 222.º-C obsta à ins-tauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e suspende as ações em curso com idêntica fi nalidade, até ao trânsito em julgado da sentença de homologação ou de não homologação do acordo de pagamento.

2 – São ações para cobrança de dívidas, para efeitos do número anterior, quaisquer ações executivas e respetivos procedimentos cautelares antecipatórios, incluindo o arresto e o arrolamento.

3 – As ações suspensas por efeito do despacho de nomeação do administrador judicial provisório extinguem-se com o trânsito em julgado da sentença de homo-logação do acordo de pagamento, salvo quando este preveja a sua continuação».

5.3. Os poderes do juiz e do administrador judicial provisório

59. As disposições constantes do novo PEAP limitam-se – com uma exce-ção que se analisará adiante – a reproduzir as disposições do PER relativas à matéria dos poderes do juiz e do administrador judicial provisório, não se verifi cando alterações materiais signifi cativas, o que nalguns casos gera a con-tinuidade de soluções que já a propósito do PER foram justamente criticadas.

5.3.1. A nomeação do administrador judicial provisório

60. Encontra-se também no PEAP (artigo 222.º-E/2, na versão do Projeto) a já criticada redação do artigo 17.º-E/2, parecendo admitir-se que o juiz tenha o poder, em certos casos, de não nomear administrador judicial provisório. Não se vislumbra que casos possam ser estes, uma vez que, nos termos da alínea a) do n.º 3 do artigo 222.º-C, na versão do Projeto, o juiz tem o dever de nomear administrador judicial provisório quando recebe a comunicação do devedor em que este expressa a sua pretensão de iniciar negociações, acompanhada do documento previsto nos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo123. Não há aqui qualquer margem de discricionariedade na atuação do juiz.

Ademais, caso o juiz não nomeasse administrador judicial provisório, o prosseguimento do PEAP fi caria inteiramente comprometido, porquanto uma larga parte da sua tramitação depende de adoção de atos pelo referido adminis-trador – como seja a receção das reclamações e elaboração da lista provisória de créditos (artigo 222.º-D/2, na versão do Projeto), a orientação e fi scalização das negociações (artigo 222.º-D/9, na versão do Projeto), a concessão de auto-rização ao devedor para a prática de atos de relevo (artigo 222.º-E/2, na versão

123 Com crítica certeira, Catarina Serra, Processo especial de revitalização cit., 722.

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do Projeto), a receção dos votos dos credores quando o acordo de pagamento não seja aprovado por unanimidade (artigo 222.º-F/4, na versão do Projeto), a elaboração de parecer quanto à situação de insolvência do devedor, nos casos de não homologação do acordo pelo juiz ou de não aprovação do acordo pelos credores (artigos 222.º-F/7 e 222.º-G/4, na versão do Projeto), ou a comuni-cação do encerramento do processo negocial aos autos (artigo 222.º-G/1, na versão do Projeto).

Em face do exposto, a redação do n.º 2 do artigo 222.º-E deve ser alterada no seguinte sentido: «Com a nomeação de administrador judicial provisório nos termos da alínea a) do n.º 3 do artigo 222.º-C, o devedor fi ca impedido de praticar atos de especial relevo, tal como defi nidos no artigo 161.º, sem que previamente obtenha autorização para a realização da operação pretendida por parte do administrador judicial provisório»124.

5.3.2. A inexistência de uma fase de indeferimento liminar

61. Na linha do que já sucede com o artigo 17.º-C, o proposto artigo 222.º-C não prevê a possibilidade de indeferimento liminar do requerimento de abertura do PEAP, o que seria desejável, mormente em casos de falta de apre-sentação do documento exigido nos n.ºs 1 e 2 do artigo 222.º-C, de insolvência já declarada em ação anterior, de manifesta inexistência de uma situação econó-mica difícil ou de manifesta existência de uma situação de insolvência efetiva, à luz dos artigos 1.º/3 e 222.º-A/1, na versão do Projeto. A importância de instituir uma fase liminar torna-se ainda mais evidente pelos dados estatísticos que nos chegam, dos quais resulta que a grande maioria dos processos pré-in-solvenciais acabam na declaração de insolvência do devedor.

62. Para que a fase liminar pudesse ter lugar, seria necessário que o devedor estivesse obrigado a entregar, conjuntamente com a comunicação a que alude o artigo 222.º-C/3, a), na versão do Projeto, documentos que permitissem a comprovação da sua efetiva situação económico-fi nanceira. Esta obrigação não consta do Projeto: é que da lista de todos os credores e das ações para cobrança de dívidas pendentes contra o devedor (como se viu, os documentos que, à luz do Projeto, devem ser entregues) não resulta a situação económico-fi nanceira deste, ao que acresce a circunstância de a sua junção poder ser realizada após a comunicação a que se refere o artigo 222.º-C/3, a), na versão do Projeto, e

124 Sem prejuízo da alteração da redação desta norma também sugerida em 4.2.1. supra.

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a nomeação de administrador judicial provisório125. Por essa razão, sugeriu-se acima (incluindo, com a proposta de redação da alínea b) do artigo 222.º-C/3) a exigência de junção de documentos, pelo devedor, que possam provar a sua situação económico-fi nanceira.

Nesse sentido, e em consequência, seria ainda necessário introduzir uma disposição normativa que autonomamente regulasse a matéria, designadamente, os fundamentos para indeferimento liminar, a forma de apreciação sumária des-ses fundamentos e os efeitos do deferimento ou indeferimento liminar.

5.3.3. A relação entre a não homologação do acordo de pagamento, o parecer do adminis-trador judicial provisório e a declaração da insolvência pelo juiz

63. À luz dos n.ºs 1 e 5 do artigo 222.º-F, na versão do Projeto (decalcados dos n.ºs 1 e 5 do artigo 17.º-F), mesmo quando o acordo de pagamento seja aprovado por unanimidade ou com a maioria exigida pelo n.º 3 do mesmo artigo, o juiz pode, ainda assim, recusar a sua homologação, se ocorrer uma violação não negligenciável das normas procedimentais ou substantivas que regem o acordo de pagamento (nomeadamente, mutatis mutandis, as que cons-tam dos artigos 215.º e 216.º), isto é, violações que ponham em causa os inte-resses do devedor e dos credores126. Trata-se de uma atuação vinculada do juiz, que apenas aprecia questões de legalidade127, abstendo-se de considerações sobre a oportunidade ou adequação económico-fi nanceira das medidas cons-tantes do acordo de pagamento.

64. No caso em que o juiz recuse a homologação do plano, bem como no caso em que o processo negocial fi nde sem aprovação do acordo de pagamento, o administrador judicial provisório emite um parecer relativo à existência ou inexistência de uma situação atual de insolvência do devedor, conforme resulta dos artigos 222.º-F/6 e 7 e 222.º-G/4, na versão do Projeto. Cabe ver que,

125 No sentido de que, no regime do PER, os documentos que devem ser remetidos pelo devedor ao tribunal nos termos do n.º 1 do artigo 24.º ex vi da alínea b) do n.º 3 do artigo 17.º-C podem sê-lo já depois do início do processo, Catarina Serra, Processo especial de revitalização cit., 721.126 A circunscrição da possibilidade de recusa do PER a casos de violação não negligenciável das normas procedimentais e substantivas que regem o plano de revitalização é largamente aceite na doutrina e jurisprudência. Vide, por exemplo, Nuno Salazar Casanova/David Sequeira Dinis, PER – O processo especial de revitalização cit., 142-143, Nuno Gundar da Cruz, Processo especial de revitalização: estudo sobre os poderes do juiz, Petrony, Lisboa, 2016, 60-61.127 Nuno Salazar Casanova/David Sequeira Dinis, PER – O processo especial de revitalização cit., 141 e ss., Nuno Gundar da Cruz, Processo especial de revitalização cit., 63-64.

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na prática, o administrador judicial provisório não terá no processo, na esma-gadora maioria dos casos, elementos que lhe permitam aferir adequadamente da situação económico-fi nanceira do devedor – considerando, aliás, a curta lista de documentos a apresentar pelo devedor no início do procedimento, que nada demonstram sobre a sua capacidade económico-fi nanceira – e, muito menos, fazer um juízo comparativo entre a situação à data do início do PEAP e a situação no momento do encerramento do processo sem homologação ou sem aprovação do acordo.

65. Resta agora saber se o juiz está vinculado a decidir em conformidade com o parecer do administrador judicial provisório, declarando a insolvên-cia quando aquele parecer por ela pugne. A remissão realizada pelo n.º 4 do artigo 222.º-G, na versão do Projeto, para o artigo 28.º impõe uma resposta afi rmativa128. Contudo, a remissão operada gera uma solução constitucional-mente muito discutível, não só porque parece fazer equivaler o requerimento de insolvência do administrador judicial provisório à apresentação do próprio devedor à insolvência, fi ccionando uma confi ssão129 que nunca existiu, mas também porque retira ao devedor a possibilidade de se defender da declaração de insolvência que lhe foi imposta, em violação do seu direito a uma tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da Constituição)130.

Embora possa defender-se, por um lado, que a remissão para o artigo 28.º não pode ser lida em bloco, estando afastada a equiparação do requerimento de insolvência do administrador à apresentação à insolvência pelo devedor131 e que este teria sempre de poder exercer o seu contraditório por meio de embargos ou por aplicação analógica do artigo 40.º/1, a)132, a verdade é que a questão

128 Contra, Nuno Gundar da Cruz, Processo especial de revitalização cit., 69, para quem o juiz não está vinculado a proferir uma declaração de insolvência, podendo antes proceder à apreciação liminar do requerimento do administrador judicial provisório, nos termos do artigo 27.º. Igual-mente contra, Catarina Serra, Tópicos para uma discussão sobre o Processo Especial de Revitalização (com ilustrações jurisprudenciais), em Ab Instantia, ano II, n.º 4, 2014, 92-94, considerando que tal solução consubstancia uma violação do direito ao contraditório e que não existe uma justifi cação para que o juiz fi que vinculado a um parecer do administrador judicial provisório.129 Nuno Salazar Casanova/David Sequeira Dinis, PER, O processo especial de revitalização cit., 165, Fátima Reis Silva, Processo especial de revitalização – Notas práticas e jurisprudência recente, Porto Editora, Porto, 2014, 72-73.130 Paulo de Tarso Domingues, O processo especial de revitalização aplicado às sociedades comerciais, em I Colóquio de Direito da Insolvência de Santo Tirso (Catarina Serra), Coimbra, 2014, 27.131 No mesmo sentido, Maria do Rosário Epifânio, O processo especial de revitalização, Almedina, Coimbra, 2015, 77.132 Nuno Salazar Casanova/David Sequeira Dinis, PER – O processo especial de revitalização cit., 165-166, Nuno Gundar da Cruz, Processo especial de revitalização cit., 69.

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não é líquida na doutrina nem na jurisprudência, sendo aconselhável aproveitar a alteração legislativa para esclarecer o regime aplicável.

Note-se, ainda, que a remissão que o artigo 222.º-G/4, na versão do Pro-jeto, faz para o artigo 28.º gera difi culdades interpretativas no confronto com os n.ºs 3 e 5 do mesmo artigo 222.º-G: afi nal, o próprio n.º 3 já determina um prazo de três dias úteis para o proferimento da declaração de insolvência – sendo aqui inútil a remissão para o artigo 28.º – mas esse prazo começa a contar apenas após os cinco dias a que se refere o n.º 5 do artigo 222.º-G.

66. Em face do exposto, procurando obstar aos problemas de inconstitu-cionalidade que a redação poderá suscitar e harmonizar os n.ºs 2 a 5 do artigo 222.º-G, na versão do Projeto, sugerem-se as seguintes alterações ao texto desse artigo, incluindo renumerações e o aditamento de um novo número. Este seria o resultado da proposta de reformulação do artigo 222.º-G:

«Artigo 222.º-G1 – […]2 – Na comunicação a que se refere o n.º 1 e mediante a informação de que

disponha, o administrador judicial provisório deve, após audição do devedor e dos credores, emitir o seu parecer sobre se o devedor se encontra em situação de insolvência.

3 – Nos casos em que o devedor ainda não se encontre em situação de insol-vência, o encerramento do processo acarreta a extinção de todos os seus efeitos.

4 – Se o administrador judicial provisório concluir pela existência de uma situação de insolvência do devedor, deve requerer a declaração da mesma ao juiz.

5 – Recebida a comunicação a que se refere o n.º 1 e sendo o parecer no sentido da insolvência do devedor, o tribunal notifi ca aquele para, querendo e caso se mostrem preenchidos os respetivos pressupostos, em 5 dias, apresentar plano de pagamentos nos termos do disposto nos artigos 249.º e seguintes ou requerer a exoneração do passivo restante nos termos do disposto nos artigos 35.º e seguintes.

6 – Terminado o prazo de 5 dias previsto no número anterior, o juiz deve declarar a insolvência do devedor no prazo máximo de 3 dias úteis.

7 – O devedor pode, no prazo de 10 dias, deduzir oposição, sendo aplicável, com as devidas adaptações, o artigo 30.º.

8 – [anterior n.º 6]9 – [anterior n.º 7]10 – [anterior n.º 8]».

Com as alterações sugeridas, o n.º 3 do artigo 222.º-G, na versão do Pro-jeto, deve ser integralmente eliminado.

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5.3.4. A apresentação de um plano de pagamentos aos credores antes da declaração de insolvência

67. Uma novidade do regime do PEAP adequada à não empresarialidade do devedor que recorre a este processo pré-insolvencial é a constante do n.º 5 do artigo 222.º-G, na versão do Projeto encerrado o processo negocial sem que se logre um acordo de pagamento e emitido o parecer do administrador judicial provisório no sentido da verifi cação de uma situação de insolvência, pode o devedor apresentar, num curto prazo de cinco dias, um plano de pagamentos, nos termos dos artigos 251.º e seguintes.

Esta disposição possibilita a harmonização do PEAP com este regime insol-vencial, ao qual se tem vindo aqui a fazer profusa referência. À luz do artigo 251.º, o processo de insolvência inicia-se por meio de petição inicial onde o devedor pode imediatamente apresentar um plano de pagamento aos credores. Sem a norma constante do artigo 222.º-G/5, o devedor não empresário que primeiramente recorresse ao PEAP veria a sua insolvência declarada logo após o encerramento do processo negocial e do parecer desfavorável do administrador judicial provisório, nos casos em que o juiz com este concordasse. Ao devedor não seria dada qualquer oportunidade de apresentar, previamente à declaração de insolvência, um plano de pagamentos, o que criaria uma situação de desigual-dade injustifi cada entre o devedor não empresário que primeiramente lança mão do PEAP e o devedor não empresário que recorre logo ao processo de insolvência. Assim, o n.º 5 do artigo 222.º-G cria uma ponte entre os dois pro-cessos – PEAP e insolvência (plano de pagamentos) – que favorece a economia processual e confere uma posição de igualdade entre devedores não empresá-rios, independente do meio processual a que primeiro recorrem.

68. Em consonância com a possibilidade prevista no n.º 5 do artigo 222.º--G, o prazo de três dias úteis para a declaração de insolvência do devedor não empresário conta-se a partir do terminus do prazo de cinco dias de que aquele devedor dispõe para apresentar um plano de pagamentos, conforme dispõe a parte fi nal do n.º 3 do artigo 222.º-G (e não, como no regime do PER, a con-tar da comunicação do administrador judicial provisório relativa ao encerra-mento do processo, acompanhado do parecer relativo à situação de insolvência do devedor empresário – artigo 17.º-G/1 e 3).

Dra. Ana Alves Leal, Investigadora do CIDPDra. Cláudia Trindade, Investigadora do CIDP

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